mundo singular - ana beatriz barbosa silva.pdf

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Ana Beatriz Barbosa SilvaMayra Bonifcio Gaiato

    Leandro Thadeu Reveles

    MUNDO SINGULAREntenda o Autismo

    FONTANAR

    2012

  • A todos que se engajam na luta em prol das pessoas com autismo.

  • AGRADECIMENTOS

    s nossas famlias, por investirem e acreditarem em nossa educao e compreenderem a ausncia decorrente desseinvestimento.A Mrcia Morikawa, pela amizade e colaborao com sua experincia com autismo.A Mirian Pirolo, pela colaborao diurna e noturna, sem a qual este livro no seria possvel.A Isabella Debone, que ajudou a recordar exemplos de casos clnicos e revises.Aos pais que nos confiam o tratamento de seus filhos, por nos permitirem aprender cada dia mais, alm de nosensinarem o verdadeiro valor de famlia e amor.

  • INTRODUO

    Quando se ouve a palavra "autismo", logo vem mente a imagem de uma criana isolada em seu prprio mundo, contidanuma bolha impenetrvel, que brinca de forma estranha, balana o corpo para l e para c, alheia a tudo e a todos.Geralmente est associada a algum "diferente" de ns, que vive margem da sociedade e tem uma vida extremamentelimitada, em que nada faz sentido. Mas no bem assim. Esse olhar nos parece estreito demais: quando ns falamosem autismo, estamos nos referindo a pessoas com habilidades absolutamente reveladoras, que calam fundo na nossaalma, e nos fazem refletir sobre quem de fato vive alienado.O autismo um transtorno global do desenvolvimento infantil que se manifesta antes dos 3 anos de idade e se prolongapor toda a vida. Segundo a Organizao das Naes Unidas (ONU), cerca de 70 milhes de pessoas no mundo soacometidas pelo transtorno, sendo que, em crianas, mais comum que o cncer, a Aids e o diabetes. Caracteriza-se porum conjunto de sintomas que afeta as reas da socializao, comunicao e do comportamento, e, dentre elas, a maiscomprometida a interao social. No entanto, isso no significa dizer, em absoluto, que a pessoa com autismo noconsiga e nem possa desempenhar seu papel social de forma bastante satisfatria. Ao contrrio, pretendemos, nestelivro, no s esclarecer algumas dvidas como tambm romper a viso obtusa e estigmatizada que a nossa sociedadeainda tem acerca desse mundo singular. Compreender esse transtorno pode ser relativamente simples quando estamosdispostos a nos colocar no lugar do outro, a buscar a essncia mais pura do ser humano e a resgatar a nobreza derealmente conviver com as diferenas. E talvez seja esse o maior dos nossos desafios: aceitar o diferente e ter a chancede aprender com ele.Podemos fazer uma analogia entre o autismo e um jogo de quebra-cabea. Se olharmos apenas para cada um dossintomas envolvidos, incorremos no erro de avaliarmos, de maneira parcial, o conjunto que a obra representa. Mas, setratarmos e cuidarmos corretamente desse indivduo, o jogo montado e podemos nos surpreender com o resultadoobtido. A tarefa de montar um quebra-cabea pode no ser nada fcil para muitos de ns: buscamos pea a pea etentamos encaix-las, cuidadosamente, a fim de que pequenos fragmentos, que aparentemente no tm lgica, possam setransformar em uma bela paisagem. No entanto, o que pode ser difcil para alguns extremamente prazeroso paramuitos, inclusive para os prprios indivduos com autismo, que, muitas vezes, desempenham essa tarefa com maestria.Isso porque o transtorno propicia uma viso extraordinria dos detalhes e, em muitas situaes, esta caracterstica setraduz em beleza, arte e talentos incontestveis.Devemos considerar que as primeiras descries mais fidedignas do autismo surgiram na dcada de 40, portanto, trata-sede um diagnstico recente. Obviamente, o problema j existia antes disso, mas, em se tratando de cincia, um tempobastante curto. Por isso, ainda estamos em fase embrionria nas descobertas das causas e da cura do problema, emboramuitos avanos tenham sido conquistados em termos de entendimento e tratamento eficaz.O conhecimento atual sobre autismo fruto de uma parceria que costuma dar certo: pesquisadores comprometidos e paisque dedicam suas vidas a zelar por seus filhos. No Brasil, os cuidados mais efetivos tm apenas trs dcadas de vida ese devem, principalmente, coragem de algumas famlias de desbravarem fronteiras na luta pelo tratamento do autismo.Felizmente, cada vez mais, grupos e associaes em vrios pases ao redor do mundo se engajam e se esforam,incessantemente, para buscar diagnstico e tratamento adequados e, sobretudo, para exigir respeito, quebrar preconceitos,fazer com que as leis sejam cumpridas e que efetivamente haja incluso escolar. Foi pensando justamente nadiscriminao que a grande maioria das pessoas com esse funcionamento mental sofre que procuramos evitar o termo"autista" como rtulo para essas pessoas. No que a palavra esteja incorreta, porm, em nosso entendimento, ela temsido amplamente usada de forma inadequada e pejorativa tanto em conversas descontradas quanto nos diversos meios decomunicao ou at mesmo como jargo poltico. Isso s faz crescer o estigma do autismo, reduzindo o indivduo, nicae exclusivamente, a um transtorno ou "doena" e abolindo de vez qualquer possibilidade de extrair a riqueza que h

  • dentro dele.Este livro discorre sobre as diversas manifestaes do autismo, que vo desde simples "traos" (esboo) do transtorno,passam pela sndrome de Asperger, at chegar ao autismo clssico ou grave. Pretendemos no somente trazerinformao ao pblico em geral, como tambm derrubar alguns mitos que geram preconceito e intolerncia. Mostraremosque o diagnstico precoce e um tratamento efetivo, cientificamente embasado, podem mudar a vida dessas pessoas edaquelas do seu convvio ntimo. Para se tratar o autismo necessrio quebrar antigos paradigmas, eliminar as culpas eaprender a despertar e a valorizar os talentos inatos de cada indivduo. No devemos nos deter nas suas dificuldades,mas sim viabilizar as potencialidades, sempre visando a independncia, autonomia, socializao e auto-realizao dequem vive e se expressa dessa maneira to peculiar.A iniciativa de escrever sobre o tema surgiu a partir da percepo de que os pais, em sua grande maioria, ficam perdidosquando recebem o diagnstico do filho e, muitas vezes, no sabem a quem recorrer nem por onde comear. Alm disso,temos por objetivo alertar a populao sobre os traos de autismo, que so difceis de serem diagnosticados, mas quepodem trazer prejuzos por toda a vida, se no houver tratamento adequado. Estes traos, muitas vezes, esto presentesem pessoas que convivem em sociedade, de forma natural, e nem nos damos conta de que sofrem intensamente.Vale ressaltar que, ao longo da histria, as diferenas nunca foram bem-aceitas e a nossa tendncia sempre sermosimpiedosos com quem foge regra. Atualmente existe uma fora-tarefa para quebrarmos preconceitos em relao spessoas com autismo, a fim de serem includas e reintegradas na arena social. Este movimento vem aumentando seucontingente de adeptos em vrios pases, e o Brasil tambm est neste roteiro.Em dezembro de 2007, a ONU decretou que o dia 2 de abril seria o Dia Mundial de Conscientizao do Autismo,celebrado pela primeira vez em 2008. Pode parecer um pequeno passo, mas at bem pouco tempo atrs o autismo sequerera citado nos meios de comunicao. Portanto, causa de alegria constatar que o autismo est saindo de um lugar detabu e est comeando a ser abordado com coerncia, clareza e compaixo.Conhecer a fundo uma pessoa com autismo pode trazer um aprendizado especial para nossas vidas. Assim como umdiamante precisa ser lapidado para brilhar, uma pessoa com autismo merece e deve ser acolhida, cuidada e estimulada ase desenvolver. Para isso, so necessrias aes motivadoras, de tal forma que ela sinta vontade de participar deatividades conosco, e que sejamos as pessoas com as quais ela realmente tenha prazer em estar e ficar. Essas so asprimeiras etapas para que ela seja resgatada do seu mundo singular e estabelea vnculos com as pessoas ao seu redor.Uma pessoa com autismo sente, olha e percebe o mundo de maneira muito diferente da nossa. Pais, professores,profissionais e a sociedade como um todo precisam mergulhar em seu universo particular e perceber o mundo da mesmaforma que ela o v. Imbudos desse esprito, os resultados dessa empreitada so surpreendentes e transformadores.

  • Grande parte da populao j ouviu falar em autismo. Geralmente, esta palavra nos remete a campanhas, filmes ouprogramas de TV em que uma criana, isolada no seu canto, balana o corpo e olha incansavelmente para seus dedinhosa se mexer. Essa cena at ilustra, em parte, pessoas com esse tipo de funcionamento mental, mas, como esteretipo, capaz de deixar marcas e estigmatizar quem vive e se expressa assim.O retrato visto nessas imagens apenas um flash de um mundo que se abre para o conhecimento de pessoasextraordinrias e peculiares, que muito podem nos ensinar. Este livro parte desta premissa para discorrer sobre essetema e apresentar as diversas faces do universo complexo do autismo. Se deixarmos o preconceito nos dominar, podemosperder a oportunidade de conhecer pessoas que so, na maioria das vezes, verdadeiras, honestas, divertidas, amorosas emuito humanas. Entender e dominar o mundo singular dos indivduos com autismo ter a oportunidade de participar deum milagre dirio: a redescoberta do que h de mais humano em ns e neles.Os primeiros sintomas do autismo manifestam-se, necessariamente, antes dos 3 anos de idade, o que faz com que osprofissionais da rea da sade busquem incessantemente o diagnstico precoce. Depois do nascimento, com direito aparto filmado e foto com o mdico, um filho passa a ser cuidado momento a momento pelos pais que, alm de sededicarem a seus cuidados bsicos, passam a acompanhar cada dia do seu desenvolvimento. Conforme cresce e d seusprimeiros passos, a criana se torna o xod dos pais, que "disputam" para ver qual ser a primeira palavra, "papai" ou"mame", e no se cansam de dizer: "andou com apenas 10 meses" ou "no seu primeiro aniversrio, j falava!". Mas equando esses comportamentos no acontecem ou aparecem de forma peculiar? O acompanhamento desses marcos dedesenvolvimento de fundamental importncia para o diagnstico de qualquer alterao na primeira infncia. No caso doautismo, essa importncia aumenta, pois quanto antes notarmos que algo no vai bem, maiores sero as chances decorrigirmos as disfunes advindas desta condio.A principal rea prejudicada, e a mais evidente, a da habilidade social. A dificuldade de interpretar os sinais sociais eas intenes dos outros impede que as pessoas com autismo percebam corretamente algumas situaes no ambiente emque vivem. A segunda rea comprometida a da comunicao verbal e no verbal. A terceira a das inadequaescomportamentais. Crianas com autismo apresentam repertrio de interesses e atividades restritos e repetitivos (comointeressar-se somente por trens, carros, dinossauros etc.), tm dificuldade de lidar com o inesperado e demonstram poucaflexibilidade para mudar as rotinas.Faremos agora uma anlise minuciosa dessa trade de sintomas que constitui a espinha dorsal do comportamentoautistco: 1 - DISFUNES SOCIAIS A dificuldade de socializao a base da trade de sintomas do funcionamento autstico.Sabemos que o ser humano , antes de tudo, um ser social. Busca, desde pequeno, fazer amigos, agregar pessoas a suavolta e dividir momentos e experincias. atravs da socializao que o indivduo aprende as regras e os costumes dasociedade em que habita.Desde a infncia, buscamos a companhia um do outro. Lembra como eram gostosas as festinhas de aniversrio deparentes e amigos? O aniversariante quer convidar todo mundo e se preocupa se a festa vai ser um sucesso. Asbrincadeiras, brigas e a baguna animam a garotada antes do parabns e das inevitveis disputas pelos brigadeiros. Aos7 anos, muitos de ns j tm um grupo bem-formado, quase uma gangue! Nessa idade, surgem os primeiros lderes.Na adolescncia, ser aceito pelo seu grupo mais importante do que qualquer nota na escola. A vida gira em torno dapreocupao com as aparncias ("o que meus amigos vo dizer") e de querer construir uma imagem ("no posso pagarmico!"). Muitos jovens, inclusive, trocam a hora de almoo para mergulhar nas redes sociais. A expresso "navegar

  • preciso", de Fernando Pessoa, nunca esteve to em alta.Depois que crescemos, o grupo social abre portas para a vida profissional, econmica e afetiva. muito engraadoobservarmos quantos novos casais se formam nas festas de casamento! Quantas empresas nascem em um churrascoentre amigos! No h como negar que, para crescer na carreira, preciso forjar laos com clientes, chefes e colegas.Com o passar dos anos, percebemos que precisamos ainda mais uns dos outros. Vide o sucesso dos grupos da melhoridade que viajam, vo ao teatro e cinema, e freqentam bailes! O mais importante que, nesses eventos, eles estosempre felizes: no h artrose ou melancolia que os atrapalhe nessas horas prazerosas.Pessoas com autismo, no entanto, apresentam muitas dificuldades na socializao, com variados nveis de gravidade.Existem crianas com problemas mais severos, que praticamente se isolam em um mundo impenetrvel; outras que noconseguem se socializar com ningum; e aquelas que apresentam dificuldades muito sutis, quase imperceptveis para amaioria das pessoas, inclusive para alguns profissionais. Estas ltimas apresentam apenas traos do autismo, nofecham diagnstico, mas suas pequenas dificuldades tambm devem ser tratadas. Transitar entre os diversos nveis deinterao social dessas pessoas um desafio para familiares e at terapeutas.Identificar uma criana isolada no seu canto, que se balana e geme o tempo todo, com ntido autismo, no to difcil.Porm, identificar nuances muito leves de dificuldades sociais em pessoas que no tm nenhum diagnstico bem maiscomplicado. Entender a fundo os sentimentos e percepes dos portadores desse funcionamento mental o primeiropasso para que possamos ajud-los.Os traos sutis de autismo tendem a se mascarar mais facilmente com o decorrer do tempo. Em nossa prtica clnicadiria, deparamos com adultos que jamais foram diagnosticados, tampouco tratados. Eram vistos pela famlia apenascomo "estranhos", "esquisites" ou "nerds"; no entanto, ao longo de suas trajetrias de vida encontraram muitasdificuldades em se socializar. Alguns, muito inteligentes, transitavam entre as pessoas como se fizessem parte daquelegrupo, mas, na realidade, nunca conseguiram estreitar os relacionamentos.No que tange a pessoas com apenas traos de autismo, podemos citar alguns exemplos, tais como: o garoto que noconseguia jogar futebol, mas decorava todas as regras, conhecia os jogadores e at conversava sobre os times; o jovemque preferia ser o fotgrafo das festinhas familiares, somente como desculpa para no interagir com os demais; e outrosque adotaram hobbies nicos e extremamente solitrios, como videogame, computador ou pescaria. Esses indivduos notratados colecionaram prejuzos na vida profissional, afetiva e, principalmente, em seu ciclo de amizades. Alguns maishabilidosos, na tentativa de estabelecer relacionamentos, chegam a oferecer seus servios, mas acabam sendo usadospelas pessoas, sem conseguir aprofundar os laos de amizade. Resta apenas a triste e frustrante sensao de que sserviam para aquela funo. importante frisar que eles podem apresentar o mesmo grau de sofrimento e isolamento quequalquer outro com um transtorno grave. No h dvida de que essas pessoas so, cada vez mais, os novos desafios danossa prtica clnica.Para todos aqueles com traos ou diagnstico de autismo, uma coisa universal: o contato social sempre prejudicado.No, necessariamente, porque esto desinteressados, mas porque no sabem e no aprenderam a arte de interagir emanter vnculos. A me de Pedro, dona de uma loja de sapatos, gostava muito de lev-lo para o trabalho no perodo da tarde, Suasclientes conheciam bem o garoto e, a todo momento, levavam para ele doces e balas. D. Maria comeou a perceber queseu ilho ficava muito feliz com as visitas, pois sempre que elas chegavam Pedro corria para receb-las, A perguntaera sempre a mesma: "O que voc trouxe para mim hoje, tia?" Ele pegava as guloseimas e saa correndo. Gostava debrincar no estoque da loja, que ficava embaixo de uma escada, e sua maior diverso era empilhar caixas, Algumasmes, tambm lojistas da regio, levavam seus filhos para as lojas, Pedro olhava pela fresta da porta e, quanto maiscrianas apareciam na frente da loja, mais parecia se esconder atrs das caixas, O contato que Pedro tinha com as

  • clientes da loja era melhor do que com as prprias crianas, fato que sua me no conseguia entender, A brincadeirade empilhar parecia muito mais divertida, pois ele passava tardes inteiras entretido nessa arte. Depois da pilha feita,Pedro as desmontava e tornava a empilhar. A me sempre dizia que ele tinha dificuldades de manter amizades com ascrianas da mesma idade. Na sada da escola estava sempre sozinho e, em casa, sua maior diverso era enfileirar osantigos soldadinhos de chumbo do seu pai. Alguns autores relatam que os portadores de autismo no sentem prazer no convvio com os demais. No entanto, emnossa prtica clnica, observamos que, por eles serem extremamente sensveis, o contato social lhes parece algoameaador. E exatamente por isso que muitos se isolam em seus "mundinhos" e brincam sozinhos, sem conseguirparticipar de atividades em grupo, como na hora do recreio escolar, por exemplo.Um dos grandes desafios do tratamento do funcionamento autstico ensinar a essas pessoas os mecanismos e osprazeres contidos nos momentos de convivncia. No caso de Pedro, descrito acima, era mais fcil se relacionar com osadultos que j conheciam seu jeito de ser, do que se dedicar rdua tarefa de interagir com crianas de sua idade, comas quais teria que lutar pelo seu espao. Assim como ele, nas escolas muito comum encontrarmos essas crianassolitrias, recolhidas em um canto do ptio, nos dando a impresso de que no querem brincar com os outros, mesmoaps insistentes tentativas dos professores e colegas. As explicaes e justificativas atribudas a esse comportamentoso inmeras: "ele muito tmido", "ela muito quieta, no est acostumada com a escola ainda", "ele mimado, nogosta de emprestar suas coisas, prefere brincar sozinho", ou "ainda pequeno, vai interagir com o passar do tempo".Tambm comum ouvirmos dos pais: "eu tambm era assim". importante frisar que, para essas crianas, ficaremisoladas no exatamente uma opo, mas sim uma necessidade, pois o contato social lhes parece invasivo eintimidador.Os pais costumam se tranqilizar quando ouvem dos profissionais de sade que "cada criana tem seu tempo".Realmente isso verdade. Cada pessoa tem seu tempo de amadurecimento, suas preferncias e seu jeito de ser. Porm,no caso do autismo, a conexo com o mundo que est prejudicada. Esperar o tempo dessa criana perder tempo, deixar uma ave rara presa em uma gaiola e esperar que ela saia voando sem abrirmos a porta.As crianas com autismo no escolhem ficar sozinhas, mas a falta de habilidades sociais as mantm distantes dasoutras, entretidas no seu mundo, sem demonstrar desconforto. Elas so bem diferentes de crianas tmidas, que noconseguem ficar com o grupo por vergonha, mas observam de longe seus coleguinhas, com ntida vontade de seremaceitas e de participarem das brincadeiras. A professora Beth, estagiria de uma escola renomada de So Paulo, sempre observou o fascnio de Cac pela janela.Aos 4 anos de idade, ele passava as tardes na escola curtindo o visual da avenida. Aparentemente preferia ficarolhando para fora da sala a brincar com os colegas de classe, Parecia estar perdido em seus pensamentos. Aqueleolhar sereno intrigava os professores. Mesmo quando estimulado e at colocado perto dos seus colegas, Cac dava umjeitinho de "escapar" e fugir para a janela. Na primeira reunio de pais e mestres, a professora estagiria relatou talcomportamento para os pais, que explicaram que Cac tinha autismo e que olhar pela janela tambm ocorria em casa.Tal fascnio tinha um motivo bem explicvel: ele adorava nibus. Podia passar horas e horas na janela ou folhearrevistas onde pudesse encontrar fotos desses veculos. Ele trocava qualquer brincadeira ou brinquedo pelas revistasantigas do av. Crianas com autismo, muitas vezes, buscam contatos sociais, mas no sabem exatamente o que fazer para mant-los.Podem at chamar os coleguinhas a irem em suas casas, mas as brincadeiras no costumam durar muito tempo; elasacabam deixando o grupo de lado para brincarem sozinhas.

  • Marcos sempre pedia para sua me convidar os amigos a irem a sua casa. Ela achou que seria uma boa oportunidadecham-los para a festinha de aniversrio do filho. Marcos participou dos preparativos com animao, mas, na hora dafesta, deixou os amigos sozinhos e foi para o quarto brincar com o ventilador. Seu pai o encontrou feliz ali e indagou oque ele estava fazendo. Marcos prontamente respondeu: "Estou brincando, pai," E logo emendou: "Puxa, esta festa estuma delcia, no mesmo?" O pai, que conhece bem o filho e segue as orientaes dadas por ns, rapidamente oredirecionou ao grupo de amigos e props novas brincadeiras, A mediao dos jogos incluiu Marcos na diverso e seupai saiu com a sensao de misso cumprida. No dia seguinte, ele nos telefonou. Estava orgulhoso de si e tinhaentendido que o filho precisava apenas de um "empurrozinho" para se divertir com os amigos.

    Olhar nos olhos o primeiro passo para mostrarmos inteno de nos comunicar. Porm, as crianas com autismo tendema fazer pouco contato visual; esse funcionamento mental impede que elas foquem suas pupilas nos olhos doscoleguinhas. Tal comportamento a primeira quebra nos protocolos dos costumes sociais, a primeira barreira para umaboa relao social. A grande maioria dos homens, com certeza, j ouviu suas esposas se queixarem: "Olhe pra mimquando eu estou falando!" a forma que elas encontram de cobrar ateno exclusiva. Um indivduo que no olha no olhodo outro pode passar a falsa impresso de descaso ou de pouco interesse pelo interlocutor. "Caio, olhe pra mame... olhe aqui, vamos tirar uma foto!" "Ai, que menino concentrado... com um ano de idade j est focado no brinquedo e no quer nem saber de tirar foto!Que tmido! A gente aqui neste paraso, nesta praia paradisaca, e ele s pensa na rodinha do caminho! Acho que elevai ser engenheiro...", dizia a me. E assim Caio continuava imerso em seu "paraso particular", seu brinquedo. Durante a viagem, seus pais sconseguiram tirar algumas fotos de Caio olhando na direo deles. Ele no dava muita bola quando os pais ochamavam. A me achava que havia algo estranho, mas o pai sempre dizia que ele, quando criana, era igualzinho; fato este,confirmado e exaltado pela av paterna de Caio. Os pais tambm dizem, com freqncia, que a criana tem bom contato com a famlia, mas evita qualquer relaoexterna. Isso ocorre porque os parentes mais prximos, geralmente, entendem melhor o funcionamento daquela criana,compreendem o que ela quer, suprem suas necessidades e aprendem a lidar com suas dificuldades. No entanto, emoutros ambientes, essa mesma criana no consegue se sair to bem quanto em casa. Douglas tem 9 anos e um garoto muito inteligente. Adora dinossauros e sabe tudo sobre eles. Sua famlia admiratanto sua profundidade de conhecimento, que no se cansa de ouvi-lo falar sobre Tyrannosaurus Rex, cotidianamente.Todos ali brincam do jeito dele, entendem o que ele fala, aceitam suas falas repetitivas e o enchem de carinho. Suame at adivinha o que ele quer. Porm, na escola no assim. Os colegas tm dificuldade em fazer o mesmo que afamlia de Douglas faz. So mais exigentes, no querem brincar apenas com dinossauros, e isso prejudica a interaoentre eles. Esse comportamento social, ilustrado no caso de Douglas, est relacionado com a restrio de repertrio de interessesque essas crianas tm; ou seja, elas se interessam por poucos assuntos, brincadeiras e jogos especficos. 2 - DISFUNO DA LINGUAGEM

  • Vivemos num mundo repleto de opes de comunicao. Temos televisores em vrios cmodos da casa, com diversoscanais disponveis. As informaes viajam pela internet e atravessam continentes em segundos.Mas e quem no capaz de captar e interpretar os sinais de comunicao? Como ficam estas pessoas nesse mundo cadavez mais conectado e comunicativo? As pessoas com autismo apresentam grandes dificuldades na capacidade de secomunicar pela linguagem verbal e no verbal e, com isso, permanecem isoladas e distantes em seus mundinhosparticulares.A linguagem verbal a escrita ou falada, ou seja, o poder que temos de nos comunicar por meio de cartas, e-mails,textos, livros, vocalizaes, conversas, pedidos ou at mesmo discusses acaloradas. A linguagem no verbal, por suavez, composta pelo conjunto de sinais e smbolos, com os quais nos deparamos no dia a dia. Como exemplos delinguagem no verbal, temos as placas e os sinais de trnsito, que nos passam mensagens indicativas por meio desmbolos, imagens e cores de como devemos agir: reduzir a velocidade, parar o carro, atravessar a rua etc. Alinguagem no verbal tambm constituda por sinais que emitimos o tempo todo, como gestos, posturas corporais eexpresses faciais. Uma careta, um sorriso ou um piscar de olhos, por exemplo, podem significar muito mais do queuma simples alterao na mmica facial. Com uma singela piscadinha de olho possvel abrir o corao e declarar-seapaixonado pela garota mais bonita da escola. Em outro contexto, porm, o mesmo gesto pode ter um sentidoradicalmente oposto, como no caso do jogador de pquer querendo dar uma discreta trapaceada.Aprendemos, desde muito cedo, a interpretar expresses faciais e a linguagem corporal das pessoas com queminteragimos. Uma grande parte da comunicao vem da linguagem no verbal. A unio daquilo que dizemos com amaneira como o expressamos passa uma mensagem com riqueza de sinais e repleta de intenes subentendidas. Umprejuzo nessa capacidade de avaliao pode deixar a pessoa com poucos recursos para interpretar situaes, resultandonuma impresso de ser ingnua ou at mesmo inconveniente.De fato, falhas ou problemas na evoluo da linguagem constituem os primeiros sinais de que o desenvolvimento de umacriana no est conforme o esperado e podem sugerir um funcionamento autstico. Assim como nas questesrelacionadas socializao, nos deparamos, aqui, com um espectro de alteraes.Algumas crianas com autismo podem ter um excelente desenvolvimento da linguagem falada e, por vezes, emitempalavras "perfeitinhas". Em outros casos, os pais percebem que, com um ano de idade, sobrinhos ou coleguinhas jarticulam as primeiras palavras, mas seus filhos ainda no. As preocupaes crescem (e muito) a partir dos 2 anos, faseem que outras crianas j conseguem formar frases completas, enquanto seus "pequenos" nem parecem ouvir quando sochamados.Nas consultas com o pediatra, os pais relatam suas apreenses e o mdico atento encaminha, rapidamente, esta crianapara uma avaliao fonoaudiolgica. A excluso de uma possvel deficincia auditiva traz um conforto efmero, poispersiste o atraso ou a ausncia do desenvolvimento da fala, alm da dificuldade de ateno quando a criana chamada.Estes fatores geram muita angstia, tanto para o filho, que no consegue se expressar, quanto para os pais, que sesentem impotentes frente situao. Os pais de Felipe economizaram durante o ano todo para fazer sua festa de aniversrio de 2 anos num buf.Contrataram fotgrafo, mgico, palhaos... tudo o que uma criana poderia querer. Mas seu filho parecia no ligarpara nada disso. Pelo contrrio! Demonstrava no gostar de tanto barulho, tanta gente por perto. Preferiu se recolher,durante toda a festa, em um canto mais tranqilo com seu boneco predileto. Nas fotos, seu olhar era distante, perdido,como se estivesse olhando para o vazio. A me de Felipe estivera to ansiosa com a festa, dedicara-se tanto aospreparativos... Convidou todos os coleguinhas da escola e do condomnio onde moram. Pensou que o filho fosseapresentar uma reao indita, pular de alegria ao ver tudo preparado! Mas no final da noite ela estava arrasada!

  • Todos comentavam o "retraimento" de Felipe, sem faltar, claro, as desnecessrias crticas de parentes de que omenino era muito mimado! Isso acabou com os pais. como se tudo o que eles no quisessem enxergar durante essesdois anos tivesse se concretizado na festa. Todos se impressionaram com o momento do parabns, quando, em vez debater palmas, Felipe tampou os ouvidos, chorou e tentou se esconder embaixo da mesa. O barulho parecia incomod-lomuito. Aps a festa, a me de Felipe buscava explicaes: "Acho que ele deficiente auditivo!", disse ela, aos prantos, quandochegaram em casa. "Ele no ouve quando o chamamos, no faz nada do que pedimos. E agora???" O pai continuavaachando que era um exagero da parte da esposa, uma vez que Felipe j demonstrara ter ouvido bem, algumas vezes,inclusive no momento do parabns. Na semana seguinte, realizaram todos os exames audiomtricos e Felipe no apresentou nenhum sinal de surdez, nemaparente problema fonoaudiolgico. Os pais nos procuraram e demos continuidade s investigaes...Muitas variveis determinam o incio da fala nas crianas: ritmo prprio, gentica, estmulos que recebem em casa.Antes disso, porm, a criana j estabelece contato atravs da linguagem no verbal: toda vez que ela chora, sorri, fazuma expresso facial ou vira a cabea para o lado, est se comunicando. Quando a criana comea a emitir barulhinhos,recebe o incentivo dos pais e familiares e, mais tarde, ela j produz sons ao acaso e se diverte com as brincadeiras dotipo: "Cad o nen fofinho?", "Achou!". Na "lalao", fase em que a criana treina monosslabos do tipo "l, l, p, m,t", a me fica muito feliz quando escuta "m" e faz festinha com a criana, regada de muito carinho, ccegas ebeijinhos. Com esses mimos, a me d o estmulo necessrio para que a criana repita o som, pois sabe que fez o maiorsucesso! Em seguida, ela comea a falar "m, m", pois gosta do efeito que causa no ambiente, alm do reforo docarinho da mame. Este um dos primeiros atos de comunicao verbal e, com todo esse sucesso, no demora a falar"mame". Essa ateno dos pais incentiva a criana a persistir no aprendizado da fala. nessa poca que os pais"babam" com as novas descobertas dos pequenos!Algumas vezes, mesmo com muito estmulo, a criana no fala. Os meses passam, e nada. Os pais fazem sons,cantam, esperam o desenvolvimento das palavras, porm a criana no as reproduz ou no sai da fase de "lalao".Podemos inferir que uma criana com autismo no consegue perceber o efeito que seus atos causam no ambiente.Assim, aquele reforo da mame, com seu sorriso aberto, tem um efeito menor que nas outras crianas. Nestes casos,os pais precisam persistir nos estmulos e criar novas alternativas, para que essas crianas consigam se comunicar einteragir de forma mais eficaz. Matheus tem um irmo gmeo. So duas crianas loirinhas, que chamam ateno, desde o berrio, com seus lindosolhos azuis. Quando estavam com 2,5 anos de idade, os pais procuraram nossa clnica. O irmo era extremamentetagarela, louco por doces, j chegava pedindo balas para a secretria. Matheus, por outro lado, chegava quieto esentava no cantinho do sof. No pedia balas, mas, quando via o pote disponvel, ia direto pegar. Quando no alcanava,segurava a me pelo brao e a levava at o pote. Ela, que j sabia o que o filho queria, antecipava suas vontades e noesperava o pedido. Durante nossa conversa ficou evidente que ela estabelecia uma comunicao verbal com o irmo,mas com Matheus no trocava palavras, apenas agia, suprindo suas necessidades. A partir de ento, ela se deu contade que, sem querer, parara de falar com Matheus, pois suas falas surtiam pouco efeito. Ao perceber que no falavamais com ele, sentiu-se culpada. Explicamos, ento, que as tentativas constantes de sua interao com Matheus foram,muitas vezes, frustradas, o que fez com que sua iniciativa de falar com ele diminusse cada vez mais. Essa atitude notem nada a ver com falta de preocupao ou desprezo, pois algo que ocorre de maneira involuntria em qualquerrelao que no tenha o retorno esperado. Orientada por ns, a me aprendeu novos recursos para estimular alinguagem do filho. Com o tratamento adequado, Matheus evolui a cada dia e sua me encara essa forma decomunicao como um novo desafio.

  • A ausncia da fala, na maioria dos casos, o fator que mais preocupa os pais e o que os motiva a procurar ajuda. Foi oque aconteceu com Milena. Seus pais a trouxeram clnica por indicao do pediatra: Milena tinha 3 anos quando ns a conhecemos. Parecia muito feliz, estava sempre sorrindo. Os pais se preocuparamcom seu desenvolvimento quando perceberam que o outro filho, um ano mais novo, j se comunicava com gestos epalavras enquanto Milena ainda no. Ela gostava de brincar com os pais, mas fazia isso de uma forma diferente doirmo. As brincadeiras eram sempre de pular ou correr. No tinha nenhuma troca de palavras. Divertia-se por horasa fio apenas com sua prpria movimentao e pulinhos. A me at tentava brincar de casinha, fazia comidinha,simulava a ida feira, mas Milena no entrava nesse mundo de imaginao. Ela s queria segurar a mesma boneca enada daquilo parecia fazer sentido. Ao conhec-la, percebemos, ainda, que ela repetia vrias vezes o mesmo som coma boca (t, t). Emitia esse som aleatoriamente, e no quando queria alguma coisa. Era uma comunicao sem destino. A utilizao de sons verbais, normalmente, feita quando desejamos trocar idias; nos referir a algum ou a algumacoisa. Muitas vezes, porm, crianas com autismo, como a Milena, falam, mas sem a real inteno de se comunicarem.Repetem sozinhas dilogos de filmes, ecoam falas dos pais ou reproduzem sons do dia a dia. O caso de Juliana ilustrabem essa situao: Juliana adorava assistir a filmes e sabia todas as falas dos seus prediletos. Decorava tudo com muita facilidade, atos livros de histria que sua me contava. Sempre queria que elas fossem contadas e recontadas, da mesma forma. Sea me mudasse alguma frase ou expresso, ela a corrigia. " impressionante como ela tem facilidade para decorar!",dizia a me, muito orgulhosa do potencial da filha... Os familiares se divertiam ao ouvi-la pronunciar as frases do BobEsponja; parecia que tinha acabado de assistir ao desenho. O problema que, na maior parte do tempo, Juliana brincava sozinha e repetia incansavelmente as frases dos filmes,dos desenhos e dos livros, aleatoriamente, sem ter qualquer relao com o que ocorria sua volta ou com o que eradito. Esse comportamento denominado ecolalia e caracterstico de crianas com autismo. Ela pode repetir frases antigasgravadas em sua memria, falas de um desenho animado, ou ecoar frases que um adulto acabou de falar. Algumascrianas com funcionamento autstico ganham apelidos dentro de casa ou na escola, por causa desse comportamento.Juliana, por exemplo, ganhou o apelido de "vitrola" entre os familiares, pois era comum que sua av chegasse em casa efalasse: "cad a gatinha da vov?" E, Juliana ecoava: "cad a gatinha da vov?".Outras crianas falam na terceira pessoa, como se fossem um personagem, na hora de se relacionarem com seus paresou parentes: "A Mrcia quer comer" ou "Ela est com fome". Elas ouviram, desde bebs, seus pais dizerem frasesassim, quando se referiam a elas na hora da comida. Por serem recompensadas com o alimento, aprenderam que, paraconseguir qualquer coisa, basta utilizar expresses parecidas.Muitas crianas tm um discurso monotnico, como se fossem um robozinho programado. No h alterao de tons ouvolume no seu jeito de falar. No enfatizam questionamentos ou ressaltam um trecho mais importante da frase. Elas tmdificuldade de colocar emoes no seu discurso. Tambm costumam falar apenas de coisas do seu interesse, tornandoassim a fala monotemtica. Carlos aprendeu a falar de maneira estereotipada. Logo pela manh, todos os dias, repetia a mesma frase "bom dia,dormiu bem? Hoje est um lindo dia!", sempre de forma idntica, independente se estivesse chuva ou sol. Quando noqueria algo, dizia "Oh! Essa no!" com voz infantilizada, como nos desenhos, sem a devida nfase expresso.

  • Crianas com autismo tm pouca curiosidade social e, por isso, no aprendem a relatar os acontecimentos de formaespontnea. Quando os pais perguntam como foi o dia na escola, por exemplo, elas simplesmente no respondem oudizem sempre a mesma coisa: "Ah, foi muito legal." Os pais no conseguem saber pelos filhos o que fizeram, comeramou com quem brincaram. As crianas com funcionamento autstico, dificilmente, contam eventos passados e, exatamentepor isso, ensin-las a narrar suas vivncias prioridade no tratamento, at para que possamos identificar situaesconstrangedoras e humilhantes no ambiente escolar, como o bullying. No podemos perder de vista que crianas comalteraes comportamentais so vtimas prediletas dos casos de bullying. Se elas no conseguem relatar as agressesfsicas ou verbais, tendem a se perpetuar como vtimas, o que s agrava o quadro. Assim, ensin-las sobre a importnciade contarem como foi o seu dia escolar fundamental para que possamos preserv-las e obter respostas mais positivasno tratamento. Alm do mais, devemos estar sempre atentos s crises de agitao nos momentos antes de irem escola, s roupas rasgadas, aos materiais danificados e at a novos hematomas. Evitar o bullying e proteger essascrianas um papel obrigatrio da escola, dos pais e da sociedade. Juca tinha 7 anos quando foi para a nova escola. Se comunicava bem, expressava o que queria e conseguia manterdilogos. Era bastante sorridente e fantico por futebol. Alguns meses aps o incio das aulas, seus pais comearam anotar que Juca no dormia bem, ficava irritado e triste pela manh. Ao chegar na escola, descia correndo do carro ecomeava a gritar o nome da professora. Logo em seguida, a me de um coleguinha foi reclamar na escola que Jucatinha mordido seu filho. Diante da situao, os pais procuraram a professora, que relatou que ele era um timo garoto,mas como tinha uma fala um pouco estranha, comeou a ser imitado pelos colegas que se juntavam no recreio, aosbandos, para irrit-lo. Aquele monte de garotos, gritando ao seu redor, deixava-o furioso e muito agitado. Ele noentendia exatamente a inteno dos colegas, mas os gritos e o fato de ficar cercado lhe causavam desespero. E foi numdesses episdios que ele mordeu o colega. As agresses j ocorriam havia alguns meses, mas Juca jamais contou paraos pais. A me se sentia culpada e achava que no o tinha protegido suficientemente. O pai ficou indignado, pois,infelizmente, a escola no fizera o seu papel. Assim, chegaram at nossa clnica, onde o primeiro passo foi ensinar omenino a relatar suas vivncias dirias para evitar incidentes desse tipo. A comunicao tambm prejudicada pela incompreenso da inteno das perguntas e das aes. As pessoas comautismo tm dificuldade de perceber essas intenes do interlocutor, como por exemplo: "Ele est gostando ou no daconversa?", "Ele quer ir embora ou continuar conversando?", "Ser que o tema lhe interessante ou no?". Muitasvezes, ainda, elas no conseguem manter um dilogo coerente, voltando sempre aos assuntos de seu interesse. Tendem amonologar, no deixam as pessoas entrarem na conversa e no percebem as conseqncias dos seus atos, ao ficaremdiscursando sobre um nico tema.Sua forma concreta de ver o mundo impede essas crianas de identificarem sutilezas e questes subentendidas de umdiscurso. muito comum elas perguntarem "o que ele quer dizer com isso?" ou no entenderem uma piada. No inferema intencionalidade de ironias e brincadeiras, nem as falas com duplo sentido. Por exemplo, se perguntarmos criana oque significa a expresso "de gro em gro a galinha enche o papo", se ela nunca a tiver ouvido, provavelmenteresponder que significa que a galinha come um gro de milho de cada vez, quando na verdade ela deveria interpretar queesta expresso significa que devagar, ou passo a passo, alcanamos nossos objetivos. Percebemos que ela avaliou afrase de maneira concreta, literal, sem dar margem para outros possveis significados. Essas pessoas podem serchamadas de "mentes literais", pois o que interessa para elas a palavra ou o ato em si, e no a inteno que est portrs do que esto vendo ou ouvindo.Tambm no conseguem entender a inteno das atitudes; por exemplo, quando vemos uma pessoa entrar na cozinha eabrir a geladeira, inferimos automaticamente que ela est com fome e vai se alimentar. Essa percepo do que se passa

  • na cabea do outro no to simples de explicitar para as pessoas com autismo. 3 - DISFUNES COMPORTAMENTAIS A cultura de um povo determinada atravs das regras de convivncia, ou padres de comportamento aceitveissocialmente. Esquims, por exemplo, se beijam raspando o nariz um com o outro, e isso esperado naquela sociedade.Os homens, no Brasil, se cumprimentam com um aperto de mo, e em alguns locais do mundo eles se beijam. Aqui,mulheres podem usar biqunis, enquanto em outros lugares podem ser obrigadas a cobrir-se dos ps cabea, inclusivenas praias.Os padres de comportamento das pessoas com autismo independem de raa, nacionalidade ou credo desses indivduos. fcil identificarmos comportamentos autsticos mesmo em um estrangeiro, pois no esto relacionados aos costumesde um povo ou outros moduladores, e sim ao desenvolvimento particular dessas pessoas.Os comportamentos das pessoas com autismo, assim como a socializao e a linguagem, possuem um espectro degravidade e so divididos em duas categorias:1. A primeira categoria trata-se de comportamentos motores estereotipados e repetitivos, como pular, balanar o corpoe/ou as mos, bater palmas, agitar ou torcer os dedos e fazer caretas. So sempre realizados da mesma maneira e algunspais at relatam que observam algumas manias na criana que desenvolve tais comportamentos.A agitao e as manias podem ser percebidas na histria de Carlinhos: Carlinhos um garoto de 5 anos. Fala bastante e muito agitado, No consegue ficar parado, pula o tempo todo, batepalmas, grita pela casa. S consegue ficar focado se estiver em frente ao computador. fantico por eletrnicos.Conhece todas as marcas, todos os modelos e, apesar de no ser alfabetizado, consegue encontrar os vdeos de seuinteresse: vdeos de trens, da Xuxa e de eletrnicos. Assiste repetidas vezes, sem se cansar, durante horas. A meadmira essa capacidade e gosta do tempo que ele passa engajado nessa atividade, pois a nica maneira de ele ficarparado. S assim ela consegue fazer outras coisas na casa.Esse tambm o nico momento em que o filho permite que os pais participem de uma atividade com ele. Algumas crianas com autismo so bem agitadas e parecem no ouvir as ordens dos pais. No seguem os comandos,fazem apenas o que de seu interesse, que, geralmente, bastante restrito. Querem sempre as mesmas coisas, domesmo jeito, na mesma seqncia. Elas pulam o tempo todo, correm e se agitam exaustivamente. Alguns paisencontram na internet a descrio dos sintomas de hiperatividade e chegam ao consultrio com o "diagnstico pronto" detranstorno de dficit de ateno e hiperatividade (TDAH). Alguns dizem "eu era assim quando pequeno, no paravaquieto, apanhei muito da minha me".No entanto, a criana com autismo tem uma hiperatividade fsica diferente daquela que portadora de TDAH. De formageral, os movimentos tm por objetivo a auto-estimulao, porm, na grande maioria das vezes, a agitao exacerbada ouexcesso de movimentos no tem funo. O prazer est na agitao em si. A criana com autismo faz o movimento pelomovimento. J no TDAH, cuja caracterstica principal a hiperatividade mental, a criana busca incessantemente seenvolver em atividades diferentes, com propsitos definidos. Nesse caso, a hiperatividade fsica que ela apresenta conseqncia direta da hiperatividade mental.2. A segunda categoria est relacionada a comportamentos disruptivos cognitivos, tais como compulses, rituais erotinas, insistncia, mesmice e interesses circunscritos que so caracterizados por uma aderncia rgida a alguma regraou necessidade de ter as coisas somente por t-las. comum assistirmos a programas de televiso nos quais crianas chamadas de "pequenos gnios" sabem tudo sobre

  • dinossauros, bandeiras e pases, carros, trens, histrias em quadrinhos, clculos, colees ou outros temas, nos deixandoadmirados. Tamanha quantidade de informao e capacidade de memorizao no esperada em crianas to jovens.Isso mostra um padro anormal e restrito de interesses, exagerado em foco e intensidade para crianas daquela idade. Ascrianas com autismo, que possuem essas habilidades espetaculares, tendem a ter prejuzos em outras reas de suasvidas. Elas no conseguem destinar seu tempo e ateno a outros aprendizados, dedicando todas as energias a um nicofoco de interesse. A ateno dada ao tema escolhido ocorre independente de assuntos sociais ou cotidianos, causandoprejuzos fundamentais na socializao.Estudos no campo da neuropsicologia tm demonstrado que indivduos com autismo aparentam ter dificuldades na reacognitiva de funes executivas. Essas funes so um conjunto de processos neurolgicos que permitem que a pessoaplaneje coisas, inicie uma tarefa, se controle para continuar na tarefa, tenha ateno e, finalmente, resolva o problema.Crianas com dificuldades na funo executiva podem ser resistentes mudana de rotinas, tendem a usar a memriadaquilo que j fizeram ao invs de planejar novas aes. Ficam aflitas quando h mais de uma opo para escolher, tmdificuldade para generalizar regras ou informaes e, por isso, prendem-se excessivamente a uma regra escolhida.Muitas crianas com autismo ficam ansiosas com mudanas e tm grandes problemas com transies. Os padresrestritos e repetitivos de comportamento dominam, com freqncia, as atividades dirias de crianas com autismo, ecausam impacto em suas habilidades de aprendizagem e nos desenvolvimentos de comportamentos adaptativos. Cadu era um garoto brilhante, aos 7 anos conhecia todos os automveis do mundo, falava desde a marca at a potnciado motor, sem perder nenhum detalhe. Assistia somente aos programas sobre o tema, vivia lendo manuais de carros,pedia para os familiares comprarem revistas dos veculos em seu aniversrio, e no queria outra coisa. A bab era a nica que percebia que algo estava errado, pois ele no conseguia se trocar, tomar banho e amarrar ossapatos sozinho, tampouco compreendia coisas muito mais simples. O tempo passou e Cadu comeou a se tratar. Foi difcil para os pais receber o diagnstico e entender que aquelecomportamento restritivo do filho no era funcional. medida que o tratamento evolua, ele adquiria novas habilidades,novos amigos e novos interesses; a "genialidade" sobre os automveis foi diminuindo. Carro era s mais um dos seusinteresses, por isso, j no era mais to brilhante no assunto. Seu pai, um engenheiro mecnico bem-sucedido, nosquestionou se perder essa habilidade no seria um problema. Foi quando, em uma reunio de equipe, apresentamosvdeos que mostravam como ele interagia com os amigos antes e depois do tratamento. Ficou claro para os pais que osganhos na socializao e na quantidade de coisas pelas quais passou a se interessar eram mais importantes e humanosdo que o grau de profundidade em um tema especfico para um garoto de sua idade. Existem tambm padres de apego rotina e dificuldade de flexibilizao que podem tornar a vida do indivduodisfuncional, bem como a convivncia familiar. Como exemplo podemos citar o caso abaixo: Rodrigo fazia fudo de acordo com o reigio. Se a consulta estivesse marcada para as nove horas e o mdico atrasasse,ele comeava a chutar a porta do consultrio. Todos os dias tirava os sapatos na hora do almoo, independente do lugarem que se encontrava. Deitava-se pontualmente s 22 horas e, caso estivesse fora de casa nesse horrio, comeava agritar ou chorar. Nunca perdia nenhum episdio de Chaves, por isso tambm precisava estar em casa na hora doprograma, o que praticamente inviabilizava as viagens da famlia. O apego rotina intrigava a todos. Mas uma coisachamava mais nossa ateno: por que tirar os sapatos todos os dias s 13 horas? Durante a conversa, a me de Rodrigo contou que o filho ficou com pneumonia e ela o proibiu de ficar descalo. Umdia, aps sua recuperao, ao chegar da escola perguntou me se podia tirar os sapatos, Ela respondeu: "Agora, sim,

  • hora de tirar os sapatos e ficar descalo", se referindo no ao horrio, literalmente, mas ao perodo ps-doena.Porm, Rodrigo inferiu que s 13 horas hora de tirar os sapatos e, desde ento, fica descalo todos os dias das 13 s14 horas, independente de onde esteja. Ao relatarmos esse caso, o leitor pode ter a impresso de que Rodrigo tinha um problema intelectual, mas na realidadeera um timo aluno e o melhor da turma em matemtica. Trata-se, portanto, de um exemplo tpico de algum compensamento concreto e que tem dificuldade de mudar a rotina, e no de uma pessoa com pouca inteligncia.As pessoas com desenvolvimento "normal" tm grande habilidade em mudar o foco da sua ateno. Enxergam as coisasde forma global e, em fraes de segundos, passam seus olhos por uma imagem e j avaliam todo o contexto. Ao olharpara um determinado rosto, por exemplo, identificam rapidamente o nariz, a boca, dois olhos castanhos, cabelosgrisalhos e montam em seu crebro uma imagem integrada que representa a figura do av.Alguns estudos mostram que pessoas com autismo demoram mais tempo para mudar a ateno de uma coisa para outra,cerca de cinco segundos, em mdia. Isto significa que, quando olham para um rosto, se prendem a uma parte por umtempo muito maior que as outras pessoas, construindo uma imagem cerebral de um conjunto de partes isoladas e no deum todo. Para essas pessoas, aquele no seu av, mas sim um conjunto de nariz, olhos, boca que no formam umaimagem interna fotogrfica completa. Esta constatao tambm faz com que ele perca muitos detalhes docompartilhamento das relaes com as pessoas.Observamos que a partir dos 8 meses de idade os bebs fazem experimentos com o mundo, mexem em coisas, emitemsons, e olham para o rosto dos pais para ver se aquilo ser aprovado ou no, dependendo de suas expresses. As crianascom autismo perdem muito tempo na ao em si, e no conseguem compartilhar a sua ateno para avaliar as situaesexternas. Elas demoram mais tempo para abandonar seu foco de interesse e olhar para os pais. Crescem, portanto,praticando atos sem uma modelagem ambiental correta, o que colabora para futuros comportamentos inadequados.Quando agem de uma forma no aprovada pela sociedade, so repreendidos e, muitas vezes, no entendem por que aquilo errado, pois nunca conseguiram captar as dicas de reprovao.Essas experincias explicam a dificuldade que as pessoas com funcionamento autstico tm em compartilhar einterpretar o outro. de costume as mes olharem para um brinquedo e induzirem o filho a olhar tambm, para queambos possam partilhar a mesma viso. O beb com autismo s v o olhar da me se afastando dele, no percebe ainteno de partilhar, pois ainda est focado naquilo que estava fazendo. Quando a me olha para um cachorrinho e sorri,por exemplo, a criana tenta partilhar, mas quando ela alcana o rosto da me, a expresso dela j mudou. A crianafica, ento, sem perceber nem compreender os sentimentos do outro, pois ter visto o "todo" do rosto da me felizajudaria a perceber o que ela "pensa" daquilo.Atendemos em nossa clnica um mdico com traos de autismo. Hoje, ele j consegue se divertir com as gafes sociaisque comete. Fica acumulando histrias para nos contar nas consultas. Certa vez, quando era mdico no Exrcito,conheceu uma linda enfermeira, com quem trabalhava todos os dias. Os dois se paqueravam e aps o trabalho saam paraconversar. Um belo dia, combinaram um encontro no final de semana e ela chegou com os cabelos soltos e sem a farda.Todas as vezes que haviam se visto, ela estava com os cabelos presos e com a roupa de trabalho. Foi muitoconstrangedor, pois ele no a reconheceu mesmo quando ela se identificou. O encontro foi um fiasco, pois ele noconseguia identificar nela a pessoa em quem estava interessado. Com isso ficou tenso, foi formal demais e nadaromntico...Para quem tem autismo, o detalhe chama mais ateno do que o todo. comum, por exemplo, uma criana, em vez depegar o carrinho e brincar como se estivesse em uma rodovia, ficar apenas girando e olhando a rodinha do brinquedo. Apessoa com autismo sofre de um dficit da capacidade de unificar o mundo percebido. Ela no v o mundo como ummundo, o carrinho como um carrinho, ou uma pessoa como a pessoa, v o mundo em pedaos. A pessoa com

  • funcionamento mental "normal", por sua vez, rene de maneira automtica e inconsciente seu mundo percebido natotalidade. Quando algum s v detalhes e no o todo, chegar at sua casa por uma rodovia uma vivnciacompletamente diferente de pegar um atalho. O detalhe ou a maneira como algo realizado tem mais importncia do queo objetivo final da ao.A partir dessa demora em dividir a ateno com o objeto inteiro podemos entender esses e outros traos caractersticosdo autismo, tais como:

    Necessidade de uniformidade e rotina;Interesses restritos e limitados;Comportamentos repetitivos.

    Todos esses traos parecem ser uma tentativa de paralisar o mundo para torn-lo mais coerente. Como j dissemos, comum crianas com autismo gostarem de trens. Eles andam nos trilhos, tm uma continuidade, a brincadeira previsvel. Desta forma, elas conseguem se divertir sem surpresas ou desconfortos.E, assim, vivem num "mundinho" de comportamentos s delas. Alguns acreditam que pessoas com autismo so atradaspara seus mundos singulares, mas, na realidade, elas no tm escolha. Temos clareza, por nossa experincia, de queelas no so atradas, so "trancadas" em seus "universos" repletos de restries, mas compreensveis e seguros parasuas vivncias solitrias. Para entend-las melhor, convm dar uma espiada no seu mundo interno, comeando pelocrebro. Este ser o foco do prximo captulo.

  • Muitas obras tentam explicar cientificamente ou, s vezes, at de maneira bem-humorada, as diferenas entre homens emulheres. Para o psiquiatra ingls Simon Baron-Cohen, diretor do centro de autismo da Universidade de Cambridge, ocrebro feminino seria, em geral, mais bem-adaptado para o mundo social, mais ligado aos sentimentos e emoes. J omasculino busca sempre uma razo para cada ao e, nesse sentido, est mais envolvido com o mundo lgico, com asregras por trs do funcionamento dos sistemas.Desde pequenos os garotos se identificam com as reas relacionadas a mecnica, eltrica ou hidrulica. Para eles, levaro carro a um mecnico com seu pai um passeio e tanto! Entre os programas prediletos dos meninos esto aqueles emque vo ao lava-jato com seu pai. Desmontar (destruir!) os brinquedos prtica constante da molecada, que tentaentender o funcionamento de tudo: "Pai, como o avio voa?, como o relgio funciona?, por que os prdios no caem?, oque tem dentro da televiso?" Buscar respostas para essas e outras questes semelhantes uma forma saudvel deentender a lgica do mundo.Alguns garotos com esse interesse especial, quando entram na escola, rapidamente se identificam com a matemtica. Opai, orgulhoso, fala de boca cheia e peito estufado que o filho vai ser engenheiro. O raciocnio concreto, a identificaocom as cincias exatas e a capacidade de trabalhar com os nmeros acompanham os garotos desde muito cedo. Para darbase a essa constatao, s lembrarmos a engenharia: quantas mulheres freqentam esse curso? Embora o nmerotenha crescido nos ltimos anos, elas ainda so minoria. claro que as garotas tambm so curiosas nessas reas, bemcomo os garotos se interessam pela magia das cincias humanas, porm, o crebro masculino tende a ser mais racional,explicitamente pragmtico e sistemtico por questes biolgicas.As diferenas so visveis desde a primeira infncia. Os garotos constroem brinquedos, improvisam rampas para seuscarrinhos, buscam alternativas e argumentos para atingirem seus objetivos. As garotas utilizam a intelignciaemocional: so mais criativas nas brincadeiras de "faz de conta", se imaginam mames a ninar bonecas, usam seu"charme" para conquistar os pais, so dceis, afetivas, e se engajam nas artes. Querem ser bailarinas, mdicas,professoras e, na fase adulta, do um "banho" nos homens no quesito capacidade de interpretar e perceber o mundo. O"sexto sentido" feminino nada mais do que a percepo aguada do ambiente e de suas implicaes. Por isso, aquelavelha histria "de que corao de me no se engana" verdade cristalina. Para os garotos, um conselho: no tentemenganar suas mes ou ser mais espertos do que elas s porque se consideram perfeitos exemplares do sexo masculino;elas so rpidas na arte de descobrir e perceber suas "mancadas"!As pessoas com autismo tambm "falham" na arte de entender questes simblicas das relaes sociais. Muitas vezes,algumas "mancadas" que os homens do so bastante parecidas com as gafes cometidas por pessoas com funcionamentomental autstico. Abaixo relatamos um exemplo tpico de um homem com traos de autismo e suas dificuldades naconvivncia familiar: A cena comea em um domingo de manh, beira da praia, com direito a tapete vermelho, famlia e amigos reunidos,padre brincalho, uma noiva singela e um noivo feliz. o dia do casamento de Michael. O comentrio geral: jamaispensaram que Michael um dia fosse se casar. Seu grande amor sempre foi a computao. Quando criana, ele eratimo em matemtica e clculos e, na adolescncia, passou a se identificar com a informtica. Antes dos 20 anos jera programador de sistemas em uma grande empresa. Certa vez, ao prestar servios, conheceu a jovem publicitriaMarina, com quem se casou. Ele sempre foi um pouco metdico, s falava de computadores, no dava brechas. Mastinha qualidades que Marina admirava: era pontual, sincero, nunca mentia ou enganava as pessoas. Quase nuncabrigavam, se divertiam com muito pouco e todos os finais de semana iam ao cinema. Michael sempre dizia: "Sbado dia de pizza e cinema." Marina entendeu que Michael era rgido com rotinas, e ela nem cogitava mais tentar mudar aprogramao. Uma histria que ficou emblemtica nos remete ao incio desse casamento: Michael sempre foidesatento e vivia perdendo ou esquecendo coisas. Em uma sexta-feira chuvosa, resolveu ficar at mais tarde no

  • trabalho para no pegar trnsito. Algumas horas depois, Marina ligou e perguntou o que havia acontecido, pois ele seesquecera de busc-la no trabalho. Michael, ingenuamente, respondeu que preferiu trabalhar para evitar o trnsito,Marina ficou uma fera e disse o seguinte, antes de bater o telefone: "Michael, estou cansada, molhada e furiosa comvoc. No quero te ver na minha frente!" Ele ficou tenso, no sabia o que fazer, mas, como ela disse que no queria v-lo, resolveu dormir no trabalho. De madrugada, Marina, preocupada e ainda mais irritada, ligou novamente. EMichael, perplexo, explicou: "Mas se voc no quer me ver na sua frente, como posso voltar para casa?" Ela, que jconhecia o funcionamento mental do marido, lhe pediu desculpas e explicou, calmamente, a situao. Michael noscontou que ficou bem aliviado, mas at hoje encara aquilo como uma grande descoberta, Entendeu que as mulheres nemsempre falam aquilo que querem: em certas ocasies, costumam dizer "no" quando querem dizer "sim". Inmeros so os conflitos e mal-entendidos pela dificuldade de comunicao entre o crebro feminino e o crebromasculino. Quando um homem se casa, ele percebe que algumas coisas no so to claras quanto gostaria que fossem.Na infncia, quando ele faz algo errado sua me lhe diz: "Filhinho, no no!" Assim, automaticamente, ele obedecepara no ficar de castigo. Depois de casado, tudo muda: percebe que "no" e "sim" podem estar inseridos em contextosbem mais amplos e significar exatamente o contrrio, ou serem apenas relativos.Embora o crebro masculino seja mais concreto, precisamos separar quais comportamentos so autsticos e quais so"coisas de homem". Marina, por exemplo, ouviu muitas vezes de amigas e familiares expresses do tipo: "homens soassim mesmo". Porm, as dificuldades de Michael vo alm do comportamento de crebros masculinos. Ele possuivrias caractersticas de autismo, mas num grau muito leve. Em momento algum ele consegue se colocar no lugar damulher e entender suas razes. Ele apenas aprendeu que no deve tomar decises que a envolvam sem consult-la, masno entendeu exatamente as sutilezas do que isso significa.E, aos homens prestes a se casarem, a vai a dica de boa convivncia matrimonial: vocs tero que "adivinhar", a cadadia, o que suas parceiras esto pensando, sentindo e quais so as suas reais intenes quando dizem simplesmente "bomdia"!Homens, de forma geral, perdem, de longe, para as mulheres, nas questes relacionadas s habilidades sociais; tmmuito mais dificuldade em perceber o quanto seus atos influenciam no ambiente ou no sentimento das pessoas. Elespodem agir de maneira grosseira ou at magoar os outros, sem se darem conta. So mais rgidos e controladores, poucohbeis na arte de comunicao e, muitas vezes, compartilham momentos apenas quando so do seu interesse. Oshobbies masculinos tendem a ser mais restritos, como futebol, carros, dinheiro, por exemplo. Eles no conseguem ter apercepo correta de como as mulheres podem se divertir com um simples ch de beb ou qual a funo de um detalheou enfeite que no serve para nada!Em pessoas com traos de autismo, este crebro masculino ainda mais evidente. De fato, o pesquisador ingls SimonBaron-Cohen levanta a hiptese de que o crebro autstico seria um crebro predominantemente masculino, comoresultado de uma exposio maior testosterona, o hormnio masculino, durante a gestao. Estudos genticos, apesarde muito importantes, ainda engatinham nas elucidaes da causa do autismo e provvel que a tese do excesso detestosterona no explique todos os casos de autismo existentes no mundo. Mas tudo indica que isso pode ser um dosfatores nessa colcha de retalhos.Estatisticamente falando, o autismo acomete mais meninos do que meninas, numa proporo de 4:1. A sndrome deAsperger, um quadro do espectro autista de alto funcionamento, dez vezes mais freqente nos meninos. O que faz comesses transtornos sejam primordialmente do sexo masculino. Em muitas famlias observamos que avs, pais e filhoscompartilham esses traos, como podemos verificar no caso abaixo: Fernanda e Carlos, um jovem casal, estavam desolados. O filho Raul, mesmo nome do av, falou sua primeira palavrae, para a surpresa deles, no foi papai nem mame, mas sim "trem", perfeitamente pronunciada. O motivo da angstia

  • era que a criana fosse igual ao av. Carlos nos contou que o seu pai s sabe falar de trens e desde pequeno ele sfalava em trens, brincava e desenhava trens e, na escola, at ganhou o apelido de Piu, pois sempre fazia osbarulhinhos do trem: Xique xique...piu. Aos 15 anos, ele havia decorado toda a malha ferroviria do pas e, maistarde, conseguiu um emprego na CPTM. Passava dia e noite manobrando vages, nunca faltou ao trabalho e parecia nose cansar. Teve poucos amigos, no gostava de brincadeiras, detestava abraos e nunca pegou os filhos no colo.Acordava todos os dias pontualmente s cinco horas da manh, tomava meia xcara de caf, comia po puro, colocavasua camisa branca, cala preta e saa para o trabalho. Tudo tinha que ser do mesmo jeito, todos os dias, nada podiaatrapalhar sua rotina. Partimos, ento, para a histria do pequeno: Fernanda no teve nenhuma intercorrncia na gestao, Raulzinho nasceucom 3 quilos, foi amamentado at os seis meses e nunca deu muito trabalho: no chorava durante a noite, sempre foicalmo. Ele no gostava muito de colo e, quando iam peg-lo, ele no levantava os bracinhos como fazia a irm maisvelha. Segundo os pais, tambm no olhava nos olhos de ningum e parecia tmido como o av. Eles nos relataramainda que, conforme crescia, foi ficando mais agitado e, quando ocorria alguma mudana na rotina, chegava a pular deum lado para o outro: "hiperativo", como dizia sua professora. Em consultas seguintes, quando finalmente conhecemos Raulzinho, percebemos sua dificuldade em olhar nos olhos eque a coordenao motora tambm no era das melhores. Seus interesses eram restritos: gostava somente de umdeterminado desenho animado e era capaz de reproduzir frases inteiras de um captulo. Notamos que sua linguagemera bem desenvolvida, mas falava sempre na terceira pessoa quando chegava ao consultrio: "Ele quer papel",referindo-se a ele prprio. Os pais se tranqilizaram quando perceberam que Raulzinho no se interessava por trens,mas sim por dinossauros. A me nos contou certa vez que havia feito at promessa para que ele no fosse "vidrado"em trens como o av. Tempos depois fizemos a hiptese diagnstica de sndrome de Asperger, em que a criana tem inteligncia normal,mas com algumas dificuldades de interao social e de comportamento.Um crebro masculino no precisa estar exclusivamente em um homem. Existem homens com crebros mais femininose mulheres com crebros mais masculinos; todavia, estas pequenas diferenas no trazem nenhuma dificuldade na vidadessas pessoas, pois tm suas habilidades sociais totalmente preservadas. Homens podem ter excelentes donsartsticos, enquanto mulheres podem ser exmias em cincias exatas. No entanto, na mdia populacional, homens tmmais caractersticas do crebro masculino e mulheres, mais do feminino. Ou seja, os homens tm tendncia a um desviopara um crebro mais lgico, enquanto as mulheres, para um crebro emocional.Seja l como for, tanto mulheres quanto homens que apresentam um crebro com funcionamento autstico (consideradoum crebro extremamente masculino) tero suas habilidades sociais prejudicadas. Isto um marco do autismo. Porm,existe uma hiptese de que as meninas com traos leves de autismo conseguem "mascarar" melhor suas dificuldadespela predisposio feminina de serem melhores na linguagem e na inteligncia social. Isto , outras aptides tpicas docrebro feminino compensariam sua gentica autstica. No sabemos ainda. Talvez, os casos leves no cheguem a sertratados e, por isso, as meninas quando so diagnosticadas com autismo aparentam ter um quadro mais grave do que osmeninos. Precisamos estar mais atentos a elas.O caso de Camila, uma garota de 12 anos, ilustra bem o quanto essa caracterstica to peculiar das mulheres podesuperar, parcialmente, seus obstculos sociais: Camila, desde pequena, apresenta alguns tragos de autismo, mas seu jeito meigo e inteligente impediu que recebesse odiagnstico correto. Foi tratada como desatenta, mas na verdade seus problemas vo muito alm. Realmente, ela tempouco foco de ateno quando se engaja numa atividade, precisa sempre de algum para redirecion-la. No consegue

  • pular com um p s, arremessar uma bola e correr livremente, o que mostra suas dificuldades na coordenao motorafina. Apresenta algumas dificuldades de socializao; s vezes no compreende completamente as atividades ouconversas com as outras meninas e parece bem mais ingnua e infantil que as "mocinhas" da sua idade. Quando estem grupo fica em silncio, tenta captar as reais intenes das pessoas, o que nunca lhe pareceu uma tarefa fcil,Possui uma srie de qualidades: prestativa, gentil e muito educada com todos. Esse "jeito de ser" ajuda Camila amanter as amizades, pois sempre querida e elogiada pelos pais das amigas, Ela consegue driblar suas dificuldades eutilizar outras habilidades para uma boa convivncia social, fazendo bons amigos. Seus traos de autismo ficam de ladoquando comparados ao conjunto de qualidades que ela usa a seu favor. Camila a prova incontestvel de que o sexo frgil tem l suas vantagens, porm, no resta dvida de que, se ela no fortratada adequadamente, os desafios atuais "camuflados" podero se refletir de forma acentuada na vida adulta. Naverdade, tanto homens quanto mulheres correm o risco de no receber o diagnstico correto, porque o autismo existe numespectro - desde caractersticas isoladas que no chegam a fechar um diagnstico at o autismo grave, ou clssico, que mais facilmente reconhecido. Isso pode confundir a populao, que acaba s enxergando o autismo quando ele aparecenum grau mais exacerbado. No prximo captulo, veremos como o autismo pode se manifestar e explicaremos o conceitodo espectro autista.

  • Quando jogamos uma pedrinha em um lago de gua parada, ela gera vrias pequenas ondas que formam camadas maisprximas e mais distantes do ponto no qual a pedra caiu. O espectro autista assim, possui vrias camadas, mais oumenos prximas do autismo clssico (grave), que poderia ser considerado o centro das ondas, o ponto onde a pedraatingiu a gua. Esse espectro pode se manifestar nas pessoas de diversas formas, mas elas tero alguns traossimilares, afinal todas as ondulaes derivam do mesmo ponto.O que precisa cair por terra que o autismo tenha somente uma forma. comum ouvirmos de profissionais: "Ele notem autismo, pois olha nos olhos." Isso um mito, muitos olham e fazem muito mais. No se trata de um tudo ou nada,mas de uma variao infinita que vai desde traos leves, que no permitem fechar um diagnstico, at o quadro clnicocomplexo com todos os sintomas.Imagine que o autismo funcione como um espectro de cores, que iria do branco at o preto, passando por todos os tons decinza. As variaes transitam pela trade de deficincias nas reas social, de comunicao e de comportamento, masnem sempre todas essas dificuldades aparecem juntas no mesmo caso. H pessoas com comprometimentos sociais, massem problemas comportamentais; e h casos de disfunes comportamentais sem atraso de linguagem. Em todos elesaparecem, em maior ou menor grau, as dificuldades na interao social.Podemos subdividir o autismo em categorias:

    Traos do autismo, com caractersticas muito leves;Sndrome de Asperger;Autismo em pessoas com alto funcionamento;Autismo clssico, grave, com retardo mental associado.

    No lado mais leve do espectro (a cor branca ou o tom mais claro de cinza), encontramos pessoas com apenas "traos" deautismo, que no teriam todos os comprometimentos, mas apenas algumas dificuldades por apresentarem certascaractersticas autsticas. E muito comum percebermos esses traos em irmos e pais de crianas com autismo. Baron-Cohen, em um estudo de 2001, encontrou traos de autismo em matemticos e cientistas. Nessas pessoas, os sintomasdo autismo provavelmente se configuram mais como uma vantagem do que como um problema. Muitos indivduos ligadosa informtica e jogos eletrnicos tambm apresentam caractersticas do espectro autista. O caso de Jonas, umadolescente de 16 anos de idade, ilustra uma pessoa que se encontra no polo mais brando dos sintomas. Jonas sempre foi um garoto exemplar, bom filho, muito estudioso, nunca desobedecera a seus pais, nem falavapalavres. Era aficcionado por videogames e se reunia com os amigos durante toda a infncia para jogar. No rarasvezes era o campeo do dia e considerado "o fera" dos jogos. Suas habilidades faziam com que sempre tivessecoleguinhas em sua casa. Sua me sempre foi muito receptiva e fazia questo de tratar muito bem a todos. Ela gostavade ver sua casa repleta de crianas, pois assim tambm sabia com quem o filho andava. Na adolescncia, os amigospassaram a ter outros interesses e j no convidavam mais o amigo para ir ao shopping, ao cinema ou s baladas parapaquerar, Jonas comeou a ficar chateado e se sentir excludo do grupo. Tentava se aproximar, mas ganhou o apelidode "nerd" e se sentia completamente deslocado. Certo dia, ouviu um dos garotos comentando que no o chamaria parasair, pois ele falava muito alto, no tinha outro assunto exceto o videogame e os envergonhava na frente das garotas.Jonas chegou em casa arrasado e, a partir disso, a vida foi perdendo a graa, Comeou a perder o apetite, s queriadormir, chorava e no sentia mais prazer nas coisas de que gostava. Foi encaminhado a um psiquiatra, que odiagnosticou com depresso e imediatamente comeou com tratamento medicamentoso e terapia. O psiquiatra no

  • havia notado seus traos de autismo e s tratava os sintomas depressivos, sem notar as causas de suas reaisdificuldades. J a terapeuta passou a conhec-lo melhor e percebeu que os entraves estavam em suas inaptides sociaise que, se no as tratasse corretamente, Jonas continuaria se frustrando nos contatos sociais e voltaria a ficardepressivo. Jonas no teve atraso no desenvolvimento da linguagem, no tinha dificuldade em olhar nos olhos e nem os movimentosestereotipados caractersticos das pessoas com autismo. Mas suas dificuldades em interpretar as dicas sociaisassociadas aos seus interesses restritos, principalmente pelo videogame, o impediam de manter amizades, ocasionandogrande sofrimento. Assim, cuidar dos indivduos que apresentam apenas traos de autismo pode ser to importantequanto cuidar das crianas com autismo clssico, uma vez que a identificao precoce desses sintomas e o tratamentodos mesmos podem evitar prejuzos que se refletem por toda a vida.Na prxima gradao da escala, um tom de cinza mais escuro que o anterior, encontramos os indivduos com sndromede Asperger, que possuem um conjunto de sintomas de prejuzos na socializao. Mantm-se solitrios em suasatividades, tm dificuldade em compartilhar idias e interesses, dificuldade em entender o que o outro est sentindo oupensando. Os interesses so restritos, ou seja, focam em alguns temas. Apresentam rotinas e rituais, inclusive nodiscurso, e formas peculiares de conversar. s vezes parecem muito "certinhos", usam palavras incomuns para a idade.Mesmo com a fala preservada, a comunicao pode ser "estranha" por no entenderem frases de duplo sentido ouentrelinhas da conversa. Muitas vezes, perguntam coisas de que j sabem a resposta, como, por exemplo, "Que horas opapai vai chegar?", sendo que eles mesmos respondem "s sete horas". Usam as perguntas no como um dilogo paradescobrir aquilo que no sabem; acham que a pergunta existe para ser respondida corretamente. As pessoas com essasndrome no apresentam atraso no desenvolvimento da linguagem e nem retardo mental, mas podem apresentardificuldades no aprendizado, como o pequeno Adriano, que, apesar de muito esperto, demorou para ser alfabetizado. Adriano, desde pequeno, tinha dificuldade em olhar nos olhos e parecia ser fascinado por algumas coisas. Tevedesenvolvimento normal da fala e era tagarela, mas falava sempre dos mesmos assuntos, geralmente relacionados aanimais. Era identificado como "tmido", pois preferia brincar sozinho e evitava as pessoas, detestava quando tocavamnele. Os pais s notaram suas reais dificuldades aos 6 anos de idade, na fase de sua alfabetizao. Estava atrasado emcomparao ao restante da turma e era punido com freqncia pela professora e por seus pas. Estes, por sua vez, noentendiam o que estava acontecendo, j que Adriano estudava na melhor escola do bairro, Todas as crianas da sala jsabiam ler seus nomes, ao chegarem sala tinham que buscar uma caixa de material onde estava escrito o nome decada uma delas, mas Adriano ficava desesperado, pois no conseguia reconhec-lo. Lembra que levava um pedao depapel e comparava letra por letra para achar seu material, enquanto as outras crianas identificavam seus nomes pela"figura" ou pela imagem que as letras formavam. Sentia-se interiorizado e ficava tenso, com medo de levar bronca, oque fez com que se isolasse ainda mais das pessoas. Com o passar do tempo, Adriano fez acompanhamento pedaggicoe fonoaudiolgico e aprendeu a ler por mtodo silbico e fnico. Alfabetizou-se completamente com 9 anos e, a partirda, deslanchou no aprendizado, Parecia que os estudos eram um hiperfoco e passou a ter prazer em aprender, Hoje mdico, formado por uma universidade estadual, uma das mais concorridas do Brasil. Comeou a fazer terapia eescolheu uma rea da medicina na qual no precisasse ter muito contato com pessoas. At hoje lembrado pelosamigos com o apelido de "Asperger", pois, nos estgios da psiquiatria que fez durante a faculdade, todos oidentificavam com a sndrome, Lida muito bem com o apelido e, quando quer se identificar com algum pelo telefone,diz "Aqui o Adriano, Asperger!", e todos se lembram dele. especialista em exames de imagens e bastanteconceituado. Provavelmente, no momento da alfabetizao, Adriano prendia-se nas partes ao invs de observar o global, isto , ficavapreso em cada letra sem ter o entendimento de que esta fazia parte de um "todo" integrado, a imagem do seu nome.

  • Com acompanhamento especializado, o indivduo com sndrome de Asperger pode ser treinado a lidar com taisdeficincias, inclusive para que possa treinar e desenvolver seus talentos inatos. No tratamento dos indivduos comsndrome de Asperger, importante pensarmos no apenas no que est errado, mas identificarmos as reas em que elesapresentam mais habilidades, para que possamos montar um planejamento teraputico a fim de que essas habilidadessejam aguadas e canalizadas corretamente.Ainda mais prximo do tom de cinza mais escuro do espectro esto os indivduos de alto funcionamento com autismo.Podem ser caracterizados como indivduos que no apresentam dficits cognitivos, ou seja, retardo mental, mas quetiveram atraso na linguagem, diferentemente dos indivduos com sndrome de Asperger. Apresentam ainda dificuldade deinterao social, dificuldades comportamentais, como estereotipias, por exemplo. Possuem boa inteligncia e utilizamseus recursos cognitivos para superar as dificuldades advindas do autismo. Na vida adulta, muito comum os indivduosde alto funcionamento com autismo serem confundidos com indivduos com sndrome de Asperger e, na realidade,realmente apresentam um comportamento muito parecido. Por isso, o tratamento precoce dessas crianas pode fazer comque elas transitem dentro do espectro no sentido de alcanarem os sintomas mais brandos, quando tratadas corretamente.Existe uma proposta da Associao de Psiquiatria Americana (APA) para que a sndrome de Asperger deixe de serclassificada como um transtorno distinto e passe a ser um autismo de alto funcionamento, devido s suas semelhanas.Provavelmente isso ocorrer na prxima edio do DSM (Manual diagnstico e estatstico dos transtornos mentais).Porm, at l ainda precisamos classific-la separadamente, muito embora esteja includa no espectro autista.Abaixo relataremos o caso de Marcelo, que tem autismo de alto funcionamento, mas que comeou a falar apenas aos 4anos de idade. A me de Marcelo ficava muito preocupada quando percebia que o filho no olhava quando chamado e, alm de ele aindano falar com 4 anos de idade, no compartilhava objetos e experincias com sinais no verbais, como apontar ou levaralgo para mostrar a ela. Apontava apenas quando queria alguma coisa, na inteno de conseguir o objeto ou o alimento,mas nunca para que outra pessoa olhasse porque aquilo era interessante. O pai dizia que a me era exagerada, que eraansiosa demais e estava vendo coisas onde no existiam. Nas consultas com o pediatra, a me relatava suaspreocupaes com espectro autista e o mdico dizia: "A senhora no sabe o que uma criana com autismo." Imagina,o seu filho bonzinho, carinhoso. Criana com autismo fica fazendo movimentos repetitivos e no tem afeto. Nessahora, o pai de Marcelo se unia ao mdico e dizia que era isso mesmo, que crianas com essa disfuno no vivem emsociedade, vivem em instituies, so agressivas e no saem do seu mundo, Seu filho no era assim, era tranqilo,brincava com seus trenzinhos e adorava assistir televiso com a famlia. Mas a me ainda no se tranqilizava, poissentia que tinha algo mal-resolvido. Ao chegarem nossa clnica comeamos a tratar os sintomas e hoje Marcelo vivebem, conversa, consegue brincar, se divertir, compartilhar e est iniciando a alfabetizao. J melhorou muito emrelao aos problemas de socializao, olha nos olhos, consegue aprender o contedo escolar sem necessidade deadaptao do material. No tem nenhuma dificuldade cognitiva. No caso de Marcelo, observamos uma pessoa com diagnstico de autismo com alto funcionamento, pois, apesar dasdificuldades de interao social e do atraso de linguagem, Marcelo no apresenta retardo mental e consegue aprendercom facilidade. Hoje independente nas atividades bsicas da vida diria, tal como escovar os dentes, ir ao banheiro,tomar banho. Nesse caso, a insistncia da me pela busca do diagnstico correto fez muita diferena para que ele fossetratado corretamente ainda pequeno, o que fez com que ele atingisse rapidamente o mximo do seu potencial.Infelizmente, como ilustra a histria anterior, a viso que a maioria das pessoas ainda tem sobre autismo de crianasinstitucionalizadas, que no convivem em sociedade, no tm afeto, a ponto de qualquer um saber do que se trata e fazero diagnstico ao olhar para elas. Porm, provavelmente, neste momento, existe uma srie de pessoas com autismoconvivendo com suas famlias, em seus trabalhos ou escolas de maneira razoavelmente funcional.

  • Na extremidade desse espectro, no tom que mais se aproxima do preto, est o autismo grave, ou o autismo associado aoretardo mental e a dificuldades de independncia, o que geralmente chamado de autismo clssico e, muitas vezes, como as pessoas imaginam algum com autismo. Crianas com este diagnstico geralmente apresentam grandedificuldade na interao social. No fazem contato visual, no conseguem desenvolver relacionamentos apropriados e notentam compartilhar interesses ou brincadeiras com as outras pessoas. Muitos acabam ficando isolados em seu cantinhoe no desenvolvem a linguagem adequadamente. Podem ter grandes dificuldades em se comunicar, mesmo que seja parapedir coisas do seu interesse. Apresentam movimentos repetitivos como balanar o corpo e agitar as mos. Muitosdesses indivduos so vistos em campanhas e filmes na televiso. Podem necessitar de cuidados por toda a vida e cadahabilidade deve ser treinada de maneira minuciosa, como nas reas de higiene pessoal e auto-cuidados. O autismoclssico um problema de sade grave que requer interveno muito precoce e, provavelmente, por toda a vida. Abaixorelatamos um caso emblemtico. Marisa foi uma garota muito esperada. Nasceu aos sete meses e precisou ficar quase um ms na incubadora. Desdepequena no gostava muito de contato fsico e ficava irritada at para mamar, Os pais perceberam que ela nuncachorava, mas tambm no sorria. No olhava nos olhos e nem acompanhava com o olhar os objetos que os paismostravam. Com um ano de idade j andava normalmente, porm nas pontas dos ps. Em alguns momentos os paistinham a sensao de que ela se "escondia" deles e ficava nos cantos da casa balanando o tronco, Nunca falou nenhumapalavra e, quando queria algo, usava seus pais como "ferramenta" pegando-os pelas mos e levando-os at o quequeria. Ao entrar na escola, com 3 anos, comeou a apresentar crises de agitao e a se morder. A nica coisa que aacalmava era ficar sentada na frente do ventilador. Teve grandes dificuldades para a retirada das fraldas e precisou demuito treino para utilizar o banheiro. Hoje, com 11 anos de idade, permanece em tratamento intensivo e aprendeu a secomunicar minimamente atravs de um sistema de troca de figuras. Algumas crianas como Marlia, que apresentam autismo clssico, necessitam de um grande treino para a realizao detarefas simples, como comer, se trocar, e outras atividades do dia a dia. Nem sempre possvel uma incluso escolaradequada e podem precisar de escolas especiais.O autismo clssico o mais conhecido e, geralmente, as pessoas associam diretamente a palavra autismo a estepadro, ignorando toda a gama de padres de funcionamento autstico. A diviso do autismo em um espectro tem aimportncia fundamental de identificarmos as vrias apresentaes desse grupo de sintomas, sendo que mesmo osindivduos com os traos mais leves necessitam de suporte e cuidados desde cedo. No se trata de "curar" o autismoquando precocemente identificado, mas sim de dar maiores chances de reabilitao para essa criana.O professor de psiquiatria da infncia e adolescncia da Universidade de Gotemburgo na Sucia, Christopher Gillberg,trazido ao Brasil pela AMA/SP (Associao de Amigos do Autista), apresentou uma palestra em 2005 na qual afirmouque os sintomas do espectro autista nunca aparecem isoladamente, ou seja, sempre esto associados a outros problemas,tais como hiperatividade, desordens de ateno, retardo mental, epilepsia, dentre outros.Acredita-se que 0,6% das pessoas, isto , cerca de um a cada 166 indivduos poderia ser enquadrado no espectro doautismo. Hoje em dia, cada vez mais buscamos diagnosticar o autismo precocemente ou tratar aquelas pessoas que,mesmo sem um diagnstico completo, apresentam traos que prejudicam sua convivncia social. Se pensarmos em umproblema fundamental ou essencial nas pessoas com autismo, teremos a socializao como ponto de partida para todo otratamento. Isso no significa que elas sejam, necessariamente, isoladas, no carinhosas ou agressivas. Enquantoalgumas crianas podem ter dificuldade de linguagem e dificuldade para ler ou escrever, outras podem ter altssimofuncionamento nessas funes. Enquanto alguns podem ser hipersensveis a tecidos de roupas, outros podem no ternenhuma sensibilidade sensorial alterada. Alguns podem ser isolados e outros excessivamente afetivos.H algumas dcadas, quando o diagnstico de autismo tendia a ser mais restritivo, era praticamente impossvel de se

  • imaginar uma pessoa com autismo casada, com filhos e administrando uma famlia, pois at aquele momento umapessoa s era identificada com autismo se tivesse os sintomas graves. O autismo era visto nica e exclusivamentecomo esteretipo do indivduo grave e institucionalizado. Hoje em dia, percebemos nitidamente que pessoas com traosde autismo esto na sociedade e podem ser divertidas e brilhantes. Como exemplo, podemos contar a histria de um denossos pacientes. A me de Gilberto o trouxe para nossa clnica aos 5 anos. Ele j tinha o diagnstico de sndrome de Asperger feito poroutro profissional. Necessitava de tratamento, pois tinha dificuldades comportamentais importantes: rotinas muitorgidas, no conseguia flexibilizar nenhuma alterao no seu dia e s comia a mesma coisa. Se algo sasse dessepadro ele tinha birras horrveis com gritos e agitao. A me explicou que estava com muitas dificuldades em suacasa, pois seu marido no aceitava o diagnstico, achava que tudo isso era normal. Solicitamos a presena do pai emuma reunio com a equipe. Na reunio, ao explicarmos o diagnstico e descrevermos o comportamento de Gilberto,percebemos que o pai comeou a ficar tenso e balanar o tronco para frente e para trs, emitindo um som (Mmmm,mmmm). A equipe, j acostumada com esses casos, entendeu naquele momento que o pai tambm tinha traos deautismo.Em conversas seguintes a me explicou que o pai era um excelente marido, um bancrio de sucesso, e que apresentavamovimentos repetitivos, como o que havamos observado na reunio. A me contou que achava normal, pois acreditavaque eram manias ou tiques nervosos. Orientamos que o pai tambm se beneficiaria de terapia cognitivo-comportamental, o que lhe trouxe timos resultados. Comeou a entender o seu funcionamento e a se automonitorar.No teve mais exploses de raiva quando os planos saam da rotina. Passou a entender que precisava se colocar nolugar dos outros o tempo todo, e, apesar de isso no ser to simples, poderia aprender e praticar nos treinos comtcnicas comportamentais especficas. Caso contrrio poderia passar por egocntrico, algo que nunca foi. Otratamento de pai e filho ajudou a famlia a ter uma vida mais tranqila e socivel. Sabendo da importncia dasocializao para Gilberto, o pai tambm se esforava para freqentar clubes e festas.O pai de Gilberto passou a vida toda sem um diagnstico, casou-se, teve o filho, trabalha num grande banco em SoPaulo e bem-sucedido. Porm, ele prprio nos contou que colecionou uma srie de frustraes por causa do seu jeito deser, e relata que, se soubesse disso antes, teria evitado muitos problemas.As dificuldades de socializao podem atrapalhar a pessoa durante toda a vida, mas se tornam mais evidentes a partir doincio da adolescncia. Na infncia, as brincadeiras so mais concretas e a amizade pode ser bastante prazerosa apenasdividindo momentos juntos, como jogar bola, videogame ou fazer um passeio com a famlia. Essas dificuldades dehabilidades sociais so mascaradas pela rotina e pelos cuidados dos pais. Na adolescncia, nos tornamos seres cada vezmais sociais, precisamos ser aceitos por um grupo, o que no algo fcil para nenhum adolescente. Para quem est noespectro autista, a tarefa ainda mais rdua e, dependendo do grau, praticamente impossvel. Na vida adulta, asdemandas sociais aumentam, bem como as responsabilidades e presses. Os contatos sociais e a interao interpessoalso importantes para uma carreira de sucesso. As pessoas com traos de autismo podem ser identificadas como tmidasou esquisitas e terem menos oportunidades se no forem tratadas. No entanto, devemos acreditar e insistir desde cedo naevoluo e capacidade das pessoas que se encontram no espectro autista.Quanto mais cedo forem feitos o diagnstico e o tratamento, maior ser a chance de a pessoa no espectro autistaaprender a se socializar e desenvolver as habilidades de comunicao e interao que lhe parecem to difceis. Oprximo captulo apresenta uma viso familiar do autismo, pois os pais so os primeiros a conhecer profundamente umacriana e, assim, podem reconhecer precocemente os sinais e sintomas de um funcionamento autstico.

  • Os pais compraram roupas novas, vestiram o garoto todo de branco e o levaram para a festa de Ano-Novo na casa dosavs. meia-noite fizeram seus pedidos: que o