a racionalidade dos meios de comunicação

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A RACIONALIDADE DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO ENTRE SISTEMA E MUNDO DA VIDA Tomás Batista Trabalho apresentado para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social Orientador: Prof. Dr. Everardo Rocha Junho de 2007 Rio de Janeiro

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Excerto da conclusão: Ao buscarmos estabelecer o tipo de abertura proporcionada pelos meios de comunicação a fim de posicioná-los, no interior da sociedade, seja como componente do sistema ou fomentador de reprodução simbólica, não há como não partir de pressupostos mais condizentes com a herança weberiana (tal como elaborada por Habermas) do que com o entendimento de sociedade apresentado por Luhmann; afinal, do contrário seria impossível o próprio levantamento do problema. Luhmann sequer considera limites à esfera sistêmica da sociedade, e não vê diferenças operativas entre reprodução simbólica e reprodução material: a mediação lingüística de ações, a seu ver, não difere substancialmente de não-lingüística – antagonismo correlato, na sua teoria, seria o entre informação/não-informação, o qual, conceitualmente, de fato poderia abarcar uma análise sobre ambas as esferas do mundo da vida e do sistema, mas não possibilitaria caracterizá-las em suas especificidades. Uma construção teórica feita por esse autor, entretanto, se mostra de fato pertinente: a composição tripartite do sistema da comunicação em áreas programáticas da publicidade, do entretenimento e de notícias e reportagens – em cada uma delas se manifesta com bastante evidência a racionalidade dos meios de comunicação.A partir de uma leitura da estrutura de análise social de Weber foi possível a Habermas, ao contrário do que ocorre em Luhmann, limitar o campo de ação da esfera sistêmica e, ao mesmo tempo, fundamentar a aplicação empírica do conceito husserliano de mundo da vida. O Lebenswelt racionalizado, oriundo da modernização cultural, fez surgir, por sua vez – conforme sua crescente complexidade –, mecanismos auto-regulados de ação as quais, nesse âmbito, passaram a dispensar mediação lingüística; nisso se fundamenta histórico-socialmente a diferenciação da esfera sistêmica, processo relativo, enfim, a outro tipo de modernização, essa chamada social. A mediação não-lingüística da ação e sua relação integrativa com os sistemas da economia e da política são fatores que nos persuadiram a entrever os meios de comunicação constituindo um sistema. Além disso, o sistema da comunicação só pôde ser imaginado em um contexto de vida no qual a modernização social esteja de fato avançada. Não é difícil, portanto, argumentar a favor da mediação técnica para especificar a comunicação tal como é instituída dentro do sistema da comunicação; mas, para se alcançar a amplitude de comunicação, houve a necessidade não apenas do suporte difusor, mas também a necessidade mesma em ampliar a comunicação, isto é, teve-se de contar com um público produtor extremamente amplo ao qual essa comunicação fosse destinada (imperativo esse apenas das sociedades em alto grau de racionalização social).Apesar de extraída da teoria dos sistemas de Luhmann – unilateral com relação à ação social –, a noção de setor programático nos foi útil para mostrar como o sistema da comunicação pode ser o grande ator na dinâmica entre sistema e mundo da vida. Publicidade, entretenimento, e notícias e reportagens só logram acesso ao mundo da vida como linguagem. Entretanto, enquanto formatos da comunicação, disponibilizam mensagens cuja intenção não é, inicialmente, possibilitar entendimento sobre algo no mundo, mas sim efeitos perlocucionários – seja a venda de um produto, a distração de uma rotina enfadonha, ou a objetivação da realidade social –, e com o agravante de não torná-lo explícito: a campanha publicitária de sucesso é aquela que menos transmite a intenção de persuadir à compra; o entretenimento eficaz pode criticar, mas está longe de levar seu espectador a tomar atitudes frente aos fundamentos da ordem de vida em que se insere; por último, o texto jornalístico ideal é aquele que sintetiza aspectos do acontecimento para o consumo de um público-alvo também ideal (ora “sem tempo”, ora “politizado”; ora “trabalhador”, ora “culto”, etc.), fazendo crer ser irrelevante a complexidade determinante do fato. A

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Page 1: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

A RACIONALIDADE DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO ENTRE SISTEMA E MUNDO DA VIDA

Tomás Batista

Trabalho apresentado para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social

Orientador:

Prof. Dr. Everardo Rocha

Junho de 2007 Rio de Janeiro

Page 2: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

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Sumário

Apresentação ................................................................................................4

I. Racionalização: o viés instrumental .......................................................8

1.1. A teoria da racionalização de Weber ................................................................... 12 1.1.1. O racionalismo da autoconservação: ascetismo puritano e auto-afirmação do sujeito como rejeição e reificação do mundo ............................................................................................... 14 1.1.2. Desencantamento do mundo e racionalização cultural: a diferenciação das esferas de valor ....................................................................... 16 1.1.3. Racionalização da sociedade: os subsistemas e a racionalidade burocrática ........................................................................................ 19

1.2. Dialética da razão ................................................................................................ 20 1.2.1. Entrelaçamento mito x esclarecimento: autoconservação como sacrifício de si e a instrumentação do pensamento ............................................................................................................. 21 1.2.2. Indústria cultural e a vigência do mundo sociocultural moderno .................................................................................................................. 25

II. Racionalidade: o viés comunicativo .................................................. 30

2.1. A verbalização do sagrado e a liberação do potencial comunicativo da razão moderna ................................................................................. 33

2.2. Da modernização cultural ao mundo da vida racionalizado ................................ 37 2.2.1. Descentramento de valores e agir comunicativo .......................................... 40 2.2.3. Sobre o conceito de ação estratégica ............................................................ 44

2.3. Da modernização social ao sistema ..................................................................... 45 2.3.1. Os meios reguladores não-lingüísticos como elemento de automatização da esfera sistêmica ..................................................................... 48

2.4. O entrelaçamento sistema x mundo da vida: a base de uma noção dual de sociedade ........................................................................................................ 50

III. A racionalidade dos meios de comunicação: entre reprodução material e compartilhamento simbólico ............................ 52

3.1. A teoria sistêmica de Luhmann e a função coordenativa dos meios de comunicação ................................................................................................ 55

3.1.1. A diferenciação das áreas programáticas como tematização da realidade ......................................................................................... 57

3.2. A unilateralidade do conceito de sistema social e pressupostos para uma apropriação da teoria sistêmica da comunicação ........................................ 62

3.3. O sistema da comunicação como integrador intersistêmico e origem de reificação da realidade social. .................................................................... 63

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3.3.1. Entre economia e política: a funcionalidade inter-referencial dos meios de comunicação. .................................................................. 64 3.3.2. A linguagem noticiosa moderna: objetivação da realidade e redução da complexidade. .................................................................... 66

3.4. Da orientação estratégica à formação do saber de fundo .................................... 70

Conclusão .................................................................................................. 73

Bibliografia................................................................................................ 79

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Apresentação

O pensamento de Jürgen Habermas situa-se em meio a uma encruzilhada temática. Na

exposição de sua teoria do agir comunicativo (Habermas, 1984), o autor parte da

questão da racionalidade – campo de estudo filosófico por excelência –, dedica vários

segmentos ao diálogo com clássicos das ciências sociais (como Durkheim, Mead,

Parsons e, a seu ver o mais contemporâneo, Weber), e alcança o domínio de pesquisa

lingüístico, com sua pragmática universal. Dessa conjunção, duas elaborações, a nosso

ver, se destacam: a primeira, de uma racionalidade processual e intersubjetiva – a razão

comunicativa – e, a outra, o conceito dual de sociedade, composta por sistema e mundo

da vida.

Tomando como ponto de partida os diagnósticos de Weber e da Escola de

Frankfurt, Habermas propõe outro entendimento acerca do processo de racionalização

marcante da sociedade ocidental; se de um lado não se nega a formação de espaços de

ação dominados pelo instrumentalismo e pela orientação estratégica, de outro, a

supressão das imagens de mundo tradicionais possibilitariam uma vantagem inédita:

que à modernidade seja permitido buscar, por si e em si mesma, seus próprios critérios

de normatividade. Junto ao potencial instrumental da razão, liberta-se, na modernidade,

o comunicativo.

Em correlação com essa dualidade, a estruturação da sociedade moderna em

Habermas, dividida entre domínios de ação automatizada e de interação

linguisticamente mediada, isto é, entre sistema e mundo da vida (essa última noção

extraída da fenomenologia husserliana, mas agora aplicável empiricamente), oferece um

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5

mapa conceitual bastante útil para enfrentar questões concernentes à própria dinâmica

social. Nesse sentido, também a análise dos meios de comunicação pode ser beneficiada

e abandonar de vez a velha querela herdada da sociologia – disciplina em que se

originou a pesquisa em comunicação – entre teorias funcionalistas e teorias da ação; por

sinal, a compreensão de sociedade moderna constituída por sistema e Lebenswelt

resolveria problema semelhante ao do paradigma da consciência na filosofia, cuja

superação, pretendida mediante o conceito de razão comunicativa, contribui

enormemente para o sucesso da primeira.

* * *

Habermas entende que as empresas culturais e os meios de comunicação de

massa compõem o núcleo institucional da esfera pública. Em suas palavras:

As tecnologias de comunicação – de início, a tipografia e a imprensa, depois o rádio e a televisão – disponibilizam manifestações para quase qualquer contexto, possibilitando uma rede altamente diferenciada de esferas públicas locais e supra-regionais, literárias, científicas e políticas, intrapartidárias e específicas a associações, dependentes dos media ou subculturais. Nas esferas públicas, os processos de formação da opinião e da vontade são institucionalizados e, por mais especializados que possam ser, estão orientados para a difusão e à interpenetração. Os limites são permeáveis; cada esfera pública está aberta também às demais. Devem suas estruturas discursivas a uma tendência universalista dificilmente dissimulada. Todas as esferas públicas parciais remetem a uma esfera pública abrangente em que a sociedade em seu todo desenvolve um saber de si mesma. O esclarecimento europeu elaborou essa experiência, incluindo-a em suas fórmulas programáticas (Habermas, 2002: 499-500).

Entretanto, apesar de clara sua importância para o fomento e difusão de

estruturas interpretativas, de maneira a possibilitar a interpenetração de esferas públicas,

parece que não se determina de fato como o conjunto dos meios de comunicação se

insere efetivamente à dinâmica dual da sociedade. Se, por um lado, consideramos os

meios de comunicação como parte da estrutura sistêmica, certos problemas surgem

tendo em vista que, nesse domínio, não se constituem interações linguisticamente

mediadas, das quais sem dúvida depende a comunicação dos meios de comunicação;

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por outro lado, estabelecendo-o tão-somente no quadro institucional do mundo da vida,

corre-se o risco de desconsiderar tanto sua necessidade de organização racional-

burocrática, quanto os pontos de apoio político-econômicos. Assim, o intuito deste

trabalho é extrair da sociologia habermaseana uma possibilidade de teoria da

comunicação social, o que implicaria, conforme indicado, não apenas discussões no

interior da teoria da sociedade, mas também levantar questões sobre a problemática da

racionalidade, ambas em direta – porém nem sempre evidente – relação.

No primeiro capítulo, “Racionalização: o viés instrumental”, mostraremos

inicialmente como Weber identifica processo de racionalização ao de formação da

sociedade moderna, sempre atentos em explicitar sua base conceitual, apropriada não

somente por Habermas, como também em parte por Adorno e Horkheimer em sua

crítica da razão instrumental, tema da segunda parte da seção. Com isso, teremos

apresentado uma determinação do que se entende por racionalidade instrumental (base

para a compreensão da noção de sistema).

Em “Racionalidade: o viés comunicativo”, nos voltamos para a superação da

unilateralidade de ambas as concepções (Weber; Adorno e Horkheimer), a fim de

demonstrar como, no entender de Habermas, o processo de racionalização permite

outros diagnósticos que não os da perda de liberdade e de sentido (Weber) ou da

dialética do esclarecimento (Adorno e Horkheimer). Nesse capítulo, estão explicitadas

as bases da teoria do agir comunicativo e da teoria social habermaseanas, fundamentos

para a discussão a qual nos propomos referente aos meios de comunicação.

O terceiro capítulo, “A racionalidade dos meios de comunicação: entre

reprodução material e compartilhamento simbólico”, trata especificamente da inserção

desses meios no processo de reprodução da sociedade. A partir da teoria dos sistemas de

Niklas Luhmann, que oferece algumas perspectivas enriquecedoras para a abordagem,

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buscaremos, primeiro, elementos válidos para se entender como os meios de

comunicação podem compor um sistema específico, de modo a, em seguida, tentar

determinar como esse mesmo sistema oferece recursos para a reprodução simbólica da

sociedade – tarefa essa, a rigor, originalmente aquém da esfera sistêmica. Na conclusão

do trabalho, as sínteses mais importantes serão retomadas com o intuito de se

especificar, enfim, a qual racionalidade os meios de comunicação modernos fazem

referência.

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I. Racionalização: o viés instrumental

Pensar a modernidade implica ter consciência de suas estreitas ligações com o

esclarecimento e a racionalização. Entre os três observa-se uma relação essencial: se a

modernidade se tornou tema filosófico, isso se deve, em larga medida, pelo fato de as

mudanças caracterizadoras do período serem devedoras a um tipo específico de

racionalidade – objeto de estudo filosófico por excelência. O Aufklärung, ou

esclarecimento, ao referenciar tanto a essa razão quanto o novo tempo que ela

determina, surge, assim, como síntese histórico-teórica para nós referencial.

O termo “moderno” (modernus, “recente”), embora tivesse sido utilizado já no

século V a fim de distinguir o presente cristão do passado pagão e romano (Cf.

Habermas, 1997), à época era representativo de outra concepção temporal. Com a

modernidade compreendida como assim denominada pelos setecentistas – que

estabeleceram sua aurora no início do século XVI –, o pensar o presente implicou um

debruce sobre o passado de forma a reconhecê-lo. Ao contrário do que se refletia na

recorrência dos rituais tradicionais da dita pré-modernidade, o passado deixava de ser

atualizado – agora, era objetivado e estava para sempre alheio. Inclusive os séculos

começaram a ser tomados como campos fechados: “O século do Iluminismo já é

pensado assim pelos contemporâneos, estando consciente, por exemplo em Voltaire, de

ser diferente do século de Luís XIV” (Koselleck, 2006: 283). Um dos resultados dessa

consciência do tempo histórico, do passado perdido, objetivado e descolado do atual, foi

justamente a disposição para a expectativa histórica, para se reconhecer o futuro como

um campo aberto. Quando, no final do século XVIII, resolveu-se somar em análise

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todas as várias experiências de novidade que puderam ser atribuídas temporalmente aos

três séculos anteriores, a história foi então concebida como um processo de

aperfeiçoamento. Independente dos prováveis tropeços que a humanidade poderia sofrer

nesse trajeto, já havia uma consciência do tempo histórico justificando o imperativo do

progresso e que vislumbrava o futuro como um campo de livres e potenciais realizações.

Na vida cotidiana, inúmeras dessas experiências negavam dúvidas quanto a isso; em

especial, pode-se frisar as que surgiram com a “revolução copernicana, o [ainda] lento

desenvolvimento da técnica, o descobrimento do globo terrestre e de suas populações

vivendo em diferentes fases de desenvolvimento, e por último a dissolução do mundo

feudal pela indústria e o capital” (Ibidem: 317). O desenvolvimento da ciência e técnica

contribuiria, com bastante eficiência, para se considerar grandes diferenças entre o

passado e o futuro. A partir de então, a razão, tomada como origem fundamental de

todas as transformações na experiência cotidiana, tornava-se, assim, ponto de

referência de um homem histórico.

* * *

Em relação à sua época, Kant afirmou viver não em um tempo esclarecido, mas

em um período de esclarecimento; acreditava que, embora se multiplicassem os espaços

nos quais fosse de fato possível existir liberdade para garantir o uso público da razão,

ainda eram muitos e bastante fortes os mecanismos de repressão. Kant considerava a

liberdade o princípio do esclarecimento: bastaria que nenhum estorvo fosse imposto

sobre o indivíduo – ou melhor, bastaria que nenhuma estratégia coercitiva fosse

engendrada de modo a desencorajar o sujeito a “pensar por si mesmo” – para que o

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último, em questão de tempo, realizasse uma fuga, ou Ausgang [saída], da menoridade1

A rigor, o Aufklärung, como conjunto de eventos e processos situados em um

período da história européia, de fato ainda nos determina historicamente. No entanto, o

esclarecimento também representa um novo pensar: a constituição de um si mesmo

como sujeito autônomo. O ideal de progresso e uma espécie de fetichização do

horizonte de expectativa quanto ao futuro são marcantes dessas novas concepções. Ser

moderno é crer estar em movimento, processo, em progresso, e por si mesmo. A

modernidade “não pode e não quer tomar dos modelos de outra época os seus critérios

.

Esclarecer-se significaria (i) raciocinar por si e em seu próprio nome, portanto, sem que,

nesse processo, o raciocínio do sujeito fosse guiado por qualquer ator externo, regras ou

dogmas, e, conseqüentemente, (ii) permitir que o uso da razão fosse livre também para

ser público – para que, partindo de um indivíduo, a coletividade também fosse

contemplada com o esclarecimento. Kant é enfático: a determinação original da

natureza humana é caminhar rumo ao esclarecimento. Renunciar ao esclarecimento

“significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade” (Kant, 1974: 110).

Nada seria mais natural ao homem do que usar livremente a razão: liberdade e

racionalidade são interdependentes, e a ação do homem livre deve decorrer de

inquirições suas e racionais. Por isso é manifesta a inelutabilidade do esclarecimento;

para o filósofo, é impossível manter uma coletividade eternamente em sua menoridade –

a natureza humana deve, inevitavelmente, se realizar. Assim, a liberdade da razão

permite estar cônscio do hoje, do liberto, e se perceber distante do período de

subjugação – ou, ao menos, de estar situado e de agir fora dele.

1 Nas palavras de Kant: “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.” (Kant, 1974: 100)

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de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade.” (Habermas, 2002:

12) Dessa forma, surgirá a razão, para o esclarecimento, como a principal força de

transformação do sujeito e da realidade. A harmonia, a ordem e várias das categorias

ideais também poderiam servir, para a filosofia do esclarecimento, de fundamentos da

organização social legitimada pelo viés racional. Com isso, mais tarde, se pretendeu, e o

exemplo mais emblemático é a filosofia positiva de Auguste Comte, fazer dos estudos

sociais uma ciência nos moldes das modernas ciências da natureza. À época, “a

institucionalização da ciência como um subsistema independente da teologia e da

retórica humanística está tão avançada que o padrão para a descoberta da verdade pode

se tornar modelo para organização do estado e da sociedade.” (Habermas, 1984: 146)

Assim, é importante ter claro que o pensamento esclarecido, além de constituir

uma tomada de posição frente à natureza ao postular a autonomia do entendimento,

mobilizou estratégias de organização da sociedade que refletiram as diretrizes

esclarecidas. Esse processo, que se inicia com a concepção do sujeito do conhecimento

e prossegue com a estruturação racional da sociedade, podemos chamar de

racionalização. Partindo desse pressuposto, buscaremos, a seguir, elucidar o processo

conforme concebido por Weber, atentando para a noção de autoconservação subjetiva

elaborada em seu estudo sobre a religião protestante, e também para a racionalização

refletida no âmbito da cultura e da sociedade; nosso interesse está, portanto, em

primeiro lugar, na transcendentalização do sujeito, isto é, na separação do entendimento

frente ao objeto que se dispõe ao conhecer, e, em segundo lugar, na descentralização

cultural da visão de mundo tradicional e na formação dos sistemas sociais modernos.

Além de oferecer um aparato conceitual muito útil para se pensar o sujeito e a ordem da

modernidade, a teoria weberiana da racionalização contribui bastante para o

entendimento do aspecto instrumental da racionalidade moderna e dos sistemas de

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organização social que dela derivam. Ela servirá, assim, de ponto de partida para a

crítica radical da razão levada a cabo por Adorno e Horkheimer, que enxergaram no

entendimento esclarecido um instrumento universal de dominação.

1.1. A teoria da racionalização de Weber

É reconhecida a tese que afirma ser a modernidade um fenômeno originalmente

ocidental. Ao invés de supor a subjugação qualitativa, apenas há que se diferir a

racionalização que atingiu amplitude máxima no mundo ocidental – a qual deu origem a

estratégias e práticas que dominam e refletem vários aspectos da vida cotidiana – da

forma de conhecer e de mundo que marcam relações em outras épocas e lugares.

Uma das contribuições de Weber para a teoria social foi justamente a crítica da

concepção progressiva e finalista do processo histórico-social2

2 O autor é enfático contra esse tipo de concepção e chega a se referir, embora não explicitamente, ao materialismo histórico: “[...] devemos evidentemente libertar-nos da idéia de que é possível interpretar a Reforma como ‘conseqüência histórica necessária’ de certas mudanças econômicas. Inúmeras circunstâncias históricas, que não se limitam a qualquer lei econômica, tampouco mantêm relação alguma com qualquer ponto de vista econômico, sobretudo circunstâncias puramente políticas, tiveram que contribuir para que novas Igrejas pudessem sobreviver.” (Weber, 2005: 49)

. Foi com o conceito de

“afinidade eletiva” que tentou abordar as inter-relações das esferas sociais “sem reduzir

uma como simples funções de outras, assim como [para] evitar premissas teleológicas e

de filosofia da história típicas do século XIX. Ao invés de necessidade ou funções

refere-se Weber sempre a ‘chances’ e ‘probabi-lidades’” (Souza, 1997: 54). Fazendo-o,

passam a importar as vivências e os sentidos dados às ações pelos sujeitos. Assim, o

processo de modernização sobre o qual postula é efetivado, essencialmente, a partir de

mudanças na natureza do guia de uma conduta, progressivamente racionalizada. É por

essa razão que Weber, falando em racionalidade, pretende discutir e se referir àquela

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relacionada à forma de consecução metódica de um fim segundo meios considerados

adequados por parte de um agente, ou seja, à racionalidade prática.

Para Weber, o processo de modernização pôde ser catalisado, entre outras

causas, mas originalmente, segundo uma mudança estrutural no comportamento de

sujeitos-agentes então imersos em um cenário cotidiano cuja unidade era dada pela

moral religiosa. Interessava a Weber a “influência daquelas sanções psicológicas que,

originadas da crença religiosa e da prática da religião, orientavam a conduta e a ela

prendiam o indivíduo” (Weber, 2005: 54).

Consideremos, então, uma transição à modernidade que, caracteristicamente, (i)

se inicia com a abstração crescente e a conseqüente autonomização do sujeito que

conhece, ou do pensamento, frente ao objeto do conhecimento, (ii) passa a uma

determinada concepção de mundo que, na proposta de relação com o último, impõe

tanto a calculabilidade quanto a sistematicidade e esvazia os sentidos tradicionais, com

a racionalização das visões de mundo religiosas e a emergência de um novo potencial

cognitivo possível apenas na sociedade moderna, e termina com (iii) a diferenciação das

esferas de valor no âmbito da cultura, e também com a incorporação gradual de modos

de conduta individual metódicos e de instituições operadas segundo orientações

racional-instrumentais.

Na origem do processo de capacitação do sujeito ocidental para a conquista de

sua realidade, está uma relação com o mundo que subjuga o objeto à sua espécie

inteligível, ou à sua inteligibilidade; em conseqüência, emerge uma concepção dualista:

a “‘verdadeira’ realidade passa a ser a do ‘além’, em oposição à empírica [...].” (Ibidem:

58).

É o caminho da instauração de uma mentalidade que provoca gradualmente um hiato entre o homem, ser dotado de logos, e a natureza, em cuja imensidão se sabe imerso, porém potencialmente conhecedor e dominador de seus mistérios. Esta se transforma, pouco a pouco, em objeto de interpretação racional e, também, em objeto de sentido a ser instaurado

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por um homem que se percebe capaz de descobrir suas articulações internas (Araújo, 1996: 71).

A aplicabilidade da racionalidade para a dominação do mundo só seria possível

após a diferenciação completa e o distanciamento radical, notado em especial no

ocidente, entre o racional/subjetivo (abstrato/divino) e o emocional/reificado

(físico/profano), em que se efetiva a sobrevalorização dos primeiros e, vale frisar, uma

conduta coerente a ela.

1.1.1. O racionalismo da autoconservação: ascetismo puritano e auto-afirmação do sujeito como rejeição e reificação do mundo

Essa mudança na estrutura do conhecimento pode ser entendida como uma

história do isolamento subjetivo, o qual encontra afinidades claras no ascetismo cristão.

No estudo sobre a ética protestante e suas relações com o desenvolvimento do

capitalismo, Weber (2005) apresenta, em especial, dois aspectos importantes da

primeira que poderiam servir de matriz dinâmica para o último. São eles, diretamente

ligados, a noção de vocação, e, conforme indicado, a conduta ascética.

Como se sabe, na concepção cristã, que já conta com uma proposta dualista –

entre outras com a separação do ideal divino do físico mundano –, a alma está

condenada desde o princípio de sua vivência terrena e só atingirá a graça, caso atinja,

após a experiência mundana. O que diferencia certas linhas protestantes da católica é

que, para a segunda, a salvação só pode ser atingida mediante o sacramento, o perdão e

a fé. O que as aproxima é que em ambas há uma rejeição do mundo (material)

justificando o desenvolvimento de modos de conduta ascéticos, os quais buscam, por

meio do resoluto autocontrole contra atrativos mundanos desviantes, impedir colocar a

graça em risco. O regime monástico católico é um exemplo desse modo de vida que

busca a conservação de si; entretanto, se no catolicismo a ascese se manteve interna aos

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monastérios, com o calvinismo ela vai abarcar quase a totalidade da vida comunitária e

das relações sociais.

A noção de vocação, surgida com Lutero, aparece, em um primeiro momento,

para sustentar a idéia de um destino. Com o calvinismo, tanto a vida ascética quanto a

idéia de fado são radicalizadas. Na concepção dessa vertente puritana, nem a todas as

pessoas – inclusive às que dela faziam parte –, ou almas, caberia alcançar a graça; mais

ainda, tendo em vista o determinismo característico da doutrina, os escolhidos por Deus

já estavam pré-determinados. Restava a cada um apenas a revelação de ter sido eleito

para a salvação, escolha essa que se refletia no resultado do trabalho: quanto mais o

sujeito celebrasse o Criador por meio do aperfeiçoamento do mundo, maiores as

recompensas, e, conforme essa resposta divina fosse maior, mais nítida estaria para o

sujeito a certeza de sua salvação. Foi justamente essa busca sistemática pelo

aprimoramento cada vez mais eficiente da obra divina mundana, visado como fonte da

certeza da graça, que deu origem a uma estratégia laboral ordenada e, mais importante,

instrumental-racionalmente organizada, algo impossível de ser alcançado não fosse a

disposição ao ascetismo – ou a um planejamento metódico da vida para o fim de

constante autocontrole, igualmente racionalizado. Em suma, foi unindo a conduta

ascética ao trabalho que conseguiu o calvinismo, primeiramente, ao contrário da ascese

monástica – e também do luteranismo –, estender o domínio dessa conduta para a vida

cotidiana e, em segundo lugar, ordenar a produção, de forma a obter uma espécie de

revelação divina conforme os ganhos laborais. Enquanto a rejeição do mundo católica

representava a fuga do mundo, com o protestantismo essa recusa estimula, antes, uma

conduta voltada para o mundo.

O puritano queria tornar-se um profissional [Berufsmensch, ou “homem-de-vocação”], e todos tiveram que segui-lo, pois, quando o ascetismo foi levado para fora dos mosteiros e transferido para a vida cotidiana, passando a influenciar a moralidade secular, [...] [contribuiu-se] poderosamente para a formação da moderna ordem econômica e técnica

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ligada à produção em série através da máquina, que atualmente determina de maneira violenta o estilo de vida de todo indivíduo nascido sob esse sistema [...] (Weber, 2005: 99)

Na realidade, é pelo fato de mais tarde a espécie de conduta puritana ascética ter

se difundido, superando os limites da metodologia de produção e da própria

religiosidade, que devemos relacionar a ética protestante, no que diz respeito à sua

contribuição para a modernidade, antes com um espírito reificador do que ao espírito

capitalista. Tal rejeição do profano abre espaço, ainda, para o se pode chamar de

racionalismo de dominação do mundo: na perspectiva weberiana, a modernidade é o

resultado desse longo processo de racionalização do cotidiano, que implica o advento de

uma concepção de vida referente a um mundo objetivados e desencantados.

1.1.2. Desencantamento do mundo e racionalização cultural: a diferenciação das esferas de valor

Weber (2002) reporta o desencantamento do mundo como o mais importante dos

significados da racionalização intelectualista – “criada pela ciência e pela tecnologia

orientada cientificamente” –, processo ao qual pertence o progresso científico enquanto

“fração”. A conseqüência direta do desencantamento do mundo, isto é, do esvaziamento

dos objetos do mundo de quaisquer significados intrínsecos (como, por exemplo,

mágico-religiosos), submetendo-os à pretensão universal de domínio prático (como a da

conduta intramundana calvinista) e de conhecimento (por exemplo, a da ciência

moderna), foi o reencantamento desse mundo a partir de diversos outros valores

reivindicantes – cada um deles – de verdade. Isso quer dizer que o desencantamento,

antes de significar a neutralização semântica do mundo e sua objetivação, expressa o

entendimento de que esse mundo desencantado passou a ser construído, alterado e

trabalhado pelos agentes segundo uma diversidade de acepções valorativas, algo

impossível de ser alcançado pela compreensão pré-moderna unificadora e totalizante. É

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nesse sentido que concebemos o que chamamos – e esse é o conceito-chave para se

entender o desencantamento – de descentralização de visão de mundo.

Apenas com o processo de modernização cultural foi possível o estabelecimento

dos campos da arte, da ciência e da moral, cada um deles entendidos como tais, com

sua lógica e seus valores imanentes, portanto, notadamente descolados de algum mapa

conceitual referente a visões de mundo totalizadoras, de bases indicativas de uma

concepção de mundo logicamente e valorativamente centrada. Como lembra Souza,

referindo-se ao mundo desencantado, ou à descentralização da visão de mundo

religiosa: “O mundo objetivo não tem nenhum significado em si, e a tarefa de conferir

significado a este mundo é uma tarefa individual e solitária. Cada qual está com o seu

Deus ou demônio que rege as suas escolhas significativas” (Souza, 1997: 117).

Nas comunidades tradicionais, ao contrário da concepção moderna, não estava

estabelecida a diferença entre as razões prática e teórica. Questões de caráter ôntico,

normativo e expressivo não eram, enquanto tais, existentes. A diferenciação crescente

do estético-expressivo, do cognitivo-instrumental e do prático-moral em esferas

independentes umas das outras – e de qualquer vértice único postulante –, em

fechamentos racionais de relações entre idéias, pertence à modernidade como resultado

da racionalização crescente da cultura.3

3 Contribui para entender melhor a formação dos campos, ou essa descentralização, a referência feita por Habermas sobre a obra de arte antes da autonomia, “[...] integrada ao culto religioso na forma de adornos para a igreja e para o templo, na dança e na música ritualísticas, na representação de eventos significativos, falas sagradas e outros [...]” (Habermas, 1984: 160).

Vale notar, ainda, que a racionalização cultural

conforme trabalhada por Weber reflete as três críticas kantianas, referentes cada uma a

um dos domínios diferenciados. Com a diferenciação dos domínios culturais, o

cerceamento da pretensão tradicionalista de se tomar todos os campos da experiência

como referentes a um único vértice permitiu que cada uma das esferas passasse a

operar, conforme indicado, segundo lógicas e valores internos próprios, quais sejam,

Page 18: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

18

respectivamente, a beleza ou autenticidade, o conhecimento real e a normatividade.

Com a racionalização da cultura – com a separação interna do que podemos chamar de

razão substantiva (ou valorativa) nessas três esferas culturais de valor –, as produções

de conhecimento referentes à arte, à justiça ou à ciência segundo suas lógicas internas se

autonomizaram.

Se a modernidade descentrada possibilitou enriquecer, tanto em termos de

quantidade quanto de qualidade, os sentidos que os indivíduos portam e atribuem às

suas ações, a racionalização só pôde ser levada a cabo continuamente uma vez que a

diferenciação cultural permitiu a penetração na sociedade de formas de ações

racionalmente orientadas. De fato, todas as ações buscam algum grau de eficácia, mas

apenas a racional o faz metodicamente. Em suma, pelo que foi visto até aqui: com (i) a

introdução crescente no cotidiano de um método de conduta racional foi possível, a

partir da conseqüente quebra das visões de mundo religiosas, (ii) a diferenciação das

esferas de valor – antes unificadas por essa visão de mundo –, fato que, reflexivamente,

contribuiu para (iii) ampliar, no campo social, as linhas passíveis de ações sociais

orientadas racionalmente e (iv) para criar condições a fim de que essa modalidade de

ações fosse institucionalizada. Tanto a ciência moderna quanto a arte autônoma e o

racionalismo ético e jurídico compõem, como conclui Habermas, ligando a

racionalização ao desencantamento do mundo e à diferenciação dos domínios de valor,

o resultado da diferenciação das esferas de valor, que, por sua vez, é resultante de um processo de desencantamento refletido no âmbito das visões de mundo. O racionalismo ocidental é precedido pela racionalização religiosa. Da mesma forma, Weber deliberadamente submete ao conceito de racionalização esse processo histórico-universal de desencantamento dos sistemas de interpretação mítica. (Habermas, 1984: 167)

Page 19: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

19

1.1.3. Racionalização da sociedade: os subsistemas e a racionalidade burocrática

Deve-se frisar, em relação ao processo de racionalização, seus dinamismo e

complexidade, suscitados em especial pelos conflitos entre as esferas de cultura na

medida em que elas competem entre si como vértice de valor. Porém, conforme frisado,

ainda mais importante é que tal modernização não se limitou ao âmbito cultural, e

encorajou a ordenação racional do mundo social. O fato é que a racionalização da

cultura só se torna eficaz depois que se converte em racionalização da orientação da

ação, tendo como conseqüência a inserção de estratégias na ordem social que buscam

também a permanência dessas orientações. São resultados dessa modernização social,

em contigüidade com a modernização cultural – em especial a manifestada na forma da

ciência moderna –, (i) a economia capitalista e (ii) o Estado moderno: trata-se de

sistemas de ação que supõem a estabilização da estrutura social; também podemos nos

referir a eles como subsistemas, funcionalmente complementares entre si mas também

autônomos em relação aos sujeitos – por evadir ao controle consciente dos últimos –, e

que se sustentam mutuamente, em espécie de cooperação a qual possibilita a penetração

da racionalização e seu mantenimento enquanto processo.

Como núcleo organizacional do primeiro está a empresa capitalista, que, entre

outras características, está separada da unidade domiciliar, mobiliza ações laborais

formalmente livres e faz uso técnico do conhecimento científico; quanto ao segundo, é o

centro de sua forma de organização a instituição pública racional, que encerra o

monopólio do exercício jurídico e do poder coercitivo legítimo pela força, além de

organizar a administração burocraticamente. Como meio de organização e de interação

para a economia capitalista e o estado moderno está, ainda, o direito formal (cf.

Habermas, 1984: 158-68). De fato, os dois primeiros seriam impossíveis de ser

formalizados e realizados sem uma ciência jurídica que permitisse a reflexão racional

Page 20: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

20

sobre os fundamentos da lei e de uma administração pretensamente justa e eficiente

conforme uma estruturação racional.

Na medida em que tais propostas de ordenação efetivaram-se, surgiriam, de

forma análoga ao que ocorreu às ciências naturais, especialistas administrativos,

jurídicos e financeiros, refletindo a institucionalização referente a princípios

notadamente racionais. Prova disso é que, seja no âmbito econômico ou governamental

modernos, o que se vê é a tendência ao predomínio da estruturação burocrática e de

caráter impessoal, para Weber aquela que mais bem corporifica uma racionalidade

instrumental e calculista na medida em que persegue a eficácia e o mantenimento da

sistematização no cumprimento de funções:

A exigência da realização mais rápida possível das tarefas oficiais, além de inequívoca e contínua, é atualmente dirigida à administração, em primeiro lugar, pela economia capitalista moderna. As modernas empresas capitalistas de grande porte são elas mesmas, em regra, modelos inigualados de uma rigorosa organização burocrática. Suas relações comerciais baseiam-se, sem exceção, em crescente precisão, continuidade e, sobretudo, rapidez das operações. [...] Sobretudo, porém, a burocratização oferece o ótimo de possibilidade para realizar o princípio de repartição do trabalho administrativo segundo aspectos puramente objetivos, distribuindo-se as tarefas especiais entre funcionários especializados, e que cada vez mais se aprimoram na prática contínua. A resolução ‘objetiva’ significa, neste caso [...], a resolução sem considerações pessoais, segundo regras calculáveis. (Weber, 2004: 212-3)

1.2. Dialética da razão

Se podemos supor em Weber um intuito de identificar a racionalização a partir de seus

resultados nos campos da personalidade, da cultura e da sociedade, com Adorno &

Horkheimer (1985) a análise buscará, antes, compreender o significado desse processo a

partir de uma crítica da posição assumida por aquele que está imerso em seu

desdobramento. Assim, a crítica de Adorno e Horkheimer irá contemplar (i) o paradoxo

inerente ao projeto de sujeito que é o esclarecimento e a conseqüente regressão (ii) do

pensamento em instrumento e (iii) do esclarecimento em ideologia. A identidade

Page 21: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

21

conservada entre conhecimento e dominação, que constitui o fio condutor de Dialética

do Esclarecimento, alcança em especial três eixos argumentativos: busca-se mostrar

como o esclarecimento, que busca superar o mito, na realidade conserva a essência do

último na tentativa de negá-lo; também que o sujeito esclarecido do conhecimento,

autocrático, sacrifica o próprio estatuto ao submeter a natureza objetivada ao seu

entendimento – isso na medida em que para tal se exige autoconservação e permanente

controle de si –; e defende-se, por último, que o campo da arte, revertido em indústria

cultural, acaba por servir funcionalmente àquilo que, por origem, haveria de

antagonizar.

1.2.1. Entrelaçamento mito x esclarecimento: autoconservação como sacrifício de si e a instrumentação do pensamento

O intuito do esclarecimento é Ausgang da sujeição, ou a fuga de um estado de

submissão. O projeto de sujeito que caracteriza o esclarecimento deve ser entendido,

portanto, como projeto de um sujeito liberto, de maneira que o liberto não seja um mero

atributo do sujeito, mas, antes, torne-se parte de sua essência. Ligando a liberdade, nesse

sentido, a uma pretensão de conhecimento autônomo, devemos entender o projeto do

esclarecimento como dependente do desencantamento do mundo. O que significa: a

supressão das concepções míticas do mundo só pode ser levada a cabo por um saber

esclarecido, identificando-se, dessa forma, também com a liberdade.

Conforme a concepção kantiana, o sujeito livre é um sujeito cujo conhecimento

acerca do mundo passa a depender do próprio entendimento. O mundo deixa de ser

cenário das narrativas míticas e se transforma em uma coletividade infinita de objetos

que se oferecem ao entendimento: o eu, “após o extermínio metódico de todos os

vestígios naturais como algo de mitológico [...], constituiu, sublimado num sujeito

transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora da

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ação.” (Adorno & Horkheimer, 1985: 41) Livre é aquilo que não se submete a

barreiras, assim, o incomensurável deixa de existir. O saber esclarecido é radicalmente

racional, caracterizando a tendência à instrumentalidade, com os objetos não assumindo

outro feitio que não esse, qual seja, de servir à forma, ao cálculo e às operações do

entendimento. Logo, a essência do saber configura-se como algo de técnico; com isso,

os frutos da ciência esclarecida têm muito a ver com a instrumentalidade – não por

acaso, o resultado desse conhecimento será predominantemente materializado no

advento de instrumentos, como atesta o desenvolvimento tecnológico. Há que se estar

atento, em especial, para os dois aspectos: que esse saber assume pretensões de

universalidade; e que o entendimento e a ciência decorrentes da concepção objetiva do

mundo tenderão – embora assim não se encerrarão – à calculabilidade.

O ideal do esclarecimento é um sistema de conhecimento universal do qual seja

possível deduzir – portanto racionalmente – tudo que há, como se evidencia no

desenvolvimento da lógica formal, oferecedora do esquema de calculabilidade, e, por

exemplo, conforme o postulado baconiano de se fazer una scientia universalis a qual,

embora diluída em várias disciplinas e campos de estudos, mantém em cada uma as

diretrizes operativas fundamentais. É emblemático do conhecimento esclarecido que

certos conceitos filosóficos como substância e atributo tenham sido totalmente

dispensáveis à ciência moderna: à época do início do desenvolvimento das ciências

essas categorias passariam a ser vistas como pertencentes a um legado metafísico

totalmente superado, ou seja, a um saber que não se sustentava na proposta de

representar um tipo de conhecimento válido, e por uma simples razão: o saber

esclarecido reivindica para si a única possibilidade de conhecimento. Assim, conforme

as diretrizes do saber esclarecido, conhecimento identifica-se por completo ao domínio e

ao poder na medida em que busca se sobrepor ao desconhecido, ou ao próprio mundo.

Page 23: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

23

São evidentes, aqui, os ecos da teoria weberiana sobre o isolamento subjetivo e a

questão do domínio. Com os frankfurtianos fica mais claro, entretanto, que o rejeitado

não é apenas o mundo, mas o próprio sujeito. É desse pressuposto que parte a defesa

daquilo que Habermas (2002) chama de tese cumplicidade secreta, marcante da

Dialética do Esclarecimento, ou a tese de que, enquanto o esclarecimento jamais

abandonou o elemento mítico do qual enseja se desvencilhar, também o mundo mítico,

por sua vez, já conservava aspectos do esclarecido. Entende-se que a fuga libertadora

que pretende formar o sujeito esclarecido não constitui algo mais senão o mesmo

domínio e a mesma submissão contra os quais se luta. O projeto de sujeito liberto que

fundamenta o esclarecimento corrobora, na visão dos frankfurtianos, um projeto de

auto-sujeição; à sua essência pertencem a repetição caracterizadora do mito e, ao mesmo

tempo, a autoconservação esclarecida.

Adorno e Horkheimer enxergam na epopéia homérica Odisséia a proto-história

da subjetividade ocidental. Nas atitudes de Ulisses nota-se o reflexo do projeto do

esclarecimento e também características do mito: seu retorno à Ítaca depende da

autoconservação, do isolamento, da repetição do sacrifico, e também da renúncia de si

que implica rejeição do mundo. Uma passagem emblemática é o episódio em que

Odisseu impede que sua tripulação e ele mesmo, em seu projeto de retornar à terra natal,

sucumbam ao canto sedutor e desvirtuoso das sereias. Contra o poder inexorável da

melodia das personagens míticas, Ulisses conta com a força do próprio entendimento.

As sereias, símbolos da natureza – desviante e controladora –, representam também um

mundo em que o entendimento está sempre subjugado ao sensível, isto é, à

sensualidade; a perdição constituiria o oposto da rejeição do mundo – negar entregar-se

à natureza fundamenta, no episódio, a autoconservação. Odisseu é astuto; para enfrentar

o chamamento, obriga seus marinheiros a cobrir os ouvidos com cera e se amarra ao

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mastro do navio, ordenando à tripulação para que não o retirem dali até que o perigo

seja superado e independentemente do ímpeto que demonstre para se entregar às sereias;

ele não pode negar a escuta, seu sentido, porque depende dela para saber o momento em

que a música cessa: resta-lhe apenas conservar sua posição, preso ao mastro. É assim

que Ulisses logra a fuga: ele se autoconserva sacrificando sua própria natureza, a mesma

que lhe instituía, ouvindo o canto, a se entregar. Além de renunciar a si mesmo, Ulisses

se isola prendendo-se ao mastro; ao fazê-lo, Odisseu se demonstra esclarecido

tecnicamente, isto é, contou não apenas com o cálculo de probabilidades de sucesso,

mas instrumentalizou o meio, utilizando-se da corda e da cera para a superação do

perigo.

A mesma intenção de fuga se repete em outros episódios da Odisséia: Ulisses é

astuto contra Polifemo, um dos ciclopes antropófagos – que podem simbolizar a

tradição, uma vez que constituem uma comunidade coletora e sem lei –; outro grupo, os

lotófagos, são depreciados – os comedores da lótus, tidos como preguiçosos e incapazes

de outra coisa que não o hábito, estão para sempre entregues ao efeito torpe e

ludibriante causado pela ingestão da flor. Ao identificar a natureza à barbárie, ao se

proibir previamente o medo, e tentar, por essa razão, extirpar por completo da vida o

que se julga natural e desconhecido, torna-se esse ato ele mesmo algo bárbaro.

Essa figura de pensamento de que os homens formam sua identidade na medida em que aprendem a dominar a natureza exterior ao preço da repressão de sua natureza interior oferece o modelo para uma descrição sob a qual o processo de esclarecimento revela sua face de Janus: o preço da renúncia, da auto-ocultação, da comunicação rompida do eu com sua própria natureza, que se tornou anônima na forma do 'isso' (Es) é interpretado como conseqüência de uma introversão do sacrifício. O eu, que antes ludibriara o destino mítico do sacrifício, é de novo atingido por ele assim que se vê forçado a introjetar o sacrifício [...]. (Habermas, 2002: 157-8)

Se podemos afirmar que as medidas que efetivam Ausgang caracterizam o

entendimento esclarecido, deverão a calculabilidade das condições de fuga, o

planejamento de logros quaisquer, a perseverança para a consecução contra os desvios,

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25

constituir, assim, a essência desse entendimento – racional. Resta ao pensamento, como

ocorreu ao objeto, apenas se submeter às condições da operabilidade; ele enxerga o

mundo sob a ótica instrumental, de modo que a particularidade dos objetos seja

suprimida em favorecimento do conceito universal, necessário à instrumentalidade.

Pretende-se, com isso, aumentar a possibilidade de dar coerência do todo, contribuindo

para diminuir os campos do desconhecido, o que caracteriza mais uma vez a identidade

entre conhecimento e poder. A variável, por sinal, característica do cálculo matemático,

demonstra como o objeto, segundo essa pretensão de conhecimento, pode ser dominado

e incorporado à estrutura totalizante antes mesmo de ser conhecido; a radicalização do

pré-domínio está em que a incógnita, isso que viria a ser o novo, perde tal qualidade

quando sua manipulação prescinde de seu conhecimento. O pensamento esclarecido,

revertido em instrumento, desiste de pensar os objetos e se limita quase totalmente a

operá-los. A multiplicidade do mundo é substituída pela representatividade tautológica,

isto é, nega-se a particularidade do objeto reafirmando sua descartabilidade para a

operação do entendimento – que conta com um universo infinito de outros objetos

funcionalmente idênticos à disposição. O sujeito volta a se inserir na ciclicidade mítica,

de forma que a repetição, um dos elementos fundamentais do cosmo mitológico, agora

também encerra, junto com a autoconservação, o espírito da sociedade industrial

devedora do esclarecimento.

1.2.2. Indústria cultural e a vigência do mundo sociocultural moderno

O diagnóstico frankfurtiano da modernidade também busca atentar para as

conseqüências de o campo da produção artística ter se submetido à técnica; apesar de

não abandonar o campo da crítica do capitalismo tardio, o interesse maior de Adorno e

Horkheimer, no apêndice sobre a indústria cultural, é analisar a cultura mercantilizada.

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26

É nessa análise, por sinal, que se explicita o rompimento dos autores com parte do

pensamento de Marx; ambos perceberam que a forças de trabalho acabaram entrando

em simbiose com os meios de produção, dos quais as primeiras haveriam de se ver

livres em algum momento do processo de formação da consciência revolucionária. No

vértice dessa simbiose está a indústria cultural. Considerando que a dissolução do

cenário pré-moderno não deu origem ao caos, isto é, que a formação e a concorrência

das diferentes esferas de valor não causaram falência funcional da sociedade fruto do

esclarecimento, há que existir um mecanismo atribuidor de coerência, algo que confira a

tudo um “ar de semelhança”. Nesse sentido, a indústria cultural logra a conservação da

ordem negando ao pensamento reconhecer a particularidade dos objetos simbólicos na

medida em que universaliza a semelhança reproduzindo-a industrialmente. O

mantenimento mínimo funcional da ordem, sinônimo de coerência, depende que o

sujeito reitere a falsa identidade do particular com o universal. Formam, assim, as

características fundamentais da indústria cultural enquanto instrumento de cooptação:

(i) expropriar do sujeito o próprio esquema de conhecimento, (ii) reproduzir

tecnicamente os produtos culturais, de modo a tornar eficaz a repetição e a

representação da realidade cotidiana, (iii) e tender à totalização; são esses três elementos

que permitem entender sua essência ideológica. A conseqüência disso, o que se deve

frisar, é que, ao invés de se posicionar como um campo antagônico à dominação

racional, algo como um espaço alternativo e permanente de fuga, a esfera cultural das

obras de arte irá, na realidade, não apenas afirmar a condição contra a qual deveria

originalmente se opor, mas servir a ela como instrumento de manutenção. A cultura

acaba por se incorporar ao “domínio da administração”. Isso significa que aquilo que

perfaz a referência do particular ao universal deixa de ser, contrariando Kant, as

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27

categorias internas; passam a fazê-lo determinações externas. Os autores criticam o

esquematismo da indústria cultural para mostrar

em que medida uma instância exterior ao sujeito, industrialmente organizada no sentido de proporcionar rentabilidade ao capital investido e de garantir ideologicamente a manutenção do status quo, usurpa dele a capacidade de interpretar dados fornecidos pelos sentidos segundo padrões que originariamente lhe eram internos [...]. (Duarte, 2002: 96-7)

Não se trata, aqui, de alertar contra uma suposta manipulação, mas retificar

como se dá a vigência de ordens de vida. A diferença está em que, no primeiro caso, a

persuasão contempla interesses ocasionais e setoriais; ao contrário, a necessidade de se

evitar ao máximo que a coerência da sociedade industrial seja tomada como falsa e

coercitiva pelos sujeitos não responde a uma reivindicação passageira, mas essencial:

sem a função ideológica da cultura, a estrutura na qual a indústria cultural se insere

ruiria. A promessa de Ausgang novamente se mostra enganosa; massificada sua

característica natural de entretenimento – como distração do cotidiano laboral –, a arte

adota para si o modelo produtivo vigente, ao invés de negá-lo, e assim o corrobora. Ela

também lhe serve na medida em que constitui, para o sujeito, escape apenas temporário,

ou seja, por conta da brevidade e da repetição, acaba que o próprio escape não se afirma

como tal, mas como complemento e sustentáculo da simbiose. O consumo cultural

nesses termos contempla um ciclo de feitio mítico: adquirir divertimento, agora um fim,

é a recompensa do trabalho. Legitima-se a ordem cotidiana com a industrialização e do

consumo de cultura.

A incorporação da técnica na produção cultural permitiu não apenas a eficácia

na repetição dos bens simbólicos, mas também a universalização do seu consumo e a

redução da discrepância entre o ambiente da obra e o cenário cotidiano. Com a

possibilidade de se reproduzir uma gama cada vez maior de bens culturais, perde-se, no

mesmo grau, o espaço para o desconhecido, isto é, para práticas culturais que se

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28

excluam da cultura de massa. A diversidade temática notada na produção editorial,

cinematográfica e televisiva é o que possibilita a ampla adesão. Além disso – e é essa a

sua grande marca –, com o avanço tecnológico na instrumentária de produção, a

realidade, cotidiana ou objetiva, pode ser representada com o primor da semelhança: a

perfeição com que o mundo é reproduzido e a perfeição com que uma cópia se

assemelha a outra constituem o melhor instrumento para a realização da função

ideológica da indústria cultural. Um mundo dominado pela técnica da reprodução é o

mundo em que a realidade se submete totalmente à idéia.

A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que a acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme. (Adorno & Horkheimer, 1985: 118)

Nota-se que o mundo exterior, a realidade, passa a “prolongamento” da

produção cultural, isto é, da idéia. É essa a essência da ideologia: servir de referência

ideal, de modo que a verdade esteja na idéia, não na realidade. Ao contrário do que

parece, a expropriação do pensamento não se nutre da passividade; antes, a reprodução

ideológica se dá em ato, ou seja, pela práxis social. Porém, é evidente que isso não deve

sugerir o favorecimento do indivíduo, pois se o empobrecimento da experiência exige a

ratificação do sujeito, o que ocorre é a auto-sujeição do último. O predomínio do

individualismo o qual se costuma identificar às culturas do capitalismo tardio apresenta-

se, portanto, como o benefício de uma pseudo-individualidade. Uma subjetividade cuja

função é a manutenção ativa da própria sujeitabilidade constitui o tipo-ideal odisséico

de Ulisses; a indústria cultural, ao fomentar a autoconservação individual, responde pela

conservação de uma estratégia antagônica à Ausgang e, portanto, ao próprio sujeito:

A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema

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mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. [...] A necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da consciência individual. (Ibidem: 114)

Interessa-nos, sobretudo, a apreensão de uma realidade social objetivada. Por

trás da autoconservação, que qualifica a rejeição do mundo, e também sob a elevação do

caráter mercantil da cultura, instituída pela indústria cultural, está a objetivação4

. O

esquematismo, “que consiste em harmonizar exteriormente o universal e o particular, o

conceito e a instância singular”, uma vez expropriado do sujeito, faz com que tudo,

“inclusive o indivíduo humano, para não falar do animal”, se converta em “um processo

reiterável e substituível, mero exemplo para os modelos conceituais do sistema”

(Ibidem: 83).

4 Na análise feita por Habermas (2002) sobre o diagnóstico levado a cabo por Adorno e Horkheimer, pondera-se sobre a verdadeira amplitude de penetração da racionalidade coercitiva. Para Habermas, faltou aos autores da Dialética perceber que em cada uma das esferas da cultura racionalizada a razão ainda busca transcender a instrumentalidade. Basta lembrar que a crítica de arte e a arte de vanguarda modernas ainda sugerem importantes reflexões; além disso, a formação democrática dos Estados constitucionais continua buscando favorecer a unidade subjetiva; por fim, no caso das ciências, é evidente a rica produção teórica contemporânea que vai, assim, além do mero instrumentalismo.

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II. Racionalidade: o viés comunicativo

A identidade entre razão e dominação tal como compreendida pelos expoentes da

Escola de Frankfurt deve-se ao fundamento operativo do pensamento esclarecido uma

vez convertido em razão instrumental. A noção de autoconservação, entendida como

auto-constrangimento, auto-sacrifício e renúncia de si, sugere que a superação dos

imperativos da necessidade significa, na realidade, a frustração do projeto, tornado

agora estratégia de auto-repressão subjetiva: a tentativa de controle da natureza externa

ao sujeito respondeu pelo detrimento dele próprio – por sinal, a essencial associação,

conforme concebida por Marx, entre liberdade e sobrepujamento das necessidades

materiais foi constatada pelos frankfurtianos como um sério problema da teoria

marxiana, que, nesse sentido, não abandonou o projeto mesmo do esclarecimento.

O grande intuito de Habermas (2002) é mostrar como toda filosofia moderna que

tentou realizar uma crítica da instrumentação do pensamento compartilha com a última

um fundamento básico: tomar o mundo como um mundo de objetos e acontecimentos os

quais se submetem à capacidade cognitiva de um sujeito pensante e empreendedor.

Assim, o pensamento moderno considerou a história como uma construção dos sujeitos;

a sociedade, como constituída por indivíduos; e mesmo o sistema lingüístico foi

entendido como um patrimônio subjetivo. A superação desse paradigma de pensamento

potencialmente reificador, isto é, o abandono do “paradigma da consciência”

estabelecido de Descartes a Kant e mantido, em vários aspectos, pela filosofia da

modernidade – inclusive a teoria crítica –, é o pressuposto para resolver o impasse da

razão esclarecida que se reverte em instrumento de dominação universal.

Page 31: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

31

No eixo argumentativo da crítica frankfurtiana, certos pressupostos acabaram

colocando sua própria validade em risco. Em primeiro lugar, no entender de Adorno a

razão esclarecida não compõe uma alternativa à instrumental, ou seja, trata-se da mesma

racionalidade. De fato, Horkheimer conseguiu evitar esse problema com seu conceito

duplo de racionalidade, que comporta uma dimensão subjetiva e outra objetiva: “A

razão objetiva, encarnada nas velhas metafísicas e nas filosofias da modernidade

emergente, permitia escolher fins em si razoáveis, enquanto a subjetiva designa a

faculdade do espírito de mobilizar os meios mais adequados para atingir esses fins [...]”

(Rouanet, 2005: 332). A modernização, para Horkheimer, sem abandonar o prognóstico

final da Dialética do Esclarecimento, é um processo de substituição em que a razão

subjetiva (noção que comprova o fato de seu autor não abandonar o paradigma da auto-

referência subjetiva) toma, gradativamente, o lugar da objetiva. Em Adorno, não há esse

conflito entre duas espécies de racionalidade – uma redentora e outra aniquiladora –; o

que existe é uma razão que esconde, na promessa de libertação, o próprio sufocamento,

e que está, por esse motivo, condenada desde o princípio. Segundo, tendo em vista a

ambigüidade da racionalidade esclarecida, Adorno, ao tentar desmascarar a essência

instrumental do pensamento, chega a um impasse: não há espaços para a crítica,

capacidade perdida pela razão no momento em que se realiza plenamente sua

potencialidade instrumental. A tentativa de criticar o esclarecimento, assumida por

Adorno & Horkheimer (1985), mostra-se, portanto, condenada. Isso porque a razão, ao

criticar ela mesma, põe em risco sua base, de forma a não ser possível vislumbrar outra

atitude frente a ela própria que não sua negação determinada e argumentativamente

insustentável. Em suma, frisar o aspecto instrumental-dominador da racionalidade é a

defesa da impossibilidade de crítica, um verdadeiro paradoxo.

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32

Equívoco semelhante cometeu Weber. Sabemos que, para o autor, o processo de

racionalização é devedor em especial da difusão no cotidiano do que chama de ação

racional orientada a fins (manifestação da razão instrumental). É o instrumentalismo

característico da conduta ascética intramundana puritana o ponto de partida para o

desencantamento do mundo e para a modernização cultural e social ocidental. A rigor,

Weber não conseguiu conceber o processo de outra perspectiva senão a da sobreposição

da racionalidade instrumental, o que sem dúvida influenciou o teor da crítica de Adorno

e Horkheimer, a qual contempla e revigora a análise da modernização feita pelo neo-

kantiano, análise tomada quase como prolegômeno para a compreensão do pensamento

frankfurtiano – basta lembrar que a moral calvinista da autoconservação mal difere do

auto-sacrifício de Ulisses, e que os pensadores de Frankfurt remetem, explicitamente, o

projeto do esclarecimento ao desencantamento do mundo.

Em Weber, a descentralização das visões de mundo em esferas diferenciadas de

valor só seria possível a partir da concepção de um mundo reificado. A ética protestante

é ela mesma uma ética da reificação, da instrumentalização da natureza, tomada como

meio para aquele que deseja estar consciente de sua salvação. Em resumo, vimos que,

com a crescente complexidade social, com a especialização das funções e a produção

livre de conhecimento levada a cabo dentro de cada uma das esferas (em especial a

técnico-científica), foram implementadas certas estratégias para a regulação e suposto

desenvolvimento social no molde racional-teleológico, dando origem à empresa

capitalista moderna e à administração burocrática, núcleos, respectivamente, dos

subsistemas econômico e do estado burocrático. Nota-se que da autoconservação à

formação sistêmica parece não haver outro elemento caracterizador do processo além da

racionalidade instrumental. O campo social, cada vez mais automatizado, perde, em

quantidade, relações de conteúdo ético; elas são substituídas por outras já pré-definidas,

Page 33: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

33

conforme as necessidades dos subsistemas, como se reflete no da economia: proliferam-

se relações nas quais os sujeitos perdem tal estatuto para assumir uma função, tornando-

se funcionários que agem tão-somente segundo os deveres do cargo. Também os

dilemas prático-morais surgem como questões técnicas, uma vez que o mundo

normativo se subjuga ao instrumental. Nisso se baseia o diagnóstico weberiano da perda

de liberdade, oriunda da modernização social. Já à modernização cultural estaria

relacionada a outra espécie de “patologia”: à perda de sentido da vida moderna,

resultante da ruína da visão de mundo centrada, a qual oferecia ao indivíduo um cenário

simbólico e valorativo inquestionado.

A razão instrumental atua onde quer que se conceba um sujeito do conhecimento

separado e elevado em relação a um objeto do conhecimento pronto para ser conhecido,

operado e manipulado. Dessa forma, tanto Weber quanto Adorno e Horkheimer se

inserem, no entender de Habermas, na tradição da filosofia do sujeito – ou da

consciência. Para eles, a razão que determina a formação subjetiva e social é

monológica em dois sentidos. Primeiro, está centrada na consciência

autoconservacionista; segundo, a ela não há alternativas. Habermas, ao postular o viés

comunicativo da razão, impedindo-a, dessa forma, de se encerrar na instrumentalidade,

propõe não apenas novas bases de crítica, mas outro entendimento acerca da sociedade

moderna e de suas crises.

2.1. A verbalização do sagrado e a liberação do potencial comunicativo da razão moderna

Muitos pensadores, inclusive aqueles sobre os quais tratamos aqui, perceberam a

necessidade de superação do paradigma da consciência, embora não tivessem

conseguido torná-la explícita por insistir em outras questões subjacentes. Por esse

Page 34: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

34

motivo, todas as estratégias de superação do paradoxo da racionalidade, quando não

esbarravam em impasses, faziam surgir indeterminações; buscava-se uma espécie de

outro da razão, imaginando que o potencial emancipacionista da última, se não fosse

uma farsa, haveria ao menos de estar esgotado ou suprimido; postulava-se: quando “a

fortaleza da razão centrada no sujeito for demolida, também desabará o logos, que

sustentou por muito tempo a interioridade protegida pelo poder, oca por dentro e

agressiva por fora. O logos terá, então, de render-se ao seu outro, seja este qual for”

(Habermas, 2002: 432). Em suma:

Enquanto a autocompreensão ocidental definir o homem, em sua relação com o mundo, como caracterizado pelo monopólio de confrontar o ente, de conhecer e manipular objetos, de produzir enunciados verdadeiros e de realizar intenções, a razão permanecerá restrita a apenas uma das suas dimensões, seja no plano da ontologia, da teoria do conhecimento ou da análise da linguagem. (Ibidem: 433)

Restringir a racionalidade “a apenas uma das suas dimensões” foi o erro

cometido tanto pelo neo-kantiano Weber, quanto por Adorno e Horkheimer, que se

apropriaram das teoria e diagnose weberianas da modernização na elaboração da

Dialética do Esclarecimento.

O fato é que, com o desmantelamento do vértice legislador, a validade das

práticas e contextos do mundo passou a ter amparo racional, ao invés de estar para

sempre imbricada ao mundo pela tradição. Como demonstra Weber, o processo de

racionalização significou a liberação do potencial instrumental da razão, esse último

determinante em especial para a automatização dos subsistemas; ele ignorou, entretanto,

que a modernização cultural, a qual precede a social, permitiu, ao responder pela

diferenciação das esferas de valor, a realização do potencial comunicativo da

racionalidade.

Apenas com a verbalização do sagrado, como notado na modernidade, a norma

se descolou da determinação sacra. A língua, no novo contexto, não apenas descreve

Page 35: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

35

algo, mas é producente – ela produz comandos, cumprimentos, agradecimentos, enfim,

está sempre efetivando ações que podem ser discutidas, reelaboradas e redirecionadas

em uma conjuntura valorativa plural. A razão comunicativa é justamente a disposição –

lograda de fato apenas após o desencantamento do mundo – de sujeitos capazes de falar

e de agir em um contexto cultural valorativamente descentrado. Nesse sentido, o

constante processo de formação do mundo sociocultural depende cada vez mais da

interação entre os sujeitos capazes de, verbalmente, ministrar e articular os valores que

antes estavam não apenas unificados como alheios a eles – passa a depender, portanto,

de estratégias comunicativas pós-tradicionais, isto é, racionais –: “as funções normativas

preenchidas pelo rito arcaico e fundadas na religião foram amplamente assumidas pelas

estruturas profanas da comunicação pela linguagem” (Araújo, 1996: 199). Foi esse

potencial, o comunicativo, de reprodução racional do mundo simbólico por parte de

sujeitos capacitados e minimamente livres para fazê-lo, que, junto com o instrumental,

foi liberto ao longo do processo de racionalização.

Para Habermas, a linguagem, pressuposto da interação como seu elemento

mediador – tanto das relações morais quanto do trabalho social –, não deve ser

entendida como uma estrutura simbólica à disposição do indivíduo isolado. Seu telos, o

entendimento5

5 Não se trata, portanto, de entendimento [Verstand] no sentido kantiano, ou seja, de uma faculdade cognoscitiva, que constitua o conhecimento ordenado dando forma ao que é apreendido sensivelmente. Trata-se de entendimento não no sentido puramente cognitivo, mas de entendimento [Verständigung] entre dois sujeitos a respeito de algo no mundo.

, fundamenta seu caráter intersubjetivo: “a socialização se efetua como

individuação na mesma proporção em que, inversamente, os indivíduos se constituem

socialmente” (Habermas, 2002: 481). A razão, que, nesse âmbito, perde seu lastro

transcendental, não capacita o sujeito para o conhecimento do mundo objetivo, mas para

participar de processos de socialização; por ser essa capacidade adquirida ao longo da

vida, mediante processos de aprendizagem que implicam a prática comunicativa em um

Page 36: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

36

âmbito social, o sujeito se forma na medida em que age sobre esse pano de fundo. Dessa

forma, embora ligada a uma competência universal do ser humano, a razão

comunicativa não pertence ao sujeito, mas à intersubjetividade.

A teoria habermasiana de fato é devedora dos estudos sobre a modernização

levados a cabo por Weber. Ambos compartilham não apenas a temática da

racionalização, mas também grande parte do mapa conceitual. O descentramento da

visão mundo tradicional, e as modernizações cultural e social são noções indispensáveis

para a fundamentação da teoria do agir comunicativo. Retomando: apenas com a

modernidade pode-se supor o fim do vértice tradicional, legislador e validador (Weber);

com isso, a tarefa de validar e justificar as ações e práticas passou aos indivíduos de

fato, que, para realizá-la, devem adquirir competência comunicativa, conseguida em

processos de aprendizado ao longo da vida por meio da integração – dependente de

comunicação (Habermas). É nesse sentido, por sinal, que Habermas contesta a tese da

perda de sentido postulada por Weber; a diferenciação das esferas de valor não deu

origem a uma patologia, ou a um empobrecimento da experiência de vida, mas permitiu

aos sujeitos buscar, por si mesmos, em processos intersubjetivos, critérios de orientação

ou normatividade. Porém, embora a modernização cultural seja a responsável pela

realização do potencial comunicativo da razão, é evidente que a comunicabilidade

intersubjetiva sempre existiu – mas com outras funções. Sua importância, portanto, está

em que, com a diferenciação das diversas esferas de valor, a prática comunicativa

passou a ser muito mais imperativa, pois, orientada racionalmente, é ela, e não mais as

imagens de mundo mágico-religiosas, a determinante para a orientação das práticas

cotidianas. Paralelamente, a instrumentalidade da razão foi desenvolvida em simbiose

com a crescente complexidade social (Weber), mas de maneira a tornar mais eficiente a

integração de ações que dispensassem a comunicabilidade (Habermas); a formação do

Page 37: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

37

estado moderno burocraticamente administrado e a automatização das relações de

produção como notada na economia capitalista moderna são exemplos de campos

dominados por esse específico viés racional. Habermas reformula esses dois processos

complementares; à modernização societária, liga a gradual complexidade sistêmica; à

cultural, a racionalização do Lebenswelt ou mundo da vida.

2.2. Da modernização cultural ao mundo da vida racionalizado

A noção habermaseana de mundo da vida está baseada especialmente em duas outras

conceitualizações: fundamentam-na a teoria da modernização cultural, conforme

entendida por Weber – a partir do descentramento dos campos de valor – e, ainda, a

concepção husserliana de Lebenswelt.

Em conferência de 1935, Husserl (2002) investiga as razões de as ciências

humanas não fornecerem, mesmo em um estágio supostamente avançado de

desenvolvimento, soluções para a crise européia notada no período entre-guerras; uma

crise que ia muito além de questões econômicas e políticas, instalando-se no cerne da

cultura. Husserl defende que as ciências da natureza, de atitude ingenuamente

objetivista, acabaram se distanciando do mundo da experiência humana. Setores das

ciências do espírito, que à época buscavam com bastante afinco equiparar-se em status

às da natureza – as quais gozavam de prestígio muito maior, tendo em vista as

inovações técnicas marcantes do século XIX –, viram nessa atitude reificante das

últimas a possibilidade de reerguimento. Todas as psicologias nascentes apropriaram-se

do fundamento objetivo e, por conta disso, para Husserl, cometeram o mesmo erro de se

distanciar do mundo da experiência humana, porém em gravidade muito maior; ao

Page 38: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

38

objetivar o espírito, aniquilaram o que lhes caracterizaria como saber humano. A seu

ver,

o investigador da natureza não se dá conta de que o fundamento permanente de seu trabalho mental, subjetivo, é o mundo circundante [Lebensumwelt] vital, que constantemente é pressuposto como base, como o terreno da atividade, sobre o qual suas perguntas e seus métodos de pensar adquirem um sentido. [...] A revolução de Einstein concerne às fórmulas que tratam da physis idealizada e ingenuamente objetivada. Mas nada nos diz sobre como as fórmulas em geral, como a objetivação matemática em geral, adquire o sentido sobre a base da vida e do mundo circundante intuitivo; assim Einstein não reforma o espaço e o tempo nos quais se desenrola nossa vida real e concreta [unser lebendiges Leben] (Husserl, 2002: 90).

Dessa forma, o mundo da vida deve ser entendido como uma espécie de

negativo do mundo objetivo das ciências naturais: ele é o mundo da práxis cotidiana, o

mundo histórico-cultural concreto, sedimentado em usos e costumes, em saberes e

valores; trata-se do domínio, por excelência, de nossas originárias formações de sentido.

O grande intuito de Husserl, ao desenvolver sua fenomenologia, é justamente reabilitar

o Lebenswelt: para a sua ciência, o mundo não é o dos objetos, mas o da vida – o das

“coisas mesmas”.

A fim de determinar a composição estrutural do mundo da vida, e com isso

enriquecer a compreensão acerca do conceito, Habermas se apropria, ainda, dos

principais aspectos da modernidade cultural weberiana. Como vimos, o processo de

racionalização diferenciou os domínios culturais responsáveis pelos entendimentos de

mundo cognitivo-instrumental, prático-normativo e estético-expressivo; isso em

paralelo aos desenvolvimentos da ciência, do saber jurídico e da estética. Sabemos que

na medida em que esses três últimos domínios substituíam a determinação central de

mundo, encontraram-se, portanto, livres para produzir saberes conforme lógica e valores

internos – os quais, por sua vez, variavam de esfera para esfera – e de forma que cada

uma delas tomasse como objeto um domínio diferente da experiência mundana.

Page 39: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

39

Se na visão de mundo pré-moderna a natureza, a sociedade e a identidade do

sujeito formavam uma unidade indissociável no contexto tradicional, com a

racionalização torna-se possível referir-se a cada um deles separadamente. Nesse

sentido, compreende-se que as leis que regem o mundo objetivo são totalmente

específicas a esse domínio, e não se estendem ao mundo social, tampouco à estrutura da

personalidade. Inversamente, ao pensar tradicional, por exemplo, era perfeitamente

compreensível que cataclismos naturais fossem causados pelo rompimento ocasional da

norma sacra segundo eventuais posições contrárias tomadas coletivamente – ou, em

certos casos, mesmo individualmente –; nota-se que, nesse contexto, os mundos

objetivo (natural), social (normativo) e expressivo (subjetivo) se encontram em radical

simbiose. Em suma, com a diferenciação das esferas de valor, não apenas um saber

especializado pôde ganhar forma e se desenvolver, mas também, como veremos adiante,

a maneira com que os sujeitos se referem e compreendem o mundo se descentrou: a

arte, hoje, abandonou seu lastro ritualístico; também as normas sociais não estão

ancoradas na tradição; e, enfim, a natureza, transformada em objeto, perdeu quaisquer

significações místicas – o sujeito se percebe, internamente, descolado do mundo

objetivo, o qual não participa como determinante da dinâmica social. Entretanto, deve-

se frisar, trata-se de mundos meramente formais, isto é, estão separados apenas

idealmente; em realidade, entrecruzam-se.

Como defende Habermas, é importante ter em mente que apenas o sujeito

moderno sabe, ao se referir a algo no mundo, se está se referindo ora ao mundo das

normas (social), ora ao mundo objetivo (ou natural), ou exprimindo algo independente

de ambos (mundo subjetivo). Foi o desenvolvimento dessa tese, a partir da teoria

weberiana da modernização cultural e do desencantamento do mundo, que permitiu a

Habermas conceitualizar o que compreende por pretensões de validade, noção de

Page 40: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

40

extrema relevância para o entendimento tanto da teoria do agir comunicativo quanto da

vigência do mundo da vida, ambos diretamente ligados.

2.2.1. Descentramento de valores e agir comunicativo

Na modernidade, quando interlocutores buscam o entendimento a respeito de

algo no mundo – seja em relação ao mundo objetivo, social ou mesmo subjetivo –,

levantam pretensões de validade. “Em outras palavras, está alegando que suas

afirmações factuais são verdadeiras, que as normas que ele propõe são justas e que a

expressão dos seus sentimentos é veraz” (Rouanet, 2005: 339), de maneira que, no agir

comunicativo, o significado do proferimento não se encontra descolado da pretensão de

validez em questão – o que permite afirmar que toda proposição visando ao

entendimento de um significado carrega uma pretensão de validade. O fato é que a

verbalização do sagrado passou aos sujeitos capazes de falar e de agir a tarefa de

reivindicar a validade do que é dito por eles (antes, isso se mostrava impossível, até

porque a validade de quaisquer proposições sequer poderia ser posta em questão); fosse

a veracidade da expressividade e das “afirmações factuais”, ou então a justeza das

normas, a validade delas já era reconhecida e atualizada pela coletividade; as pretensões

de validez, isto é, veracidade proposicional, correção normativa e veracidade

expressiva, não somente se encontravam mescladas, em conformidade com a

centralidade valorativa, como levantá-las era algo distante de determinação subjetiva.

Dessa forma, no que diz respeito à mediação entre os mundos, o agir ritual deu lugar

para o agir comunicativo. Em resumo, enquanto o agir ritual está imerso em um âmbito

indiferenciado, o agir comunicativo tem base racional e se faz apenas em um cenário

descentrado – da orientação valorativa centrada passou-se à generalização valorativa.

No âmbito moderno da pluralidade de valores, o agir comunicativo está voltado ao

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41

entendimento, telos da linguagem. O pensar mítico, ao contrário da razão comunicativa,

que fundamenta o aspecto racional do agir comunicativo – o agir racional orientado ao

entendimento –, não difere as “atitudes básicas (objetivante, normativa e expressiva) em

face dos mundos (objetivo, social e subjetivo), e, portanto, mescla pretensões de

validade (verdade proposicional, correção normativa e veracidade expressiva) baseadas

nos conceitos formais de mundo” (Araújo, 1996: 72). Com a modernidade, os

participantes da comunicação conseguem distinguir entre domínios de validade: podem

reconhecer, por exemplo, que

a reivindicação de uma pretensão empírica de verdade (“Está chovendo lá fora”) demanda diferentes método e procedimento do que a validação de uma reivindicação de verdade subjetiva (“Estou com dor de cabeça”), e que a validação dessas duas é distinta da reivindicação de validade normativa (“Fazer aborto é terrivelmente errado”). (Cooke, 1997: 11)

Fica clara, portanto, a composição weberiana-husserliana do mundo da vida de

Habermas: do primeiro, o autor extrai a generalização dos valores e a insere em um

contexto sócio-comunicativo de interações e interpretações – o pano de fundo do mundo

da vida. Porém, Habermas, ao contrário de Husserl, não entende o mundo da vida como

constituído a partir da atividade intencional de um Eu transcendental – e nisso reside

sua posição crítica em relação à fenomenologia –, mas, antes, vê no Lebenswelt um

mundo intersubjetivo comunicativamente estruturado. Deter-se em torno de questões

lingüísticas não foi por acaso6

6 Nas palavras de Cohn (1993: 65): “O que está em jogo, quando Habermas estuda a linguagem, não é a dimensão mais formal, das regras de relações entre os signos (uma sintática), nem mesmo a dimensão das relações entre os significantes lingüísticos e as suas referências (uma semântica), mas sim a relação entre a linguagem e seus usuários (uma pragmática).”

. É notadamente por meio do agir comunicativo que se dá

a reprodução simbólica da sociedade; em outras palavras: é essencialmente pela

comunicação intersubjetiva mediada pela linguagem visando ao entendimento que o

mundo da vida se reproduz como tal, servindo de recurso para os agentes

comunicativos. Assim, o agir comunicativo depende não apenas de indivíduos

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capacitados para o entendimento e para reivindicar pretensões de validade, mas também

de uma fonte de significados por meio da qual se dê a reprodução simbólica, isto é, de

um contexto de vida condicionado pelo tempo histórico, pelo espaço social e por

experiências centradas no corpo: o mundo da vida racionalizado, único reservatório de

sentido e racionalidade – não mais o sujeito.

2.2.2. Mundo da vida, reprodução simbólica da sociedade, e agir comunicativo

O Lebenswelt guarda a referência de significados utilizados pelos atores e é o

reservatório cultural e normativo reproduzido por meio do agir orientado ao

entendimento, no qual os sujeitos levantam pretensões de validade sobre algo no

mundo; na perspectiva dos agentes, ele mesmo nunca surge como tema, mas, antes,

reúne as significações: é o mundo da práxis cotidiana, no qual estamos

comunicativamente e desde sempre. Trata-se, enfim, de um conjunto de modelos

interpretativos que são transmitidos culturalmente e organizados lingüisticamente: o

agir comunicativo (e são essas suas principais realizações enquanto fundado no mundo

da vida), ao coordenar ações, responde com isso pela integração social; quando realiza

intercompreensão, reproduz cultura; por último, cumpre a tarefa de socialização por

formar identidades pessoais. Em conjunto, esses fazeres fundamentam a reprodução

simbólica da sociedade.

Integrar-se socialmente significa tornar-se apto a compreender as normas

ordenadoras em vigência; reproduzir cultura, reproduzir os costumes em geral e

esquemas de interpretação; constituir identidades pessoais, formar sujeitos

comunicativamente capazes. Dessa forma, enquanto estruturas do mundo da vida,

“sociedade” é composta por ordens legítimas por meio das quais os comunicantes

regulam seu pertencimento a grupos sociais, formando redes de solidariedade, ao passo

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43

que “cultura” é entendida como fonte do saber de onde os participantes da comunicação

extraem interpretações ao se entenderem sobre algo no mundo; por último, por

“personalidade” (ou formação dela) entendem-se as competências que tornam um

sujeito capaz de participar dos processos de entendimento e de firmar neles sua

identidade. Ou cf. Habermas, 1990: 101:

Assim, podemos enxergar na dinâmica agir comunicativo-Lebenswelt a mesma

interdependência observada entre os processos de individuação e socialização: é esse

tipo de agir que serve de ponte entre os diversos componentes estruturais do mundo da

vida (cultura, sociedade, personalidade), o que lhe permite ampliar e renovar o

Page 44: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

44

reservatório de pressuposições sempre disponível aos atores quando os últimos, enfim,

agem comunicativamente:

O mundo da vida estrutura-se através de tradições culturais, de ordens institucionais e de identidades criadas através de processos de socialização. Por isso, ele não constitui uma organização à qual os indivíduos pertençam como membros, nem uma associação à qual se integram, nem uma coletividade composta de membros singulares. A prática comunicativa cotidiana, na qual o mundo da vida está centrado, alimenta-se de um jogo conjunto, resultante da reprodução cultural, da integração social e da socialização, e esse jogo está por sua vez, enraizado nessa prática (Ibidem: 100)

Tendo em vista a gradual diferenciação ocorrida na modernidade, pode-se falar

inclusive de um agir comunicativo no sentido fraco e de outro no sentido forte: “Na

base do agir comunicativo em sentido fraco está a suposição de um mundo objetivo que

é o mesmo para todos; no agir comunicativo em sentido forte, os envolvidos contam

ademais com um mundo social intersubjetivamente partilhado por eles” (Habermas,

2004: 120). No primeiro tipo de agir comunicativo, as proposições pretendem apenas a

constatação; para o locutor, o mundo ao qual se refere, o mundo dos objetos, é idêntico

ao percebido por seu interlocutor. Já no segundo caso, o uso da linguagem alude a um

mundo social, ou seja, a um mundo de normas.

2.2.3. Sobre o conceito de ação estratégica

Entretanto, nem todo agir mediado pela linguagem constitui fator integrativo –

ou, no caso do discurso, ponto de partida para a análise de pressupostos de ação –; na

realidade, é justamente a orientação que essencialmente difere o agir comunicativo da

ação estratégica.

Uma ação estratégica também é mediada pela linguagem; porém, não se busca,

com ela, um objetivo ilocucionário ou perfomativo; em outras palavras, a linguagem

não está sendo usada tão-somente para realizar entendimento. Um ator age

estrategicamente quando busca atingir fim perlocucionário, isto é, enquanto visa, ao se

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45

relacionar com outro falante, a não apenas o entendimento – condição para tal –, mas

uma conseqüência para além dele. Nessa espécie de ação interpessoal, os indivíduos

podem surgir uns para os outros como meios para o alcance de algum fim: o uso

lingüístico estratégico, ao contrário do agir comunicativo, logra sucesso ao influenciar a

ação conseqüente do interlocutor de forma que favoreça aos intuitos do agente original

– se no agir comunicativo é o entendimento o coordenador de ações, na ação estratégica

a tarefa está a cabo da influenciação. É isso, por sinal, o que lhe permite se diferenciar

da ação instrumental; ambas são orientadas ao êxito ou sucesso, entretanto, essa última

não visa a outro agente. Nesse sentido, pode-se dizer que as ações de caráter estratégico

são meio termo entre o agir comunicativo e o instrumental (por visar a um fim além do

ilocucionário); se do primeiro a ação estratégica compartilha o uso lingüístico, conserva,

do último, a orientação ao sucesso ou êxito (indo, portanto, além do interesse

ilocucionário).

2.3. Da modernização social ao sistema

Até aqui, nosso interesse foi mostrar a relação constitutiva entre agir comunicativo e

Lebenswelt, em que se dá o mundo da práxis cotidiana – compartilhado

intersubjetivamente por meio de ações orientadas ao entendimento. Vimos que é nessa

dinâmica entre o pano de fundo das significações e o agir de sujeitos capazes de

comunicação, os quais extraem dessa fonte tanto o leque de significados culturais e

normativos – por meios de processos de socialização – quanto a capacidade de agir –

pelo processo de aprendizado –, que se dá a reprodução simbólica da sociedade.

Entretanto, se o agir comunicativo não é o único meio para a coordenação de ações,

tampouco a reprodução simbólica pode ser considerada sinônimo de reprodução da

Page 46: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

46

sociedade: também fundamentam o entendimento habermaseano da modernidade um

conceito complementar aos de agir comunicativo, ação estratégica e mundo da vida: o

de sistema.

A crescente complexidade do mundo da vida, resultante da produção de

conhecimento específica a cada campo surgido do descentramento, exigiu, em

determinado instante da história moderna, tipos outros de mediação de ação que não a

linguagem: tal instante é o princípio da construção da ordem sistêmica, a qual

compartilha, com o mundo da vida, o estatuto de constituinte de uma noção, portanto,

dual de sociedade.

Repetidas vezes frisamos que o desencantamento do mundo representou,

especialmente, a autonomia de campos de ação, de maneira que a experiência subjetiva

do mundo pudesse ser expressa, por exemplo, pelo viés artístico sem que, com isso,

fosse imbricada a um contexto tradicional; apenas sob essa condição seria possível à

estética se constituir, na modernidade, como disciplina filosófica. Igualmente, todos os

critérios de normatividade anteriormente imaleáveis e inflexíveis, deixaram de ser

determinados pela vontade divina ou pela palavra de alguma representatividade sua. Por

fim, a ciência moderna, na medida em que formalizava seu método, e estabelecia

domínios de conhecimento, reivindicando, ainda, o progresso como parte da própria

essência, sobrepôs seu entendimento de natureza sobre os demais. Pode-se dizer que

todas essas resultantes do descentramento da visão de mundo tradicional refletiram

especialmente sobre dois domínios os quais conservam entre si uma forte

interdependência: o primeiro se trata do campo da produção teórica de conhecimento; o

segundo, da conduta prática, no sentido da interação intramundana. Nessa diferenciação

baseia-se a crítica da modernidade que alerta para o desenvolvimento da cultura de

especialistas e, conseqüentemente, o diagnóstico weberiano do paradoxo da

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racionalização, segundo o qual o sujeito moderno sabe menos do que seu antecessor a

respeito do mundo em que vive, embora se considere o conhecimento acumulado sobre

esse mundo não apenas mais rigoroso como também ilimitável.

Essa crescente complexidade de sentidos do mundo da vida, marcada pelo

descentramento – ou seja, por sua racionalização gradual –, demandou a automatização

de determinadas relações sociais, o que equivale dizer: algumas ações que, no princípio

do processo de racionalização do mundo da vida, eram mediadas apenas pela

linguagem, tiveram que encontrar outros media por conta de uma necessidade cada vez

mais imperativa de substituir a comunicação. O fato é que o progresso técnico trouxe

novas possibilidades de se ordenar a vida, seja a natural ou a social – e aqui nos

referimos em especial à sociedade e cultura burguesas –; da norma de produção à

divisão do trabalho, caracteriza o subsistema econômico um tipo de ação que não é

mediado pela linguagem: “As regras da interação são, por definição, comunicativas [...].

Mas, no caso do trabalho, as regras técnicas são elaboradas no marco do agir

instrumental” (Araújo, 1996: 31). Ao diferenciarmos as relações marcadas por regras

técnicas das que são regidas pela comunicação visando ao entendimento, estabelecemos,

conceitualmente, os limites entre o domínio sistêmico e o do mundo da vida, ou entre os

campos de reprodução material e de reprodução simbólica da sociedade.

Em suma, na medida em que a modernização cultural, relativa ao processo de

racionalização do mundo da vida, respondeu pela liberação do potencial racional-

comunicativo, a crescente complexidade do mundo valorativamente descentrado

demandou uma ordenação racional-instrumental, essa radicada na esfera do sistema.

Considerando dessa forma, é patente a correlação entre a formação de um campo

sistêmico e aquilo que Weber chama de racionalização – ou modernização – social. São

os mesmos economia moderna e estado que constituem o que é entendido por sistema.

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48

A seguir, iremos explicitar melhor essa noção, atentando especialmente para a natureza

da mediação de ações que caracterizam a ordem sistêmica e o funcionamento da última

para a reprodução material da sociedade, e a relação de interdependência conservada

junto ao mundo da vida.

2.3.1. Os meios reguladores não-lingüísticos como elemento de automatização da esfera sistêmica

Quando ocorre interação social, socialização ou se reproduz saber cultural dentro

de uma comunidade de falantes, está por trás a disposição de ações orientadas ao

entendimento, ou seja, agir comunicativo; é evidente, no caso, que a ação intersubjetiva

responsável pelos processos seja mediada pela linguagem. No entanto, ao

abandonarmos o campo da práxis simbólica e adentrarmos o domínio da reprodução

material, as ações perdem tanto sua orientação ao entendimento quanto, em

conseqüência, a coordenação pela fala; caracterizam esse âmbito especialmente a

mediação não-lingüística da ação e sua orientação ao êxito: a rigor,

há uma competição não entre os tipos de ação orientados ao entendimento mútuo e ao êxito, mas entre princípios de integração social – entre o mecanismo de comunicação lingüística que é orientada por pretensões de validade (um mecanismo que surge dentro da neutralização crescente que acompanha a racionalização do mundo da vida) e aqueles meios não-lingüísticos que possibilitam a diferenciação de sistemas de ação voltadas ao êxito (Habermas, 1984: 342).

Ao substituírem a linguagem, os meios não-lingüísticos de coordenação dinheiro

e poder – relativos aos subsistemas, respectivamente, econômico e estatal – tornam

manifesta a formação de campos de integração autônomos ou não-dispostos à atuação

comunicativa intersubjetiva. São eles que, institucionalizados no mundo da vida –

conforme a crescente complexidade do último –, representam, pode-se dizer, o sistema,

fazendo-o algo presente aos atores imersos no contexto das interações. No caso do

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49

subsistema econômico essa configuração é bastante visível e dificilmente posta em

questão; se um conjunto de regras para a troca de mercadorias pode variar e ser

reformulado, a mediação das ações, entretanto, será sempre feita pelo dinheiro. Nesse

sentido, podemos afirmar que, em uma situação de compra e venda, os participantes não

se orientam ao entendimento, mas ao êxito do negócio. Por meio do dinheiro, evita-se

uma prática comunicativa desnecessária:

A vantagem do meio regulador consiste na sua capacidade de, sob certas circunstâncias, substituir com vantagens a comunicação lingüística. Essas vantagens apontam principalmente para os ganhos de eficiência dos meios reguladores que diminuem tanto o dispêndio que o processo de entendimento sempre acarreta como o risco do fracasso na busca desse entendimento. A sempre presente possibilidade do dissenso na interação comunicativa é eliminada pelos meios reguladores na medida em que um valor genérico embutido no subsistema, do qual o meio regulativo é uma espécie de ‘representante’, predetermina a orientação dos atores envolvidos. [...] No caso paradigmático do dinheiro, a situação básica é a troca de mercadorias; os parceiros da troca seguem interesses econômicos; a utilidade [Nutzen] é o valor genérico e a rentabilidade é o critério no qual o sucesso é medido. Sob essas condições o dinheiro pode substituir, com vantagens, a interação lingüística como regulador da coordenação entre os atores nas relações específicas do subsistema econômico (Souza, 1997: 40).

O poder, no entanto, apesar de inserido na junção sistêmica como elemento

mediador, não deve ser entendido, por uma razão bem específica, em analogia ao

dinheiro. De fato, ambos exercem a mesma função em seus respectivos subsistemas;

porém, o referente à administração estatal participa de um contexto bem mais complexo

e não pode ser manipulado pelos atores como seu correlato econômico. A diferença está

em que o poder, ao contrário do dinheiro, necessita de legitimação. Enquanto o recurso

monetário pode ser considerado um mediador de ações entre sujeitos que, em situação

específica, apresentam-se como iguais – um na figura de comprador, outro na de

vendedor –, de maneira que dependam, para o próprio êxito, do êxito da contraparte

(exige-se, para o sucesso do vendedor, que o comprador compre, e vice-versa), no caso

do poder a ação que coordena não contempla equivalência entre o estatuto das partes: a

relação entre dominantes e dominados é estruturalmente desigual; por essa razão, é

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50

condição do poder, enquanto medium de ação, que a relação de dominação seja, de

alguma maneira, justificada, o que, por sua vez, não exclui a estrutura de subjugação.

Uma vez instituída – comunicativamente ou coercitivamente –, a dominação funciona

com a mesma automatização que marca as ações no campo sistêmico da economia: o

respeito às hierarquias, seja na empresa capitalista moderna, ou então na administração

burocrática estatal, não deixa restar dúvidas quanto a isso.

2.4. O entrelaçamento sistema x mundo da vida: a base de uma noção dual de sociedade

Marca o sistema a instituição de uma ordem alheia à participação comunicativa dos

atores. Trata-se de um campo impessoal da sociedade, isto é, de mecanismos sociais

auto-regulados para a produção e a distribuição de riquezas, para a coordenação de

tarefas (realizadas, embora, por atores) voltadas a esse fim, e que, assim, prescrevem a

própria vigência; funcionam, por essas razões, para a reprodução material da sociedade,

entendida aqui, por último, também como a conservação da ordem mais elementar de

produção econômica e administração burocrática modernas.

O estabelecimento da distinção conceitual entre trabalho e interação, conforme

desenvolvido em seu escrito de juventude Técnica e Ciência como Ideologia, foi o

primeiro passo para Habermas formular seu conceito dual de sociedade, constituída por

sistema e mundo da vida. Mas, vale frisar: ambos não são redutíveis a si mesmos;

Habermas é enfático: as “ações instrumentais estão entrelaçadas com as comunicativas

na medida em que apresentam a execução de planos que estão ligados aos planos de

outros participantes da interação por meio de definições comuns da situação e processos

de entendimento recíproco”; dessa maneira, “a reprodução simbólica do mundo da vida

está retroativa e internamente acoplada com sua reprodução material” (Habermas, 2002:

Page 51: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

51

446-7). Entretanto, não se deve negar a especificidade de cada campo de reprodução

social, um no qual se manifesta a razão comunicativa, e outro, marcado por referendar

uma racionalidade funcionalista, derivação da razão instrumental uma vez erradicada na

esfera sistêmica. Habermas parte dessa ambivalência social para fundamentar sua teoria

crítica: embora a complexidade social exija de fato mediações não-lingüísticas da ação,

não raro interações que podem ser coordenadas pelo entendimento são orientadas ao

êxito. Quando a monetarização da força de trabalho e a burocratização dos serviços

estatais não mais compensam a supressão das formas de interação tradicionais com o

aumento da eficiência ao buscar suprir necessidades de reprodução material,

possibilidades de agir intersubjetivo são renegadas – domínios de ação típicas do mundo

da vida são usurpados pela esfera sistêmica –; nesse sentido, pode-se falar em uma

espécie de colonização do campo da práxis simbólica, ou do acoplamento de

determinados contextos de ação do mundo da vida pelo sistema. Na visão de Habermas,

essa mutilação da intersubjetividade é a grande patologia a ser enfrentada pela

sociedade contemporânea.

Page 52: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

52

III.

A racionalidade dos meios de comunicação: entre reprodução material e compartilhamento simbólico

Aquilo que sabemos sobre nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o sabemos pelos meios de comunicação. Isso vale não apenas para nosso conhecimento da sociedade e da história, mas também para nosso conhecimento da natureza. Aquilo que sabemos da estratosfera equivale àquilo que Platão sabia da Atlântida: ouviu-se dizer. Ou, como Horácio exprimia: ‘Assim eu ouvi, e parcialmente acredito’. (Luhmann, 2005: 15)

Habermas não assume o radicalismo de Adorno e Horkheimer. A seu ver, a

modernidade atingiu um alto grau de complexidade, demandando naturalmente campos

de ação regidos por uma racionalidade funcional. O problema surge quando essa espécie

de racionalidade substitui, na reprodução simbólica, o entendimento – enquanto

coordenador de ações – pelo êxito na coordenação de agires, causando deformações no

mundo da vida. A colonização do mundo da vida pelo sistema, entretanto, jamais será

completa: basta lembrar a preeminência do mundo da vida com relação aos mecanismos

auto-regulados; os últimos derivam do primeiro, seu contexto de origem. Afinal, tal

como frisado anteriormente, a modernização social que deu impulso à ordenação

sistêmica é fruto apenas indireto da superação das ordens de vida tradicionais – lhe é

anterior a modernização cultural, que estruturou o mundo da vida este, racionalizado. O

fato é que, mesmo às sociedades mais complexas, o campo das interações espontâneas –

o da reprodução simbólica – continua sendo indispensável à sociedade – como

constituinte dela, por servir de terreno para a reprodução material. A filosofia, nesse

contexto, pode contribuir para denunciar a incorporação sistêmica de domínios do

simbólico: sobra, a ela, “uma promoção iluminadora dos processos de auto-

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53

entendimento de um mundo da vida referido à totalidade, o qual precisa ser preservado

da alienação resultante das intervenções objetivadoras, moralizantes e estetizantes das

culturas de especialistas.” Entretanto, prossegue Habermas, os critérios de validade

capazes de iluminar hoje em dia o sadio bom senso humano – tarefa da filosofia – não estão mais à disposição da própria filosofia. Ela é constrangida a operar sob condições de racionalidade que não foram escolhidas por ela. É por isso que ela, mesmo na função de intérprete, não pode reclamar para si, perante a ciência, a moral e a arte, um acesso privilegiado a intuições essenciais, porque ela dispõe apenas de um saber falível (Habermas, 1990: 27).

Renova-se, assim, em larga medida, o elemento crítico do pensamento

frankfurtiano.

O pensamento de Habermas sempre pretendeu solucionar dois impasses teóricos

relevantes e de certa forma análogos: na filosofia, superar o paradigma da consciência; e

resolver, no campo sociológico, a desde sempre presente incompatibilidade entre as

teorias da ação social, cujo expoente maior é a weberiana, e concepções sistêmico-

funcionais da sociedade, em especial as de Durkheim, T. Parsons e Luhmann. Com o

conceito de razão comunicativa – intersubjetiva e processual, oriunda do mesmo

processo de descentramento do qual se originou seu viés instrumental –, abordado no

capítulo segundo, buscou-se dar cabo da primeira tarefa; foi, ainda, articulando o

conceito de mundo da vida – originalmente filosófico – com a perspectiva – sociológica

– da formulação sistêmica, que Habermas não apenas fez do Lebenswelt husserliano um

conceito empiricamente aplicável, como, em relação à segunda questão, pretendeu

identificar formação social e individuação.

Habermas entende que o sujeito participa de processos de aprendizado os quais

lhe capacitam para o agir comunicativo, meio, por sua vez, a partir do qual não apenas o

pano de fundo simbólico, de significados para o cotidiano, é alterado e tornado vigente,

mas também processos de aprendizado são corroborados e reproduzidos. Com o

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54

processo de socialização tão relacionado ao processo de aprendizado, teorizações da

formação individual e da vigência da ordem social se identificam; além disso, a

sociedade, enquanto composta por sistema e mundo da vida, não ignora nem o agir

intersubjetivo, tampouco a ordenação sistêmica – da reprodução material automatizada.

Entretanto, em sua teoria do agir comunicativo, Habermas parece ter deixado de

lado um importante fator, tanto de aprendizado como de socialização. Não podemos

apenas entender como elemento mediador dos subsistemas da economia e do estado

modernos – integrados entre si e também entre ambos e o mundo da vida – as

modalidades jurídicas legitimadoras. É que tanto os meios de comunicação de massa

quanto a comunicação mediada por eles parecem merecer teorizações sistemáticas no

interior da teoria do agir comunicativo. A teoria da comunicação, formada disciplina,

também esteve, acompanhando o impasse sociológico, ora determinada por

fundamentos sistêmico-funcionalistas (Weaver, Lasswell, Merton), ora desenvolvida

dando mais atenção à produção e reprodução de cultura (como fizeram os

frankfurtianos). Não só os estudos sobre a comunicação de massa oferecem a mesma

problemática sociológica como os próprios meios apresentam uma estruturação que,

parece, poderia servir de objeto de análise a Habermas. Se de um lado oferecem-se

como típicos registros sistêmicos, de outro participam de alguma forma da reprodução

simbólica (ou ao menos de um determinado tipo de). A seguir, buscaremos analisar

aspectos estruturais dos meios de comunicação modernos – entendidos em conjunto –

com o intuito de integrá-los conceitualmente à teoria do agir comunicativo.

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55

3.1. A teoria sistêmica de Luhmann e a função coordenativa dos meios de comunicação

Niklas Luhmann é considerado um dos grandes representantes das teorias funcionalistas

da sociedade. Conforme postula, a sociedade moderna (o sistema social) é composta por

outros sistemas que, mediante operações internas auto-referenciais, ganham autonomia

(nesse contexto, não há um correlato conceitual do mundo da vida; a práxis cotidiana

pode ser ela mesma compreendida como uma dinâmica fruto do processo de

diferenciação dos sistemas). Entende-se haver um sistema da ciência, outro da arte, um

cognitivo ou de consciência (sujeito), e vários; parece não existir antagonismo entre

pessoalidade e impessoalidade: um sistema se autonomiza gradualmente em relação a

outros – que passam a constituir seu meio externo – na medida em que operações

internas a um mecanismo sistêmico passam a referenciar determinado aspecto

funcional7

No entender de Luhmann, a comunicação é operador central de todos os

sistemas sociais; trata-se de um mecanismo de auto-regulação dos sistemas, com que

cada sistema observa e extrai referências de si mesmo e de outros para reproduzir-se e

fortificar sua autonomia, normalizando, com isso, as relações entre o organismo

sistêmico e seu meio circundante

. Nesse sentido, “os meios de comunicação são um dos sistemas de

funcionamento da sociedade moderna que, como todos os outros, deve sua capacidade

reforçada à diferenciação autofortificada, ao fechamento operacional e à autonomia

autopoiética do respectivo sistema” (Luhmann, 2005: 25). Deve-se, portanto, diferenciar

sistema da comunicação e comunicação.

8

7 Habermas destina diversas críticas a essa concepção. Na realidade, embora em Luhmann se suplante a noção de sujeito pela de sistema, a relação entre sistema e meio circundante conserva os mesmos problemas da filosofia do sujeito: “A diferença em relação ao mundo circundante, mantida pelo próprio sistema, é avaliada como não elidível. A autoconservação do sistema, que sempre se aperfeiçoa, substitui a razão determinada em relação ao Ser, ao pensamento ou aos enunciados” (Habermas, 2002: 517). 8 Cf. prefácio de Ciro Marcondes Filho em Luhmann (2005), “Niklas Luhmann, a comunicação vista por um novo olhar”.

. Os meios de comunicação, por sua vez, constituem o

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56

sistema da comunicação, sistema cujo medium é o suporte técnico; o advento de

aparatos para ampliar ao máximo a difusão e multiplicação de informações foi decisivo

para a diferenciação do sistema da comunicação, cuja espécie comunicativa (mediada

pela técnica), na visão de Luhmann, pode substituir, e com bastante eficácia, a

interação:

A tecnologia de difusão representa, aqui, por assim dizer, o mesmo que é realizado pelo medium dinheiro para uma diferenciação autofortificada da economia: ela própria constitui apenas um meio (um medium) que permite a formação de formas que, então, diferentes do próprio medium, constituem as operações comunicativas que permitem a diferenciação autoconfinada e o fechamento operacional do sistema (Luhmann, 2005: 17).

Entende-se a atividade dos meios de comunicação como realizada em dois

níveis; primeiro, como seqüência de operações – internas aos sistemas em geral –, e, em

segundo lugar, como seqüência de observações, de maneira que um sistema já dotado

de algum grau de enredamento possa, com a observação, não apenas se auto-referenciar,

mas reconhecer hetero-referências, isto é, observar não apenas a si internamente, mas

também aos sistemas que constituem seu meio externo – percebendo a distinção entre

informação/não-informação, adequado/não-adequado para a própria reprodução

sistêmica –; a autonomia e o fechamento operacional não excluem influências de fora,

por isso que os sistemas sociais em geral devem ser entendidos como sistemas de

comunicação (no sentido de operacionalizados por ela) na medida em que sua vigência,

portanto eles mesmos, lhe é dependente9

9 Nas palavras de Luhmann: “Operação é a ocorrência efetiva de acontecimentos; a reprodução deles é realizada pela autopoiese do sistema, isto é, a reprodução da diferença entre sistema e meio externo. As observações utilizam distinções para descrever uma coisa (e não outra coisa). Observar é também, evidentemente, uma operação (de outra forma ela não ocorreria), mas uma operação altamente complexa que, ajudada por uma distinção, separa aquilo que ela observa do que ela não observa; e aquilo que ela não observa é sempre também a operação do próprio observar” (Luhmann, 2005: 155).

. A realidade, que passa a ser uma realidade

para os sistemas sociais, portanto construída, também adquire dupla significação: de

um lado, é a própria operação sistêmica (ou os próprios sistemas em reprodução e

produção que, ao fazerem-no, realizam-se), de outro, uma realidade da sociedade e do

Page 57: A Racionalidade dos Meios de Comunicação

57

mundo, a qual, por sua vez, desde sempre formalizada em plano temático – a fim de ser

disponibilizada comunicativamente de uma forma específica pelos meios de

comunicação (visando possibilitar a reprodução dos sistemas) –, é tornada amplamente

acessível, ou ao menos busca sê-lo; justamente esse tornar-se já caracteriza uma forma

de construção do real – mas não se trata, vale frisar, de manipulação da realidade por

parte do sistema de comunicação, isso porque a idéia mesma de manipulação

corroboraria “pressupor uma realidade ontológica, existente, objetivamente acessível,

reconhecível, independente da construção, em suma, o velho cosmos da essência”

(Ibidem: 24), o qual o autor insiste em negar.

3.1.1. A diferenciação das áreas programáticas como tematização da realidade

Luhmann se interessa especialmente pela construção da realidade, a qual, na

perspectiva sistêmica, significa o processo mesmo de constituição e diferenciação,

sejam internas ou externas, das estruturas funcionais. Por essa razão, a realidade

enquanto composição temática é inesgotável e, nesse contexto da sociedade sistêmica,

pode ser eternamente reproduzível; isto é, tornada informação, sua construção é

ilimitada – fazê-lo é uma necessidade intrínseca para a sustentabilidade do processo

sistêmico-social.

Disponibilizada pelo sistema da comunicação, procura-se afirmar uma realidade

para todos – que garanta alguma identidade referencial entre os sistemas –, a qual, para

tanto, atravessa a mesma estrutura técnico-instrumental (os meios de comunicação,

suporte imperceptível aos participantes da comunicação), cuja conseqüência é a auto-

fortificação funcional do sistema, o qual já abriga estruturas que dividem a comunicação

– ou a realidade de fundo – em áreas programáticas, isto é, em setores de uso conforme

demandas da ordem sistêmica social. Luhmann estabelece esses elementos formadores

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58

em três: (a) publicidade; (b) entretenimento; e (c) notícias e reportagens (sendo esse

último sem dúvida o mais fácil de reconhecer como elaborador e processador de

informações).

(a) A publicidade só pode ser entendida como espécie comunicativa na medida em que,

como tal, contribui para a reprodução sistêmica. Produzindo a ilusão de que o

mesmo não é o mesmo, mas o novo, a publicidade combina extrema padronização e

alta diferenciação, razão de sua eficácia. Por meio dela tenta-se justificar a

reprodução do consumo da mesma marca e de um conjunto delas: atualiza-se e fixa-

se um hábito a partir da incorporação da novidade em um grau formal de constância,

de maneira que ambos se complementem sem que à empreitada original da

formulação desse paradoxo seja dada atenção:

Cada vez mais as mensagens publicitárias ocupam-se hoje em dia em tornar desconhecido ao destinatário o motivo daquilo que é anunciado. Ele reconhece que se trata de publicidade, mas não que está sendo influenciado. Sugere-se que o destinatário tenha liberdade de decisão e até mesmo que ele deseja, por si mesmo, aquilo que ele jamais desejaria (Ibidem: 84).

A publicidade, embora talvez não seja correto afirmar sua imperatividade para as

trocas financeiras, sem dúvida permite a compreensão da e torna possível a

familiaridade do sistema da economia com relação a outros mecanismos sistêmicos

da sociedade. Isto é, o que é transmitido e corroborado por meio da publicidade não

seriam informações a respeito da disponibilidade e da eficácia de determinadas

propostas de consumo; antes, estaria em jogo a possibilidade de se universalizar essa

oferta. O sistema social ter-se-ia tornado dependente da comunicação publicitária –

ao menos neste contexto histórico específico.

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(b) O entretenimento atua, talvez em um grau maior do que a publicidade, também

como duplicador da realidade. Os episódios esportivos, típicos à sociedade de

moderna, comprovam essa tendência: ao início do jogo, uma segunda realidade,

regida por outro conjunto de condições, se faz percebida ao espectador – e ao

jogador –; a realidade da vida cotidiana aparece como realidade primeira, embora

não haja de fato diferenciação de realidades – por isso falar em duplicação, ou

sobreposição de aspectos da realidade na realidade mesma, que é uma só (o

entretenimento pode ser caracteristicamente ficcional, mas nunca será irreal). O

entretenimento veiculado pelos meios de comunicação – escorado no sistema da arte

–, no entanto, vai além. Embora exija ao espectador um conhecimento pré-adquirido

para aplicar o sistema de códigos de realidade, não há, como no jogo, apenas um

conjunto de regras estáticas que, por meio de um consenso, substitui, por um breve

período de tempo, outro de vigência mais presente; há, ainda, um suporte mais

facilmente intuído, tal como as páginas do livro, os sons e a imagem da televisão. A

situação de jogo, ao contrário do produto cultural ficcional, exige do espectador e do

participante o saber das regras, não da conjuntura de uma realidade mais ou menos

semelhante à vigente. “Ele [o entretenimento] vive de surpresas produzidas por ele

mesmo, de tensões que ele mesmo constrói, e é precisamente esse fechamento

fictício a estrutura que permite distinguir a realidade real da realidade ficcional,

assim como ultrapassar limites de um reino ao outro” (Ibidem: 98). Com isso, essa

realidade ficcional é notadamente mais eficaz para a percepção do limite entre ela e

o tempo cotidiano do que o real publicitário; inserido nele como sustentáculo do

sistema da economia (cada vez mais determinante da interação cotidiana), a

publicidade não parece se antagonizar à realidade real. A justificação ou afirmação

do estilo de vida e da rotina de consumo é feita mais energeticamente mesmo nos

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mais fantasiosos enredos ficcionais, por oferecerem ao espectador personagens e

estruturas de vida obrigatoriamente mais coerentes a si mesmos e com o fado

narrativo – isso porque a realidade ficcional tem um sentido unificador inerente a

ela, ausente à cotidiana –: “Aquilo de que os românticos inutilmente tinham

saudade, de uma ‘nova mitologia’, é conseguido pelas formas de entretenimento dos

meios de comunicação.” (Ibidem: 103); ao permitir a afirmação da realidade real re-

presentando-a sinteticamente, o entretenimento possibilita também a simultaneidade

de atitudes auto-referenciais e hetero-referenciais – em outras palavras, identifica o

indivíduo à realidade real, de um lado por estruturar fronteiras entre ela (tempo de

enfado) e a ficcional (tempo de desenfado), e, de outro, por propor o entendimento

de vida enquanto um projeto coerente com a realidade (como se nota na construção

de personagens de uma telenovela).

(c) As notícias e reportagens conservam o mesmo elemento imperativo de renovação do

entretenimento, porém, com a exigência de realidade mais próxima à publicidade:

enquanto de um lado demanda atualização constante da realidade real, de outro só

pode fazê-lo mediante a atribuição de extrema coerência a ela; ou seja, a

comunicação noticiosa deixou de fazer referência ao acontecimento em si mesmo e

passou, sendo feita com regularidade, a se auto-sustentar; em resumo, noticiar a

realidade procura nada mais do que reduzir a inerente complexidade sistêmica –

aliás, é por essa razão que a descrição noticiosa de um crime, por exemplo, sempre

irá atribuir a violação ao agente, e com isso ignorará por completo os contextos de

ação determinantes – tendo em vista que os últimos são tão enredados e complexos

a ponto de quaisquer tentativas de caracterização relativas a esse domínio se

mostrarem impossíveis. Os critérios de seleção da informação – ou de construção da

realidade – corroboram essa condição; há o intento não apenas de difundir o novo e

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o inusitado, mas também de explicá-lo, de comentá-lo, absorvendo, no sentido de

anular, todos os seus elementos de incoerência. Luhmann fala dos aspectos de

surpresa, relevância local, pessoalidade, atualidade e, em especial, de violação da

norma: quando “se noticiam as transgressões (e transgressões apropriadamente

selecionadas, como casos isolados), isso reforça, por um lado, a indignação e, assim,

de forma indireta, a própria norma [...]” (Ibidem: 61). É isso que sustenta a tese de

que apenas o sistema da comunicação atribui sentido aos fatos, entendidos,

evidentemente, em conjunto, já que, conforme frisado, tomá-los especificamente vai

contra o intuito de ser desse sistema.

Deve-se ter claro que essa tripartição das áreas programáticas é absolutamente

contingente (o autor chegou a ela de maneira unicamente “intuitiva”), está longe de ser

estática, e que seus componentes não podem ser entendidos em plena distinção – antes,

serão quase sempre encontrados entrecruzados. Não raro encontraremos informações

publicitárias mascaradas de informações pretensamente factuais, propagadas, que não

apenas podem entreter mas que também são feitas com esse intuito, e, ainda, descrições

consideradas puramente objetivas da realidade cujo valor vai além do noticioso e

costumam funcionar como um adendo de distração ao receptor. Não obstante, embora

haja essa permutação, elimina-se a possibilidade de confusão, que sem dúvida

implicaria afastamento do espectador, a quem cada setor é obrigatoriamente entendido

como tal, isto é, separado dos outros. Novamente, o interesse em manter essa distinção é

reproduzir coerência:

em todas as operações do sistema social, quer dizer, em todas as comunicações [...][,] ajuda no controle ininterrupto de consciência, olhando de relance o mundo conhecido e excluindo como improváveis as informações muito ousadas [...]. As referências diretas às informações transmitidas podem variar e referirem-se principalmente às notícias atuais, mas na produção de uma latente cultura cotidiana e na contínua reprodução da recursividade do comunicar social os setores da programação trabalham juntos e regam, por assim dizer, o mesmo canteiro, do qual, conforme as necessidades, podem-se fazer colheitas (Ibidem: 114).

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3.2. A unilateralidade do conceito de sistema social e pressupostos para uma apropriação da teoria sistêmica da comunicação

Luhmann, embora sem abandonar em nenhum momento a convicção referente ao

domínio unilateral da esfera sistêmica, entende, de maneira paradoxal a dinâmica

comunicação-cultura: a realidade dos meios de comunicação e a cultura se

confundiriam. Luhmann, assim, ao contrário de Habermas, totaliza o campo de

operação sistêmico a ponto de englobar todos os domínios de troca simbólica;

interações tal como entendidas na perspectiva habermaseana são tomadas como

observações intersistêmicas. Justamente por fazer da sociedade uma composição tão-

somente de sistemas variados e diferenciados, consegue-se, mas apenas por definição,

resolver a problemática da posição assumida pelos meios de comunicação dentro da

realidade social. Em Luhmann, a comunicação mediada pela técnica oferece reprodução

simbólica e construção/partilha de um saber de fundo ao mesmo tempo em que efetua

integração e coordenação sistêmica.

A rigor, entretanto, só é possível, nesse caso, resolver o tema do estatuto dos

meios de comunicação conceitualmente. Considera-se um sistema social; dentro dele,

têm-se vários outros: o político, o econômico – apenas para citar dois já trabalhados –, o

da comunicação. Internamente a cada um, repetidas diferenciações trazem novos

campos de operação (quanto ao último, podemos citar o fechamento e a auto-

fortificação dos subsistemas da publicidade, do entretenimento, e o noticioso). A

seleção daquilo que é veiculado fundamenta o domínio de partilha cultural, e nesse

sentido a reprodução simbólica é mediada por aparato técnico. O fato é que isso só pode

ser possível sendo radicalmente unilateral ao aplicar e construir o conceito de sociedade;

considerando-a sistema, tudo que ela abriga referenda, obrigatoriamente, a supressão de

esquemas de troca operativamente não-sistêmicos, isto é, basta levar sociedade à

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63

categoria de sistema para se automatizar reprodução simbólica sem que seja sequer

necessária a fundamentação teórica da práxis cultural.

Entretanto, Luhmann apresenta pontos importantes para a caracterização

do aspecto sistêmico dos meios de comunicação modernos: é de extrema pertinência,

em primeiro lugar, o papel da técnica para a mediação das estruturas de suporte dos

meios de comunicação, de maneira análoga ao que ocorre com os sistemas da economia

(em relação ao dinheiro) e da política (poder) – isso já bastaria para afirmar seu

elemento natural ou mesmo sua essência sistêmica –, e, em segundo lugar, a estrutura

tripartite que compõe esse sistema – apesar de Luhmann insistir na ausência de sua

determinação rigorosa, afirmando ter chegado a ela “intuitivamente”. Dessa forma,

podemos falar de um subsistema (na conotação atribuída a Weber) da comunicação sem

a necessidade de ligá-lo à teoria dos sistemas: enquanto publicidade e entretenimento

respondem com a reprodução material da sociedade na medida em que tornam passível

de tematização o sistema (ou subsistema) da economia no mundo da práxis cotidiana, o

campo da produção da notícia, apesar de também efetuá-lo – em grau embora menos

explícito que a publicidade e mais implícito que o entretenimento –, é reconhecido por

fazer o mesmo ao sistema da política e das normas; o que está sempre presente, em

ambos os casos, por se tratar justamente de construções no interior do sistema da

comunicação, é a verbalização da esfera sistêmica.

3.3. O sistema da comunicação como integrador intersistêmico e origem de reificação da realidade social.

Não há dúvidas quanto ao papel da publicidade dentro do mecanismo da economia. Seu

advento é concomitante ao início da produção industrial moderna. A publicidade

familiarizou a práxis do consumo e a inseriu definitivamente ao campo das trocas

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64

simbólicas. Nesse sentido, caberia indagar sobre o real elemento fundador do sistema da

comunicação, afinal, o sistema da economia como tal entendido – um sistema moderno

– dependeu em larga medida, para se firmar, do tornar-público da produção

possibilitado pelos meios de comunicação; além disso, os próprios provedores de

comunicação, sejam eles noticiosos, de publicidade ou de entretenimento, são eles

mesmos empresas, o que de fato nos persuade a ir além da percepção de Weber – que

não viveu para assistir sequer à popularização do rádio – e instituir o empreendimento

capitalista como núcleo não apenas do sistema econômico, mas também do da

comunicação.

3.3.1. Entre economia e política: a funcionalidade inter-referencial dos meios de comunicação.

Os media dinheiro e técnica, considerados, respectivamente, à economia

moderna e ao sistema da comunicação, talvez não percam suas especificidades.

Entretanto, não se pode negar que o desenvolvimento tecnológico conserva junto ao

acúmulo e produção de capital uma relação necessária – de maneira que, mais

recentemente, seria mesmo possível afirmar uma espécie de simbiose entre ambos. A

diferença está em que, embora tanto a empresa de comunicação quanto os anunciantes

tenham se estabelecido como necessários à reprodução desse sistema, lhe é imperativo,

conforme indicado, o tornar-público, e para tanto trabalha, antes, a técnica mesma.

A crítica de Adorno e Horkheimer referente à indústria cultural caminha no

mesmo sentido de ligar os mecanismos auto-regulados da comunicação e o econômico,

alertando em especial para o verter-se da cultura em mercadoria, o que teria implicado a

ela, inclusive, assumir o atributo de entretenimento10

10 Cf. item 1.2.2, neste trabalho.

. A rigor, não se trata apenas de

frisar como a produção de cultura para tal fim afirma-se qual atividade econômica, mas

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65

também de tornar claro sua eficácia enquanto apaziguador de possíveis conflitos nas

trocas internas ao subsistema econômico. Em outras palavras, também atravessa o

entretenimento a simbiose, compreendida pelos autores, entre força produtiva e meios

de produção; apresentando-se como Ausgang diária e habitual do cotidiano

predominantemente produtivo, a cultura revertida em entretenimento – o amor

transformado em romance, a felicidade, em diversão – abandona quaisquer estatutos

antitéticos ao esquema de vida orientado à produção em larga escala tal como

inaugurado pela sociedade burguesa, e passa a corroborá-lo. Os fundamentos dessa

análise guardam, por sinal, certas semelhanças com a base conceitual elaborada por

Habermas em Técnica e Ciência como Ideologia, a qual estabelece a fronteira entre os

contextos de interação e de trabalho – como visto, primeiro passo para sua noção de

sociedade processada na dinâmica entre mundo da vida e sistema. O fato é que mesmo

discussões recentes a respeito da viabilidade de se instituir democracias participativas

não podem ignorar a realidade de que o cotidiano de grande parte dos cidadãos

supostamente capacitados para efetivá-la ocorre em um domínio de ação alheio ao da

decisão política – também razão pela qual a reificação dessa esfera tenha dado origem a

um contingente significativo de auto-declarados “apolíticos”.

É notável como o medium poder, característico ao sistema da política, também

pode ser facilmente identificado ao sistema da comunicação. Se de um lado governantes

não raro utilizaram esse último conjunto técnico, em especial no início do século XX –

época de seu surgimento – a fim de estabelecer um tipo de relação favorável com os

seus governados – e em muitos casos com bastante sucesso –, de outro, sabe-se que os

detentores privados dos meios sempre fizeram valer, em maior ou menor grau, alguma

influência no interior da estrutura sistêmica da política. Enquanto a área programática

da publicidade (tratando-se, aqui, exclusivamente do tornar-público de mercadorias, não

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66

se referindo à propaganda política) tenha talvez se mantido alheia a esse tipo de influxo

intersistêmico, em menor grau o entretenimento (cuja eficácia está em exigir sempre

referenciais externos a ele próprio, os quais entretanto não excluem, como no caso do

humor, alusões ao quadro político vigente em uma comunidade de falantes), mas em

larga medida as notícias e reportagens contribuem para a realização da inter-referência.

Quanto às últimas, seu privilégio é o tratar específico com a realidade social o qual,

dentro do campo sistêmico da comunicação, mais se aproxima da realidade real no

sentido de pretender apresentar os fatos sociais objetivamente, algo buscado também

desde o começo do século XX, época em que uma linguagem voltada para tal fim

começou a se difundir pelas redações de jornal.

3.3.2. A linguagem noticiosa moderna: objetivação da realidade e redução da complexidade.

Referindo-se à objetividade característica do noticiar moderno, é costume

relacioná-la à abordagem direta em relação a algum fato, esquecendo-se, porém, de que

dela não depende uma atitude objetiva frente ao acontecimento – no que reside o olhar

do jornalista, atento sempre ao noticiável imediato –, mas, antes, de descrevê-lo

mediante uma linguagem que pretenda a descrição mais universalmente apreensível.

Junto com a idéia de “pirâmide invertida”, o lead constitui o principal

instrumento já desenvolvido dentro do sistema da comunicação – especificamente nessa

área programática de notícias e reportagens – para a reificação da realidade social.

Enquanto a primeira consiste “em um relato que prioriza não a seqüência cronológica

dos fatos, mas [que] escala em ordem decrescente os elementos mais importantes [...]

em uma montagem que os hierarquiza de modo a apresentar inicialmente os mais

atraentes [...]” (Pena, 2005: 48), o segundo “nada mais é do que o relato sintético do

acontecimento logo no começo do texto, respondendo às perguntas básicas do leitor: o

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quê, quem, como, onde, quando e por quê” (Ibidem: 42). A histórica mudança do

paradigma de linguagem noticiosa ocorrida em meados do século XX em várias

redações ao redor do globo – mudança, podemos dizer, de um paradigma argumentativo

para outro descritivo –, buscando tomar aspectos noticiosos da realidade social tal como

objetos redutíveis, buscando separá-la de quaisquer intuições subjetivas, foi

extremamente necessário para o desenvolvimento sistêmico da comunicação:

A própria técnica funcionalista, herdeira do positivismo, que impõe a produção do lead e da pirâmide invertida de maneira direta, objetiva e absolutamente imparcial, acaba estruturando um modelo de newsmaking radicalmente diferente do processo de produção jornalística clássica. Agora, o modo de produção não tem impressões digitais. O autor, a testemunha do fato, o narrador, isto é, o jornalista, deve ficar o mais distante possível da informação (Marshall, 2003: 34).

À exceção do atributo “imparcial”, todos os aspectos apontados por Marshall de

fato revelam como a produção de notícias pós-dobra de paradigma conserva, ao

contrário dos outros subsistemas da comunicação, a pretensão de espelhar a realidade

social – mesmo estando essa reflexividade em convergência paradoxal com a

necessidade de seleção e hierarquização das notícias. O próprio distinguir entre notícia e

opinião – que possibilitou também a diferenciação das figuras do repórter e do colunista

–, ao reservar à última a singularidade da apreensão do acontecimento perdida com o

imperativo de exposição objetiva do fato, comprova que, se aos veículos da notícia

tornou-se necessário – e segundo motivos diversos – guardar espaços para apreciações

subjetivas, ainda se encontra explícita a tentativa de se compartilhar uma realidade

última; em outras palavras, tencionar ao objetivismo na difusão de informações

referentes à sociedade implica a mesma reificação pretendida pelas ciências da

natureza. Dessa forma, é simplesmente insustentável o argumento de Pena, o qual

defende a separação não entre os tratos subjetivos e objetivos da realidade, oposição a

seu ver equivocada (por conta da impossibilidade do último), mas entre um método para

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a produção da notícia. Pena defende que a objetividade “surge porque há uma percepção

de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um

indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, crenças, interesses pessoais ou

organizacionais e outras idiossincrasias.” E sugere: “como estas não deixarão de existir,

vamos tratar de amenizar sua influência no relato dos acontecimentos. Vamos criar uma

metodologia de trabalho” (Pena, 2005: 50).

Não podemos negar o privilégio da perspectiva “subjetiva” na construção da

realidade – que, a rigor, seria antes intersubjetiva –, no entanto, quando o autor propõe,

pouco antes, evocando diversos outros teóricos que criticam a insubsistente “dicotomia

simplificadora entre objetividade e subjetividade”, um “método que assegure algum

rigor científico” [grifo nosso] ao reportar os fatos (Ibidem: 50), Pena não consegue se

desfazer da dualidade que busca rechaçar; isso porque, primeiro, promove a objetivação

do método, entendido, portanto, como instrumento análogo ao científico, o que implica

uma abordagem da realidade social objetiva, e, segundo, em conseqüência, exterioriza-o

com relação ao jornalista. O autor também defende que o recurso a declarações na

construção da notícia é prova da tentativa de inserir, indo contra a objetificação,

apreciações subjetivas de indivíduos envolvidos no fato, e esquece-se que o discurso

direto, aplicado nesse contexto, busca, antes, encerrar a ação de sujeitos como agentes

de uma realidade social sem levar em consideração a complexidade de fatores

determinantes e a intenção que levaram o afirmante a declará-lo; com isso, tornar o

indivíduo participante do acontecimento acaba por objetivar o sujeito, ao invés de evitar

a reificação do fato – vale lembrar que justamente na tentativa de se afirmar

objetividade ao argumento fundamenta-se o recurso a citações, o discurso de autoridade.

Sem dúvida, é impossível a verbalização de um acontecimento sem a ancoragem

de uma perspectiva. É claro que o lead fracassa em cristalizar um acontecimento a fim

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de apresentá-lo publicamente; todas as – poucas – defesas da objetividade da linguagem

jornalística sempre encontram obstáculo insuperável na evidência de exercício de

subjetividade (ou melhor, de intersubjetividade) que é a produção da notícia. Trata-se,

por sinal, para muitos desses profissionais, de um problema já superado: a realidade

social não é passível de objetivação. Vimos que, ao defender esse argumento, Pena não

comete equívocos, entretanto, ao propor um método para garantir o mínimo de

objetividade, revela um impasse. A rigor, buscar objetivar uma realidade social

irredutível é o pressuposto da área programática de notícias e reportagens já há

algumas décadas. A redução, fundamentada em um uso específico de linguagem, torna

a realidade não apenas mais facilmente acessível, mas também familiar. Em um plano

mais elevado, a divisão da realidade social em editorias, e, em outro, a hierarquização

de determinados elementos envolvidos na descrição, estimulam a falsa percepção de um

mundo de acontecimentos mais ou menos estático, coerente e, portanto, subsumível.

Essa possibilidade de estabilidade é a própria garantia de reprodução do noticiar, seja

semanal, diária, ou mesmo – com as novas tecnologias – em círculos horários. Assim, o

método sobre o qual fala Pena não é tem apenas a finalidade de especificar uma

linguagem para a objetivação, mas a garantia de funcionamento de toda essa estrutura

subsistêmica (e, em algum grau, do sistema da comunicação ele mesmo). O fato é que a

institucionalização dos meios de comunicação em empresas capitalistas só se tornou

efetiva com essa reprodutibilidade, isto é, com o modelo de produção redutor; é por isso

que costuma-se afirmar a mercantilização da notícia, radicalizada com a abordagem

objetiva; ao abandonar o noticiar clássico, a empresa jornalística conseguiu, sem

grandes dificuldades, se firmar como tal e estabelecer seu produto: o acontecimento

social cristalizado.

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Não se trata, portanto, de negar as pretensões reificantes da exposição

jornalística, mas, antes, a possibilidade de realizá-las de fato. No que a realidade social é

objetivada pelo sistema da comunicação através – tão-somente – da linguagem noticiosa

moderna, o entendimento de mundo por parte de quem se encontra imerso nele acaba

por acompanhar a reificação. Diante da impossibilidade de se ter experiência do

mundo social ele mesmo como fenômeno, o uso da linguagem voltado para o trato

objetivo desse mesmo ambiente pode fazer surgir no receptor, além da tendência a

aceitar objetivismos em geral (como cientificismos diversos), a disposição para

naturalizar a abordagem objetiva. O leitor, como qualquer consumidor, não toma

conhecimento do processo de produção da notícia, que a ele surge como bem de

consumo regular, e, ainda, com o agravante de pretender ser esse consumo a própria

janela para a experiência objetiva da realidade social. Embora muitos espectadores de

fato reconheçam a falibilidade dessa pretensão, sua possibilidade jamais é abandonada.

3.4. Da orientação estratégica à formação do saber de fundo

A orientação ao entendimento, como constituinte da comunicação mediada pela técnica

– ou tomar o entendimento como telos e coordenador das interações internas ao sistema

da comunicação – sempre será impedida em especial por conta da natureza da

integração proposta pelos meios sistêmicos. Em qualquer uma das três áreas

programáticas, o tornar-público está carregado antes de interesses perlocucionários do

que ilocucionáros. Os seguintes fatores nos permitem afirmar o caráter estratégico da

ação quando da comunicação submetida às exigências do reproduzir sistêmico e

material: primeiro, a necessidade, própria da linguagem publicitária – por sinal, aquilo

que mais bem lhe caracteriza –, em fomentar a ilusão aurática com relação a produtos

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que já chegam às prateleiras destituídos de aura, conforme o intuito de tornar a

produção amplamente absorvível; segundo, o aspecto essencial do tipo de reflexão

estimulada pelo entretenimento, a qual, embora de fato exija auto-referência (social ou

intersubjetiva), jamais supera tal limite, o que do contrário implicaria causar

desdobramentos no domínio da práxis; e, por último, a pretensão da linguagem

noticiosa em objetivar acontecimentos, se por um lado determinante para a auto-

afirmação de seu respectivo subsistema de notícias e reportagens (como demonstra o

fortalecimento da empresa jornalística como produtora da mercadoria-notícia), por outro

incorporadora e estimulante do exercício reificador nas trocas internas ao mundo da

vida.

É impossível conceber agir comunicativo sob os imperativos do sistema da

comunicação: as exigências referentes aos êxitos de consumo, do entreter-se e da

objetivação da realidade social (alcançados linguisticamente) permitem antes difusões

do que reproduções simbólicas. Deve-se ter claro essa distinção; o sistema da

comunicação pode tornar públicas estruturas interpretativas, porém, até que sejam

absorvidas pelo pano de fundo do mundo da vida é necessária a mediação por agires

comunicativos. Nesse sentido, o campo sistêmico da comunicação se caracteriza tanto

pela verbalização estratégica da realidade social, eximindo-se de orientá-la ao

entendimento, quanto por tornar essa mesma verbalização acessível mediante aparatos

técnicos; a incorporação crescente desse primeiro tipo específico de referir-se ao

mundo, levada a cabo pela vantagem de reprodução dos meios modernos de difusão,

não apenas pode ser considerada fonte de empobrecimento do mundo da vida (basta

lembrar como objetivar a realidade prejudica em larga medida a reconstrução

intersubjetiva dela), mas também abre possibilidade para que acoplamentos mais ou

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menos evidentes de contextos de ação do mundo da vida pelo sistema não sejam

percebidos pelos atores, e, em muitos casos, mesmo corroborados por eles.

Entretanto, não podemos negar algumas vantagens em substituir o entendimento

como coordenador de ações; já falamos sobre elas quando damos relevo à importância

do dinheiro e do poder como media para o desenvolvimento da sociedade moderna. De

forma bastante semelhante, certas propagandas (campanhas de conscientização

ambiental, por exemplo), distrações (programas de entrevistas e humor satírico) e

notícias (como no caso de denúncias de corrupção e de retração no orçamento de setores

do desenvolvimento civil) podem sem dúvida abrir para o enriquecimento da

experiência no mundo da vida. Entretanto, a origem sistêmica e a intenção estratégica,

mesmo nesse contexto, não se excluem; nota-se que, embora se trate de uma fonte

indubitável de recursos simbólicos, fornecendo tanto a possibilidade de ampliar o

alcance de compartilhamento dos últimos quanto elementos para a composição do

conhecimento de fundo, o sistema da comunicação, organizado como tal, alia-se, em

maior grau, ao contexto da reprodução material – unindo integração estratégica (como

orientação) à reificação da realidade social (por meio de uma linguagem voltada para

tal fim).

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Conclusão

A estrutura sistêmica dos meios de comunicação mantém dinâmica constitutiva não

apenas com a economia capitalista moderna. O sistema político, nucleado pela

administração pública racional, encerraria, a nosso ver, junto ao sistema da

comunicação – e à instituição jurídica, como defende Habermas – aquilo que, para uma

sociologia da dinâmica entre sistema e mundo da vida, podemos apontar como conjunto

dos mecanismos auto-regulados, isto é, o sistema mesmo. Caracterizado (i) pela

organização burocrático-empresarial (a empresa de comunicação), (ii) pelo medium

técnico-difusor, e (iii) pela pretensão, refletida em certo uso da linguagem, de objetivar

a realidade social, os meios de comunicação e a ordem de seu funcionamento de fato

indicam se tratar de uma estruturação sistêmica. Como fizemos aqui, não raro costuma-se inserir o sistema da comunicação ao

campo sistêmico da economia, muitas vezes considerando-o apenas sustentáculo

estrutural dela, como se hoje a comunicação servisse a ele de maneira semelhante à que

fazia aos governos totalitários. A rigor, entretanto, trata-se de um sistema auto-

diferenciado com relação aos outros. Seus diferenciais são as possibilidades que oferece

em realizar integração entre os sistemas (ou subsistemas) – talvez justamente o que

acaba permitindo tais confusões – e verbalizar a esfera sistêmica (também

transformando em constelação temática esse conjunto); enquanto no primeiro caso ele

age dentro do domínio dos mecanismos auto-regulados, no último proporciona recursos

para trocas internas ao campo das interações. Porém, como frisamos, não se pode negar

a preeminência do primeiro aspecto no campo de ação formado pelos meios de

comunicação; afinal, o levantar e difundir recursos para o mundo da vida por meio da

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técnica só pôde ser levado a cabo na medida em que se autonomizou o funcionamento

dessa estrutura de suporte.

Como vimos, para a diferenciação dos meios de comunicação houve a

necessidade de o sistema da economia – e em menor grau o da política – possibilitar

fazê-lo. O advento do aparato técnico determinante para a coordenação comunicativa

em questão é fruto direto da aplicabilidade do progresso da economia. Contudo, o

sistema da comunicação não deve sua maneira de operar à ordem econômica já

instituída, como se fosse uma espécie de derivação ainda incorporada a ela – como, de

maneira geral, tenta sustentar Marshall (2003). Entender seu estruturamento como

relativo a determinantes econômicos pode levantar muitos equívocos; um deles,

conforme indicado, seria a negação da autonomia do sistema da comunicação como

regulador de operações próprias. Muitos analistas, por exemplo, acabam se fixando em

um aspecto mercantil da área programática de notícias e reportagens e se esquecem de

sua necessidade reificadora, deixando de lado ser o objetivar da realidade social a

partir de uma estratégica lingüística um pressuposto de qualquer mercantização da

comunicação – em outras palavras, o fato é que, para se verter em mercadoria, a notícia

teve antes que assumir-se como objeto.

É interessante notar que, diferente dos outros sistemas (ou subsistemas), o da

comunicação, embora também conte com um medium não-lingüístico (a técnica), seu

elemento mediador jamais está totalmente desligado de uma mensagem ou de uma

linguagem.

A técnica, para o sistema econômico, serve especialmente à maximização da

produção; para o político, à redução do dispêndio de recursos e de tempo em

necessidades burocráticas. Nota-se que, em ambos os casos, aparatos técnicos efetuam

trocas, transformações e procedimentos que dispensam a linguagem: produtos são

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montados e reproduzidos, débitos são rapidamente computados, inúmeras operações de

compra de títulos podem ser efetuadas simultaneamente; a vigilância de fronteira e

intra-urbana pode ser ampliada e tornada constante, o poderio militar é aumentado (o

que sem dúvida permite ao detentor ser mais influente em campos de decisão

internacionais), e, certos cargos públicos, extintos – isentando pessoas de incumbências

puramente instrumentais. Embora a técnica seja de extrema importância para a ordem

sistêmica, especificamente no que tange a esses dois campos da reprodução material da

sociedade, deve-se frisar que em qualquer uma dessas ações o elemento mediador

continua sendo outro, seja dinheiro ou poder.

Já quando coordenadora de ações dentro da esfera sistêmica da comunicação, a

técnica visa a ampliar o alcance de linguagens (na contemporaneidade, a linguagem

publicitária, a do entretenimento ou a noticiosa), sendo esse o êxito ao qual se orienta.

Nesse campo, a técnica é suporte exclusivo e imperativo da linguagem, a qual, por sua

vez, justifica o uso da primeira. Entretanto, apesar de estarem unidos em ato formando a

comunicação típica à estrutura sistêmica da comunicação, linguagem e técnica devem

ser tomadas à parte sempre que o sistema ao qual se identificam for analisado.

Não por acaso houve críticas que buscaram mostrar como a linguagem do

sistema da comunicação, ao entrar em dinâmica com a técnica, passou servir também de

suporte a última. Relembrando Frankfurt: “O cinema, o rádio e as revistas constituem

um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. Até mesmo

manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor ao ritmo

do aço” (Adorno & Horkheimer, 1985: 113). Essa segunda via de sustentação – da

linguagem promovendo a técnica –, entretanto, como se mostra evidente, não chega a

ser tão essencial para o sistema da comunicação como seu outro viés.

* * *

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76

Ao buscarmos estabelecer o tipo de abertura proporcionada pelos meios de

comunicação a fim de posicioná-los, no interior da sociedade, seja como componente do

sistema ou fomentador de reprodução simbólica, não há como não partir de

pressupostos mais condizentes com a herança weberiana (tal como elaborada por

Habermas) do que com o entendimento de sociedade apresentado por Luhmann; afinal,

do contrário seria impossível o próprio levantamento do problema. Luhmann sequer

considera limites à esfera sistêmica da sociedade, e não vê diferenças operativas entre

reprodução simbólica e reprodução material: a mediação lingüística de ações, a seu ver,

não difere substancialmente de não-lingüística – antagonismo correlato, na sua teoria,

seria o entre informação/não-informação, o qual, conceitualmente, de fato poderia

abarcar uma análise sobre ambas as esferas do mundo da vida e do sistema, mas não

possibilitaria caracterizá-las em suas especificidades. Uma construção teórica feita por

esse autor, entretanto, se mostra de fato pertinente: a composição tripartite do sistema da

comunicação em áreas programáticas da publicidade, do entretenimento e de notícias e

reportagens – em cada uma delas se manifesta com bastante evidência a racionalidade

dos meios de comunicação.

A partir de uma leitura da estrutura de análise social de Weber foi possível a

Habermas, ao contrário do que ocorre em Luhmann, limitar o campo de ação da esfera

sistêmica e, ao mesmo tempo, fundamentar a aplicação empírica do conceito

husserliano de mundo da vida. O Lebenswelt racionalizado, oriundo da modernização

cultural, fez surgir, por sua vez – conforme sua crescente complexidade –, mecanismos

auto-regulados de ação as quais, nesse âmbito, passaram a dispensar mediação

lingüística; nisso se fundamenta histórico-socialmente a diferenciação da esfera

sistêmica, processo relativo, enfim, a outro tipo de modernização, essa chamada social.

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A mediação não-lingüística da ação e sua relação integrativa com os sistemas da

economia e da política são fatores que nos persuadiram a entrever os meios de

comunicação constituindo um sistema. Além disso, o sistema da comunicação só pôde

ser imaginado em um contexto de vida no qual a modernização social esteja de fato

avançada. Não é difícil, portanto, argumentar a favor da mediação técnica para

especificar a comunicação tal como é instituída dentro do sistema da comunicação; mas,

para se alcançar a amplitude de comunicação, houve a necessidade não apenas do

suporte difusor, mas também a necessidade mesma em ampliar a comunicação, isto é,

teve-se de contar com um público produtor extremamente amplo ao qual essa

comunicação fosse destinada (imperativo esse apenas das sociedades em alto grau de

racionalização social).

Apesar de extraída da teoria dos sistemas de Luhmann – unilateral com relação à

ação social –, a noção de setor programático nos foi útil para mostrar como o sistema da

comunicação pode ser o grande ator na dinâmica entre sistema e mundo da vida.

Publicidade, entretenimento, e notícias e reportagens só logram acesso ao mundo da

vida como linguagem. Entretanto, enquanto formatos da comunicação, disponibilizam

mensagens cuja intenção não é, inicialmente, possibilitar entendimento sobre algo no

mundo, mas sim efeitos perlocucionários – seja a venda de um produto, a distração de

uma rotina enfadonha, ou a objetivação da realidade social –, e com o agravante de não

torná-lo explícito: a campanha publicitária de sucesso é aquela que menos transmite a

intenção de persuadir à compra; o entretenimento eficaz pode criticar, mas está longe de

levar seu espectador a tomar atitudes frente aos fundamentos da ordem de vida em que

se insere; por último, o texto jornalístico ideal é aquele que sintetiza aspectos do

acontecimento para o consumo de um público-alvo também ideal (ora “sem tempo”, ora

“politizado”; ora “trabalhador”, ora “culto”, etc.), fazendo crer ser irrelevante a

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complexidade determinante do fato. A linguagem, em cada um desses subsistemas,

embora não seja a mesma, tem a idêntica tarefa de tornar implícita a orientação

estratégica (dessa forma, latente); fazendo-o, conta com mais chances de fornecer

composição para o saber de fundo da sociedade (por exemplo, de maneira que novelas

fomentem modas; que campanhas publicitárias e filmes de ficção atribuam status a

certos papéis sociais; e que, por meio da condenação de desvios, o noticiário contribua

para manter certa normatividade).

Duas frentes de análise se abrem: a primeira toma o sistema de comunicação, na

terminologia habermaseana, como instrumento de acoplamento e colonização do mundo

da vida por parte do sistema; a segunda entende-os como fonte simbólica legítima, não

obstante o reconhecimento da orientação estratégica. Entretanto – e isso de fato dá

alguma vantagem à primeira –, de nossa análise parece ter ficado evidente como é a

racionalidade funcionalista a que deu origem a essa configuração da comunicação

provida sistemicamente. Basta considerar a orientação estratégica, o medium técnica e

que o surgimento dos meios de comunicação modernos foi condicionado pelo

desenvolvimento da modernização social para notar sua essência sistêmico-funcional –

sem se esquecer, entretanto, que o sistema da comunicação de fato permite o levante de

recursos simbólicos para atores no mundo da vida.

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