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MÚSICA, DISCURSO, DISPOSITIVO, IDENTIDADE NACIONAL E DITADURA
MILITAR NO BRASIL: “PRA FRENTE BRASIL”
Nayara Crístian Moraes1
Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago2
Resumo: Tem-se como objetivo neste trabalho buscar compreender momentos do período de
ditadura militar no Brasil através da análise de determinadas canções da época. Para isso nos
embasamos em conceitos de Michel Foucault, tais como: discurso, dispositivo e verdade,
fazendo também um diálogo com Michel de Certeau quanto à sua “operação historiográfica”,
que nos permite observar um discurso que tentava forjar uma identidade nacional em meio à
ditadura militar, produzindo verdades duvidosas em processo histórico de extrema
impunidade. Neste sentido, a música se apresenta como um dispositivo na sociedade.
Aternos-emos por hora na canção “Pra Frente Brasil” de Miguel Gustavo, analisando os
enunciados da letra da música, mas também o que para Foucault e Certeau é extremamente
importante ao pensarmos o discurso: o lugar no tempo e o sujeito que fala. Por fim, pretende-
se refletir e levantar questões pertinentes quanto ao processo que rememoramos hoje neste
ano de cinquentenário da Ditadura Militar no Brasil não nos esquecendo de que a cultura é
uma importante representação da sociedade e mais ainda, do sujeito. Entendemos que as
produções de verdade se davam e se dão nas grandes instituições, nas grandes práticas
discursivas, mas também e principalmente em toda a estrutura de relação entre os sujeitos,
sejam em suas práticas cotidianas ou em sua produção dentro de instituições governamentais
ou não.
Palavras Chave: Música. Discurso. Dispositivo. Identidade Nacional. Ditadura Militar.
1- CAMPO DE EMERGÊNCIA DO DISCURSO: O CONTEXTO
Foucault trata a importância do lugar e condição de emergência de um discurso, desta
forma, estudar o tempo em que se emergiu tais discursos, neste caso, em canções, no período
da ditadura militar no Brasil,é importante para percebermos os valores de verdade:
O referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a
instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, do estado das coisas e das
relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado: define as possibilidades de
aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor
de verdade (FOUCAULT, 1987, p. 104).
1 Bolsista de Iniciação Científica – PIVIC, Acadêmica do Curso de História – UFG - Regional Jataí,
[email protected]; Autora. 2 Professora do Curso de Letras e dos programas de Pós-Graduação em Educação e Letras e Linguística – UFG
– Regional Jataí, [email protected]; Co-autora e Orientadora.
É aqui que nos esbarramos com a “operação histor iográfica” de que fala Michel de Certeau
em seu livro A escrita da história, pois para ele o gesto do historiador sempre liga as ideias aos
lugares, mais uma vez destacando a emergência e condição de um discurso, de uma prática e atividade
humana no processo histórico:
Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente
limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar, procedimentos de análise, e
a construção de um texto. É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e
que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto
prática”. Nessa perspectiva, gostaria de mostrar que a operação historiográfica se
refere à combinação do lugar social, de práticas “científicas” e de uma escrita. Essa
análise das premissas, das quais o discurso não fala, permitirá dar contornos precisos
às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto. A escrita histórica
se constrói em função de uma instituição cuja organização parece inverter: com
efeito, obedece a regras próprias que exigem ser examinadas por elas mesmas
(CERTEAU, 2011, p. 47).
No processo de ditadura militar no Brasil, foram criadas instituições responsáveis por
organizar propagandas para o governo vigente. Ora, esse marketing era extremamente
necessário para que se fizesse valer todas as prerrogativas do AI 5, que instaurava uma
completa máquina de repressão e censura. Neste pano de fundo, entendemos que o discurso,
sendo um dispositivo de poder, alcançaria nos elementos de cultura da sociedade sua
personificação quanto à produção de verdades que levaria o povo a acreditar que a ditadura
militar protegia e fazia desenvolver seu país:
O país, comparado a um imenso canteiro de obras, foi tomado por incontida euforia
desenvolvimentista. O governo Emílio Garrastazu Médici criou então uma agência
própria de propaganda, a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp) para
martelar slogans otimistas, animando, encorajando, com mensagens positivas,
construtivas e ufanistas: Pra Frente, Brasil. Ninguém segura este país. O futuro
chegou. Brasil, terra de oportunidades. Brasil, potência emergente. Para os que
ainda discordavam, restava a porta de saída, segundo plágio de conhecida campanha
estadunidense: Brasil, ame-o ou deixe-o (REIS, 2014, p.81).
Discursos como estes, imbuídos de poder e verdade alcançaram na música o ufanismo
e a construção de uma identidade nacional forjada para apagar os lamentos nos porões de
repressão dos “anos de chumbo”. O que contribuiu para que a sociedade civil, principalmente
parte da elite brasileira contribuísse com a ditadura? A imaginada burguesia nacional, que
deveria defender a democracia nos manuais políticos do PCB, aderiu ao golpe
(NAPOLITANO, 2014, p.315). O governo desenvolveu inclusive uma política cultural
complexa censurando, mas também apoiando o desenvolvimento cultural no país permitindo
o crescimento do mercado fonográfico, da televisão e do cinema, pois como afirma ainda
Napolitano, esse apoio era o eixo dessa modernização. Além disso, o mecenato cultural era
um importante dispositivo do governo para tentar “cooptar” opositores e mantê-los sob
controle, mesmo permitindo certa liberdade de expressão em suas obras (NAPOLITANO,
2014, p.99 e 199). Napolitano chama este tipo de política proativa, que não abria mão de
instrumentos de repressão, mas tinha estratégias que articulavam à cultura a favor do governo.
Para compreendermos a música como um elemento da cultura, sensível a
manifestações sociais, é importante refletir sobre a música brasileira (NAPOLITANO, 2002,
p. 5). Ao pensarmos nossa música, é de suma importância neste trabalho, analisar os discursos
que a tornaram parte de uma biopolítica que fazia viver uns para deixar morrer outros. Num
discurso em que uns poderiam morrer para que outros pudessem viver, o governo militar nos
“anos de chumbo” se solidificava com mecanismos de poder que tinham como principal arma
a propaganda de um país que iria para frente e se desenvolveria:
A primeira metade dos anos 1970, considerados anos de chumbo, tende a ficar
pesada como o metal da metáfora, carregando para as profundezas do silêncio a
memória nacional. Esses anos precisam ser revisitados pois foram também anos de
ouro, descortinando horizontes, abrindo fronteiras geográficas e econômicas,
movendo as pessoas em todas as direções da rosa dos ventos, para cima e para baixo
nas escalas sociais, anos obscuros para quem descia, mas cintilantes para os que
ascendiam. Naquelas areias movediças, havia os que afundavam e os que emergiam,
surgidos de todos os lados, desenraizados, em busca de referências, querendo aderir.
Anos carregados de terror e medo, porém prenhes a fantasias esfuziantes,
transmitidas pela televisão, em cores, alucinados anos, com seus magníficos desfiles
carnavalescos e tigres e tigresas de toda a sorte dançando ao som de frenéticos
dancin’days (REIS, 2014, p.91).
Numa regulamentação desenfreada, o poder no governo produzia verdades em seus
discursos vários, articulados em vários tipos de enunciados, entre eles a canção. A música, um
elemento de fácil acesso do público, um elemento do cotidiano do brasileiro em plena época
de modernização, do rádio, da televisão e dos festivais, pode nos levar a compreender como
se deu a construção da identidade nacional em tempos autoritários.
Com este trabalho, procuramos entender os discursos de cunho ufanistas e a produção
de verdades veiculados na música, principalmente pós Ato Institucional Nº5. Guiados por
Michel Foucault, procuraremos em seus conceitos de discurso, verdade, poder, saber,
biopolítica, dispositivo e governamentalidade, compreender na produção musical, no recorte
histórico supracitado, a dinâmica de se tentar encobrir os feitos cruéis do regime militar,
Nosso objetivo é, então, desvelar as estratégias linguísticas utilizadas para fabricar uma nova
identidade de brasileiro, mais dócil e complacente com as atrocidades da ditadura. Para
melhor compreensão desse período histórico, utilizaremos escritos sobre Ditadura Militar de
Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Rodrigo Pato Sá Motta, Marcos Napolitano, Paulo César de
Araújo e Marcelo Ridenti. No primeiro momento desta investigação, foi feita uma pesquisa
bibliográfica a respeito da ditadura militar, identidade nacional, ufanismo e música. Em
seguida foi feito um estudo teórico relacionado à Análise do Discurso, especialmente os
construtos de Michel Foucault que foram mobilizados para a análise do corpus, delimitado
neste artigo pela canção Pra Frente Brasil, de Miguel Gustavo.
Em um contexto conturbado, em que os direitos foram invertidos, suspensos. Em um
país que retrocedia (CARVALHO, 2002), instalava-se o otimismo e a necessidade de uma
identidade nacional, uma identidade construída em “verdades” forjadas na violência e no
discurso, produzidas de tal maneira que se docilizassem e se tornassem úteis os indivíduos, o
povo.
Assim, neste reinvento do otimismo na imaginação brasileira (FICO, 1997), neste
contexto conturbado e sombrio da nossa história, acreditamos demonstrar práticas e
mecanismos de poder nos discursos ufanistas e identitários nacionalistas. Entendemos que
esta pesquisa, de alguma maneira, também contribuirá com os injustiçados da ditadura militar,
partindo do pressuposto de que é importante entender o que levou um país a formar um corpo
da sociedade a colaborar com as repressões (FICO, 1997).
2- TECENDO A TRAMA DE PODER: DISCURSO E DISPOSITIVO
Para o filósofo Michel Foucault em a ordem do discurso, analisar o discurso é mais do que
pensar na palavra falada observando apenas sua construção semântica. Pensar o discurso é
também pensar a condição do discurso, seu plano discursivo, sua vontade de verdade, sua
condição de verdade legitimada em instituições e saberes que em conjunto com as práticas
(FOUCAULT, 1996, p. 15-17) se colocam na sociedade ao longo do tempo, ao longo da
história, assim, em Arqueologia do saber diz que:
Empreender a história do que foi dito é refazer, em outro sentido, o trabalho da
expressão: retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no
espaço, em direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se
encontra (em todos os sentidos do termo) traído. Assim se encontra libertado o
núcleo central da subjetividade fundadora, que permanece sempre por trás da
história manifesta e que encontra, sob os acontecimentos, uma outra história, mais
séria, mais secreta, mais fundamental, mais próxima da origem, mais ligada a seu
horizonte último. Essa outra história que ocorre sob a história, que se antecipa
(FOUCAULT, 1987, p. 140).
Ainda acerca do discurso, há a questão da materialidade do mesmo. Para Foucault a
produção do discurso envolve a subjetivação porque esta produção envolve também controle,
organização e redistribuição fundados em procedimentos que conjuram poderes e perigos para
que os discursos se materializem nas sociedades. Para o estudioso contemporâneo, não é
possível estudar o discurso sem enxergá-lo tendo em vista suas condições, seus jogos e seus
efeitos (FOUCAULT, 1987).
Para ele é preciso questionar nossa própria vontade de verdade e restituir ao discurso
seu caráter de acontecimento; suspender enfim, a soberania do significante (FOUCAULT,
1996, p. 51), tal como afirma Maria do Rosário Valencise Gregolin, estudiosa do discurso
foucaultiano da UNESP em Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades:
A discursividade tem, pois, uma espessura histórica, e analisar discursos significa
tentar compreender a maneira como as verdades são produzidas e enunciadas.
Assim, buscando as articulações entre a materialidade e a historicidade dos
enunciados, em vez de sujeitos fundadores, continuidade, totalidade, buscam-se
efeitos discursivos. Foucault propõe analisar as práticas discursivas, pois é o dizer
que fabrica as noções, os conceitos, os temas de um momento histórico. A análise
dessas práticas mostra que a relação entre o dizer e a produção de uma “verdade” é
um fato histórico (GREGOLIN, 2007, p. 15).
Ora, este acontecimento de que fala Foucault se produz como ele mesmo diz como
efeito e em uma dispersão material, que só conseguiremos entender se nos propormos a
desconstruir discursos de verdade.
Ainda em Arqueologia do saber (1987), Michel Foucault em relação ao discurso,
busca o enunciado e o plano discursivo na tentativa de fazer do enunciado uma espécie de
átomo do discurso justamente porque a gramática não dá conta do mesmo, porque o
importante é o que se produz no próprio ato do discurso, no fato de ter sido anunciado,
fazendo com que os efeitos dos discursos ganhem mais importância porque tal como afirma
Foucault:cada ato tomaria corpo em um enunciado e cada enunciado seria, internamente
habitado por um desses atos.
Buscando o conceito dispositivo no dicionário de conceitos foucaultianos de Judith
Revel, Foucault: conceitos essenciais, encontramos ao longo da obra vários tipos de
dispositivos de poder colocados por Foucault, dos quais podemos citar, por exemplo:
dispositivos de regulamentação de discursos, dispositivo de sexualidade, dispositivos
discursivos que sustentam práticas, dispositivos securitários ou de segurança, dispositivos de
saber e dispositivos disciplinares. Quando vamos ao significado do conceito de dispositivo
encontramos na explicação de Judith Revel uma informação fundamental para este estudo:
Em As palavras e as coisas Foucault coloca o dispositivo como episteme onde o dispositivo é
estritamente discursivo, entretanto tempos depois, o conceito de dispositivo contém
igualmente instituições e práticas:
Um dispositivo é "um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas, em suma: o dito e o não-dito l..']'O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre esses elementos". O problema é, então, para Foucault, o de
interrogar tanto a natureza dos diferentes dispositivos que ele encontra quanto sua
função estratégica (REVEL, 2005, p. 40).
Gilles Deleuze, filósofo também francês fala do conceito de dispositivo que Foucault
criara. Para ele, o dispositivo se constitui em linhas visíveis e invisíveis. Linhas de
enunciação, força e subjetividade inclusive. Entretanto Deleuze acredita que é preciso:
Desenredar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é construir um mapa,
cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que ele chama de trabalho de
terreno. É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas; estas não se detêm apenas
na composição de um dispositivo, mas atravessam-no, conduzem-no, do norte ao
sul, de este a oeste, em diagonal (DELEUZE, 1999, p. 155).
Desenredar as linhas de um dispositivo vai de encontro com o que Foucault propõe
que se faça: interrogar estes dispositivos encontrando sua função estratégica. Ainda para
Deleuze, a historicidade dos dispositivos nos remete à importância dos regimes de
enunciados. Tais dispositivos atravessam os limiares em direção a campos variados da
sociedade:
Se há uma historicidade dos dispositivos, ela é a dos regimes de luz – mas é também
a dos regimes de enunciado. Porque os enunciados, por sua vez, remetem para linhas
de enunciação sobre as quais se distribuem as posições diferenciais dos seus
elementos. E, se as curvas são elas próprias enunciadas, é por que as enunciações
são curvas que distribuem variáveis, e, assim, uma ciência, num dado momento, ou
um género literário, ou um estado de direito, ou um movimento social, são definidos
precisamente pelos regimes de enunciados a que dão origem. Não são nem sujeitos
nem objectos, mas regimes que é necessário definir pelo visível e pelo enunciável,
com suas derivações, as suas transformações, as suas mutações. E em cada
dispositivo as linhas atravessam limiares em função dos quais são estéticas,
científicas, políticas, etc (DELEUZE, 1990, p. 155).
Em uma conferência em 2005 no Brasil, o filósofo italiano Giorgio Agamben destaca
três pontos fundamentais do conceito foucaultiano de dispositivo:
Resumamos brevemente os tres pontos:
1) É um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e
não linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de
segurança, proposições filos6ficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se
estabelece entre esses elementos.
2) 0 dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre
em uma relação de poder.
3) É algo de geral (uma "rede") porque inclui em si a episteme, que para Foucault é
aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que é aceito como um
enunciado científico daquilo que não é científico.
(AGAMBEN, 2005, p. 9-10)
Outra questão importante que podemos ver nas ideias de Agamben acerca do conceito
aqui tratado é a questão da subjetivação que mascara e acompanha a identidade pessoal:
Recapitulando, temos assim duas grandes classes, os seres viventes (ou as
substancias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos. Chamo
sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo-a-corpo entre os
viventes e os dispositivos. Naturalmente as substancias e os sujeitos, como na velha
metafísica, parecem sobrepor-se, mas não completamente. Neste sentido, par
exemplo, um mesmo indivíduo, uma mesma substancia, pode ser o lugar dos
múltiplos processos de subjetivação: 0 usuário de telefones celulares, o navegador
na internet, 0 escritor de contos, o apaixonado par tango, 0 não-global etc etc. A
ilimitada proliferação dos dispositivos, que define a fase presente do capitalismo, faz
confronto uma igualmente ilimitada proliferação de processos de subjetivação. Isto
pode produzir a impressão de que a categoria da subjetividade no nosso tempo
vacila e perde consistência, mas trata-se, para sermos precisos, não de um
cancelamento ou de uma superação, mas de uma disseminação que acrescenta. 0
aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda a identidade pessoal
(AGAMBEN, 2005, p. 13).
Já agora tendo em vista os conceitos acima relacionados, é preciso que entendamos
como a canção no período de ditadura militar podem ter construído verdades acerca da
identidade nacional do nosso país em um período negro de nossa história. É preciso então
desconstruir as verdades, observando a historicidade da canção que aqui chamamos de
dispositivo de poder, dispositivo discursivo, cultural e social, dispositivo este que também
teve suas funções estratégicas na construção da imagem do mito do paraíso brasileiro.
3- DESCONSTRUINDO VERDADES: PRA FRENTE BRASIL
O governo ditador militar se preocupou com a “salvação” do país diante do
comunismo iminente da época, torturando e matando muitos, tendo um discurso em que uns
morriam para que outros vivessem, mas também se preocupou com o exercício da
governamentalidade, utilizando de estratégias que justificassem a violência e as censuras. É
neste cenário que as canções, inseridas no plano das biopolíticas fazem todo o sentido de
dispositivo.
Nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil, surgem canções como as que pretendemos analisar,
ora tentando buscar a identidade nacional junto ao povo, sendo cantadas pelo povo, ora sendo
utilizadas em propagandas institucionais direcionadas pela AERP, ou mesmo sem intenções,
mas com efeitos de sentido que ajudaram a mitificar e construir o chamado período de
desenvolvimentismo brasileiro.
O sociólogo Marcelo Ridenti em seu livro Em busca do povo brasileiro afirma esta
busca durante o período da ditadura militar, afirma também o interesse do governo na
intervenção do estado no chamado desenvolvimentismo nacional:
Do fim dos anos 1950 ao início dos anos 1970, nos meios artísticos e
intelectualizados de esquerda era central o problema da identidade nacional e
política do povo brasileiro; buscavam-se a um tempo suas raízes e a ruptura com o
subdesenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que se convencionou
chamar de Era Vargas, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional, com
base na intervenção do Estado. Esse tema foi diluindo ao longo dos anos,
especialmente após o fim da ditadura militar civil (RIDENTI, 2014, p.1).
Durante a ditadura militar, se via percorrer um poder que para Michel Foucault
consiste em biopoder. O poder sobre o corpo, o poder sobre as populações. Um poder operado
segundo a governamentalidade. Ora, a violência para que fosse executada precisava apoiar-se
em justificativas. “Salvar o país dos comunistas” era o lema da vez. Empresários apoiavam
com os slogans em seus cartazes: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. O professor/historiados da
UFMG, Rodrigo Patto Sá Motta explica e confirma bem esta estratégia governamental:
Assim, é fundamental compreender os mecanismos que explicam o apoio à ditadura,
sobretudo as estratégias e políticas elaboradas pelo Estado para conquistar
legitimidade. Esclarecer a complexidade do fenômeno autoritário para, quem sabe,
superá-lo, demanda revelar a existência de conexões situadas para além do aparelho
estatal. É imprescindível perceber que o regime militar, para perdurar, adotou outras
armas além da violência. E como durou! A ditadura brasileira foi violenta, como
sabemos bem. Matou, torturou, exilou e demitiu. Entretanto, o Estado autoritário
combinou a violência com estratégias de negociação e acomodação, para aplacar as
oposições e reduzir a resistência a seu poder. Nesse sentido, As políticas de
modernização objetivavam também a conquista de legitimidade, pois buscavam
atrair apoio social e desmobilizar os opositores. Tais estratégias foram
particulamente visíveis na relação do Estado com as elites intelectuais, em particular
profissionais acadêmicos e produtores culturais (MOTTA, 2014, p. 55).
O efeito do discurso aconteceu, os enunciados alcançaram um público grande no
período, e a busca pela identidade em alguns momentos acabou se tornando o sufocamento de
uma identidade verdadeira para deixar sobressair talvez uma identidade paradisíaca e mítica
se contrastada com o contexto de sua produção. Canções como Pra Frente Brasil , de Miguel
Gustavo, que gravou também Eu Adoro Você e Marcha do Sesquicentenário da
Independência, apareceram sendo cantadas pelo povo e chegou a virar o hino do presidente
Médici nos jornais. Acerca do sucesso Pra Frente Brasil de Miguel Gustavo:
...Grande sucesso. Como seria, 15 anos depois, um jingle que Gustavo fez por
encomenda da Rádio Globo, para produtos que patrocinariam a cobertura da Copa
de 70. Ficou tão boa a marcha, com tanto apelo e vibração, que pediram ao
compositor para substituir os nomes dos produtos por algo mais geral e menos
comercial. Pois o resultado, “Pra frente Brasil”, acabou virando sucesso nacional,
hino da seleção tricampeã do mundo e uma das maiores peças de propaganda dos
tempos do general Médici (MÁXIMO, João apud PICCINO, 2012, p. 78).
Acerca do “Brasil que vai pra frente” na ditadura militar, Jairo Severiano e Zuza
Homem de Mello descrevem Pra Frente Brasil assim em A canção no tempo:
Muita música já foi feita em homenagem à seleção brasileira de futebol, algumas até
de bastante sucesso como a “Marcha do Scratch Brasileiro” de Lamartine Babo, que
praticamente inaugurou em 1950 os auto-falantes do Maracanã, e “A taça do mundo
é nossa”, de Maugeri, Dagô e Lauro, marcha comemorativa das copas de 58 e
(devidamente atualizada) de 62. Nenhuma, entretanto, tem a força, a beleza e a
popularidade de “Pra frente Brasil”, do compositor Miguel Gustavo. Quem assistiu a
epopeia do tri é imediatamente transportado àqueles dias de euforia ao ouvi-lá, de
preferência na gravação original do Coral do Joab: “Todos juntos, vamos / pra frente
Brasil, Brasil / salve a seleção...” O mais curioso é que esta composição era a
princípio um simples jingle, encomendado por uma cervejaria patrocinadora de
transmissões esportivas. Mas a vibração que “Pra frente Brasil” despertou nos
noventa milhões de brasileiros citados em seus versos transcedeu sua função
promocional, transformando-a no hino da seleção (SEVERIANO e MELLO, 2006,
p. 156).
Noventa milhões em ação/Pra frente Brasil, /Do meu coração... /Todos juntos
vamos, /Pra frente Brasil, /Salve a Seleção! /De repente /É aquela corrente pra
frente, /Parece que todo o Brasil deu a mão... /Todos ligados na mesma emoção... (Pra Frente
Brasil, Miguel Gustavo, 1970). Além do samba e do futebol, criavam-se outros dispositivos
para construir uma determinada identidade de brasileiro, absolutamente apaixonado por tudo
o que o país tinha de bom. É dessa época a música Eu te amo, meu Brasil, da dupla Dom e
Ravel, cujos versos, tanto tempo depois, ainda continuam presentes em nossa memória: Eu te
amo, meu Brasil, eu te amo/Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil/Eu te amo, meu
Brasil, eu te amo/Ninguém segura a juventude do Brasil. Havia um motivo muito forte para
que a música afirmasse com tanta insistência as belezas do país: as praias mais ensolaradas,
o céu com mais estrelas, as tardes mais douradas e as noites mais belas, tudo isso abençoado
pela mão de Deus. Trata-se de discursos em confronto.
Na copa de 1970, Pelé, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto foram os principais
responsáveis, naquele dia de junho, pela goleada na Itália que consagrou o Brasil como
tricampeão mundial de futebol. A cada gol, eclodia Brasil adentro muitos gritos de euforia.
Brasil afora o que se construía era uma imagem cada vez mais fortalecida de país jovem, com
muita mulata, samba, alegria e... futebol, é claro. Mas, ao mesmo tempo em que se difundiam
brados de alegria, abafavam-se sussurros de desespero, porque naqueles tempos o Brasil vivia
sua época mais tenebrosa. Era a Ditadura Militar instaurando repressão e tortura, mortes,
medos e discursos legitimadores destas atrocidades:
Recentemente fomos palco para dois grandes eventos esportivos: Copa das
Confederações em 2013 e Copa do Mundo de Futebol em 2014, e receberemos ainda as
Olimpíadas em 2016. É possível que, tal como aconteceu em 1970, se tenha criado e se crie
um grande espírito ufanista para fazer com deixemos deixe de ver alguma coisa errada. Mas
brasileiro não é bobo não! Com camisa verde e amarela, bandeiras e foguetes, às vezes
torcemos pra valer. Mas quando a partida termina dentro do campo, nossas lutas cotidianas
precisam ser retomadas, para que outros direitos sejam reivindicados e novas conquistas
sejam alcançadas. Só assim, poderemos cantar a música de Dom e Ravel, sem permitir que ela
nos embace o olhar, e poderemos extrair de seus versos seus sentidos mais construtivos: A
mão de Deus abençoou/Em terras brasileiras/Vou plantar amor/As tardes do Brasil são mais
douradas-mulatas./ Brotam cheias de calor/A mão de Deus abençoou/Eu vou ficar
aqui/Porque existe amor. Assim, compreender as condições históricas, sociais e ideológicas
que possibilitam a emergência dos discursos é condição para que se façam leituras críticas.
4- DESVENDANDO A REDE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
As críticas ao ufanismo não se tratam aqui de “anti- patriotismo” porque o discurso
ufanista continuou muito bonito tratando o enaltecimento de uma nação, de um povo, até de
um time verde e amarelo; mas a fragilidade da defesa deste mesmo discurso está nas
circunstâncias em que o mesmo acontece. Como dito anteriormente, na história e para
Foucault, quando um discurso está sendo proferido, uma verdade está sendo criada, uma
verdade está sendo produzida, porque não existe uma verdade absoluta, mas verdades que se
formam ao longo do tempo, através dos sujeitos, através de seus discursos no tempo. Longe
de entender os sujeitos como passivos. Obviamente muitas verdades não são aceitas. Era por
isso que os protestos e resistências existiam nos anos de chumbo. É por isso que estudos como
este tentam desconstruir determinadas verdades forjadas em saberes legitimados pelo tempo,
pela mídia, pelas instituições ou até mesmo pelo próprio seio da cultura e do povo. Nestes
espaços as ambiguidades dos discursos permearam estes duros tempos de ditadura militar.
Assim, a canção, esta estrutura de versos escritos, cantados em harmonia com a
melodia perpassam os campos discursivos da sociedade, a serviço das instituições
governamentais ou não, mas também a serviço da busca pela identidade nacional, para
justificar uma ditadura ou para “abrasileirar” os corações do próprio povo. Neste sentido
percebemos que a música se torna um dispositivo, porque nela se cruza o dito e o não dito.
Ela responde a uma urgência histórica, ela é também um tipo de estratégia social,
governamental, propagandista, um dispositivo de subjetivação, saber e poder, que é capaz de
produzir uma verdade. A verdade de um país tropical, admirado pelo mundo por suas belezas
variantes, uma verdade que generaliza, pois não contabiliza o sofrimento, a repressão e a
censura vivida pelo mesmo país chamado de paraíso.
A música analisada tem um perfil ufanista, na maioria das vezes chamando atenção
para o papel do coletivo, alguns versos muito repetidos facilitando a memorização, buscando
quem se mantivesse alegre em tempos autoritários. Algumas canções da mesma época foram
apropriadas pelo governo militar, é o caso de Pra Frente Brasil, outras foram apenas
admiradas por ele, e algumas simplesmente foram cantadas por um povo que desejava o mais
rápido possível se tornar realmente a nação que se cantava.
Os anseios de intelectuais e indivíduos em busca de certa “brasilidade” no tempo de
autoritarismo militar no governo brasileiro ficaram expostos de forma benéfica ou não, mas é
nosso papel, como sujeitos da história, desconstruir verdades que não se pautam na realidade
vivida, na experiência traumática da ditadura, pois entende-se que o tipo de “nacionalismo”
formado durante o período pode não, algumas vezes, não condizer com período traumático
pós golpe e não revolução que foi governo de regime militar brasileiro. Enquanto uns
comemoravam os gols do país, outros eram massacrados, desaparecidos e mortos, tendo suas
mortes e seu desaparecimento justificados por discursos que de uma forma ou de outra,
acabavam maquiando a triste realidade, acabavam justificando o poder sobre os corpos, e tal
discurso ufanista esteve presente nas canções aqui relacionadas. Concordando com Daniel
Aarão Reis é preciso concluir que:
Não há como se libertar da ditadura sem pensar nela. Nos medos dos quais ela foi
produto, nas marcas, visíveis a olho nu, que ela gravou- com ferro e brasa- no lombo
da sociedade. O pensamento crítico pode constituir a melhor defesa da democracia, à
maneira de um antídoto às tentações autoritárias, sempre à espreita, prontas a
ressuscitar tão logo reapareçam no horizonte novas crises e outras ameaças à ordem
(REIS, 2014, p. 172).
Este exercício de pensar a ditadura para construirmos um pensamento crítico e
antídoto de autoritarismo nos faz ver este trabalho como tal meio. Canções que representaram
tempos de ufanismo e ditadura nos fizeram perceber algumas verdades, nacionalistas demais
para terem crédito absoluto sem críticas tendo em vista o contexto conturbado ao qual
pertencem. Entendemos que as produções de verdade se davam e se dão nas grandes
instituições, nas grandes práticas discursivas, mas também e principalmente em toda a
estrutura de relação entre os sujeitos, sejam em suas práticas cotidianas ou em sua produção
dentro de instituições governamentais ou não, entendemos também que analisar o papel de
sujeitos imbricados na arte, na política, na cultura em prol de uma busca, uma imagem
nacionalista ou um governo buscando a mesma coisa, só que com diferentes fins nos leva ao
exercício de crítica que Michel Foucault propôs ao pensar o poder como micro, como rede.
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