mudanças no projeto · co no caratê, localidade mais con-flagrada da favela: “quem for pe-go...

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Escuta mostra intervenção de bandidos da Cidade de Deus no sorteio dos beneficiados Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, a constru- ção de quase mil apartamentos do programa “Minha casa, minha vi- da” tinha como objetivo, segundo o governo do estado, a realocação de famílias que viviam “em áreas de risco e condições insalubres”. O sorteio, no entanto, pode ter bene- ficiado o crime. Segundo uma in- vestigação da Polícia Civil, bandi- dos interferiram na escolha dos agraciados. No quarto capítulo da série “Minha casa, minha sina”, o EXTRA mostra diferentes for- mas de influên- cia exercidas pelo tráfico de drogas na vida dos moradores. Numa escu- ta feita pela 32ª DP (Taquara), uma mulher, identificada pela polícia como “uma das pessoas responsáveis pela triagem dos beneficiados” pelo projeto na Cidade de Deus, convence um gerente do tráfico da favela a cadastrar uma pessoa morta entre os postulantes a um apartamento no Residencial Ita- mar Franco. A ligação, gravada em 18 de julho do ano passado, faz parte de um inquérito que cul- minou com a prisão de dez trafi- cantes em janeiro deste ano. “Você tinha que pegar o nome dela que já tá pronto (...) e, depois que tiver morando, trocar pro no- me dele”, diz a mulher. Segundo funcionárias da 23ª Região Admi- nistrativa da prefeitura que traba- lham na Cidade de Deus, o cadas- tro foi feito por associações de mo- radores da favela. O governo do estado entregou as unidades. “Mas não daria problema não?”, responde Deilson Ribeiro da Silva, o Deidei, preso desde 21 de agosto de 2014 na Penitenciária Gabriel Ferreira Castilho, em Bangu. “Não dá problema não, eu falei com sua cunhada que depois eu quero mos- trar o óbito e transferir, enten- deu?”, argumenta a mulher. Ao fim do inquérito, Deidei foi denunciado pelo promotor Edu- ardo Paes Fernandes como o “res- ponsável pela ingerência do tráfi- co no ‘Minha casa, minha vida’”. A mulher não foi identificada, e as investigações sobre a fraude no cadastro não avançaram. Um morador, entretanto, procurou a 32ª DP no ano passado para de- nunciar que “pessoas da associa- ção de moradores, a mando de traficantes, estão cobrando o va- lor de R$5 mil para moradores conseguirem o benefício”. A Cidade de Deus tem uma UPP desde fevereiro de 2009. A presen- ça do crime no Itamar Franco, con- tudo, não é discreta. Em todos os prédios, há uma inscrição assina- da pela facção que controla o tráfi- co no Caratê, localidade mais con- flagrada da favela: “Quem for pe- go roubando vai morrer”. — A venda de drogas acontece nas garagens. Quando a polícia chega, os bandidos fogem para os condomínios — diz Francisco*, dono de um imóvel no conjunto. NA “Depois eu quero mostrar o óbito e transferir, entendeu?” todos os nomes utilizados na série são fictícios * 12 ESPECIAL 2ª Edição extra.globo.com Quarta-feira, 25 de março de 2015 DEPOIMENTO B Não fazia nem uma semana que eu tinha me mudado. Na noite de réveillon, quando voltamos pra casa, as crianças entraram no quarto e viram a janela estilhaça- da. De manhã, minha filha foi limpar e achou um projétil. Foi aí que tivemos a noção exata do que tinha ocorrido. Meu filho está ali, do mesmo jeito, sentado jogando no computador dele. Foi bem ali que a bala bateu. E já tem outras janelas furadas no conjunto. Onde a gente morava antes e desapro- priaram nossa casa, eu já estava saindo por causa dos tiroteios. Agora, vou ficar aqui, à mercê? Estou assustado e desapontado. A gente trabalha e faz de tudo em prol dos nossos filhos. Não quere- mos isso para ninguém, mas mui- to menos para eles. ‘Vou ficar aqui, à mercê? Estou desapontado’ FELIPE* Morador do Residencial Jardim Canário, no Complexo do Alemão B Manhã de 28 de fevereiro, sába- do, por volta das 9h. Enquanto cri- anças se divertem no Residencial Jardim Beija-Flor — um dos qua- tro conjuntos do “Minha casa, mi- nha vida” no Complexo do Ale- mão, Zona Norte do Rio — a brin- cadeira é interrompida por uma visita inesperada: seis homens ar- mados, dois deles com fuzis, cru- zam o conjunto sob o olhar atônito de várias testemunhas. — Não pediram nem licença. É como se tudo fosse deles — lem- bra uma moradora. O destino do bando era um bu- raco nos fundos do terreno. Cons- truído dois meses depois da inau- guração, o muro foi depredado, logo após ser erguido, para servir de passagem a traficantes do Ale- mão, onde há quatro UPPs. Ao la- do do portal improvisado, a sigla de uma facção criminosa não per- mite dúvidas sobre seu uso. A menos de um quilômetro dali, o Residencial Jardim Canário co- meçou a receber moradores no mesmo dia do Beija-Flor: 18 de no- vembro de 2014. Tal como no con- junto vizinho, não demorou para o tráfico aparecer. No fim do ano, cri- minosos armados reuniram-se na churrasqueira e avisaram: “O mo- vimento tá chegando”. Já nos residenciais Jardim das Acácias e Palmeiras, lado a lado na Estrada do Itararé, a influência do crime era percebida nas noites de sábado. Até dezembro, bailes funk com venda de drogas e presença de homens armados tomavam a quadra do Jardim das Acácias. — Parei de ir ao baile quando bandidos passaram a vir do morro para vender drogas — diz uma es- tudante, moradora do Palmeiras. Segundo a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP), as UPPs da Cidade de Deus e Adeus/ Baiana “não foram informados ofi- cialmente sobre denúncias de trá- fico”. A CPP também alega que o baile do Jardim das Acácias “nun- ca foi autorizado”. A íntegra das respostas está no site do EXTRA. Também na Zona Norte, em Triagem, a Polícia Civil prendeu, em novembro de 2014, cinco ho- mens que montaram uma boca de fumo num apartamento do Bairro Carioca — um complexo de 11 condomínios, com mais de dois mil imóveis. No mesmo mês, um usuário de drogas foi espancado dentro do conjunto devido a uma dívida com traficantes. Semanas antes, em setembro, o morador Leandro Barbosa dos Santos morreu após ser vítima de bala perdida durante um tiroteio entre bandidos e PMs no interior do Bairro Carioca. O caso é apura- do pela 25ª DP (Engenho Novo). O crime pede passagem Quarta-feira, 25 de março de 2015 extra.globo.com 2ª Edição ESPECIAL 13 B A próxima fase do programa “Minha casa, minha vida” vai ter mudanças nos projetos dos em- preendimentos para que as forças de segurança possam entrar com mais facilidade nos condomínios. A decisão foi tomada em conjunto pelos ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, e das Cidades, Gilberto Kassab, após o EXTRA re- velar que todos os condomínios da faixa 1 do “Minha casa, minha vi- da” no município do Rio são alvos da ação do crime organizado. Os ministros se reuniram ante- ontem no Palácio da Justiça, em Brasília, com representantes da Polícia Federal e da Caixa Econô- mica. O objetivo do encontro era discutir medidas a serem toma- das contra o avanço do crime no Conjunto Residencial Haroldo Andrade, em Barros Filho. No domingo, o EXTRA mostrou que 80 famílias foram expulsas do condomínio pelo tráfico. — Qualquer programa dessa dimensão apresenta problemas. Nós nos reunimos para identifi- car formas de mudar o projeto, para que as ações de segurança possam ser feitas dentro dos con- juntos — afirmou Kassab, ontem, durante a entrega de 300 unida- des habitacionais no condomínio Trio de Ouro I, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Já o governador Luiz Fernan- do Pezão prometeu para breve uma ação com “forças especiais” no Haroldo de Andrade, que vai reunir a Polícia Federal e a Secre- taria de Segurança do Rio. — O ministro José Eduardo es- tá escalando uma força especial e o secretário Beltrame, tam- bém, para retomarmos esses apartamentos — afirmou o go- vernador, em meio a fotos e pro- messas de uma vida melhor aos recém-chegados moradores do novo conjunto na Baixada. No discurso de inauguração, o governador voltou a prometer que levará segurança aos condo- mínios: — Vamos trazer segurança pu- blica. Sei que a gente tem dívida, mas já contratamos mais mil PMs esse ano. Segurança é nosso mote. Mudanças no projeto FOTOS DE FABIANO ROCHA “Essa festa é pra vocês. Um momento pra quem ainda não ganhou sua casa acreditar” Gilberto Kassab Ministro das Cidades, na inauguração do conjunto Trio do Ouro “A segurança é vulnerável. Quem manda mesmo é o tráfico” Francisco* Morador do Residencial Itamar Franco “Qualquer programa dessa dimensão apresenta problemas” O governador Pezão, com Kassab ao fundo, conversa com uma moradora do Trio de Ouro I, na Baixada RADIOGRAFIA DOS CONJUNTOS Fontes: Caixa Econômica Federal, Disque-Denúncia, Ministério das Cidades, Ministério Público do Rio, Polícia Civil e Secretaria municipal de Habitação Legenda Disque-Denúncia Inquéritos concluídos ou em andamento Relatos de moradores ouvidos pelo EXTRA Pichações com alusão a milícia ou facção criminosa Complexo do Alemão R$ 29.100.000 Outubro de 2010 2 Condomínios Jardim das Acácias e Palmeiras BAIRRO PROBLEMAS APARTAMENTOS FAMÍLIAS CUSTO DA OBRA INAUGURAÇÃO CONDOMÍNIOS 582 339 R$ 22.500.000 Novembro de 2014 2 Residenciais Jardim Canário e Jardim Beija-Flor BAIRRO PROBLEMAS APARTAMENTOS FAMÍLIAS CUSTO DA OBRA INAUGURAÇÃO CONDOMÍNIOS 300 279 Cidade de Deus 996 R$ 57.468.614 Julho de 2014 3 Conjunto Residencial Presidente Itamar Franco I, II e III BAIRRO PROBLEMAS APARTAMENTOS FAMÍLIAS CUSTO DA OBRA INAUGURAÇÃO CONDOMÍNIOS 895 T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T r r r r r r r r r r r r r r r r r rá á á á á á á á á á á á á á á á á á á f f f f f f f f f f f f f f f f f f fi i i i i i i i i i i i i i i i i i i ic c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c co o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T r r r r r r r r r r r r r r rá á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á á áf f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f fi i i i i i i i i i i i i i i i i ic c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T T r r r r r r r r r r r r rá á á á á á á á á á á á á á á á á á á áf f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f f fi i i i i i i i i i i i i i i i i ic c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c c o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o Complexo do Alemão B As primeiras visitas que a em- pregada doméstica Barbara He- lena da Silva, de 38 anos, rece- beu em seu novo apartamento foram o governador Luiz Fer- nando Pezão e o ministro Gilber- to Kassab. A ex-moradora do co- munidade da Rua Baiana, em São João de Meriti, agora vai vi- ver no recém-inaugurado con- domínio Trio de Ouro I, em Vilar dos Teles. Na mudança, leva o sonho de uma vida melhor. — Isso aqui é outro mundo. Lá tinha enchente, vivíamos no meio de tiroteios. Era horrível. Aqui vai ser outra vida — disse Barbara. Sobre a presença do tráfico e da milícia no entorno do condomí- nio, Barbara é otimista e acredita nas promessas do governador. — O condomínio é cercado de favelas. Mas acho que não vai ter problema. Aqui tem mais patru- lhamento. Lá era abandonado — conta, com um sorriso no rosto. Já a estudante Ana Beatriz San- tos, de 21 anos, sempre teve pro- blemas para chegar em casa. Para a cadeirante, buracos nas calçadas eram um pesadelo diário. — A locomoção era bem mais difícil. Aqui, tudo é adaptado para mim — conta. Ao todo, o EXTRA conversou com oito novos moradores do con- domínio. Dois não quiseram co- mentar as questões de segurança por “medo da milícia”. s t No início, o sonho de uma vida melhor ENTREVISTA B O que foi resolvido na reunião com o Ministério da Justiça para tratar da ação do crime dentro dos conjuntos? O governo federal está procuran- do com os técnicos melhorar os projetos dos condomínios para que eles possam favorecer a ação do estado na área de segurança. Ontem, o que tivemos em Brasí- lia, na presença do ministro José Eduardo Cardozo, foi uma reuni- ão para identificar formas de mudar o projeto, definir o que não pode continuar para que sejam facilitadas ações em locais com problemas de segurança. Quanto à situação das 80 famíli- as expulsas de um condomínio em Barros Filho, o que o Ministé- rio das Cidades pode fazer? Esse é um problema de polícia. O governo federal está à disposição de todos os estados para enfren- tarmos ações criminosas. Qual- quer programa dessa dimensão, ao longo da sua implantação, vai apresentando problemas. Esta- mos identificando-os para que sejam resolvidos. ‘Vamos mudar para favorecer a segurança’ GILBERTO KASSAB Ministro das Cidades ENTREVISTA B O que o senhor vai fazer sobre o domínio do crime nos conjuntos do “Minha casa, minha vida”? O que eu posso fazer eu já fiz: me colocar à disposição do ministro José Eduardo Cardozo. Tenho falado com ele permanentemen- te, porque, em todo equipamen- to do “Minha casa, minha vida”, quem tem que pedir uso da força policial é a Polícia Federal. Nós assinamos um convênio com o ministro e vamos fazer diversas operações nesses conjuntos. Quando isso será feito? O ministro está escalando uma força especial e o secretário (de Segurança) Beltrame também. As ações vão ser intensificadas em breve. Não vou falar quando, senão não tem graça. O que fazer para que situações como essas não se repitam? É uma luta constante. Não é fácil. Estamos atentos. ‘Estamos escalando forças especiais’ LUIZ FERNANDO PEO Governador do Rio Prédios do Trio do Ouro I com a favela ao fundo: dois moradores não falaram por “medo da milícia” MAIS NO SITE extra.globo.com Assista ao vídeo com o governador e o ministro. RAFAEL SOARES Pichação na Cidade de Deus: o tráfico proibiu roubos no condomínio Morador mostra o projétil que entrou em sua casa na noite de réveillon URBANO ERBISTE Deilson Ribeiro Silva, o Deidei ............................................................................................... AMANNa Zona Oeste, milícia continua dando as cartas após operação. REPRODUÇÃO Boca de fumo

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Escuta mostra intervenção debandidos da Cidade de Deus no sorteio dos beneficiados

Cidade de Deus, ZonaOeste do Rio, a constru-

ção de quase mil apartamentos doprograma “Minha casa, minha vi-da” tinha como objetivo, segundoo governo do estado, a realocaçãode famílias que viviam “em áreasde risco e condições insalubres”. Osorteio, no entanto, pode ter bene-ficiado o crime. Segundo uma in-vestigação da Polícia Civil, bandi-dos interferiram na escolha dosagraciados. No quarto capítulo dasérie “Minha casa, minha sina”, oEXTRA mostradiferentes for-mas de influên-cia exercidaspelo tráfico dedrogas na vidados moradores.

Numa escu-ta feita pela32ª DP (Taquara), uma mulher,identificada pela polícia como“uma das pessoas responsáveispela triagem dos beneficiados”pelo projeto na Cidade de Deus,convence um gerente do tráficoda favela a cadastrar uma pessoamorta entre os postulantes a umapartamento no Residencial Ita-mar Franco. A ligação, gravadaem 18 de julho do ano passado,faz parte de um inquérito que cul-

minou com a prisão de dez trafi-cantes em janeiro deste ano.

“Você tinha que pegar o nomedela que já tá pronto (...) e, depoisque tiver morando, trocar pro no-me dele”, diz a mulher. Segundofuncionárias da 23ª Região Admi-nistrativa da prefeitura que traba-lham na Cidade de Deus, o cadas-tro foi feito por associações de mo-radores da favela. O governo doestado entregou as unidades.

“Mas não daria problema não?”,responde Deilson Ribeiro da Silva,

o Deidei, presodesde 21 deagosto de 2014na PenitenciáriaGabriel FerreiraCastilho, emBangu. “Não dáproblema não,eu falei com sua

cunhada que depois eu quero mos-trar o óbito e transferir, enten-deu?”, argumenta a mulher.

Ao fim do inquérito, Deidei foidenunciado pelo promotor Edu-ardo Paes Fernandes como o “res-ponsável pela ingerência do tráfi-co no ‘Minha casa, minha vida’”.A mulher não foi identificada, eas investigações sobre a fraudeno cadastro não avançaram. Ummorador, entretanto, procurou a

32ª DP no ano passado para de-nunciar que “pessoas da associa-ção de moradores, a mando detraficantes, estão cobrando o va-lor de R$5 mil para moradoresconseguirem o benefício”.

A Cidade de Deus tem uma UPPdesde fevereiro de 2009. A presen-ça do crime no Itamar Franco, con-tudo, não é discreta. Em todos os

prédios, há uma inscrição assina-da pela facção que controla o tráfi-co no Caratê, localidade mais con-flagrada da favela: “Quem for pe-go roubando vai morrer”.

— A venda de drogas acontecenas garagens. Quando a políciachega, os bandidos fogem para oscondomínios — diz Francisco*,dono de um imóvel no conjunto.

NA

“Depois eu quero mostrar o óbito

e transferir, entendeu?”

todos os nomes utilizados na série são fictícios*

12 ⟩ ESPECIAL 2ª Edição extra.globo.com Quarta-feira, 25 de março de 2015

DEPOIMENTO

B Não fazia nem uma semana queeu tinha me mudado. Na noite deréveillon, quando voltamos pracasa, as crianças entraram noquarto e viram a janela estilhaça-da. De manhã, minha filha foilimpar e achou um projétil. Foi aíque tivemos a noção exata do quetinha ocorrido. Meu filho está ali,do mesmo jeito, sentado jogandono computador dele. Foi bem alique a bala bateu. E já tem outrasjanelas furadas no conjunto. Ondea gente morava antes e desapro-priaram nossa casa, eu já estavasaindo por causa dos tiroteios.Agora, vou ficar aqui, à mercê?Estou assustado e desapontado. Agente trabalha e faz de tudo emprol dos nossos filhos. Não quere-mos isso para ninguém, mas mui-to menos para eles.

‘Vou ficar aqui, à mercê? Estoudesapontado’

FELIPE*Morador do Residencial JardimCanário, no Complexo do Alemão

B Manhã de 28 de fevereiro, sába-do, por volta das 9h. Enquanto cri-anças se divertem no ResidencialJardim Beija-Flor — um dos qua-tro conjuntos do “Minha casa, mi-nha vida” no Complexo do Ale-mão, Zona Norte do Rio — a brin-cadeira é interrompida por umavisita inesperada: seis homens ar-mados, dois deles com fuzis, cru-zam o conjunto sob o olhar atônitode várias testemunhas.

— Não pediram nem licença. Écomo se tudo fosse deles — lem-bra uma moradora.

O destino do bando era um bu-raco nos fundos do terreno. Cons-truído dois meses depois da inau-guração, o muro foi depredado,logo após ser erguido, para servirde passagem a traficantes do Ale-mão, onde há quatro UPPs. Ao la-do do portal improvisado, a siglade uma facção criminosa não per-mite dúvidas sobre seu uso.

A menos de um quilômetro dali,o Residencial Jardim Canário co-meçou a receber moradores nomesmo dia do Beija-Flor: 18 de no-vembro de 2014. Tal como no con-junto vizinho, não demorou para otráfico aparecer. No fim do ano, cri-minosos armados reuniram-se nachurrasqueira e avisaram: “O mo-vimento tá chegando”.

Já nos residenciais Jardim dasAcácias e Palmeiras, lado a lado naEstrada do Itararé, a influência do

crime era percebida nas noites desábado. Até dezembro, bailes funkcom venda de drogas e presençade homens armados tomavam aquadra do Jardim das Acácias.

— Parei de ir ao baile quandobandidos passaram a vir do morropara vender drogas — diz uma es-tudante, moradora do Palmeiras.

Segundo a Coordenadoria dePolícia Pacificadora (CPP), asUPPs da Cidade de Deus e Adeus/Baiana “não foram informados ofi-cialmente sobre denúncias de trá-fico”. A CPP também alega que obaile do Jardim das Acácias “nun-ca foi autorizado”. A íntegra dasrespostas está no site do EXTRA.

Também na Zona Norte, emTriagem, a Polícia Civil prendeu,em novembro de 2014, cinco ho-mens que montaram uma boca defumo num apartamento do BairroCarioca — um complexo de 11condomínios, com mais de doismil imóveis. No mesmo mês, umusuário de drogas foi espancadodentro do conjunto devido a umadívida com traficantes.

Semanas antes, em setembro, omorador Leandro Barbosa dosSantos morreu após ser vítima debala perdida durante um tiroteioentre bandidos e PMs no interiordo Bairro Carioca. O caso é apura-do pela 25ª DP (Engenho Novo).

O crime pede passagem

Quarta-feira, 25 de março de 2015 extra.globo.com 2ª Edição ESPECIAL ⟨ 13

B A próxima fase do programa“Minha casa, minha vida” vai termudanças nos projetos dos em-preendimentos para que as forçasde segurança possam entrar commais facilidade nos condomínios.A decisão foi tomada em conjuntopelos ministros da Justiça, JoséEduardo Cardozo, e das Cidades,Gilberto Kassab, após o EXTRA re-velar que todos os condomínios dafaixa 1 do “Minha casa, minha vi-da” no município do Rio são alvosda ação do crime organizado.

Os ministros se reuniram ante-ontem no Palácio da Justiça, emBrasília, com representantes daPolícia Federal e da Caixa Econô-mica. O objetivo do encontro eradiscutir medidas a serem toma-das contra o avanço do crime noConjunto Residencial HaroldoAndrade, em Barros Filho. Nodomingo, o EXTRA mostrou que80 famílias foram expulsas docondomínio pelo tráfico.

— Qualquer programa dessadimensão apresenta problemas.Nós nos reunimos para identifi-car formas de mudar o projeto,

para que as ações de segurançapossam ser feitas dentro dos con-juntos — afirmou Kassab, ontem,durante a entrega de 300 unida-des habitacionais no condomínioTrio de Ouro I, em São João deMeriti, na Baixada Fluminense.

Já o governador Luiz Fernan-do Pezão prometeu para breveuma ação com “forças especiais”no Haroldo de Andrade, que vaireunir a Polícia Federal e a Secre-taria de Segurança do Rio.

— O ministro José Eduardo es-tá escalando uma força especiale o secretário Beltrame, tam-bém, para retomarmos essesapartamentos — afirmou o go-vernador, em meio a fotos e pro-messas de uma vida melhor aosrecém-chegados moradores donovo conjunto na Baixada.

No discurso de inauguração, ogovernador voltou a prometerque levará segurança aos condo-mínios:

— Vamos trazer segurança pu-blica. Sei que a gente tem dívida,mas já contratamos mais mil PMsesse ano. Segurança é nosso mote.

Mudanças no projeto

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“Essa festa é pra vocês. Um momento pra quem ainda não ganhou sua casa acreditar”Gilberto Kassab Ministro das Cidades, na inauguração do conjunto Trio do Ouro

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“Qualquer programa dessa dimensão apresenta problemas”O governador Pezão, com Kassab ao fundo, conversa com uma moradora do Trio de Ouro I, na Baixada

RADIOGRAFIA DOS CONJUNTOS

Fontes: Caixa Econômica Federal, Disque-Denúncia, Ministério das Cidades, Ministério Público do Rio, Polícia Civil e Secretaria municipal de Habitação

Legenda

Disque-Denúncia

Inquéritos concluídos ou em andamento Relatos de moradores ouvidos pelo EXTRA

Pichações com alusão a milícia ou facção criminosa

Complexo do Alemão

R$ 29.100.000

Outubro de 2010

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Condomínios Jardim

das Acácias e Palmeiras

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PROBLEMAS

APARTAMENTOS

FAMÍLIAS

CUSTO DA OBRA

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339 R$ 22.500.000Novembro de 20142

Residenciais Jardim Canárioe Jardim Beija-Flor

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APARTAMENTOSFAMÍLIAS

CUSTO DA OBRA

INAUGURAÇÃO

CONDOMÍNIOS

300279

Cidade de Deus

996

R$ 57.468.614

Julho de 20143

Conjunto ResidencialPresidente Itamar Franco I, II e III

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PROBLEMAS

APARTAMENTOSFAMÍLIAS

CUSTO DA OBRA

INAUGURAÇÃO

CONDOMÍNIOS

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TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTrrrrrrrrrrrrrááááááááááááááááááááffffffffffffffffffffffffffiiiiiiiiiiiiiiiiiiccccccccccccccccccccccccccccccccccccccooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooComplexo do Alemão

B As primeiras visitas que a em-pregada doméstica Barbara He-lena da Silva, de 38 anos, rece-beu em seu novo apartamentoforam o governador Luiz Fer-nando Pezão e o ministro Gilber-to Kassab. A ex-moradora do co-munidade da Rua Baiana, emSão João de Meriti, agora vai vi-ver no recém-inaugurado con-domínio Trio de Ouro I, em Vilardos Teles. Na mudança, leva osonho de uma vida melhor.

— Isso aqui é outro mundo. Látinha enchente, vivíamos no meiode tiroteios. Era horrível. Aqui vaiser outra vida — disse Barbara.

Sobre a presença do tráfico e damilícia no entorno do condomí-nio, Barbara é otimista e acreditanas promessas do governador.

— O condomínio é cercado defavelas. Mas acho que não vai terproblema. Aqui tem mais patru-lhamento. Lá era abandonado —conta, com um sorriso no rosto.

Já a estudante Ana Beatriz San-tos, de 21 anos, sempre teve pro-blemas para chegar em casa. Paraacadeirante, buracos nas calçadaseram um pesadelo diário.

— A locomoção era bem maisdifícil. Aqui, tudo é adaptado paramim — conta.

Ao todo, o EXTRA conversoucom oito novos moradores do con-domínio. Dois não quiseram co-mentar as questões de segurançapor “medo da milícia”. s

t

No início, o sonho de uma vida melhor

ENTREVISTA

B O que foi resolvido na reuniãocom o Ministério da Justiça paratratar da ação do crime dentrodos conjuntos?O governo federal está procuran-do com os técnicos melhorar osprojetos dos condomínios paraque eles possam favorecer a açãodo estado na área de segurança.Ontem, o que tivemos em Brasí-lia, na presença do ministro JoséEduardo Cardozo, foi uma reuni-ão para identificar formas demudar o projeto, definir o quenão pode continuar para quesejam facilitadas ações em locaiscom problemas de segurança.

Quanto à situação das 80 famíli-as expulsas de um condomínioem Barros Filho, o que o Ministé-rio das Cidades pode fazer?Esse é um problema de polícia. Ogoverno federal está à disposiçãode todos os estados para enfren-tarmos ações criminosas. Qual-quer programa dessa dimensão,ao longo da sua implantação, vaiapresentando problemas. Esta-mos identificando-os para quesejam resolvidos.

‘Vamos mudarpara favorecera segurança’

GILBERTO KASSABMinistro das Cidades

ENTREVISTA

B O que o senhor vai fazer sobre odomínio do crime nos conjuntosdo “Minha casa, minha vida”?O que eu posso fazer eu já fiz: mecolocar à disposição do ministroJosé Eduardo Cardozo. Tenhofalado com ele permanentemen-te, porque, em todo equipamen-to do “Minha casa, minha vida”,quem tem que pedir uso da forçapolicial é a Polícia Federal. Nósassinamos um convênio com oministro e vamos fazer diversasoperações nesses conjuntos.

Quando isso será feito?O ministro está escalando umaforça especial e o secretário (deSegurança) Beltrame também. Asações vão ser intensificadas embreve. Não vou falar quando,senão não tem graça.

O que fazer para que situaçõescomo essas não se repitam?É uma luta constante. Não éfácil. Estamos atentos.

‘Estamosescalando forçasespeciais’

LUIZ FERNANDO PEZÃOGovernador do Rio

Prédios do Trio do Ouro I com a favela ao fundo: dois moradores não falaram por “medo da milícia”

MAIS NO SITEextra.globo.com

Assista ao vídeo com o governador e o ministro.

RAFAEL SOARES

Pichação na Cidade de Deus: o tráfico proibiu roubos no condomínio

Morador mostra o projétil que entrou em sua casa na noite de réveillon

URBANO ERBISTE

Deilson Ribeiro Silva, o Deidei

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AMANHÃNa Zona Oeste, milícia continuadando as cartas após operação.

RE

PR

OD

ÃO

Boca de fumo