mÚsica e poder imperial: nero, adriano e juliano

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141 PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 25-2: 141-166, 2019. MÚSICA E PODER IMPERIAL: NERO, ADRIANO E JULIANO ** Fábio Vergara Cerqueira ** Resumo: O estudo da música no período imperial indica que alguns im- peradores tiveram uma relação diferenciada com a cultura musical, e em especial com o que seria a música erudita da época, a música de tradição grega. Abordaremos mais especificamente três imperadores, Nero, Adriano e Juliano, apesar de o fenômeno não se limitar a estes. Além de eles próprios terem recebido educação musical e terem condições de realizar performance musical, o que não era comum na tradição romana, são governantes identi- ficados com o legado cultural grego. Assim, a relação destes com a música está amarrada ao filo-helenismo que embasa o projeto de poder imperial. O apreço destes pela música foi muitas vezes tratado, na historiografia antiga, com argumentos variados, como aspecto negativo. Entendemos que a relação deles com a música está na base do tipo de legitimidade que buscam como governantes e da ideia de Império que os inspira. Ao mesmo tempo, por meio de suas ações, desempenham papel muito relevante na disseminação da música grega erudita em seu tempo, assim contribuindo para a preservação da memória desta para a posteridade. Mas o que fica, aos olhos dos modernos, é a imagem estereotipada e preconceituosa de um Nero sanguinário tocando sua lira enquanto Roma arde em chamas, gerando uma imagem distorcida do papel da música no âmago do projeto de poder desses imperadores. Palavras-chave: música; Império romano; Nero; Adriano; Juliano. * Recebido em: 28/01/2019 e aprovado em: 23/04/2019. ** Professor titular do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Arqueologia Clássica. Bolsista Produtividade CNPq – PQ-1D – 2019-2022 (Arqueologia e iconografia da música na Magna Grécia). Pesquisador Fundação Humboldt. Pesquisador associado ao PPGHC-UFRJ – Pós-doutorado institucional. Pesquisa apoiada por CNPq, Capes e Fundação Humboldt. [email protected].

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MÚSICA E PODER IMPERIAL: NERO, ADRIANO E JULIANO
**
Fábio Vergara Cerqueira **
Resumo: O estudo da música no período imperial indica que alguns im- peradores tiveram uma relação diferenciada com a cultura musical, e em especial com o que seria a música erudita da época, a música de tradição grega. Abordaremos mais especificamente três imperadores, Nero, Adriano e Juliano, apesar de o fenômeno não se limitar a estes. Além de eles próprios terem recebido educação musical e terem condições de realizar performance musical, o que não era comum na tradição romana, são governantes identi- ficados com o legado cultural grego. Assim, a relação destes com a música está amarrada ao filo-helenismo que embasa o projeto de poder imperial. O apreço destes pela música foi muitas vezes tratado, na historiografia antiga, com argumentos variados, como aspecto negativo. Entendemos que a relação deles com a música está na base do tipo de legitimidade que buscam como governantes e da ideia de Império que os inspira. Ao mesmo tempo, por meio de suas ações, desempenham papel muito relevante na disseminação da música grega erudita em seu tempo, assim contribuindo para a preservação da memória desta para a posteridade. Mas o que fica, aos olhos dos modernos, é a imagem estereotipada e preconceituosa de um Nero sanguinário tocando sua lira enquanto Roma arde em chamas, gerando uma imagem distorcida do papel da música no âmago do projeto de poder desses imperadores.
Palavras-chave: música; Império romano; Nero; Adriano; Juliano.
* Recebido em: 28/01/2019 e aprovado em: 23/04/2019.
** Professor titular do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Arqueologia Clássica. Bolsista Produtividade CNPq – PQ-1D – 2019-2022 (Arqueologia e iconografia da música na Magna Grécia). Pesquisador Fundação Humboldt. Pesquisador associado ao PPGHC-UFRJ – Pós-doutorado institucional. Pesquisa apoiada por CNPq, Capes e Fundação Humboldt. [email protected].
142 PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 25-2: 141-166, 2019.
MUSIC AND IMPERIAL POWER: NERO, HADRIAN AND JULIAN THE APOSTATE
Abstract: The study about the music of the Imperial period points that some emperors had a special relation with the musical culture, namely with the cultivated music of those times, the music considered of Greek tradition. We will deal particularly with three emperors, Nero, Hadrian and Julian the Apostate, although the phaenomenon is not restricted to these emperors. Besides they themselves had been educated in music and had conditions to perform music, what was not common in Roman tradition, they were governors identified with the Greek cultural legacy. Thus, their relation with music was connected to the philo-Hellenism that was in the basis of their project of Empire. Their interest for music was often treated by ancient historians as a negative trait. We understand that their relation with music is in the basis of the kind of legitimacy they sought as rulers, in the basis of the idea of Empire that inspired them. We think as well that, at the same time, thorough their action, they played an important role in disseminating Greek cultivated music throughout the Empire, thus contributing to preserve its memory to posterity. However, what prevails in the moderns’ eyes, is the stereotyped view of a bloody Nero playing the lyre while Rome burns, generating a distorted image of the role of music in the heart of these emperors’ power project.
Key-words: music; Roman Empire; Nero; Hadrian; Julian the Apostate.
Introdução
O estudo da música no período imperial indica que alguns imperadores tiveram uma relação diferenciada com a cultura musical, e em especial com o que seria a música erudita da época, a música de tradição grega. Abor- daremos mais especificamente três imperadores, Nero, Adriano e Juliano, apesar de o fenômeno não se limitar a estes, pois poderíamos lembrar de Vespasiano, Domiciano ou mesmo Heliogábalo. Além de eles próprios te- rem recebido educação musical e terem condições de realizar performance musical, o que não era comum na tradição romana, são governantes identi- ficados com o legado cultural grego. Assim, a relação destes com a música está amarrada ao filo-helenismo que embasa o projeto de poder imperial que sustentam. O apreço destes pela música foi muitas vezes tratado, na historiografia antiga, com argumentos variados, como aspecto negativo. Entendemos que a relação deles com a música está na base do tipo de legiti- midade que buscam como governantes e da ideia de Império que os inspira.
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Ao mesmo tempo, por meio de suas ações, desempenham papel muito rele- vante na disseminação da música grega erudita em seu tempo, assim contri- buindo para a preservação da memória desta para a posteridade. Exemplos disso são os hinos de Mesomedes de Creta, compositor oficial da corte de Adriano, que nos foram legados pela tradição dos manuscritos medie- vais, ou as informações mais antigas que temos do funcionamento do órgão pneumático, que nos são reveladas por uma carta de Juliano. A historiogra- fia antiga, fortemente influenciada pela perspectiva senatorial, passa muitas vezes a percepção de que a ligação de um imperador com a música era vista como algo pernicioso, e alvo de críticas. No entanto, é possível que essa ligação, ao contrário, funcionasse muitas vezes como fonte de popularida- de e admiração. Interessante percebermos que, sete anos após a morte de Nero, Vespasiano prestou grande homenagem ao professor de música de seu antecessor, o citaredo Terpno, presenteando-lhe com 200 mil sestércios (SUETÔNIO. Vespasiano, 19). Mas o que fica, aos olhos dos modernos, é a imagem preconceituosa e estereotipada de um Nero sanguinário tocando sua lira enquanto Roma arde em chamas, gerando uma imagem distorcida do papel da música no âmago do projeto de poder desses imperadores.
Imperadores músicos
A temática do apreço pela música grega no Império nos remete a um sentido político vinculado ao reinado de imperadores como Nero (54 – 68 d.C.), Adriano (117 – 138 d.C.), e, bem depois deles, Juliano (355 – 363 d.C.).
1 Parece que a música tem algo a ver, como mencionaremos mais
adiante, com a missão que esses imperadores se propuseram. À época de Nero e Vespasiano (69 – 79 d.C.), produziram-se muitas
pinturas com a cena de aula de música de Aquiles junto ao centauro Quíron, compondo o programa decorativo de várias residências de Pompeia e Her- culano. A arqueóloga iconografista Annelise Kossatz-Deissmann (1984, p. 54) lembra a relação entre Juliano e a popularidade da cena de aula de música na Antiguidade Tardia.
Nero, aluno do grego Terpno, preparou-se para ser citaredo, a ponto de participar ele mesmo, um imperador, em concursos na Itália e na Hélade. Ao final, teria colocado a música quase acima da administração (SUETÔ- NIO. Nero, 23, 1). Annie Bélis divide sua relação com a música em três fases: a primeira, de aprendizado, vai até 54, ou seja, até o início de seu
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reinado. A segunda fase vai até 64. Foi uma fase de atenta preparação na citaródia, incluindo as primeiras apresentações em público. A terceira ini- cia com seu recital em Nápoles, em 64, e vai até sua morte em 68, quando a música se torna sua preocupação principal, culminando na sua viagem à Gré- cia em 66, quando começa a perder o equilíbrio entre a carreira musical e o governo imperial: seu desejo de sucesso como citaredo ofusca-lhe a lucidez! Mas, antes dessa fase mais transtornada, pode-se identificar que a questão musical permeia seu projeto de governo imperial, como indica a instituição das Nerônias, em 60 d.C., incluindo provas de ginástica, hipismo e música. Durante parte de seu governo, a população não encarou negativamente sua atividade musical, diferentemente do que sugerem seus críticos. Ao final, como afirma Annie Bélis (1989, p. 748), cedeu à mousomania, obstinado por se tornar um periodonikes, um vencedor de todos os certames da temporada. Ele percorre os festivais gregos, desejando a glória nos agones citaródicos. Temerosas, e querendo agradá-lo, as autoridades de várias cidades gregas lhe concedem a coroa de vencedor. Chegou ao ponto de instituir competi- ções musicais em Olímpia, onde a tradição estipulava somente as provas atléticas (SUETÔNIO. Nero, 23, 1; BÉLIS, 1989, p. 755-757). Apesar do azedume das críticas vindas da classe senatorial e da historiografia antiga comprometida com essa visão, buscava obstinadamente a vitória nesses con- cursos, mesmo que precisasse influenciar os resultados (SUETÔNIO. Nero, 23, 3; BÉLIS, 1989, p. 757), para ser reconhecido como o imperador músico, como se aí buscasse sua legitimação. Na visão dele, como afirma Annie Bélis (1989, p. 755), “o Nero-músico fazia crescer a glória do Nero-imperador”.
Vespasiano, sucessor de Nero, mesmo sem o envolvimento do primeiro, não deixou de se dedicar à música, ao menos à sua promoção. Na reinaugu- ração do Teatro de Marcelo, em 75 d.C., deu coroas de ouro e duzentos mil sestércios aos citaredos Terpno e Diodoro, e o dobro ao trágico Apelares (SUETÔNIO. Vespasiano, 19).
Quanto a Adriano, ele se considerava um habilidoso citaredo (História Augusta. Vida de Adriano, 14, 9). Além disso, patrocinou Mesomedes de Creta, apoiou estudos musicais e mantinha intimidade com músicos (His- tória Augusta. Adriano, 16, 10; COMOTTI, 1989, p. 54; POWER, 2010). Transformou Mesomedes em músico da corte, função que manteve duran- te o reinado de Antonino Pio (138-161 d.C.). Do mesmo modo, Juliano dedicou-se à música, interessando-se igualmente pelos conhecimentos mu- sicais em geral. Seu epigrama “Sobre o órgão” (Antologia Palatina, 9, 35)
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é a descrição mais antiga conhecida sobre o órgão pneumático. Conforme testemunho da Epístula 42, sabe-se que estimulou a música no Império, especialmente em Alexandria, valorizando professores de música, como Dióscoros (JULIANO. Epístula 42 Weis = 109 Bidez-Cumont).
Para vislumbramos a singularidade da vinculação desses imperadores à música, é profícuo compreendermos as formas como o mundo imperial a significa.
Considerações a respeito da música no Império
No período imperial romano, a música não terá mais o mesmo grau e tipo de importância que tivera na cultura e educação grega clássica. No entanto, essa mudança não se deveu somente a uma diferença da tradição latina em relação à grega, mas sobretudo a um processo, transcorrido ao longo do período helenístico, de deslocamento do sentido da música no conjunto das manifestações culturais. Os romanos, herdando dos gregos do final do período helenístico o apreço pelo virtuosismo e por espetáculos, desenvolverão o gosto popular pelos “grupos corais imponentes e grandes orquestras, semelhantes àquelas das performances de pantomima, frequen- temente com o reforço dos instrumentos da música militar” (COMOTTI, 1989, p. 53) – segundo Sêneca (Epístula, 84, 10), em alguns casos havia mais cantores num coro que espectadores no teatro. À época do ocaso da República e advento do Império, era comum que virtuosi, fossem eles can- tores ou atores, se tornassem figuras muito admiradas e conhecidas, como no caso de Róscio e Esopo, o primeiro lembrado como cantor de comédia, e o segundo, de tragédia (COMOTTI, 1989, p. 53; CÍCERO. Quintus Ros- cius; Epístulas familiares, 9, 22; QUINTINLIANO. Instituições, 11, 3, 111; MACRÓBIO. Saturnália, 3, 14, 11).
Todavia, como veremos, havia na sociedade romana um grupo intelec- tualizado que valorizava muito a música, de formas distintas daquelas en- contradas entre os gregos. Esse deslocamento do valor atribuído à música pode ser evidenciado na arte funerária, como bem aponta H. I. Marrou, em sua obra Mousikos aner. Étude sur les scènes de la vie intelectuelle figurant sur les monuments funéraires romains (1938). As cenas de música, na arte funerária do período grego clássico, representavam com frequência o de- funto tocando lira ou um vivente levando a lira ao falecido, como conclui M. Delatte (1913, p. 318-322), em seu estudo sobre o assunto. Por sua vez,
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como indica Marrou (1964, p. 154), “a arte funerária romana está longe de ter o mesmo interesse pelo tema da música. Notemos o fato de que ela nun- ca coloca a lira ou o alaúde entre as mãos de um homem: encontrei somente musicistas (femininas)”; em mãos masculinas, a lira aparece somente no âmbito de narrativas mitológicas, como a sobre Aquiles. Predominam as mulheres segurando ou tocando lira: às vezes, como acompanhantes na cena em que ao centro está o defunto masculino; em outras ocasiões uma mulher está representada em seu banquete funerário. Portanto, enquanto os gregos associavam a música à formação do cidadão – estando esta ligação estabelecida desde Homero, que nos apresenta muitos heróis tocando lira –, os romanos, por outro lado, não veem dignidade em associá-la ao ho- mem. Se, para o grego, a posse de conhecimentos musicais moderados é uma demonstração de cultura e status para um cidadão, para o romano do período imperial, diferentemente, entre as classes de boa condição social, tais conhecimentos são recomendados somente a uma mulher. Mesmo que entre os gregos houvesse aqueles que tinham a opinião de que a música era um fator de efeminação, afirmavam isso dentro de uma tradição cultural que conferia a ela um poder educador incomparável. Essa constatação de que a música entre os romanos fosse uma prerrogativa feminina, enquanto demonstração de status e cultura, coloca-nos diante de uma profunda dife- rença cultural em relação ao sentido da música.
Qual o papel, pois, que a música ocupa na cultura intelectual romana? A documentação, tanto escrita quanto iconográfica, indica um interesse mui- to grande entre as classes cultas pela instrução da criança. Esse interesse pode ser a base das representações da fase inicial do ‘ciclo de Aquiles’ na iconografia, em que o jovem herói é representado aprendendo várias artes e conhecimentos nobres com o centauro Quíron – com o qual aprende desde a medicina, passando pela caça e montaria, até a música, o canto e a lira. O que nos chama a atenção é o fato de que o tema que predomina em mais da metade do corpus iconográfico de representações de cenas da educação do herói é a aula de lira com o centauro. Entretanto, na época em que esses ar- tistas romanos representaram o jovem Aquiles com seu professor, a música e a educação musical não desfrutavam mais do mesmo prestígio geral que tiveram entre os gregos na educação da criança.
Cabe lembrar, porém, que, apesar de pouca visibilidade nas fontes, a educação musical de meninos não foi por completo desconhecida dos ro- manos em épocas anteriores. Após a conquista da Grécia, em 146 a.C.,
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uma forte onda de helenização se estabeleceu em Roma, acompanhada da migração de artistas, intelectuais, atores, oradores e músicos gregos. Como destaca G. Comotti (1989, p. 51), nessa época, sob influência grega, rapa- zes e mesmo moças das classes mais elevadas aprendiam música, momento em que professores de música e musicistas usufruíram de prestígio (MA- CRÓBIO. Saturnálias, 3, 14, 7). Os excessos dessa onda helenizante ge- raram uma reação latinizante entre os que viam nesses hábitos decadência moral, tecendo loas à simplicidade dos antigos versos e canções de Lívio Andrônico (c. 284 – c. 204 a.C.)
2 e Névio (c. 270 – 201 a.C.)
3 e reagindo
à performance dos virtuosi. O efeito dessa reação anti-helenizante talvez tenha sido o desapreço pela educação musical de rapazes, que parece ter entrado progressivamente em desuso entre os romanos, já que, de outro lado, a popularidade dos virtuosi e o gosto pelos grandes shows não foram abandonados. É interessante observar que, em data pouco anterior à insta- lação na Septa Júlia do grupo escultórico representando Quíron ensinan- do música a Aquiles, grupo que fez eclodir o interesse iconográfico pela educação musical de Aquiles, Varrão, em uma de suas sátiras (“Asinus ad lyram”), talvez fazendo uso de sua erudição com relação a temas da tradi- ção cultural grega, aborda o ensino de música e os efeitos da música sobre os ouvintes (VARRÃO. Sátiras Menipeias, 349). De modo geral, porém, a clássica educação musical proporcionada pelos gregos aos meninos, prin- cipalmente no período arcaico e clássico, foi descontinuada na sociedade romana imperial.
A iconografia funerária estudada por H. I. Marrou, composta por sarcó- fagos dos séculos II e III d.C., indica-nos o deslocamento do valor cultural da música, provando a substituição dela por outras matérias na educação do menino. Temos uma série numerosa de cenas de educação sobre monu- mentos funerários consagrados à criança (MARROU, 1964, p. 197-200). A didaskalia é o episódio representado da vida terrestre da criança. Alguns documentos resumem-se a mostrar a criança como escolar. Há uma insis- tência em reforçar que a criança recebeu lições de um mestre. Algumas mostram o pequeno defunto fazendo uma recitação solene, às vezes com a presença das Musas ou as crianças carregando atributos destas. A presença das Musas garante o caráter intelectual da leitura. As crianças são com frequência representadas como conferencistas, cujas leituras públicas os letrados espectadores do Império amavam aplaudir. De fato, desde peque- no, o menino compunha pequenos discursos e os declamava diante de seus
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colegas, professores e pais. Essas representações podem tratar de pequenos prodígios (ou talvez assim os pais os quisessem ver). Os pais, desse modo, queriam celebrar suas proezas intelectuais, representando-os como confe- rencistas – ora, no Império, o orador era o tipo ideal, forma mais acabada do homem cultivado (TLILI, 2004, p. 163). Em outras imagens, a criança é representada como professor. Há sempre o interesse em ressaltar as qua- lidades de espírito do filho (TLILI, 2004, p. 157-160).
Numerosos são os epitáfios que fazem alusão aos estudos de crianças e adolescentes, tidos como docti egregi invenes, “jovens notáveis e sábios” (CIL VI 1619 = Bücheler 1574): falam dos períodos de estudos em Roma, dos estudos de gramática e retórica, da educação liberal, da celebridade de jovens pelo espírito e pela eloquência, da excelência em falar, escrever e até pintar. Os mesmos elogios são feitos às filhas, como Magnilla, morta com sete anos, formosa, et sensu mirabilis et super anos docta, “bela, edu- cada de forma admirável, e muito sábia para sua idade” (CIL VIII 21846 = Bücheler 1165; MARROU, 1964, p. 203). O pequeno defunto às vezes é referido como matemático louvável, bem como admirável poeta. Enfim, destaca-se a dedicação do jovem às Musas (MARROU, 1964, p. 201-207).
Em todo o quadro de atributos intelectuais do menino, evidenciados sobre os monumentos funerários e sobre os epitáfios, a música está ausente. Um pai deseja apresentar uma imagem admirável de seu falecido filho como um poeta, como matemático ou como orador, mas nunca como citaredo ou cantor. Pelo visto, isso seria quase uma ofensa, que denegriria a memória dessa crian- ça que se quer orgulhosamente apresentar como culta, instruída e talentosa, a ser lembrada pela lucidez e eloquência: ingenio clarus [...] dicendi peritus, “brilhante de gênio [...] hábil na eloquência” (CIL VIII 12159.1.5-7).
As biografias de Plutarco, referentes a generais romanos dos tempos da República, estabeleciam um claro contraponto com as biografias dos ho- mens públicos gregos. Enquanto, para grande parte dos personagens gregos biografados, a educação musical era tida como um importante diferencial para a formação dos valores que os capacitavam para ser uma liderança na pólis, em nenhum caso Plutarco lembra que generais romanos tenham sido educados na música em sua infância e juventude. Ele aponta dois mode- los que estariam arraigados na tradição de educação romana daqueles que vieram a se tornar lideranças na República: o tipo rude, sem formação nas letras, como Flaminino, Fábio Máximo, Coriolano e Mário (PLUTARCO. Coriolano, 1-2; Fábio Máximo, 1; Flaminino, 1; Mário, 2, 1; 2, 2), e o
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tipo que busca enobrecer seu espírito através do contato com a filosofia e a retórica, e com interesse pelas letras, como Lúculo, Marcelo e Catão (PLUTARCO. Lúculo, 1, 3-4; Marcelo, 1, 1-2; 2; Catão Maior, 1, 3-4; 20, 3-6) – este segundo tipo, porém, segundo relato de Plutarco, não rece- be educação musical. Quando a música aparece na biografia de generais romanos, é como indicador de decrepitude moral, que estaria na base de comportamento tirânico, como Sila (PLUTARCO. Sila 2, 2-3; 36; Com- paração entre Lisandro e Sula, 39).
Desejava-se ter bons músicos abrilhantando uma festa, apreciavam-se belas audições musicais como marca de uma vida culta; porém, não era motivo de orgulho que um filho se dedicasse ao estudo da música, e tam- pouco era recomendável a um homem que quisesse se projetar socialmente que exibisse destreza na execução de um instrumento. Nos monumentos funerários estudados por H. I. Marrou (1964), são muito frequentes os ele- mentos musicais na representação da vida intelectual. A música relaciona- -se com a imagem de uma vida culta, porém essa relação se dá de forma distinta daquela que havia na Grécia no período clássico: era apreciado que uma mulher fosse musicista amadora, mas nunca um homem. Qual o papel, portanto, da música na construção do conceito de vida culta?
Nos sarcófagos estudados por Marrou, havia sempre a intenção de glori- ficar a inteligência do morto e de enaltecer seu gosto pelas coisas do espírito. Como, porém, a iconografia apresentava essas coisas do espírito? Com fre- quência, temos um personagem com um livro aberto nas mãos. O persona- gem lê, medita, comenta ou recita esse livro. Às vezes, temos a presença das Musas, deusas inspiradoras do trabalho do pensamento (TLILI, 2004, p. 159; MARROU, 1964, p. 209-211).
Nos epitáfios, as inscrições definem o defunto como “intelectual”. Nor- malmente, os homens são definidos como filósofos, poetas ou oradores, e as mulheres como musicistas. Nas lápides, os textos esforçam-se em louvar o defunto por sua inteligência e conhecimento, gosto pelas letras e cultura, enfim, pela dedicação às Musas. O tema é retomado ao longo de todo o Im- pério até o fim da Antiguidade. As mulheres reivindicam a mesma honra, afirmando serem docta, “cultas”. No entanto, os exemplares mais numero- sos as enaltecem por seus talentos musicais, seu cantus, o qual inclui tanto a voz quanto a música instrumental. Muitos dos elogios endereçam-se a tocadoras de lira. A iconografia, porém, em alguns casos revela conhecimen- tos musicais mais aprimorados e diversificados. Um sarcófago em mármore
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descoberto em Arles, datado do séc. II ou III d.C., pertencente a Iulia Tyran- nia, mostra com riqueza de detalhes a dedicação à música pela qual se quer marcar sua memória: vemos um alaúde, uma cítara de concerto, acompanha- da do seu plektron, e um libreto, “que continha talvez a letra do canto a ser acompanhado e sua notação musical” (VENDRIES, 1995, p. 105, fig. 12).
4
É a eloquência, e jamais a música, a qualidade mais destacada para os homens – ela é a marca registrada da civilização, o que diferencia o latino dos bárbaros. No esforço em louvar os defuntos por sua inteligên- cia, vemos o modo como a cultura erudita era apreciada e categorizada. A cultura elevada era definida pela eloquência e pela filosofia, cultura trans- mitida pela tradição clássica. Podemos dizer que o conceito de vida culta era essencial para o que os romanos entendiam por civilização. Essa noção estava contida no conceito de humanitas, que queria dizer cultura literária, virtude humana e estado de civilização. Na ideia de humanitas está contida a representação que o romano faz de si mesmo como humanidade, como civilização (VEYNE, 1991, p. 397-398).
Ora, quando um parente quer enaltecer a memória de um falecido figu- rando seus atributos intelectuais, ele quer mostrar o morto como um des- tacado representante da humanitas, como um dos melhores exemplares da latinidade, em oposição aos comportamentos rudes dos bárbaros, da plebe apedeuta e de elites ricas mas pouco sofisticadas. Como vimos, porém, os conhecimentos musicais práticos não aparecem, para os homens, como qua- lificadores de uma vida culta. No entanto, a música, como categoria cultural, aparece como definidora da humanitas. Acreditamos que, nas representações do grupo Aquiles-Quíron, a inspiração provém da noção de que a música desempenha um papel na civilização. Qual a função, porém, da música, na definição de humanitas? E qual o conceito de música aí presente?
Ora, como vimos, a representação de cenas da vida intelectual sobre monumentos funerários coloca a música – e não ser musicista – como atri- buto da vida culta, não implicando que a condição de músico (profissional ou amador) caracterize o indivíduo como culto. Num universo de 223 mo- numentos catalogados por Marrou, somente um deles refere-se a um músi- co profissional. Trata-se de Semprônio Nicócrates (MARROU, 1964, cat. nº. 93), que declara em seu epitáfio, na cobertura de seu sarcófago, que em sua vida havia se dedicado à arte da música. Na representação iconográfica, Nicócrates se faz acompanhar por uma Musa, enquanto conta, no epitáfio, a sua vida, movimentada e picaresca. Iniciou como “homem das Musas”,
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mousikos aner, poeta, citarista e artista lírico; depois, tornou-se viajante e, enfim, proxeneta. Após sua morte, porém, é como músico profissional que quer ser lembrado, pois as Musas serão suas protetoras.
E qual então o papel dos elementos musicais nesse repertório funerário que quer proclamar que o falecido era uma pessoa culta, representante da humanidade latina?
A presença de elementos musicais não significa necessariamente o que entendemos por música. Atributos das Musas, como a lira e o canto, relacionam-se à competência geral das Musas como protetoras da cultura como um todo. A vida culta, no amor à ciência, às letras e às artes, era uma vida de dedicação às Musas. Desse modo, ser um mousikos aner na época da sociedade imperial romana não tinha mais o significado que tivera ser um homem dedicado à música na Atenas dos séculos VI ao IV a.C.: se an- teriormente significava um homem da música, que adquiriu as virtudes no aprendizado musical, e que era capaz de demonstrar sua boa educação no manejo da lira, agora significa ser um homem das Musas.
Acredito que a inspiração para o tema musical tão repetido pelos ar- tesãos romanos na representação do grupo Aquiles-Quíron está na noção de dedicação às Musas como forma de marcar a pertença à humanitas. O proprietário da Casa de Cícero, de Pompeia, onde se encontra a bela pintura do jovem Aquiles aprendendo lira junto ao centauro Quíron (Fi- gura 1), daria a impressão de ser um mousikos aner àqueles que o visi- tassem, ao ver aquela metáfora representada na parede de sua casa. Do mesmo modo, a ampla divulgação desse tema, atestada pelo registro ar- queológico, sobre uma série de mais de 50 gemas do período imperial, datadas do séc. I ao séc. III d.C. (KOSSATZ-DEISSMANN, 1984, p. 49), comprova o interesse por possuir um objeto que reforce a ideia de que seu portador seja uma pessoa culta, dedicada às Musas (Figura 2). Não significa, assim, que se esteja valorizando a música em si, mas as atividades do espírito como um todo; e, ao se valorizarem as atividades de espírito, a metáfora carregada pelo grupo Aquiles-Quíron, no contexto da sociedade romana imperial, não é a do valor do ensino musical em si (hipótese que seria válida para a civilização grega da época tardo-arcaica e clássica), mas a do valor da eloquência e da filosofia como símbolos da humanidade latina.
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Figura 1
Quíron ensina a lira a Aquiles. Nápoles, Museu Arqueológico, 9133b (2399). Proveniência: Casa de Cícero, Pom-
peia. 3º Estilo. KOSSATZ-DEISSMANN, 1984, nº 52.
Desenho do afresco: Giorgio Sommer & Edmundo Behles. ©wikicommons
Figura 2
Londres, Museu Britânico, 3191 (1923.0401.772). I – III séc. d.C. KOSSATZ-DEISSMANN, 1984, nº 57g. © Trustees of the British Museum
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Nesse contexto cultural, a música evocada pela lira de Aquiles pos- sui um significado difícil de ser precisado, porque ambíguo (CAMERON, 2009). Como ciência que estuda o fenômeno musical, a música irmana-se à astronomia, estando ambas próximas da matemática. Desde o final da República e durante o período imperial, a teoria musical sempre gozou de respeito como campo de estudo,
5 não tendo sofrido o descrédito que, com
frequência, abalou a imagem da prática musical. Num sentido originado no pitagorismo, reveste-se da mística do número. A música participa do prestígio da astronomia, que, na contemplação do céu, possibilita a purifi- cação da alma ao mesmo tempo que a enche de alegria. Pela astronomia, a alma entra em comunhão com os deuses, separa-se das baixezas terrestres e torna-se divina (CUMONT, 1909, p. 256-286). A música teria, inclusive, um efeito purificador da alma, pois ela conectava o homem com a ordem primordial, de sorte que quem não tivesse música na sua alma não poderia, após sua morte, ascender ao céu (NOCK, 1927, p. 170; CÍCERO. Repú- blica, 6, 11 (18, 5, 18); MACRÓBIO. Comentário ao Sonho de Cipião, de Cícero, 2, 3, 1-11; JÂMBLICO. Vida de Pitágoras, 66-7). Conforme um fragmento latino de Varrão, um livro de Orfeu sobre a ascensão das almas chamava-se Lyra. Qual a ligação entre a lyra e a ascensão das almas? Var- rão aponta a resposta órfica do livro Lyra: et negantur animae sine cithara posse ascendere (“e nega que as almas possam subir sem a cítara”) (VAR- RO. fr. apud Schol.Verg.).
Nesse espectro pitagórico, a ordem do mundo fundada sobre o rigor do número é concebida como uma harmonia, uma música. A música humana, das vozes e dos instrumentos, participa da dignidade da música das esferas celestiais (dos astros). Encontramos influências neopitagóricas muito vivas na República de Cícero, obra de 51 a.C. desse autor que, em outras passa- gens, mostra-se um pouco cético em relação ao poder espiritual da música defendido pela tradição grega. Na passagem conhecida como Sonho de Ci- pião, faz-nos ouvir a harmonia sublime do cosmo, evidenciando a mistura mística entre música e astronomia.
Eu contemplava estupefato aquelas maravilhas (os astros) e, um pouco recuperado, disse: – Que som é esse, tão potente e ao mesmo tempo tão doce, que preenche meu ouvido? Ele respondeu: – Este som é aquele que, composto por intervalos separados e diferen- ciados, conforme uma proporção determinada por uma razão,
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nasce de um impulso e do movimento das próprias esferas, e ele, equilibrando sobriamente agudos com graves, produz um concerto harmônico, produz acordes uniformemente harmônicos. De fato, movimentos tão grandes não podem ser impulsionados com o si- lêncio, e a natureza faz com que um extremo de um lado soe grave, e do outro lado, agudo. É por isso que a órbita mais elevada do céu, a estelífera, rotação que é mais veloz, se move com um som mais agudo e penetrante, mas essa órbita que é a da Lua e que é a mais baixa, com um som mais grave. A Terra, por sua vez, que é a nona órbita, permanece imóvel e se mantém para sempre em seu único lugar, ocupando o espaço central do universo. – Esses oito círculos, dois dos quais têm o mesmo impulso, produzem sete tons por seus intervalos desiguais, número que é o laço do universo. Os homens doutos, que imitam esses sons com as cordas da lira e com seus cantos, são colocados ao redor desse lugar, assim como aqueles outros de inteligência superior que, em suas vidas humanas, cultivaram a ciência das coisas divinas. (CÍCERO. República, 6, 11 [18, 5, 18] = COSTA & NOUGUÉ, 2010, p. 46-47)
A “ciência das coisas divinas”, os diuina studia, são os estudos metafísicos; “ao redor deste lugar” é a Via Láctea, o Céu, morada dos Bem-Aventurados. Essa interpretação do fenômeno musical de matriz pitagórica vai ecoar entre os círculos intelectuais neoplatônicos até a Antiguidade Tardia como testemunha a retomada da doutrina exposta por Cícero, três séculos mais tarde, por Jâmbli- co (c. 240 - c. 325 d.C.), na Vida de Pitágoras (66-67), e, no primeiro quartel do séc. V, por Macróbio, em seu Comentários ao Sonho de Cipião (2, 3, 1-11). A temática pitagórica da “harmonia das esferas” permanece presente.
Em outros autores, que seguem uma vertente mais racionalista, a li- gação entre a música e a astronomia aparece desprovida de valor místico. Afastando-se do conceito pitagórico catártico de música, passa-se a ver a arte musical somente como um derivativo de fenômenos físicos. Nesse contexto, aparece uma outra concepção de música, que foi bem formulada, mais tarde, por Santo Agostinho: mousike, música, designa no plano dos estudos propedêuticos a filosofia, a enkyklios paideia, não mais uma arte, mas uma ciência, a ciência teórica da rítmica e da harmonia (ou acústi- ca). Aqui não há somente analogia secreta entre música e astronomia, mas identidade de natureza: são duas ciências matemáticas (MARROU, 1964,
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p. 197-210). Tendo em vista a existência de uma tradição de ceticismo em relação aos poderes moralizadores e curativos da música – que teve como significativa contribuição a influência da escola epicurista –, devemos ima- ginar que a noção de música sistematizada por Santo Agostinho no séc. V d.C., vista como desprovida de poder moral, seja bastante anterior a ele. Ideias opostas ao ensino musical estavam expressas no pensamento dos cínicos, como Antístenes, e, de forma mais clara, em Epicuro, para quem a música era uma fonte de prazer, mas não de moralidade, “sentindo repug- nância ao ouvir sobre a teoria musical de Teofrasto” (PLUTARCO. Por- que a vida não pode ser prazerosa segundo Epicuro, 13.1095c). O Papiro Hibeh, datado entre os séculos IV e III a.C., acusava os teóricos musicais (harmonikoi) de estarem completamente fora da realidade da prática musi- cal (Papiro Hibeh, I.13, col. 1, 1 - col. 2, 15 apud BARKER, 1989, n. 162; ANDERSON, 1966, p. 147-52). Mais tarde, esse pensamento materialista contrário à doutrina das virtudes morais da música foi sistematizado por di- ferentes herdeiros do ceticismo epicurista, como Filodemo de Gedara,
6 no
período ciceroniano, e, à exaustão, por Sexto Empírico, médico empirista intelectualmente ativo à época dos Severos (PEREIRA, 1996, p. 123, n. 9).
Outro sentido de que o termo mousike se reveste na Antiguidade é o de conjunto das atividades intelectuais. Mousike compreende o domínio das atividades de espírito sobre o qual reinam as Musas; é toda a cultura que está sob o patrocínio das Musas. Essa acepção, eventualmente, assume também um caráter místico. Por Mousike, entende-se as “coisas das Mu- sas”; e, como tal, recebe delas um caráter augusto e sobrenatural. Muitos acreditam que, pela dedicação às “coisas das Musas”, à Mousike, obtêm uma purificação da alma após a morte e garantem a proteção das Musas no além-túmulo – creem que, pela música (como dedicação à vida intelectual), seguirão após a morte ao céu ou aos Campos Elísios dos Bem-aventurados, onde conviverão com os heróis. Ao contrário desses – místicos – que veem na dedicação às Musas uma garantia de heroização e de imortalidade da alma, ou até quase de uma apoteose, outros veem nessa dedicação às ativi- dades de espírito uma forma de afirmação de status, de marcar sua pertença à humanitas, em oposição à barbárie, às camadas pobres e às elites emer- gentes que só pensam em ostentação, riqueza e poder.
A associação do termo Mousike à cultura geral e a alta estima que as classes cultas romanas tinham pelas atividades do espírito caracterizam esse imenso amor às Musas de que fala Virgílio, cuja deferência às entida-
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des patronas das artes e conhecimento era lembrada séculos mais tarde, como no mosaico norte-africano de Virgílio e as Musas, conservado em Túnis, em que o poeta, entre Clio e Melpomene, escreve em um rolo de papiro os versos iniciais da Eneida, evocadores das divindades inspiradoras: Musa, mihi cau- sas memora, quo numine laeso, “Musa, lembre-me as causas, que a divin- dade foi ofendida” (VIRGÍLIO. Eneida I, v. 18). (Figura 3). A arte musiva testemunha o desejo de membros das elites provinciais, mesmo quando vi- vendo em áreas rurais afastadas, de se mostrarem cultos através da deferência às Musas. Recordemos aqui o painel “o coro das Musas”, imponente tapete de entrada do triclinium da uilla lusitana de Torre de Palma, datado de finais do III ou princípios do IV (LANCHA; ANDRÉ, 2000, mosaico 2, painel 1 [o coro das Musas], p. 162-167, pr. LII), tema que se repete em mosaicos dispersos em diferentes regiões do Império, e que se inspira na iconografia de sarcófagos do séc. III (LANCHA; ANDRÉ, 2000, p. 187-189). Na penín- sula ibérica, esses sarcófagos itálicos do séc. III, com coro de Musas no friso frontal, foram encontrados, por exemplo, em Múrcia e Tarragona. Mosaicos semelhantes e contemporâneos ao de Torre de Palma foram achados, na Es- panha, em Itálica, em Torralba, em Arróniz e recentemente em Saragoça, e, no Norte da África, em Bulla Regia. Janine Lancha inventariou, ao todo, 36 mosaicos nas províncias ocidentais com temas associados às Musas.
Figura 3
Mosaico. Virgílio e as Musas. O poeta, entre Clio e Melpomene, com rolo de papiro sobre seu colo, escreve trecho da Eneida.
Túnis, Museu de Bardo. Proveniência: antiga Hadrumento, atual Sousse.
Século III. ©wikicommons
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Nesse amor às Musas estava contida a autodefinição latina como civiliza- ção, com base no conceito de humanitas. Os proprietários da Casa de Cícero em Pompeia (Figura 1), no séc. I d.C., da uilla lusitana de Torre de Palma (LANCHA; ANDRÉ, 2000, p. 10) ou da casa tunisiana de Hadrumento, com o mosaico de Virgílio (Figura 3), nos sécs. III e IV, seriam vistos, cada um deles, como um mousikos aner, um “homem das Musas” – ou ao menos assim queriam ser reconhecidos, em vida e na posteridade. Ser um mousikos aner implicava, como bem define Janine Lancha, um sentimento de pertença, de um lado, “à classe superior (...)”, cujos integrantes, “desde a infância, fre- quentavam o mundo dos heróis e dos deuses e as imagens de suas aventuras exaltantes”, e, assim, acarretava adesão aos valores representados por esses heróis e essa formação elitária; de outro lado, significava a pertença a algo maior, “um sentimento coletivo de identidade tão profundo que a convivência com as Musas se tornou, pouco a pouco, em Roma, sinônimo de um sinal de reconhecimento social e de uma convicção íntima do valor da cultura para além da morte” (LANCHA, 2002, p. 51). E a música, cujos valores se en- raizavam no legado grego, representava, para os romanos, ressignificada, o cimento da humanitas, à qual se associavam, também, crenças funerárias que seriam privilégio dessa elite culta. No Columbário de Pampônio Hilas (KOS- SATZ-DEISSMANN, 1984, nº 59),
7 em Roma, abaixo do frontão que porta
o estuque com a cena de aula de música de Aquiles e Quíron (TRAFIMOVA, 2012, p. 48, fig. 46), datado do terceiro quartel do séc. I d.C., devemos prestar atenção a um detalhe na placa de identificação do falecido: abaixo de seu nome, grafado em um retângulo de fundo branco que imita o mármore lapidar, de forma emblemática, está representada uma cítara entre duas esfinges. Por- tanto, Pampônio quer vincular sua própria imagem à música também para o além-túmulo, indicando o sentido funerário da crença nas Musas, “segundo a qual o homem cultivado salva o melhor de si próprio no além, onde reencontra as Musas que honrou em vida”, crença que “é específica do mundo romano e alimenta o imaginário de numerosos sarcófagos” (LANCHA, 2002, p. 51).
Assim, para esses que associavam a música à vida intelectual pela qual queriam ser lembrados, e para esses outros que desejavam ter em sua casa uma pintura do grupo Aquiles-Quíron, ou possuir uma gema representando esse tema, existe uma associação simbólica profunda entre humanitas e música. Porém, qual o conceito de música presente? O que pensam quando veem Aquiles tocando lira ou uma Musa portando um instrumento num coro representado em frisos de sarcófagos ou em tapetes musivos?
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Entendemos não ser possível uma única resposta, pois indivíduos di- ferentes acreditaram em definições diferentes de música. Os indícios mais fortes são os de que a visão mais comum seja da música como conjunto de atividades intelectuais sob patrocínio das Musas e como vida de dedicação a elas. No entanto, nem sempre fica bem resolvido culturalmente qual o lugar da música propriamente dita no sistema de conhecimento. A posição predominante será a de definir a eloquência, a retórica e a filosofia como as grandes atividades de espírito, seguidas pelas ciências e pelas belas le- tras; a música em si só será considerada como prerrogativa de mulheres bem-educadas. Muitos, porém, continuarão a acreditar nos valores que a cultura grega atribuía à música – muito se escreverá ainda sobre seus po- deres curativos e éticos. A confiança nas virtudes soberanas da música, de agente purificadora do corpo e da alma, com poderes mágicos misteriosos, permanecerá entre muitos neopitagóricos e platônicos tardios.
8 O impe-
rador Juliano acreditava que a música purificava as almas e que se devia acreditar nas “manifestações dos filósofos sobre o efeito educativo da mú- sica” (WEIS, 1973, p. 300, nota 6; Cf. JULIANO. Epístula 42 Weis = 109 Bidez-Cumont). Enquanto muitos continuarão a vê-la como arte de histriões e cortesãs, permanecerá porém o prestígio por parte de outros, músicos amadores ou amantes da música:
No entanto, um grande número de textos nos assegura que, apesar das resistências, existiu, ao longo de todo o Império, uma minoria de amantes de música no interior da classe cultivada, de verdadeiros amadores que praticaram a lira e outros instrumentos; as mulheres, em particular, destacam-se no número. (MARROU, 1981, p. 216)
Possivelmente a jovem aluna, a quem Nicômaco de Gerasa, 9 no início
do séc. II d.C., dedicou o seu Manual de Harmonia, teria sido uma dessas mulheres amadoras da música (NICÔMACO. Manual de Harmonia, 3). Do mesmo modo, o citarista e poeta Semprônio Nicócrates orgulhava-se de ter-se dedicado à música ao longo da vida. Na sociedade imperial, mesmo que não fosse recomendada a educação musical a um menino, e mesmo que se suspeitasse da conduta dos músicos profissionais, a boa música foi muito apreciada e os músicos talentosos estavam entre os artistas mais bem remu- nerados. O melhor exemplo que nos foi legado é a bem-sucedida carreira do compositor cretense Mesomedes, músico do séc. II d.C., único compo- sitor antigo de cuja obra podemos constituir um pequeno corpus, formado
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por quatro peças datadas de aproximadamente 130 d.C.: Prelúdio à Musa, Prelúdio a Calíope e Apolo, Hino ao Sol e Hino a Nêmesis. Sua fama, assim como a preservação de sua obra, deve-se em grande parte ao fato de ter sido contratado pelo imperador Adriano para ser músico oficial da corte, entre 117 e 138 d.C., espécie de compositor e rapsodo pessoal, para o que era muito bem remunerado (História Augusta. Adriano, 16, 8). Permaneceu nessa atividade sob Antonino Pio, o qual, porém, rebaixou seus rendimen- tos. Seu renome era tal, que, mais tarde, em 213 d.C., Caracala, ao fracassar na tentativa de achar seu túmulo, erigiu um cenotáfio em homenagem aos seus trabalhos como citaredo e compositor.
Outros músicos, que circularam pelos vários cantos do mundo roma- no, usufruindo de maior ou menor fama, tiveram sua memória registrada em epitáfios, o que revela que, mesmo não sendo o valor predominante e válido para as elites políticas e econômicas, muitos músicos profissionais desfrutavam de boa reputação. Este é o caso do músico e poeta Seikilos (“Siciliano”?), que viveu no século II d.C. em uma localidade distante 30 km de Êfeso, na Ásia Menor. Segundo interpretação seguida por Annie Bélis, ele, falecido em torno de 150 d.C., teria composto uma pequena me- lodia, que, a seu pedido, teria sido gravada em sua estela funerária, pre- cedida de um epigrama e acompanhada de uma dedicação, curiosamente incompleta: “SEIKILOS EUTER”, que podia significar “Seikilos, filho de Euter(pe)” ou “Seikilos para Euter(pe)”, a Musa (BÉLIS, 1996, p. 10). A inscrição é seguida pelo verbo “ZH”, “ele vive”, parecendo assim repetir a devoção dos músicos profissionais às Musas, verificada logo acima no caso de Semprônio Nicócrates, devoção baseada na crença em sua proteção após a morte. Epigramas funerários da mesma época exemplificam o prestígio alcançado por alguns músicos. É o caso do epigrama dedicado ao auletes Teléfanes, composto por Nicarco, que floresceu em Roma sob os Flávios, em finais do século I d.C., cuja reputação ele compara à de Orfeu, por seus méritos na cítara, à de Nestor, pela sábia eloquência, e à de Homero, pela estrutura dos versos (NICARCO. Antologia Palatina, 7, 159). Um epigrama funerário, bastante tardio, atribuído a Leôncio Escolástico, poeta do séc. VI d.C., retoma a mesma estratégia laudatória, agora enaltecendo um citaredo de nome Platão, ao compará-lo a Orfeu e às musas (LEÔNCIO ESCOLÁSTICO. Antologia Palatina, 7, 571).
De preferência, porém, os “homens de bem” (como se autodefinia a eli- te econômica e política) devem deixar essa arte aos profissionais, limitan-
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do-se a saberem apreciar o produto do seu trabalho. Um “homem de bem” e uma família de classe culta, no entanto, devem aplicar-se nas atividades de espírito e serem reconhecidos pelo seu apreço pela música, evitando, con- tudo, contato direto com a prática musical. O reconhecimento social dessa dedicação vale como garantia de status entre os pares. Uma forma de ser reconhecido socialmente como um homem culto, dedicado às coisas das Musas, ou seja, como um mousikos aner, é ostentar nos espaços públicos de sua residência imagens, como mosaicos ou pinturas murais, que mos- trem seu interesse pela cultura erudita tradicional, patroneada pelas Musas e simbolizada pela educação musical. Mas não bastará o reconhecimento pelos vivos, é importante igualmente o reconhecimento pela posteridade e pelas divindades, de sorte que a associação ao domínio das Musas será representada também em monumentos funerários, como o Columbário de Pampônio Hilas do séc. I ou inúmeros sarcófagos do II e III.
Imperadores músicos espelham-se no passado grego na concepção de seus projetos de poder
Como marca de uma vida culta, desejam-se bons músicos em um ban- quete, apreciam-se belas audições em um odeon. Mas um filho estudar mú- sica não é motivo de orgulho. Em uma sociedade em que as elites não gos- tariam de ver seu filho estudando música, como seria visto um imperador querer ser reconhecido como músico?
Para G. Comotti (1989, p. 53-54), imperadores como Nero, Vespasiano e Adriano, ao se vincularem a práticas musicais gregas tradicionais, como a citaródia, estariam reagindo à alegada “corrupção” da música greco-roma- na (popularização dos grandes espetáculos, orquestras numerosas, mimos e pantomimas burlescas) (SUETÔNIO. Vespasiano, 19).
Mas em uma sociedade em que o gosto geral pela música era por gran- des espetáculos que se afastariam do refinamento da música de tradição grega, o que motivava esses imperadores a promoverem em seu entorno e em seu rastro um quase renascimento da música grega?
A recorrência da temática iconográfica da aula de música de Aquiles jun- to ao centauro Quíron embrenha-se em significados variados, entre os quais é presumível uma significação política, que contribua para compreendermos as conexões entre esses imperadores e a música. A. Kossatz-Deissmann aponta um sentido político nessa apropriação simbólica da educação de Aquiles:
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a educação de Aquiles junto a Quíron simboliza o ideal de educação clássica de um herói, que representa um modelo desejável, o que no período romano foi reforçado pelo gosto pela repetição do ciclo da vida de Aquiles. Em especial os governantes se identificavam com Aquiles, o herói por excelência, começando por Alexandre, o Grande, e indo até os imperadores romanos. Juliano, o Apóstata, via em sua infância – ele foi educado pelo eunuco Mardônios – um paralelo com a instrução de Aquiles junto a Quíron. (KOSSATZ- -DEISSMANNN, 1984, p. 54)
Talvez a imagem de Aquiles funcionasse como uma espécie de gatilho de certa “memória cultural”, no sentido de J. Assmann (2008, p. 17-50; 2013, p. 293-301). Acionava a memória de um sentimento de poder es- clarecido, referenciado historicamente em Alexandre e alimentado imagi- nariamente pela figura de Aquiles. A. Trafimova acredita que as pinturas pompeianas com a aula de música e a fuga de Esquiro traduzam algo de sua origem no quarto século tardio, pois guardariam um quê da pintura da época de Alexandre, e que, nessas representações de Aquiles, na sua fisionomia, haveria uma similaridade excepcional com o rei macedônico, uma verda- deira imitatio Alexandrii, por exemplo em “distintos aspectos do desenho e na escolha das cores” (TRAFIMOVA, 2012, p. 47). No período imperial, guardava-se bem a memória de um Alexandre admirador de Aquiles, seu ancestral eácida.
10 Desde a infância, nas aulas com Lisímaco de Acarnânia,
seu professor de leitura, escrita e lira, Alexandre acostumara-se às com- parações: seu tutor chamava-se a si mesmo de Fênix, um dos lendários mestres de Aquiles, ao passo que a Alexandre chamava de Aquiles, e a seu pai, o rei Felipe II, de Peleu (PLUTARCO. Alexandre, 5, 8). Como efeito dessas comparações, Lisímaco caiu nas graças da família real macedônica, conquistando o cargo de tutor do príncipe, no lugar de Leônidas, parente de Olímpia, que lhe havia ensinado ginástica. Alexandre nutria admiração especial pelas qualidades musicais de Aquiles: queria sonhar com sua lira, com a qual havia cantado os feitos gloriosos de homens bravos – já a lira de Paris, ele a desprezava (PLUTARCO. Alexandre, 15, 5. Cfr. HOME- RO. Ilíada IX, vv. 185-191). Apreciador da boa música, patrono dedicado de músicos profissionais (POWER 2010), Alexandre tinha muitos músicos como amigos e várias vezes fez questão de externar sua deferência à arte musical: poupou a estátua do citaredo Cleon, atribuída ao renomado escul-
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tor Pitágoras de Régio, quando arrasou Tebas (POLEMON. fr. 25; PLÍNIO. História Natural, 34, 59); fez erguer uma estátua em Delfos, no templo de Apolo Pítio, em homenagem ao citaredo Aristônico de Olinto, amigo que o socorrera num campo de batalha, no qual este morreu bravamente. Por meio dessa estátua, segundo Plutarco, mais do que homenagear um dos mais fa- mosos músicos de seu tempo, o rei macedônico prestava tributo à música em si, na crença de que ela engendra homens verdadeiros, e enche de coragem sobrenatural aqueles que lhe são devotos (PLUTARCO. Sobre a Fortuna ou a Virtude de Alexandre, 2, 2, 334e-f). Alexandre, ele mesmo hábil na lyra (PLUTARCO. Alexandre), era assim o modelo de imperador músico.
Havia uma espécie de jogo de espelho: Alexandre mira o passado mítico, e imita Aquiles; Aquiles, como representação na arte e no imaginário hele- nístico e romano, mira o passado histórico, e imita Alexandre. Nessa apro- ximação, a educação musical era um tema caro: na relação mestre-discípulo Quíron-Aquiles espelha-se a relação Aristóteles-Alexandre (mas também Lisímaco-Alexandre), e, mais tardiamente, Mardônios-Juliano, de modo que funcionava como um modelo moral, referenciado ao mesmo tempo na edu- cação musical e filosófica (TRAFIMOVA. 2012, p. 49-50). Mas há uma clivagem entre o mundo grego e o romano. Na educação lendária de Aquiles ou na educação histórica de Alexandre (PLUTARCO. Péricles, 1; Alexandre, 5, 8), fosse com Quíron ou com Lisímaco, aula de música era aula de música, para aprender a manusear a lira e cantar acompanhado por ela, o que pro- porcionaria qualidades morais, em consonância com a tradição pitagórica e platônica. Já no período romano, a representação da aula de música, por meio do grupo Aquiles-Quíron, não se reportava à concretude social e pedagógica do aprendizado musical. Adquiria, outrossim, um complexo de significação próprio ao mundo romano, combinando sentido místico, matemático, moral, identitário, político e funerário, condensados na acepção de mousike.
A relação que Nero, Adriano ou Juliano mantêm com a música vai na contramão dos vários sentidos estabelecidos como majoritariamente aceitos ao tempo destes. Eles em si, na figura de imperadores, devotam-se à prática musical. Nisso, eles se miram na referência grega, não somente relacionada à memória da instituição musical e valores atribuídos a esta na tradição pitagó- rica e platônica. Focam em uma referência que assume sentido político ao se ligar à memória da relação de Aquiles e Alexandre com a música.
Num jogo especular entre a projeção mitológica de Aquiles e a memó- ria histórica de Alexandre, a iconografia do grupo Aquiles-Quíron reaviva os
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liames entre educação e homoerotismo. Caros ao pensamento pedagógico antigo, nesses liames se mesclam cotidiano e mito, pederastia e moralidade, trazendo à tona uma ressignificação romana, constantemente renovada em monumentos figurados, desta instituição grega presente nos repertórios que os romanos bem informados dispunham sobre mitos e história grega: sobre Aquiles e Pátroclo, Marsias e Olimpo, Pã e Dáfnis; sobre Harmódio e Aristó- giton, Alexandre e Cleitos ou Heféstion. Não é ao acaso que um filo-helênico como Adriano tenha sabido recriar, em seu amor pelo jovem Antínoo, senti- dos relativos à tradição política e cultural grega da pederastia.
Além do significado de força ligado à figura homérica de Aquiles, a vin- culação desses imperadores com a educação e prática musical, aos moldes de como entendiam ser a tradição grega, estava no cerne da representação de po- der que queriam vincular a seus reinados, a como queriam ser reconhecidos enquanto governantes e ao papel que davam ao legado grego entre os prin- cípios norteadores de seus projetos de Império (KOSSATZ-DEISSMANN, 1984). O gosto de Nero pela música, ao que tudo indica, não foi alvo de tanta rejeição nos dez primeiros anos de seu reinado, e talvez mesmo no período de maiores exageros, tanto que Vespasiano, ao reestabilizar o Império, dedica-se a apoiar a música em Roma. O boom do interesse iconográfico pela memória da música grega, assim como o florescimento da erudição musical à época da chamada Segunda Sofística, indica, na contramão da crítica de autores antigos à afeição que esses imperadores tinham pela música, que eles acaba- ram sim contribuindo para fomentar a cultura musical, em diversos níveis. Provas disso são a construção de odeões, a publicação de tratados e manu- ais musicais, o avanço da teoria musical, e o desenvolvimento de uma cena mais requintada de apreciação de uma música como a de Mesomedes, que poderíamos qualificar como uma expressão de música erudita grega, distinta daquela música, muito popular mas tida pelos críticos como degradada, dos pantomimos e dos grandes espetáculos.
Documentação escrita
BARKER, A. Greek Musical Writings: The Musician and his Art. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. v. 1. COSTA, R.; NOUGUÉ, C. O sonho de Cipião, de Marco Túlio Cícero (prólo- go de Carlos Nougué, apres., trad. e notas de Ricardo da Costa). Notandum, v. 22, p. 37-50, jan./abr. 2010.
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Notas
1 César de 355 a 361, imperador de 361 a 363.
2 Livius Andronicus, poeta épico, de origem grega, nascido provavelmente em Ta-
rento e vindo a Roma como escravo, atuou como professor (talvez o primeiro mes- tre grego em Roma) e foi responsável pela primeira tradução da Odisseia para o latim, a qual teria sido usada em escolas romanas até o séc. I a.C. Compôs tragédias, comédias, hinos e poesias líricas, sendo considerado responsável por introduzir em Roma diferentes gêneros literários gregos. 3 Gnaeus Naevius, oriundo da Campânia e quiçá cidadão romano de uma gens ple-
beia, foi poeta, compôs tragédias, e foi considerado responsável por moldar a subs- tância da literatura propriamente latina. 4 Arles, Museu Arqueológico. Trata-se da única representação iconográfica do alaú-
de (pandura) na Gália. 5 Graças a esse fato possuímos hoje profundos conhecimentos sobre a teoria mu-
sical grega, pois, salvo poucas exceções, como Aristóxeno de Tarento, Euclides e Arquimedes, a maior parte dos tratados que nos foram legados, na íntegra ou em fragmentos, é da época imperial.
166 PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 25-2: 141-166, 2019.
6 Ver, para uma análise do tratado sobre a música deste epicurista, do qual estão
parcialmente preservados os livros I a IV: Anderson (1966, p. 155-76). 7 Monumento funerário, em calcário, com relevo em estuque, localizado em Roma,
próximo à Porta Latina e à Via Appia. Foi adquirido por ou para Pampônio Hilas, que viveu durante a dinastia flávia (69-96 A.D.), assim conferindo seu nome ao mo- numento, graças a uma inscrição; sabe-se, porém, que sua construção é anterior, por ter sido dedicado originalmente a um liberto de Tibério e a um liberto de Cláudia Otávia, filha do imperador Cláudio e Messalina. Datado de c. 14-54 ou 70-80 d.C. 8 Ver, por exemplo: Plutarco (Sobre a música, 44, 1147), Macróbio (Comentário
ao Sonho de Cipião, de Cícero, 2, 3, 1-11) e Jâmblico (Sobre os mistérios egípcios, 3-9). 9 Matemático neoplatônico, proveniente da cidade síria de Gerasa, viveu entre c.
60 e c. 120 d.C. e seguia corrente pitagórica em seus escritos de teoria musical, fazendo referência à “harmonia das esferas”. 10
Os Eácidas, família real do Épiro, consideravam-se descendentes de Aquiles, o que não deixava de ter um caráter de propaganda política: Éaco, filho de Zeus e da ninfa Egina, teve como filho Peleu, pai de Aquiles. Este, escondido na ilha de Esquiro, apaixonou-se por Deidameia, com quem teve o filho Neoptólemo, conhecido como Pirro, nome dado mais tarde ao mais conhecido dos reis epirotas. Neoptólemo teria sido pai do primeiro rei epirota, o lendário Molosso, de quem descenderia Alexandre I (conhecido como o Molosso), sua irmã Olímpia, mãe de Alexandre Magno e esposa de Filipe da Macedônia, e o próprio Pirro. No círculo familiar dos Eácidas repetiam- -se, ao longo das gerações, nomes relacionados à linhagem de Aquiles, como Eácidas (pai de Pirro), Molosso, Neoptólemo e até mesmo Deidameia (irmã de Pirro).
Fábio Vergara Cerqueira