monografia andré 1994
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Aristófanes e Plauto:
Dois Momentos do Escravo no Teatro da Cidade Antiga
André Augusto da Fonseca
Orientador: Prof. Ms. Marcos Alvito Pereira de Souza
NITERÓI
1994
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ANDRÉ AUGUSTO DA FONSECA
ARISTÓFANES E PLAUTO:
DOIS MOMENTOS DO ESCRAVO NO TEATRO DA CIDADE ANTIGA
Monografia apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense
como requisito para a obtenção do Bacharelado
em História.
Orientador: Prof. Ms. Marcos Alvito Pereira de Souza
NITERÓI
1994
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Aos meus pais
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AGRADECIMENTOS
A minha avó, Olga, que com seu carinho e inumeráveis préstimos, me permitiu ter o tempo necessário ao estudo.
A meu professor Marcos Alvito, que me deu, com toda a sua naturalidade, o estímulo crítico inestimável a meu amadurecimento.
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Sumário
Introdução..................................................................................................................................6
I. Um cenário maior da Comédia: A Cidade-Estado..................................................................8
II. Evolução da Comédia..........................................................................................................12
A comédia democrática........................................................................................................13A Comédia Nova renuncia à crítica política........................................................................14Emulação grega e humor romano........................................................................................15Comédia Ática e Latina: produção e apresentação..............................................................17O teatro educador.................................................................................................................18
III. O Escravo na Comédia da Cidade-Estado.........................................................................24
O convívio com a escravidão...............................................................................................24Escravos-prodígio na comédia: destinos de escravo em Atenas e Roma.............................26
Algumas Conclusões................................................................................................................33
Bibliografia..............................................................................................................................35
As Comédias........................................................................................................................35Obras consultadas.................................................................................................................35
ANEXO 1.................................................................................................................................38
Notas........................................................................................................................................40
Aristófanes e Plauto:
Dois Momentos do Escravo no Teatro Antigo
Introdução
Entre as fontes escritas que permitem o estudo da Antiguidade, as comédias
destacam-se por seu caráter popular. Theatron, "lugar de ver". Lugar onde os cidadãos veem
a si próprios, coletivamente. A tragédia também era amplamente apreciada pelos gregos e, de
certa forma, pelos romanos dos últimos dois séculos da República, mas a comédia apresenta
uma temática mais próxima do cotidiano. A tragédia costuma apresentar os homens melhores
do que são1, a comédia abre espaço para a auto-crítica, para o rir de si mesmo. Além disso,
enquanto a tragédia vai se apagando ao longo do período helenístico, a comédia parece
mostrar uma vitalidade maior, renovando-se continuamente. Diversamente dos escritos
deixados por filósofos e historiadores - que dificilmente ultrapassariam em sua própria época
os estreitos círculos da elite intelectual - o uso crítico das comédias confere-nos, com grande
margem de segurança, a possibilidade de explorar um reflexo da visão de mundo própria da
massa de cidadãos.
Neste trabalho pretende-se, mais especificamente, analisar a posição dos
politicamente excluídos em Atenas e Roma, comparando o papel do escravo nas duas cidades
- a primeira na virada do século V para o IV, e a segunda na virada do século III para o II
antes de Cristo. O lugar do escravo na Democracia dos Atenienses e na República Romana
será estudado a partir de referências, diretas ou indiretas, feitas pelas comédias de Plauto e
Aristófanes, escolhidos por serem os dois autores mais preservados do gênero. Tal
delimitação cronológica tem sua razão de ser. Coincide aproximadamente com o apogeu do
regime político da cidade-Estado em Atenas e Roma. Aristófanes vive na Atenas soberana da
Liga de Delos - embora viva o bastante para ver Atenas derrotada por Esparta. Plauto tem
toda a sua existência contida pelo período das Guerras Púnicas, uma época em que as legiões
romanas estão avançando na África, na Grécia, pela Itália e pela Espanha - e os locais onde
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suas comédias se ambientam refletirão isso, como veremos no item III - mas, o que é mais
importante, é o período posterior à fixação das instituições republicanas e anterior às
conturbações dos séculos II e I. Plauto vive em uma época de estabilidade interna.
O papel político assumido pela comédia - por vezes bastante óbvio e explícito,
como se verá adiante no caso de Aristófanes -, a forma como o teatro se inscreve na vida
política e entre os instrumentos cívicos da cidade, em Atenas e Roma, serve para mostrar a
importância dos espaços públicos na vida política da cidade. Fórum e Ágora, espaços de
comércio e de política, de troca de mercadoria e de troca de opinião, são manifestações da
necessidade - igualmente expressada na arquitetura dos amplos espaços abertos - de convívio,
de debate, de troca, em duas civilizações que privilegiam a palavra pública, a persuasão e a
livre escolha pelo povo do melhor orador. E o Teatro? Tanto na Grécia como na Itália, o
drama tem sua origem (senão toda a sua existência) vinculada a rituais religiosos, o que,
nesse contexto, equivale a dizer promovido pelo Estado. Espaço público por definição, o
teatro - não se restringindo ao "entretenimento" de que foi progressivamente incumbido após
a Antiguidade - abriga uma tribuna e uma plateia; um orador que fala pela boca dos coros e
atores e, a ouvir e julgar, um público que se confunde com o próprio corpo de cidadãos.
Não simplesmente o texto da comédia, portanto, mas também as condições de
sua apresentação serão estudadas a fim de precisar as expectativas mútuas entre cidade e
cidadãos. As referências políticas diretas no texto servirão para medir o grau de "educação"
política do público: tratando-se de um gênero necessariamente popular, pode-se deduzir que
aquelas pessoas presentes na plateia conheciam a matéria, minimamente para compreender a
piada. Quando essa temática política estiver ausente, procuraremos explicar o silêncio.
Poderemos vislumbrar a qualidade da participação popular na política, se ativa e igualitária
ou manipulada e segregada. Talvez possamos relativizar um pouco a passividade do cidadão
pobre em Roma. A importância do teatro em cada uma das duas cidades ajuda a avaliar a
importância da palavra e do debate em uma e outra sociedade.
Finalmente, não se perde de vista o fato de tratar-se de duas épocas e culturas
diversas (o que só enriquece a comparação), mas a pólis romana não pode esconder as
influências gregas. Menos envergonhada de seu helenismo que os moralistas romanos da
República, a comédia de Plauto é mesmo um símbolo dessas influências.
Este trabalho busca coletar e analisar, em 10 comédias de Aristófanes e 6 de
Plauto, passagens significativas quanto ao papel do escravo nas duas cidades-Estado e, a
partir daí, tirar algumas conclusões a respeito das diferenças substanciais entre a cidadania
em Atenas e a cidadania Romana.
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I. Um cenário maior da Comédia: A Cidade-Estado
Fenômeno irrepetível, a comédia antiga só faz sentido dentro do contexto da
Cidade-Estado. Como tantos outros eventos e instituições da Cidade, a comédia cumpria um
papel cívico. Principalmente em Atenas, reveste-se de um caráter de comunhão entre os
cidadãos. Roma incorporaria os temas e muitas das características do teatro grego, mas pouco
do caráter cívico atribuído à Comédia Antiga, de Aristófanes, representada em meio a um
Festival oficial.
Tomemos por um momento o mundo greco-romano como um todo. A Cidade-
Estado caracterizava-se pela participação direta dos cidadãos no processo político, tomando
decisões coletivamente após discussão. A evolução no sentido dessa abertura à participação
mais ampla dos homens livres nascidos na cidade correspondeu a uma exclusão cada vez
maior dos não-cidadãos: as mulheres livres ou não, os estrangeiros e os escravos. A curva
evolutiva prossegue com a ascensão do Império em Roma e a consequente diminuição do
poder decisório da coletividade, que correspondeu à assimilação progressiva dos estrangeiros,
mulheres e escravos. Essa assimilação às custas da antiga liberdade da Pólis passou pela
concessão de direitos de propriedade às mulheres e por um largo processo de manumissões e
o definhamento da escravatura como modo de produção, culminando com a Constituição de
Caracala (212 d.C.). Neste trabalho, como se disse, nos concentraremos no trecho ascendente
da curva de participação ativa dos cidadãos e exclusão dos não-cidadãos.
Em Atenas, a comédia é feita por homens livres para homens livres. Embora
estrangeiros presenciassem normalmente as apresentações das comédias nos Festivais das
Grandes Dionisías, e possivelmente escravos também, todos os poetas cômicos em Atenas
foram cidadãos. Um não-cidadão não seria admitido entre os atores cômicos. Já em Roma, o
caráter de "artigo importado" inerente à atividade dos poetas cômicos não dava às gentes do
ofício semelhante preocupação "nacionalista". Pelo contrário, na comédia Latina os atores e
poetas eram originários, em geral, de classes excluídas. Os personagens de Aristófanes são
em sua maior parte cidadãos. Em Plauto os escravos roubam a cena.
A noção de comunidade marca a obra de Aristófanes (c. 446 - 385 a.C.), as
atitudes de seus personagens, a mentalidade dos discursos edificantes e os ataques aos
incivilizados que não partilham dessa noção. Num sistema estatal que parte do pressuposto de
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que o homem livre tem direito a participar das decisões coletivas, o poder soberano só muito
dificilmente é subtraído às mãos dos cidadãos. Homens livres, partilhando do serviço militar,
da religião comum e dos proventos da Pólis nas guerras externas tendem a estabelecer uma
forte solidariedade entre si. A progressiva absorção dos homens livres mais pobres que teve
lugar desde a "revolução hoplítica" (c. séc. VII) instaurou a igualdade política (Isonomia)
resguardando desigualdades econômicas, mas mesmo os cidadãos mais pobres obtinham
vantagens concretas da Cidade-Estado. Quando isso deixava de acontecer, a solidariedade
entre livres pobres e livres ricos podia ruir, como aconteceu nas grandes revoltas escravas no
Mundo Romano do séc. I: em várias ocasiões, os escravos sublevados contaram com homens
livres sem posses ou pequenos lavradores em suas fileiras.
O aspecto mais conspícuo do dever dos economicamente superiores era o que
se chamava em Atenas de liturgia. A obrigação - imposta aos cidadãos mais ricos - de
contribuir materialmente para o bem da cidade era envolvida pelo prestígio que tal
contribuição representava - afora a possibilidade de captar simpatias pessoais entre os
populares. "O rico mostrava e legitimava sua riqueza, distribuindo-a", o que compensava os
gastos com a Marinha e os Festivais. O Teatro (a Comédia e a Tragédia) era financiado dessa
maneira. Em Roma - onde pretores e edis pagavam do próprio bolso espetáculos e jogos - o
mecanismo também existia, apesar de menos institucionalizado e de ter acabado por
favorecer a criação de clientelas (que degeneraram muitas vezes em exércitos particulares).
Na sociedade antiga era normal o pagar para exercer liderança política. Por outro lado, a
remuneração que Atenas institui para os participantes da Assembleia resultava de uma
especial circunstância, qual seja, a predominância popular nas decisões políticas; tal
instituição não seria cogitada em Roma.
As Cidades-Estados surgem todas de um processo histórico semelhante, o
desenvolvimento de instituições baseadas no núcleo urbano, onde as classes proprietárias
conseguiram derrubar a monarquia. Contudo, Atenas caminhou para o estabelecimento da
democracia, enquanto em Roma manteve-se o poder nas mãos de uma aristocracia.
À ampla liberdade e participação vivida pelos atenienses contemporâneos de
Aristófanes correspondia uma total liberdade de ação por parte da Cidade, da coletividade
organizada. O cidadão era soberano, e os cidadãos reunidos em Assembleia podiam decidir
sobre qualquer coisa. O comediante era parte da estrutura cívica da Pólis, e durante o Festival
em que se apresentava estava sob sua proteção. Literalmente, podia falar de deus e do mundo.
As menções - quase sempre injuriosas - a personagens da vida real são freqüentes e abertas,
como o desafio ao influente Cleon...
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Eu, quando Cleon era poderoso, golpeei-o no ventre, mas não tive a audácia de pisoteá-lo de novo, quando se achava prostrado no chão (Parábase de Nuvens, v. 150).
Ou os ataques a Sócrates, apresentado como sofista, ímpio e corruptor da
juventude:
SÓCRATES:[...] em nosso meio os deuses são moeda fora de circulação... (Nuvens, v.258).[...] Nem sequer existe um Zeus! (idem, v. 367).
Também é possível surpreender-se com a irreverência dispensada aos deuses.
A sociedade antiga não conheceu centralização religiosa de espécie alguma. Inexistia
qualquer tipo de instituição controladora da ortodoxia - o que não implica em irreligiosidade,
pelo contrário. Por um lado os rituais eram laicizados, pois não existia um clero
especializado, por outro toda a vida cotidiana estava ritualizada. Inclusive a comédia, que não
poupa deuses ou mortos de sua veia satírica; em Rãs troça da covardia de Dioniso (ainda por
cima censurado por um reles escravo) diante de Éaco, um dos juízes do Hades:
ÉACO: [...] Os cães que rondam o Cocito e Équidna, de cem cabeças, dilacerar-te-ão as entranhas; a moréia Tartéssia devorará teus pulmões; as Górgonas Titrássias [...] retalharão teus rins ensanguentados.XÂNTIAS (a Dioniso, tremendo de medo): Êh! O que fizeste?DIONISO: Sujei-me todo...[...]XÂNTIAS: És o mais covarde dos deuses e dos homens! (Rãs, vv. 480-485).
O tema dessa peça, aliás, é a imaginosa disputa, em pleno reino dos mortos,
entre Ésquilo e Eurípedes pelo trono de melhor trágico.
ÉSQUILO [referindo-se a Eurípedes]: Vê bem que homens recebeu ele de mim no início: homens valentes, de elevada estatura e não cidadãos que se furtam ao cumprimento do dever, os ociosos das praças públicas, os embusteiros, como se vêem hoje [...] (Rãs, vv. 1015-1017).
Eu mostrei o bom modelo, tu o aviltaste. (Rãs., v. 1063).
Plauto (254-184) também fez sua plateia rir à larga dos deuses em Amfitrião,
expondo a "culpa" e o delírio de um deus, "refinado manhoso" (p. 64), mas não tomou tais
liberdades com figuras influentes da época. Em Roma, as prerrogativas aristocráticas
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persistem ao longo de toda a sua história. Na Comédia Latina são raras e dissimuladas as
referências a políticos contemporâneos. Não se pode justificar esse silêncio pelo fato do
gênero ser imitado aos gregos, pois Plauto não se furtava a interpolar costumes tipicamente
romanos nos modelos gregos. Em Aulularia, o autor fala do clientelismo do chefe das Cúrias
- instituição romana - e faz da permissividade das Festas de Ceres a ocasião para que um
casal de jovens de boa família mantenha uma relação ilícita. Na mesma peça, são
mencionados, no cenário que seria uma cidade grega, os triúnviros - polícia de Roma. Há
muitos outros exemplos.
O próximo capítulo tratará mais detidamente do caráter assimilativo da
comédia latina, mas para já fica essa pista que as diferenças entre Aristófanes e Plauto podem
dar para a compreensão da especificidade de uma e outra pólis. Se na Atenas do séc. V temos
o dado da isonomia e da comunidade entre os cidadãos, em Roma a evolução da República
expressou-se pela quase divisão do corpo de cidadãos em dois, o da plebe e o dos patrícios,
cada grupo com estatutos e magistrados próprios (uma cisão que amainou após o século IV,
com a admissão de plebeus em diversas reservas patrícias - ius conubium, acesso ao Senado
etc.). Nada há de semelhante em Atenas ao Senado romano. Como lembra Ciro Cardoso, "o
nome oficial da cidade-Estado romana (O Senado e o povo de Roma) marcava bem a
hierarquia efetiva das instâncias, num governo basicamente oligárquico."12
12
II. Evolução da Comédia
Assim como não se pode falar de um único padrão político para a cidade
antiga, não se pode falar de um gênero cômico uniforme ao longo da Antiguidade Clássica. A
comédia passa por marcadas modificações de conteúdo, forma e apresentação, que
acompanham nitidamente a evolução político-histórica do mundo greco-romano. Da militante
Comédia Ática capitaneada por Aristófanes - da qual já pudemos dar algumas amostras - da
Atenas do século V a.C., passa-se pela transição helenística da trivial Comédia Nova de
Menandro até chegar à Comédia Latina de Plauto e Terêncio, no século III a.C.
Na época e lugar da democracia direta, temos uma comédia que introduz no
palco as questões do momento: a Guerra, os tribunais, os abusos dos sicofantas, a
irresponsabilidade de um ou outro jovem aristocrata - e dá nome aos bois. No período em que
a vida política está sufocada sob os diádocos temos uma espécie de comédia de costumes,
suave e relativamente frívola, cujas tramas se passam sem muita relação à realidade; o acaso
é o móvel das histórias encenadas, e as intrigas amorosas seu tema predominante. Por fim, na
Roma em expansão e politicamente efervescente temos uma comédia vibrante, com grande
variedade de temas; numa sociedade que toma a cultura helenística como a cultura, temos
uma comédia em grande parte copiada de originais da Comédia Nova; numa sociedade que
enriquece rapidamente e adota novos valores, temos uma comédia que insere crítica moral e
mensagens edificantes com um humor popular e autêntico.
Há ressalvas a essa colagem comédia-história, sem dúvida. Em primeiro lugar,
a associação entre comédia de teor político e liberdade não é tão marcada; houve novos
períodos de reanimação da polis democrática após a Guerra do Peloponeso, mas nem por isso
a comédia voltou a ser o que era. Grimal se baseia em referências hipotéticas para dizer que
também os cômicos helenísticos, "com perigo para a própria vida", ridicularizavam os
senhores do momento. Por outro lado, Duckworth lembra não se resumir a Comédia Ática a
Aristófanes: este foi o autor melhor conservado, mas outros autores de que nos restaram
fragmentos alcançaram grande popularidade sem se concentrar tanto na crítica política. A
determinação do gênero pela conjuntura política não é automática.
Mesmo assim, é notável uma mudança de conteúdo e forma. Alteram-se tanto
as preferências temáticas quanto a maneira como a comédia é apresentada.
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A comédia democráticaO mundo riquíssimo das comédias aristofânicas dá-nos um grande volume de
informações sobre o cotidiano. Ao contrário da Tragédia, que geralmente vale-se de mitos
antigos - inclinando-se naturalmente para o épico, sem contudo deixar de registrar traços do
cotidiano - as histórias de Aristófanes ambientam-se sempre no tempo presente, em geral na
própria cidade de Atenas. A despeito desse paralelismo com a realidade - e de toda a carga
crítica que daí decorre - há lugar para o alegórico e o fantástico, para a construção de utopias
e paródias da realidade, através de cujas linhas tortas podemos chegar ao pensamento
aristofânico: em Aves vemos a formação de uma polis ornitológica, a Nefelococígia, na qual
se revelam todos os traços de uma constituição grega ideal; Assembleia de Mulheres,
representada em meio à grande crise do fim da Guerra do Peloponeso, parodia a mania
ateniense das novidades, sugerindo que todo o poder seja entregue às mulheres. Nem essas
utopias deixam de estar coladas à realidade. Péricles, Hipérbolo, Cléon, Cleofonte, Alcibíades
e Nícias são todos citados ou transformados em personagens por Aristófanes. Atacando
sempre Cléon e depois Hipérbolo, criticando e depois defendendo Nícias, apoiando cautelosa
e discretamente Alcibíades, o poeta "vende" ao público seu posicionamento político de forma
sutil, com uma linguagem simples e popular, carregada de alegorias e de rústica e nostálgica
moral. Sutilmente porque, ao mesmo tempo em que podia influir, incorporava as cores do
pensamento popular. Sendo inegavelmente um homem culto, colocava sempre em cena
personagens simpáticos e grosseirões, que em meio às inúmeras gafes, deixavam transparecer
uma "verdade" mais profunda.
Já se falou até da ligação de Aristófanes a um "partido camponês". Exageros à
parte, os camponeses realmente contavam com simpatia do poeta. Tradicionalmente
conservadora, a classe dos pequenos produtores estava em sintonia com a maioria das
opiniões de Aristófanes, que muito provavelmente ajustava suas comédias de modo a garantir
o esteio de um setor tão importante da sociedade. O ideal aristofânico de vida boa é aquele do
campo, da abundância e autenticidade camponesas vividamente pintadas em quase todas as
suas comédias. Em As Nuvens, um pequeno produtor chamado Estrepsídades se vê
impossibilitado de sair dos muros da cidade. Os atenienses evacuaram a Ática e se
recolheram na cidade, praticamente inexpugnável, enquanto os espartanos faziam razias
periódicas nos campos. As futilidades e as filigranas da cidade são incompreensíveis a
Estrepsíades - saudoso do tempo em que "cheirava a vinho novo, cirandas de figos, lã,
fartura" (vv. 40-55). Como lhe são inúteis "as medidas, os versos e os ritmos"! Importante
para ele é a medida de farinha em que o mercador lhe enganara (vv.637-641). "De que me
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servirão os ritmos para o pão de cada dia?" (v.648).
A Comédia Ática era a comédia da democracia. O Agon - o debate, a disputa, a
argumentação -, como na Tragédia, estava sempre presente. Um dos melhores exemplos está
em Pluto, onde uma longa discussão opõe a Pobreza personificada a um pobre cidadão que
acaba de encontrar o deus da riqueza. Trocam-se argumentos muito interessantes (ver anexo
1), em meio ao uso de técnicas de captação de simpatia e de convencimento.
Platão estava certo ao dizer que não há nada melhor que as comédias de
Aristófanes para quem quiser saber como viveram os atenienses.
A Comédia Nova renuncia à crítica política
As últimas comédias de Aristófanes - principalmente Pluto - costumam ser
incluídas numa categoria denominada Comédia Média, menos diretamente política e mais
voltada para o cotidiano. Com Alexandre e o fim da Cidade Clássica na Grécia, advém o
individualismo sensualista do Helenismo e da Comédia Nova que é bem representado pelo
bon vivant Menandro. Não é nosso objetivo discorrer longamente sobre a Comédia Nova,
mas dela aproveitaremos o que for necessário para se compreender a transição da Comédia
Ática para a Comédia Latina.
Como não há mais a urgência da mensagem política, que a tudo mais tornava
secundário, há uma caracterização maior dos personagens, com uma preferência por certos
tipos cômicos. Entre as 44 máscaras que Pólux descreve, 17 são de mulheres, 11 de jovens, 9
de velhos e homens feitos e 7 de escravos. São os personagens-chave para a Comédia Nova.
As histórias variam em torno do esquema jovem-livre-se-apaixona-por-cortesã-e-é-ajudado-
pelo-escravo. Estabelece-se um modelo que será seguido pelo menos até Terêncio. O herói é
o filho de complacente cidadão abastado, o escravo é seu fiel e expedito escudeiro, e para
alcançar os favores da cortesã é preciso quase sempre conseguir dinheiro. A arte imita a vida
individualista e monetarizada. A cidadania está subjugada, e escravos aparecem cada vez
mais em papéis importantes. A presença de estrangeiros é bem maior e, num cosmopolitismo
impensável no século V, escravos, gregos de outras cidades e cidadãos não mais apresentarão
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características essencialmente diferentes. Não há mais preocupação com problemas de cunho
político. Como o próprio público perdeu o interesse na luta política, o poeta da Comédia
Nova não faz a ação coletiva ir além do núcleo familiar (notavelmente ausente em
Aristófanes, tal a diluição da família numa coletividade maior como a cidade).
Embora seja quase irresistível deplorar o fim da comédia militante de
Aristófanes, existem muitas afinidades entre este e a Comédia Nova. Não houve uma brusca
ruptura, mas uma suave e quase insensível transição. Títulos, personagens, o casamento ou
festa ao final da peça, a presença do agon - o debate, o que há de mais caro à personalidade
grega - e os apelos diretos ao favor do público continuam presentes e não desaparecerão nem
mesmo na Comédia Latina. As comédias do período reproduzem a moral popular do senso
comum, de maneira não crítica. As veleidades de conquistador são ridículas se cultivadas por
um velho, mas são toleradas em jovens livres, quase sempre tendo como objeto a cortesã. No
Discóbulo de Menandro vemos um jovem livre, abastado e sem responsabilidades
apaixonado por uma moça também livre; a coisa acaba em casamento, momento em que o
rapaz torna-se um cidadão completo e abandona a vida inconsequente que é tema da Comédia
Nova.
Emulação grega e humor romano
A literatura romana praticamente nasce sob o influxo helenístico, com as
traduções e cópias de modelos gregos. É preciso ter-se em mente os modestíssimos limites
em que se encerrava a alta cultura da Roma nos séculos III-II, em vivo contraste com o
poderio político da República sobre o Mediterrâneo. Antes do séc. III quase que se pode
resumir a produção literária latina ao corpus legal. Isso é o que permanecerá autenticamente
romano: sua institucionalidade, suas estruturas políticas.
Plínio-o-Velho relata que no tempo de Pirro os telhados de Roma ainda eram
de madeira. Só na segunda metade do século II começam a ser construídos grandes edifícios
em Roma, e o primeiro teatro de pedra só foi construído ao tempo de Pompeu, no século I
a.C. Um grego, Lívio Andrônico, foi quem encenou pela primeira vez comédias e tragédias
de acordo com o modelo grego, nos ludi romani de 240 a.C. O pensamento anti-helenista no
Senado foi forte o suficiente para coibir por muito tempo o que considerava contaminação
grega perigosa para a moral pública - inclusive proibindo assentos no teatro por alguns anos.
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Mas a obra de Plauto não é imitação maquinal ou servil dos padrões gregos.
Será útil reproduzir uma valiosa passagem de Paul Veyne:
Vários séculos antes de ter conquistado aquela Grécia cuja civilização, por sua vez, deveria conquistá-la, Roma já estava helenizada e essa primeira helenização nada tinha de uma auto-extirpação; basta ler o mais antigo documento conservado da literatura romana, o teatro de Plauto, para que se perceba isso. As comédias de Plauto fazem-se passar por adaptações de peças helenísticas, seus personagens são gregos e o cenário se situa na Grécia (na medida em que um mundo imaginário se situa em algum lugar) [...]. No entanto, Plauto não sente qualquer tipo de fascínio ou de ressentimento em relação à Grécia, que para ele ainda não representa a era das luzes; encontraremos em sua obra apenas alguns traços de desdém xenófobo, como convém em um gênero popular [...]. Plauto pratica uma arte de divertissement, fazendo uso, sem restrições, de seus modelos gregos, aos quais não considera como textos sagrados; qualquer ideia de esforço cultural lhe é estranha, ele não procura dotar Roma de uma literatura nem daquilo que um século mais nacionalista e mais romântico teria chamado de "teatro nacional".4
O mundo helenístico é o mundo que conta. O cenário de Plauto "não é grego
nem romano, mas indistintamente um e outro". Um mundo helenístico genérico e abstrato
que não chegava a ser estranho ao cidadão-soldado que combatera na Sicília ou na Magna
Grécia ou ao comerciante de longo curso que expandia suas operações pelo Mediterrâneo, um
e outro lado a lado na plateia. Na produção artística seguiam-se os modelos gregos, mas na
política e no conceito de cidadania subsistiu sempre um modelo próprio de constituição.
As falas nas comédias de Plauto são mais longas, um tanto mais "explicadas",
o que torna tentador caracterizar a comédia plautina como "decadente" em relação à brilhante
comédia ática. É evidente o caráter popular de sua obra, ele próprio tendo vivido - de acordo
com uma biografia mais ou menos fantasiosa - em meio ao "submundo romano". Uma
trajetória muito diferente da de seu sucessor Terêncio, liberto intelectualizado e refinado -
ligado ao círculo dos Cipiões. Apesar de serem ambos os comediógrafos tributários da
Comédia Nea helenística, a comédia plautina, cheia do linguajar das ruas, é algo mais
autenticamente romano que a de Terêncio. Plauto é contemporâneo de Catão e das durezas
das guerras contra Cartago. Terêncio faz parte de uma das primeiras gerações a desfrutar com
tranquilidade das conquistas de Roma. Há muito da rude autenticidade latina em Plauto.
Plauto conhecia bem o ambiente das cortesãs, parasitas e cidadãos pobres que
povoam suas histórias. Como na Comédia Nova, fonte da Comédia Latina, vagabundos,
escravos, cortesãs e cidadãos convivem promiscuamente, quase que se confundindo. Roma
recebeu muito bem a adaptação da Comédia Nova, tão indiferente à cidadania. Importava
17
sim, ser livre. Podemos dizer, usando anacronicamente um conceito liberal moderno, que
enquanto a liberdade do cidadão ateniense era positiva, traduzindo-se no efetivo poder de
conduzir os negócios da cidade, a liberdade romana era negativa, e por isso mesmo baseada
num minucioso ordenamento legal escrito. Ser cidadão em Roma significava principalmente
ser dotado de direitos específicos (sucessão, casamento, julgamento, etc.). Não vemos na obra
de Plauto em que deveres implicava a condição de cidadão. Mesmo o serviço militar, a mais
alta obrigação do cidadão romano, é tratado cinicamente em Epídico: o jovem cidadão
abandonou sem remorsos as armas no campo de batalha. O que é mais surpreendente se
lembrarmos que o desastre de Canas estava ainda muito próximo (216 a.C.). Claro, o cenário
da comédia plautina nunca é Roma, mas as cidades gregas decadentes - onde de resto se
empregavam cada vez mais mercenários e menos cidadãos para a guerra. Enfatiza-se o fato
de seus personagens não serem romanos, nem seu comportamento ser muito exemplar. Mas a
"romanização" das peças faz com que se chame a assembleia de Senado ou se introduzam
pretores onde eles não existiam. O hedonismo espelhado na comédia prefigura, apriorismos à
parte, a facilidade com que os gregos e romanos se submeteriam à suave tirania dos Diádocos
e de Augusto.
Comédia Ática e Latina: produção e apresentação
A comédia Ática, consolidada no século V, era apresentada anualmente nos
festivais das Grandes Dionisias e das Lenéias. Aliás, dizer simplesmente "eram realizadas"
não é suficiente: as representações dramáticas (tragédia e comédia) integravam os festivais.
As Dionisias eram o festival mais importante de Atenas. Era uma festa cívica
altamente ritualizada onde se homenageavam os soldados mortos em combate e exibiam-se
os tributos pagos pelas cidades da Liga. Os 10 estrategos faziam libações, e os jovens órfãos
educados e treinados pelo Estado sentavam-se em lugares de honra. A cidade mostrava toda a
sua força, e reforçava os laços entre ela e os cidadãos - e, quem sabe, também intimidava um
pouco os cidadãos de outros Estados ali presentes. Em Os Acarnenses, Aristófanes faz
referência ao Festival das Lenéias. Um festival mais "intimamente" ateniense, pois se
realizava na estação em que a navegação - e a presença de estrangeiros de passagem - era
dificultada. Dessa forma, segundo o autor, não se podia acusá-lo de impatriotismo por criticar
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abertamente os erros da Cidade.
As peças em geral só eram encenadas uma vez em Atenas. O autor se
encarregava de todos os detalhes da produção e da encenação. Nos dois festivais havia
competições, que davam lugar ao debate e previam mesmo oportunidade de apelação. O
palco era um lugar sagrado, e nem mulheres nem estrangeiros ou escravos poderiam
representar diante do altar de Dioniso. Quanto a Roma, já se acreditou que os próprios atores
eram preferencialmente escravos, devido a algumas passagens de Plauto em que se sugere
serem eles passíveis de castigos.
Devem ser assinaladas as diferenças entre a montagem e apresentação da
comédia Ática (ou Antiga) e da Comédia Latina. A maneira como o autor desenvolve sua
função junto ao público pode nos dizer muito sobre o produto resultante. Basicamente, sabe-
se que Aristófanes e seus colegas assumiam integralmente a direção da apresentação de cada
comédia, desde a concepção até a encenação; a identificação entre autor e comédia era total.
Embora Aristófanes tenha apresentado suas primeiras peças sob pseudônimo, o poeta desde
sempre fez da parábase seu editorial pessoal, endereçado à plateia que se identificava com o
demos ateniense.
Já em Roma, cujo teatro nativo perdeu muito espaço para o espetáculo
derivado do teatro grego, o poeta cômico vendia suas obras ao chefe da trupe - o dominus
gregis. Sua responsabilidade terminava aí. Havia competições, como em Atenas. É inegável a
associação entre autor e obra pelo público, mas há um compromisso muito menor que aquele
do tempo de Aristófanes.
O teatro educador
Na cidade-Estado, o teatro não era simples entretenimento. Era parte da
institucionalidade da polis. O destino do cidadão antigo se indissociava do destino da Cidade.
A Ágora e o Fórum, loci de intercâmbio e passagem, eram espaços de educação, de troca de
informações e formação de opinião. Numa civilização face-a-face, raro era o momento que
não oferecia oportunidade para o debate, para se inteirar das questões cívicas. Na Ecclesia e
nas comitia os cidadãos usavam do conhecimento adquirido das mais diversas maneiras para
decidir sobre os problemas da cidade, para julgar seus concidadãos e para escolher seus
líderes. E o Teatro era um desses espaços de educação. Sua importância pode ser medida pelo
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fato de, à certa altura em Atenas, ser instituída a remuneração para os cidadãos mais pobres
que vinham assistir às peças.
A função "pedagógica" ou conselheira da comédia se manifestava na estrutura
mesma da Comédia Ática. Mais ou menos no meio da peça havia uma espécie de interlúdio,
uma parada na trama bem marcada pela mudança de ritmo dos versos e por sua
independência em relação ao desenrolar da comédia: trata-se da parábase, trecho em que o
coro trazia à tona um problema importante para a cidade, transmitindo a opinião e conselho
do poeta. É uma coisa que desaparece já nas últimas comédias de Aristófanes, não sem antes
servir de tribuna ao poeta "para. fazer algumas censuras aos espectadores" (Vespas, v. 1015),
ele que "atacou os mais poderosos" (Vespas, v. 1030), pois "é justo que o coro sagrado se
torne útil à cidade, com seus conselhos e ensinamentos" (Rãs, 685).
Aristófanes, que como Pobreza receitava remédios amargos sem ser ouvido
(ver anexo 1), incorporou seriamente esse papel de educador. A Comédia Ática também teve
outros poetas, como Crates, Cratino, Êupolis e Agaton, mas deles restaram apenas esparsos
fragmentos. Muitas das informações que temos sobre eles são devidas ao próprio Aristófanes.
Há estudiosos (Jaeger, Duckworth, Brandão) que não hesitam em atribuir a Aristófanes uma
exclusividade na excelência e na crítica aberta a figuras proeminentes. À parte a conjectural
covardia política dos seus concorrentes, há que se admitir que não pode ser aleatório o fato de
apenas as obras de Aristófanes terem subsistido de maneira integral, e em número tão grande.
Senão pelo teor crítico, talvez pela capacidade de fazer rir, os copistas alexandrinos,
bizantinos e finalmente medievais decidiram manter essas comédias. Aristófanes usava esse
espaço natural e manifestamente com a missão de educador dos Politai, e também para
criticar e propor reformas em outros meios de educação.
ÉSQUILO: [...] Sob que aspecto se deve admirar um poeta?EURÍPEDES: Por sua inteligência e admoestações, porque nossa missão é tornar os homens melhores (Rãs, v. 1010-1011).
Na imodéstia típica de todos os autores cômicos, o autor de Os Cavaleiros
chega a afirmar naquela comédia que o Grande Rei - o monarca persa, eterna ameaça à
Europa - temia muito a cidade que contasse com tal poeta, tão bom conselheiro. Um guia que
alerta a pólis quando ela toma o caminho errado, quando ela se deixa levar pelas belas
palavras de demagogos baratos, quando seus concidadãos trocam a velha e saudável
educação pela corrupção da juventude.
Como disse Jaeger, à comédia estava reservada a função censora em Atenas. A
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educação dos jovens, a piedade, a filosofia, a poesia, a dança e a música, a sexualidade, a
conduta no vestir-se e no alimentar-se: largo é o espectro de ação do poeta.
Em Ecclesia, por exemplo, Aristófanes não hesita em transformar dois
cidadãos conhecidos em personagens da comédia. Eurípedes, o poeta trágico, e um seu
parente grosseirão e anônimo (com quem a plateia certamente há de se identificar) vão visitar
Ágaton, um jovem e brilhante comediógrafo. Aristófanes faz Ágaton aparecer vestido de
mulher - pretextando a busca de inspiração para criar um papel feminino. É a mímesis levada
ao extremo que o rude parente de Eurípedes não perdoa, insinuando logo a efeminação do
poeta (130-160). Mais diretos são os gracejos em relação a um tal Clístenes, vítima contumaz
de Aristófanes, e que parece ter sido um conhecido afeminado (236; Acarnenses 117-121,
Cavaleiros 1374, Aves 831, Lisístrata 1092 e Rãs 48-57).
Aristófanes é o bem-humorado paladino da piedade grega, no que se aproxima
dos setores populares de Atenas - e se distancia criticamente da elite intelectualmente
sofisticada. É interessante nesse sentido a primeira fala de Crémilo no ágon reproduzido no
anexo 1. Em Rãs Aristófanes descreve pela boca de Héracles os castigos eternos que esperam
os ímpios no Hades:
"um lodaçal imundo e imersos nele todos os que faltaram ao dever de hospitalidade; os que, após terem seduzido uma criança, negaram-lhe a quantia prometida, os que espancaram a própria mãe; os que esbofetearam o pai, ou proferiram falso juramento" (v.150).
O tema da primeira comédia de Aristófanes - Os comilões - já era a luta entre a
velha e a nova educação. Seu conservadorismo o levou a fazer de anciãos e pequenos
proprietários seus heróis e, muitas vezes, seus porta-vozes. A riqueza corrompe e amolece, a
simplicidade honesta forja bons cidadãos e homens dignos (ver anexo 1). Quem melhor que
um ancião para lembrar da antiga educação dos jovens? Nada ilustra melhor a preocupação
do poeta com a velhice desamparada que a parábase de Os Acarnenses.
Em parte por conta desse conservadorismo (na verdade muito popular), que
levou o poeta a atacar violentamente os líderes democráticos de ocasião, Veyne crê ser
Aristófanes, senão uma voz nitidamente oligarca, pelo menos um descrente na democracia.
Como vimos, a apresentação das comédias, seu local de encenação e as competições, tudo era
organizado pelo Estado - cujo regime estava disposto a tudo para manter-se. Finley
argumenta que se Aristófanes fosse realmente anti-democrático, não teria sido tão popular a
ponto de ganhar 4 grandes prêmios e três segundos lugares. Como dissemos acima, aqueles
que Aristófanes elegia como seus "aliados" eram os pequenos agricultores, que tinham tudo a
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perder com o fim da democracia, e os anciãos, homens que dedicaram sua juventude à defesa
da polis no campo de batalha. É preciso analisar cuidadosamente as passagens aparentemente
subversivas para não confundir a crítica ao sistema com a crítica a particulares que atuam no
sistema.
Finalmente, não se pode esquecer que a elite sofisticada, que pagava os sofistas
para se educar, estava sempre na mira de Aristófanes. E era a "juventude dourada", que
mutilara os hermes à partida da Armada para a Sicília, o verdadeiro perigo para a democracia.
Muitas vezes esse conteúdo consiste numa divulgação mitigada de princípios contidos em
sistemas filosóficos gregos e romanos, uma atitude que não é nova. No Pluto (v. anexo 1) o
elogio da moderação (sophrosine) e da condenação do excesso (hybris) segue o mesmo
caminho já trilhado por Homero e pelos trágicos. O tema da moderação, fundamento da
democracia, é muito caro aos gregos - e é coerente com as reservas que Aristófanes faz à elite
aristocrática.
Tenho insistido em um caráter politicamente anódino da Comédia Latina,
herança da Comédia Nova e resultado da estrutura política romana; isso não impede
constantes comentários de cunho, digamos, social - mesmo que não se mencione, como
Aristófanes, nenhum personagem conhecido da comunidade. São muito freqüentes os
discursos de tom ético na Comédia Romana, à parte a comédia Adelfos de Terêncio, que se
ocupa explicitamente do problema da educação, e o Trinummus de Plauto, obra conhecida
por seu conteúdo moralizante. A sátira e a comédia sempre foram fundamentalmente
moralistas. Forte crítica se faz com o riso, o irônico e o ridículo. É mais fácil ver palavrões e
ligações amorosas pouco edificantes na comédia que lições de moral, mas o vício ou é inócuo
ou é exposto ao ridículo para que seja desencorajado, como a vaidade de Pirgopolinices, o
Miles Gloriosus. De qualquer forma, Plauto pessoalmente não alimentava ambições
transformadoras:
Tenho ido frequentemente ao teatro e ouvido coisas assim, com a audiência aplaudindo as palavras de sabedoria. Mas quando eles voltam para casa, nenhum age de acordo com o conselho que ouviu (Rudens, 1249 ss.).
Mas não se furtava jamais a comentários genéricos de crítica social e moral,
como em Menecmos (578-579) ou no Gorgulho, onde insere essa passagem sem nenhuma
outra função que não a própria invectiva contra os vícios da cidade de Roma:
Quem quiser encontrar um falsário, vá ao Comício. Quem quiser um embusteiro e um trinca-fortes, lá para o santuário de Vénus Cloacina [..] Na rua dos Etruscos, aí
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demoram os que fazem profissão da venda do próprio corpo [...]. Os maridos que fizeram casamentos ricos para desbaratarem a fazenda, é procurá-los à sombra da Leucádia (470 e ss.).
Sua plateia, heterogênea e representativa da sociedade romana, era composta
desde senadores em lugares de honra e patrícios politicamente ambiciosos (alguns dos quais
patrocinavam os ludi, os numerosos festivais romanos) até proletários, pois a entrada era
gratuita, como em Atenas. Eram sem dúvida populares seus ataques aos alcoviteiros e aos
argentários em O Gorgulho:
GORGULHO: Eu - de um alcoviteiro - aceitar o que for com garantia de propriedade?!... De uns tipos que nada têm de seu - a não ser a língua, para renegar o que lhes for confiado?!... Quem vos não pertence, vendeis e assegurais; quem vos não pertence, libertais; quem vos não pertence, comandais [...] Essa raça de alcoviteiros é, no mundo dos homens, como as moscas, os precevejos, os piolhos e as pulgas. Repelentes, malfazejos, chatos, serventia é que não têm para ninguém. .......[o banqueiro Licão]: Coa breca, meu zarolho, tu conheces esses alcoviteiros lindamente...GORGULHO: Pois, com um raio, na mesma galeria vos ponho e aparelho [...] Estes, ao menos, expõem a mercadoria em sítios escondidos; e vocês? De chapa no Foro! [...] Propostas sobre propostas debateu o povo por causa de vocês. Mas, apenas votadas, logo rasgadas. Alguma rachadela vocês sempre a encontram... Uma espécie de água que ferve - mas há-de arrefecer: é assim que vocês consideram as leis. (v 495 e ss.).
Duckworth cita passagem do Poenulus (vv. 17 e ss): "Não deixe que escravos
ocupem os assentos, para que haja lugares para os livres" Havia também mulheres, como se
infere de outra passagem da mesma peça: "Babás deviam manter as crianças pequenas em
casa, e não trazê-las ao teatro, para que elas mesmas não tenham sede e para que as crianças
não morram de fome ou chorem por comida como filhotes de cabras. Mulheres casadas
deviam ver a peça em silêncio, rir em silêncio e conter-se em seu blá-blá-blá incessante; elas
deviam manter em casa suas fofocas, pois não contentes em perturbar os maridos em casa,
querem chateá-los no teatro também" (vv. 28-35).
Quanto à capacitação intelectual de tal plateia, assunto sobre o que podemos
fazer pouco mais que conjecturas, não há por que se discordar de Fowler quando ele frisa ser
o público romano atento às mensagens edificantes da comédia, e perfeitamente capaz de
absorvê-las.
Como pregam diversas normas de conduta da Antiguidade, cada um deve ser
bom e se satisfazer naquilo a que a vida o destinou. Provavelmente havia escravos presentes
na plateia do teatro romano. Nesse caso, Plauto tinha uma mensagem edificante
recorrentemente endereçada aos escravos.
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Um bom servo reconhece-se por tomar a peito os interesses do seu amo, estar de olho aberto, ter as coisas em ordem, pensar em tudo; mesmo na ausência dele, olha pelas suas coisas tão bem ou melhor do que se ele estivesse presente. [...] E não há-de esquecer a recompensa que os patrões reservam a essa escumalha de escravos, quando são madraços e trafulhas. O chicote, as grilhetas, a mó, a fadiga, a fome, o frio de rachar: eis o preço da sua madradice, Que cagaço tenho eu de castigos como esses! [...] Por tudo isso, sigo à risca as ordens de meu amo, cumprindo-as na perfeição e sem respingar. [...] Que eu ande sempre com medo para nunca cair em falta: o meu amo ter-me-á sempre à mão em todas as circunstâncias. (o escravo Messenião, em MENE, 967 e ss.).
Messenião acaba sendo alforriado, após reiterados pedidos (v. 1021) e mostras
de lealdade, mas a liberdade é concedida para marcar um evento, o decisivo golpe de sorte do
encontro do irmão perdido do amo.
A Comédia Latina encontrou rapidamente um lugar dentro da
institucionalidade cívica de Roma: por volta de 200 a.C., 11 dias por ano eram destinados ao
drama em pelo menos 4 dos festivais (comédias eram representadas nos ludi Romani, nos
ludi plebeii, nos ludi Apollinares e nos ludi Megalenses). A popularidade do teatro pode ser
avaliada pelo espaço cada vez maior ocupado por ele: 17 dias depois de 191 a.C. e 43 ao
tempo de Augusto. O caráter cívico da Comédia Latina é contudo mais fluido em relação à
Comédia Ática. Uma mesma peça em Roma podia ser representada várias vezes, e mesmo
nos festivais particulares tão comuns numa sociedade cada vez mais individualista. Bastava
pagar o preço estipulado pelo autor, mercantilização desconhecida pelo teatro grego.
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III. O Escravo na Comédia da Cidade-Estado
O convívio com a escravidão
A servidão pode não ser muito fielmente retratada na comédia, mas reproduz
essencialmente o lugar do escravo na cidade: em uma e outra o elemento servil é ao mesmo
tempo inevitável e inferior. Mostras desse desprezo estão visíveis no verso 195 do Gorgulho,
quando o escravo, depois de muito importunar o amo em seu colóquio amoroso com uma
jovem, leva uma surra: "logo tu, que ousas insultar a minha Vénus?", ou no verso 625, em
que o parasita Gorgulho se ofende por ser tomado como escravo.
O modo de vida da Antiguidade Clássica não prescindia do trabalho escravo. A
propriedade de escravos, principalmente em Atenas, estava bem difundida entre os cidadãos.
Para aquela cidade, no século V, estima-se a proporção entre escravos e cidadãos livres em 3
para 2. Em Roma, a proporção de escravos na população total seria de 15% em 225 a.C.
(subindo para 33% em 31 a.C.). A essa inevitabilidade da escravidão correspondia o que para
nós parece ser uma aversão à racionalidade econômica, a impossibilidade do aprimoramento
técnico. Há um debate interessante entre os estudiosos que, como Vernant, identificam no
escravismo uma inapelável "irracionalidade", e aqueles que, como Finley, preocupam-se em
mostrar que a racionalidade no sentido capitalista não é universal.
É conhecida a lista de descobertas e invenções feitas ao longo da Antiguidade,
e que não foram aplicadas produtivamente. Os autômatos de Heron de Alexandria, a
segadeira do norte da Gália, o moinho de água, relógios e conhecimentos matemáticos
registrados em tratados antigos fazem o leitor moderno, do pós-revolução industrial, esperar
pela utilização prática desse instrumental no abrandamento da penosidade do trabalho e no
aumento da produtividade. Vernant explica que isso não ocorreu simplesmente pela
abundância de mão-de-obra servil e pela ausência de mercado interno.
Finley adverte com razão contra a confusão entre juízo moral e estudo
histórico da escravidão. Dizer que a escravidão não é lucrativa, ou que a escravidão impede o
progresso tecnológico e aumento da produtividade seria mais propaganda abolicionista ou
embaraço ético que uma constatação histórica. Finley gosta de manejar com o exemplo da
sociedade escravista do Sul dos EUA, bem conhecida e documentada: lá não houve
empecilho ao avanço técnico, e os proprietários tinham conhecimento de várias formas
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alternativas de obtenção de mão-de-obra. Mas foram à guerra para manter a escravidão.
Quanto aos antigos, prossegue, por que esperar que tivessem o mesmo senso de racionalidade
capitalista que nós? Com quem gregos e romanos podiam se comparar para saber se eram ou
não produtivas as suas técnicas agrícolas e manufatureiras? De fato, a técnica dos antigos lhes
bastava, e a ênfase era dada (antes que à produtividade e ao baixo preço, como nas sociedades
industriais) à qualidade e à beleza do produto. Finley prefere - com razão - não dar resposta a
uma questão que para ele sequer se coloca, e que, de qualquer forma, é escassamente
documentada.
Mas ninguém discorda que a escravidão (economicamente significativa e
difundida) e a cidadania antiga (ampla participação dos homens livres nas decisões de
interesse coletivo) estavam irremediavelmente atadas. Como Finley diz, elas surgiram juntas.
Desaparecendo uma, pereceria a outra. É por isso que, em toda literatura da época, não se
registra qualquer projeto de substituição do trabalho escravo. Finley lembra que a liberdade
de pensamento permitia questionar tudo, mesmo a família e a propriedade privada, mas nem
mesmo aos mais radicais críticos da sociedade antiga - Platão, cínicos, estóicos, os primeiros
cristãos - ocorreu sugerir a abolição da escravidão. Com a Comédia não poderia ser diferente.
A escravidão é um dado natural, inquestionado.
Sobre esse ponto, é-nos interessantíssimo analisar o agon entre a Pobreza e
Crémilo, em Pluto (ver anexo 1). Nessa passagem podemos observar que a escravidão é
encarada com naturalidade após ser um fato dado. A redução de bárbaros ou de outros gregos
à escravidão não é problemática; é conhecido o dito de Aristóteles na Política, de que alguns
povos são "naturalmente" destinados a servirem os homens livres e superiores. Contudo, o
tráfico de escravos é um ofício dos mais desprezíveis, além do rapto de homens livres para a
escravidão ser punido com a morte.
Crêmilo, o herói de Pluto, protagoniza mais um dos reformismos paródico-
utópicos da comédia. É importante notar que em nenhum desses projetos fantasiosos em que
tudo é possível, até o controle da cidade pelas mulheres, nem em Pluto, Aves ou Assembleia
de Mulheres Aristófanes consegue conceber uma utopia do lazer perpétuo e da abundância
sem escravos. Prevê-se salvar a igualdade e distribuir farta riqueza a todos - a todos os
cidadãos, a todos os homens livres. Numa sociedade sem avanços técnicos e onde toda
expansão econômica só pode ser "lateral" (por invasão ou aumento do número de escravos), a
Pobreza logra provar a impossibilidade de todos serem felizes, livres e prósperos, pois para
que um grupo desfrute dos bens da humanidade e dos prazeres desta vida sempre haverá
outro grupo que serve mourejando nos campos e oficinas. Quando Pobreza diz ser "como
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uma patroa que força o trabalhador manual, por meio da necessidade e da pobreza, a procurar
os meios de vida", não poderia ser mais explícita. O trabalho pode ser nobre, mas é penoso e
imposto pela necessidade. Não se trabalhava para honrar a um deus: os olímpicos viviam a
vida perfeita, sem trabalho - à exceção de Hefesto, coxo e desprezado. Tampouco o trabalho é
visto como gerador de riqueza. Não existe uma versão grega do self-made man. A riqueza se
herda, e trabalha com as mãos quem é servo ou homem livre pobre.
Escravos-prodígio na comédia: destinos de escravo em Atenas e Roma
O mesmo trabalho servil que libera o homem livre (e na democracia, a todos os
homens livres) para tornar-se mais propriamente humano é naturalmente manchado pela
indignidade, pela humilhação e pela exclusão. O sujar as mãos com trabalho está carregado
negativamente porque associado à escravidão.
A sociedade antiga não funciona sem o escravo, mas a literatura não lhe
concede uma importância correspondente. Os escravos ou têm a função de proporcionar
piadas fáceis (os palhaços da comédia, com o arsenal de lugares-comuns das surras, da
ladroagem, do atrevimento) ou aparecem apenas para cumprir algumas ordens, e só.
Em Os Cavaleiros, os escravos parecem sê-los por conveniência da trama.
Cuidam do senhor com zelo e não gostam de vê-lo ser enganado pelo escravo Paflagônio
(escravo favorito do amo). A coisa aqui é mais sutil: o senhor se chama Demos, ou seja,
representa o povo ateniense, ludibriado pelas belas palavras do Paflagônio - Cléon, o
demagogo. Neste caso dá-se uma inversão. Aristófanes deseja mostrar a força do demos, dos
cidadãos, de quem os líderes democráticos são apenas servos descartáveis. Bem, aí ser um
escravo já não é algo tão abominável. Além disso, a desenvoltura verbal do escravo subverte
o senso-comum sistematizado por Aristóteles: se o escravo é naturalmente incapaz de
deliberar, de elaborar um discurso racional, inábil para a oratória enfim, como um bárbaro da
Paflagônia sustenta um agon com tanta habilidade? Trata-se, sem dúvida, de uma alegoria.
Nas primeiras peças de Aristófanes os escravos têm posição marcadamente
subalterna, o que muda em Rãs e (sintomaticamente?) após o desfecho da Guerra do
Peloponeso em Pluto. Após o fim da Comédia Ática, o escravo passa a comandar a ação. Ou
melhor, um escravo comanda a ação. Até que ponto o personagem escravo é realista? A
comédia o representa por uma figura grotesca:
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Um sujeito de cabelos vermelhos, pernas finas, tez enegrecida, cabeça grande, olhos puxados, face avermelhada, e uns pés enormes.(Pseudolus, 1218 ss.; trata-se de alguém descrevendo Pseudolus para Ballio).
Como Xântias do Pluto, Pseudolus tem cabelos vermelhos: caracterização do
bárbaro? Quando se associa o bárbaro escravizado à tarefa de manter a ordem, como é o caso
dos escravos citas que se empregavam em Atenas para reprimir os cidadãos, dá-se uma
situação curiosa. Trata-se sempre, na comédia, de um bruto, que adora deuses primitivos e
nem mesmo sabe falar grego - mas um bruto a quem se deve acatar: em Ecclesia o cita prende
um cidadão, o parente de Eurípedes. No final os heróis livres se safam e riem-se do pobre cita
- que provavelmente pagará caro por deixar escapar um prisioneiro.
O problema é que esse é talvez o único caso em que se torna evidente a origem
estrangeira do escravo. Todos os outros personagens servis de destaque estão perfeitamente
integrados no mundo dos homens livres, seja na sua linguagem, seja na sua religiosidade. Tão
integrados que não são raros os escravos que possuem outros escravos (em O Soldado
Fanfarrão, v. 1205, o miles presenteia a concubina escrava com seu servo predileto) ou
escravos que traficam outros escravos. Os escravos do mundo antigo estavam tão distantes de
uma solidariedade de classe quanto Palestrião ao ouvir os lamentos dos companheiros:
PALESTRIÃO. Não sei que patifaria lhe fizeram os meus companheiros, pelo que oiço: pois aqui, o velho, deu ordem para esboroar os ossos dos calcanhares aos meus colegas. Mas, excluiu-me desse número: e a mim que me importa o que ele possa fazer aos outros?! (O Soldado Fanfarrão, v. 166; ver também Epídico, vv. 60 e ss.).
Não é só a comédia que desaponta os que procuram "consciência classista" nos
escravos da antiguidade. Diodoro Sículo, referindo-se ao último século da República,
descreve seguidas revoltas de escravos desbaratadas por traidores entre os rebeldes. Claro, há
traidores em qualquer época, mas que lado os escravos urbanos escolhem na hora da
verdade?
Sálvio [líder rebelde à frente de 22 mil escravos armados] era, agora, senhor absoluto do terreno e, de novo, tentou tomar Morgantina de assédio. Por proclamação, ofereceu liberdade aos escravos da cidade, mas, quando os amos lhe fizeram oferta semelhante em troca de seu auxílio na defesa da cidade, eles escolheram o lado dos senhores e, com resistência tenaz, repeliram o cerco.
É bom que se destaque: escravos urbanos. Os escravos de comédia quase
sempre são urbanos; é o lado menos duro da servidão. São servos que vivem a uma distância
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enorme dos que se consomem nas minas, muito mais próximos da liberdade (ou ao menos de
uma servidão mais amena). E, entre esses escravos urbanos, há ainda o escravo querido do
amo. Esse é quem merece atuar como personagem, esse é quem, justamente pela esperteza
que o levou ao posto de preferido, é chamado pelo amo para socorrê-lo.
Em Assembleia de Mulheres, o escravo de Ágaton, menino-prodígio da
Comédia Ática, possui um refinamento e afetação que o identificam a seu amo (vv. 40 e ss.).
Nas comédias - gregas ou romanas - que concedem um papel importante a escravos, só um
dentre a escravaria se destaca. A maioria, embora não se diferencie essencialmente dos outros
personagens, é reduzida à sua insignificância.
Essa assimilação é em parte verdadeira pois, quando não eram bárbaros que
escravizados e isolados de sua comunidade perdiam rapidamente suas identidades, os
escravos eram de outras regiões gregas ou helenizadas - ou já nasciam na condição servil.
Uma parcela significativa da oferta de escravos deve-se ainda ao abandono de crianças por
pais livres pobres, ou pelo rapto: o que parece ser fantasia farsesca, na frequência em que
ocorrem nas comédias helenísticas e romanas reconhecimentos de ingênuos que foram
escravizados (Epidico), corresponde a uma chocante realidade. O megarense que disfarça as
filhas como porquinhas para vendê-las (Acarnenses) é uma piada por sua excepcionalidade,
para enfatizar a miséria a que foi reduzida Mégara pela guerra. Mas no mundo cosmopolita
de fronteiras alargadas pelo helenismo, a mobilidade das pessoas é maior do que nunca.
Mobilidade geográfica e de status. Famílias que perdem o homem da casa soem empobrecer,
e cair em alguma forma de prostituição.
Consegue insinuar-se junto da amante do meu amo e começa a fazer tagatés à mãe dela com vinho, adornos e lautas iguarias, e assim se torna íntimo em casa da velha alcoviteira, mãe da rapariga de quem o meu amo gostava (O Soldado Fanfarrão, v. 110).
Não adequadas para fazer o papel do servo predileto, sofriam as cortesãs um
duplo opróbrio: mulheres e (freqüentemente) escravas. Muitas vezes são ainda estrangeiras.
Delas é feito em geral o pior retrato possível, como a fingida Erócio. A criada da cortesã, tal
qual uma rêmora, tenta sempre arrancar mais uns trocados à presa da ama (Menecmos, v.
541). Nem um escravo como Epídico - este sim, escravo favorito - deve consideração a uma
lirista inconveniente:
Sem demora, é preciso destinar uma esposa para o teu filho. Quanto à flautista, a essa fulana que ele quer libertar, e que te está a corromper o rapaz, vinga-te dela.
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Importa agir de tal maneira que ela seja escrava até à morte (Epídico, v. 267)
A fragilidade das fronteiras entre livres e não-livres (que às vezes só se
diferençavam no palco pelas máscaras próprias) é mais forte após o fim da Democracia. A
permissividade dos não-cidadãos em Plauto pode nos informar sobre o valor não tão alto da
cidadania dos romanos, decididamente menos zelosos a esse respeito que os atenienses, cujo
teatro demarcava mais nitidamente os limites do escravo.
O escravo aristofânico é normalmente neutro, e não precisa nem falar muito.
Pode ser valoroso, sem dúvida, até mais que o amo (como vimos no Xântias de Rãs), e pode
acabar por se confundir culturalmente com os livres. Mas há uma barreira que o separa
inexoravelmente dos cidadãos. Nas raríssimas oportunidades em que um escravo era libertado
em Atenas (coisa que não acontece na Comédia Ática), não lhe cabia o estatuto de cidadão,
mas o de meteco.
Já em Roma, a manumissão tomou proporções desconhecidas no mundo grego.
Houve uma integração de bárbaros e escravos à cidadania que teria sido incompatível com a
democracia de Atenas, por exemplo. O instituto do pecúlio era também muito mais
importante em Roma que na Grécia, e era garantido juridicamente.
Como já se disse no capítulo I, se Aristófanes faz dos protagonistas quase
sempre cidadãos, em Plauto os escravos roubam a cena. Carpeaux, referindo-se à comédia
romana, especula mesmo com a possibilidade dos personagens escravos representarem na
verdade o elemento plebeu, homens pobres mas espertos que levam os patrícios no bico.
Thébert fala de uma identidade entre livres pobres e escravos, que se transformou
eventualmente em uma aliança ao tempo das grandes revoltas de escravos do século I, ou no
motim que se seguiu ao assassinato de Pedanius Secundus, prefeito de Roma, ao tempo de
Nero. Como um escravo matara seu senhor, todos os escravos da casa seriam mortos; ora, é o
tempo das grandes concentrações servis, e aquele patrício possuía 400 escravos! Inúmeros
populares se comoveram e tentaram impedir a execução à força.
Paul Veyne, na sua participação na História da Vida Privada, faz uma ótima
comparação entre escravos e crianças ou animais domésticos em Roma. É interessante notar,
por exemplo, que os nomes dos escravos na comédia são pastiches dos nomes gregos; não são
nomes de pessoas, são como que apelidos. Se alcançasse a manumissão, o escravo assumia o
nome do antigo senhor. Os homens livres sabiam que os escravos eram humanos, pois
"impunham-lhes o dever moral de ser um bom escravo, de servir com dedicação e fidelidade.
Ora, não se impõe moral a um animal ou a uma máquina." Mas o escravo em Roma era
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tratado como uma criança, como puer. E por algum tempo não diferiu muito do estatuto
daquele pré-cidadão que era a criança livre. Assim como ela, o escravo romano poderia
alcançar a cidadania, mesmo que sob tutela. A manumissão era realmente muito freqüente, e
sempre usada para estimular os escravos ou para engrandecer a imagem póstuma de um
senhor. Mas o costume não questiona o regime escravista.
Libertar escravos constitui um mérito, mas não um dever. [...] O prazer que um senhor sente ao libertar confirma a autoridade em virtude da qual ele poderia também não fazer isso; [...] O subordinado não deve esperar a clemência como algo que lhe é devido. Dupla imagem de pai: castiga, perdoa [...] Assim como a indulgência do senhor não constituía uma homenagem que o escravagismo prestava à humanidade, e sim um mérito individual, também os exemplos de senhores cruéis, até atrozes, constituíam deméritos que lhes eram pessoais.
Mesmo após a manumissão mantinham-se fortes laços de dependência -
inclusive a adoção do nome do antigo senhor. No final do Epídico, o escravo malandro que
dá nome à peça consegue do amo não só a manumissão mas o compromisso deste em
alimentá-lo e vesti-lo perpetuamente.
É preciso lembrar que a escravidão se transforma com o passar do tempo.
Yvon Thébert delimita como limites da escravidão maciça e racionalizada os séculos II a.C. e
II d.C. Na época de Plauto o escravo,
na medida em que é propriedade de um patrão privado, está inserido nas relações que unem os vários membros da familia sob a autoridade do pater potestas. [...] a situação do filho e do escravo não é radicalmente diferente. As XII Tábuas, texto fundamental do direito romano redigido em meados do século V a.C., declara que o pai pode vender os filhos. Por outro lado, pode adoptar um escravo. [...] os escravos, tal como os filhos, são considerados sobretudo como uma preciosa força de trabalho.
Em Plauto, se alguns escravos são bem tratados e distinguidos, outros são
tratados com uma deferência pouco maior que a que mereceriam se fossem cães. O pobre
Céledro, um escravo leal ofuscado pelo esperto escravo predileto do amo, escravo de
porcelana, o bibelô da casa, não tem ilusões quanto a seu futuro de escravo comum: "eu sei
bem que a cruz há-de ser a minha tumba. Aí repousam meus antepassados, pai, avô, bisavô,
trisavô" (MILE, v. 373). Seu ciúme pelo favoritismo dedicado a Palestrião explica tudo:
é ele o primeiro que chamam para a mesa, o primeiro a quem dão o conduto. E dizer que ele está cá em casa há três anos, quando muito, e entre toda a criadagem não há criado a quem tratem melhor do que ele! (MILE, v. 350).
De fato, na comédia Plautina também há muitos servos mudos com referências
31
neutras (MENE 735), e o trato severo e seco de um soldado para com o servo anônimo
(EPID, 400-436) não deixa dúvidas quanto à estima pelo escravo ordinário. São como peças
da mobília, são instrumenta vocalii. Ao fim de Menechmi, os felizes irmãos reunidos
preparam-se para voltar ao torrão natal, cuidando de arrematar "escravos, móveis, terras,
casa" (v. 1160): não se enxerga qualquer laço afetivo em relação aos escravos ordinários.
Mas os escravos prediletos, aqueles que salvam seus amos, sempre podem sonhar com um
futuro risonho. Esses costumam ser leais (como Palestrião em MENE, cujo célebre discurso
sobre o bom escravo é reproduzido adiante), mas podem se dar ao luxo de ostentar uma
lealdade seletiva.
PALESTRIÃO. [...] o meu amo é aquele soldado que acaba de ir daqui para o foro: um fanfarrão, um desavergonhado, um monte de esterco, todo ele mentira e adultério (MILE, v. 90). em matéria de inteligência é mais duro do que um calhau (MILE, v. 235).
E esse Palestrião foi agraciado com a liberdade pelo amo de eleição. Um
senhor injusto pode ser enganado pelo escravo, e na obra plautina vemos tipicamente
escravos servindo com toda fidelidade e abnegação aos jovens amos - mesmo que precisem
para isso enganar o pater familiae.
EPÍDICO. Tenho cá uma faca afiada para estripar a sacola do velho... [...] vou transforma-me em sanguessuga e chupar-lhes o sangue (EPID, v. 189).
Escravo plautino, servo que podia escolher seu amo e enganar o chefe da
família. As tramóias engendradas por jovens e escravos ocorrem muitas vezes na sua
ausência. Os expedientes indignos de homens livres são atribuídos aos escravos, uma
delegação que tem correspondência com a realidade: a possibilidade quase ilimitada de punir
um escravo, "coisa" sem direitos, introduziu o uso sistemático de escravos em postos-chave
das oficinas e herdades e mesmo no governo. O homem livre pensa antes em dar um cargo de
confiança a um escravo (que ele pode punir de todas as formas à menor falta) que a um
homem livre assalariado.
Paradoxalmente promovido a garantidor da moralidade familiar, é o escravo
que dá conta de todos os esquemas ilícitos. Além, é claro, de servir de matéria-prima para o
riso fácil com as surras aplicadas pelos donos de escravos (Anfitrião, pp. 47 e 51, e Aulularia,
p. 147), a indolência irremediável (Anfitrião, pp. 48, 51, 61), seu apetite irrefreável para
pilhar a casa do senhor, e sua desmedida no comer e no beber como em Anfitrião (p. 61),
quando o escravo Sósia bebe vinho puro, um ato bárbaro.
32
EPÍDICO. Bem vejo, sim, senhor... Caramba!... Estás com um bom corpanzil, acho eu, e com uma pança de respeito! [Tesprião espalma a mão no ar, a modo das roubalheiras.]TESPRIÃO. Graças a esta!EPÍDICO. Pois claro! A tal que, há muito, já deveriam ter cortado.TESPRIÃO. Mas já sou menos gatuno que era dantes. [...] Os meus pilhanços - faço-os à vista de toda a gente (Epídico, vv. 10-12).
Contudo, os escravos favoritos não são ameaçados o tempo todo por seus
patrões; em geral estão envolvidos em tarefas mais cerebrais que braçais, além de participar
de festas e nunca sofrerem sérios castigos, sendo rapidamente perdoados por suas faltas.
Vemos os outros servos serem constantemente lembrados de sua insignificância:
PERIPLECTÓMENO. [...] um escravo deve ter freio nos olhos, nas mãos e na língua.[...] Meu caro hóspede, eu cá eduquei os meus servos a servirem-me servilmente, e não a darem-me ordens ou a trazerem-me debaixo da pata. Ainda que lhes pese o que a mim me dá prazer, é pelo meu leme que eles têm de levar a barca (O soldado Fanfarrão, vv. 564 e 745).
Ballio (Pseudolus) é crudelíssimo com seus escravos, mas é uma exceção. No
princípio do Império começa a ser produzida uma legislação visando a proteger os escravos
de maus tratos. É significativo que tal iniciativa só parta de um Estado que já destruíra as
prerrogativas de liberdade e participação dos cidadãos na gerência da coisa pública.
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Algumas Conclusões
A comédia da cidade-Estado assumiu um papel educador, a que alguns autores
se submetiam de forma matizada e rebelde. Moralizante e obscena, reprodutora e crítica da
sociedade a que pertencia.
A Comédia Antiga tomou forma na Grécia no fim do século VI a.C. Evoluiu e
se sofisticou até chegar ao ápice com Aristófanes, no último quartel do século V a.C., para
depois se transformar na Comédia Nova que por sua vez deu a Comédia Latina à luz. Depois
da morte de Plauto e Terêncio, não há mais produção teatral sistemática e significativa por
uns 14 séculos.
Qual é o significado político que podemos extrair das alterações de forma e
conteúdo por que passou o gênero ao longo da história antiga?
O escravo, mudo, neutro e por vezes ausente nas primeiras comédias de
Aristófanes, vai aparecendo e cobrando uma importância cada vez maior na trama. Na
Comédia Nova já é indispensável, característica mantida na Comédia Latina.
Porque a comédia de Aristófanes tratava de problemas da Cidade, para cuja
resolução eram convocados todos os cidadãos. A Comédia Nova e Latina se ocupa de
questões domésticas - ou mais propriamente de alcova -, cuja solução compete a amigos,
criados inteligentes ou parasitas, não a mecanismos públicos. Quanto mais alienado o
indivíduo se encontra dos assuntos públicos, mais distante e sem importância parecem o
Estado e a lei - não obstante seu domínio sobre o cidadão seja crescente. E, à medida em que
o valor da cidadania se torna meramente simbólico, desaparecem os sicofantas, aqueles
denunciadores profissionais de estrangeiros que tentavam se passar por atenienses, e escravos
e estrangeiros começam a se mover entre os cidadãos com maior desenvoltura, quase
indistinguíveis desses últimos.
O zelo ateniense pela cidadania deixa de fazer sentido. A fronteira entre a
servidão e a liberdade passa a ser fluida: as alforrias de escravos inexistentes em Aristófanes
são freqüentes em Plauto. O inverso também ocorre: não raro, crianças livres são
seqüestradas e escravizadas na Comédia Nova e na obra de Plauto e Terêncio, o que não se
via na Comédia Ática.
Escravos não deixam de ser escravos na passagem de um ciclo para o outro,
mas a diferenciação étnica, que já era rara em Aristófanes (praticamente só existe, como
dissemos, o caso do arqueiro cita em Cavaleiros e Tesmofórias), deixa de existir. A marcada
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caracterização étnica do escravo feita em Pseudolus, do escravo ruivo e meio monstruoso, é
meramente superficial e estereotipada - como de resto todas as caracterizações da comédia,
com máscaras e gigantescos falos para diferenciar os homens das mulheres, os velhos dos
moços. De tão marcada, essa diferença parece servir para compensar a falta de diferenças
essenciais entre escravos e cidadãos no comportamento e linguagem.
Paradoxalmente, o que parece refletir um conceito menos excludente de
humanidade representa a restrição do poder de mando a uma parcela muito menor da
população do que se verificava na Atenas dos séculos V e IV. O cosmopolitismo das cidades
helenistas iguala cidadãos e estrangeiros na submissão ao imperador. A civilização romana
será generosa na gradual concessão da cidadania a todas as etnias conquistadas, bem como na
larga manumissão de escravos, mas a cidadania já não significa a mesma coisa que na
democracia ateniense. A ascensão do escravo na comédia corresponde à decadência da
cidadania participativa e serve como fecho a uma das mais originais experiências estatais da
Antigüidade.
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Ocidentais.
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ANEXO 1
POBREZA - [...] vou provar-te o redondo engano em que estás, ao afirmar que vais tornar
ricos os justos.[...]
CRÉMILO - Eu creio que é óbvio que todos nós reconhecemos por igual que é justo que os
homens bons sejam felizes e que os maus e os sem-deus sejam o contrário disso. [...] Se Pluto
agora vir, e não vaguear como cego que ele é, ele dirigir-se-á àqueles dos homens que são
bons e não os abandonará. E fugirá dos maus e ateus. E depois fará que todos sejam bons e
ricos e respeitadores da divindade. E quem jamais poderá descobrir alguma coisa melhor do
que isto, para os homens?
POBREZA- [...] Se acontecesse isso que desejais, garanto que não vos seria útil. Se Pluto [ou
seja, a riqueza] voltasse a ver de novo e se repartisse por igual, ninguém mais entre os homens
se preocuparia com a arte ou com a sabedoria. E tendo vocês feito desaparecer estas duas,
quem quererá trabalhar os metais, construir navios, coser tecidos, fazer correias ou "como
arado rasgando a terra, colher o fruto de Deméter", se vos for possível viver na ociosidade,
sem vos preocupardes com nada disto?
CRÉMILO - Só dizes asneiras. Tudo isso que acabas de enumerar, os criados que o agüentem.
POBREZA - Onde arranjarás tu os criados?
CRÉMILO - Comprá-los-emos com dinheiro, naturalmente.
POBREZA - Quem é que, para começar, os vende, quando também esse tem dinheiro?
CRÉMILO - Alguém que queira ganhar, um comerciante que chegue da Tessália onde há
insaciáveis ladrões de escravos.
POBREZA - Mas, antes de mais nada, não haverá nenhum traficante de escravos, segundo,
naturalmente, o plano de que falas. Quem é que quererá, sendo rico, correr o risco de perder a
própria vida, para fazer isso? Deste modo, serás tu próprio forçado a lavrar o campo e a cavar
e a mourejar em tudo o mais e levarás uma vida muito mais dolorosa do que a atual.
CRÉMILO - Raios te partam!
POBREZA - Depois nem podereis dormir na cama - não haverá camas - nem em tapetes -
quem quererá tecê-los, havendo dinheiro? Nem perfumar a noiva com perfumes finos quando
a conduzirdes a casa, nem ornamentá-la com custosos mantos tingidos, de desenhos coloridos.
E realmente, de que vale ser rico, estando privado de tudo isto? Comigo, todavia, está à vossa
disposição tudo aquilo de que precisais, porque eu fico aqui como uma patroa que força o
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trabalhador manual, por meio da necessidade e da pobreza, a procurar os meios de vida.
CRÉMILO - [...] Então não é verdade que se diz que a pobreza é irmã da mendicidade?
POBREZA - [...] Essa vida de que tu falas é a do mendigo, a vida de quem nada tem. Mas a
vida do pobre é a de quem poupa e se aplica ao trabalho, a quem nada sobra, não decerto, mas
também nada falta.
CRÉMILO - Que feliz, ó Deméter, essa vida do pobre de quem tu falas, se depois de poupar e
penar não deixará com que ser enterrado.
POBREZA - Tu tentas fazer troça e ridicularizar [...] provar-vos-ei que a moderação mora
comigo e que de Pluto é própria a insolência.
CRÉMILO - Então furtar e arrombar as casas é o cúmulo da moderação.
POBREZA - Ora observa nas cidades os oradores, como eles, enquanto são pobres, são justos
com o povo e com a cidade, mas quando enriquecem à custa dos dinheiros públicos,
imediatamente se tornam injustos e conspiram contra a plebe e fazem guerra ao povo.
CRÉMILO - [...] E então como é que todos fogem de ti?
POBREZA - Porque os faço melhores. Pode ver-se muito bem o que acontece com as
crianças. Fogem dos pais, porque estes só querem o bem delas. De tal modo, conhecer o que é
justo é coisa difícil.
Pluto, vv. 474-577
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Notas 1. ARISTÓTELES, Poética, p. 242.2. CARDOSO, Ciro F., A Cidade-Estado Antiga, p. 7.3. Há um intenso debate historiográfico a esse respeito, exposto por Cardoso (obra citada) nas páginas 14 e (principalmente) 74-79: "por mais que isto desagrade aos idealistas como C. Meier, os cidadãos mais pobres esperavam, e muitas vezes obtinham, vantagens tangíveis de sua participação na vida pública".4. VEYNE, Paul, "Os gregos conheceram a Democracia?", p. 60.5. CARDOSO, Ciro, A Cidade-Estado antiga, p. 12.6. FINLEY, Os Gregos Antigos, p. 50-51.7. A numeração dos versos é aproximativa.8. Para ficar em um único exemplo, basta lembrar a furiosa reação contra a mutilação das estátuas de Hermes, quando da partida da esquadra ateniense para a Sicília.9. Aulularia, p. 162 (infelizmente, na edição utilizada, bem como em Amphitruo, não se emprega a notação dos versos).10. idem, p. 145.11. idem, p. 148.12. CARDOSO, A Cidade-Estado Antiga, p. 68.13. GRIMAL, O Teatro Antigo, pp. 72-74.14. DUCKWORTH, ... The Nature of Roman comedy. Outros comediantes do Século V buscavam temas na mitologia, à maneira dos trágicos.15. A degeneração do viver em comunidade desemboca nesse individualismo que deposita seu destino nas mãos do Acaso, "porque até a um cego parece evidente quanto importa nada fazer algo de útil nos tempos que correm"(PLUT, v. 50). Aristófanes está cansado. O espírito do período seguinte pode ser ilustrado pela frase de um herói de Menandro: "pensas que os deuses se ocupam a condenar ou a salvar os milhões de homens, um por um? Que ocupação!" apud LEVEQUE, Pierre, O Mundo Helenístico, p. 144.16. idem, p. 103. Pólux (135-188 d.C.) era um gramático e sofista grego.17. DUCWORTH, op. cit., pp. 36-37.18. idem, p.187.19. idem, p. 80.20. VEYNE, Paul, "A helenização de Roma e a problemática das aculturações", in Diógenes, Brasília, UnB, 1983, n. 3, p. 108. 21. FRAENKEL, Eduard, "Elementi plautini in Plauto", pp. 378 e 441, Journal of Roman Studies, XLV, 1955, apud VEYNE, Paul, "A helenização de Roma e a problemática das aculturações.22. CARPEAUX, A Literatura Grega e o Mundo Romano. p. 63.23. para uma análise do Festival das Grandes Dionisias, veja GOLDHILL, "The Great Dionysia and Civic Ideology".24. DUCKWORTH, op. cit., p. 75; tal suspeita é combatida pelo mesmo autor.25. idem, p. 74.26. JAEGER, Paidéia, p. 292.27. essa lista foi dada pelo tradutor de Tesmofórias.
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28. idem, p. 296.29. VEYNE, "Conheceram os Gregos a democracia?", in Diógenes, n.6, 1984 - pp.57-82.30. FINLEY, Os gregos antigos, pp. 92-93.31. Só o conflito de gerações na obra de Aristófanes já daria excelente tema para uma outra monografia. Em Vespas ouvimos a queixa do veterano:
"...somos a gente ática... gente viril por excelência, que defendeu muitas vezes esta cidade em combates, quando chegou o bárbaro, cobrindo de fogo e fumo a cidade inteira... Eu era terrível e nenhum receio me detinha [...] somos os verdadeiros responsáveis pelos tributos que se trazem para cá e que os jovens dilapidam" (vv.1075-1101).32. apud DUCKWORTH, op. cit.33. FOWLER - Social life at Rome, p. 298; e DUCKWORTH, P. 74.34. apud DUCKWORTH, op. cit., p. 80.35. FOWLER, op. cit., pp. 305-6: "It is hardly possible to avoid the conclusion that these early days of the Roman theatre the audiences were really intelligent, and capable of learning something from the pieces they listened to [...]". Como contraponto curiosamente preconceituoso temos DUCKWORTH (op. cit.), à pág. 30: "Greek New Comedy was adapted by the Romans [...] and produced before audiences less racially gifted for literature and lacking the necessary background for the appreciation of subtileties and refinements in drama."36. DUCKWORTH, op. cit, p. 77. O número de dias para o teatro podia ser aumentado em virtude das instaurationes, ou seja, repetições de festivais. A Instauratio era em princípio motivada por erros no cerimonial, mas como havia até 3 ou 4 repetições por ano, Ducworth suspeita que "the large number of instaurationes during the latter years of the second Punic war is related to the succes of the dramatic productions in this period; the popularity of Plautus' plays may have been a chief factor, and the audience or the performers could always create an interruption or a disturbance which would necessitate the repetition of the festival" (p. 78).37. ANDERSON, Passagens da Antigüidade para o Feudalismo, p. 22, nota. Anderson lembra ainda que, sendo indivisíveis a escravidão e a liberdade helênicas, "uma era a condição da outra, num sistema diádico sem precedente ou equivalente nas hierarquias sociais dos impérios do Oriente Próximo, que ignoravam tanto a noção de livre-cidadania quanto a de propriedade servil" (p. 23). EHREMBERG (The people of Arisfophanes) lembra que, nas comédias, mesmo os deuses tinham escravos, e que um homem pobre como Crêmilo (Pluto) tinha vários. Na p. 165 faz um bom apanhado de exemplos dessa naturalidade.38. "Observações sobre as formas e os limites do pensamento técnico entre os gregos", in VERNANT, J.P., e VIDAL-NAQUET, Pierre - Trabalho e escravidão na Grécia Antiga. Vernant observa que nem mesmo havia um conceitual próprio para o que hoje chamamos de Física: nas descrições dos movimentos e das máquinas se usava uma terminologia originária da Retórica, onde uma força maior é denominada de "argumento mais forte", e assim por diante.39. "A civilização grega era baseada no trabalho escravo?", p. 112; in FINLEY, Economia e sociedade na Grécia Antiga. O texto é realmente uma excelente descrição do caráter da escravidão.40. ANDERSON, op. cit., primeiro capítulo. Veyne, na História da Vida Privada (pp. 62-63)
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argumenta que na Itália a participação do elemento servil só representa 1 quarto da mão-de-obra rural. Contudo, Ariés se refere ao Império, momento em que não existe mais a cidadania no sentido de participação direta nas deliberações de interesse coletivo. A República já havia se esgotado, junto com a "escravidão de plantação", em larga escala. Agora os homens livres viviam exclusivamente para seus próprios interesses.41. "Quanto às profissões que devem ser consideradas dignas de um homem livre e as que não devem, eis o ponto de vista geralmente aceito. Em primeiro lugar, são consideradas as profissões que suscitam a antipatia dos outros, como as de cobrador de taxas portuárias e de prestamista. Também não liberais e inferiores são as profissões de todos que trabalham por salário, a quem pagamos o trabalho e não a arte, porque no seu caso o próprio salário é o atestado de sua escravidão [...]" Cícero, De Oficcis, apud FLORENZANO, O mundo antigo..., p. 79. Cícero segue Aristóteles; contudo, considerar suas opiniões como únicas na época a respeito do trabalho talvez seja empobrecer o pensamento antigo. O escravo era considerado imprescindível, sim, mas homens livres - como já se disse tantas e tantas vezes na historiografia sobre a Antigüidade - trabalhavam lado a lado dos escravos em quase todas as atividades - além do fato de vários autores antigos elevarem o trabalho agrícola a uma alta dignidade. O que importa, na citação de Cícero, é a grande repulsa em relação ao trabalho assalariado (sobre o assunto, v. FINLEY, Ancient Economy).42. apud DUCKWORTH, op. cit.43. DIODORO SÍCULO, Biblioteca Histórica, XXXVI, 1 ss.44. O livro de Catherine SALLES (Submundos da Antigüidade), apesar de um certo tom jornalístico, dá uma visão geral da prostituição no Mundo Antigo, e também do abandono de crianças que alimenta esse mercado.45. THEBERT, Yvon, "O escravo", in O Homem Romano, p. 143.46. CARDOSO, Trabalho Compulsório na Antigüidade.47. VEYNE, "O Império Romano", p. 61.48. Não devemos nem superestimar a crueldade do regime de trabalho escravo nem idealizar a servidão; Finley insiste com razão no fato em que ninguém é totalmente livre nem totalmente escravo: existem inúmeras nuances entre esses dois extremos. A comédia retrata a realidade mostrando escravos em posições privilegiadas. Não apenas a pura alforria, mas a perspectiva de alçar a um posto de gerência (ou de feitor, tanto faz) ou de obter uma semi-independência (em que o escravo trabalhava por conta própria, pagando uma renda ao senhor e juntando um pecúlio para comprar a liberdade) eram todos estímulos usados pelos proprietários de forma generalizada ("A civilização grega era baseada no trabalho escravo?", p. 118). Muitas vezes escravos gozavam de um padrão de vida em tudo superior aos homens livres, cujas prerrogativas desapareciam gradativamente com a evolução política do mundo antigo.49. VEYNE, "O Império Romano", pp. 74-76.50. THEBERT, Yvon, op. cit., pp. 128-9.51. NÓBREGA, Compêndio de Direito Romano, p. 312: em 19 a Lex Petronia proíbe os domini de lançar a seu arbítrio os servos às feras no Circo; Antonino coíbe os proprietários que matam escravos sem motivo; Cláudio proíbe aos senhores abandonar escravos velhos no templo de Esculápio; Justiniano concedia a cidadania a escravos doentes que viessem a ser expulsos de casa pelo dominus. Sob o Império os escravos maltratados podiam recorrer ao magistrado.