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Capítulo 4 RACIONALIDADE , SOCIOLOGIA E A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA 1  I - Introdução Ao apresentar o jogo do Dilema dos Prisioneiros, os autores por vezes se referem ao estabelecimento de um pacto como algo que viria alterar radicalmente a situação e permitir aos participantes evitar o dilema. A impossibilidade de que os  prisioneiros se comuniquem uns com os outros é então vista como característica definidora do jogo: se pudessem comunicar-se, pensa-se, eles estabeleceriam um  pacto de cooperação e o dilema desapareceria. 2 Essa é claramente uma suposição falsa. Sob o postulado geral de agentes calculadores guiados pelo interesse próprio, o estabelecimento de um pacto não representaria senão razão adicional para que cada qual agisse egoisticamente e decidisse de maneira a garantir seu interesse. Pois, feito o pacto, o prisioneiro A seria levado a avaliar a situação como envolvendo maior  probabilidade de que o prisioneiro B se inclinasse a agir como um "otário" – ou de que B visse a ele, A, como um provável otário. Essa é, naturalmente, a dificuldade enfrentada pela discutida teoria hobbesiana da obrigação política. Se, por um lado, Hobbes alega basear sua teoria em considerações que envolveriam somente a prudência ou o interesse próprio, ele se defronta, por outro lado, com o dilema da ação coletiva ao tentar associar a transição do estado de natur eza para a sociedade civil com o estabelec iment o de um pacto. É, assim, levado a recorrer, de modo inconsistente, a uma lei da natureza que disporia que  pacta sunt servanda . O interesse próprio por si só não parece capaz de levar a  pactos viáveis ou efetivos, e o recurso de Hobbes à coerção pelo Leviatã pode talvez ser visto como expressão equívoca – e ainda assim inconsistente – d esse dilema. 1 Trabalho preparado originalmente para o simpósio "Micro-foundations of Democracy", organizado  por Adam Przeworski e ocorrido na Universidade de Chicago, de 29 de abril a 1º.  de maio de 1988. O objetivo central do simpósio era o de avaliar o interesse da perspectiva da escolha racional para os  problemas de transições para a democracia e o estabelecimento de pactos democráticos na América Latina. O trabalho foi posteriormente publicado, em inglês, sob o título "Rationality, Sociology and the Consolidation of Democracy", na Série Estudos do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, no. 83, abril de 1991, tendo aparecido em português em Teoria e Sociedade , no. 1, 1997. Publica-se aqui com algumas adaptações. 2 Veja-se, por exemplo, Anatol Rapoport,  Fights, Games and Debates, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1961, pp. 173-4 e 180.

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Capítulo 4

RACIONALIDADE, SOCIOLOGIA E A CONSOLIDAÇÃODA DEMOCRACIA1

I - Introdução

Ao apresentar o jogo do Dilema dos Prisioneiros, os autores por vezesse referem ao estabelecimento de um pacto como algo que viria alterar radicalmente asituação e permitir aos participantes evitar o dilema. A impossibilidade de que os prisioneiros se comuniquem uns com os outros é então vista como característicadefinidora do jogo: se pudessem comunicar-se, pensa-se, eles estabeleceriam um pacto de cooperação e o dilema desapareceria.2 Essa é claramente uma suposiçãofalsa. Sob o postulado geral de agentes calculadores guiados pelo interesse próprio, oestabelecimento de um pacto não representaria senão razão adicional para que cadaqual agisse egoisticamente e decidisse de maneira a garantir seu interesse. Pois, feitoo pacto, o prisioneiro A seria levado a avaliar a situação como envolvendo maior probabilidade de que o prisioneiro B se inclinasse a agir como um "otário" – ou deque B visse a ele, A, como um provável otário.

Essa é, naturalmente, a dificuldade enfrentada pela discutida teoria

hobbesiana da obrigação política. Se, por um lado, Hobbes alega basear sua teoria emconsiderações que envolveriam somente a prudência ou o interesse próprio, ele sedefronta, por outro lado, com o dilema da ação coletiva ao tentar associar a transiçãodo estado de natureza para a sociedade civil com o estabelecimento de um pacto. É,assim, levado a recorrer, de modo inconsistente, a uma lei da natureza que disporiaque pacta sunt servanda. O interesse próprio por si só não parece capaz de levar a pactos viáveis ou efetivos, e o recurso de Hobbes à coerção pelo Leviatã pode talvezser visto como expressão equívoca – e ainda assim inconsistente – desse dilema.

1 Trabalho preparado originalmente para o simpósio "Micro-foundations of Democracy", organizado por Adam Przeworski e ocorrido na Universidade de Chicago, de 29 de abril a 1º. de maio de 1988.O objetivo central do simpósio era o de avaliar o interesse da perspectiva da escolha racional para os problemas de transições para a democracia e o estabelecimento de pactos democráticos na AméricaLatina. O trabalho foi posteriormente publicado, em inglês, sob o título "Rationality, Sociology andthe Consolidation of Democracy", na Série Estudos do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio deJaneiro, no. 83, abril de 1991, tendo aparecido em português emTeoria e Sociedade, no. 1, 1997.Publica-se aqui com algumas adaptações.2 Veja-se, por exemplo, Anatol Rapoport, Fights, Games and Debates, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1961, pp. 173-4 e 180.

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Penso ser essa a questão principal a considerar ao se avaliar a utilidadeda abordagem da escolha racional para lidar com os problemas colocados pelos processos de transição à democracia em contextos tais como o da América Latina dehoje e com o papel a ser neles desempenhado por pactos de qualquer natureza. Háalgo mais em jogo, no entanto: tal questão acaba por expressar as dificuldadescentrais, e talvez os limites, da abordagem da escolha racionalcomo tal no campo dasciências sociais. Assim, os dois lados da problemática a que somos convidados por Adam Przeworski – o lado "substantivo" de problemas específicos de teoria e pesquisa política e o lado epistemológico – parecem fortemente entrelaçados um como outro.

Ilustração sugestiva das dificuldades da aposta epistemológica daabordagem da escolha racional, num contexto diretamente relevante para nossas

preocupações substantivas, pode ser encontrada na discussão do último livro deMancur Olson feita em 1984 por Jon Elster, um dos mais importantes paladinos daescolha racional.3 Olson se ocupa de "coalizões", que têm afinidade óbvia com"pactos". Elster chama a atenção para a articulação tentada por Olson entre o focoanalítico apresentado em seu clássicoThe Logic of Collective Actione algumas proposições novas quanto à questão dos determinantes do sucesso da ação coletiva no plano de sociedades de dimensões nacionais. Tais proposições, na leitura de Elster,equivalem a afirmar a importância de um processo estocástico cuja operação,combinada com os mecanismos descritos emThe Logic, leva Olson a sua conclusão básica, formulada por Elster como segue: "sociedades estáveis acumularão grupos deinteresse especiais, os quais convergirão para um subconjunto algo distorcido da população total de grupos de interesse potenciais".4 Poucas páginas adiante, já aofinal do artigo, Elster afirma que "seria bom se Olson tentasse levar-nos a vislumbrar o interior da caixa preta onde tem lugar a formação de coalizões, em vez de apoiar ateoria sobre um processo estocástico dotado de pouco poder explicativo".5

Ora, como reconhecido por Elster, Olson repetidamente sustenta estar recorrendo, no plano que caberia designar como "micro", ao argumento introduzidoem The Logic, onde certamente o autor pretende queexisteuma teoria da formação

3 Mancur Olson,The Rise and Decline of Nations, New Haven, Yale University Press, 1982. Adiscussão de Elster está contida em “The Contradictions of Modern Society”,Government and Opposition, vol. 19, no. 3, verão de 1984.4 Ibid., pp. 304-5.5 Ibid., p. 311.

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de coalizões – a teoria da ação coletiva como subproduto. Além disso, dificilmente se poderá negar que esta última dá expressão aos pressupostos fundamentais daabordagem da escolha racional, devendo provavelmente ser vista comoa teoria por alguém inspirado por tais pressupostos. É-se levado a perguntar, assim, qual oalcance real da recomendação de Elster no sentido de que se examine o interior dacaixa preta da formação de coalizões – e creio que ela redunda, ao cabo, emrecomendar uma abordagem convencionalmente sociológica ou psicossociológica,em vez da abordagem da escolha racional. Pois, baseando-se na suposição deracionalidade e numa psicologia correspondentemente esquemática, a escolharacional parece necessariamente "externa" a qualquer "caixa preta" que umaabordagem descritivamente mais rica possa pretender alcançar. Naturalmente, cabemmuitas indagações com respeito à transição dos supostos de racionalidade e talvez de

motivação egoísta, no nível micro, para os efeitos agregados, no nível macro, decomportamentos que se ajustem a tais supostos. Mas não se vê em que sentido o processo estocástico de que fala Olson, especialmente se combinado aos mecanismosindicados pela teoria da ação coletiva como subproduto, poderia ser descrito comosendo mais misterioso do que as perversões e contradições nas relações entre osníveis micro e macro que residem no próprio núcleo dos esforços teóricos orientados pela abordagem da escolha racional. Sem dúvida, há aqui de fato uma caixa preta – mas a questão decisiva é se ela pode ser aberta com os recursos disponíveis dentrodos limites estritos da abordagem da escolha racional.

II - Alguns Problemas Epistemológicos Básicos

Os pressupostos básicos e mais gerais da abordagem da escolharacional referem-se à intencionalidade ou busca de objetivos e à racionalidade. Omodelo correspondente de explicação pode talvez ser resumido pela idéia de alguém

que diz "Quero e vou tratar de conseguir". Além do óbvio elemento de volição e deum elemento correspondente de determinação ou engajamento, o modelo incluitambém o elemento de uma preocupação com a eficácia, o qual implica cognição e a busca de avaliação lúcida da situação em que a ação irá supostamente desenvolver-se.Claramente, quanto mais informado, deliberado e lúcido for o comportamento ou aação, mais se realizarão as características desse modelo de explicação.

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A motivação para se recorrer a tais pressupostos é com freqüênciadescrita na literatura da escolha racional em termos da busca pelos"microfundamentos dos macrofenômenos". Isso coloca o problema das maneirasalternativas de se estruturar analiticamente o objeto de estudo das ciências sociais, particularmente a tradicional oposição entre "infra-estrutura" e "superestrutura". Umadas formas de se entender essa distinção tende a ligar diferentes tipos de ação a cadanível ou dimensão, de modo que a infra-estrutura seria a esfera da ação "material" ou"econômica" (do "trabalho"), enquanto a superestrutura seria a esfera de um conjuntovariado de outros tipos de ação (aqueles relacionados com as idéias, crenças ouvalores de natureza mais "elevada", com a religião, o direito, a "cultura" e aspectosafins). Seja qual for o interesse que uma distinção nesses termos possa apresentar decertos pontos de vista, é bem claro que ela se presta a muitas confusões. Em um caso,

as "ações reais", vistas como infra-estrutura, são opostas à superestrutura das idéias,valores e crenças como tal – como se pudesse haver ação de qualquer tipo sem a presença destes últimos elementos. Outra forma de se ver a mesma dicotomia, naqual ocorre certainversãona concepção das relações entre ação e estrutura, é a quecaracteriza a perspectiva "determinista" nas disputas marxistas em torno dedeterminismo e voluntarismo: aqui, o contexto social "objetivado" da ação ganha precedência sobre a própria ação e a explica. De qualquer modo, tendo em mente osmeandros da oposição entre infra-estrutura e superestrutura, pareceria pelo menos tãolegítimo falar dos "macrofundamentos do microcomportamento" quanto dos"microfundamentos dos macrofenômenos" do lema da escolha racional.

Naturalmente, a questão central envolvida é a da direção dacausalidade, traduzindo-se em termos de onde encontrar os "fatores" cruciais ou a queárea ou dimensão da realidade social atribuir algum tipo de privilégio causal. Mas asrelações entre o esforço analítico de apontar a causalidade, de um lado, e, de outro, adistinção entre "ação" e "estrutura" (vista esta última como uma espécie de foco

"objetivo" de causação) parecem bem mais difíceis de estabelecer corretamente doque se tende a acreditar em qualquer leitura apressada de tais dicotomias. Écertamente possível argumentar, como o faz Elster, em favor de uma distinção naqual o nível do comportamento intencional opõe-se ao nível da causalidade (objetiva) – por sua vez dividida por Elster em "causalidade subintencional" e "causalidadesupra-intencional", esta referindo-se à feição causal exibida pela interação entre

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atores intencionais (contradições sociais, efeitos de agregação ou composição etc.).6

Mas penso que, adequadamente compreendido, o pressuposto de intencionalidade eracionalidade leva necessariamente, por si mesmo, ao estabelecimento de umaligação indelével entre esses diferentes aspectos, vistos quer como "dimensões" darealidade social, quer como "mecanismos causais". Há claramente um sentido em quea ação "causa" a estrutura social, assim como há um sentido igualmente claro em quea ação é moldada e condicionada (e portanto "causada", ao menos num sentidoflexível da palavra) por seu contexto. Assim como a ação produz estrutura ("congela-se", por assim dizer, em estrutura), assim também a estrutura (como ocontextodaação) "racionaliza" a ação e a torna inteligível como tal. Pois a estrutura, em suaconexão com os mecanismos ligados tanto à causalidade subintencional quanto àsupra-intencional, é uma referência indispensável na caracterização daefetividadee

da própriaracionalidadeda ação.Isso pode parecer trivial em certa leitura, mas tem, na verdade,

ramificações importantes. Assim, muito da disputa entre a escolha racional e asabordagens "convencionais" ("sociológicas") pode ser visto como redundando noconfronto entre dois tipos de modelos ontológicos da realidade social que sedistinguem um do outro de acordo com o status atribuído ao contexto da ação, particularmente tudo aquilo que torna o contexto sociologicamente interessante – e,deve-se acrescentar, tudo aquilo em que um contexto sociologicamente interessanteconcorre para definir os próprios sujeitosda ação. Mas não se fará progresso real nonível epistemológico a não ser que se compreenda com clareza que os problemasautênticos que se apresentam nesse nível não são redutíveis à questão de se recorrer ao modelo ontológico apropriado.

O problema epistemológico realmente relevante pode ser introduzido por referência ao trabalho de Jean Piaget, embora o próprio Piaget tenha sido levado,acredito, a alguns erros importantes a respeito. Como se sabe, Piaget aplica a

distinção estabelecida por Ferdinand de Saussure entre o "diacrônico" e o"sincrônico" ao problema da explicação sociológica.7 A dimensão diacrônica se liga a problemas de gênese e causalidade, ao passo que a dimensão sincrônica tem a ver

6 Veja-se Jon Elster, “Causality and Intentionality: Three Models of Man”, apêndice 2 do capítulo 5de Logic and Society, Nova York, John Wiley & Sons, 1978. Ver também Jon Elster, Explaining Technical Change, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, parte 1, “Modes of ScientificExplanation”.7 Jean Piaget, “La Pensée Sociologique”, em Introduction à l’Épistemologie Génétique, Paris,Presses Universitaires de France, 1950, t. III.

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com relações atemporais e necessárias de implicação lógica. Contudo, umaimportante ambigüidade se introduz no uso que faz Piaget da distinção no tocante ao pensamento sociológico. Por um lado, a sociologia (como a ciência da sociedade, por oposição às ciências exatas e naturais) é vista como uma disciplina na qual essedualismo adquire especial relevância por duas razões associadas, onde encontramoscerta articulação entre aspectos substantivos e metodológicos análoga ao contrasteentre ontologia e epistemologia que se acaba de mencionar. Em primeiro lugar, odualismo diz respeito aoconteúdodo pensamento sociológico, que deve dirigir-se aaspectos da realidade social relacionados tanto com ações efetivas quanto comfenômenos tais como normas, valores e signos – alguns diriam, com a "infra-estrutura" e a "superestrutura". Em segundo lugar, o dualismo se daria também naestrutura formal daquele pensamento, que é apresentada como mais "causal" na

medida em que se refere às ações efetivas de onde adviriam os fatos sociais e comomais "implicativa" na esfera correspondente a normas, valores e signos. Emconseqüência, afirma Piaget, a sociologia "oscila" entre a causalidade e a implicação,e a "passagem do causal ao implicativo" é associada às "dificuldades inerentes àsexplicações sociológicas".8

Ora, a ambigüidade que aí aponto deriva do fato de que a esfera dasrelações de implicação ou da lógica, de acordo com as conclusões do trabalhodesenvolvido pelo próprio Piaget ao longo de toda a sua vida, nada mais é que atransposição, para um nível virtual ou simbólico, de operações que são inicialmenteoperaçõesconcretas, ou ações reais – traço este que diz respeito ao caráter "operacional" do conhecimento em geral, e da lógica em particular, destacado pelasócio-psicologia da inteligência e pela "epistemologia genética" de Piaget. Assim, écertamente adequado dizer, à luz dos próprios pressupostos e descobertas de Piaget,que o desafio ou o objetivo para qualquer tipo de explicação ou de conhecimento é precisamente a "passagem do causal ao implicativo", e a sociologia não é de forma

alguma peculiar nesse aspecto.Como se obtém tal "passagem"? É essa a indagação decisiva, e o

trabalho de Piaget contém resposta clara e persuasiva para ela: estamos no nível doimplicativo, ou no nível "operacional", quando o sujeito do conhecimento é capaz de"manipular" objetos de qualquer natureza de maneira tal que se assegure algum tipo

8 Cf. Jean Piaget, “A Explicação em Sociologia”, em Estudos Sociológicos, Rio de Janeiro, Forense,1973, pp. 49-52.

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de "reversibilidade" nas manipulações – ou "operações" – realizadas. O ponto em quePiaget se confunde é o de que, contrariamente ao que sugere nos textos citadosacima, não há razão para se sustentar que deveríamos ter alguma mudança nessecritério básico de acordo com a natureza dos objetos – em particular, de acordo comseu caráter aparentemente menos ou mais "temporal", genético ou diacrônico. Ocritério se aplica quer estejamos lidando com objetos propriamente materiais ou comeventosfísicos ou de qualquer outro tipo, incluindo os eventos históricos e, portanto,também as ações "efetivas" ou "reais" executadas por agentes humanos. Na verdade,o ponto crucial da idéia da transposição de ações reais para um nível virtual ousimbólico (que Piaget usa para definir a própria lógica) é que a temporalidadeinerente aos eventos e objetos reais, donde resultam suas constantes mudanças deestado, seja substituída por características e relações atemporais (a expressão

"sincrônico" certamente não é de todo apropriada) que derivam diretamente de taismanipulações – e é disso que se trata com a "reversibilidade", a qual tem a ver com aconstrução do objeto permanente que, como tal, se mostra passível de ser manipuladoem operações reais ou virtuais. Como escreve Piaget com relação ao crucial conceitológico e matemático de "grupo", "a reversibilidade característica do grupo supõe anoção de objeto, e vice-versa"; exemplificando com os rudimentares mecanismos degrupo que se dão no nível sensório-motor, lembra Piaget que "encontrar um objetonovamente é encarar a possibilidade de um retorno (por meio de deslocamento, sejado objeto ou do próprio corpo): o objeto nada mais é que o elemento invariantedevido à composição reversível do grupo."9 De qualquer modo, um ângulocomplementar e importante do problema é que o implicativo ou lógico tem a ver comas ações reais ou virtuaisdo próprio sujeito do conhecimento, e não com quaisquer propriedades dos objetos ou coisas sobre as quais essas ações são executadas. Eisuma formulação sintética desse aspecto fornecida pelo próprio Piaget a propósito doconceito de grupo: "...o conceito de grupo é obtido (...) por um modo de pensamento

característico da lógica e da matemática moderna – a ‘abstração reflexiva’–, que nãoderiva propriedades dascoisas, mas sim de nossas maneiras deagir sobre as coisas,as operações que efetuamos sobre elas; ou antes, talvez, das diversas maneirasfundamentais decoordenar tais atos ou operações – 'unir', 'ordenar', 'colocar emcorrespondência de um a um' e assim por diante".10

9 Cf. Jean Piaget, Psicología de la Inteligencia, Buenos Aires, Psique, 1960, p. 152.10 Jean Piaget,Structuralism, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1971, p. 19.

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Ora, o método científico consiste na aplicação da lógica (portanto, dotipo especial de abstração que se refere a nossas próprias operações) ao casoespecífico de nossa "manipulação" das "coisas" de um certo tipo (campo deconhecimento). O aspecto nomológico da ciência, é claro, liga-se diretamente a isso:ele se relaciona com a possibilidade de sereproduzir certo evento ou associação deeventos e, assim, de seeliminar , no limite, o que quer que possa haver de fortuito(emergente, "temporal", diacrônico) na ocorrência correspondente. E a possibilidadede controle intersubjetivo dos resultados alcançados no trabalho científico é tambémdependente do seu caráter nomológico assim entendido – e portanto da possibilidadede manipulação passível de ser reproduzida e transformada, conseqüentemente, emoperação "atemporal" ou "reversível".

Por sua vez, recorrer ao método científico no campo específico dos

problemas sociais significa aplicar a lógica (de novo, aquele tipo de abstração que serefere às nossas próprias ações ou operações) à nossa "manipulação" de uma "coisa"que acontece corresponder a nossas próprias ações. Em conseqüência, podemos ter,nesse caso, umadupla reflexividade: praticamos manipulações e construímos teorias,e ocasionalmente refletimos sobre tais manipulações e construímos métodos eabordagens, buscando explicar as ações das pessoas – explicação que inevitavelmenteincluirá como componente crucial o nexo que os próprios sujeitos atuantes atribuemao seu comportamento. E o "nexo" de nossas próprias explicações não apenas temdiretamente a ver com o nexo tal como percebido pelos próprios agentes, mas naverdade só será satisfatório como tal na medida em que nossas manipulações venhama revelar que existe regularidade ou obediência a leis na ocorrência deste.

Tudo isso me parece ter conseqüências claras para a disputa entre aescolha racional e a "sociologia" convencional. Deixarei de lado a questão da possibilidade de efetiva "manipulação" na esfera da sociedade, questão esta que podeser tomada aqui como de natureza meramente técnica e como passível de ter toda

uma gama de soluções, que vão desde a produção de observações quantitativas, etalvez estritamente reprodutíveis, até algum tipo de trabalho historiográfico"contrafatual", por exemplo. Há outros aspectos, porém, que podem ser maisimportantes do ponto de vista de nossa discussão.

O primeiro deles diz respeito ao problema da nomologia. Seu interesse poderá ser apreciado se considerarmos a curiosa simetria de certa acusação quereciprocamente se fazem os dois lados da atual disputa e que aparece, por exemplo,

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em dois trabalhos de Barry Hindess e Adam Przeworski. Assim, Hindess acusa osmodelos da escolha racional de aderir a um postulado de "homogeneidade", emdecorrência do qual "formas estilizadas de cálculo racional são definidas comocorrespondendo a todos os atores dentro de cada categoria de atores reconhecida nomodelo" (todos os eleitores, todos os partidos, todos os empresários), o queimplicaria "determinismo estrutural".11 Por seu turno, Przeworski, que rechaça "aconcepção psicossociológica do comportamento como execução de normasinteriorizadas", acusa os funcionalistas (incluindo os funcionalistas marxistas) de ver "todo comportamento individual como um ato de execução da sociedadeinteriorizada, com a implicação de que todas as pessoas expostas às mesmas normas evalores deveriam se comportar da mesma maneira".12

Examinada a partir da perspectiva que aqui procuro esboçar, essa

estranha troca da mesma acusação pode ser vista como expressão equívoca de problemas fundamentais e reduzida em sua importância. As "regularidades" a quetemos de recorrer nas ciências sociais se referem necessariamente ao comportamentode atores dentro deambientes(estes últimos incluindo, naturalmente, além deaspectos materiais, também aspectos sociais, sóciopsicológicos etc.). Em princípio, é possível começar, em nossas "manipulações" analíticas à procura das fontes deregularidade nas ações, quer das características dos ambientes que de alguma formaconstrangem os atores, quer das características dos próprios atores. Em qualquer caso, porém, a referência ao outro pólo é inevitável, e haverá sempre pressupostosrestritivos e "homogeneizantes" em qualquer nível analítico dado. As constrições deum ambiente supostamente homogêneo podem operar diferentemente sobrediferentes indivíduos (por exemplo, certas normas são mais plenamente interiorizadas por alguns indivíduos do que por outros) – e o problema científico consistirá emgrande medida em estabelecer categorias de indivíduos nas quais essa operaçãodiferencial se dê (por exemplo, indivíduos mais ou menos racionais, ou mais ou

menos capazes de processar autonomamente informação relevante de vários tipos para decidir que princípio de ação adotar). Ao revés, indivíduos que se supõe serem,digamos, homogeneamente racionais irão agir diferentemente de acordo comdiferenças existentes em seus ambientes – e o problema científico consistirá então em

11 Barry Hindess, “Rational Choice Theory and the Analysis of Political Action”, Economy and Society, vol. 13, no. 33, pp. 263 e 267.12 Adam Przeworski, “Marxism and Rational Choice”, Politics & Society, vol. 14, no. 4, 1985, p.382.

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estabelecer categoriasde ambientes que possam responder por tal comportamentodiferencial. Observe-se, além disso, que esse procedimento de homogeneização é, emqualquer caso, um passo necessário no esforço de se recuperar onexo docomportamento – aos olhos do agente e, conseqüentemente, também do ponto devista do analista. É possível sustentar, assim, que a explicação completa irá requerer um procedimento circular de ida e volta entre ação e contexto, ou entre "micro" e"macro". Raymond Boudon sustentou de maneira convincente, há alguns anos, anecessidade dessa circularidade, apesar de derivar para certas confusões e posiçõesinsustentáveis com respeito ao que denuncia como "o preconceito nomológico".13

Mas há algo mais em tudo isso. Consideremos novamente a distinçãode Piaget entre o genético ou diacrônico e o implicativo ou sincrônico. É bastanteclaro que, apesar de a dimensão implicativa (ou a própria lógica) ter suas bases, em

última instância, nas "ações reais", ela na verdade diz respeito a certa maneiraespecífica de conceber a ação, a qual permite a reversibilidade e requer a idéia doobjeto estável e passível de manipulação, por contraste com as mudanças de estado e"alguma espécie de fluxo heracliteano", para utilizar outra expressão de Piaget.14

Naturalmente, não há razão para que a ação seja necessariamente concebida nessestermos: ela pode igualmente ser pensada como correspondendo a impulso, irrupção eemergência, ou como ligada à espontaneidade e ao caráter fortuito que são própriosdo nível do genético ou diacrônico. Mas parece inegável que o ideal de conhecimentocientífico se acha inevitavelmente associado à lógica e ao implicativo e portanto seopõe, nesse sentido, ao "genético" de Piaget. Este, em última análise, não é senão ofluxo a ser de alguma forma suspenso e manipulado na explicação científica. Não há"explicação genética" a menos que a própria gênese seja transformada em"implicação" por meio de tal manipulação – donde a conseqüência de que a"explicação histórica" só será explicação real se for de fato explicação sociológica(ou, de qualquer modo, implicativa e nomológica). E a explicação sociológica de que

fala Piaget não "oscila" entre causalidade e implicação mais do que qualquer outrocaso de explicação (de fato,nenhumaexplicação oscila). Naturalmente, existe a possibilidade de se conceber um tipo de "causalidade objetiva" afim à idéia dogenético em oposição à do implicativo, assim como podemos conceber a ação comofluxo irreversível – e as tradicionais confusões quanto às relações entre "causação" e13 Raymond Boudon, La Place du Désordre, Paris, Presses Universitaires de France, 1984,especialmente capítulos 2 e 3.14 Piaget,Structuralism, p. 20.

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"indução" (ou entre "nexo" e "regularidade") na explicação científica estãoclaramente ligadas a isso.15 Mas tais concepções ontológicas não são mais que certamaneira especial de formular o problema ou desafio que o trabalho científico tem deenfrentar: o problema de como dar conta (implicativamente...) das "causalidades","gêneses" ou ações espontâneas em questão.16 E a oposição entre intencionalidade ecausalidade no campo das ciências sociais perde muito de sua agudeza: do ponto devista da atribuição implicativa de causalidade (que é uma operação lógica e, como tal,implica em si mesma a idéia de um sujeito que manipula objetos), tanto aintencionalidade subjetiva como a causalidade (ou causação) objetiva colocam omesmo tipo de desafio. Percebe-se, assim, que existem bases sólidas para aassimilação feita por Hempel entre a "explicação causal" e a explicação dedutiva enomológica como tal, pois não há como lidar analiticamente com a causalidade sem

implicação e nomologia – e, desse ângulo, pode-se ver que a intenção subjetiva como"causa" da ação é tão "objetiva" quanto qualquer causa supostamente objetiva queessa ação possa ter.

Uma das conseqüências disso para a disputa entre escolha racional e"sociologia" parece claramente favorável à escolha racional em alguma de suasversões mais ortodoxas: naturalmente, não faz sentido pretender recuperar o aspectoemergente e irreversível da ação concretacomo tal – e a afinidade do caráter "operacional" do conteúdo lógico do método científico com a racionalidade torna o pressuposto de racionalidade com relação ao objetoativodas ciências sociais não sónatural mas também, em minha maneira de ver, impossível de evitar. Mas um15 Esse ponto sugere a conveniência de se distinguir entre dois sentidos em que a idéia de um “nexo”explicativo pode ser entendida: em primeiro lugar, a noção de nexo como algum tipo de“mecanismo” que pode ser realmente manipulado ou mostrado em funcionamento; em segundolugar, a noção de nexo como fluxo irreversível ou “causação”, mais claramente ligada ao “genético”ou “diacrônico” de Piaget. Naturalmente, muitos problemas sociocientíficos interessantes e mesmocruciais emergem em conexão com este último sentido, e de fato me parece importante recuperar anoção de nexo como causação eresistir ao componente irracionalista da moda que se inclina adenunciar pecados tais como o “evolucionismo” e as “concepções lineares”: em muitos casos, aexplicação requer que sejamos capazes justamente de indicar a “linearidade” que um processo de

fato exibe. Mas a qualificação indispensável é que, para que tal explicação seja satisfatória, ela não pode deixar de ser nomológica e implicativa – mesmo se apenas “contrafatualmente”, isto é, por meio da “produção” artificial de uma pluralidade de instâncias a serem “observadas” ou mediante a“manipulação” virtual ou imaginária de uma dada instância. Alguma elaboração dessas idéias, emconexão com questões como o anti-historicismo de Popper e as teses de Perry Anderson sobre a“singular” concatenação entre o feudalismo e o universo clássico na produção do capitalismo, podeser encontrada em “Mudança, Racionalidade e Política”, capítulo 1 do presente volume.16 Assim, estou certamente de acordo com Adam Przeworski (“Micro-foundations of Pacts in LatinAmerica”, manuscrito, março de 1987, p. 2; ver nota 26 de “Para Pensar Transições: Democracia,Mercado, Estado”, neste volume, para esclarecimentos a respeito desse texto) quanto a que precisamos de “formalismos”, e não vejo qualquer razão para que tais formalismos sejam descritosnegativamente como “vazios”.

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decisivo contraponto a isso pode ser formulado em umas poucas proposiçõesrelacionadas. Em primeiro lugar, se vamos adotar um esquemático conceito"operacional" de ação em termos de racionalidade, uma forma óbvia de se"manipular" a ação é a manipulação docontextoou ambiente da ação; portanto,renunciar, em nome da racionalidade, ao objetivo de se recuperar diretamente a açãocomo ebulição e espontaneidade não é equivalente a desistir do objetivo de serecuperar a riqueza e a complexidade do contexto da ação. Pois a ação será tantomais racional quanto maior for o grau de sofisticação de sua dimensãocognitiva, istoé, a quantidade de informação processada com relação tanto a seu ambiente"objetivo" quanto à subjetividade dos próprios agentes. De maneira correspondente, a"manipulação" metodológica ou analítica associada à idéia de racionalidade torna-seinteressante (e, deve-se presumir, recompensadora) nas ciências sociais à medida que

passamos a manipular aspectos cada vez mais complexos da articulação entre ator eambiente na ação racional. Pois, despido de tais complexidades, é possível ver que omodelo de ação "racional" se mostra necessário para o estudo docomportamentoemgeral, e de fato exibe melhor adequação ao caso do comportamento animal do que aocaso do comportamento humano e social. Essa avaliação certamente se aplica àconcepção básica e antes tautológica de racionalidade em que ela é tomada comoequivalente ao comportamento intencional por si mesmo, o qual inclui apenas ummínimo de cognição a ser encontrado, poder-se-ia sustentar, na vida (animal) comotal.

Assim, para resumir, certamente há um sentido no qual, de acordo comos postulados mais ortodoxos da escolha racional, aação, ou o comportamentointencional orientado para a eficácia e incluindo necessariamente uma dimensãocognitiva ou de processamento de informações (isto é, o comportamentoracional ), éum pressuposto inevitável de qualquer tentativa conseqüente de explicação nasciências sociais – e pode, correspondentemente, ser vista como fornecendo uma

"base" para tudo o que seja "estrutural" (no sentido da objetivação supra-intencional)na sociedade. Mas não me parece possível derivar daí legitimamente o objetivo de seinventar a sociedade a partir de meros indivíduos calculadores, ou de sededuzir aquela a partir destes. Pois a ação é ela própria necessariamente contextualizada(assim como os atores e seus objetivos ou preferências são em grande partesocialmente determinados); daí que a avaliação da ação do ponto de vista da eficáciae da racionalidade envolva a inevitável referência à situação ou ao ambiente em que

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ela tem lugar (e a definição apropriada da situação inclui certos traços cruciais dasubjetividade dos atores). E, assim como a ação pode ser mais ou menos racionalsegundo o volume de informações processado pelo sujeito da ação com respeito àsituação em que se encontra, assim também a avaliação de sua racionalidade serámais ou menos adequada segundo a riqueza e a sofisticação da informação de quedisponha o analista com respeito à situação em que a ação se desenvolve.

Ora, é bem claro que as exigências assim estabelecidas para aexplicação adequada não podem ser atendidas pela abordagem da escolha racional noque ela tem de distintivo, e os recursos das disciplinas sociocientíficas"convencionais" são sem dúvida necessários para lidar apropriadamente com ocontexto social da ação racional, e portanto com a própria ação racional ou aracionalidade como tal. Além disso, pode-se perceber, de um ponto de vista algo

diferente, que isso envolve uma avaliação mais sóbria e adequada do que cabeesperar da ciência social. Assim como a física não explica a matéria em si mesma e a biologia não explica a vida como tal, assim também o objetivo da ciência social não é – em contraste com o que parecem supor muitos teóricos da escolha racional – o deexplicar a sociedade como tal. Não é necessário, portanto, adotar os postuladosontológicos do "estado de natureza" com os quais o "individualismo metodológico" éfreqüentemente identificado, pelo menos implicitamente, na literatura relevante. Areceita consistiria, antes, na combinação entre o recurso ao indispensávelequipamento analítico fornecido pelos supostos de intencionalidade e racionalidade euma "ontologia" que é social desde o começo e admite todos os elementossociológicos e psicossociológicos que são postos de lado no esforço de abstração dosteóricos da escolha racional: normas, instituições de natureza variada em diferentesfases do processo de se consolidarem como tal, lealdade ou solidariedade interpessoale intergeneracional e assim grupos de diversos tipos, articulação da definição dasidentidades pessoais com os variegados processos de constituição de identidades

coletivas que, por sua vez, podem eles próprios fracassar ou exibir diferentes graus deêxito, e assim por diante.17

17 Essas idéias são elaboradas em Fábio W. Reis, Política e Racionalidade: Problemas de Teoria eMétodo de uma Sociologia Crítica da Política, Belo Horizonte, Edições RBEP, 1984; ver também“Mudança, Racionalidade e Política”, neste volume. Em “Marxism and Rational Choice”,Przeworski também se mostra crítico a respeito dos postulados ontológicos da escolha racional.

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III - Normas, Autonomia e a Dialética do Institucional :

Com o objetivo de tentar esclarecer minha posição sobre alguns problemas epistemológicos básicos, até agora me restringi em grande parte a certocontraste entre ator e ambiente. No entanto, se passamos para a dimensão políticasubstantiva de nosso tema, temos de considerar as questões que decorrem do fato deque há uma pluralidadede atores, e somos levados à interaçãoestratégica. Nessaótica, a intencionalidade e o comportamento orientado pela busca de objetivos sãotalvez adequadamente descritos como assumindo a forma da promoção deinteresses,se concordamos em aplicar esse termo, aceitando a sugestão de Jürgen Habermas, aalguma forma deafirmação de sina interação com outros, e portanto a relaçõesenvolvendo confrontação e conflito real ou potencial.18

Ora, os pactos têm a ver com o objetivo de se regular justamente essetipo de interação, mitigando seu conteúdo potencialmente beligerante. Isso só podeser conseguido dando-se algum tipo de tradução ou expressãoinstitucional àinteração estratégica. Parte importante da concepção ortodoxa sobre o que esperar daescolha racional com respeito ao problema se resume em recuar diretamente ao pontode vista de algumas teorias clássicas do contrato social: como seria possível basear em considerações de natureza estritamente prudencial ou de interesse próprio por parte de agentes racionais o estabelecimento e a duradoura eficácia dos "pactos","constituições" ou qualquer instituição social e política que eventualmente representeuma solução para o problema.

As dificuldades começam a surgir quando voltamos a atenção para adupla natureza da dimensão institucional da vida social, que se revela na profundaambivalência que marca a noção do institucional e as expressões que lhecorrespondem na literatura das ciências sociais. Enquanto, por um lado,"institucional" ou "institucionalizado" aponta para o aspecto ou plano "artificial" da

realidade social, que é visto como suscetível de manipulação deliberada e de esforçosde "institution-building" (e que se costuma designar depreciativamente como o"meramente institucional" por ser visto, em correspondência com essa artificialidade,

18 Veja-se, por exemplo, Jürgen Habermas,Théorie et Pratique, Paris, Payot, 1975, vol. II, pp. 104-5.Alessandro Pizzorno (“Introduzione allo Studio della Partecipazione Politica”,Quaderni diSociologia, vol. 15, nos. 3-4, julho-dezembro de 1966) apresenta uma concepção dos interesses esuas relações com a solidariedade que é estritamente paralela às idéias de Habermas e precede-as por vários anos.

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como de alguma forma menos "real" ou importante), aquelas duas palavras são elasmesmas usadas, por outro lado, para indicar os traços da vida social que se ligam àidéia durkheimiana dacoerção social , isto é, que dizem respeito à sociedade em seucaráter "objetivo" e "opaco", no qual ela aparece como pronta e acabada e comoexternamente coercitiva aos olhos dos indivíduos. Em outros termos: a própria noçãodo institucional expressa novamente a ambivalência das relações entre "infra-estrutura" e "superestrutura", e temos o institucional tanto como ocontextoda açãoquanto como oobjetoda ação. Mas talvez o desafio crucial, de um ponto de vista prático, resida precisamente na dialética entre essas duas dimensões do institucional:com efeito, os "objetos" de manipulação institucional (uma regra, um procedimento,uma constituição) só são "propriamente" designados como instituições quandochegam a exibir a consistência, a objetividade e o caráter coercitivo do institucional

como contexto. Caso contrário, não são senão os produtos "artificiais" e mais oumenos irrelevantes de exercícios fúteis. Naturalmente, otempoé um elemento crucialdessas relações, pois a transformação de criações artificiais em instituições reaisexige uma espécie de "maturação" que não pode ocorrer sem a passagem do tempo.Mas observe-se sobretudo que a ação política, se entendida como açãoconstrutiva por oposição ao mero embate de interesses conflitantes, acha-se necessariamenteinserida nessa dialética: desdobrando-se fatalmente no nível do institucional comoobjeto e – como qualquer ação humana – no presente, ela envolve sempre uma apostainerentemente precária quanto ao futuro e à "impregnação pelo contexto" quecaracteriza as instituições reais.

Ora, a esfera dos esforços dirigidos à institucionalização, ou da ação política em sua forma construtiva, aparece sob certa luz como sendo também a esfera por excelência do deliberado e intencional na política – certamente isso se aplica a elaem maior medida do que à esfera da ação estratégica rotineira, pois a ação deconstrução institucional implica agir sobre o próprio contexto da ação estratégica.

Constata-se, assim, de maneira talvez surpreendente, que a esfera da açãoinstitucional corresponde inquestionavelmente àquilo que tende a ser descrito emtermos de microcomportamento na literatura da escolha racional. Embora tenhamosapontado as dificuldades da postura que liga a oposição micro-macro a"fundamentos" epistemológicos, a idéia do comportamento dirigido à construçãoinstitucional como "microfundamento" pode parecer particularmente estranha, seconsiderada do ponto de vista substantivo da teoria política.

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Não obstante, penso ser esta a indagação central: qual a utilidade dos pressupostos característicos da abordagem da escolha racional quando as questõescolocadas envolvem necessariamente não apenas uma perspectiva mais ampla detempo, mas também certos conteúdos que, estando associados à passagem do tempo,encontram-se profundamente impregnados de ingredientes sociológicos esóciopsicológicos próprios do institucional como contexto.

Uma questão particularmente importante com respeito ao tema dasinstituições tem a ver com o ingredientenormativoinerente a elas, o qual introduzvários desdobramentos complicados do ponto de vista da contribuição da escolharacional para a compreensão de nossos problemas substantivos. Naturalmente, a idéiado institucional como objeto aponta antes de mais nada para o empenho de criação denormas, enquanto a idéia do institucional como contexto aponta para normas que

venham realmente a "enraizar-se" na sociedade e a tornar-se efetivas como tal. Ora,as normas têm uma característica perturbadora, que está claramente relacionada àdialética do institucional que acabo de descrever. Por um lado, elas são certamenteum importante fator de "causação" objetiva na sociedade. Esse é o aspecto salientadono fato de que o "comportamento orientado por normas" tende a ser oposto aocomportamento racional no atual confronto de abordagens nas ciências sociais. Emtermos da distinção proposta por Elster entre o nível da intencionalidade e os de doistipos de causalidade, a causalidade "subintencional" e a "supra-intencional", é provavelmente apropriado dizer, com referência a esse aspecto, que as normas sãoum elemento destacado do nível da causalidade supra-intencional, ao lado daqueleselementos que dizem respeito mais diretamente aos efeitos agregados docomportamento de agentes numerosos. Uma importante questão quanto a isto, quesem dúvida está longe de ter sido decidida, é a de até que ponto seria necessáriosupor a presença de um elemento estocástico no estabelecimento e na operação dadimensão normativa da sociedade. É interessante observar, por exemplo, que Piaget,

nos textos (citados acima) dedicados ao problema da explicação sociológica dentrodo marco representado pelo contraste entre o causal ou genético e o implicativo,atribui às normas um status ambíguo ou intermediário: ele as descreve como fazendo parte do domínio das "regulações", que se distinguem justamente pela presença deum ingrediente probabilístico, por oposição ao domínio mais propriamente causal dos

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"ritmos", de um lado, e ao domínio integralmente implicativo dos "grupos", deoutro.19 Naturalmente, na medida em que os pactos e coalizões sejam compreendidoscomo necessariamente envolvendo normas, o adequado esclarecimento de taisquestões terá conseqüências para o problema do papel dos pressupostos relativos àoperação de processos estocásticos na explicação da formação de coalizões – o problema a respeito do qual vimos anteriormente Elster em desacordo com Olson.

Por outro lado, no entanto, as normas são inegavelmente parte dointencional , e na verdade desempenham papel importante e mesmo especial como umelemento de intencionalidade. Seja-me permitido insistir um pouco mais com Piaget,que não deixa de chamar atenção para o fato de que, além de serem "regulações", asnormas pertencem também ao nível do implicativo: elas são, obviamente, um objeto possível de relações de implicação, o que se mostra de forma mais cabal na

formalização que caracteriza o campo do direito.20 Em clara relação com esse caráter implicativo através de sua relevância para a hierarquização de cadeias de fins e meiose de princípios de ação, dá-se o fato de que as normas são indispensáveis para aautonomia– e esta, naturalmente, é a intencionalidade levada a sua máxima fruição.

Certa ambigüidade se introduz a esta altura, associada a uma dualidadede significados da própria noção de autonomia. Em primeiro lugar, "autonomia" podesignificar uma espécie de espontâneaafirmação de si. Nesse sentido, a noção sugereidéias tais como a de uma "personalidade forte" ou um "caráter forte", envolvendo asuposição de que as ações correspondentes expressem de maneira irrefletida ossentimentos, impulsos ou motivos de qualquer natureza. O segundo sentido, porém, éantes o de autocontrole, onde o principal componente é justamente o elemento dereflexividade e lucidez quanto aos motivos ou objetivos próprios de caráter maislimitado ou tópico e sua relação com outros objetivos ou ideais talvez maisimportantes ou de maior alcance – isto é, a idéia de que o agente seja, em últimaanálise, o autor de suas próprias normas, idéia esta que se acha contida na própria

etimologia da palavra "autonomia".

19 Cf. Piaget, “A Explicação em Sociologia”, pp. 41 e seguintes e especialmente 60 e seguintes. Éinteressante observar a respeito que, em tentativa recente de estudar o surgimento e a estabilidadedas normas do ponto de vista da teoria dos jogos, Robert Axelrod reconhece a natureza“inerentemente probabilística” da abordagem, de onde decorrem problemas para o uso damatemática e a necessidade de recorrer a técnicas de simulação por computador. Ver RobertAxelrod, “An Evolutionary Approach to Norms”, American Political Science Review, vol. 80, n. 4,dezembro de 1986, especialmente p. 1098.20 Piaget, “A Explicação em Sociologia”, pp. 60 e seguintes.

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De um ponto de vista afim à ética e à filosofia política, parece provável que teríamos acordo quanto à necessidade de atingir algum tipo deequilíbrio entre esses dois sentidos de autonomia. Eles surgiriam aí como dimensõesde um conceito adequado de autonomia, onde os dois aspectos se combinariam emmedidas apropriadas como requisitos da autonomia real – o aspecto deintencionalidade motivada (e, no limite, impulsiva e talvez "cega") e o deautocognição e controle. O que importa, porém, é que essas complexidades doconceito de autonomia são politicamente relevantes e mesmo cruciais – e que elasresultam em um desafio decisivo para o uso a ser feito do conceito de racionalidadee, assim, para a escolha racional em suas aplicações a problemas políticossubstantivos, como aqueles que aqui nos interessam. Na verdade, creio que aabordagem da escolha racional enfrenta um dilema: ou ela se atém a uma forma assaz

pobre de entender o conceito de racionalidade, caso em que terá nesse conceito uminstrumento analítico útil para problemas de certo tipo (e não pretendo sugerir que setrate somente de problemas sem importância ou interesse); ou então procura fazer plena justiça às complexidades indicadas da noção de racionalidade (que, afinal decontas, é o fundamento último da abordagem) – mas isso provavelmente resulta emabrir uma caixa de Pandora em que a especificidade da abordagem acaba por diluir-sediante da necessidade de incorporar elementos sociológicos e psicossociológicos.21

Apresso-me a acrescentar que não pretendo com isso voltar à tentativade distinguir entre um conceito "formal" e um conceito "substantivo" deracionalidade e afirmar a necessidade de se recorrer a uma racionalidade"substantiva", em vez da racionalidade formal da escolha racional. De fato, estouconvencido de que essa distinção não pode ser sustentada de maneira consistente, ede que a única noção de racionalidade disponível é inevitavelmente "formal", seindicamos com essa expressão as relações instrumentais entre fins e meios. Dado queminhas referências anteriores ao problema da racionalidade dirigiram-se apenas a

algumas conseqüências epistemológicas do contraste básico entre ator e ambiente, étalvez apropriado tomar algum tempo para substanciar essa posição e considerar

21 Przeworski (“Rational Choice and Marxism”, p. 387), destacando as intençõesmetodológicasdaabordagem da escolha racional, comenta que “a avaliação cuidadosamente balanceada daracionalidade humana que faz Elster emUlysses and the Sirens(...) é possivelmente contrária ao projeto do individualismo metodológico” em sua preocupação com o realismo descritivo e com osobstáculos que as irracionalidades existentes poderiam representar para uma abordagem baseada nosuposto de racionalidade. Note-se, contudo, que aqui não estou falando de irracionalidade, mas antesde uma adesão conseqüente à idéia de racionalidade em toda a sua complexidade.

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Ora, a busca de conhecimento pode ela própria ser vista como um tipode ação cujo objetivo é adquirir ou expandir a informação. Sua efetividade estaráassociada à criação pelos agentes das condições que levem àquele objetivo, donde asexigências de abertura, "descentração", disposição para a comunicação e ointercâmbio e para permitir que informações que se presumem refletir a realidadesejam controladas intersubjetivamente como condição de sua "objetividade". Estamosaqui no domínio daquele tipo de ação que Jürgen Habermas chamaria de "açãocomunicativa"24 – mas é crucial não esquecer ou minimizar que ela tem a sua própriainstrumentalidade. Talvez mais profícuo seja perceber que estamos aqui, em termosdo trabalho de Jean Piaget, na esfera em que o caráter instrumental ou "operacional"que é inerente ao conhecimento necessariamente se mescla a seu caráter social – nãono sentido do "sociocentrismo" das ideologias, mas, ao contrário, no sentido do

caráter "descentrado" do conhecimento objetivo, que implica o reconhecimento daautonomia e pluralidade dos pontos de vista.25 Além disso, na ótica das ramificações políticas do tema da racionalidade, é importante observar aqui a maneira tensa emque esse aspecto se liga ao caráter estratégico das interações políticas: embora a idéiade uma pluralidade de atores e pontos de vista seja um elemento crucial tanto no casoda interação orientada para o conhecimento quanto no da interação estratégica, emum caso temos um propósito ou "instrumentalidade" que se realiza por meio dacomunicação entre sujeitos autônomos, enquanto o outro caso se distingue pela prevalência de um propósito de auto-afirmação e instrumentalização recíproca por parte dos agentes.

De todo modo, em contraste com a busca de conhecimento, outrostipos de ação, embora requerendo o processamento de informações como condição deeficácia, como se dá com qualquer ação, exigem também algum grau de fechamento,decisão, firmeza ou engajamento, o que equivale a dizer que os fins ou metas da açãotêm de estar estabelecidos de maneira suficientemente clara e consistente, ou não

poderá haver qualquer ação intencional ou guiada pela busca de objetivos. Isso quer dizer que o processamento de informação em tais casos tem de se referir não apenasao ambiente imediato como tal, mas também ao próprio sujeito da ação, suas metasou preferências e sua consistência ao longo do tempo, as relações entre metas decurto e longo prazos, os custos para a possibilidade de eficácia na perseguição de

24 Jürgen Habermas,The Theory of Communicative Action, vol. 1, Boston, Beacon Press, 1984.25 Veja-se, por exemplo, Piaget, “La Pensée Sociologique”.

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certa meta que podem resultar de se postergar a ação correspondente e manter-se a"abertura" ou a "descentração" no interesse de se aumentar o volume de informaçãorelevante etc.

Um importante desdobramento dessa linha de raciocínio se refere àsrelações entre a abertura intelectual e a idéia de caráter ou identidade. De um lado,esta última claramente implica um elemento central de fechamento e engajamento,26

de fidelidade a certos objetivos orientadores que são de alguma formaautenticamenteos objetivos próprios da pessoa envolvida, o que significa acima de tudo que sãoafins a características de sua personalidade que lançam raízes na opacidade de seu passado e memória e lhe aparecem, assim, como dados de sua condição, ou mesmocomo algo que se impõe (socialmente) a ela. E é crucial observar que a presençadesse elemento de compromisso e fechamento não só não implica, por si mesma,

irracionalidade, mas deve mesmo ser vista como requisito da racionalidade em certascircunstâncias importantes.27 Mas, por outro lado, para que isso seja verdadeiro étambém necessário que um elemento de deliberação e vontadeesclarecidavenha a seafirmar no próprio processo de ser fiel a si mesmo: a questão da autenticidade tem ela própria que ser decidida de maneirareflexiva, e deve existir a capacidade de aprender sobre si mesmo (e ocasionalmente a disposição de mudar-se a si mesmo) se não sequiser que a auto-afirmação autêntica redunde no comportamento cego de um

26 Veja-se o aforismo de Nietzsche em Além do Bem e do Mal : “Uma vez que a decisão tenha sidotomada, fecha os teus ouvidos mesmo ao melhor argumento contrário: sinal de um caráter forte.Assim, uma disposição ocasional à estupidez”. Friedrich Nietzsche, Beyond Good and Evil , NovaYork, Vintage Books, 1966, p. 84.27 Um caso de grande interesse a esse respeito é o das ações discutidas extensamente por Jon Elster emUlysses and the Sirens(Nova York, Cambridge University Press, 1979, especialmente capítulo2), envolvendo a restrição das possibilidades de ação no presente como forma de garantir a perseguição mais eficaz de um objetivo futuro, como Ulisses que se faz amarrar ao mastro. Elster lida com esse tipo de ação em termos de “racionalidade imperfeita”, relacionada por ele à condiçãode Ulisses de “ser fraco e sabê-lo” e à suposição de que tal condição implica a impossibilidade de ser totalmente racional (p. 36). Além de ser inconsistente com o tratamento dado pelo próprio Elster àquestão da “racionalidade perfeita” em termos da idéia de uma “máquina globalmente maximizante”e da capacidade de relacionamento com o futuro e o possível (da qual o comportamento de Ulisses é

claramente um exemplo), a postura de Elster a respeito leva a uma concepção de racionalidade (de“racionalidade perfeita”) que me parece inaceitável. Assim, um agente divino que supostamente nãotivesse de haver-se com algum tipo de fraqueza (digamos, um deus todo-poderosocomdesígnios arealizar) não estaria exposto ao problema de ter de lidar com escassez de algum tipo ou de procurar ser eficaz em sua ação – ou seja,não se defrontaria com um problema de racionalidade. Creio que a posição de Elster envolve a confusão entre o nível da “energética” da ação (a força ou a fraqueza desua motivação) e o nível da “economia” da ação (o aspecto de eficácia nas relações entre meios efins): a racionalidade tem a ver com este último nível , embora o aspecto motivacional seja parte dosdados a serem levados em conta na avaliação da economia da ação. De qualquer forma, um agenteextremamente fraco que agisse com base em informação perfeita quanto às condições da ação,incluindo seu ambientee a fraqueza do próprio agente, estaria agindo de maneira perfeitamenteracional se processasse a informação disponível para tratar de atingir os seus fins.

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autômato e possa corresponder, ao contrário, à ação realmenteautônomae racional.Em outras palavras, é preciso haver a possibilidade deescolher-sea si próprio, aindaque a existência de restrições quanto a essa possibilidade seja parte da idéia de caráter ou identidade.28

Para resumir, a questão da racionalidade se ergue sobre a tensãocontida na noção deação informada. Agir implica fechamento, engajamento,objetivos claros e consistentes (persistentes); a obtenção e o processamento deinformação implicam abertura, disponibilidade, distanciamento. E alguns problemasde relevância para nossas indagações gerais nestas notas parecem girar em torno dadialética entre "autocentração" e "descentração" que se acha implícita naquela noção – e na idéia correspondente de autonomia.

V - Consolidação Democrática como "Planejamento de Caráter"

Comecemos com a observação de que qualquer agente cujo ponto devista se queira adotar pode ser concebido seja (a) em termos da busca mais ou menosmíope de interesses tal como definidos pela situação tomada como dada, e portantoem termos que resultam em tomar as próprias preferências do agente como dadas;seja (b) em termos que envolvem reflexividade, autoquestionamento ouquestionamento da própria identidade, "descentração" com respeito à inserção doagente (quer individual ou coletivo) em algum ambiente social abrangente (e portantocom respeito a seja o que for que o agente possa receber do ambiente sob forma28 Algumas outras posições sustentadas por Elster merecem breve comentário nesse contexto. Refiro-me às idéias expostas emSour Grapes(Nova York, Cambridge University Press, 1985) sobre asrelações entre preferências e crenças (ou os aspectos a que tenho me referido, respectivamente, emtermos de volição/intencionalidade e cognição) em conexão com racionalidade e autonomia. Elster fala de “juízo” ( judgment ) com relação à racionalidade dascrenças, vista como uma questão deinformação ou prova adequada, e fala de “autonomia” com relação à racionalidade das preferências – descrita (embora Elster seja pouco afirmativo sobre o tema da autonomia) em termos da ocorrênciade deliberação na escolha, aquisição ou modificação de desejos (pp. 15 e seguintes, 21). Sem querer negar a complexidade do assunto, sobre o qual a análise de Elster oferece ricas intuições, sugiro que

os aspectos mais importantes do problema geral da racionalidade tem a ver justamente com osvínculosentre preferências e crenças no comportamento, ou entre intencionalidade e cognição – istoé, entre os elementos que a análise de Elster se empenha em separar. Reformulando algumasafirmações do texto, seria possível dizer que a racionalidade tem a ver tanto com o ingrediente ativoda cognição quanto com o ingrediente cognitivo da ação (naturalmente, “ativo” e “ação”, dado o seucaráter intencional, são inseparáveis do elemento de volição e desejo). É bastante claro, por exemplo, que a escolha, aquisição ou modificaçãodeliberadade desejos ou preferências envolveuma exigência “reflexiva” e cognitiva, sendo, portanto, impossível falar de autonomia, nos termos dadefinição proposta pelo próprio Elster, sem levar em conta informação e crenças – ou seja, o juízo.Por outro lado (embora isto possa parecer à primeira vista mais discutível), uma perspectiva piagetiana certamente respalda a afirmação inversa: não há juízo (ou conhecimento real) sem acapacidade deagir autonomamente e sem que haja, portanto, preferências autônomas.

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"adscrita" ou imposta), e assim por diante. Neste segundo caso, portanto, estamosconsiderando a possibilidade de formação ou transformação de preferências e, emúltima análise, daquilo que tem sido tratado em termos de "construção de caráter" ou"planejamento de caráter".

Como indicado acima com relação à dialética entre os requisitosdefinidores da identidade (em larga medida "adscritos") e os requisitos cognitivos (edescentrados) da autonomia, a tarefa envolvida em se lidar com o planejamento decaráter – em correspondência com a idéia de que ele exige um grau de racionalidadesuperior ao do comportamento rotineiro caracterizado pela intencionalidade ou pela busca de fins ou interesses – é bastante complexa mesmo se nos restringimos ao casode um ator individual diante de um ambiente "parametricamente" definido. Que dizer do caso em que a própria definição do ator que planeja o caráter é problemática – e

em que esse mesmo "ator" é constituído por meio da interação comunicativaeestratégica de uma multiplicidade de outros atores não apenas individuais mastambém coletivos, engajados eles próprios num processo de autodefinição através decomunicação e estratégia?

Por perturbadora que seja, essa questão me parece inevitável nocontexto de nossos problemas. Pois o objetivo de estabelecer e eventualmenteconsolidar a democracia em determinado país, até o ponto em que seja de fato oobjetivo de pelo menos alguns atores políticos relevantes, envolve pelo menos umadimensão que é "reflexiva" em sua natureza e de fato corresponde ao problema do planejamento de caráter. Não há necessidade de se recorrer, em oposição diametralaos princípios do individualismo metodológico, à concepção do país como tal comoum ator que efetivamente interroga a própria alma. Mas os esforços explicitamentevoltados para objetivos organizacionais e institucionalizantes são, afinal,supostamente um componente importante do processo que tem lugar nos países queaqui nos interessam – se não, a nossa própria tematização da consolidação da

democracia se torna inteiramente fútil. E parte do desafio que se põe para essesesforços institucionalizantes diz respeito justamente ao objetivo de assegurar que ofoco ao menos potencial de identidade coletiva que corresponde ao país venha aoperar em algum grau como focoefetivode identidade coletiva para um númerodecisivo das pessoas envolvidas – e que, conseqüentemente, objetivos supostamentecoletivos, compatíveis com a contínua operação da democracia e correspondendo ao

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Buchanan e Tullock entre o nível "constitucional" das regras básicas do jogo e o nível"operacional" das interações sociopolíticas do dia-a-dia:31 o drama consiste em que o próprio problema constitucional não pode ser resolvido a não ser através dasvicissitudes da política "operacional", onde uma "constituição", em sentido da palavrasociologicamente denso embora talvez juridicamente inaceitável, já está sempre emvigor.

Naturalmente, o dilema contido na situação enfrentada pelos paísestidos como "transicionais" claramente envolve muitas características do dilema geralda ação coletiva. No entanto, há também especificidades nessa situação que fazemcom que ela se diferencie significativamente da definição abstrata do dilema emtrabalhos como o clássico de Olson. Tais especificidades têm a ver justamente com osfocos de reflexividade, por assim dizer, que estão presentes nela – ou com a

existência de atores que podem de fato ser vistos como pelo menos parcialmentesensíveis aos objetivos institucionalizantes e de planejamento de caráter. Afinal, emcontraste com o paradigma olsoniano do estado de natureza, no caso dos países emquestão já há aparatos estatais que se acham ao menos formalmente comprometidoscom a tarefa constitucional, e para os quais esse compromisso é efetivo no que toca aalgumasdas pessoas envolvidas nesses aparatos. E às vezes há mesmo atores taiscomo assembléias constituintes. Em conseqüência, congruentemente com algosugerido acima, a idéia de que o problema constitucional tem ele próprio de ser resolvido no nível operacional deve ser entendida como indicando que as açõesconstituintes ou institucionalizantes são elas próprias "micro" (constituindo, portanto,objetos aptos a serem tratados pela escolha racional, mesmo em sua definição maisestrita) e devem necessariamente lidar com outros comportamentos e decisões denível "micro" que estão sempre em processo. Contudo, a idéia não é a de que taisações institucionalizantes sejam simplesmente irrelevantes – ou de que oequipamento institucional que constitui o sonho daqueles que anseiam pela

democracia em nossos países deva ser concebido como tendo de emergir como mero"subproduto". Em outras palavras, não há razão para supor que a difícil tarefa de planejamento de caráter e transformação de preferências que esses países têm diantede si, com as severas demandas que ela implica quanto à preocupação com a eficácia(e, portanto, com a busca de uma racionalidade de ordem superior capaz de permitir a

31 James Buchanan e Gordon Tullock,The Calculus of Consent: Logical Foundations of Constitutional Democracy, Ann Arbor, Michigan, The University of Michigan Press, 1967.

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tomada de consciência, por parte de pelo menos alguns dos atores, da complexidadeda própria dimensão estratégica do problema) seja melhor servida pelo recursoexclusivo a uma racionalidade míope – não importa quão crucialmente importanteseja a consideração apropriada dos interesses atendidos por esta última.

Não obstante, muito do que pareceria característico das discussões do problema feitas no âmbito da escolha racional surge antes como a transposiçãomecânica do dilema abstrato da ação coletiva e da sua solução, sugerida por Olson,em termos de "subproduto". Sem dúvida, supõe-se a existência do estado e de certosgrupos de interesse de maior importância, como trabalhadores e capitalistas, bemcomo sua capacidade de ação coordenada. Mas o problema tende a ser definidoexclusivamente em termos de certa "mágica" característica da concepção da açãocoletiva como subproduto: como alcançar resultados coordenados (institucionais ou

constitucionais), no nível coletivo abrangente, por meio do mero jogo dos interesses particularistas e míopes de tais atores. De certo modo, poder-se-ia dizer que se trataaqui da questão de como erigir instituições sem realmente tentar – ou, se posso mevaler algo abusivamente de certas metáforas usuais que aludem a "mão", comoutilizar a mão invisível para obter a mão ostensiva de instituições democráticasefetivas em substituição à mão de ferro do autoritarismo (com sua propensão a agir àsvezes como maliciosa mão oculta)...

Acrescento de imediato que a alternativa adequada ao que há deinsatisfatório nessa abordagem não me parece consistir em nenhuma de duas outrasmaneiras concebíveis de lidar com o problema. Primeiro, como penso que ficaráclaro a seguir, o intuito dessa objeção à concepção da construção democrática comomero "subproduto" não é contrapor a ela um esforço legislativo idealizado etotalmente "dialógico" ou comunicativo, guiado por uma racionalidade superior, oumesmo sustentar que algo dessa natureza tenha papel importante, embora nãoexclusivo, a desempenhar num processo bem sucedido de consolidação da

democracia. Na verdade, em contraste com essa perspectiva idílica, sou bastantecético quanto às chances de que os países da América Latina que aqui nos importam possam alcançar, em futuro visível, aquela condição que pudesse ser apropriadamentevista como democracia consolidada, independentemente do caminho para se chegar aela. Em segundo lugar, não me parece que haja muito a se ganhar em conceber o problema em termos de uma espécie de "interação estratégica constitucional" (por oposição a "interação estratégica operacional"), onde estaríamos lidando com o

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confronto entre projetos abrangentes ou constitucionais que se disporiamexplicitamente contra ou a favor da democracia e seriam defendidos por atores denatureza variada. Mesmo se admitimos que projetos constitucionais assim entendidoscompõem uma parte real da situação (o que é precisamente o que defendo comrelação à relevância do elemento de reflexividade e planejamento de caráter), algunsfatos tornam difícil sustentar a eficácia analítica de modelá-la como algo semelhantea um "superjogo" de estratégia. De um lado, se o problema é visto como propriamente um confronto entre forças democráticas e antidemocráticas ouautoritárias, receio que a tentativa de lidar com ele em termos de estratégia leve a proposições talvez inevitavelmente triviais, cuja utilidade parece muito duvidosa.32

Mas há também clara falta de realismo no modelo de "superjogo" concebido nessestermos. Pois a maior parte das pessoas simplesmente não tem consciência de ser parte

de qualquer jogo de tal natureza. E mesmo aqueles interesses dos quais as pessoas podem ter consciência (em diferentes graus, de acordo com o país e o setor social) eque podem ser considerados como tendo conseqüências para o que se acha realmenteem questão no nível "constitucional", no sentido sociologicamente "denso" indicadoacima (digamos, os interesses envolvidos nas relações entre trabalhadores ecapitalistas), estão longe de achar-se inequivocamente ligados ao problema dedemocraciaversusautoritarismo – ou de ser percebidos como tal.

VI - Przeworski, Auto-Imposição e Instituições

Indico adiante o que me parece seguir-se de todos esses meandros.Antes, porém, procurarei ilustrar algumas das dificuldades da abordagem "padrão" daescolha racional ao problema. Tomarei alguns textos de Adam Przeworski, que sedistingue por seu envolvimento e competência tanto nos aspectos metodológicosquanto nos substantivos dos temas que aqui nos importam.33

32

Esse ponto foi objeto de debates com Guillermo O’Donnell na colaboração que mantivemos algunsanos atrás. Minha posição cética com respeito à questão ganha suporte no fato de que a trivialidademencionada aparece com clareza num trabalho (em outros aspectos muito interessante e rico) em queO’Donnell procura caracterizar em termos gerais o problema estratégico enfrentado pelos váriosatores no processo político pós-autoritário: os atores democráticos precisam “neutralizar os atoresincondicionalmente autoritários, quer isolando-os politicamente (...) ou (principalmente no caso dasforças armadas) encontrando-lhes papéis institucionais donde não coloquem em xeque asobrevivência do regime”, e assim por diante. Ver Guillermo O’Donnell, “Transições, Continuidadese Alguns Paradoxos”, em Fábio W. Reis e Guillermo O’Donnell (orgs.), A Democracia no Brasil: Dilemas e Perspectivas, São Paulo, Editora Vértice, 1988, p. 46.33 Adam Przeworski, “Micro-foundations of Pacts in Latin America”, e Adam Przeworski,“Capitalismo, Democracia, Pactos”, em José Augusto G. Albuquerque e Eunice R. Durham (orgs.),

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Consideremos a formulação técnica do problema dos pactos sociaisfeita por Przeworski. Uma noção central é a de soluções "auto-impositivas" ( self-enforcing ) para situações estratégicas, que correspondem a estados de coisas "dosquais ninguém quer se afastar quando leva em consideração a eventual retaliação por parte dos outros". Essas soluções são auto-impositivas porque, "enquanto ascondições permanecerem as mesmas, ninguém irá querer ou se atrever a fazer qualquer outra coisa": portanto, elas se baseiam, por assim dizer, em definiçõesestritamente "particularísticas" dos interesses. A discussão de Przeworski supõe trêsatores (os trabalhadores, as empresas e o estado), e as situações correspondentes àssoluções auto-impositivas são vistas como consistindo ou em conflito aberto (onde ostrabalhadores se empenham em fazer a revolução, as empresas deixam de investir e oestado reprime) ou em compromisso (onde os trabalhadores moderam as

reivindicações salariais, as empresas investem e o estado provê política econômica deapoio). Soluções auto-impositivas "podem ou não ser eficientes no sentido de Pareto,mas nada garante em princípio que o sejam". Em contraste com a solução auto-impositiva, Przeworski introduz a noção de barganha, que é "por definição eficientemas não auto-impositiva: cada um dos atores poderia melhorar sua situação promovendo com mais empenho os seus interesses". Assim, no caso das barganhas háclara tensão entre o que acabo de chamar interesses "particularistas", de um lado, e,de outro, o interesse "universalista" a ser atendido por meio da barganha. As barganhas, portanto, "requerem mecanismos de imposição para se sustentar" – valedizer, requerem um aparato institucional, em última análise o estado.

De tudo isso Przeworski extrai três coisas. Em primeiro lugar, umainterpretação das condições necessárias para a consolidação da democracia, que sãoou (a) um compromisso auto-impositivo obtido mediante a interação independentedas forças sociais ou (b) o estabelecimento de uma barganha ("um 'pacto' no sentidoliteral da palavra"), com o conhecimento de que ela seria garantida pelo estado. Em

segundo lugar, um diagnóstico da problemática da América Latina, onde: (1) ascondições econômicas tornam um compromisso auto-impositivo inviável; e (2) a barganha é inviável porque as instituições políticas são incapazes de garanti-laimpositivamente. Em terceiro lugar, uma formulação das alternativas disponíveis: (1)conflito aberto, ele próprio auto-impositivo; (2) uma situação de cabo-de-guerra; ou

A Transição Política: Necessidade e Limites da Negociação, São Paulo, Universidade de São Paulo,1987. Naturalmente, muitos outros trabalhos de autoria de Przeworski são também relevantes.

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(3) uma soluçãoinstitucional que seja auto-impositiva, ou um "compromissoinstitucional". Naturalmente, só a última alternativa seria uma solução real para asituação problemática.34

Note-se que a possibilidade de um compromisso auto-impositivo éexcluídacom respeito aos interesseseconômicoscorrentes, enquanto se considera queela existe no que se refere ao estabelecimento de instituições – cuja ausência oufraqueza torna a barganha inviável. Assim, segundo Przeworski, um acordo ditado por considerações de interesse próprio é impossível no plano ("operacional") dasinterações econômicas, mas viável no plano ("constitucional") da criação deinstituições (onde se supõe que o compromisso propicie o enquadramento justamente para tais interações econômicas). Przeworski é explícito e enfático em afirmar que "o'pacto fundacional', a 'constituição' no sentido genérico do termo, tem de ser uma

solução auto-impositiva".35 Já que um compromisso operacional auto-impositivo não

é viável e que não temos as instituições para garantir o cumprimento de uma barganha, criemos, então, mediante um acordo constitucional auto-impositivo , asinstituições necessárias para respaldar as barganhas.

As posições de Przeworski são claramente paradoxais. Equivalem asupor que, na problemática situação descrita, as pessoas sejam capazes de agir coletivamente (convergindo na direção de um compromisso), com base naconsideração racional de interesses particularistas, justamente com respeito àquelesaspectos da situação em que a cadeia de fins e meios com que se tem de lidar émaiscomplexae, portanto, o volume de informação a ser processado émaior – em outras palavras, onde se faz necessário maior grau de racionalidade. Não parece haver senãouma forma alternativa de se interpretar a proposta: a idéia de que, precisamente pelofato de as questões serem mais complexas e nebulosas no nível constitucional, as pessoas postas numa situação difícil e problemática poderiam ser levadas a entrar emacordo porque não vêem com clareza as conseqüências de suas decisões. Essa

posição, porém, é flagrantemente inconsistente com o pressuposto de racionalidadeque se supõe guiar a abordagem da escolha racional.

Além disso, há um importante elemento de circularidade nas proposições de Przeworski. Pois a definição de solução auto-impositiva refere-se acertas condições cuja existência resulta em que ninguém tem incentivos para adotar

34 Przeworski, “Micro-foundations”, pp. 6, 7 e 8.35 Ibid., p. 8.

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uma estratégia diferente da que corresponde àquela solução particular. Ora,Przeworski nos incita a procurar uma soluçãoinstitucional que seja auto-impositiva para o problema da democracia. Mas as condições necessárias para tornar o acordoinstitucional democrático auto-impositivo incluem elas mesmas certos arranjosinstitucionais adequados.36 Se a própria definição do problema fundamental envolvetal circularidade, não admira que, apesar da óbvia riqueza e importância das análisesde Przeworski em muitos trabalhos, se tenha freqüentemente a impressão, ao lê-lo, deque estamos diante de petições de princípio em que se postula a solução justamentedas questões mais difíceis que se trata de resolver.37

De modo geral, creio que a principal contribuição de análises como asempreendidas por Przeworski nesses e em vários outros trabalhos recentes está na precisão e clareza que trazem à discussão das questões relativas ao funcionamento da

articulação entre democracia e capitalismo sob condições maduras e estáveis, isto é,no caso dos países capitalistas avançados. Outra maneira de enunciar a mesma coisaseria dizer que elas ajudam a esclarecer os problemas relativos ao funcionamento dos"pactos sociais" (isto é, aqueles pactos relacionados com política socioeconômica eenvolvendo como atores o estado e os trabalhadores e capitalistas organizados) sobcondições em que o "pacto constitucional" já foi de algum modo estabelecido. Mas o problema relativo à introdução efetiva e à consolidação final da democracia é o

36 Veja-se Przeworski, “Capitalismo, Democracia, Pactos”, p. 461. Após introduzir um conjunto decategorias paralelas àquelas que ocorrem no trabalho sobre “Microfundamentos” e reproduzidasacima, Przeworski enuncia sua “tese central”: “A coexistência entre capitalismo e democracia nos países capitalistas avançados não se baseia em pactos resultantes de escolhas conjuntas de estratégiatornadas forçosas porque alguém mais as impõe, mas sim em soluções derivadas de escolhasautônomas de estratégia que são auto-impositivas sob os arranjos institucionais prevalecentes. Ascondições econômicas,eleitorais e institucionaisque prevalecem nesses países geram umcompromisso espontâneo que favorece a coexistência entre capitalismo e democracia.” (Grifado por FWR.)37 Alguns exemplos. Com relação às condições do compromisso de classes, é dito que “as condições políticas desempenham importante papel na criação de confiança no futuro por parte detrabalhadores e capitalistas, e sob a democracia os trabalhadores podem usar essas condições em seu próprio benefício” (ibid., p. 471); mas como criar condições políticas que gerem confiança? Com

relação ao tipo específico de compromisso de classes correspondente aos arranjos corporativos, quesupostamente pode ser instrumental para a estabilidade democrática, somos lembrados da literaturaque mostra que partidos favoráveis aos trabalhadores precisam exercer o poder por longos eininterruptos períodos de tempo para que os sindicatos venham a se dispor a participar da barganhacorporativista (ibid., pp. 472-3); mas como se chega a uma situação em que um partido detrabalhadores pode não só alcançar o poder, mas também retê-lo e agir como efetivo detentor do poder sem provocar temores e reações por parte das forças conservadoras? Com relação àstransações entre capitalistas e assalariados, afirma-se que nenhuma das duas categorias estarádisposta a sacrificar o consumo atual se as instituições não forem suficientemente fortes para evitar que o outro lado se utilize de vantagens circunstanciais para apropriar-se de uma parcela mais amplados benefícios cuja existência é possibilitada por aquele sacrifício (ibid., p. 475); mas como construir instituições fortes?

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próprio problema constitucional, ou o problema de se instituir efetivamente o pactoconstitucional. As questões inevitáveis a esse respeito são: Como sechegaa ele? Oque seria necessário fazer para que o pacto constitucional se tornasse viável, ou paracriar condições capazes de permitir que o processo político fosse eventualmenteenquadrado por instituições democráticas realmente operativas? Para tais indagações,a recomendação de procurar pactos institucionais auto-impositivos certamente não ésuficiente.

Naturalmente, um aspecto preliminar do problema assim colocado é odo sujeito ao qual corresponderia a expressão "fazer" que se acaba de utilizar: dequem se trata? De maneira bem clara, isso acaba por envolver a questão da dimensão"reflexiva" de um projeto constitucional e, correspondentemente, a questão dos atorescapazes de reflexividade na situação "transicional". Sem dúvida, a definição concreta

de tais atores, ou sua emergência como tal no processo sócio-político, é algo bastante problemático, e essa é uma parte decisiva do caráter problemático da situação geral.Mas note-se que o mesmo problema está também presente no tipo de análiseexemplificado pelos trabalhos de Przeworski, os quais não destacam o problema dadimensão "reflexiva" da efetiva definição social e do comportamento dos atorescoletivos envolvidos nos "pactos sociais" – para não falar do de quem vai instituir ou patrocinar qualquer pacto, o que leva de novo aos requisitos institucionais até mesmodos pactos auto-impositivos.

Mas há outro aspecto singularmente importante do problema dosatores coletivos quando considerado do ponto de vista do problema constitucional.Refiro-me ao papel desempenhado pela corporação militar como um ator muitoespecial na situação "transicional", em oposição à sua aparente irrelevância no casodos países democráticos de capitalismo avançado. A centralidade do papel dosmilitares nos países "transicionais" pode ser vista como quase equivalente à própriadefinição do problema constitucional. Pois é a ausência ou fraqueza das instituições

democráticas, tornando a arena política o palco no qual cada "força social" pressiona por seus próprios interesses com recurso a qualquer instrumento disponível, que levaao predomínio dos militares, dada a peculiaridade dos instrumentos por elescontrolados – os instrumentos de coerção física. Isso equivale, naturalmente, àclássica definição de "pretorianismo" proposta por Huntington e outros.38 E essa

38 Samuel Huntington, Political Order in Changing Societies, New Haven, Yale University Press,1968, capítulo 4.

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noção se introduz aqui muito apropriadamente, já que apreende um aspecto crucial dodilema enfrentado pelos países "transicionais" que se liga diretamente às proposiçõesde Przeworski. Com efeito, ela permite lembrar que não há razão para supor que um processo de transição esteja realmente em curso. As reservas a respeito se impõem justamente pelo dilema de puxar-se pelos próprios cabelos que se acha envolvido nodesafio de construir instituições em condições em que o jogo espontâneo dosinteresses (ou a operação de mecanismos auto-impositivos) tende a resultar antesnuma espécie de duradouro "pantanal", em que se chapinha sem se poder realmenteavançar. Nessas condições, o jogo de cabo-de-guerra não é um desenlace específico:ele é antes um traço permanente da situação, que ajuda a defini-la e queincluinosseus extremos tanto a ameaça ou a efetividade de conflitos reais quanto o controleabertamente autoritário da vida política pelos militares. Além disso, seja como for

que se queira analisar o desempenho político dos militares do ponto de vista daestrutura de classes das sociedades em questão, eles tendem a ser o ator coletivosingular (talvez, na América Latina, ao lado da Igreja) que melhor justifica, em geral,a presunção de ter a capacidade organizacional de agir "reflexivamente" (eefetivamente) na busca de objetivos definidos a partir de um diagnóstico abrangente,não importa quão tendencioso, da situação e de seu papel específico nela. Se seconsideram as perspectivas de real transição para uma democracia consolidada do ponto de vista da corporação militar vista como um ator tão decisivo, a que leva asuposição da necessidade de um compromisso institucional auto-impositivo? Comotal compromisso contemplaria os interessesdesseator particular?

VII - Democracia Contratualista e a Dupla Autonomia das Instituições Políticas

Certo aspecto doutrinário nos enunciados de Przeworski em seu artigosobre "Microfundamentos" fornece uma forma adequada de passarmos à apresentação

de minha própria perspectiva com respeito aos problemas. O aspecto em questão é bastante intrigante, pois revela um elemento radical e utópico que não combina bemcom o patente realismo das análises de Przeworski acerca de problemas semelhantesem outros textos. Refiro-me à definição de democracia fornecida por ele: "aquintessência da democracia é que não há ninguém para impô-la",39 à qual se liga aidéia de que um pacto institucional ou constitucional não pode ser uma barganha e39 Przeworski, “Micro-foundations”, p. 8.

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tem de ser uma solução auto-impositiva. Essa definição de democracia é sem dúvidainteiramente consistente com a concepção do compromisso democrático como auto-impositivo: em um pacto constitucional (democrático) "real", quem quer que nãotenha seu interesse contemplado deve ser capaz de vetá-lo. Mas note-se como essavisão da democracia real é antes a visão de uma democracia "ideal", ajustando-se aomodelo contratualista de um pacto original (estabelecido a partir do estado denatureza) e unânime entre agentes que se supõe serem racionais. Seja qual for aimportância de se recorrer analiticamente a tal concepção radical de democracia para propósitos teóricos, é duvidosa a utilidade de destacá-la se o propósito é analisar a possível transição para uma democracia realisticamente alcançável (uma"poliarquia") em condições severamente limitadoras.

Ora, o próprio Przeworski tem defendido, ao lado de autores como

Claus Offe e Volker Ronge, uma concepção antes "realista" da natureza docompromisso democrático no caso dos países capitalistas, na qual a democraciaaparece como forma de organização inevitavelmente distorcida em favor do capital,dada a dependência estrutural do estado e da sociedade perante o capital que écaracterística do capitalismo como tal.40 Um aspecto crucial de tal compromisso é ode que os conflitos sociais são mitigados, de modo que os trabalhadores aceitam a propriedade privada e o controle pelos capitalistas das decisões sobre investimentos,enquanto os capitalistas aceitam a democracia e as decorrentes políticas sociais emfavor dos trabalhadores que vêm a ser estabelecidas pelo estado. Assim, o pactodemocrático envolve de maneira importante a criação de um elemento decertezaparacompensar as incertezas inerentes à interação sócio-política quotidiana. Mas, no textoem exame, Przeworski prefere associar à visão radical do "pacto fundacional"algumas proposições que destacam justamente a feição incerta e conflituosa dademocracia, à qual opõe a busca do "consenso democrático", denunciada comotributária de "um legado intelectual não-democrático".41

A perspectiva que proponho como mais adequada redunda em apoiar oPrzeworski realista contra o utópico e radical. Dessa perspectiva, é possívelconcordar com a denúncia de Przeworski de um "legado intelectual não-

40 Adam Przeworski,Capitalism and Social Democracy, Nova York, Cambridge University Press,1985; Claus Offe e Volker Ronge, “Teses sobre a Fundamentação do Conceito de ‘EstadoCapitalista’ e sobre a Pesquisa Política de Orientação Materialista”, em Claus Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.41 Przeworski, “Micro-foundations”, p. 8.

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democrático"; mas, em vez de ser apenas a manifestação de um viés intelectual, esselegado é percebido antes como se referindo a um aspecto "objetivo" do problema aser enfrentado. Uma boa forma de colocar o problema em seu aspecto doutrinário érecorrer a alguns dos vários matizes e confusões associados à idéia de autonomia doestado ou, mais amplamente, das instituições políticas.42 O lado "utópico" do pensamento de Przeworski se inclina claramente em favor da posição de que o estadonão deve ser autônomo, pois a autonomia do estado pode ser vista como oposta à"soberania popular".43 Mas é inegável que parte das características definidoras dademocracia expressam antes a idéia de que o estadotemde ser autônomo, de maneiraa não poder ser transformado no mero instrumento deste ou daquele interessesocioeconômico – ou pelo menos de maneira que, mesmo se cabe realisticamentereconhecer que ele se acha fadado a ser em grande parte sobretudo um instrumento

de certas categorias sociais, ele não sejaexcessivamentesensível, ao desempenhar tal papel, às vicissitudes do jogo de interesses do dia-a-dia, e possa assim assegurar o processamento ordenado de algum grau deincerteza. Isso é o que Huntington chama"a autonomia do sistema político", vista por ele como o resultado crucial de um processo bem-sucedido de institucionalização política.44

Obviamente, há diferentes concepções do estado em jogo aqui (oestado como ele próprio um foco ou agente de tirania, ou como instrumento de certosagentes sociais para exercer poder sobre outros, ou como instrumento de todos), asquais se ligam com diferentes concepções da política ou da sociedade como tal (por exemplo, a sociedade como "público" homogêneo em contraste com a sociedadecomo estrutura de relações de poder privadas, principalmente relações de classe). E odesafio central ligado à democracia tem a ver com as interconexões das questõescolocadas por essas diferentes concepções. De qualquer modo, uma questão que écertamente decisiva para nossos problemas se refere às relações entre a idéia deautonomia do estado ou das instituições políticas, por um lado, e a distinção entre os

níveis "operacional" e "constitucional" da vida política, por outro. Tanto a noção de42 Para a discussão dessas confusões, veja-se Fábio W. Reis, Política e Racionalidade, 2a. parte,capítulo V.43 O problema é elaborado nesses termos em outro artigo de Adam Przeworski e Adam Wallerstein:“Popular Sovereignty, State Autonomy, and Private Property”, Archives Européennes de Sociologie,vol. XXIII, n. 2, 1986.44 Veja-se, por exemplo, Huntington, Political Order in Changing Societies, pp. 20-21. O óbvio ponto de contato entre essa idéia e a ênfase de Przeworski na incerteza como um elemento dademocracia torna muito claro que o próprio Przeworski propõe, explícita ou implicitamente, mais deuma maneira de se lidar com a questão da autonomia do estado.

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Huntington da "autonomia da arena política" como a "incerteza" democrática dePrzeworski se referem à exigência de autonomia com respeito ao jogo de interessesno nível operacional . Mas que dizer da autonomia com respeito ao nívelconstitucional?

A resposta, sem dúvida, é que não deve haver tal autonomia se se pretende que o compromisso democrático se torne possível sob o capitalismo – e éóbvio que essa prescrição de não-autonomia é bem diferente da atribuída acima aoPrzeworski "utópico", pois aqui tenho em mente uma estrutura não-igualitária derelações sociais de poder e não um público homogêneo concebido como soberano. Ocaráter problemático e instável da situação enfrentada por nossos países"transicionais" pode ser descrito como tendo a ver, em última análise, com osriscosque ela contém (ou é percebida como contendo por forças políticas relevantes) de que

poderiam ocorrer tentativas bem-sucedidas de se organizar o estado de maneiraautônoma com respeito à estrutura social de relações de poder, isto é, de um modoque poderia acabar por mostrar-sehostil à estrutura prevalecente, ou no qual o estado poderia ser usadocontra ela. Naturalmente, é precisamente isso o que se achaenvolvido no reconhecimento da dependência estrutural do estado e da sociedade perante o capital e de suas relações com o compromisso democrático. Em outras palavras, é certamente correto dizer que um importante componente do problemaconstitucional é a questão de como neutralizar o risco de revolução. Claro, seria possível sustentar que o problema constitucional pode ser descrito igualmente bemem termos de como fazer a revolução e organizar a sociedade pós-revolucionária – eessa mudança de ponto de vista é um bem-vindo lembrete de que o problema dademocracia pode em princípio ser discutido, naturalmente, sob condições diversasdas do capitalismo. Mas não parece caber dúvida de que a atual preocupação com o problema da consolidação da democracia nos países da América Latina que acabamde emergir de regimes autoritários acha-se definitivamente condicionada pelo

reconhecimento de que o leque das opções realmente abertas para uma eventual"solução" do problema básico de interação estratégica assim indicadonão inclui asupressão do capitalismo, e a discussão adequada do problema requer que ela se façaacompanhar de especial sensibilidade para as severas limitações da situação prevalecente – ou, se me atrevo a dizê-lo, a partir de um ponto de vista que deveriacaracterizar-se como antes conservador. Em outras palavras, ou teremos capitalismocom democracia ou capitalismo sem democracia – e a "solução" do problema da

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democracia parece exigir acima de tudo que os problemas docapitalismosejamresolvidos, e que se faça com que ele floresça e amadureça.45

VIII - Conclusão: Consolidação Democrática e Escolha Racional

Formulo agora sucintamente minha própria maneira de ver nossos problemas substantivos ligados à consolidação democrática, bem como asrecomendações metodológicas que me parecem convergir com ela no que se refere àquestão da escolha racional. A orientação fundamental é dada pela idéia de queestamos diante de uma tarefa de construção institucional com respeito à qual só podemos ter alguma esperança de êxito se ela contar com a sensibilidade que seacaba de mencionar – o que significa que a questão do que de fato pode ser feitosob

as condições descritas é central, e tem de ser mantida diante de nossos olhos.Examinada do ponto de vista da clássica discussão sobre as "condições sociais dademocracia", essa orientação leva a algumas idéias cruciais que podem talvez ser enunciadas como segue. Em primeiro lugar, não há razão para supor que a perspectiva das "condições sociais da democracia" indique uma maneira melhor de seresponder à questão do que deve ser feito do que a perspectiva alternativa das"condições políticas da democracia social" – ou das condições políticas da própriademocracia política. Pois o que se faz necessário é, em qualquer caso, ação política,com a qualificação de que a alternativa da ação política revolucionária não se achadisponível. Em segundo lugar, essa orientação implica o reconhecimento de que, sehá condições para as quais se deve atentar no processo de construção de democraciasautênticas em nossos países, elas são antes de mais nada aquelas condições que defato os caracterizam – sociale politicamente. Isso acarreta que a tarefa de construçãoinstitucional democrática teria de orientar-se por uma perspectiva gradualista,marcada pela preocupação de agir sobre aqueles aspectos do contexto geral que

parecem passíveis de manipulação efetiva no plano de nosso "institucional comoobjeto" sem precipitar reações autoritárias de forças conservadoras e com prospectos

45 Na verdade, compromissos democráticos estáveis são claramente excepcionais, e certamente hárazões para a presunção teórica de que, se se tem capitalismo, provavelmente se terá tambémautoritarismo político, seja o que for que ocorra nos sistemas não-capitalistas. Essa presunção, quetem antecedentes óbvios e importantes na literatura das ciências sociais, é por certo inteiramentecompatível com a teoria da dependência do estado e da sociedade perante o capital sob ocapitalismo.

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razoáveis de pouco a pouco ajudar amudar o contexto presente em direção favorávelà democracia.

Naturalmente, não há razão para que a lógica dessa perspectiva realistae gradualista se detenha no reconhecimento da necessidade de conviver com ocapitalismo se quisermos ter democracia. Como tenho sustentado em textos publicados em anos recentes sobre o caso do Brasil,46 suas ramificações permitemalterar de maneira positiva a perspectiva a adotar com respeito a várias áreas ligadasde problemas: o desafio de elaboração constitucional que enfrentamos há pouco coma Assembléia Constituinte e as reformas constitucionais cuja necessidade surge deimediato; a questão do papel dos militares; o tema maldito do corporativismo e osequívocos que o cercam; o problema dos partidos e os paradoxos do empenho deconstrução institucional na esfera partidária etc.

Seja como for, minha perspectiva geral quanto à questão da consolidação dademocracia é antes pessimista. As esperanças de consolidação democrática referem-se a um processo de construção e reconstrução institucional e estatal que éinevitavelmente precário: ele se desdobra sobre um largo período de tempo, pois a passagem do tempo é um ingrediente necessário do próprio processo deinstitucionalização, com sua dialética entre artificialismo e "impregnação" contextual;os atores de diferentes escalas nele envolvidos não apenas são múltiplos eestrategicamente orientados, mas acham-se também em diferentes fases no que serefere à definição e à maturação das identidades coletivas correspondentes, diferindoainda quanto à capacidade de lidar de maneira autônoma e cognitivamente sofisticadacom as tensões que emergem entre perspectivas de curto e de longo prazos, ouegocêntricas e "descentradas" – para não falar das relações complexas entre esseselementos que são acarretadas pelos próprios requisitos doutrinários da democracia;ele supõe um processo de aprendizagem convergente entre os diferentes atores...Dadas tais complexidades, a presunção deve ser a de que, mesmo se eventualmente

bem sucedido no longo prazo, o processo de implantar e consolidar a democracia provavelmente deverá passar por severas crises e reviravoltas.

46 Razão pela qual omito aqui a longa discussão feita na versão original deste trabalho. Algumasdessas publicações são: “Estado, Economia, Ética, Interesses: Para a Construção Democrática noBrasil”, Planejamento e Políticas Públicas, no. 1, junho de 1989; “Para Pensar Transições:Democracia, Mercado, Estado”, neste volume; e os textos que compõem a terceira parte do presentevolume, em especial os capítulos 12, 13 e 14.

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Ao nos aproximarmos do fim destas notas de posse de um diagnóstico comoesse, a questão óbvia é a de como ele se relaciona com a abordagem da escolharacional e seu interesse como instrumento analítico a ser utilizado no exame dos problemas da consolidação democrática. Uma observação preliminar diz respeito àafinidade que a preocupação "estratégica" com o que fazer mantém com a perspectivada escolha racional. A despeito de sua necessária sensibilidade para com a dialéticado institucional (ou antes, por causa dela), a ótica resultante dessa preocupação acha-se em clara oposição, em certo nível, à ênfase excessiva em fatores "culturais" comfreqüência encontrada na discussão da democracia e das chances de consolidaçãodemocrática. Do ponto de vista aqui proposto, os elementos culturais são relevantesna medida em que são parte dos "dados" a serem processados da maneira mais efetiva possível. Isso tem um efeito "conseqüencialista" sobre a decisão de como abordar o

estudo e o eventual diagnóstico de situações históricas concretas que se revela maissaudável do que certo ingrediente moralista – e paralisante – freqüentemente presenteno confronto entre modelos abstratos da vida política ou de qualquer de seusmúltiplos aspectos.

Outra questão é a de que o eventual êxito de um suposto processo deconsolidação democrática é algo que diz respeito, naturalmente, ao comportamentodos próprios atores envolvidos no processo. O diagnóstico e o prognóstico esboçadosacima encerram certa postura ou aposta analítica quanto aos prováveis resultadosdesse comportamento e implicam proposições sobre a situação e sua percepção pelosatores que deveriam ser suscetíveis de algum tipo de verificação diferente da simplesespera de que as coisas aconteçam – até porque, dada a natureza do problema, aopção de esperar as coisas acontecerem não está realmente disponível. Por certo, aquestão da prova empírica no que se refere a processos é por si muito complicada para as ciências sociais como tal, independentemente da abordagem específica que se pretenda defender. Mas estará a abordagem da escolha racional qualificada para

qualquer reclamo especial com respeito ao problema geral, incluindo sua ramificaçãoquanto à questão da verificação empírica?

A resposta é certamente negativa. O próprio enunciado do problema em toda asua complexidade me parece exigir que se abandone a perspectiva "padrão" daabordagem da escolha racional, caracterizada pela presunção oculta ou latente de queo analista (o cientista social adepto da escolha racional) é mais esperto ou lúcido doque o ator "racional" com o qual trabalha. O ator se acha encerrado numa situação

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que envolve um complexo problema de coordenação (entre os diferentes atores e asações de cada um em diferentes momentos) e que o analista pode talvez chegar aapreender de maneira adequadamente sofisticada; quanto aos próprios atores,contudo, a suposição com que se opera é antes a de que estão condenados a sedeixarem guiar por interesses míopes – e, mesmo se lhes é concedida a apreensãoigualmente sofisticada da situação, postula-se que o problema de coordenação é denatureza a impedir que isso lhes seja de grande ajuda. Donde a perspectiva da mãoinvisível ou da ação coletiva como subproduto. Como vimos, não importa quão aptaa caracterização abstrata aí contida de uma situação de contrato original (ou dasituação de certos grupos reais de natureza "latente"), a situação histórica concretacom que se defrontam os países "transicionais" que nos interessam é diferente emaspectos importantes, pois inclui como dimensão relevante a existência de certos

atores capazes de exercer papel coordenador (ou mesmo, em certos casos, capazes deexercer coerção, o que, naturalmente, é parte do problema) e de atuar como focos deconvergência e reflexividade. Dar conta analiticamente do problema colocado pelasituação assim definida certamente não requer o abandono da própria noção deracionalidade: ao contrário, a maior complexidade da situação inclui atores e açõesque são por definição sensíveis com respeito a objetivos de longo prazo ecompartilhados coletivamente (e que, como tal, se enfrentam expressamente com anecessidade de maior racionalidade), lado a lado com objetivos miopemente"interesseiros".

Mas surge uma reviravolta neste ponto que introduz importante complicaçãoadicional. A própria eficácia (ou racionalidade) das ações orientadas para o objetivode longo prazo de consolidar a democracia depende de que nossos atores reflexivostenham adequadamente em conta a miopia (em conjunto com a ocasional orientaçãode longo prazo...) de muitas outras ações – sem dúvida, é justamente nisso queredunda minha recomendação de gradualismo. De novo, esse passo a mais na

descrição de nosso tortuoso problema, ao invés de levar à exigência de que seabandone a idéia de racionalidade para apreendê-lo analiticamente, leva antes a umcompromisso mais forte com ela. Mas a questão é: estamos ainda dentro dos confinsda abordagem da escolha racional quando temos de lidar tanto com racionalidade denatureza reflexiva e capaz de planejamento de caráter quanto com um complexocontexto "sociológico" que estabelece, por assim dizer, o palcotradicional enormativonão só para o esforço reflexivo, mas também para a definição dos

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interesses e objetivos a serem perseguidos na multiplicidade das "interesseiras" açõesmíopes?

Não creio que a abordagem da escolha racional possa enfrentar, com seus próprios recursos, a tarefa implícita nessa definição do problema. Mas isso não nega,naturalmente, que provavelmente há um papel de destaque a ser cumprido por ela noesclarecimento dos problemas de vários níveis. A utilidade de trabalhos como os quetratam do nível operacional dos pactos sociais e sua relevância para o nívelconstitucional parece bastante clara. E penso que deve haver presunção favorávelquanto à possibilidade de aplicacões proveitosas da abordagem da escolha racional,de maneira similar, às formas mais complexas de interação estratégica (e assim talvezàs formas também mais complexas de articulação entre os níveis operacional econstitucional) que temos em nossa situação "transicional" como conseqüência de

aspectos tais como o importante papel desempenhado pelos militares e ascomplicações envolvidas no processo às vezes incipiente de formaçãode outrosatores coletivos. Uma questão que parece necessitar esclarecimento é a de até que ponto será necessário ir além do jogo entre pactos institucionais, por um lado, einteresses estritamente "materiais" ou "econômicos", por outro. Como indicadoanteriormente, não creio na utilidade de conceber nosso problema em termos de umsuperjogo entre projetos constitucionais alternativos, dada a falta de realismo e a banalidade provavelmente inevitável que tende a resultar. Assim, parte do problema parece consistir em como definir de maneira suficientemente complexa os interesses"operacionais" que se articulam com os prospectos de que diferentes arranjosconstitucionais possam chegar a prevalecer e durar. Por exemplo, além das preocupações ou objetivos "constitucionais" e do desejo de remuneração adequada,há outras motivações efetivas por parte dos militares que devam ser incluídas noempenho de apreender formalmente nosso complexo jogo estratégico? Será que asugestão feita de uma "ressocialização" institucionalmente conduzida dos militares

aponta para aspectos relevantes da questão?Em qualquer caso, o esclarecimento formal do problema constitucional tal

como aparece na própria perspectiva de um ator supostamente reflexivo ou"constitucional" é, por certo, outro aspecto com respeito ao qual cabe esperar que aabordagem da escolha racional experimente os recursos de que dispõe. Isso se ligacom o privilégio concedido à questão de que fazer, e leva provavelmente a um focoafim ao que normalmente se associa com a análise de políticas ( policy analysis), onde

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se adota o ponto de vista de um ator "global" (o estado supostamente imparcial ecapaz de empatia com diversos interesses) para lidar com problemas definidos emtermos de maximização global, embora envolvam aspectos de interação estratégica.Uma espécie de utilitarismo orgânico parece inerente a tal perspectiva, em contrastecom o contratualismo adotado por Przeworski com sua definição radical dedemocracia. Acho que isso é não somente inevitável se se trata de construir ademocracia num contexto histórico: é também provavelmente necessário sequisermos incorporar a nossas análises o "conseqüencialismo" de que penso queminha recomendação gradualista é um exemplo. Não vejo como uma análisedestinada a diagnosticar determinada situação e a orientar os esforços de aperfeiçoá-la possanão ser conseqüencialista. O que está longe de significar que meus palpitestoscos sejam tudo o de que necessitamos.