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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X MULHERES CAMPONESAS E LUTAS SOCIAIS: ENTRE AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL NO CAMPO E A PRODUÇÃO DA VIDA Mailiz Garibotti Lusa 1 Rosana de Carvalho Martinelli Freitas 2 Resumo: O artigo trata sobre as relações de gênero no contexto rural, especificando o olhar para as mulheres camponesas em seus modos de vida e de trabalho e a produção da vida no campo. Esta compreendida pelas resistências à dominação e às transformações no plano da autonomia e dos direitos em seus cotidianos, severamente afetado pelas expressões da questão social, dentre as quais, a questão agrária. Visa refletir sobre como as mulheres camponesas, organizadas ou não em movimentos sociais feministas, produzem ações de enfrentamentos às expressões da questão social, ao mesmo tempo em que resistem à dominação patriarcal capitalista. Fundamentado na perspectiva crítico dialética, propõem-se uma abordagem que considera a consubstancialidade, coexistencialidade e interseccionalidade, de forma qualitativa, a partir de levantamento bibliográfico e documental. Em seu desenvolvimento aborda a produção de modos de vida e de trabalho no campo, a divisão sócio sexual dos papeis de homens e mulheres no campo, a produção de hábitos e de cultura diferenciados, que resultam em uma nova cotidianidade das famílias camponesas, implicando na garantia de direitos, como aqueles ligados à soberania alimentar, tais como a saúde e a assistência social. Indica que as lutas das mulheres no campo têm produzido rupturas e deslocamentos, que, todavia, ainda precisam ser alimentadas, visto que coexistem numa cultura patriarcal e na realidade da sociedade capitalista brasileira. Palavras-chave: Gênero; questão social; enfrentamentos; autonomia; interseccionalidades. Palavras que iniciam o debate É notório, embora mesmo assim não reconhecido e, portanto, invisibilizado, que as mulheres camponesas 3 , em seus modos de vida e de trabalho, constroem cotidianamente resistências à dominação masculina, patriarcal e capitalista. A contradição presente neste primeiro apontamento é o fator que mobiliza para a realização do estudo sobre as mulheres camponesas, que residem no Brasil, e as lutas sociais que empreendem, na contraposição aos desafios que experimentam ao viverem, junto com suas famílias, múltiplas expressões da questão social no campo. Ainda, constitui-se objetivo deste artigo socializar as formas pelas quais elas resistem a estas dominações, 1 Professora Adjunto III do Departamento e Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação Doutorado em Ciências Humanas, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. 3 A utilização do termo ‘mulheres camponesas’ decorre do reconhecimento de que os movimentos sociais do campo tem resgatado a categoria marxiana do ‘campesinato’ para identificar os sujeitos que vivem e trabalham no campo, constituinda um modo de produção particular. A identidade camponesa remete a um auto reconhecimento, visível, por exemplo, na forma como se apresenta o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), que em sua identificação constante no site institucional afirma: “somos mulheres camponesas: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, sem terra, assentadas... Mulheres índias, negras, descendentes de europeus. Somos a soma da diversidade do nosso país. Pertencemos à classe trabalhadora, lutamos pela causa feminista e pela transformação da sociedade. Disponível em: http://www.mmcbrasil.com.br/site/node/. Acesso em: 30/05/2017.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MULHERES CAMPONESAS E LUTAS SOCIAIS: ENTRE AS EXPRESSÕES

DA QUESTÃO SOCIAL NO CAMPO E A PRODUÇÃO DA VIDA

Mailiz Garibotti Lusa1

Rosana de Carvalho Martinelli Freitas2

Resumo: O artigo trata sobre as relações de gênero no contexto rural, especificando o olhar para as mulheres

camponesas em seus modos de vida e de trabalho e a produção da vida no campo. Esta compreendida pelas resistências

à dominação e às transformações no plano da autonomia e dos direitos em seus cotidianos, severamente afetado pelas

expressões da questão social, dentre as quais, a questão agrária. Visa refletir sobre como as mulheres camponesas,

organizadas ou não em movimentos sociais feministas, produzem ações de enfrentamentos às expressões da questão

social, ao mesmo tempo em que resistem à dominação patriarcal capitalista. Fundamentado na perspectiva crítico

dialética, propõem-se uma abordagem que considera a consubstancialidade, coexistencialidade e interseccionalidade, de

forma qualitativa, a partir de levantamento bibliográfico e documental. Em seu desenvolvimento aborda a produção de

modos de vida e de trabalho no campo, a divisão sócio sexual dos papeis de homens e mulheres no campo, a produção

de hábitos e de cultura diferenciados, que resultam em uma nova cotidianidade das famílias camponesas, implicando na

garantia de direitos, como aqueles ligados à soberania alimentar, tais como a saúde e a assistência social. Indica que as

lutas das mulheres no campo têm produzido rupturas e deslocamentos, que, todavia, ainda precisam ser alimentadas,

visto que coexistem numa cultura patriarcal e na realidade da sociedade capitalista brasileira.

Palavras-chave: Gênero; questão social; enfrentamentos; autonomia; interseccionalidades.

Palavras que iniciam o debate

É notório, embora mesmo assim não reconhecido e, portanto, invisibilizado, que as mulheres

camponesas3, em seus modos de vida e de trabalho, constroem cotidianamente resistências à

dominação masculina, patriarcal e capitalista. A contradição presente neste primeiro apontamento é

o fator que mobiliza para a realização do estudo sobre as mulheres camponesas, que residem no

Brasil, e as lutas sociais que empreendem, na contraposição aos desafios que experimentam ao

viverem, junto com suas famílias, múltiplas expressões da questão social no campo. Ainda,

constitui-se objetivo deste artigo socializar as formas pelas quais elas resistem a estas dominações,

1 Professora Adjunto III do Departamento e Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação Doutorado em Ciências Humanas, da Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. 3 A utilização do termo ‘mulheres camponesas’ decorre do reconhecimento de que os movimentos sociais do campo tem

resgatado a categoria marxiana do ‘campesinato’ para identificar os sujeitos que vivem e trabalham no campo,

constituinda um modo de produção particular. A identidade camponesa remete a um auto reconhecimento, visível, por

exemplo, na forma como se apresenta o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), que em sua identificação

constante no site institucional afirma: “somos mulheres camponesas: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas,

posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, sem terra,

assentadas... Mulheres índias, negras, descendentes de europeus. Somos a soma da diversidade do nosso país.

Pertencemos à classe trabalhadora, lutamos pela causa feminista e pela transformação da sociedade”. Disponível em:

http://www.mmcbrasil.com.br/site/node/. Acesso em: 30/05/2017.

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insistindo na produção da vida no campo, torna-se compromisso ético político daqueles que

trabalham com a produção de conhecimento em com a formação acadêmica universitária.

Neste sentido, este artigo trata sobre as relações de gênero no contexto rural brasileiro,

especificando o olhar para as mulheres camponesas em seus modos de vida e de trabalho e a

produção da vida no campo, com o objetivo de refletir sobre como as mulheres camponesas,

organizadas, ou não, em movimentos sociais feministas, produzem ações de enfrentamentos às

expressões da questão social, ao mesmo tempo em que resistem à dominação patriarcal capitalista.

É importante lembrar a distinção entre movimento social e movimentos sociais.

[...] movimento social refere-se à ação dos homens na história. Esta ação envolve um fazer -

por meio de um conjunto de procedimentos - e um pensar - por meio de um conjunto de

ideias que motiva ou dá fundamento à ação. Trata-se de uma práxis, portanto, podemos ter

duas acepções básicas de movimento: uma ampla, que independe do paradigma teórico

adotado, sempre se refere às lutas sociais para a defesa de interesses coletivos amplos ou de

grupos minoritários; conservação de privilégios; obtenção ou extensão de benefícios e bens

coletivos etc. A outra se refere a movimentos sociais específicos, concretos, datados no

tempo, e localizados num espaço determinado. (GOHN, 1997. p. 247).

Assim, no estudo em tela está se refletindo sobre as lutas das mulheres, que também

constituem movimentos sociais. Embora se tenha convicção de que tais sujeitos ‘mobilizaram

recentemente e continuam a mobilizar socialmente’ a história da humanidade, a acepção do termo é

feita no plural, indicando a particularidade das lutas em questão, pautadas, organizadas e

encampadas pelas mulheres que se identificam como militantes camponesas. Além disso, registra-se

que cada um dos movimentos de mulheres camponesas é importante e sua atuação possui

relevância4. Porém, este artigo centra-se na produção cotidiana de resistência, nas formas de luta e

conquista de direitos sociais para os indivíduos que vivem e trabalham no campo, que poderá

acontecer nos mais diversos espaços de vida das mulheres no campo – privado ou público. Logo,

trabalhar-se-á com a luta das mulheres rurais nos espaços de militância e de não militância.

Parte-se da compreensão que o rural não está dissociado da totalidade da sociedade, mas,

juntamente com o urbano, configura-se como um dos espaços da sociedade capitalista que

interagem na totalidade, a partir das suas particularidades relativas à produção, à economia, à

cultura, à política, às relações sociais etc. Considera-se que as mulheres, em suas relações sociais

cotidianas, denunciam que o capitalismo depende do seu trabalho, escolhas e presença.

A discussão fundamenta-se na perspectiva crítico dialética, com uma abordagem que

trabalha a partir das considerações de consubstancialidade, coexistencialidade e

4 Reconhece-se que as lutas empreendidas pelos movimentos de mulheres camponeses são tratadas nas últimas décadas

como um ‘tema proeminente do cenário contemporâneo’, justamente pela relevância midiática que lhes é conferida,

infelizmente, ao serem enquadradas no âmbito da criminalização das lutas e movimentos sociais.

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interseccionalidades, de forma qualitativa, a partir de levantamento bibliográfico e documental. Em

seu desenvolvimento aborda a produção de modos de vida e de trabalho no campo, a divisão sócio

sexual dos papeis de homens e mulheres no campo, a produção de hábitos e de cultura

diferenciados, que resultam em uma nova cotidianidade das famílias camponesas, implicando na

garantia de direitos, como aqueles ligados à soberania alimentar, tais como a saúde e a assistência

social. Ao final, discutem-se as formas de lutas empreendidas no cotidiano pelas mulheres no

campo e as rupturas e deslocamentos produzidos na sociedade brasileira na contemporaneidade.

1 A divisão sócio sexual do trabalho no campo e as relações sociais de sexo, classe e raça/etnia

É indiscutível que as relações sociais na sociedade ocidental tem sido, há milênios, marcadas

pela desigualdade entre homens e mulheres e pela dominação dos primeiros em relação às últimas.

Aqui esta discussão é muito presente, ainda que não abordada diretamente, uma vez que as análises

centradas o binômio, vem sendo motivo de críticas, porque também mantém invisibilizadas outras

formas de opressão e resistência. As origens desse processo, na sua expressão mais atual, dentro da

ordem do capital, encontram-se na base estruturante da exploração e da opressão da mulher: a

divisão sexual do trabalho. Tal conceito tornou-se chave para justificar as diferenças de gênero,

incluindo os modos masculinos e femininos aparentemente naturais de ser humano (CISNE, 2015).

Já de início é importante salientar que se utiliza para este trabalho muito mais a

denominação que anui às ‘relações sociais de sexo, classe, raça/etnia’, que de ‘gênero’, embora esta

última também apareça5. O uso predominante da primeira guarda relação com a discussão sobre

interseccionalidades, consubstancialidade e coexistencialidade das relações entre homens e

mulheres, que são perpassadas pelo poder exercido com base, principalmente, no sexo, na

raça/etnia, na classe, mas também na geração, orientação sexual, etc. Tal discussão surge ainda nos

5 Trata-se de ‘relações sociais de sexo’, conforme afirma Kergoat (2009), inclusive no título do seu livro “Rapports sociaux de sexe”,

em francês. Esta autora tem adentrado nas discussões de Gênero no Brasil, especialmente pela perspectiva crítica, com mais tempo

através das produções conjuntas que fez com Helena Hirata desde meados dos anos 1990 e dos 2000. Mais recentemente pelas

produções de Mirla Cisne (aqui referenciada a sua obra de 2015, pois é a partir de 2014 que tal autora adentra com maior

profundidade na obra de Kergoat), que tem se tornado uma sólida referência para o debate brasileiro com base nas fundamentações

de Kergoat. Ainda é necessário mencionar que a nomenclatura de ‘relações sociais de sexo’ em lugar de relações de gênero tem

origem com o feminismo materialista francês, sendo Danièle Kergoat o seu mais famoso expoente. Tais análises voltam-se ao

deslinde e denúncia das desigualdades entre homens e mulheres, compreendendo-as como determinadas pelo patriarcado (sexo), mas

também transversalizadas por outras relações sociais da mesma forma estruturantes, quais sejam as relações de classe e raça/etnia.

Kergoat identifica este conjunto dialético de determinações sobre as relações de sexo, classe e raça/etnia como consubstanciais e

coexistenciais às relações sociais. Além destes tipos de dominação, acrescentam-se principalmente as de geração e de liberdade e

orientação sexual. A definição de Kergoat diferencia-se daquela de Kimberlé Crenshaw, que trata das mesmas relações com destaque

para as determinações de raça e sexo, numa proposta de análise que define como ‘interseccionalidade’ de raça e sexo nas relações

sociais entre homens e mulheres. Sem destituir a importância de uma ou outra compreensão sobre as fontes de identidade, bem como

as fontes de dominação dos homens sobre as mulheres, trabalha-se neste estudo com ambas as definições, dando-se destaque para as

determinações de classe, uma vez que o objeto deste estudo trata das lutas e resistências das mulheres trabalhadoras camponesas no

seu cotidiano de vida.

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fins dos anos 1980, a partir das contribuições do black feminism, com destaque para as produções de

Kimberlé Crenshaw, uma jurista afro-americana, que propõe considerar as múltiplas fontes de

identidade, destacando a de raça e sexo como as principais determinantes que afetam

prejudicialmente as mulheres, essencialmente aquelas negras. Com o aprofundamento desta

discussão, surge nos anos 1990 a referência à consubstancialidade de classe, sexo e raça/etnia, tendo

como referência os estudos da francesa Danièle Kergoat, que aponta como um dos mais

contundentes determinantes aquele oriundo das relações de produção capitalista, portanto, a

afetação dos lugares e interesses de classe para sobrepujar ainda mais a dominação das mulheres

pelos homens (HIRATA, 2014).

A divisão sexual do trabalho determina, a partir dessa justificação, papeis na esfera de

produção e de reprodução social, do público e do privado. Essa divisão sexual do trabalho atravessa

a história da humanidade e justificando os campos do trabalho produtivo, improdutivo e do trabalho

reprodutivo, segundo as necessidades dos dominantes. Para os homens, há uma destinação

prioritária da esfera produtiva e pública, e para as mulheres as esferas do improdutivo, do

reprodutivo e do privado. A mulher é sempre colocada como a principal responsável pelo espaço

doméstico e cuidados com o lar, com o companheiro, os familiares, com a criação dos filhos,

devendo, no entanto, conciliar tais funções com os trabalhos precarizados. A divisão sócio sexual

do trabalho é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos, sendo ela

modulada histórica e socialmente para atender aos interesses da produção capitalista (HIRATA;

KERGOAT, 2007). Nessa perspectiva, as mulheres e os homens tem suas relações sociais

marcadas pela sua posição na organização do trabalho, especificamente na divisão sexual do

trabalho, e não através da base biológica de diferenciação (BITTENCOURT, 2015).

Esse processo de dominação, pela divisão sexual do trabalho, estaria aportada em dois

princípios básicos: da separação, onde há trabalhos de homens e outros de mulheres, e o princípio

da hierarquização, a qual agrega ao trabalho do homem mais valor que o da mulher (KERGOAT,

2009; HIRATA, 2014). Tal definição rebaixa o ‘gênero’ tão somente ao ‘sexo biológico’, reduzindo

o trabalho e o desempenho de todas as tarefas cotidianas de produção e reprodução da vida das

pessoas à naturalização dos ‘papéis sociais e sexuados’ (HIRATA; KERGOAT, 2007). Se assim o

fosse, é certo que se estaria desconsiderando as construções sociais, políticas e culturais, as quais

são historicamente determinadas e determinantes na vida da sociedade.

Isso interfere na definição do lugar de mulheres e homens na sociedade, sob um ponto de

vista essencialmente econômico – embora não apenas –, contingenciando a obtenção de um único

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produto de relações desiguais: a produção de capital com forte (mas não único) embasamento na

dominação e subjugação da mulher pelo homem. Feita a análise por este viés econômico das

relações sociais de sexo, fica objetivo que o ‘fator de classe’ é determinante no âmbito da

exploração e opressão da mulher (CISNE, 2015), justificando a subalternização ainda maior e mais

intensa das mulheres da classe trabalhadora – que da burguesia –, chegando ao ponto de

criminalizar as mulheres pobres, imputando a estas a culpa por serem ‘exploradas sexual, política,

cultural e economicamente’.

Feitas estas considerações, torna-se evidente que os conflitos de classe, de raça-etnia e

mesmo os de geração e de liberdade e orientação sexual carregam consigo a marca das relações de

exploração de gênero. Cada um dos conflitos acima mencionados traz a consubstancialidade,

coexistencialidade e interseccionalidade de gênero, carregando em si as demais ‘cargas’ de

exploração. Neste sentido, compreende-se de forma dialética que todas as formas de exploração se

tocam e transversalizam.

Quanto mais uma mulher carrega consigo tais identidades, tanto mais viverá situações de

exploração nesta sociedade patriarcal, capitalista-ocidental-burguesa, machista, heteronormativa e

racista. Isso porque, existe uma interdependência dessas categorias sociais, sendo que cada uma

imputa às mulheres uma relação social de antagonismos entre dois grupos sociais diferentes e

hierárquicos entre si, como trabalhadoras e burguesas; negras e brancas; etc (KERGOAT, 2003).

Dentre todos esses conjuntos antagônicos, interessa mais neste estudo o antagonismo central de

sexo (gênero), que se instala e tem sua permanência na disputa de poder, exploração, dominação,

predominantemente masculina, implicando numa relação social, no mais das vezes, conflituosa.

O núcleo fundamental para compreender a interseccionalidades, consubstancialidade e

coexistencialidade de todas estas formas dialéticas de exploração, as quais envolvem a mulher e

incidem múltiplas determinações no seu cotidiano de vida, é o ‘mundo da produção’ e,

consequentemente da ‘reprodução’. Significa dizer que todas elas têm uma base material de

sustentação, cujo objetivo central é a produção de valores (capital) e com isso a manutenção da

sociedade estruturada no capital, requisitando para isso normas (legais ou mesmo costumeiras e

culturais), que muito auxiliam na submissão das mulheres (muito mais que os homens) à

determinados tipos de trabalho produtivo e improdutivo. Tudo isso implicará no assentamento dos

papeis sociais nas relações entre homens e mulheres no âmbito do trabalho, as quais são também

implicadas pelas determinações de classe, raça-etnia, geração e orientação e liberdade sexual.

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Logo, isso permite indicar que as relações sociais de poder entre homens e mulheres

perpassadas pela consubstancialidade, coexistencialidade e interseccionalidade de classe, do gênero

e de raça, reproduzem-se e se coproduzem reciprocamente no cotidiano da vida social (KERGOAT,

2003; HIRATA, 2014), ou, noutras palavras, existe uma “unidade dialética entre as subestruturas

básicas de poder da sociedade capitalista: classe, gênero, raça/etnia, na qual essas categorias estão

organicamente integradas” (CISNE, 2014, p. 31).

É importante ter presente que a forma de dominação e exploração sobre a mulher na

sociedade moderna de base material (capitalista) teve como primeiro fundamento a existência de

uma ‘prole’ significativa, que assegurasse a descendência. Esse fato que remonta ainda os registros

da antiguidade clássica, quando a família se reunia a vivia em torno do fogo sagrado, cuja

continuidade da chama/calor dependia a reprodução familiar, logo, da mulher e sua capacidade

reprodutiva. Depois, no capitalismo, a existência de uma prole significativa representa também a

possibilidade de maior produção econômica e de perpetuação do poder econômico, político e social

por parte daqueles que o tinham conquistado, ou seja, da burguesia (ROSA, 2016).

Além disso, a exploração sobre a mulher ainda requisitou por fundamento o ‘controle sobre

o corpo’ e ‘a vida das mulheres’, a fim de assegurar a filiação para o homem, patriarca e ‘chefe da

família’, permitindo àqueles detentores de propriedade privada a perpetuação desta, através do

instituto da herança (CISNE, 2014; ROSA, 2016).

Dito isso, é fundamental encerrar esta primeira parte da reflexão, demarcando que este tipo

de exploração das mulheres, através do desenvolvimento e consolidação ao longo dos últimos

séculos da divisão sócio-sexual de trabalho tem base econômica e social, mas carrega consigo uma

importante carga ideológica, política e cultural. Embora essa exploração possa levar as mulheres à

participação sem contestação neste ciclo de dominação, dialéticamente a mesma situação pode

instigar as mulheres à resitência e a luta para construir novas e diferentes formas de relações sociais

entre os sexos. Neste sentido, reconhece-se preliminarmente que são inúmeras as mulheres –

militantes ou não em movimentos sociais – que lutam contra a exploração e subordinação feminina.

Estas lutas e resitências são construídas, no mais das vezes, no coletivo, embora também se

concretizem no dia-a-dia das mulheres no plano individual, ou seja, a partir das relações

desenvolvidas no âmbito privado da vida.

2 O diário enfrentamento das expressões da questão social no campo como forma de resistência

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Neste item far-se-á uma breve incursão às expressões da questão social no campo, para,

então, discutir as formas diárias de enfrentamento protagonizadas pelas mulheres camponesas.

Primeiramente é necessário dizer o que se entende por expressões da questão social,

apontando que as mesmas resultam da relação dialética, contraditória e, todavia, fundamental

entre capital e trabalho no capitalismo. Em outras palavras, é a partir da compreensão da lei geral

da acumulação capitalista que se compreende a produção da questão social na sociedade moderna.

No capitalismo as duas classes fundamentais, burguesia e proletariado – a primeira detentora dos

meios de produção e a segunda proprietária tão somente da sua força de trabalho – colocam-se em

relação na esfera da produção de riquezas, conferindo concretude, de um lado, à produção da

riqueza sob a forma de capital e, de outro, à produção da pobreza e da miséria em razão

exponencialmente inversa. Assim, a razão de ser do capitalismo, qual seja, a produção de mais valor

sobre o capital, ocorre em razão exponencialmente inversa que a produção de ‘não valor capital’,

que significa a acumulação de situações de pobreza e de miserabilidade, oriundas do não acesso às

condições para suprir as necessidades humanas básicas, gerando entre mulheres e homens um

abismo crescente de desigualdades econômicas, sociais, culturais e políticas. É neste sentido que se

entende que a lei geral que determina a acumulação capitalista está na raiz da questão social.

Assim, pode-se dizer que o conceito de questão social concentra em si as “desigualdades

econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações

de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos

segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização” (IAMAMOTO, 2012, p. 160).

Logo, apreendemos que são expressões da questão social a pobreza e o processo de

empobrecimento; a expropriação fundiária no campo e na cidade; a fome e toda a falta de acesso

aos bens e serviços sociais; a violação de direitos; a violência em suas diversas manifestações; as

desigualdades, discriminações e formas de exploração de gênero, classe, raça e etnia, geração,

orientação sexual; mas, também, as lutas de resistência à própria exploração; entre outras.

Todas estas expressões da questão social tem concretude não só nas cidades, mas também no

campo e se manifestam no cotidiano de vida, impondo obstáculos essencialmente para a classe

trabalhadora camponesa, gerando as mais variadas violações de direitos. Dentre as expressões da

questão social no campo, para fins deste estudo prioriza-se a pobreza, a questão agrária e as lutas

sociais, destacando a existência da mediação dialética entre tais expressões da questão social.

A questão agrária se manifesta no Brasil desde o período colonial, quando se expropriou a

população indígena das terras que lhe pertenciam originalmente, bem como privou-se outro

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significativo contingente populacional, as negras e negros, do acesso a terra. Especialmente a última

estratégia foi fundamental para se assegurar a força de trabalho livre para a exploração, que viria se

consolidar nos moldes capitalistas somente a partir do século XX. Neste sentido é que se afirma

que, no campo, o trabalhador é pobre porque a riqueza que produz vai se acumular do outro lado da

porteira, bem longe dele, da sua família e do seu espaço de vida e de trabalho (GIOVENARDI,

2003). Neste sentido, o acesso à terra é poder e propriedade da terra é poder ainda maior,

especialmente se ocorrer em grandes extensões, acumulada nas mãos de um só proprietário, e

voltada para apenas um tipo de cultivo (latifúndio-monopolista-monocultor). Destarte, a questão

fundiária e todo o conjunto de determinantes e seus efeitos compõem o que se convencionou

chamar de ‘questão agrária’, que se constitui como uma das mais graves e contundentes

manifestações da questão social no campo.

No Brasil, a pobreza e o processo de empobrecimento contínuo e permanente seguem como

um fenômeno histórico-estrutural no espaço rural, uma vez que o campo tem sido cada vez mais

atravessado pelas contradições próprias do capitalismo6. Proporcionalmente o processo de

empobrecimento tem afetado de forma mais intensa a população do campo, do que da cidade.

Se por um lado a população passa a não ter como se manter produzindo no campo e acaba migrando

para as periferias urbanas, onde continua vivendo privações e violações de direitos, por outro,

aqueles/as que conseguem permanecer no campo vivem um novo processo de exploração, muito

invisível e ultramoderno, que é o endividamento bancário (SILVA, 2014). Com o empobrecimento

rural, associado ao esgotamento da terra – dadas as formas destrutivas de produção que foram

incentivadas nas últimas décadas –, não resta alternativa para os camponeses que ainda querem

produzir, a não ser contrair empréstimos bancários para financiar a sua produção, na expectativa de

que com ela possam quitar seus empréstimos (SILVA, 2014; DUARTE, 2017).

Na esteira desta situação, o Estado passa a atuar ainda mais como incentivador e mediador

para a inserção dos/as trabalhadores/as rurais na esfera financeira, o que tem como principal

resultado a produção de dividendos para o sistema bancário-financeiro e o agravamento do

empobrecimento no campo. Foi nessa esteira que se observou a ação dos últimos governos (2003 ao

6 Em termos relativos, a pobreza rural ainda é extremamente expressiva no país. Os dados da PNAD (IBGE, 2009) revelaram que 8.4

milhões de pessoas que faziam parte da população rural total (30.7 milhões de pessoas) eram classificadas como pobres (renda per

capita mensal de até ½ salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 207,50); e 8.1 milhões de pessoas

eram classificadas como extremamente pobres (renda per capita mensal de até ¼ salário mínimo, que em valores de setembro de

2009 correspondia a R$ 103,75). Isso significa que no ano de 2009 aproximadamente 54% da população rural total era enquadrada

como pobre. A distribuição espacial da pobreza rural revela que 53% do total de pessoas classificadas como pobres viviam no

Nordeste do país, região que respondia também por 70% do total de pessoas extremamente pobres. Disponível em:

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Pobreza-rural-um-fenomeno-historico-relacionado-a-estrutura-agraria-do-

pais/7/25309. Acesso em: 20 mai. 2017.

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atual). “Para implantar as políticas de contrarreforma agrária, respaldadas na falsa ideologia do

combate à pobreza no Brasil, foi necessário ao capital criar um novo agente dinamizador do

desenvolvimento e da modernização rural”, que foram as políticas de microfinanciamentos

(microcréditos) agrícolas. Como efeito, “a pobreza rural continua sendo um dado irrefutável

(descontados pequenos avanços), a despeito de um conjunto de políticas estatais que acabam sendo

meras reprodutoras das novas/velhas expressões da questão social” (DUARTE, 2017, p. 17 e 19).

Contudo, onde há exploração permanente e contínua, materializada na produção de pobreza

e no aguçamento da questão agrária, há também resistência. As lutas camponesas que sempre

marcaram a vida no campo brasileiro têm se tornado, cada vez mais, presentes. Dialeticamente, é do

agravamento das formas de exploração no campo que surgem as lutas sociais, pois quando não há

mais o que ser explorado, ou pouco há, é que o/a trabalhador/a camponês/a radicaliza sua

resistência, através de estratégias coletivas. Neste sentido, reconhece-se que têm aumentado

[...] as lutas populares no campo, materializadas pelas ocupações de terras, promovidas pelo

MST e demais movimentos sociais. Elas tencionam o latifúndio e fazem parte das

estratégias políticas dos trabalhadores para resistirem ao assalariamento e aos processos de

exploração e expropriação, num cenário de hostilidade do capital no espaço agrário e

intensa violência por parte dos ruralistas (DUARTE, 2017, p. 125).

Assim, considera-se que as políticas de governo aguçaram ainda mais o desenvolvimento

desigual e combinado do capitalismo no Brasil (FERNANDES, 2005), intensificando

transformações nas relações sociais, propiciando concentrar ainda mais a propriedade da terra,

expropriando uma quantidade ainda maior de camponeses, e acelerando o aumento da pobreza

(SILVA, 2014). Nota-se, portanto, o crescente e permanente agravamento da questão social no

campo, que se expressa também na questão fundiária e nas lutas sociais do campo.

Este conjunto determinante de expressões da questão social atinge de sobremaneira as

mulheres. Elas são tradicionalmente excluídas do acesso e propriedade da terra, bem como dos

bens materiais, que comumente são considerados como bens de família, mas que no âmbito das

relações patrimoniais são reservados ao domínio masculino e patriarcal, tudo ‘perfeitamente

explicado pela natural desigualdade de gênero’, construída culturalmente.

É essa desigualdade permite entender a distribuição dos bens materiais no seio da família

camponesa de origem italiana. Schaaf (2001), Brumer (1996), Carneiro (2001) e outras

autoras remetem à herança assimétrica, em que os filhos (homens) herdavam, ao se casar,

um pedaço de terra, à mulher solteira nada era dado; e às mulheres que se casavam eram

transferidos apenas um enxoval, uma vaca e, em alguns casos, uma máquina de costura. O

não recebimento da terra por parte das mulheres era justificado pela possibilidade de o

marido tê-la recebido como herança, já que a mulher saía da casa dos pais para morar com a

família do marido (nas terras dele) (ZANINI; SANTOS, 2013, p. 89).

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Além disso, se por um lado na divisão sócio sexual do trabalho cabe à mulher os cuidados

com a casa (e tudo que inclui o quintal, como galinhas, horta, o cuidado com as vacas de leite, etc),

a alimentação, os filhos e o marido, consequentemente também cumpre a ela as medidas para

sobreviver à pobreza, que vão desde economizar e cozinhar os poucos alimentos para gerir a ‘fome’

de todos; costurar as roupas para que ainda se possa vesti-las, ao lugar de comprar novas; até

providenciar a consulta e o medicamento para quem está doente; ou mesmo assegurar o

cumprimento de todas as condicionalidades, para que se continue a receber o benefício sócio

assistencial do Programa Bolsa Família7, que passa a ser geralmente a única fonte de sobrevivência.

Por outro lado, no correr das últimas quatro décadas, tem aumentado as experiências de

lutas sociais no campo protagonizadas pelas mulheres camponesas. São inúmeros os

movimentos feministas que se constituíram a partir da organização das mulheres e da construção

coletiva de estratégias de enfrentamento das expressões da questão social. Essa participação foi se

intensificando num crescente organizativo, de que é exemplo o Movimento de Mulheres

Camponesas do Brasil (MMC)8, este se justifica a partir da certeza de que “a libertação da mulher é

obra da própria mulher, fruto da organização e da luta”. Atualmente, o MMC se constitui como um

dos principais movimentos sociais do campo na América Latina, que a partir da ótica feminista e

camponesa objetiva fortalecer a luta dos trabalhadores e trabalhadoras.

Os primeiros espaços político-participativos foram nos sindicatos rurais, depois adentraram

as instâncias políticas, chegando inclusive a ocupar as esferas legislativas e executivas do Estado

brasileiro. Como resultado dessas lutas, as mulheres camponesas conquistaram direitos que, até

pouco tempo, eram negados apenas para as mulheres camponesas, como o direito à aposentadoria

ou licença maternidade9 (LUSA, 2011). Infelizmente, no contexto de contrarreformas do Estado,

destruidoras de direitos sociais de toda a classe trabalhadora, também tais direitos das mulheres

camponesas, conquistados à duras penas, encontram-se gravemente ameaçados, como por exemplo,

o direito fundamental à aposentadoria.

Tais conquistas decorrentes das lutas das mulheres reverteram, sim, para a construção e

depois alargamento da autonomia das mulheres, que passaram a desenvolver também processos

7 Em menor proporção, cumprir as condicionalidades para o recebimento do Bolsa Verde, que atinge menor número de famílias

camponesas beneficiárias. 8 Em 1995, o Movimento das Mulheres Camponesas criou a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais, reunindo as

mulheres dos seguintes movimentos: Movimentos Autônomos, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra (MST), Pastoral da Juventude Rural (PJR), Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), alguns Sindicatos

de Trabalhadores Rurais e, no último período, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).Disponível

em:<http://www.mmcbrasil.com.br/site/node/44>. Acesso em:11 fev. 2017.

9 Infelizmente, na conjuntura econômico-política instalada nos últimos dois anos, tais recentes direitos encontram-se severamente

ameaçados pelas contrarreformas trabalhista e previdenciária (PL 6787/2016 e PEC 287/2016, respectivamente).

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de autonomização e emancipação com repercussões tanto na esfera pública, quanto na esfera

privada da vida das mulheres e de suas famílias. Especialmente nesta última esfera, “a gestão dos

recursos, mesmo que pequenos, tem gerado uma autovalorização entre essas mulheres que, ao

comprarem eletrodomésticos para lhes auxiliar nas tarefas domésticas ou investirem em bem-estar,

se sentem cidadãs e se redefinem em termos de participação no contexto familiar e coletivo”

(ZANINI; SANTOS, 2013, p. 103).

Com o cuidado crítico necessário, mesmo considerando que a própria afirmação remete ao

reforço de que as atividades domésticas são das mulheres e, portanto, a compra de eletrodomésticos

tem sido feita por elas, interessa destacar a redefinição da participação das mulheres no contexto

familiar e coletivo. Isso traz implicações nas relações consubstanciais, interseccionais e

coexistenciais de sexo, classe e raça/etnia, pois “a assunção de uma identidade de agricultora

familiar ou de produtora rural, inclusive com seus nomes inscritos no bloco do produtor, reforça

este deslocamento de posição social, facilitando também a aquisição de direitos previdenciários e da

aposentadoria rural” (ZANINI; SANTOS, 2013, p. 103). Destarte, interfere de definitivamente na

identidade de gênero/sexo, de classe e, geralmente, de raça/etnia (SALVARO, 2010).

Portanto, compreende-se que o enfrentamento das expressões da questão social, manifestas

também nas lutas sociais empunhadas pelas mulheres camponesas, constitui-se como uma forma

essencial para construir resistência, envidar esforços coletivos e produzir transformações na vida

das mulheres e de toda a sociedade, desde a esfera privada, à pública, modificando as relações

sociais de sexo, classe, raça-etnia, orientação sexual, geração, etc.

3 A produção da vida pelas mulheres camponesas10: a construção de ‘outras relações’ possíveis

As lutas das mulheres camponesas para transformar as relações sociais fundadas no

patriarcado, nas bases estruturantes do capitalismo e na divisão sócio sexual do trabalho, tem

resultado mudanças na cotidianidade das famílias camponesas.

Tanto as relações privadas quanto as públicas alteraram-se pela atuação das próprias

mulheres. No plano público, institucional e legislativo tais lutas implicaram na garantia de direitos

antes inexistentes, com repercussões diretas para as mulheres e indiretas para suas famílias. São

10 De acordo com o Prêmio Mulheres Rurais que produzem o Brasil Sustentável (SPM, 2012) da SPM, as mulheres rurais podem ser

definidas como mulheres pertencentes a grupos produtivos de mulheres do campo e da floresta, agricultoras familiares, camponesas e

trabalhadoras rurais que atuam na produção para o autoconsumo - no cultivo de hortas, na criação de pequenos animais - mas

também na produção da agroindústria caseira; entre outras. Disponível em: http://www.spm.gov.br/arquivos-diversos/premio-

mulheres-rurais-que-produzem-o-brasil-sustentavel/edital-premio-mulheres-rurais-que-produzem-o-brasil-sustentavel. Acesso em: 20

mai.2017.

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exemplos os direitos trabalhistas e previdenciários, mas também aqueles ligados à soberania

alimentar, à assistência social, entre outros. Muitas das suas lutas pautaram direitos para as crianças,

adolescentes e idosos, o quem indica que a sua repercussão vai além de suas vidas, produzindo nova

sociabilidade no campo para todas/os que lá vivem e/ou trabalham. De tal modo, é imprescindível

reconhecer que constam nas pautas de lutas das mulheres camponesas requisições de ordem política

e de classe que alteram a forma de produção no campo, tais como o direito de produzir de forma

agroecológica à detenção do domínio das sementes (crioulas). Essa pauta repercute na relativa

soberania produtiva das famílias de trabalhadores rurais, mas também na relativa soberania

alimentar para a classe trabalhadora do campo e da cidade.

Logo, suas pautas remetem à conquista de direitos, à construção da identidade, à busca de

emancipação política e de autonomia e ao reconhecimento das mulheres. Também transcendem

para as suas famílias, para as gerações do campo e da cidade, para a classe trabalhadora e a própria

burguesia. Implicam na produção de outra sociabilidade, pautada em valores contestatórios ao

patriarcado, ao capitalismo e a todas as formas de opressão, dominação e subalternização a eles

ligados. Portanto, as lutas das mulheres no campo têm produzido rupturas e deslocamentos, que,

todavia, precisam ser alimentadas constantemente, pois, de forma permanente e dialética,

encontram-se confrontadas pelos valores patriarcais e burgueses, que coexistem na realidade da

sociedade capitalista brasileira, machista, classista, racista, heteronormativa e homofóbica.

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Abstract: This paper deals with gender relations in the rural context, specifying the look of peasant

women in their ways of life and work and the production of rural life. Production of the life

understood by the resistances to the domination and transformations in the plane of the autonomy

and the rights in its daily ones, severely affected by the expressions of the social question, among

which, the agrarian question. It aims to reflect on how women peasants, organized or not in feminist

social movements, produce actions to confront the expressions of the social question, while

resisting capitalist patriarchal domination. Based on the critical dialectic perspective, an approach is

proposed to strengthen intersectionalities, in a qualitative way, based on a bibliographical and

documentary survey. In its development, it deals with the production of ways of life and work in the

countryside, the socio-sexual division of the roles of men and women in the countryside, the

production of different habits and culture, which result in a new daily life of the peasant families,

implying in the Guaranteeing rights, such as those linked to intersectionality related to food

sovereignty, such as health and social assistance. It indicates that the struggles of women in the

countryside have produced ruptures and displacements, which still need to be fed, since they coexist

in a patriarchal culture and in the reality of Brazilian capitalist society.

Keywords: Gender; social question; fighting; autonomy; intersectionalities.