música, educação e vida cotidiana- apontamentos de uma sociografia musical

Upload: pipinha33

Post on 05-Oct-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Música, Educação e Vida Cotidiana- Apontamentos de Uma Sociografia Musical

TRANSCRIPT

  • Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=155031843007

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Souza, JusamaraMsica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, nm. 53, julio-septiembre, 2014, pp. 91-111Universidade Federal do Paran

    Paran, Brasil

    Como citar este artigo Nmero completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Educar em Revista,ISSN (Verso impressa): [email protected] Federal do ParanBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

  • Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Music, education and everyday life: notes of a musical sociography

    Jusamara Souza1

    RESUMO

    O artigo relata o processo e partes dos resultados de uma sociografia musical feita em uma pequena cidade localizada no Rio Grande do Sul. A pesquisa foi desenvolvida por meio de questionrios e entrevistas realizadas durante visitas ao municpio, contatos com grupos musicais organizados e conversas com msicos locais. O objetivo foi analisar as relaes entre prticas musicais existentes, a insero destas prticas na comunidade e suas potencialidades para a educao musical. A partir dos dados obtidos, discute-se como a msica na escola pode dialogar com a vitalidade cultural da comunidade na qual est inserida.

    Palavras-chave: educao musical; sociologia da msica; vida cotidiana.

    ABSTRACT

    This article describes the process and some outcomes of a musical socio-graphy taken in a small town located in Rio Grande do Sul Brazil. The research was carried out through questionnaires and interviews, developed during visits to the municipality, contacts with organized musical groups, and conversations with local musicians. The aim was to analyze the rela-tionships among existing musical practices, the inclusion of these practices in the community and its potential for musical education. Based on the data obtained, the article discusses how music in school can dialogue with the cultural vitality of the community in which it operates.

    Keywords: music education; sociology of music; everyday life.

    1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Rua Professor Annes Dias, n 112, 15 andar. Centro. CEP: 90020-090.

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 91

  • Introduo

    Na rea de educao musical h muito se utiliza um conceito alargado de formao musical, entendendo que a dimenso educativa est presente nas prticas musicais realizadas em diferentes contextos, sejam eles escolares ou no escolares. Tanto como rea de conhecimento ou como campo de trabalho, a educao musical considera toda prtica msico-educacional como objeto de interesse e estudo. Para Kraemer (2000) a educao musical ocupa-se com as relaes entre pessoa(s) e msica(s) sob os aspectos de apropriao e transmis-so (p. 65). O desafio tem sido, ento, fazer o dilogo entre as diferentes formas de apropriao e transmisso do conhecimento musical produzidos socialmente. Para a educao musical escolar isto significa estar atento s formas de ensinar e aprender msica que so feitas no mundo cotidiano vivido (SOUZA, 2008).

    O campo escolhido para a realizao dos trabalhos de pesquisa, foco do presente artigo, foi Salvador do Sul, uma pequena cidade de colonizao alem localizada no Rio Grande do Sul, situada a 100 km de Porto Alegre. O con-tato com o municpio de Salvador do Sul estabeleceu-se em 2010, quando foi proposto Prefeitura, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atravs do Grupo de Pesquisa Educao Musical e Cotidiano2 (CNPq/UFRGS), um curso de formao continuada para professores que atuavam na rede municipal de ensino. Como desdobramento dessa ao para 2011, alm da continuidade da formao de professores, foi sugerida a realizao de um estudo que abrangesse as prticas musicais do Municpio.

    O estudo proposto pelo Grupo de Pesquisa Educao Musical e Cotidiano refere-se a parte das atividades que foram desenvolvidas no mbito do Programa Msica, Cotidiano e Educao, que havia sido selecionado e contemplado pelo Edital n 05 - PROEX/ 2010 - SESu/ MEC. Este Programa (PROEX/ 2010- UFRGS) articulou as aes propostas e desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Educao Musical e Cotidiano (CNPq/ UFRGS) e foi estruturado em trs eixos norteadores: a) Cursos de Formao Continuada para Professores, oferecidos para as redes de ensino pblico e privado, de quatro regies do pas, nas cidades

    2 O Grupo de Pesquisa Educao Musical e Cotidiano (CNPq/ UFRGS), vinculado ao Pro-grama de Ps-Graduao em Msica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi criado e coordenado pela autora deste artigo, e desenvolve suas atividades desde 1996, tendo como objetivo analisar a msica e suas relaes com a educao, na perspectiva das teorias do cotidiano. Ao longo desse tempo, em suas atividades regulares (de pesquisa, extenso e discusso) em torno dessas relaes entre msica, teorias do cotidiano e prticas educativas, o Grupo de Pesquisa tem tido como participantes todos os orientandos de mestrado e doutorado da sua coordenadora, assim como pesquisadores e professores visitantes nacionais e estrangeiros.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR92

  • de Marab (Par), Duas Estradas (Paraba), Uberlndia (Minas Gerais), Maring (Paran), Salvador do Sul e Gramado (Rio Grande do Sul); b) Elaborao de material didtico com a produo digital de um DVD e a publicao de uma coleo3 com cinco livros, com referncias curriculares e propostas de ativida-des a serem desenvolvidas nos diferentes nveis da educao bsica (infantil, fundamental e mdio) e na educao de jovens e adultos; 3) Articulao de uma rede nacional com instituies de ensino superior para a criao de um banco de dados e de espaos para a divulgao e publicizao das aes implementadas.

    Desta maneira, ao longo de 2011 e 2012 foi realizada uma pesquisa inti-tulada Msica na Escola: mapeamento e diagnstico de equipamentos culturais e prticas na educao musical.4 O objetivo foi identificar as atividades musicais desenvolvidas, analisar as relaes entre elas e a insero destas prticas na comunidade, bem como discutir suas potencialidades para a educao musical, analisando como a msica na escola poderia dialogar com a vitalidade cultural da comunidade na qual est inserida.

    Neste artigo sero apresentados achados desta pesquisa, dentro de um recorte, resultante das entrevistas qualitativas realizadas junto a msicos de nove grupos musicais e trs msicos da cidade de Salvador do Sul.

    Cenrio da pesquisa

    A cidade de Salvador do Sul possui aproximadamente 7.000 habitantes5, em sua maioria constituda de descendentes de alemes. O territrio, com paisagens deslumbrantes como os gestores o descrevem, faz parte do Vale do Ca, localizado na Serra Gacha. A histria do municpio marcada pela colonizao alem a partir de 1855 e, hoje, alm dos descendentes de alemes,

    3 Esta Coleo pertence Srie Educao Musical e Cotidiano, coordenada por Jusamara Souza e publicada pela Tomo Editorial de Porto Alegre. Nesta srie, j foram publicados dois livros: a) em 2011, Msica na Escola: Propostas para a implementao da lei 11.769/08 na Rede de Ensino de Gramado, RS, organizado por Jusamara Souza; e b) em 2013, Educao musical, cotidiano e ensino superior, organizado por Ana Lcia Louro e Jusamara Souza. Compem ainda esta Srie: Educao Musical e Cotidiano e os outros trs livros que tm previso de publicao para 2014, com os ttulos/temas: Msica, Educao e Projetos Sociais; Pesquisa Qualitativa em Educao Musical; e Temas para o ensino de msica na escola.

    4 A equipe de pesquisadores compreendeu Jusamara Souza (Coordenao geral), Renita Klsener (UFRGS), Matheus de Carvalho Leite (Mestrando/ UFRGS) e Ana Claudia Specht (Dou-toranda/ UFRGS).

    5 Dados do Censo do IBGE, de 2010.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 93

  • h uma diversidade cultural composta pelas etnias italiana, lusa, srio-libanesa e africana. A cidade se orgulha de possuir o primeiro trilho curvilneo da Amrica do Sul, como uma marca da implementao da rede ferroviria que interligava Salvador do Sul aos municpios-polos do Estado e fator de desenvolvimento da regio, no incio do Sculo XX at o final dos anos 1970, quando ento a ferrovia foi desativada.

    Diferentemente de outras cidades do interior brasileiro, em que a maioria dos municpios no conta com nenhum tipo de equipamento cultural, nem com polticas pblicas na rea de msica, Salvador do Sul tem um movimento artstico-musical intenso, com diversos corais, bandas escolares, bandas de rock e outros grupos instrumentais inclusive mantendo uma escola municipal para o ensino de artes. Pode-se fazer meno, aqui, Oficina Municipal de Artes de Salvador do Sul (OMA), que disponibiliza gratuitamente mais de 20 oficinas comunidade, entre as modalidades de msica, dana, teatro, esportes e gins-tica. A cidade faz parte de uma regio em que h numerosos coros de tradio germnica, justamente frutos dessa colonizao alem. Portanto, a presena de muitas atividades musicais pode ser explicada pela relao dos descendentes de imigrantes alemes com a msica, especialmente na tradio de coros sejam eles vinculados igreja ou no. A relao entre as diversas atividades musicais faz da cidade um campo frtil quanto questo identitria por agregar, alm de alemes, imigrantes descendentes de italianos e outras culturas na vida musical da cidade.

    Neste artigo ser feito um recorte da realidade da produo musical apresentando-se grupos e msicos atuantes na cidade, como eles se veem e so vistos, como convivem com outros msicos e o que pensam sobre a msica na educao. Para isso, na sequncia, sero apresentadas algumas referncias tericas importantes e a metodologia empregada na pesquisa.

    Enquadramento terico do estudo

    A msica tem sido objeto de estudo de vrios socilogos e cientistas sociais. Para Bozon (2000), a prtica musical um fenmeno transversal, que perpassa toda a sociedade e que constitui um dos domnios onde as diferenas sociais ordenam-se da maneira mais clssica e marcante, mesmo se os agentes sociais, mais seguido e constantemente que em outros campos se recusem a admitir que a hierarquia interna da prtica uma hierarquia social (p. 147). O autor, apoiado na noo de campo social de Pierre Bourdieu, conclui: longe de ser

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR94

  • uma atividade unificadora no que concerne todos os ambientes sociais e todas as classes, a msica o lugar por excelncia da diferenciao pelo desconheci-mento mtuo; o gosto e os estilos seguidamente se ignoram, se menosprezam, se julgam, se copiam (p. 147).

    Bozon (2000) realizou uma pesquisa na qual descreve e analisa prticas de grupos musicais presentes em Villefranche-sur-Sane, uma pequena cidade operria na regio de Lyon, Frana, procurando extrair as caractersticas gerais do campo local que as constituem (p. 148). As atividades musicais selecionadas emergiram como um campo privilegiado para se observar as diferenas entre os grupos sociais. A msica investigada como um fenmeno de sociabilidade e a anlise sociolgica do campo musical, feita por Bozon, ilustra esta funo em nvel local.

    A lgica de funcionamento do campo musical definida pelos agentes que a atuam: msicos, promotores, crtica, organizaes e pelas justificativas, incluindo a hierarquizao dos agentes no campo da msica e suas relaes. O estudo de Bozon revela que as caractersticas sociais, geogrficas e culturais de uma pequena cidade aglutinam atividades e grupos sociais que tudo, na sociedade global, tende a separar, o que, por um efeito perverso, refora em cada indivduo a vontade de marcar suas distncias. (BOZON, 2000, p. 148).

    Entender a msica como prtica social significa compreender que as exigncias tcnico-musicais esto ligadas s prticas de sociabilidade nos grupos, na famlia, na escola, na igreja e na comunidade. Como escreve Anne Marie Green (2000), a msica um objeto complexo por se tratar de um fato social total que coloca em jogo e combina aspectos tcnicos, sociais, culturais e econmicos. A partir dessa perspectiva que busca ter uma viso do conjunto das relaes que se tecem, isto , entendendo a msica como uma realidade social com seus mltiplos aspectos (GREEN, 2000, p. 34), a autora acredita que podemos ter uma compreenso mais aguda, mais sensvel e mais larga dos fatos musicais. Esse entendimento mais ampliado, sobre o significado social da msica, til para compreender as diferentes prticas musicais dos diversos grupos de estudantes na escola ou em outros espaos.

    Alm disso, para o campo pedaggico musical, esta perspectiva pode tambm revelar por que estudantes de diferentes grupos se envolvem em certas prticas musicais, por que evitam outras e como respondem msica na sala de aula (GREEN, 1997, p. 33). Dessa forma, como j discutido em outros textos (SOUZA, 2004), o que estaria no centro da aula de msica seriam as relaes que os alunos constroem com a msica, seja ela qual for. Por isso mais im-portante definir o tipo de relao que os alunos mantm com a msica do que se limitar a um estudo da prtica ou do consumo musical unicamente por seu contedo ou gnero de msica apreciada ou escutada (GREEN, 1987, p. 95).

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 95

  • O fio condutor da pesquisa aqui apresentada a concepo de prticas musicais como prticas sociais apoiada na sociologia da msica. Como subcampo da rea de msica, a sociologia da msica estuda

    [...] as condies sociais e os efeitos da msica, assim como relaes sociais, que estejam relacionadas com a msica. Ela considera o manu-seio com msica como um processo social e analisa o comportamento do homem relacionado com a msica em direo s influncias sociais, instituies e grupos (KRAEMER, 2000, p. 57).

    Dentre os temas investigados pela sociologia da msica podemos in-cluir: processos de socializao musical e iniciao msica, representao dos principais gneros e estilo musicais, manuteno e renovao de prticas musicais tradicionais, bem como comportamentos e papis dos indivduos em grupos, suas produes culturais e formas de organizao da vida musical. (KRAEMER, 2000, p. 57).

    Atravs do estudo sobre a diversidade das prticas musicais encontradas em Salvador do Sul, destacando-se a variedade dessas prticas vividas pelos msicos amadores e profissionais, buscou-se responder a dois objetivos. O pri-meiro relativo elaborao de um mapa que pudesse mostrar a pluralidade de atividades musicais e os mecanismos de diferenciao, aproximaes e tenses discutidos por Bozon (2000), bem como refletir sobre as condies de perma-nncia, ou de declnio, de determinadas prticas musicais. O segundo objetivo foi vincular esses conhecimentos com a educao musical, especialmente aquela que se faz na escola.

    Metodologia

    Para os fins desta pesquisa foi utilizada uma metodologia que combinou abordagens qualitativas e quantitativas, apoiando-se na sociografia musical como instrumento de coleta e anlise. A sociografia musical, como uma descrio meticulosa da realidade (MENDRAS, 2004, Introduo, p. xxv), constitui-se em uma ferramenta que agrega sentido ao dado quantitativo e qualitativo, e foi empregada nesta pesquisa com a finalidade de analisar situaes especficas em que a cultura musical local fosse considerada. Os estudos sociogrficos de

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR96

  • Monteiro (2009, 2011) e Guerra (2011) contriburam para o design metodol-gico adotado.

    A pesquisa foi realizada no perodo de novembro a maio de 2012, com diferentes atividades que transcorreram entre as localidades de Salvador do Sul (comunidade-alvo) e Porto Alegre (universidade). As atividades presenciais, no municpio de Salvador do Sul, alm da participao direta da equipe de pesquisa, contou com o apoio da Prefeitura quanto ao suporte logstico, em termos de pessoal e material. A investigao foi desenvolvida em quatro etapas: fase de planejamento, fase da coleta de informaes, fase de anlise dos dados e fase da divulgao dos resultados. Na fase de planejamento, a articulao da equipe de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com os gestores da Prefeitura de Salvador do Sul foi decisiva para um adequado e pro-fcuo planejamento, definio e aprovao das aes na realidade do municpio. Com essa articulao foi possvel identificar o pblico (representaes de insti-tuies da comunidade, comunidade escolar e gestores) a ser consultado cujas opinies foram contempladas nos instrumentos de coleta de dados que foram construdos. Isto resultou no planejamento de uma primeira verso do roteiro, tanto para as entrevistas como para o questionrio. Os critrios de escolha e seleo dos informantes foram estabelecidos, tambm, com a colaborao das Secretarias de Educao e da Cultura da cidade.

    O questionrio mapeou as atividades musicais presentes na comunidade e reuniu questes contemplando os seguintes tpicos: oferta cultural da cidade (situao presente; recursos e necessidades) com particular incidncia na msica; espaos de fruio musical (histria, focos de divulgao e sua importncia); lugar do espao na vida musical/cultural da cidade (frequncia do espao); hbitos de lazer; programao artstica (tipo e localizao dos espetculos promovidos pela prefeitura e outras instituies) e conhecimento de grupos musicais e msicos.

    Com a preocupao de captar as dimenses qualitativas no campo musi-cal, foram utilizados dois tipos de entrevistas, individuais e coletivas. Atravs de contatos pessoais ou por telefone, foram selecionados como participantes msicos, bandas e grupos representativos da comunidade. As entrevistas indi-viduais foram realizadas enfocando o histrico social de determinadas prticas, escolares e no escolares, com a msica na comunidade; trajetrias de vida pro-fissional e musical; modos de aprendizagem de msica e grau de investimento na msica. As entrevistas realizadas com os grupos musicais, em um nmero total de nove, permitiram identificar seus componentes e descrever as prticas musicais tpicas de cada grupo.

    O roteiro utilizado para as entrevistas foi estruturado a partir de quatro eixos: identidade (quem so os msicos), alteridade (como se veem e so vistos),

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 97

  • interao (como convivem com outros msicos na comunidade) e educao musical (o que pensam da msica na educao). Esse roteiro permitiu explorar distintas vises, estilos e temporalidades presentes na vida musical da cidade. Alm disso, o roteiro incluiu o relato de momentos vividos e de contato com a msica ao longo da vida (infncia, adolescncia, juventude e vida adulta); agentes/instncias de socializao (amigos, irmos, pais, tios, professores) e experincias marcantes (concertos, festivais, sadas, viagens, entre outras).

    Alm da elaborao dos instrumentos de coleta de dados, a equipe rece-beu uma formao para se qualificar em pesquisa, ao longo de todo o projeto. Assim, com o foco dirigido aos aspectos quantitativos da sociografia musical, o cronograma previu aes de qualificao para a equipe em dois momentos: a) para a anlise de estudos e pesquisas (desenvolvidas e em desenvolvimento), sobre metodologias e tcnicas de coleta de dados; e b) para a sistematizao das informaes com o uso do software SPHINX6.

    Na fase da coleta de dados, os contatos com funcionrios da Prefeitura de Salvador do Sul foram importantes para a catalogao das experincias musicais do municpio e o pr-agendamento de encontros com responsveis pelos grupos musicais. Depois foi feito um agendamento para visita in loco para aplicao do questionrio, captao de imagens e entrevistas de carter qualitativo, visando definio das experincias musicais para a produo do documentrio. Os ques-tionrios foram aplicados presencialmente e tambm disponibilizados via web.

    A etapa anlise dos dados foi constituda de dois momentos complemen-tares: a anlise dos dados quantitativos resultantes dos questionrios e a anlise dos resultados qualitativos, com a finalizao do documentrio e a impresso do DVD. A produo audiovisual esteve relacionada com a articulao da equipe da UFRGS, Prefeitura Municipal de Salvador do Sul e uma produtora especializada nos servios de captao de imagens e produo do documentrio.

    A ltima etapa, a da divulgao dos processos envolvidos no mapeamen-to e discusso dos resultados da pesquisa, incluiu quatro subtarefas, tambm importantes, a saber: Produo do teaser do documentrio com o olhar da diversidade musical no

    municpio de Salvador do Sul, que foi apresentado no Seminrio Msica, Cotidiano e Educao/PROEXT2010 realizado em 05 de dezembro de 2011 na UFRGS;

    6 Ver: . Como indicado na pgina do site: O controle dos acessos e das respostas realizado atravs da identificao nominal ou por um sistema de chave que assegura condio de anonimato. A coleta das respostas pode ser realizada via rede local, dispositivos mveis, via papel ou diretamente na Web. Diferentes relatrios (com diferentes nveis de acesso informao) podem ser estruturados de modo a atender diferentes pblicos. Acesso em: 14/05/2014.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR98

  • Sistematizao das informaes relativas aos equipamentos culturais na co-munidade local e s prticas musicais na comunidade escolar, realizadas no municpio de Salvador do Sul, considerando o mapeamento j elaborado por institutos como IBGE e INEP;

    Divulgao do documentrio atravs do seu lanamento oficial para a comu-nidade de Salvador do Sul, com a participao dos msicos participantes da pesquisa, ocorrido em junho de 2012;

    Elaborao de atividades didticas a partir do documentrio e divulgao do material no Curso de formao de professores, realizada em fevereiro de 2013, em Salvador do Sul.

    Para efeitos de exposio neste artigo, foram reunidas e sistematizadas as informaes derivadas das entrevistas qualitativas que foram realizadas.

    A msica na vida cotidiana da comunidade

    A presena da msica numa cidade pode ser captada a partir de testemu-nhos individuais. A msica, como um fenmeno transversal que perpassa a sociedade (BOZON, 2000), apresenta-se em uma comunidade local de uma maneira singular, mas dotada de valores e crenas que resultam na identidade cultural do municpio. Para conhecer quem so os grupos e os msicos de Sal-vador do Sul e tambm como a msica entrou em suas vidas, que tipo de msica eles fazem, e como ajudam a construir a identidade cultural desta comunidade, foram entrevistadas pessoas pertencentes aos 9 grupos de msicos selecionados para participarem desta pesquisa. Esses grupos musicais so: Orquestra Jovem (16 participantes), Coral Bom Progresso (20 participantes), Coral Concrdia (19 participantes), Coral Municipal de Salvador do Sul (25 participantes), Quarteto da Fumaa (4 participantes), Happy Brass (10 participantes), Banda Blue Label (5 participantes), Banda Viva Alegre (9 participantes) e Banda da Escola Estadual de Ensino Mdio So Salvador (25 participantes). Alm desses grupos pudemos contar com o depoimento de msicos praticantes de diferentes gneros: Ademir Holderbaun e mais trs de seus familiares, tambm Charles Wentz e Padre Pedro Norberto Link. Alm dos msicos7 que colaboraram com

    7 Da lista de informantes privilegiados, entre os msicos integrantes dos grupos que co-laboraram com a pesquisa, podemos nomear: Adriano Roberto Krahl, Anderson Ado Petry, Ari Gasto Petry, Arnsio Guilherme Goetz, Arsnia Maria Weschenfelder, Christian Incio Vogt, Cinara Tamara Neis, Daniel Gonalves de Azevedo, Elaide Petry Loff, Elton Schneider, Emerson Gasto Petry, Eunice Ins Rauber Weschenfelder, Felipe Lermen Petry, Joaquim Lunckes, Jos Marcos,

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 99

  • seus depoimentos, foi possvel ouvir outras pessoas8 da comunidade envolvidas com o tema da pesquisa. Estas pessoas estavam ligadas ao setor da administra-o municipal e contriburam, decisivamente, para fornecer o apoio logstico para os trabalhos que foram realizados, facilitando os contatos, agendamentos, locais para realizao do processo de coleta e produo do material audiovisual. Alm disso, elas tambm colaboraram para a definio dos critrios de escolha e seleo dos entrevistados dos grupos musicais, alm de ajudarem a localiz-los.

    Diferentemente de outros estudos no campo das cincias humanas e sociais, nesta pesquisa a revelao da identidade dos participantes tem um valor cientfico e scio-histrico, apoiado em dois aspectos relevantes. Um deles refere-se ao fato de que utilizar o espao da produo e publicao cientfica como aqui, em um artigo resultante de uma pesquisa realizada para dar visibilidade identidade destas pessoas significa tambm recuperar a memria de participao delas na construo dos diferentes espaos de convivncia na cidade, ainda mais quando praticamente elas foram as pioneiras na regio. O outro aspecto a destacar est, tambm, no fato de que isto adquire o significado de respeito e valorizao para com estas pessoas, dando-lhes legitimidade como construtoras e participantes da histria musical de Salvador do Sul. Contudo, imprescindvel assinalar aqui que a realizao das entrevistas e recolha dos depoimentos, com a expli-citao da identidade dos participantes, somente aconteceu aps a garantia da compreenso, esclarecimento e anuncia a respeito do projeto que estava sendo desenvolvido. Isso produziu a concordncia e, mais ainda, a alta disposio em quererem participar e fazer parte dessa histria que, ento, iria ser contada e sistematizada de maneira cientfica e com o compromisso de torn-la pblica e registrada. No documentrio, um dos resultados finais das produes do projeto e que foi objeto de uma solenidade pblica para sua divulgao envolveu a comunidade, os entrevistados e as autoridades que apoiaram e contriburam na realizao do trabalho encontram-se nele os dados de identificao de todas estas pessoas que compuseram o plano de atividades do projeto.

    Apresentam-se aqui os depoimentos fornecidos atravs das entrevistas realizadas com os msicos, bandas e grupos representativos da comunidade de Salvador do Sul. O carter qualitativo das entrevistas permitiu que as distintas vises, estilos e temporalidades presentes na vida musical da cidade, assim como

    Luis Augusto Steffens, Mateus Kremer, Otto Weimer, Paulo Candido Bard, Rejane Maria Grf Kfer, Ren Vier, Rodrigo Calleari, Samuel Friederich, Samuel Vier, Sita Weimer, Valdir Pedrozo e Werno Bourscheid.

    8 Carla Maria Specht, Jos Valdir Mildner, Clarina Elisabeta Klein, Rejane Maria Grf Kfer, Zeno Evdio Becker, Cleo Marciano Meurer, Mari Beatriz Folleto Koester, Jlia Masa Weschenfelder, Joaquim Incio Lunckes e Ladi Maria Renner.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR100

  • experincias e vivncias marcantes (individuais e comunitrias em relao msica), pudessem ser captadas atravs do relato desses participantes.

    Identidade: quem so os msicos

    Um primeiro eixo do roteiro de entrevistas girou em torno do conceito de identidade, avaliando as relaes e imbricaes do entrevistado com a msica. Para isso foram considerados aspectos como gosto musical e ligao com a msica, marcos biogrficos e suas relaes com as atividades musicais desen-volvidas e estilos musicais preferidos.

    Vila (2012), ao discutir o papel da msica e das dinmicas identitrias, afirma que toda atividade cultural (incluindo a msica) entendida como a esfera privilegiada na qual se constri o ethos de um grupo (p. 257). Conforme Vila, referindo-se ao musiclogo ingls Simon Frith, a msica constri nosso sentido de identidade atravs das experincias diretas que oferece do corpo, do tempo, da sociabilidade, experincias que nos permitem localizarmo-nos em narrativas culturais imaginativas (FRITH, 1996 apud VILA, 2012, p. 263). Esta ltima frase , segundo Vila, crucial para o entendimento da relao entre msica e identidade proposta por Frith, ou seja, a msica nos d uma experincia real do que poderia ser o ideal, e conclui:

    Nesse sentido, a msica um artefato cultural privilegiado, uma vez que nos permite a experincia real de nossas identidades narrativizadas imaginrias. Assim, parte da compreenso de que nossa identidade (que sempre imaginria) seria produzida quando nos submetemos ao prazer corporal da execuo ou escuta musical. E precisamente a que se produz a conexo entre a interpelao e o desejo, entre a oferta identitria e a identificao (VILA, 2012, p. 261).

    Em outras palavras, a msica nos d a possibilidade de realmente viven-ciar no corpo as identificaes ideais (em termos tnicos, nacionais, etrios, de gnero etc.) que cremos ter inscritas nele (mas que, na realidade, so apenas performativas) (VILA, 2012, p. 266).

    Atravs da anlise das informaes obtidas nas entrevistas, percebe-se que a dimenso identitria da msica apareceu muito ligada questo da etni-cidade. Isso pde ser observado especialmente na relao dos descendentes de imigrantes alemes com a msica. A prtica coral na comunidade tem um papel fundamental e configura-se como um espao de sociabilidade e de encontro. Uma

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 101

  • participante do Coral Bom Progresso confirma: O canto coral um elemento cultural que muito presente nas nossas comunidades daqui.

    Matter (2012), ao investigar sobre os processos que mobilizam encontros de grupos corais teuto-brasileiros catlicos na regio nordeste do estado do Rio Grande do Sul, relata que o canto coral praticado por essas comunidades es-tabelece redes de circulao e de construo identitria como resultado de um processo que contribui para a atualizao da cultura e da msica. Ancorados na herana cultural alem, esses grupos corais interagem, estabelecendo redes de identificao que interconectam comunidades. (p. 1). Este o caso tambm do Coral Concrdia, um coral centenrio do municpio, que procura cultuar suas tradies, suas razes, e realiza um baile anual (sempre no sbado mais prximo do dia 7 de janeiro) para o qual convida os demais coros da regio para irem at Salvador do Sul. Elaide Loff, participante do Coral Concrdia h 30 anos, conta: No ltimo baile tivemos 600-700 pessoas compartilhando e prestigiando o canto coral. O repertrio do coro basicamente msica sacra para cantar na igreja, mas eles tambm se apresentam em outros lugares.

    Se essa prtica coral procura manter a tradio alem, outros testemunhos de coristas mais velhos deixam entrever a descontinuidade das prticas corais, especialmente pensando nas novas geraes e na manuteno da tradio coral:

    Francamente nosso coral [Concrdia] bom, mas no vai durar no, porque jovem no entra mais, e os velhos vo, de pouco a pouco, saindo. Isso no vai durar muito tempo no. Jovem no se interessa por cantar. Eles tem seu futebol, tem TV e seus bailes... internet... (Otto Weimer)

    Os jovens trabalham em fbricas e quando voltam, eles esto cansados e no vo para os ensaios (Sita Weimer)

    Ainda vinculado questo dos descendentes de imigrantes alemes e sua identidade com a msica, o depoimento do Padre Pedro Norberto Link emble-mtico. Aqui, ele faz um recorte da histria da imigrao alem local, revelando parte da herana cultural alem na educao musical escolar, construda no Colgio Santo Incio, um espao ainda referncia para a educao do municpio:

    Eu sou Padre Pedro Norberto Link, de origem alem. Eu cheguei aqui em 1941 juntamente com um grupo bastante grande, viemos de trem, enchemos um vago, em Santo ngelo [RS]. Se a gente olha por ali

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR102

  • a coisa mais maravilhosa, os vales, os montes, mas ali de cima, mais acima no morro a gente chega a ver at Porto Alegre. Para construir o colgio, os tijolos vinham de trem. Por aqui passaram cerca de 3.000, um pouquinho mais que 3.000 alunos. Ao todo [o colgio funcionou] foi de 37 a 90. Em 90 foi fechado, tristemente, foi fechado.

    No comeo era portugus, aritmtica, geografia, histria, msica... era teoria e tambm a prtica e chegamos a formar uma orquestra aqui. Eu no me lembro quantas figuras eram, mas enchiam mais ou menos uma sala assim... Eu me lembro de um canto Alleluia, de Haendel, era cantado no dormitrio, na Pscoa. Ento, isso era... aquilo enchia de fato o cora-o. Eu fui destacado para trabalhar aqui como mestre, como professor e para cuidar do grupo de alunos. A eu comecei a juntar dinheirinho pra comprar uma dzia de gaitinhas e uma dzia de flautas. Eu entreguei o dinheiro para um padre alemo que daqui ia para a Alemanha e l, na Alemanha, havia dois estudantes jesutas. Ento, eu pedi para ele entregar o dinheiro, comprar as gaitinhas e mand-las depois pra c. Chegamos a tocar pros benfeitores de Montenegro9. Acho que alugamos uma Kombi pra colocar a turminha e fomos, passamos o dia l, tocando pra rapaziada, foi um dia de folga e deram muita alegria pros benfeitores.

    A citao, embora longa, d uma ideia de como os imigrantes alemes trataram de movimentar o campo da msica na educao e o legado desse mo-vimento para a comunidade. Como escreve Bozon,

    a originalidade do campo musical est no fato de que, cobrindo um espao social muito extenso ele permite a observao simultnea de continuidades e de descontinuidades, favorecendo no mais alto grau o esprito de encenao por parte dos agentes (BOZON, 2000, p. 172).

    Alteridade: como se veem e so vistos

    A importncia da msica na estruturao da identidade e no modo de vida dos entrevistados pode ser vista nos vrios depoimentos. A identidade do indivduo vai sendo construda por meio das relaes socioculturais estabele-

    9 Salvador do Sul foi emancipado de Montenegro em 9 de outubro de 1963, atravs da Lei Estadual n 4.577 e posterior alterao no artigo 2.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 103

  • cidas com a famlia, os amigos e a escola, a mdia e as instituies religiosas, o que vai tornando-o consciente de sua singularidade, do diferente, da diferena.

    Eu comecei na msica com 8 anos. Na minha famlia parente nenhum era msico. At hoje a gente no sabe direito porque eu tive esse gosto musical. Mas, a partir dos 8 anos, que um dia eu vi um folhetozinho de uma loja l, um teclado, eu me apaixonei, assim, foi primeira vista e da eu pedi, bah, pai, eu quero esse teclado. E o pai, aquela vez, ele fez de tudo, tudo o que podia para comprar, as condies no eram assim to boas, mas ele conseguiu comprar [o instrumento]. Talvez por esse esforo tambm, vendo ele fazer esse esforo por mim, um gosto to grande, que eu iniciei nessa parte da msica. (Samuel Vier, Happy Brass)

    [...] o que me levou a aprender msica aos 35 anos foi que desde criana meu sonho era ser msico. Ento tinha um rdio pilha, a gente escu-tava as bandinhas, a a gente ia pra roa arrumar pastos pros animais e assoviava a msica, porque eu queria msica! (Werno Bourscheid, Banda Viva Alegre)

    O entendimento mais amplo dos significados sociais da msica nos ajuda a compreender diferentes prticas musicais dos diversos grupos. Isso tambm revela por que os diferentes grupos se envolvem com certas prticas musicais, por que optam por outras e como essas distintas prticas se comunicam entre si.

    A msica fornece ferramentas que permitem aos cidados conhecer e se relacionar com as produes culturais e simblicas do passado, e com aquelas produes do presente, atravs de sua recepo e produo. Como escreve Arroyo (2002), as prticas musicais compreendem um complexo de aspectos, desde os produtores e receptores das aes musicais, o que eles produzem, como e por qu, e todo o contexto social e cultural que d sentido s prprias aes musicais (p. 29). Assim, pode-se afirmar sobre a importncia desse processo para a formao de grupos e sociabilidade, como tambm para o respeito pela diversidade de identidades e o refinamento de uma sensibilidade multicultural. Dessa forma, se utilizada dentro de preceitos ticos e de defesa dos direitos humanos, a cultura musical de uma cidade torna-se, portanto, vital para o exer-ccio da democracia. Essa dimenso do fenmeno musical tambm sublinhada por Bozon (2000), visto que a msica desempenha um papel importante no vivido pelos praticantes: seu carter social devido ao fato de que a prtica em si implica em relaes entre as pessoas que tocam juntas, e induz, ao mesmo tempo, a um processo de diferenciao entre grupos de msica (p. 147-148).

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR104

  • Interao: como convivem com outros msicos na comunidade

    Se as prticas musicais se diferenciam pelos gneros e pelos repertrios, elas tambm coexistem na comunidade. H um esforo das polticas locais em manter as tradies culturais atentas ao processo de construo identitria do municpio. Isto aparece, tambm, no caso da Festur, uma festa de grande relevncia que procura manter o carter comunitrio e de preservao de pa-trimnio cultural10, segundo o discurso dos agentes da administrao. A festa rene vrias manifestaes culturais da cidade (msica, dana, gastronomia) tentando a cada edio inovar, despertar o interesse da populao e dos turistas, mas sem perder a tradio:

    uma excelente oportunidade pra fazer o resgate do que os colonos que vieram da Europa, como que eles cantavam, como que eles danavam, e isso um enorme atrativo cultural que est sendo expresso aqui na Festur, e cultura canto, cultura dana... (Derli Paulo Bolini, Repre-sentante do Governador)

    No existe turismo sem que haja a questo do resgate cultural, do resgate da gastronomia, enfim, de todas as atividades que as pessoas desenvolvem culturalmente no seu dia a dia. (Carla Maria Specht, Prefeita)

    Os depoimentos dos gestores municipais tambm descrevem os objetivos e as expectativas que tm com a festa. O investimento do municpio na Festur como uma alavanca para o turismo da regio engloba as polticas de acesso cultura e de manter vivas as tradies musicais do municpio:

    Que atravs das atividades culturais desenvolvidas aqui durante a festa, que isso se estenda depois, uma forma de trazer o pblico pra c, eles verem isso e tornarem isso hbito na vida deles, participar de atividades culturais... Talvez a festa seja um instrumento que ns temos de difundir a cultura dentro do municpio. (Edelson Holdefer, Presidente da 9 Festur - 2011)

    10 Trata-se da Festa do Turismo de Salvador do Sul. Parte da pesquisa de campo foi feita no perodo da realizao da Festur, em sua 9 edio, ocorrida de 11 a 15 de novembro de 2011.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 105

  • E eu acho interessantssimo, inclusive, essa oportunidade em que os alunos da Oficina Municipal [de Artes] tm de se apresentar e mostrar aquilo que eles de fato aprendem e tambm acabam levando pra vida. (Clarina Elizabeta Klain, Secretria de Turismo)

    Apesar da proximidade geogrfica com a capital Porto Alegre, as ativi-dades musicais observadas na Festur esto distantes dos circuitos miditicos e com pouca interferncia dos centros produtores de padres considerados legtimos ou dos critrios mercadolgicos de qualidade musical. Os grupos musicais funcionam com certa autonomia, com regras que parecem ter valor somente no espao local e regional. Como uma festa popular a Festur revela aspectos das polticas culturais para o municpio nos quais est presente o dilema da tradio, da conservao para que a herana cultural no desaparea, mas que abarque o novo, as novas geraes. A Festur torna-se um lugar de encon-tro das mltiplas pertenas identitrias como a Banda Happy Brass que leva adiante os costumes e a tradio germnica do municpio e a Banda de rock Blue Label cujos membros se perguntam: Colocar uma banda de rock n roll numa cidade pequena, primeiro tu visto assim: P, qu que esses caras esto tocando, entendeu?. E cantam numa composio prpria:

    Eu bebo um velho usque e boto uma cala surrada, s vezes escuto Beatles, s vezes escuto mais nada. Com o meu conversvel, eu sou o rei da estrada, devasta os cabelos, o rock uma longa jornada.

    Vila (2012), citando Frith, escreve que a principal razo pela qual as pessoas apreciam a msica exatamente porque ela d resposta a questes de identidade (p. 253) j que:

    usamos canes populares para criar um tipo particular de autodefinio, um lugar particular na sociedade. O prazer que a msica pop produz um prazer de identificao com a msica de que gostamos, com os

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR106

  • intrpretes dessa msica, com as outras pessoas que gostam desse mesmo tipo de msica (FRITH, 1987, p. 140, apud VILA, 2012, p. 253).

    As relaes sociais estabelecidas com a msica um dos temas examinados pela sociologia da msica quando entendemos melhor o comportamento das pes-soas relacionados com a msica, considerando ainda os efeitos das instituies. A convivncia com a famlia, com os grupos, nos momentos de sociabilidade, auxiliam no processo de aprendizagem musical:

    Sou Ademir Holderbaun, natural da Linha Comprida, onde vivi at os 20 anos aproximadamente, trabalhando na roa, depois tambm com accia, produo de carvo [...]. O pai j tocava um pouquinho algum instrumento, tocava gaita, umas e outras msicas, noite [...]. Depois do servio, ele ficava tocando e eu era pequeno, ficava apreciando, depois quando s vezes aparecia umas festas, mesmo que raramente a gente podia ir junto, toda vez que tinha uma festa, msico tocando, eu ficava observando. Mesmo no tendo msica tocando, ficava olhando s os instrumentos. A, o pai, depois quando cresci um pouco, foi incentivando para eu aprender a tocar e com 13, 14 anos consegui um professor no interior [...].

    Esse depoimento constitui um exemplo de processos de aprendizagem musical que so incorporados da famlia. Aprendizagens que so individuais, porm mediadas pela presena do pai que tocava e pelas experincias com msica feitas na comunidade.

    Educao musical: o que pensam da msica na educao

    Vrios depoimentos afirmaram a importncia de se incluir a msica na educao e como ela pode fazer parte de um currculo de ensino. A experincia pedaggica musical no pode desconhecer a referncia cultural presente na comunidade local, pois a escola uma instituio cultural, acentuada pelas relaes entre escola e cultura presentes em todo processo educativo.

    Guardies da memria musical coletiva, os msicos dizem possurem objetivos comuns em prol do desenvolvimento cultural da cidade baseado nos princpios de cooperao, convivncia, na amizade entre os msicos, j que tocar juntos so reencontros, e que outros grupos so mais meus amigos que

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 107

  • concorrentes, tudo necessrio (Ademir Holderbaun). Sobretudo, os msicos esto atentos s heranas: eu toco na Banda dos Bravos, uma referncia na letra de uma das msicas da Blue Label a uma banda na qual seus pais tocavam: O Charles [Wentz] fazia parte da banda dos nossos pais. Segundo Charles Wentz, em seu depoimento, os integrantes da Blue Label so filhos de msicos cujos pais tinham o Grupo dos Bravos, junto conosco, e a Blue Label uma banda que toca msica nos 70, e toca 2012. uma banda de excelente qualidade.

    nesse contexto que possvel construir espaos entre o conhecimento universal da msica e aquele conhecimento que est ali presente na cultura lo-cal, como patrimnio das pessoas que vivem e frequentam o entorno da escola.

    A prtica da msica na escola h de ser sempre diversificada. A insero da prtica musical na escola depender de circunstncias que variam com os interesses locais, com a realidade cultural e social de cada aluno(a). O importante que a msica retorne aos currculos escolares, mas principalmente, atravs de projetos integrando as diferentes disciplinas, valorizando e fortalecendo a cultura da comunidade.

    Para concluir

    Se a pesquisa de campo na origem deste artigo foi delimitada, tornando as generalizaes cuidadosas, passou a ser possvel afirmar que os resultados podem colaborar para um dilogo entre cultura e educao, qualificar as decises de gestores pblicos na rea da educao e da cultura, bem como quantificar o potencial de prticas musicais.

    O contato com os msicos locais e a realizao dos encontros que impul-sionaram o mapeamento deram visibilidade ao projeto junto s comunidades local e regional. Um dos resultados da pesquisa foi a produo do document-rio11 intitulado Diversidade nas Prticas Musicais: um olhar para a vitalidade cultural na comunidade de Salvador do SUL/RS. Com a durao de 35 minutos, o filme faz um registro da msica na cidade, com recortes das entrevistas dos grupos e dos msicos que participam das manifestaes culturais na regio. O vdeo contribuiu para a interao, a troca de conhecimentos e a circulao de

    11 Como j informado anteriormente, a produo do documentrio parte integrante do Programa Msica, Cotidiano e Educao Proext 2010, contando com a parceria institucional da UFRGS e Prefeitura de Salvador do Sul/RS. A produo do vdeo foi realizada por uma empresa especializada e contou com o apoio do Programa de Ps-Graduao em Msica/UFRGS e do Grupo de Pesquisa Educao Musical e Cotidiano (CNPq//UFRGS), e com financiamento do MEC/SESU.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR108

  • informaes sobre os msicos residentes no municpio. O rock tambm uma realidade musical numa comunidade germnica? Um dos msicos entrevistados comenta: Hoje, depois de 5, 6 anos tocando juntos, eu vejo que muita coisa mudou (Banda Blue Label). O rock mesmo uma longa jornada.

    A relao das pessoas com a msica e seus efeitos no cotidiano da cidade de Salvador do Sul momentos, grupos, espaos muito significativa e por isso a relevncia de estudar esse campo local de uma perspectiva compreensiva e como um fato social, investigado a partir da experincia vivida por um grupo social sabendo-se que essa sociedade o resultado das condutas musicais de atores singulares em relaes que ligam uns aos outros (GREEN, 2000, p. 34).

    Para Green o objetivo no sacrificar os aspectos tericos do fato social em geral, nem os aspectos especficos do musical, que se encontram alm do social, e sim conseguir colocar em evidncia as suas interdependncias. Como diz a autora, deve-se saber estudar a msica como uma realidade social com seus aspectos mltiplos, levando-se em conta que essas camadas se interpenetram (GREEN, 2000, p. 34). O modelo interpretativo de Green anuncia uma viso global da msica, sem perder de vista os aspectos sociais e humanos, uma vez que a prtica musical fruto da realidade humana. Para a autora:

    No existe objeto musical independentemente de sua constituio por um sujeito. No existe, portanto, por um lado, o mundo das obras musi-cais (que no so entidades universais e se desenvolvem em condies particulares ligadas a uma dada ordem cultural), e por outro, indivduos com disposies adquiridas ou condutas musicais influenciadas pelas normas da sociedade. A msica , portanto, um fato cultural inscrito em uma dada sociedade []. (GREEN, 1987, p. 91; Traduo nossa).

    Isso significa compreender que a msica est ligada a outras esferas da vida amigos, profisso, lazer, subjetividades, famlia e por isso a sua importncia tambm na educao escolar. No artigo foram apresentadas e discutidas questes relacionadas msica e educao musical, recuperando-se a vitalidade cultural da cidade atravs das experincias e histrias vividas pelos entrevistados. Dessa maneira, a interpretao qualitativa desses indicadores do cotidiano musical e comunitrio, coletados no municpio, colaborou para um dilogo entre cultura e educao, permitindo perceber a presena das decises de gestores pblicos na rea da educao e da cultura ao potencializarem e fortalecerem prticas musicais, inclusive com a recomposio da histria dessa produo na cidade.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 109

  • Agradecimentos

    A autora agradece comunidade de Salvador do Sul pelo engajamento e apoio ao projeto. Um agradecimento especial Professora Dra. Maria de Ftima Quintal de Freitas pela leitura cuidadosa do original que deu origem a este artigo.

    REFERNCIAS

    ARROYO, M. Educao musical na contemporaneidade. In: SEMINRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MSICA DA UFG, 2. Anais... Goinia, 2002. p. 18-29.

    BOZON, M. Prticas musicais e classes sociais: estrutura de um campo local. Em Pauta, v. 11, n. 16/17, p. 146-174, abr./nov. 2000.

    GREEN, A. M. Les comportements musicaux des adolescentes. Inharmoniques Mu-siques, Identits, v. 2, p. 88-102, Mai 1987.

    GREEN, A. M. Les enjeux mthodologiques d`une approche sociologique de faits mu-sicaux. In: GREEN, A. M. (Org.). Musique et sociologie: enjeux mthodologiques et approches empiriques. Paris: LHarmattan, 2000, p. 17-40.

    GREEN, L. Pesquisa em sociologia da educao musical. Revista da ABEM, Salvador, n. 4, p. 25-35, 1997.

    GUERRA. P. Culturas urbanas e modos de vida juvenis: cenrios, sonoridades e estticas na contemporaneidade portuguesa (2005-2009) Tese (Doutorado em Sociologia) Insti-tuto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2011.

    KRAEMER, R. D. Dimenses e funes do conhecimento pedaggico-musical. Trad. Jusamara Souza. Em Pauta, v. 11, n. 16/17, p. 49-73, abr./nov. 2000.

    MATTER, S. S. To Longe... To Perto: A msica migrante. In: ENCONTRO INTER-NACIONAL DE MSICA E MDIA, 8, So Paulo, USP, 19 a 21 de setembro de 2012. Anais... So Paulo, 2012, p. 1-10.

    MENDRAS, H. O que sociologia? Trad. Albert Stuckenbruck. Barueri: Manole, 2004.

    MONTEIRO, C. A. Campo musical Cabo-Verdiano na rea metropolitana de Lisboa: protagonistas, identidades e msica migrante. Tese (Doutorado em Sociologia) ISCTE--Instituto Universitrio de Lisboa, 2009.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR110

  • MONTEIRO, C. A. Msica migrante em Lisboa. Trajectos e Prticas de Msicos Cabo--Verdianos. Lisboa: Editora Mundos Sociais, 2011.

    SOUZA, J. Educao musical e prticas sociais. Revista da ABEM, v.10, p. 7-11, 2004.

    SOUZA, J. (Org.). Aprender e ensinar msica no cotidiano. Sulina: Porto Alegre, 2008.

    VILA, P. Prticas musicais e identificaes sociais. Significao, Ano 39, n. 38, p.247-277, 2012.

    Texto recebido em 20 de maio de 2014.Texto aprovado em 1 de julho de 2014.

    SOUZA, J. Msica, educao e vida cotidiana: apontamentos de uma sociografia musical

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 91-111, jul./set. 2014. Editora UFPR 111