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INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE MONOGRAFIA Feira Ecológica Estudo de caso da experiência desenvolvida pelo CAPA (Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul) Jaime Miguel Weber 2002

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INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E

SOCIEDADE

MONOGRAFIA

Feira Ecológica

Estudo de caso da experiência desenvolvida pelo CAPA

(Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul)

Jaime Miguel Weber

2002

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO,

AGRICULTURA E SOCIEDADE

Feira Ecológica

Estudo de caso da experiência desenvolvida pelo CAPA

(Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul)

Jaime Miguel Weber

Sob a Orientação do Professor

John Wilkinson

Monografia submetida como

requisito parcial para obtenção do

diploma de Pós-Graduação Lato

Sensu em Desenvolvimento,

Agricultura e Sociedade

Seropédica, RJ

Novembro de 2002

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO,

AGRICULTURA E SOCIEDADE

JAIME MIGUEL WEBER

Monografia submetida ao Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e

Sociedade como requisito parcial para obtenção do diploma de Pós-graduação Lato

Sensu em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

MONOGRAFIA APROVADA EM ____ /____ /____ (Data da defesa)

John Wilkinson (Ph.D.) CPDA/UFRRJ

(Orientador)

Nelson Giordano Delgado (Ph.D.) CPDA/UFRRJ

Silvana de Paula (Ph.D.) CPDA/UFRRJ

Nora Beatriz Presno Amodeo (Ph.D.) REDCAPA

RESUMO

WEBER, Jaime Miguel. Feira Ecológica: Estudo de caso da experiência

desenvolvida pelo CAPA (Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul). Seropédica:

UFRRJ, 2002. 28p. (Monografia, Pós-graduação LLatu SSensu em Desenvolvimento,

Agricultura e Sociedade).

Este estudo possui como objeto central a experiência da Feira Ecológica de Santa Cruz

do Sul (RS). Trata-se de uma experiência levada a cabo por grupos de agricultores

familiares, com apoio institucional do CAPA, para a produção, comercialização e

agroindustrialização de produtos ecológicos. Abordam-se alguns dos principais

impactos desta experiência sobre as relações familiares e comunitárias e os processos

organizativos envolvidos. Além disso, são analisadas as mudanças e os desafios para o

agricultor familiar, considerando-se o modelo agrícola vigente e seus impactos

econômicos e sócio-ambientais negativos, bem como os movimentos de resistência que

foram se formando a partir da crítica a esse modelo. O avanço do ecologismo e da

produção ecológica são abordados para caracterizar as fases, seus limites e as

potencialidades das experiências que vêm se concretizando no Rio Grande do Sul e no

Brasil. Para melhor entender o contexto da experiência analisada, faz-se uma breve

caracterização do espaço regional e do desenvolvimento da agricultura na região,

destacando a atividade fumageira pelo seu impacto sócio-econômico preponderante no

desenvolvimento regional e pela forte relação de dependência que cria nos agricultores

em relação às empresas do setor. Nesse contexto, a Feira Ecológica, escolhida como um

exemplo de experiência alternativa de produção e comercialização, é relatada e

analisada como estudo de caso, a partir de entrevistas semi-estruturadas, tomando-se

como referência as dimensões econômica, ambiental, social e ética. Conclui-se que a

experiência da Feira Ecológica teve avanços que ultrapassam a questão econômica,

resgatando valores e princípios de solidariedade, cidadania e convivência comunitária,

assim como de preservação ambiental. Não se pode considerar que essa experiência

possa ser massificada entre todos os agricultores familiares da região, mas apresenta

ensinamentos que podem servir de referência na construção de alternativas de

desenvolvimento para grupos que possuem expectativas e condições sócio-econômicas

e ambientais similares.

Palavras chave: Agricultura ecológica, associativismo, Rio Grande do Sul.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1

2 MUDANÇAS NO MODELO AGRÍCOLA E OS DESAFIOS PARA O

AGRICULTOR FAMILIAR ..................................................................................... 3

2.1 O Alvorecer do Ecologismo .................................................................................... 3

2.2 A Produção Ecológica no Brasil ............................................................................. 4

3 O CONTEXTO REGIONAL: FUMICULTURA E COMPLEXO

AGROINDUSTRIAL ................................................................................................. 7

3.1 A Cultura do Fumo no Sistema de Produção da Agricultura Familiar ............. 9

4 A FEIRA ECOLÓGICA DE SANTA CRUZ: ANTECEDENTES ....................... 11

5 A FEIRA ECOLÓGICA VISTA PELOS AGRICULTORES ............................... 14

5.1 Dimensão Econômica ............................................................................................ 14

5.1.1 O Aumento da Renda e Diminuição de Custos de Produção ......................... 15

5.1.2 A Comercialização e Distribuição da Renda ao Longo do Ano ..................... 16

5.1.3 Autonomia dos Agricultores .............................................................................. 17

5.2 Dimensão Ambiental ............................................................................................. 18

5.3 Dimensão Social (família, grupo, comunidade) .................................................. 19

5.3.1 Relações Sociais: família, grupo ........................................................................ 19

5.3.2 Relação Agricultor/Consumidor ....................................................................... 21

5.3.3 Aprendizagem Significativa ............................................................................... 21

5.4 Alimentação e Saúde ............................................................................................. 22

5.4.1 Alteração na Dieta .............................................................................................. 22

5.4.2 Penosidade do Trabalho ..................................................................................... 23

6 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 24

7 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 26

ANEXO .......................................................................................................................... 28

Anexo A - Roteiro de Entrevista para Agricultores .................................................. 28

Feira Ecológica

Estudo de caso da experiência desenvolvida pelo CAPA

(Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul)

Jaime Miguel Weber1

1 INTRODUÇÃO

Este estudo pretende discutir e analisar alguns dos principais impactos que

fazem parte de uma experiência concreta de produção e comercialização de produtos

ecológicos sobre o sistema de produção, as relações familiares e comunitárias e os

processos organizativos. Os principais elementos que motivaram a realização deste

estudo estão relacionados à situação de insegurança do agricultor familiar e o seu

interesse em buscar novas opções produtivas capazes de oferecer alternativas para

complementação de renda ou mesmo subsistência das famílias. Estes aspectos

estimularam a discussão em torno de possibilidades que resultaram no desenvolvimento

de uma feira de comercialização direta. Essa proposta, inicialmente, teve como um dos

elementos motivadores a busca de alternativas de produção e comercialização, baseadas

em produtos diferenciados produzidos sem o uso de fertilizantes químicos e

agrotóxicos.

O interesse em analisar a experiência da Feira Ecológica de Santa Cruz do Sul é

resultante da experiência vivenciada pelo autor nos primeiros anos de construção da

proposta, entre 1995 e 1996, assim como pelo acompanhamento das atividades nos dois

primeiros anos de funcionamento da feira (1997 e 1998) como técnico da equipe de

apoio do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor – CAPA. O contato direto e

prolongado com o ambiente e a participação no processo de construção da feira, ao

mesmo tempo que facilitam a aproximação institucional e com os agricultores, também

estimulam a busca de informações e dados que possam avaliar o desenvolvimento das

atividades da feira e a satisfação dos agricultores e outros atores envolvidos. Enfim,

trata-se de um recorte para avaliar alguns resultados alcançados e o significado que

distintas dimensões vêm representando no cotidiano das famílias e dos grupos.

A experiência de organizar a Feira Ecológica colocava-se como um desafio

coletivo, tanto para os agricultores como para a equipe técnica do CAPA. Mesmo tendo

alguns anos de experiência com agricultura ecológica e com organização de

agricultores, cada experiência torna-se um desafio por todas as peculiaridades de cada

agricultor, as condições econômicas, sociais e culturais de cada grupo ou ator envolvido

no processo. Partiu-se do princípio de construir uma nova experiência em que ninguém

possuía uma formulação pronta ou qualquer definição prévia; a construção seria

realizada a partir da criatividade, do esforço, da contribuição e do potencial de cada

pessoa ou grupo envolvido.

A cultura organizativa existente nas comunidades constituía o grande potencial

para desenvolver esse tipo de experiência com êxito. Nesse contexto, alguns acordos

foram sendo construídos pelos grupos de agricultores durante o processo de discussão e

organização da feira, entre eles a opção pela produção ecológica e a realização da

1 O autor é Engenheiro Agrônomo, Chefe de Gabinete da Presidência da EMATER-RS.

2

comercialização através dos grupos de famílias, e não de famílias individuais, como

normalmente ocorre com as feiras convencionais. Desde o início também foram sendo

definidos e acordados os papéis e responsabilidades dos agricultores e das instituições

envolvidas, como por exemplo o transporte e comercialização dos produtos, a

montagem da estrutura física para a comercialização e a divulgação da feira.

A experiência da Feira Ecológica de Santa Cruz do Sul, da maneira como foi

conduzida desde o início, sendo registrada a partir de um recorte, pode ser uma

referência importante para refletir sobre outros processos organizativos que estão em

andamento ou que se iniciarão na região ou outras regiões. Esse registro também será

importante para os agricultores como reflexão e contribuição para outros grupos e

entidades que trabalham ou pretendem trabalhar com processos organizativos dessa

natureza.

2 MUDANÇAS NO MODELO AGRÍCOLA E OS DESAFIOS PARA O

AGRICULTOR FAMILIAR

A década de 1980 demarcou o intenso questionamento do modelo agrícola

vigente, que acarretou profundos impactos sociais, econômicos e ambientais. Este

processo foi impulsionado pelos movimentos sociais e ecologistas que passaram a

criticar as perdas de renda na agricultura, a exclusão social de agricultores familiares, a

degradação ambiental (representada pela intoxicação de agricultores, erosão dos solos),

entre outras tantas “externalidades”.

As alternativas estimuladas por estes movimentos de resistência foram

chamadas, num primeiro momento, de agricultura alternativa, representada pela crítica

ao modelo anterior, caracterizada por sua negação, em vista de ser socialmente

excludente, economicamente dependente e ambientalmente destrutivo. Estas iniciativas

foram ganhando espaço, densidade e adesão, chegando a tornar-se diretriz de políticas

públicas para agricultura, como é o caso atual do Rio Grande do Sul.

No cerne deste processo tiveram um papel de destaque algumas ONGs

(Organizações Não Governamentais) que,, durante o processo de abertura democrática,

contestaram o modelo e criaram alternativas de viabilização da agricultura familiar.

Uma destas iniciativas foi desenvolvida pelo CAPA (Centro de Apoio ao Pequeno

Agricultor), promotor da experiência que ora descrevemos e analisamos. Esta

organização trabalhava em algumas comunidades, principalmente de religião luterana,

sendo estas apoiadas e motivadas a desenvolver formas associativas de produção. Nos

anos 1980, o trabalho baseava-se em processos de conscientização dos problemas de

saúde humana e problemas ambientais, ocasionados pelo uso de agrotóxicos. Ao mesmo

tempo, foram sendo desenvolvidas alternativas para reduzir e eliminar o uso de venenos,

bem como alternativas à cultura do tabaco que, além de não ser um produto benéfico à

saúde, está relacionado a um pacote de insumos químicos e a um mercado sobre o qual

os agricultores não possuem praticamente nenhum tipo de controle. Algumas facilidades

de crédito, assistência técnica e a garantia de comercialização do produto explicam a

importância daquele produto para a economia regional, e mantém o círculo de

dependência contra o qual as alternativas propostas pelo CAPA se insurgiram.

Dentro deste contexto e processo histórico desenvolvemos este estudo, iniciando

com o contexto do ecologismo que demarca a construção de um processo de

conscientização e crítica ambiental que teve fortes reflexos na discussão do modelo

agrícola. Esta contextualização será seguida por uma caracterização do ambiente social

e regional onde o CAPA atua, procurando destacar os limites e possibilidades desta

experiência. Por último, será caracterizada a constituição da Feira Ecológica que

representa a expressão de um trabalho que busca articular a promoção e o

desenvolvimento rural nas dimensões econômica, social e ambiental.

2.1 O Alvorecer do Ecologismo

A produção de base ecológica pode ser considerada como fazendo parte de um

processo de transição ambiental, onde diversos acontecimentos propiciaram o

crescimento do ecologismo em nível mundial.

A produção com base nos insumos químicos iniciou com os fertilizantes e se

reforçou com todos os biocidas criados pela indústria, e se estendeu por todas as partes

do planeta, em maior ou menor intensidade. Significa dizer que as conseqüências da

utilização desses insumos, em muitos casos indiscriminadas, também alcançaram todos

4

os quadrantes do planeta, embora com intensidades diferenciadas, por que muitas

regiões, a exemplo da Antártida, foram afetadas indiretamente.

Tratados marginalmente por longo tempo, estes problemas apenas se tornaram

visíveis ao grande público quando sua crítica ao método convencional mostrou-se

consistente. Nas Conferências das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o

Desenvolvimento, ocorridas em 1972 e 1992, materializaram-se as evidências de que os

danos causados pela agricultura convencional eram de tal magnitude que urgia mudar de

paradigma. A agricultura se tornara a principal fonte difusa de poluição no planeta,

afetando desde a camada de ozônio até os pingüins na Antártida, passando pelo próprio

ser humano (KHATOUNIAN, 2001).

Dentro do que se denomina de agricultura sustentável, existe uma imprecisão

conceitual que permite agregar em torno de si diferentes posições, desde aquelas que

propõem a redução de insumos químicos no processo produtivo, até as que buscam

alternativas novas e mais radicais para as práticas produtivas e sociais, tentando

substituir aquelas que a agricultura moderna implantou nas últimas décadas

(BRINCKMANN,1977 apud VEIGA, 1994).

Neste contexto, houve muitas reações formadas em função dos problemas

trazidos pelo modelo de produção convencional. Já na década de 1920, se esboçam os

primeiros movimentos no sentido de mudança, utilizando-se de termos como natural,

orgânico, biológico e outros, para diferenciarem-se do modelo ou doutrina dominante

baseada na química. Na Alemanha, esse movimento teve Rudolf Steiner como precursor

da Agricultura Biodinâmica e foi referência para a pesquisa de várias gerações. No

Brasil, a Agricultura Biodinâmica estabeleceu-se no Estado de São Paulo, mais

especificamente em Botucatu, com ligação à colônia alemã.

A Agricultura Orgânica surge na Inglaterra, entre os anos de 1925 e 1930, tendo

como referência o agrônomo Albert Howard e se dissemina pelos Estados Unidos, nos

anos 40.

A Agricultura Natural teve Mokiti Okada como figura central e desenvolveu-se

no Japão nas décadas de 30 e 40. No Brasil, a difusão da Agricultura Natural e de seus

métodos esteve ligada à colônia japonesa. Atualmente, possui relações empresariais

para certificação e comercialização desses produtos.

A Agricultura Biológica surge na Suíça, em meados da década de 1930, com

base nos princípios criados por Hans Peter Müller e é difundida na França por Claude

Aubert.

2.2 A Produção Ecológica no Brasil

No Brasil, o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos foi intensificado na

década de 1970, através das facilidades de crédito rural fornecidas pelo governo e

estimulada pelas empresas fornecedoras desses insumos2. Nesse período, também já se

esboçava uma reação contra o modelo agroquímico, tendo como principais nomes os de

Ana Maria Primavesi, Adilson Paschoal e José Lutzenberger. Essas reações deram

início a um movimento que aos poucos foi sendo incorporado por pessoas e instituições.

Inicialmente, eram desconsiderados e ridicularizados como “defensores do atraso”. A

partir da década de 1970, também se intensificaram os eventos internacionais com a

finalidade de debater sobre preservação e degradação ambiental, o que passou a

influenciar muitos debates e decisões locais, regionais e mundiais.

2 Ver: MARTINE, George & GARCIA, Ronaldo Coutinho. Os impactos sociais da modernização agrícola. São

Paulo, Editora Caetés, 1987.

5

A produção ecológica foi potencializada nos últimos 30 anos pela demanda de

produtos com qualidade biológica diferenciada e que reduzissem os impactos negativos

sobre o ambiente. Dessa forma, justifica-se a busca e utilização de práticas que visem a

sustentabilidade dos agroecossistemas, com vistas a suprir as exigências de

consumidores mais conscientes que demandam produtos “limpos”, e, ao mesmo tempo,

apoiam as organizações e a prática de produzir com respeito a natureza.

Nas décadas de 1980 e 1990, houve rápido crescimento numérico das

organizações e produtores que passaram a apostar na produção ecológica como uma

alternativa para a agricultura familiar. O resgate e a experimentação de técnicas e

formas de manejo de sistemas de produção, juntamente com os produtores, permitiram a

expansão de conhecimento e volume de oferta, em termos de quantidade e qualidade

dos produtos. A comercialização dos produtos, inicialmente, se restringia a umas poucas

feiras e entrega domiciliar de cestas com produtos ecológicos. Atualmente, essas feiras

estão presentes em quase todos os núcleos habitacionais importantes, envolvendo

capitais e pólos regionais de desenvolvimento, principalmente das regiões centro e sul

do país, atendendo a um dos objetivos da agricultura ecológica que é a comercialização

direta entre agricultores e consumidores, com a eliminação de intermediários.

Do ponto de vista técnico, a agricultura ecológica tem sido relativamente bem

sucedida, apesar de o apoio da investigação científica e assistência técnica oficiais ter

sido quase nulo até muito recentemente. O desenvolvimento tem sido mais rápido e

tecnicamente mais sólido onde se estabelecem políticas públicas voltadas para esse fim,

seja no nível dos municípios ou dos estados (KHATOUNIAN, 2001).

A demanda por produtos ecológicos tem feito com que grandes redes de

supermercados busquem esses produtos para satisfazer uma parcela, ainda pequena em

termos percentuais, de consumidores que possuem consciência e condições financeiras

para adquiri-los. Essa demanda tem forçado o desenvolvimento de mercados atacadistas

com canais formais de distribuição e comercialização de produtos ecológicos. É

importante salientar que as estratégias produtivas e comerciais diferenciam diversos

estilos de agricultura ecológica, assim como sua fundamentação teórica3. Considerando-

se apenas o apelo inerente a essa demanda, podemos dizer que não existem processos de

organização da produção capazes de atender seu crescimento recente. Estima-se que

esse crescimento esteja em torno de 30% ao ano, com avanços maiores nos grandes

núcleos populacionais, onde o controle da origem é mais complexo e mais sujeito a

fraudes.

Existem empresas bastante engajadas em oferecer produtos ditos

“ecologicamente corretos”, procurando atender ao cada vez mais crescente número de

consumidores que estão demandando produtos menos nocivos à natureza e a sua própria

saúde (GRAZIANO DA SILVA, 1999). No entanto, verifica-se que o empresariado é

motivado por razões econômicas, não possuindo consciência da necessidade de

incorporar os parâmetros básicos da sustentabilidade no processo produtivo. O principal

atrativo é a possibilidade de lucro em função da existência de um amplo mercado a ser

explorado.

Nos últimos anos, vêm surgindo instituições interessadas (indiretamente) na

produção e comercialização de produtos diferenciados, produzidos com base em

princípios conservacionistas. Nestas organizações, os princípios de participação, gestão

democrática e a união de esforços contribuem para promover um nível de

desenvolvimento mais equânime entre as várias dimensões da sustentabilidade,

3 Ver: GUZMÁN CASADO, Gloria; GONZALEZ DE MOLINA, Manuel & SEVILLA GUZMÁN, Eduardo

(Coord.). Introducción a la Agroecología como Desarrollo Rural Sostenible. Madrid: Ediciones Mundi-Prensa,

2000. p.80.

6

deixando de sobrevalorizar o aspecto econômico e concedendo grande importância aos

aspectos ambientais e sociais. Esses princípios estão em consonância com o que vem

sendo desenvolvido pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor – CAPA (GIOVANA,

2002).

A compreensão desse processo a nível local, a partir das percepções dos

agricultores participantes da Feira Ecológica, requer, entretanto, que se analise

brevemente o contexto histórico regional sob a perspectiva das atividades fumageiras,

dada a sua enorme relevância, quer seja do ponto de vista econômico, quer seja das suas

repercussões sociais e ambientais.

3 O CONTEXTO REGIONAL: FUMICULTURA E COMPLEXO

AGROINDUSTRIAL4

“O produtor de fumo é como um passarinho que se tem

na mão. Não se aperta porque senão ele morre, porém,

não se abre por que senão ele foge” (Depoimento de

um dirigente sindical rural).

Para compreendermos a lógica de produção da agricultura familiar, temos

necessidade de avaliar sua constituição histórica. A produção de fumo na região de

Santa Cruz do Sul5 foi decorrente da estratégia produtiva desenvolvida pelos núcleos de

produção familiar estabelecidos na região a partir de meados do século XlX. Esta

estratégia conciliou a especialização relativa em determinados cultivos comerciais, os

quais permitiam uma produção de subsistência e de autoconsumo em regime de

policultivo. Com o passar do tempo, essa diversificação da produção foi sendo reduzida

em termos de diversidade de cultivos e de área, dando prioridade cada vez mais aos

cultivos comerciais, especialmente aos ligados aos sistemas agroindustriais, chegando

ao limite nos anos 1990, quando mais de 80% da renda bruta dos agricultores de Santa

Cruz do Sul dependiam exclusivamente da cultura do fumo.

A produção de fumo neste núcleo colonial foi motivada pelo fato de ser um local

de colonização alemã, distante da capital e não servido por via fluvial, necessitando

assim um produto de fácil transporte, capaz de superar a concorrência com outras

colônias que vinham se desenvolvendo. Outros aspectos favoráveis à produção de fumo

estão relacionados com as condições de clima e de solo que possibilitam atingir padrões

de qualidade desejados pelo mercado de fumo.

A atividade fumageira na região passou por diferentes fases, representando

diversas formas de subordinação do agricultor ao processo produtivo, principalmente

por se tratar de um produto essencialmente comercial. No período que vai de 1848

(fundação da colônia) até 1916, os agricultores tornam-se dependentes das casas

comerciais que controlavam a informação de preços, frete e venda dos produtos como

gêneros alimentícios, ferramentas e outros insumos. Esta subordinação tornava-se

altamente vantajosa para os comerciantes6, permitindo um controle econômico e

ideológico dos agricultores.

A forma de produção integrada teve seu início em 1917, quando passa a

preponderar o capital agroindustrial, com penetração do capital internacional no

processo de produção de fumo na região de Santa Cruz do Sul. Neste mesmo ano ocorre

a instalação da “The Brazilian Tobacco Corporation”, através de empreendimento

bancado pela “British American Tobacco”, empresa inglesa que possuía o controle

4 Esta redação esteve baseada preponderantemente no Relatório de Avaliação do PRONAF/PROGER. Rio de Janeiro:

IBASE, 1999. 5 Estamos considerando a unidade especial denominada de Microrregião Fumicultora de Santa Cruz do Sul formada

pelos seguintes municípios: Candelária, Vera Cruz, Sobradinho, Venâncio Aires, Segredo, Ibarama, Mato Leitão,

Arroio do Tigre, Passo do Sobrado, Sinimbú, Gramado Xavier e Vale do Sol. Esta microrregião é responsável por

45% da produção de fumo no estado. 6 Comerciantes: proprietários das casas de comércio que controlavam a maioria das transações comerciais locais, e

por isso eram “respeitados” pela sociedade local. Eram conhecidos como “o homem poderoso”, inclusive tinham um

papel importante nas definições das políticas públicas ou pelo menos suas opiniões eram respeitadas. Freqüentemente

se candidatavam a cargos públicos ou tinham forte influência na indicação e na eleição de pessoas de seu interesse

para ocupar esses cargos.

8

acionário da fábrica Souza Cruz7, desde 1914. A partir da década de 1960, estas

empresas tornam-se transnacionalizadas. Nesta fase ocorre também um processo mais

intenso de transformação do sistema produtivo e de apropriacionismo do trabalho

familiar. Além da perda da autonomia do trabalho dos agricultores, as empresas

decidem como, quando e qual o modelo tecnológico8 a ser utilizado pelo agricultor.

Estabelece-se o vínculo contratual entre o agricultor e a agroindústria. Pelo contrato, o

agricultor se compromete a montar a estrutura necessária para o beneficiamento do

fumo, cultivar a área prevista no contrato, comprar os insumos da indústria integradora

e entregar a sua produção, estimada pela integradora; e esta se compromete a fornecer

crédito, assistência técnica, sementes e os insumos químicos recomendados para a

cultura do fumo.

Com o advento da produção integrada, iniciada em 1917 e consolidada nos

últimos 30 anos, ocorre a introdução de “inovações tecnológicas”, tais como o adubo

químico (1924) e o melhoramento genético de sementes. A base desta “modernização

tecnológica” foi preconizada pela figura do instrutor9, com a finalidade de realizar

atividades de assistência técnica, especificamente para a cultura do fumo.

Entre as grandes empresas do setor fumageiro de Santa Cruz do Sul, destacam-se

a Souza Cruz, que recebeu incentivos do governo do RS para construir o maior

complexo de processamento de fumo do mundo, com investimentos de,

aproximadamente, US$ 81 milhões; a Philip Morris, com exportação aproximada de

13,4% por ano da produção de cigarros; a Universal Leaf Tabacos, que se dedica ao

processamento e comércio de fumo em folhas, sem estrutura para fabricação de

cigarros; a Dimon, que nos últimos anos vem investindo em estruturas e equipamentos

modernos para beneficiamento do fumo. Além destas, outras empresas de menor porte

(Meridional, Sul América S.A., Kannenberg, Brasfumo Indústria Brasileira de Fumos

Ltda., entre outras) representam também uma importante contribuição para a economia

local e nacional. Anualmente, o setor fumageiro recolhe mais de US$ 6 bilhões em

impostos aos cofres públicos.

Com a institucionalização do sistema creditício, as empresas fumageiras deixam

de financiar por conta própria o processo produtivo da cultura, utilizando as linhas de

crédito subsidiado como uma “fonte de capital de giro” para as empresas. Essas

políticas de financiamento da cultura do fumo propiciaram a edificação de grandes

estruturas do setor fumageiro na região. Porém, a agricultura familiar manteve sua

relação de subordinação e dependência. Nesse sentido, torna-se importante abordar

7 Um dos maiores grupos privados do país, a Souza Cruz surgiu em 25 de abril de 1903, quando o imigrante

português Albino Souza Cruz (1870 - 1966) fundou a primeira fábrica de cigarros do Brasil, na cidade do Rio de

Janeiro. Daquela época em diante, grandes empreendimentos consolidariam a companhia. A abertura de outras seis

fábricas de cigarros nas cidades de São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife, Uberlândia e Belém resultariam na

produção de mais de 100 bilhões de cigarros por ano (Souza Cruz, 1988). Para atender aos mercados nacional e

estrangeiro simultaneamente, foi desenvolvido o parque industrial de processamento de fumo em folha. Já na década

de 20, a Souza Cruz inicia o processo de fomento a produção de tabaco no sul do país e instala sua primeira usina de

processamento de fumo em Santa Cruz do Sul. Afora esta primeira unidade industrial, outras quatro foram instaladas

nos Estados de SC e PR. Hoje, a Souza Cruz faz o beneficiamento nas unidades de Blumenau, Rio Negro e Santa

Cruz do Sul, onde se encontra desde dezembro de 1996, a maior usina de beneficiamento do mundo. As demais

unidades criadas em meados dos anos 50 foram desativadas. Atuando principalmente nas áreas de cigarros, fumo,

papel celulose e serviços financeiros, a Cia. Souza Cruz Ind. e Comércio é a holding de um grupo agroindustrial

respeitado nacionalmente. Considerada a quarta maior empresa privada do país devido ao faturamento de R$ 5,67

bilhões em 1995, a empresa detém 83% do mercado interno de cigarros e é a maior exportadora individual de fumo

do mundo com 7% do comércio mundial (Gazeta do Sul, 12/12/96). 8 Sobre esse tema, ver: LIMA, Ronaldo G. de. Práticas alternativas e convencionais na cultura de fumo estufa:

Estudos de caso. Santa Cruz do Sul: UNISC, Dissertação de Mestrado, março de 2000 9 Instrutor: em geral tratava-se de técnico de nível médio ou agricultor inovador, contratado pela empresa para

difundir o modelo tecnológico e monitorar a produção e comercialização do fumo.

9

brevemente como a cultura do fumo se inseriu no sistema de produção no âmbito da

agricultura familiar.

3.1 A Cultura do Fumo no Sistema de Produção da Agricultura Familiar

Como foi observado anteriormente, a produção de fumo foi historicamente

constituída e adaptada ao sistema de produção da agricultura familiar desta região.

Apesar da sua relevância econômica, sua produção não envolveu, necessariamente, a

exclusão de outros cultivos típicos da agricultura familiar, tais como o milho e a criação

animal. Neste sentido, é importante compreender seu significado econômico e sua

inserção no sistema de produção da agricultura familiar. Esta compreensão permitirá

entender a sua importância tanto no emprego de mão-de-obra familiar como na geração

de renda nesse sistema de produção.

Cada agricultor dedica, em média, 2 hectares para a produção de fumo, o que

significa a capacidade de trabalho para que uma família possa dar conta das exigências

nas diferentes fases da cultura. Eventualmente, são contratadas pessoas de fora da

propriedade, principalmente para auxiliar na colheita e preparo do fumo para a secagem,

por ser a fase de maior necessidade de mão-de-obra. A classificação do fumo, realizada

pelo agricultor, também demanda força de trabalho considerável, com a vantagem de

que o agricultor pode planejar melhor o tempo, diferentemente da colheita, que deve ser

realizada de acordo com a maturação do fumo para garantir a qualidade exigida pela

empresa. Os gastos com mão-de-obra, em média, giram em torno de 210

dias.homem/hectare, para efeitos do cálculo dos custos de produção.

Entre os meses de maio e junho, é realizada a semeadura do fumo, sendo que o

transplante para a lavoura se inicia no mês de agosto. Por sua vez, a comercialização da

safra, em alguns municípios, começa no mês de dezembro, se estendendo até junho do

ano seguinte. Dependendo do preço e do interesse da empresa, o processo de

comercialização tem sido o momento de maior tensão entre a empresa e o agricultor,

tendo em vista que a empresa refaz a classificação do fumo, com critérios que nem

sempre são óbvios e transparentes para o agricultor. Uma das justificativas de alteração

na classificação apresentada pela empresa é a exigência do mercado externo, associada

a um determinado padrão de classificação, o que freqüentemente acarreta prejuízo ou

descontentamento ao agricultor.

A indústria fumageira tem utilizado como estratégia a motivação para a

diversificação da propriedade a fim de que o agricultor possa garantir a produção para a

subsistência e a reprodução da unidade de agricultura familiar. Parece haver uma certa

contradição nesta estratégia, pois o processo produtivo do fumo absorve considerável

mão-de-obra, principalmente entre os meses de maio e janeiro, o que dificultaria a

compatibilização dessa mão-de-obra com a exploração da área disponível para outras

atividades produtivas nas propriedades rurais. Ainda temos que considerar as recentes

estratégias adotadas pelas empresas, no sentido de estimular a especialização da cultura

do fumo e aumentar a escala da produção. O modelo considerado estratégico10

para

10 O modelo considerado estratégico aponta no sentido da realização de um planejamento que inclua uma cultura

anual de alta produtividade e valor agregado, que requeira intensiva ocupação da força de trabalho e que tenha alta

rentabilidade por unidade de área, como é o caso do fumo. Conjuntamente, deveria ser cultivada uma cultura

permanente, adequada às áreas menos propícias à agricultura anual e que ocupe pouca força de trabalho, a exemplo

do reflorestamento, da fruticultura e da erva-mate. Como complemento, deveria ser escolhida uma cultura de pouca

demanda de força de trabalho que mantivesse um fluxo de caixa constante durante o ano, como é o caso do leite.

Fechando o sistema, preconiza-se a adoção de uma lavoura de subsistência, que servisse não apenas como alimento

para o consumo humano, mas também como suplemento para ração animal (e não como cultivo gerador de renda), tal como o milho e a mandioca, entre outros, conforme o Relatório de Avaliação PRONAF/PROGER. Rio de janeiro,

IBASE, 1999.

10

“garantir” a reprodução da unidade de agricultura familiar tem sido difundido também

pela Associação dos Fumicultores do Brasil – AFUBRA, e por empresas (como a Souza

Cruz), através de campanhas de reflorestamento e de hortas escolares.

Embora se aponte uma série de dificuldades para os agricultores em relação ao

cultivo do fumo, a grande maioria tem optado pela continuidade da produção, ao mesmo

tempo em que muitos agricultores ingressam a cada ano no sistema integrado do fumo.

Aliás, esse tema tem sido estudado em algumas situações, com vista a um melhor

entendimento das razões que levam os agricultores a optar ou seguir na produção de

fumo.

Olgário Vogt (1997), por exemplo, considera que as principais razões apontadas

pelos colonos para se manterem na atividade fumageira são:

- O Contrato de integração permite a garantia de comercialização da safra,

enquanto os demais produtos têm um mercado incerto.

- A assistência técnica efetuada pelos instrutores ou orientadores. O trabalho

da EMATER/RS não tem grande abrangência.

- O preço do fumo tabelado.

- A existência de seguro da produção mantido pela AFUBRA.

- O pagamento do frete do transporte do fumo da propriedade para a indústria.

- A garantia do custeio da produção.

- A tradição, já muito antiga, do plantio do fumo no município. A necessidade

reduzida de terra e de maquinário para a produção de fumo.

Alguns depoimentos analisados por este autor (VOGT, 1997) afirmam que tem

ocorrido um processo gradativo de seleção dos fumicultores, com preferência dada a

agricultores com maior produtividade e adeptos às novas tecnologias de produção. Além

disso, podemos afirmar que o processo de diversificação tem sido estimulado pelas

agroindústrias, mantendo a vitalidade do sistema de produção da agricultura familiar,

apesar de acrescer a auto-exploração do trabalho da unidade produtiva, reforçando o

processo de subordinação da agricultura ao complexo agroindustrial.

Sob essa perspectiva, justifica-se a preocupação do presente estudo, que é

justamente a de contribuir na identificação e caracterização de experiências

desenvolvidas por famílias de agricultores que buscam estratégias orientadas a reduzir

ou eliminar sua dependência ao cultivo do fumo, assim como de analisar resultados que

vêm sendo alcançados com o desenvolvimento de experiências dessa natureza. Mesmo

reconhecendo algumas vantagens do sistema integrado em que estão inseridos, muitos

agricultores ressaltam alguns limites desta integração, expressados sob distintas

dimensões e que serão abordadas posteriormente neste estudo, buscando-se reunir

esforços para desenvolver outras formas e estratégias de produzir e comercializar, assim

como de apoiar uma maior aproximação entre agricultores e consumidores.

É neste contexto da integração do fumo que algumas experiências de produção

diversificada e de comercialização direta foram sendo trabalhadas nos últimos anos na

região de Santa Cruz do Sul. A Feira Ecológica, objeto principal de análise desse

estudo, representa precisamente uma dessas experiências que será caracterizada a

seguir.

4 A FEIRA ECOLÓGICA DE SANTA CRUZ: ANTECEDENTES

A década de 1980 foi também caracterizada pelo questionamento da viabilidade

do modelo de desenvolvimento rural convencional e uma reação forte ao pacote

tecnológico da Revolução Verde. Neste contexto, setores da sociedade, com destaque

para as Igrejas, passam a investir em formas de organizações capazes de apoiar os

agricultores familiares na busca de alternativas de produção e de comercialização. As

propostas, na época, eram baseadas na diversificação da produção com menor impacto

ao meio ambiente e na organização dos produtores para fortalecer as comunidades e

evitar o êxodo rural. Os monocultivos com uso intensivo de insumos químicos,

associados às empresas integradoras, já causavam preocupações quanto a

sustentabilidade dos sistemas e o empobrecimento dos agricultores. O CAPA constitui

uma das instituições que vem colaborando no desenvolvimento dessas iniciativas, cujo

papel pode ser entendido como fundamental na construção coletiva da Feira Ecológica.

Em Santa Cruz do Sul, o CAPA11

foi instalado em 1987. Com o apoio dos

Pastores da IECLB12

, o CAPA inicia seu trabalho voltado aos agricultores das

comunidades Luteranas da região. O primeiro grupo assistido foi a União Serrana. Com

financiamento do Fundo Rotativo do CAPA, foi adquirido um caminhão para

transportar frutas e hortaliças para comercializar em Santa Cruz do Sul. Seus principais

mercados eram as creches e feiras livres. Em 1989, a União Serrana passa por uma crise

e acaba se dividindo em grupos com interesses específicos, como o mel, a erva-mate e

as plantas medicinais. A crise, segundo relatos dos agricultores e técnicos, se deu

basicamente por dois motivos: o primeiro foi o aumento do preço do fumo e o

conseqüente desinteresse dos agricultores em continuar com a experiência de

comercialização direta de frutas e hortaliças; o segundo foi um problema de método em

que os técnicos construíram a proposta e acabaram operacionalizando várias etapas do

processo a exemplo de tarefas associadas com transporte e comercialização dos

produtos, o que terminou gerando forte dependência dos agricultores, desestimulando

seu comprometimento e responsabilização com o processo.

No ano de 1992, o antigo distrito de Trombudo, onde foi criada a União Serrana,

emancipa-se de Santa Cruz do Sul e recebe o nome de Vale do Sol. A primeira

administração municipal assinou um convênio com o CAPA, através da Secretaria da

Agricultura Municipal, para prestar a assistência técnica aos agricultores. Em 1995,

começa a ser implantado um projeto financiado pelo Fundo Nacional do Meio

Ambiente, com o objetivo principal de organizar e orientar práticas de manejo,

conservação e recuperação do solo para implantação de novas culturas dentro de um

enfoque de diversificação da produção com práticas conservacionistas. Esse projeto foi

importante porque motivou os agricultores e desencadeou um processo rico de

organização para a implementação do projeto, originando a Associação de Agricultores

Nova Esperança – AANE, com a participação de trinta e cinco famílias de agricultores.

Outro elemento importante foi o processo de formação através de cursos e visitas em

outros grupos e municípios, para buscar e promover o intercâmbio de conhecimentos e

experiências. Em 1996, é retomada a proposta de comercialização de produtos

ecológicos. Inicialmente, a comercialização passou a ser realizada com a constituição de

um entreposto na sede do CAPA em Santa Cruz do Sul, tendo como prioridade produtos

não perecíveis.

11 Atualmente, o CAPA possui três núcleos no Rio Grande do Sul, localizados nos municípios de Pelotas, Erechim e

Santa Cruz do Sul. 12 IECLB: Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil

12

Em 1996, começa a ser construída a proposta da Feira Ecológica, que nesta

monografia constitui o tema central. Como não havia interesse de todos os integrantes

do grupo da AANE, apenas dez famílias decidiram assumir o desafio de produzir e

comercializar seus produtos na Feira Ecológica. Entretanto, outro grupo de Linha Seival

(Núcleo de Agricultores Ecologistas de Santa Cruz – NAESC), assessorado pelo Centro

Diocesano da Igreja Católica, no município de Santa Cruz do Sul, aproxima-se do

CAPA também com o objetivo de participar da Feira. Apesar da experiência e

caminhada13

destes grupos, houve um período de discussão e “amadurecimento” da

proposta da feira, onde as regras, papéis e responsabilidades foram sendo gradualmente

definidos entre todos os agricultores envolvidos.

No final de 1997, estes dois grupos, AANE e NAESC, começam a

comercialização na Feira Ecológica, com freqüência de um dia por semana.

Considerando o potencial de comercialização de produtos ecológicos, outros

agricultores e grupos começam a manifestar interesse em se dedicar, ou pelo menos

fazer uma tentativa como alternativa. Assim, em 1998, outro grupo de agricultores de

Vale do Sol, com uma característica distinta porque esses agricultores provinham de

comunidades diferentes, mas já com uma relativa experiência em produção ecológica,

resolveram também, apoiados e motivados pelo CAPA e os outros dois grupos, a

ampliar a produção e realizar a comercialização através da feira. Este grupo, com o

nome de De Olho na Ecologia – DONE, começou com 20 agricultores de três

comunidades do município de Vale do Sol.

Em meados de 2000, no Município de Vera cruz, distante 10 km de Santa Cruz

do Sul, o CAPA e a EMATER/RS14

iniciaram um trabalho articulado na comunidade de

Linha Floresta. Ali se formou o Grupo Ecoflorestal Sintonizado, que neste mesmo ano

iniciou a comercialização de seus produtos numa feira ecológica instalada em Vera

Cruz, em função desse trabalho e do apoio da Prefeitura Municipal. Este grupo também

passou a comercializar seus produtos na Feira Ecológica de Santa Cruz do Sul.

Os grupos envolvidos nas atividades da Feira Ecológica (ver Tabela 1) fizeram

um acordo e assumiram o compromisso em trabalhar a produção, tendo como base os

princípios da Agroecologia. Segundo Gliessman (2000), a ciência da Agroecologia

enfatiza a valorização do ecossistema e, a partir daí, procura-se realizar o

aproveitamento de resíduos utilizados em outras atividades dentro da própria unidade

produtiva para servir como adubo, quando se trata da produção agrícola, ou para servir

de alimento aos animais. Sendo assim, objetiva-se aproveitar tudo o que vem de dentro

da propriedade, reduzindo a dependência de insumos externos e, conseqüentemente,

diminuindo os seus impactos, contribuindo para que se construam sistemas de cultivo

que ajudem os produtores a otimizar os recursos disponíveis provindos de outras

atividades realizadas no próprio ecossistema.

13 A caminhada do Núcleo de Agricultores Ecologistas de Santa Cruz é caracterizada pela experiência e acúmulo

sobre processos organizativos durante os anos anteriores ao início da Feira Ecológica. Essa caminhada, segundo os

agricultores, teve como principal instituição de apoio a Comissão Pastoral da Terra (CPT) para os temas como

associativismo e cooperativismo. 14 EMATER/RS: neste caso trata-se do Escritório Municipal de Vera Cruz, cuja equipe técnica já vinha trabalhando

com os agricultores da comunidade de Linha Floresta.

13

Tabela 1 – Associações e grupos pertencentes a Feira Ecológica

Nome da

Associação

Município

do VRP

Número

Famílias

Ano de

Início

Principais

Produtos

Local de

Comercialização

AANE15

(grupo da

Feira)

Vale do Sol 10 1996 Hortaliças, ovos,

frutas, panifícios

Entrepostos e feiras

ecológicas Santa Cruz Sul

Grupo

NAESC –

Linha Seival

Santa Cruz do

Sul

10 1997 Hortaliças, arroz,

frutíferas, panifícios

Entrepostos e feiras

ecológicas Santa Cruz Sul

DONE16

Grupo de Olho

na Ecologia

Vale do Sol 09 1998 Hortaliças, frutas,

conservas, ovos

panifícios, frango

caipira, geléias e

schmiers

Entrepostos e feiras

ecológicas Santa Cruz Sul

Grupo

Ecoflorestal

Sintonizado

Vera Cruz 11 2000 Hortaliças,

frutíferas, panifícios,

queijo

Entrepostos e feiras

ecológicas Santa Cruz Sul

e Vera Cruz; merenda

escolar.

Fonte: pesquisa monografia Cássio Peiter (adaptação)

15 A AANE é composta de 35 famílias de agricultores da comunidade Alto Castelhano, Vale do Sol. Dessas 35

famílias, apenas um grupo de 10 famílias participam da Feira Ecológica, com o mesmo nome da associação. A

AANE continua com suas trinta e cinco famílias realizando reuniões, cursos e demais atividades definidas pelos

associados. Podemos dizer que a AANE também trabalha com temas e grupos de interesse. Um desses grupos é o da

Feira Ecológica. 16 O Grupo De Olho na Ecologia iniciou com 20 famílias, mas apenas 09 participam da Feira Ecológica.

5 A FEIRA ECOLÓGICA VISTA PELOS AGRICULTORES

A Feira Ecológica, quando foi “idealizada” pelos agricultores e assessores,

passou a ser uma experiência com características especiais, pelo menos para a região,

por se tratar de planejamento e comercialização realizada por grupos de agricultores,

mesmo a produção sendo individualizada.

Os itens da pauta de decisão desses grupos merecem ser avaliados, tendo em

vista a potencialidade do mercado do tabaco, o pacote tecnológico, a garantia de

comercialização deste produto e o conhecimento específico acumulado em relação ao

sistema de produção, comparado com o “novo” desafio de trabalhar com um sistema de

produção mais complexo para atender o mercado da feira e a necessidade de aprender

ou reaprender a produzir com base em práticas ecológicas e de forma sistêmica. E,

ainda, sem nenhuma garantia prévia de comercialização e de crédito.

Para tanto, buscou-se trazer à visão dos agricultores através de observação

participante nas feiras, conversas e entrevistas semi-estruturadas. A escolha dos

entrevistados teve como critérios a participação na experiência da feira desde o início do

processo, a participação freqüente na comercialização dos produtos na feira e ocupar

algum “cargo” de coordenação ou liderança nos grupos.

A cultura do fumo foi utilizada nas entrevistas como parâmetro para analisar as

mudanças ocorridas com as atividades da feira, considerando a cultura do fumo e as

atividades da feira como dois sistemas de produção com peculiaridades, identificando

essas para fazer algumas comparações mais qualitativas do que quantitativas, para

facilitar a reflexão com os agricultores.

Entre as instituições envolvidas na experiência da feira, foi priorizado o diálogo

direto com técnicos da equipe do CAPA para buscar informações e percepções dos

técnicos sobre a experiência, principalmente sobre limites, potencialidades e

perspectivas futuras para a experiência em estudo.

A seguir, seguem-se algumas análises sobre o desenvolvimento dessa

experiência a partir dos relatos dos agricultores.

5.1 Dimensão Econômica

Tomando por base o trabalho de Costabeber e Moyano (2000), assumimos que

“no centro do processo de ecologização, desde a dimensão econômica, estaria, pois, a

incorporação e intensificação tecnológica via adoção de estilos de produção agrícola

poupadores de capital e energia, abrindo caminho, assim, para a implementação de uma

agricultura de base ecológica. Paralelamente ao processo de ecologização, se geraria um

processo de ação coletiva, através do qual os atores sociais identificam seus interesses,

necessidades e expectativas comuns a respeito do desenvolvimento das alternativas

elegidas. Neste caso, a elaboração e colocação em prática de estratégias coletivas

dirigidas ao incremento da renda agrária – via a organização da produção e conquista de

mercados alternativos, por exemplo – constituiriam o fundamento principal da luta dos

agricultores para superar a estagnação e marginalização econômica a que estariam

submetidos”.

No contexto da experiência com a Feira Ecológica, analisamos a situação de

alguns agricultores, a partir de suas percepções, em relação ao fumo ou outras culturas

de maior significado econômico nas propriedades. Na opinião dos agricultores

entrevistados, o fumo continua sendo uma cultura economicamente rentável, embora em

determinadas épocas o preço cai significativamente em função do mercado internacional

15

ou o retorno é menor em função do sistema de classificação adotado pelas empresas

fumageiras. Neste ano de 2002, percebe-se um maior interesse pela cultura do fumo e a

realização de novos investimentos em estruturas por parte dos agricultores, pois o preço

está atrativo e são boas as perspectivas para a negociação do fumo nessa safra.

A partir da reflexão efetuada com os entrevistados, se percebe que, apesar da

significação econômica importante que o fumo ainda segue tendo no contexto das

propriedades rurais, as atividades relacionadas à Feira Ecológica apresentam

significados econômicos distintos para os agricultores envolvidos, o que será mostrado

abaixo.

5.1.1 O Aumento da Renda e Diminuição de Custos de Produção

É uma tarefa difícil discutir isoladamente a questão econômica com esses

agricultores feirantes. Em primeiro lugar, pela falta de controle preciso, e, em segundo,

pela dificuldade de fazer uma análise econômica desvinculada de outras dimensões,

porque as desvantagens de uma dimensão são compensadas com vantagens de outras.

Com o decorrer das entrevistas, foi-se percebendo que os participantes desta experiência

da Feira Ecológica possuem muito mais informações relevantes baseadas em aspectos

qualitativos do que quantitativos, principalmente no que se refere aos dados

econômicos.

Conforme afirma um dos agricultores entrevistados, a cultura do fumo não tem

sido um mau negócio em termos de renda, especialmente para quem possui uma

estrutura de produção bem organizada, com capacidade para obter bons rendimentos.

Para a maioria dos agricultores, no entanto, a decisão de participar da feira surgiu como

uma busca de alternativa de renda complementar à cultura do fumo. Com o passar do

tempo, a alternativa representada pela Feira Ecológica passou a significar, para alguns

agricultores, não somente uma complementação de renda, mas também a atividade

principal da propriedade, pois:

“Aquele agricultor que investe e se dedica “com capricho” na produção

de frutas e hortaliças, também consegue obter bons resultados

econômicos, inclusive no mesmo nível do fumo” (Entrevistado 3)17

.

A produção de fumo exige investimentos altos em estruturas (galpões, estufas

para secagem, etc.). Mesmo havendo certas facilidades de financiamento oferecidas por

parte das empresas, esses investimentos têm que ser pagos pelo agricultor. Por outro

lado, no caso das atividades da Feira, os investimentos são bem mais baixos, e além

disso, muitos desses investimentos podem ser realizados de forma coletiva. Assim, os

custos de produção tendem a diminuir ao longo do tempo, porque a medida que a

transição agroecológica18

vai avançando, também vai diminuindo o uso de insumos na

produção em função do restabelecimento do equilíbrio do agroecossistema.

A diminuição de custos não deve ser analisada somente com comparação entre o

sistema que gasta mais ou menos que o outro. Ou seja, deve ser encarada como um

desafio para todas as atividades da propriedade, e isto está acontecendo, segundo as

17 Salienta-se que, para os agricultores que ainda mantiveram a produção de fumo, a atividade da feira representa em

torno de 20% da renda bruta do estabelecimento. 18 “A transição agroecológica se refere a um processo gradual de mudança, através do tempo, nas formas de manejo

dos agroecossistemas, tendo-se como meta a passagem de um modelo agroquímico de produção (que pode ser mais

ou menos intensivo no uso de inputs industriais) para outro modelo ou estilos de agricultura que incorporem

princípios, métodos e tecnologias com base ecológica” (CAPORAL E COSTABEBER, 2000).

16

informações dos agricultores entrevistados, com a maioria das propriedades dos

feirantes. Inclusive na cultura do fumo, o uso de insumos químicos tem sido reduzido

nos últimos anos. Alguns agricultores afirmam que até já conseguiram produzir fumo

sem o uso de agrotóxicos.

Um dos agricultores pertencentes a um dos grupos em estudo e que hoje é um

dos mais motivados defensores da proposta ecológica, apresenta justificativas concretas

para a necessidade de mudar a forma de produzir. Objetivamente, destaca a sua situação

financeira enquanto produtor convencional de arroz, pois estava endividado com o

banco sem condições de se recuperar, caso continuasse produzindo da mesma forma.

Além disto, a situação grave de saúde pelo uso freqüente de agrotóxicos era uma

preocupação de toda a família. Esse agricultor não ingressou no início dos trabalhos do

grupo por entender que, se a agricultura moderna, assentada na utilização de técnicas

recomendadas pela pesquisa oficial para a cultura do arroz, não viabilizava a sua

produção, seria mais difícil produzir e ter lucro sem lançar mão dessas técnicas e

insumos químicos. Mais tarde, sua opção de participar da Feira Ecológica foi baseada

em três fatores: em primeiro lugar, o incentivo da família e o apoio do CAPA; em

segundo, a situação de saúde; e, em terceiro, e talvez o mais relevante, a situação

financeira e as dívidas com os bancos. Atualmente, esse agricultor possui um sistema

diversificado de produção com envolvimento de toda a família, tendo recuperado a área

de arroz com produção ecológica e já conquistando mercado inclusive fora do Estado.

Segundo suas declarações, as dívidas estão praticamente liquidadas. Além de

representar um exemplo para a comunidade, esse agricultor tornou-se uma liderança

entre os grupos e um dos defensores mais convictos da agricultura ecológica, já tendo

também convencido alguns vizinhos sobre a necessidade de mudança do sistema de

produção. Um desses vizinhos está ingressando no grupo.

Sobre o aumento da renda, um dos fatores relevantes está relacionado com os

consumidores. O produto ecológico representa um nicho de mercado com estruturas

precárias de divulgação e comercialização, comparadas com o mercado convencional.

Por isso, mesmo estando aumentando o número de consumidores conscientes sobre a

importância da qualidade dos alimentos, existem limites que dificultam o acesso do

consumidor a esses produtos. Como exemplo desses limites podemos citar a escala de

produção, a sazonalidade dos produtos, a diversidade (no super mercado, além de uma

maior diversidade, encontra-se praticamente todos os produtos alimentícios que a

família necessita), e horários de comercialização incompatíveis (horário comercial

dificulta o acesso principalmente para o trabalhador assalariado), entre outros. Os

agricultores reconhecem que necessitam construir outras estratégias no sentido de

facilitar o acesso e atrair mais consumidores.

5.1.2 A Comercialização e Distribuição da Renda ao Longo do Ano

“Para quem gosta de trabalhar, quem tem espírito de trabalho, enfrenta sol,

chuva, calor e gosta. No caso do fumo, no período da comercialização, que

deveria ser o momento de compensar todo o esforço, acabava sendo a hora da

tortura, de estresse e de indignação” (Entrevistado 2).

Essa situação, vivida durante vários anos, fez com que o “Entrevistado 2”

desistisse de produzir fumo há seis anos. Cabe salientar que com a produção de fumo

também já havia eliminado quase todos os insumos químicos, mas mesmo assim tomou

17

a decisão de não mais produzir fumo. Para sustentar esta decisão, fez algumas

economias para conseguir se manter até encontrar outra alternativa.

Um dos grupos realiza controle contábil de todas as atividades da Feira e agora

seus membros pretendem apresentar esses dados para todas as famílias da associação,

no sentido de fazer um balanço e discutir a viabilidade e as perspectivas para o futuro.

A distribuição da renda durante todo o ano, com entradas semanais, favorece em

relação ao fumo que é comercializado somente numa época do ano. Para quem sabe

guardar ou quem consegue guardar para passar o ano, terá de onde retirar no decorrer do

ano, mas para quem não consegue, a comercialização da Feira passa a ser uma fonte de

manutenção para o período de entressafra, comenta um dos entrevistados.

Com as atividades da Feira, os agricultores não possuem um valor definido todos

os meses, mas a cada mês há uma provável entrada de recurso que permite cobrir as

despesas mensais como luz, telefone e parte das necessidades com produtos alimentícios

que não são produzidos na propriedade, a exemplo de café, farinha e outros. Outra

vantagem é que os agricultores podem realizar compras de produtos mais baratos,

utilizando o mesmo meio de transporte que leva os produtos da feira, e receber o

produto na comunidade, racionalizando seu tempo.

Cabe ainda registrar que uma das polêmicas que ainda gira em torno da

comercialização de produtos ecológicos é sobre o preço do produto. Algumas

Instituições defendem e criam expectativas com os agricultores de que o produto

ecológico deve ter um preço maior que o convencional. No caso da Feira Ecológica de

Santa Cruz do Sul, o preço do produto é definido pela média dos preços do mesmo

produto, a partir de um levantamento realizado semanalmente nos mercados locais. Esta

definição com os grupos de agricultores foi com a intenção de evitar que o preço seja

um limitante de acesso a estes produtos pelas diferentes classes sociais.

5.1.3 Autonomia dos Agricultores

Embora alguns agricultores se consideram independentes e autônomos com a

produção de fumo, observa-se que a empresa de alguma forma consegue “amarrar o

produtor”, seja com um pacote ou com uma nova tecnologia, comenta um dos

entrevistados. É perceptível que a cada ano novas exigências são apresentadas pelas

empresas, como aumento da quantidade de plantas, utilização de novas técnicas e/ou

produtos.

Os agricultores que não possuem capacidade, tanto financeira como de mão-de-

obra, para acompanhar as exigências da cultura do fumo, acabam contraindo novos

financiamentos e, em decorrência, muitos abandonam a cultura do fumo, em resposta ao

processo seletivo mencionado anteriormente. Para produzir fumo há a necessidade de

montar e manter uma estrutura que possui um custo elevado. Por outro lado, a produção

de hortaliças e frutas, tal como vem sendo preconizada na experiência em questão,

possui custos relativamente mais baixos, possibilitando um maior grau de liberdade e

independência por parte dos agricultores.

A entrada de dinheiro todas as semanas também é um fator importante. Hoje os

agricultores estão começando a fazer esse cálculo, porque cada agricultor possui

despesas mensais, sendo que alguns deles passaram a comprar uma série de produtos

(inclusive hortaliças) no comércio local, dada a sua dedicação quase exclusiva ao fumo.

Isso cria uma angústia e muitas vezes o vício de comprar “fiado” (ou seja, a prazo, para

pagar com os recursos da safra), pagando mais pelos produtos e com acréscimo de juros.

18

As atividades da Feira propiciam uma maior autonomia e participação das famílias

nas decisões sobre o que e quando produzir para o consumo próprio e para a

comercialização. Os agricultores também salientam a importância da Feira Ecológica

para a agricultura familiar, como um espaço de participação de todos os integrantes da

família com suas idéias e seu trabalho em todo o processo. Ela ainda proporciona o

estabelecimento de novas relações entre as famílias envolvidas e, através da venda

direta, entre os agricultores com os consumidores.

5.2 Dimensão Ambiental

O trabalho anterior à Feira, realizado pelas entidades de apoio aos grupos de

agricultores, já tinha como um dos principais objetivos a busca do equilíbrio ambiental e

a sensibilização para formação de uma consciência ecológica. Para isto, muitos cursos

de formação e capacitação de agricultores enfatizavam a importância do equilíbrio

ambiental, sendo que as atividades relacionadas a Feira seguiram na mesma direção.

A produção ecológica não significa substituição de pacote. É, sobretudo, do

ponto de vista técnico, o manejo adequado do sistema com o objetivo de produzir

utilizando os recursos naturais disponíveis, sem agredir o ambiente. As técnicas e

insumos ecológicos19

são utilizados em processos de transição ou quando há

necessidade de recuperar situações de desequilíbrio ambiental.

Nas entrevistas procurou-se investigar se a participação na Feira Ecológica teve

influência na generalização de critérios ecológicos para tomada de decisões dos

agricultores quanto ao manejo de outros cultivos e práticas de recuperação e

preservação de recursos naturais, tais como solos, nascentes, mata ciliar, manejo de

dejetos, entre outros, na perspectiva da sustentabilidade ambiental20

.

Em sua maioria, os agricultores envolvidos na Feira já estavam comprometidos

com trabalhos de reorganização gradual do sistema de produção, objetivando recuperar

e manter a capacidade produtiva dos agroecossistemas, através da adoção de métodos,

técnicas e processos de produção ecologicamente mais apropriados. As atividades da

Feira forçaram algumas alterações no sistema e um replanejamento de algumas linhas

de produção, e até mesmo de estruturas para dar conta das demandas de produção

definidas pelos grupos ou pelos consumidores. Para isto tiveram que ou “explorar”

novas áreas das propriedades, ou recuperar áreas, ou alterar o manejo e o rodízio dos

cultivos. As discussões para a organização da Feira com produção ecológica com

orientação técnica reforçaram o desejo de produzir produtos mais saudáveis e manejar

os recursos naturais sem agredi-los.

19 Insumos ecológicos são produtos elaborados ou formulados pelos agricultores para suprir carências nutricionais das

plantas, como adubo orgânico e biofertilizante; ou para controlar doenças e ataques de insetos em plantas que

apresentam desequilíbrio nutricional. Existem acordos sobre quais desses produtos podem ser utilizados nos produtos

que são comercializados na Feira Ecológica. 20 A sustentabilidade ambiental local exige que reconheçamos as unidades naturais que vamos manejar (os

ecossistemas que são objeto de apropriação) e adaptemos a produção às leis ecológicas que informam e mantêm as

capacidades dos ecossistemas. Quer dizer, é necessário dsenhar sistemas de produção que funcionem em harmonia, e

não em conflito, com as leis ecológicas. (Agroecologia e Desenvovimento Rural Sustentável, Porto Alegre, v.2, n 2,

abril/junho.2001)

19

5.3 Dimensão Social (família, grupo, comunidade)

5.3.1 Relações Sociais: família, grupo

Com a experiência da feira se aprende muito o cooperativismo, no sentido de

compartilhar tarefas e ajudar o próximo, e isto se reflete nas relações internas à

família e com os vizinhos (Entrevistado 1).

Para Costabeber e Moyano (2000), “a dimensão social contempla, também, um

processo de ação coletiva de caráter identitário. Através deste, os atores estabelecem

relações de interesse comum no sentido de buscar o reconhecimento, a inclusão social e

a construção de alternativas orientadas a resolução de seus próprios problemas. Como

exemplo disso, estaria a conquista de oportunidades para expressar seus pontos de vista,

desejos, crenças e expectativas em torno ao seu futuro como agricultor e cidadão”.

“A idéia de cooperação envolve também a idéia de vantagem racional ou o bem

de cada participante. Significa aquilo que os envolvidos na cooperação – sejam

eles indivíduos, famílias, associações, ou mesmo estados nacionais – estão

tentando obter, quando o esquema é considerado do seu ponto de vista. Ora, a

idéia de estar tentando obter ganhos também está presente no jogo competitivo,

o que nos leva a confirmar o inter-relacionamento entre competição e

cooperação” (CORENO 1996, apud MESQUITA,1999).

A cooperação, no caso dos grupos da feira, ultrapassa a idéia de vantagem

individual, pois o interesse coletivo e o conjunto de valores existentes na cultura da

organização, que são enfatizados pelas pessoas do grupo, caracterizam o espaço social

como um processo de aprendizagem permanente dos integrantes do grupo. Isso

contempla várias dimensões, que vão desde a econômica, ambiental e social, até a ética,

a cultural e a política.

“A cada ano o pessoal se distanciava mais por causa da questão do fumo; cada

um indo para o seu lado para fazer a sua parte. Aquele espírito de comunidade,

aquela convivência estava indo para traz. Com os cursos de capacitação e com

o apoio do Capa, conseguimos constituir a associação e resgatar esses valores.

Para quem tinha dúvida sobre a formação de uma associação, hoje tem uma

idéia completamente diferente e positiva. Há uma convicção forte de que a

associação deve continuar, acima de tudo pelo espaço de convivência que

representa todas as famílias. A freqüência nas reuniões mensais sempre atinge a

grande maioria dos associados, e já é uma data (primeira quarta feira do mês)

conhecida por todos do grupo e das instituições de apoio” (Entrevistado 3).

Os agricultores ressaltam que a participação da família nas atividades da feira é

uma das coisa mais bonitas, porque se pode levar as crianças para acompanhar o

trabalho e podem manusear e comer os produtos com toda a tranqüilidade. Há também

um processo educativo a partir do momento que a criança se envolve nas atividades e

começa a aprender a produzir e lidar com os recursos naturais. As crianças também se

interessam pela atividade de comercialização, pois, freqüentemente, quando há folga na

escola, acompanham a comercialização na feira. Isto possibilita entender e aprender

sobre todo o processo que vai desde o preparo da área, plantio e tratos culturais, até a

colheita e comercialização.

20

Assim, a Feira permite aos jovens entender como o trabalho desenvolvido na

propriedade se realiza, considerando aspectos relacionados à mão-de-obra, ao transporte

dos produtos, até conhecer quem consome o produto e seus interesses, e saber como

cada produto é revertido em dinheiro para suprir outras necessidade da família. Da

mesma forma, também acontece com a participação da mulher, que se envolve nas

diferentes etapas, desde a definição e planejamento do que produzir, como produzir, até

a participação na comercialização da Feira.

Os agricultores entrevistados consideram fundamental a integração da família e a

participação de todos nas atividades produtivas, citando a participação e o interesse da

esposa e dos filhos. Um dos agricultores conta que sua mãe, hoje com 84 anos de idade,

sempre ajudou na horta, tendo o prazer de receber as visitas e explicar o funcionamento

do processo produtivo, salientando a importância da produção sem utilização de

insumos químicos.

É importante registrar alguns elementos que dizem respeito a continuidade das

atividades do grupo por mais de 4 anos. Entre as questões mais relevantes, os

agricultores destacam o papel do coordenador do grupo, a organização do transporte, a

venda dos produtos e a prestação de contas (cálculo dos produtos por sócio,

contabilidade e pagamento aos associados) transparente, ágil e disciplinada. A

honestidade e fidelidade nesse tipo de trabalho são fundamentais para manter a

motivação do grupo e a satisfação de continuar no trabalho.

A experiência da Feira proporcionou o melhor conhecimento entre as famílias do

grupo, no plano pessoal e também relativamente às características das propriedades de

cada família. As reuniões mensais do grupo são em forma de rodízio, a cada mês uma

família assume a responsabilidade de receber o grupo. Os assuntos giram em torno dos

interesses do grupo que definem a pauta de discussão e, normalmente, aproveitam para

conhecer as experiências desenvolvidas pela família visitada.

O relacionamento do grupo e os vínculos criados através das atividades da Feira

Ecológica possuem um significado especial, mesmo para aqueles que no momento não

estão participando das atividades da Feira. Quem “abandonou” as atividades da Feira

relata que o que mais sentem falta é do contato semanal e das atividades que

desenvolviam (reuniões nas propriedades na forma de rodízio, visitas a outras

experiências em outros municípios, momentos de integração e lazer). A convivência em

grupo criou um ambiente agradável e uma amizade forte entre as famílias do grupo que

permanecem, pelo menos na memória de cada um. Outra manifestação desses

agricultores é que assim que resolverem seus problemas de mão-de-obra ou de saldar

dívidas e compromissos assumidos com as empresas fumageiras e instituições de

crédito, pretendem retomar as atividades da Feira. Outras famílias da Associação estão

manifestando interesse em ingressar no grupo da Feira. Com a cultura do fumo existem

limites de envolvimento das crianças, em função dos agrotóxicos e do próprio processo

que abrevia e restringe a participação da família; a empresa leva os insumos, define

como produzir e domina a comercialização.

“O pacote do sistema integrado prega o individualismo, cada um para si; as

pessoas deixam de se visitar porque não possuem tempo; têm que trabalhar,

trabalhar...” (Entrevistado 3).

O trabalho ecológico do grupo acaba se tornando conhecido na comunidade e no

município. Há também um reconhecimento dos vizinhos, mas existe a dificuldade de

convencer outros agricultores pela questão do imediatismo de resultados e a busca do

lucro de forma individual.

21

O interesse dos agricultores se manifesta pela necessidade de valorizar e

recompensar economicamente o seu trabalho e viabilizar suas estratégias de reprodução

social, através da potencialização de ações conjuntas ou coletivas. A idéia de rede

também está sendo desenvolvida pelos grupos através da criação recente de uma

cooperativa e a incorporação de novos grupos. A relação com outras instituições e

grupos de outros municípios e estados também já é uma realidade com a formação

recente da Cooperativa Ecovale21

e a participação na Rede Ecovida.22

5.3.2 Relação Agricultor/Consumidor

Analisamos a percepção do agricultor em relação ao consumidor e o que segue é

a tradução do que os agricultores entrevistados consideram mais importante nessa

relação. Essa análise tem muito a ver com a satisfação pessoal dos que trabalham

diretamente com o consumidor

Alguns valores se perdem quando não se sabe o destino do produto,

principalmente quando este é controlado por intermediários. Muitos agricultores não se

importam com os agroquímicos, porque produzem separadamente para seu consumo.

Ou seja, por não conhecer o consumidor final, via de regra, também não se sentem

responsáveis pela qualidade biológica do produto que estão oferecendo. Isto de certa

forma se confirma pelo relato de alguns agricultores externos a Feira Ecológica que,

quando questionados sobre o uso excessivo de venenos, justificaram que a produção

para autoconsumo era separada, enquanto que os produtos produzidos com venenos

seriam comercializados em outras regiões.

No caso dos agricultores da Feira, há uma satisfação de produzir para o consumo

da família, e da mesma forma servir o consumidor com um alimento saudável e de

forma transparente. Esse contato direto com o consumidor final propicia um

conhecimento mútuo e se constróem relações de amizade. É um contato direto que

cristaliza aos poucos uma relação de confiança entre consumidor e produtor, em relação

à qualidade, à procedência do produto e ao reconhecimento e valorização da

organização dos agricultores familiares. Estes aspectos foram ressaltados nas

entrevistas.

“ Com as atividades da feira se faz reunião; toda semana se vai a Feira, tem-se

contato com o consumidor e se vê que o pessoal gosta e elogia. Tudo isso motiva

e dá mais satisfação em realizar e continuar o trabalho” (Entrevistado 3).

5.3.3 Aprendizagem Significativa

Parece contraditório afirmar que os agricultores necessitam de capacitação

técnica básica para produzir frutas e verduras. No entanto, a especialização de um

monocultivo como o fumo faz com que muitos agricultores percam muito conhecimento

21 Ecovale é a Cooperativa Regional de Agricultores Familiares Ecologistas. Foi constituída em ata em 12/08/2000,

quando 40 (quarenta) associados de diferentes municípios da região de Santa Cruz do Sul, reuniram-se em assembléia

para oficializar a sua fundação. 22 A Rede Ecovida de Agroecologia é um espaço de articulação entre agricultores familiares e suas organizações,

organizações de assessoria e pessoas envolvidas e simpatizantes com a produção, processamento, comercialização e

consumo de alimentos ecológicos. A Rede trabalha com princípios e objetivos bem definidos e tem como metas

fortalecer a agroecologia nos seus mais amplos aspectos, disponibilizar informações entre os envolvidos e criar

mecanismos legítimos de geração de credibilidade e de garantia dos processos desenvolvidos pelos seus membros.

22

(saber local) adquirido durante décadas. Especialmente os mais jovens, tornaram-se

especialistas na cultura do fumo e perderam o interesse em preservar alguns

conhecimentos associados à identificação de espécies e seus potenciais de utilização,

práticas de manejo apropriado de recursos naturais como água, dejetos sólidos e

líquidos, planejamento sistêmico e sustentável da propriedade.

Também a cultura a organizativa e de solidariedade passa a ser resgatada e

valorizada com maior intensidade.

“Em termos de experiência, foi gigantesco o que aprendemos. Eu e minha

família, com o convívio permanente com os técnicos, com as pessoas do grupo e

de outros grupos; também com os cursos, viagens, crescemos muito em termos

de conhecimento e experiência. Hoje, conversamos de igual para igual com os

representantes das empresas23

, e definimos o que queremos e o que não

queremos” (Entrevistado 01).

O encontro semanal na ocasião da Feira também é um espaço importante de

integração e diálogo com os outros grupos. O contato direto com o consumidor é

também considerado um espaço importante de aprendizagem mútua, onde o agricultor

pode explicar como é realizada a produção e entender melhor como é o comportamento

e as necessidades do consumidor.

Anualmente, os grupos, juntamente com outros atores envolvidos como o

CAPA, a Prefeitura e a Universidade de Santa Cruz do Sul, promovem um encontro

anual com a participação de todas as famílias envolvidas com a finalidade de refletir

sobre a caminhada dos grupos, aprofundar alguns temas da atualidade e, principalmente,

como espaço de convivência e confraternização.

A parceria do CAPA com os agricultores se dá no sentido de apoiar na

organização dos grupos e capacitar tecnicamente os agricultores para dar conta da

necessidade de produzir em maior quantidade e sem produtos químicos e atender a

Feira.

5.4 Alimentação e Saúde

5.4.1 Alteração na Dieta

Os agricultores reconhecem que a cultura do fumo, além da dependência na

relação com a empresa, também contribuiu para modificar muitos hábitos importantes

para a cultura local. Um desse hábitos é a alimentação, que além de ter se tornado muito

restrita, revela-se cada vez mais dependente do mercado convencional. Prova disto é a

constatação de um comerciante, localizado próximo a um grupo da Feira, de que a

venda de alguns produtos, como repolho e cenoura, diminuiu depois que o grupo iniciou

a produção para a Feira.

O padrão de alimentação, após o início da produção para a Feira, teve mudança

significativa, principalmente com a diversidade de produtos que são consumidos pela

família. Isto porque houve um resgate de atividades produtivas e de manejo de recursos

naturais e culturas hortícolas que haviam sido abandonadas.

Quanto a dieta alimentar, um dos entrevistados faz algumas considerações que são

relevantes para entender as mudanças que aconteceram e o significado que passaram a

23 Empresas fumageiras, de insumos, de máquinas e implementos.

23

ter, mesmo para os agricultores que saíram do grupo da Feira. Os que saíram do grupo

da Feira foram alertados por um integrante do grupo de que em breve não produziriam

mais verduras e não teriam para consumir na família. Isto está se confirmando, pois os

ex-feirantes já estão procurando verduras com os agricultores que permaneceram com a

Feira. Acontece que, em pouco tempo, esses agricultores passam a priorizar o fumo

deixando a horta de lado, o que altera a situação da alimentação anteriormente suportada

por grande variedade de produtos que, além de comercializados, também eram

consumidos diariamente.

O consumo de verduras em termos quantitativos e qualitativos alterou

significativamente após o início das atividades da feira. “Antes, nunca se consumia tanta

verdura”, afirma um entrevistado. Enfim, todos os entrevistados afirmam que houve

uma mudança significativa na dieta alimentar a partir do momento que passaram a

produzir para a Feira, principalmente no que tange à diversidade dos produtos que

passaram a consumir, o que consideram relevante para a saúde da família e dos

consumidores que adquirem seus produtos.

5.4.2 Penosidade do Trabalho

Questionados sobre o trabalho físico, os agricultores afirmam que a diferença é

muito significativa entre a atividade de produção para a Feira e a cultura do fumo. No

caso do fumo, especialmente nas etapas de plantio de mudas e colheita, não se pode

observar qual é o dia da semana, porque a cultura exige muita dedicação para manter o

padrão exigido pela empresa. A colheita acontece no período de calor e exige agilidade

para não perder em qualidade. A secagem também exige um acompanhamento

permanente e que, às vezes, ocupa o agricultor durante boa parte da noite para manter a

temperatura adequada. É, de fato, um período que exige demasiado esforço físico. O uso

de equipamentos para aplicar venenos também é muito desconfortável. A lenha deve ser

tirada num determinado período, faça chuva ou sol, porque tem que estar pronta e seca

quando inicia a época da secagem do fumo. Ou seja, não há muita opção de escolha para

executar as tarefas do fumo nos horários mais agradáveis, porque a demanda é intensa e

o tempo para cada tarefa é exíguo.

“Percebe-se na aparência física dos agricultores; não tem agricultor que não

emagreça alguns quilos durante a safra do fumo. As atividades de produção

para a feira também exigem bastante dedicação, mas não é um serviço que exige

esforço físico concentrado. É perfeitamente possível se planejar para trabalhar

de forma mais descansada e tranqüila” (Entrevistado 3).

6 CONCLUSÃO

Como técnico da Instituição de apoio (CAPA), o autor deste estudo formulava

uma questão para ser analisada em relação aos grupos e seus distintos acúmulos em

experiências organizativas (as Igrejas utilizam “caminhada do grupo” para caracterizar a

vivência e experiência acumulada de cada grupo ou comunidade). Neste sentido,

observa-se que, após esses anos de funcionamento da Feira Ecológica, a caminhada de

cada grupo tem um papel relevante. Por exemplo, um dos grupos ressalta a importância

da Comissão Pastoral da Terra que, através do apoio e motivação para atividades

associativas e cooperativas, despertou interesse e desafiou seus membros a buscar

alternativas de sobrevivência para se manter no meio rural. Existe um elemento

importante relacionado a consciência individual e coletiva. As instituições de apoio,

principalmente as Igrejas, desempenham um papel fundamental para a formação dos

grupos. De um modo geral, observa-se que há uma diferença significativa entre os

grupos que já possuíam uma “caminhada” com alguns anos de experiência e cultura

organizativa comunitária, em relação aos grupos que se formaram a partir da proposta

da Feira Ecológica. Nesses últimos se percebe um risco maior em termos de estabilidade

e continuidade da feira, em função das expectativas pessoais não serem atendidas em

determinados momentos.

A definição clara de objetivos e estratégias de atividades, tal como essa da Feira

Ecológica, passa a ser determinante para o bom relacionamento entre os atores

envolvidos, assim como para um desenvolvimento harmonioso e com resultados

satisfatórios para todos. A definição de papéis de cada ator envolvido define as

responsabilidades das pessoas, dos grupos e das instituições de apoio. Parece óbvio, mas

em se tratando de trabalhos coletivos, a transparência, a honestidade e disciplina foram

reafirmadas pelos entrevistados como fundamentais para as relações e para o

funcionamento das atividades de maneira ágil e justa para todos. Evita-se a dependência

e permite que se possa cobrar e ser cobrado pelas responsabilidades e papéis

preestabelecidos.

A partir das análises efetuadas, sugere-se que as estratégias representadas pela

Feira Ecológica (produção, comercialização e agroindustrialização de produtos

ecológicos), apesar de seus aspectos econômicos, sociais e ambientais positivos, não

representam necessariamente uma alternativa econômica capaz de viabilizar uma grande

massa de agricultores familiares atualmente envolvidos na cultura do fumo na região de

Santa Cruz do Sul. Não obstante, a experiência aqui analisada reúne ensinamentos úteis

e conhecimentos com potencial para servir como referência para outros grupos de

agricultores que possuam condições sócio-culturais, econômicas e ambientais

semelhantes, e que estejam empenhados em construir novas formas estratégicas,

técnicas e organizacionais orientadas a garantir sua reprodução social.

A título de considerações finais, recomenda-se aos profissionais envolvidos em

ações de assistência técnica e extensão rural que estimulem a criatividade dos grupos de

agricultores para a busca de novos mercados, tais como feiras ambulantes e entrega de

produtos a domicilio, apostem no fortalecimento de estratégias cooperativas e de redes

de comercialização solidária, estimulem processos de agroindustrialização com vistas a

incrementar o valor agregados dos produtos ecológicos, busquem, junto com os

agricultores, adaptar horários de comercialização que possam facilitar o acesso por parte

do consumidor e reconheçam as experiências e saberes dos próprios atores

(agricultores) como elementos fundamentais na construção e desenvolvimento de estilos

25

de agricultura mais sustentáveis no médio e longo prazos e que atendam expectativas

tanto dos agricultores como dos consumidores.

“Para se ter um senso crítico, a gente precisa ser humilde, viver da terra, da

natureza e daquilo que ela oferece, não se tornar um consumista, admitir-se

dentro daquilo que se tem. Precisamos nos deixar cativar por novas idéias e

ideais”. Existe uma realidade e, às vezes, necessitamos mudar de

comportamento” (Entrevistado 2).

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28

ANEXO

Anexo A - Roteiro de Entrevista para Agricultores

1- O que significa a renda da família, da feira em relação ao fumo em termos

percentuais?

- Sustentabilidade.

- Distribuição renda ao longo.

- Autonomia em relação ao fumo.

- Se pode representar uma alternativa.

2- Como é a participação da família na feira

- Como a família participa na atividade desde a produção até a comercialização.

- Tomada de decisão.

- Antes da feira a família tinha esse grau de participação: aumentou a participação

em relação ao fumo; é diferente o processo desde a produção até a

comercialização?

- A feira aumenta as chances de participação da família em todas as etapas:

jovem-mulher.

- Padrão de divisão do trabalho: feira/fumo e outras atividades produtivas.

- Satisfação pessoal com as atividades relacionadas a feira.

- Saúde.

- Padrão de alimentação.

- Trabalho físico: esgotamento físico no período da safra de fumo.

3- Percebeu mudança no grupo?

- Na caminhada do grupo as fases que se consegue identificar: desconfiança;

conhecimento mútuo; ...

- Estabilidade do grupo;

- Rotatividade;

- O convívio do grupo propiciou outras oportunidades? Espaços lúdicos; reuniões

rotativas nas casas dos agricultores;

- Como influencia vizinhos; ou não influência?