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CÃes & Cia • 404 60 Mundo das Aves As aves mais raras do Brasil A quantidade de espécies de aves com re- gistro de presença no Brasil não para de aumentar, por diferentes motivos. Além daquelas que são descritas pela primeira vez, há populações anteriormente classifica- das como subespécies que, reclassificadas, passam a ser consideradas espécies plenas. Novos registros de espécies já descritas, mas que não tinham sido registradas até então em território brasileiro, acontecem com alguma frequência, seja por causa de indivíduos va- gantes, que aparecem ocasionalmente, seja por pesquisas que ocorrem em áreas remotas ou de fronteira. Esse aumento constante de registros de aves no Brasil permite afirmar que é questão de tempo para sairmos da posição de segundo país mais rico em aves no planeta, atualmente com 1.832 espécies (atrás apenas da Colôm- bia, com 1.850 espécies), para nos tornarmos o país com mais espécies de aves no mundo. Distribuição desigual Como acontece com qualquer população de animais, a distribuição das aves não se dá de maneira uniforme. Assim como existem espécies muito abundantes, com quantidades expressivas de indivíduos, outras são de difícil detecção, encontradas apenas aos casais ou em pequenos grupos. Muitas delas preferem habitats específicos ou estão esparsamente distribuídas em determinada região. As espécies comuns, mais facilmente encontradas, contam com grande número de avistamentos ou registros, o que torna relativamente fácil e seguro fazer o monitora- mento de suas tendências populacionais. No extremo oposto, existem algumas dezenas de Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA No ensaio passado discutimos sobre a quantidade de espécies já registradas no Brasil. Entre essas, entretanto, há aquelas que se constituem em verdadeiras raridades, a ponto de algumas só serem conhecidas atualmente por desenhos publicados há séculos Saíra-Apunhalada: depois de 120 anos sem registro, foi novamente encontrada Ciro Albano espécies brasileiras que são um desafio, já que não temos a menor noção sobre se ainda ocorrem e onde isso acontece. Muitas delas só são conhecidas por meio de velhos espéci- mes depositados em museus e por desenhos publicados há séculos. Dois séculos de sumiço O que dizer do Papa-Capim-do-Bananal (Sporophila melanops)? esse pequeno spo- rophila é conhecido por meio de um único exemplar coletado no século XIX, às mar- gens do rio Araguaia, em Goiás, e depositado no Museu de História Natural de Viena, na Áustria. Buscas foram feitas por muitos pes- quisadores e amadores, mas nunca mais o Papa-Capim-do-Bananal foi visto, apesar de o local onde foi coletado ainda existir e a região ser relativamente bem preservada. Será que são desconhecidos novos registros porque a espécie está extinta? Que fim ela levou? a primeira explicação é a extinção, e frequente- mente não está incorreta, mas a Natureza vive nos pregando surpresas. Reaparição depois de 120 anos Um desses casos surpreendentes é o de outra espécie que ninguém viu na Natureza

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Page 1: Mundo das Aves As aves mais raras do Brasil - ib.usp.brlfsilveira/pdf/a_2013_cecraridades.pdf · nos de cinco indivíduos do Limpa- Folhas, menos de 20 da Choqui-nha e o Caburé não

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Mundo das Aves

As aves mais raras do Brasil

Aquantidade de espécies de aves com re-gistro de presença no Brasil não para de aumentar, por diferentes motivos. Além

daquelas que são descritas pela primeira vez, há populações anteriormente classifica-das como subespécies que, reclassificadas, passam a ser consideradas espécies plenas. Novos registros de espécies já descritas, mas que não tinham sido registradas até então em território brasileiro, acontecem com alguma frequência, seja por causa de indivíduos va-gantes, que aparecem ocasionalmente, seja por pesquisas que ocorrem em áreas remotas ou de fronteira.

Esse aumento constante de registros de aves no Brasil permite afirmar que é questão de tempo para sairmos da posição de segundo país mais rico em aves no planeta, atualmente com 1.832 espécies (atrás apenas da Colôm-bia, com 1.850 espécies), para nos tornarmos o país com mais espécies de aves no mundo.

Distribuição desigualComo acontece com qualquer população

de animais, a distribuição das aves não se dá de maneira uniforme. Assim como existem espécies muito abundantes, com quantidades expressivas de indivíduos, outras são de difícil detecção, encontradas apenas aos casais ou em pequenos grupos. Muitas delas preferem habitats específicos ou estão esparsamente distribuídas em determinada região.

As espécies comuns, mais facilmente encontradas, contam com grande número de avistamentos ou registros, o que torna relativamente fácil e seguro fazer o monitora-mento de suas tendências populacionais. No extremo oposto, existem algumas dezenas de

Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA

No ensaio passado discutimos sobre a quantidade de espécies já registradas no Brasil. Entre essas, entretanto, há aquelas que se constituem em verdadeiras raridades, a ponto de algumas só serem conhecidas atualmente por desenhos publicados há séculos

Saíra-Apunhalada: depois de 120 anos sem registro, foi novamente encontrada

Ciro

Alb

ano

espécies brasileiras que são um desafio, já que não temos a menor noção sobre se ainda ocorrem e onde isso acontece. Muitas delas só são conhecidas por meio de velhos espéci-mes depositados em museus e por desenhos publicados há séculos.

Dois séculos de sumiçoO que dizer do Papa-Capim-do-Bananal

(Sporophila melanops)? esse pequeno spo-rophila é conhecido por meio de um único exemplar coletado no século XIX, às mar-gens do rio Araguaia, em Goiás, e depositado no Museu de História Natural de Viena, na

Áustria. Buscas foram feitas por muitos pes-quisadores e amadores, mas nunca mais o Papa-Capim-do-Bananal foi visto, apesar de o local onde foi coletado ainda existir e a região ser relativamente bem preservada. Será que são desconhecidos novos registros porque a espécie está extinta? Que fim ela levou? a primeira explicação é a extinção, e frequente-mente não está incorreta, mas a Natureza vive nos pregando surpresas.

Reaparição depois de 120 anosUm desses casos surpreendentes é o de

outra espécie que ninguém viu na Natureza

Page 2: Mundo das Aves As aves mais raras do Brasil - ib.usp.brlfsilveira/pdf/a_2013_cecraridades.pdf · nos de cinco indivíduos do Limpa- Folhas, menos de 20 da Choqui-nha e o Caburé não

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Luís Fábio Silveira é doutor em Zoologia e curador das coleções ornitológicas Museu de Zoologia da USP; membro do Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO); pesquisador associado da World Pheasant Association (UK); autor de doze livros sobre aves e de dezenas de artigos científicos publicados.

Muitas localidades onde o Pararu foi visto ou coletado existem e estão bem protegidas. En-tretanto, todos os indivíduos mantidos em ca-tiveiro morreram e há décadas não se tem cer-teza de avistamento de um único exemplar nos muitos e bem preservados taquarais da Mata Atlântica. Alguns autores acreditam que a es-pécie faria grandes migrações no Bioma e que a interrupção da continuidade da floresta teria tornado impossível os movimentos migratórios, o que teria levado essa bela ave ao desapa-recimento. Embora a explicação não seja con-senso, nem mesmo entre os ornitólogos, o fato é que, certamente, não há hoje um ornitólogo ou observador de aves vivo que tenha visto o Pararu na Natureza.

Destruição do habitatDe outras espécies, atualmente raríssi-

mas, sabemos os reais motivos de estarem na eminência de serem extintas. Três delas, for-tíssimas candidatas a se tornarem as primei-ras aves endêmicas do Brasil a serem extintas, têm na destruição maciça do habitat a princi-pal causa de ameaça. São elas o Caburé-de- Pernambuco (Glaucidium moorerorum), o

Limpa-Folhas-do-Nordeste (Phi-lydor novaesi) e a Choquinha-de- Alagoas (Myrmotherula snowi), todas com distribuição muito res-trita a determinado tipo de floresta nos Estados de Alagoas e de Per-nambuco. Em comum, há também o fato de terem sido descobertas muito recentemente. Existem me-nos de cinco indivíduos do Limpa- Folhas, menos de 20 da Choqui-nha e o Caburé não é visto há mais de 20 anos. essas genuínas raridades mostram que ainda há muito a ser pesquisado em campo no país das aves.

Pararu-Espelho: os exemplares mantidos em cativeiro morreram; na Natureza, não é mais visto

Limpa-Folhas-do-Nordeste: menos de cinco registros na Natureza

um dos maiores mistérios da ornitologia. Conhecida a partir de uma dúzia de exem-

plares, a Rolinha-do-Planalto foi coletada nos cerrados dos Estados de São Paulo, Goiás e Mato Grosso e vista pela última vez na década de 1940. Vastas porções do habitat dela ainda existem em alguns locais onde comprovada-mente vivia. Ninguém sabe com certeza o que aconteceu. Já foram aventadas, entre outros fa-tores, doenças que poderiam ter exterminado a população, mas ninguém deu uma resposta minimamente convincente. A única certeza é que se trata de uma das aves mais procuradas por ornitólogos e observadores de aves.

Mais um que “desapareceu do radar” é o Pararu-Espelho (Claravis geoffroyi), uma das espécies de pombos mais belas do Brasil, cujos machos possuem plumagem azul-acinzentada com manchas púrpuras na asa, enquanto as fêmeas, igualmente manchadas nas asas, têm a plumagem do corpo marrom. O Pararu era relativamente comum em boa parte do bioma Mata Atlântica, onde ocorria nas manchas de taquarais nativos, área pela qual parecia ter preferência. A espécie foi, inclusive, mantida e criada com relativa facilidade em cativeiro.

por mais de um século: a Saíra-Apunhalada (Nemosia rourei). assim como o Papa-Capim- do-Bananal, ela era conhecida por apenas um velho exemplar, coletado no município de Muriaé, no século XIX, e depositado no Museu de História Natural de Berlim, na Ale-manha.

Rumores sobre a existência dessa ave pi-pocaram aqui e ali, especialmente no Espírito Santo (nunca mais houve notícias sobre ela em Minas Gerais), mas ninguém havia sido capaz de registrar a presença dela de forma definitiva. apenas em 1998, mais de 120 anos depois da primeira coleta, essa ave – uma das mais chamativas e bonitas do Brasil – foi no-vamente encontrada nas matas de Conceição do Castelo e de Vargem Alta, nas montanhas do Espírito Santo.

MistériosOutros casos continuam desafiando o

entendimento e fogem às explicações mais tradicionais de desaparecimento. Os dois me-lhores se referem a duas espécies da família dos pombos, os Columbidae. O primeiro é o da Rolinha-do-Planalto (Columbina cyanopis),

Choquinha-de-Alagoas: menos de20 registros na Natureza

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Caburé-de-Pernambuco: não é visto hámais de 20 anos

Rolinha-do-Planalto: avistada pela última vez na década de 1940