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CÃes & Cia • 403 64 Mundo das Aves Brasil: o país das aves Q uantas espécies de aves ocorrem no Bra- sil? Onde cada espécie ocorre? Essas são perguntas básicas, quase triviais. Embora seja um questionamento simples, conseguir resposta satisfatória é, até hoje, tarefa das mais complicadas. Desde o final do século XIX, quando os ornitólogos puderam estudar o material co- letado sistematicamente no Brasil pelos pri- meiros naturalistas (logo após a abertura dos portos às nações amigas, em 1808), são feitas tentativas para chegar a um número que dê a real noção da riqueza de aves em nosso país, além de delimitar corretamente a distribui- ção geográfica delas. E, a partir dos números apresentados nessas iniciativas pioneiras, e que são continuamente avaliados até hoje, podemos verificar que estamos ainda distan- tes de um número que possa ser considerado como “final” ou “definitivo”. Quantas são? Antes de continuar, mais duas perguntas: qual a utilidade de se saber quantas espécies ocorrem no Brasil e como se distribuem? Por que os números mudam? A informação de quantas espécies ocorrem em determinado local é importantíssima, não só sob o ponto de vista acadêmico-científico ou do conhecimento básico sobre o patrimônio natural de uma região qualquer, mas também é instrumento muito re- levante para a elaboração de políticas públicas que envolvam o uso e a conservação dos recur- Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA Quantas espécies de aves ocorrem no Brasil? Essa pergunta vem desafiando os ornitólogos há mais de dois séculos e os números sempre divergem entre os autores. Há um consenso de que o Brasil faz parte do seleto grupo de países megadiversos, e a riqueza de espécies é, sem dúvida, muito alta. Mas será que já conhecemos todas as espécies de aves do Brasil? Soldadinho-do-Araripe (Antilophia bokermanii): descoberta das mais espetaculares dos últimos anos, hoje é uma das espécies de ave brasileira mais bem conhecidas e monitoradas Rafael Bessa sos naturais. Saber, com precisão, quantas são as aves brasileiras e onde ocorrem é vital para, por exemplo, os agentes públicos tomarem decisões da maneira mais responsável e bem embasada possível sobre modificações na pai- sagem natural. As implicações decorrentes da precisão dessas informações são muito impor- tantes. Apesar disso, os números vêm mudando constantemente, bem como o conhecimento sobre a distribuição geográfica das espécies. Inventário mutável As primeiras iniciativas para inventariar a avifauna brasileira datam do final do século XIX, quando o grande zoólogo suíço Emílio Goeldi listou 1.680 espécies de aves presentes no Bra- sil. alguns anos mais tarde, em 1907, Hermann von Ihering e o filho dele, Rodolfo, anotaram um número ligeiramente menor: 1.567 espécies. as últimas contagens, feitas pelo Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO), apontam para 1.832 espécies de aves no Brasil, o que faz do nosso país o segundo mais rico em aves no planeta, ficando atrás apenas da Colômbia, que possui cerca de 1.850 espécies de aves. as 1.832 espécies que ocorrem no Brasil formam, sem dúvida, um número extraordi- nário, correspondente a quase 20% do total mundial. Mas, respondendo à segunda per- gunta do ensaio: por que os números mudam tanto ao longo do tempo? Uma das respostas possíveis é bastante simples – os números mu- dam constantemente porque não lidamos com sistemas estáveis, estanques, como os de um terrário. Aves são animais com alto poder de dispersão proporcionado pelo voo, e muitas delas podem chegar ao território brasileiro de forma acidental. Além disso, a comunidade de ornitólogos e observadores de aves tem se es- truturado cada vez mais nas últimas décadas, o que permitiu visitas contínuas por essas pes- soas a muitas áreas do nosso país, aumentan- do a chance de encontrar novas ocorrências, especialmente nas áreas de fronteira com os

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Mundo das Aves

Brasil: o país das aves

Quantas espécies de aves ocorrem no Bra-sil? Onde cada espécie ocorre? Essas são perguntas básicas, quase triviais. Embora

seja um questionamento simples, conseguir resposta satisfatória é, até hoje, tarefa das mais complicadas.

Desde o final do século XIX, quando os ornitólogos puderam estudar o material co-letado sistematicamente no Brasil pelos pri-meiros naturalistas (logo após a abertura dos portos às nações amigas, em 1808), são feitas tentativas para chegar a um número que dê a real noção da riqueza de aves em nosso país, além de delimitar corretamente a distribui-ção geográfica delas. E, a partir dos números apresentados nessas iniciativas pioneiras, e que são continuamente avaliados até hoje, podemos verificar que estamos ainda distan-tes de um número que possa ser considerado como “final” ou “definitivo”.

Quantas são?Antes de continuar, mais duas perguntas:

qual a utilidade de se saber quantas espécies ocorrem no Brasil e como se distribuem? Por que os números mudam? A informação de quantas espécies ocorrem em determinado local é importantíssima, não só sob o ponto de vista acadêmico-científico ou do conhecimento básico sobre o patrimônio natural de uma região qualquer, mas também é instrumento muito re-levante para a elaboração de políticas públicas que envolvam o uso e a conservação dos recur-

Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA

Quantas espécies de aves ocorrem no Brasil? Essa pergunta vem desafiando os ornitólogos há mais de dois séculos e os números sempre divergem entre os autores. Há um consenso de que o Brasil faz parte do seleto grupo de países megadiversos, e a riqueza de espécies é, sem dúvida, muito alta. Mas será que já conhecemos todas as espécies de aves do Brasil?

Soldadinho-do-Araripe (Antilophia bokermanii): descoberta das mais espetaculares dos últimos anos, hoje é uma das espécies de ave brasileira mais bem conhecidas e monitoradas

Rafa

el B

essa

sos naturais. Saber, com precisão, quantas são as aves brasileiras e onde ocorrem é vital para, por exemplo, os agentes públicos tomarem decisões da maneira mais responsável e bem embasada possível sobre modificações na pai-sagem natural. As implicações decorrentes da precisão dessas informações são muito impor-tantes. Apesar disso, os números vêm mudando constantemente, bem como o conhecimento sobre a distribuição geográfica das espécies.

Inventário mutávelAs primeiras iniciativas para inventariar a

avifauna brasileira datam do final do século XIX, quando o grande zoólogo suíço Emílio Goeldi listou 1.680 espécies de aves presentes no Bra-sil. alguns anos mais tarde, em 1907, Hermann von Ihering e o filho dele, Rodolfo, anotaram um número ligeiramente menor: 1.567 espécies. as últimas contagens, feitas pelo Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO), apontam para 1.832 espécies de aves no Brasil, o que faz

do nosso país o segundo mais rico em aves no planeta, ficando atrás apenas da Colômbia, que possui cerca de 1.850 espécies de aves.

as 1.832 espécies que ocorrem no Brasil formam, sem dúvida, um número extraordi-nário, correspondente a quase 20% do total mundial. Mas, respondendo à segunda per-gunta do ensaio: por que os números mudam tanto ao longo do tempo? Uma das respostas possíveis é bastante simples – os números mu-dam constantemente porque não lidamos com sistemas estáveis, estanques, como os de um terrário. Aves são animais com alto poder de dispersão proporcionado pelo voo, e muitas delas podem chegar ao território brasileiro de forma acidental. Além disso, a comunidade de ornitólogos e observadores de aves tem se es-truturado cada vez mais nas últimas décadas, o que permitiu visitas contínuas por essas pes-soas a muitas áreas do nosso país, aumentan-do a chance de encontrar novas ocorrências, especialmente nas áreas de fronteira com os

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Luís Fábio Silveira é doutor em Zoologia e curador das coleções ornitológicas Museu de Zoologia da USP; membro do Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO); pesquisador associado da World Pheasant Association (UK); autor de doze livros sobre aves e de dezenas de artigos científicos publicados.

a distribuição, embora não seja completo, é incomparavelmente maior do que se sabe so-bre qualquer outro grupo animal. Além disso, o conhecimento divulgado por amadores e observadores de aves contribui para que se-jam relativamente bem estudadas. Com tantas informações, fica ainda uma outra pergunta: já conhecemos toda a nossa riqueza de es-pécies? A resposta, para surpresa até mesmo dos ornitólogos, é “não”. Embora seja um gru-po muito conhecido, ainda são descobertas novas espécies nos mais diferentes biomas brasileiros. Aves que estão nesses locais há milhões de anos e que ainda não haviam sido cientificamente descritas constituem verdadei-ras novidades para a ciência. Para os próximos anos, podemos esperar um aumento importan-te no número de espécies brasileiras graças às novas espécies que estão sendo descobertas pelos cientistas. Um fato comum a quase todas elas, que chama a atenção, é a distribuição ge-ográfica muito restrita ou com exigências am-bientais muito específicas, o que só aumenta a nossa responsabilidade por preservá-las.

Falcão-críptio (Micrastur mintoni): recentemente descrito, habita as matas altas da Amazônia e Espírito Santo, demonstrando que o nosso desconhecimento sobre a diversidade não está restrito apenas às espécies de pequeno porte

Acrobata (Acrobatornis fonsecai): descoberto recentemente, só ocorre no sul da Bahia e norte de Minas Gerais e já faz parte da lista de aves ameaçadasde extinção

do começo do século XX, os sistematas come-çaram a tratar as espécies consideradas por eles como mais estreitamente aparentadas entre si como sendo de uma única espécie, formada por uma ou mais subespécies. A nova maneira de organizar o conhecimento acabou trazendo consigo a redução do número de espécies re-conhecidas. Entretanto, nos últimos anos, siste-matas de todo o mundo têm adotado revisões taxonômicas que descartam a existência das subespécies. Com isso, o número de espécies válidas voltou a crescer de maneira importante, refletindo-se no aumento do número de espé-cies existentes no Brasil, expansão que deverá continuar nos próximos anos.

Descobertas constantesAs aves são, de longe, o grupo de verte-

brados mais conhecido e estudado. Sabemos bastante sobre o comportamento e a ecologia de muitas delas. Nosso conhecimento sobre

demais países da América do Sul. Essas novas ocorrências resultam no aumento vagaroso do número de espécies que ocorrem no Brasil.

Subespécie ou espécie?Se, por um lado, temos novas espécies sen-

do registradas, por outro temos também uma nova abordagem conceitual com relação à for-ma como as espécies são reconhecidas. A partir

Papa-Formigas-do-Sincorá (Formicivora grantsaui): também descoberto recentemente, vive nos campos rupestres da região do Parque Nacional da Chapada Diamantina e, em seu nome científico, homenageia o grande ornitólogo Rolf Grantsau

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