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Modernização e agronegócio: solução para a fome global?
Magno da Conceição Peneluc
Doutorando em Ensino, Filosofia e História das Ciências. Instituto de Física (UFBA/UEFS). SALVADOR-
BA, [email protected], Rua Bernadete Dias, nº 15B, Bairro Boca do Rio. CEP: 41.710-040.
Edilson Fortuna de Moradillo
Professor do Instituto de Química da Universidade Federa da Bahia (UFBA)
Bárbara Carine Soares Pinheiro
Professora do Instituto de Química da Universidade Federa da Bahia (UFBA)
Resumo: A crise do modelo de produção agrícola, para ser analisada em sua materialidade, demanda a
explicitação da relação dialética entre a produção convencional intensiva e monocultural; o sistema de
circulação de capitais, de produção e de transporte das commodities e o consumo correlato; a relação entre as
organizações de mega-produtores, suas corporações e a produção de Ciência e Tecnologia a seu serviço; a
expansão da fronteira agrícola relacionada a impactos socioambientais decorrentes. Como sustentado por
Altieri (2002), consideramos a questão do modelo industrial da agricultura moderna em relação direta com
as tecnologias demandadas pelo setor produtivo, com os interesses comerciais dos centros de pesquisa, com
a distribuição desigual dos benefícios e dos ônus decorrentes dos impactos socioambientais da exploração
dos recursos genéticos, do solo e da água. Em decorrência desta assunção, elucidou-se a relação campo-
cidade no atual cenário do capitalismo monopolista financeiro; o estatuto e princípio dito insopitável da
propriedade privada da terra, a relação dialética entre produção-circulação-consumo e os impactos
socioambientais decorrentes; a ideologia da relação direta e positiva entre tecnologia-produção-fim da fome
global. O modelo mecanização-biotecnologia-propriedade privada de alto rendimento seria superior,
portanto, ao latifúndio extensivista e às práticas produtivas do campesinato. Este modelo sustenta
ideologicamente que para uma agricultura sustentável a modernização tecnológica e das relações de
produção, é logicamente superior, até mesmo ao capitalismo industrial e sua forma de produção perdulária
(LOUREIRO; LAMOSA, 2014). O presente artigo pretendeu discutir a evolução histórica da indústria
agrícola, expondo relações de poder e condições materiais e históricas que conduziram a relações de
produção continuamente desiguais, injustas e socioambientalmente insustentáveis.
Palavras-chave: Modernização. Agronegócio. Segurança alimentar.
Abstract: The crisis of the agricultural production model to be analyzed in its materiality, demand the
explanation of the dialectical relationship between traditional production and intensive monocultural; the
movement of capital system, production and transportation of commodities and the related consumption; the
relationship between organizations of mega-producers, their corporations and the production of Science and
Technology to its service; the expansion of the agricultural frontier related to environmental impacts. As
supported by Altieri (2002), we consider the issue of the industrial model of modern agriculture in direct
relation to the defendants technologies by the productive sector, with the commercial interests of research
centers, with the uneven distribution of benefits and burdens arising from environmental impacts the
exploitation of genetic resources, soil and water. As a result of this assumption, we elucidated the rural-
urban relationship in the current scenario of the financial monopoly capitalism; the status and principle
unquenchable said the private ownership of land, the dialectical relationship between production-circulation-
consumption and environmental impacts; the ideology of direct and positive relationship between
technology-production-end global hunger. The mechanization-biotechnology-owned private high-
performance model would be higher, so the extensivist landlordism and productive peasantry practices. This
model holds that ideologically for sustainable agriculture and the technological modernization of production
relations, is logically superior, even to industrial capitalism and its form of wasteful production
(LOUREIRO; LAMOSA, 2014). This paper aims to discuss the historical development of the agricultural
industry, exposing power relations and material and historical conditions that led to relations of production
continuously unequal, unfair and socially and environmentally unsustainable.
Keywords: Modernization. Agribusiness. Food security.
1.0 As implicações da assim chamada Revolução Verde
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO) publicou em 2014 o
relatório sobre o estado da insegurança alimentar global. As estimativas indicam que a fome foi reduzida em
mais de 100 milhões de pessoas na última década. O dado poderia ser alentador se não fosse acompanhado
com o incômodo número de 805 milhões de pessoas que ainda estão cronicamente subalimentadas em 2012-
2014, com prevalência de desnutrição diminuída de 18,7% para 11,3% no mundo e de 23,4% para 13,5%
nos países em desenvolvimento, isto no período de 1992 até 2014. O mesmo relatório, todavia, alerta que o
que se busca é uma segurança alimentar sustentável - a exemplo da Lei de Segurança Alimentar aprovada
recentemente na Índia, os programas de aquisição de alimentos devem se basear na aquisição a partir da
agricultura familiar e na transferência direta dos alimentos para o consumidor. Na África Subsaariana o
percentual de pessoas subnutridas é o maior do mundo, em 1990-1992 estava em 33,%, na América Latina
em 14,4%. Em 2014 o percentual africano diminuiu para 23,8% e na nos países latinos para 5,1% (FAO,
2014).
Na comunidade de países de língua portuguesa, o número de pessoas subnutridas é de cerca de 28
milhões: em Angola, 5,4 milhões; Brasil, 13 milhões; Cabo Verde, 44,5 mil; Guiné-Bissau, 13 mil;
Moçambique, 9,4 milhões; São Tomé e Príncipe, 12, 3 mil e Timor-Leste, 460 mil. No Brasil, em 2012 o
percentual de pessoas subnutridas era de 6,9%, 1992 era de 14,9%, mas a população aumentou em 12%
neste período (FAO, 2013). Os entusiastas do agronegócio, por certo, devem estar a comemorar. Como se
fosse aceitável, em qualquer período histórico, termos um percentual de 11,3% de pessoas desnutridas no
mundo. A que se deve esta diminuição nos percentuais da subnutrição global e em especial no Brasil? No
decorrer deste artigo procuraremos responder esta difícil, mas extremamente relevante pergunta.
A crise do modelo de produção agrícola, para ser analisada em sua materialidade, demanda a
explicitação da relação dialética entre a produção convencional intensiva e monocultural; o sistema de
circulação de capitais e de transporte das commodities e o consumo correlato; a relação entre as
organizações de mega-produtores, suas corporações e a produção de Ciência e Tecnologia a seu serviço; e a
expansão da fronteira agrícola relacionada a impactos socioambientais decorrentes. O modelo mecanização-
biotecnologia-propriedade privada de alto rendimento seria superior, portanto, ao latifúndio extensivista e às
práticas produtivas de camponeses e demais trabalhadores. Este modelo sustenta ideologicamente que para
uma agricultura sustentável a modernização tecnológica e das relações de produção logicamente é superior
até mesmo ao capitalismo industrial e sua forma de produção perdulária (LOUREIRO; LAMOSA, 2014). O
presente artigo pretendeu discutir os impactos do processo de modernização da agricultura, explicitando
relações de poder e condições materiais e históricas que conduziram a relações de produção continuamente
desiguais, injustas e socioambientalmente insustentáveis.
1.1 Revolução Verde?
Nos anos de 1960, a produção de alimentos no campo se viu compelida a ceder a uma onda
progressista que visava modernizar a agricultura e extinguir a “decadente” produção camponesa tradicional,
tão ligada ao subdesenvolvimento, baixa produtividade e à pobreza. As variedades tradicionais deveriam ser
substituídas por aquelas melhoradas geneticamente, a mecanização tomaria o lugar do trabalho braçal.
Assim, o bem-estar social, a renda e a produção atingiriam patamares nunca vistos antes (ALTIERI, 2012).
A “Revolução Verde” contaria ainda com sementes selecionadas com a meta de se desenvolverem melhor à
aplicação de adubos químicos e de agrotóxicos, em sistemas monoculturais. Assim a fome mundial estaria
com seus dias contatados (LONDRES, 2011).
A industrialização da agricultura, na maioria das vezes, está associada à inserção de novas tecnologias
agrícolas no processo de cultivo, colheita e escoamento da lavoura e aos pacotes biotecnológicos de
sementes geneticamente modificadas (OGM) e agrotóxicos com todas as implicações de biossegurança e,
consequentemente, ética. Além disso, não podemos perder de vista que, dentro de relações capitalistas de
produção a modernização engendra necessariamente as relações sociais no campo, altera diretamente a
estrutura fundiária e as formas com que o trabalho é submetido ao capital. Assim sendo, as verdadeiras
razões da modernização são:
Elevação da produtividade do trabalho visando o aumento do lucro; redução dos custos unitários de
produção para vencer a concorrência; necessidade de superar os conflitos entre capital e o latifúndio,
visto que a modernização levantou a questão da renda da terra; possibilitar a implantação do
complexo agroindustrial no país (BRUM, 1988 apud TEIXEIRA, 2012, p. 23).
Não obstante, a estrutura fundiária, caracterizada por propriedades concentradas nas mãos de uma
minoria, pela grande quantidade de terras privadas improdutivas e com a produção voltada eminentemente
para a exportação – acabou por submeter o camponês difíceis condições de manter sua subsistência
(TEIXEIRA, 2012).
A modernização das relações produtivas no campo resultou em impactos seríssimos, como descritos
por Altieri (2012): a Revolução Verde incluía variedades melhoradas, fertilizantes e irrigação, estímulos
creditícios aos agricultores que adotassem os pacotes de disseminação de sementes híbridas e agrotóxicos,
substituição de sementes crioulas por variedades clonais alteradas, com consequências deletérias á
diversidade genética e à diversidade cultural. Este quadro levou a uma expropriação ampliada dos
agricultores tradicionais no que se refere à renda; além de, gradativamente, conduziu a cooptação ideológica
que a agricultura industrial direcionou intencionalmente aos agricultores familiares: delírios de alta
produtividade e de renda astronômica.
2.0 O agronegócio e sua relação dialética com a ciência e com a modernização tecnológica
Na passagem do estado selvagem para a barbárie e daí para a civilização moderna, a humanidade
galgou progressos, especialmente no que se refere aos meios de produção de sua existência material. A
habilidade de produzir sua existência material é decisiva na definição da relação entre o ser humano e a
natureza, sendo o progresso da humanidade coincide, mais ou menos, com as épocas desenvolvimento
tecnológico, especificamente os meios gradativamente mais sofisticados de produção de alimentos
(ENGELS, 1984).
Considerando este fato, a Agronomia e a Biotecnologia passaram a ser as ciências que fundamentam e
validam o avanço dos modos tecnológicos de subsistência da humanidade. Enquanto ciências, buscam
explicitar os fatos agronômicos e moleculares relativos aos compartimentos solo-planta-atmosfera. O
conhecimento das relações existentes entre estes compartimentos conduziria a uma ação com o intuito de
implementar a produção e/ou controlar fatores estressantes a esta. Segundo Kratounian (2001), isto é o que
explica a ênfase na adubação, relações hídricas e variedades melhoradas. A abordagem integrada, por outro
lado, sustentava que agricultura real relacionava a fisiologia vegetal, conservação do solo, controle do
ambiente e manejo de animais em ecossistemas agrícolas.
O aspecto técnico da produção de alimentos, ao se concretizar no processo produtivo, implicará em
alterações nas relações produtivas, pois delas deriva, já que no capitalismo, o alimento é de fato uma
mercadoria. Ou seja, o produtor produz um bem voltado à troca, e o trabalhador do campo contribui com sua
força de trabalho, alienado do resultado deste mesmo trabalho. “Ao transformar todas as coisas em
mercadoria, a produção capitalista destruiu todas as antigas relações tradicionais e substituiu os costumes
herdados e os direitos históricos pela compra e venda, pelo ‘livre’ contrato (Op. cit., p. 86)”. Mas este
contrato, frise-se, é uma relação social entre partes livres e iguais apenas formalmente. Na realidade, é um
contrato que ratifica uma relação entre desiguais, condição necessária para a existência das relações
capitalistas de produção, pressuposto para a geração de mais-valia¹.
A agricultura familiar, em consequência, subordina-se às cadeias agroindustriais por meio da
dependência de insumos e equipamentos industriais adquiridos via créditos públicos, pela integração de
cadeias mercantis de processamento e de distribuição de alimentos (ALTIERI, 2012).
A base material econômica é o ponto de partida que conduz a alterações ambientais que se manifesta
por uma diversidade de impactos deletérios à biodiversidade, à qualidade do solo, à água, ao clima e à
segurança alimentar humana. O crescimento econômico concebido de forma reducionista, sem ponderar a
degradação socioambiental infringido pela aliança entre uma ciência instrumental, não crítica, refém da
expressão monopolista do agronegócio, como é o caso da biotecnologia, poderá dar à agricultura um rumo
completamente insustentável, viável apenas aos modelos de eficiência industrial (ALTIERI, 1999).
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¹Sabemos que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor de uso, pelo
tempo de trabalho realmente necessário à sua produção. Porém, além de um valor de uso, o capitalista quer produzir mercadorias:
além de valor de uso, valor, mas também valor excedente (mais-valia) (MARX, 2008).
Há que se considerar, portanto, a questão do modelo industrial da agricultura moderna em relação direta com
as tecnologias demandadas pelo setor produtivo, com os interesses comerciais dos centros de pesquisa, com
a distribuição desigual dos benefícios e dos ônus decorrentes dos impactos socioambientais da exploração
dos recursos genéticos, do solo e da água.
No que se refere às questões éticas e à economia política, especificamente sobre a distribuição dos
ganhos e dos danos desta aliança, urge aqui a transposição na íntegra das questões inadiáveis levantadas por
Altieri:
Podemos alterar a estrutura genética de todos os seres vivos em nome da utilidade e do ganho
econômico?; existe um respeito pela vida ou todas as formas de vida, incluindo o homem, ou devem
ser vistas como simples bens no novo mercado da biotecnologia?; a manipulação genética de todos os
seres vivos é uma herança acessível para todos ou é propriedade privada de algumas corporações?;
quem deu a algumas empresas o direito e o monopólio sobre diversos grupos de organismos?; os
biotecnologistas acreditam ser os mestres da natureza?; é essa uma ilusão surgida a partir da
arrogância científica e da economia convencional, que ignora a complexidade dos processos
ecológicos?; é possível minimizar as considerações éticas, reduzir os riscos ambientais e ao mesmo
tempo manter os benefícios?; quem se beneficia da biotecnologia? quem perde com ela?; quais são as
consequências ambientais e de saúde pública?; quais tem sido as alternativas propostas?; a
biotecnologia é uma resposta a quais necessidades?; de que forma a biotecnologia afeta o que está
sendo produzido, como é produzido, por quem e para quê?; quais são os objetivos sociais e os
critérios éticos que orientam as pesquisas?; que objetivos sociais e agronômicos atingem a
biotecnologia? (ALTIERI, 1999, p. 3).
A presente explanação não se propõe responder todas estas questões, mas procuraremos discutir as
relações dialéticas entre a objetivação da biotecnologia no seio do agronegócio, a forma de produção de
alimentos e as relações produtivas derivadas do modelo de divisão do trabalho inerente ao agronegócio. Sem
minimizar consequências à segurança alimentar e à resiliência dos agroecossistemas.
3.0 Luta de classes, renda da terra e sistema de propriedade: uma relação necessária
O fato econômico fundamental à produção de alimentos é único e o mesmo que se aplica à indústria: o
único processo que confere valor a algo é o trabalho humano. Em uma sociedade em que a relação entre o
dono dos meios de produção (o capitalista) e o dono da força de trabalho (o proletário, neste caso, o
camponês assalariado) é viabilizada pelo sistema de propriedade e pela renda da terra - faz-se mister que
compreendamos aspectos da luta de classes que se concretiza na relação entre o camponês (agricultor
familiar), o empresário do agronegócio e o movimento/sistema produtivo agroecológico. Desta relação
infere-se que a agricultura familiar é um campo de disputa, dada sua relevância na produção de alimentos,
em termos de variedade e de quantidade. Esta luta de classes é assim explicitada por Marx e Engels:
Os indivíduos isolados só formam uma classe na medida em que têm de travar uma luta comum
contra uma outra classe; de resto, contrapõem-se de novo hostilmente uns aos outros, em
concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se, por seu turno, face aos indivíduos, pelo que
estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-lhes indicada pela classe a sua posição
na vida e, com esta, o seu desenvolvimento pessoal —, estão subsumidos na classe. É este o mesmo
fenómeno que a subordinação [Subsumtion] de cada um dos indivíduos à divisão do trabalho, e só
pode ser eliminado por meio da abolição da propriedade privada e do próprio trabalho (MARX;
ENGELS, 1982, p. 30).
Deve-se então considerar esta subordinação que o capital impetra por meio da divisão do trabalho e da
propriedade privada da terra à agricultura familiar. A Agroecologia, a despeito de todas as proposições
positivas no tocante a novas técnicas ecológicas de cultivo e alternativas de organização social no campo,
ainda possui um longo caminho a ser percorrido se quiser superar esta subordinação. A qual se dará pela
abolição da propriedade privada, do trabalho assalariado (trabalho sob a forma histórica imposta pelo
capitalismo) e da concentração dos meios de produção nas mãos de um punhado de mega-agricultores
industriais.
O capitalismo é um sistema planejado para que possibilite a troca de mercadorias (fusão entre valores
de uso e valores de troca) e a intensidade desta troca depende de como a produção é organizada. A
produção, a distribuição, a troca, o consumo, são idênticos, todos eles são membros de uma totalidade,
diferenças em uma unidade (MARX, 2007). Esta noção é essencial para a construção de uma alternativa
consistente ao agronegócio. Desenvolver alternativas ao sistema de produção, mesmo que ecologicamente
adequadas, será insuficiente se não incluir alterações estruturais na distribuição, na troca e no consumo, pois
estes complexos estão dialeticamente relacionados.
Outra característica das relações de produção no campo sob o modo capitalista de produção decorre do
fato de que a força de trabalho familiar tem um papel muito significativo na produção de alimentos e vem
aumentando numericamente de modo expressivo. Para exemplificar esse fato, basta lembrar o caso
brasileiro, em que ela representa mais de 80% da força de trabalho empregada na agricultura, ou então
recorrer ao exemplo norte-americano, cujas pesquisas recentes mostram uma participação massiva das
family farms, isto é, da produção baseada no trabalho familiar. Assim, a agricultura norte-americana também
não tem seu suporte nas corporate farms e sim nas family farms. Esse mesmo fenômeno ocorre também na
maioria dos países da Europa (OLIVEIRA, 2007).
O capital vem se inserindo no modo camponês de produção, que contraditoriamente, vem lutando pela
garantia da produção da existência das famílias camponesas. Isto quer dizer que o camponês não assalariado
mantém um sistema não-capitalista de produção, mas que gradativamente tem sido invadido pelo capital.
Esse processo passa por três fases distintas:
Haveria a destruição da chamada "economia natural", o que criaria o produtor individual, o agricultor
propriamente dito. Isso ocorreria em função da separação do camponês, pequeno produtor familiar de
subsistência, dos estreitos vínculos e hierarquias comunitárias tradicionais; uma vez criado pelo
processo anterior, o camponês, agora produtor individual, ver-se-ia forçado a abandonar a pequena
indústria doméstica, tornando-se exclusivamente agricultor. Esse processo dar-se-ia pela sua
introdução cada vez maior na economia de mercado. Assim, essa fase caracterizar-se-ia pela
separação da indústria rural e a agricultura; como produtor individual, o camponês agora estaria
integralmente inserido na agricultura de mercado, e isso o levaria ao endividamento, em função dos
baixos preços que recebe por seus produtos, e dos altos preços que tem que pagar pelas mercadorias
industrializadas. Essa realidade faz com que ele tenha que tomar dinheiro a juros, e, não conseguindo
pagar esses empréstimos, vê-se obrigado a vender a propriedade e tornar-se um trabalhador
assalariado. Haveria, pois, um processo de separação dos meios de produção do camponês; ele ficaria
sem esses meios de produção e conseqüentemente se proletarizaria, o que abriria caminho para a
implantação da forma especificamente capitalista no campo. Essa forma seria o assalariamento
(OLIVEIRA, 2007, p. 10).
Agrega-se a este processo o fato da concentração de terras de alta fertilidade pelas corporações do
agronegócio, o que leva o agricultor familiar a trabalhar em terras de qualidade inferior. Os agricultores
transformam sua força de trabalho em renda e em produto para o consumo doméstico, por meio da terra que
dispõem. Todavia, a relação entre área para plantar, mão de obra e dinheiro gera conflito na economia
camponesa: produção para renda versus produção para o consumo doméstico (KRATOUNIAN, 2001). De
forma específica:
O agricultor se situa nos extremos da cadeia de compra de produtos agrícolas e de venda de produtos
industriais. Na compra de produtos agrícolas, os preços recebidos pelo agricultor são os mais baixos
da cadeia. Por outro lado, na venda de produtos para o consumo domésticos, os preços pagos pelo
agricultor tendem a ser os mais elevados (KRATOUNIAN, 2001, p. 74).
O desenvolvimento contraditório do capitalismo, ou seja, o próprio capital cria e recria relações não-
capitalistas de produção, em especial na etapa monopolista. A terra, portanto, sob o capitalismo, tem que ser
entendida como renda capitalizada (OLIVEIRA, 2007).
Segundo Marx (2008a, p. 62), “pode-se considerar renda da terra como o produto do poder da
natureza, cujo uso o proprietário empresta ao arrendatário”. Depende, portanto, da fertilidade do solo. Mas o
interesse do latifundiário não se confunde com o interesse da sociedade, e está igualmente, em oposição ao
interesse dos arrendatários, dos trabalhadores do campo, da manufatura e da indústria. E para o camponês a
situação se agrava, pois: “o trabalhador não tem apenas que lutar pelos seus meios de vida físicos, ele tem
que lutar pela aquisição de trabalho, isto é, pela possibilidade, pelos meios de poder efetivar sua atividade”
(IBIDEM, p. 24).
Se o trabalho é o único meio de incutir valor aos produtos da natureza, o latifundiário se aproveita
dos frutos do trabalho alheio e comoditiza² valores de uso. A renda da terra é o excedente, portanto, do
trabalho que o trabalhador é obrigado a ceder ao capitalista, é o que garante a mais-valia. Segundo Oliveira
(2007), considerado a concorrência capitalista, a renda da terra é assim chamada de renda diferencial;
quando resulta de monopólio, é chamada de renda absoluta. Esclarece que a renda da terra diferencial resulta
do caráter capitalista da produção e não da propriedade privada do solo, ou seja, ela continuaria a existir se o
solo fosse nacionalizado. Já a renda da terra absoluta resulta da posse privada do solo. Estas concepções
derivam do fato de que o capitalista já se confunde com o latifundiário, este é o fato que submete a produção
camponesa ao mercado onde predomina uma relação entre desiguais, corroendo o modo de produção do
campesinato. Isto se confirma pelo crescente assalariamento do trabalhador da terra.
Além da propriedade privada da terra, há a apropriação dos saberes tradicionais, que acaba por
intensificar a ampliação global do capital por meio da cobrança pelo uso do patrimônio genético, por vezes
selecionados por populações tradicionais por centenas de anos. Desta forma:
(...) o conhecimento produzido em laboratórios de grandes empresas em associação cada vez mais
estreita com o Estado e, deste modo, passível de apropriação privada, a propriedade intelectual
individual (patentes) se coloca em confronto direto com o conhecimento patrimonial, coletivo e
comunitário característico das tradições camponesas, indígenas, afrodescendentes (PORTO-
GONÇALVES, 2004, p. 3).
__________________________________
² As fases dessa transformação constituem atos do dono da mercadoria: venda, troca da mercadoria por dinheiro; compra, troca do
dinheiro por mercadoria, e a unidade de ambas as transações, vender para comprar (MARX, 2008b).
A expropriação do patrimônio intelectual tradicional serve como estratégia propulsionadora do sistema
de concentração fundiária e de monocultura, ampliando também a dependência econômica do agricultor
familiar. O agricultor é obrigado a comprar apenas aquelas sementes produzidas pela mesma corporação que
vende os agrotóxicos e que controla o mercado de ações (que incide nos preços das comodities), o que é
deveras importante na atual fase financeira do capitalismo.
A relação do agricultor com a terra, entendida sob a ótica da degradação dos recursos naturais
necessários à produção, deve ser compreendida também sob a base da resiliência dos ecossistemas
submetida a processos tecnológicos de produção (agrotóxicos, mecanização e biotecnologia) e ao processo
de homogeneização dos cultivos. Deve-se ponderar também os efeitos de grandes áreas plantadas com uma
única cultura geneticamente modificada e comparar com a agricultura campesina multicultural e de baixo
impacto. A dialética resiliência/tecnologias modernas/monocultura, pensada à luz de um modelo industrial
que prima pela produção crescente de mercadorias, de mais-valor, deve estar no centro da discussão da
produção agroecológica de alimentos. Assim como a extinção da fome global e a distribuição equitativa de
riqueza - o que normalmente não se cogita, é um nonsense, incompatível com o modelo capitalista de
produção e de organização social.
4.0 A questão agrária atual e os impactos socioambientais correlatos
A relação sociedade-natureza se concretiza objetivamente por meio do trabalho, a forma que o ser
humano tem de mediar sua relação com a natureza. Inevitavelmente, qualquer ente natural que adentre o
mundo trabalho, seja a água ou o solo, por exemplo, passará ao status de recurso produtivo. Pois, por meio
do trabalho, este recurso será modificado em prol da satisfação das necessidades humanas, para dar conta da
sua reprodução e existência. É por meio da troca que um indivíduo adquire um valor de uso necessário às
suas necessidades e no consumo este valor de uso produzido pelo trabalho desaparece da relação social,
satisfazendo a necessidade individual de desfrute. Este é o processo de circulação simples de valores de uso
(MARX, 2007). Entretanto, no capitalismo temos uma comutação das relações sociais. Onde, na circulação
simples, tínhamos M (mercadoria) – D (dinheiro) – M, no capitalismo temos D – M – D’ (dinheiro
capitalizado). Ou seja, se na circulação simples a circulação de mercadorias esta serve como meio para
satisfação de necessidades, no capitalismo, a circulação de dinheiro como capital tem uma finalidade em si
mesma. A expansão de valor é sua finalidade objetiva (MARX, 2008b). Para que possamos entender a
produção de alimentos de forma dialética não podemos analisar a produção isolada da distribuição e do
consumo. Assim:
O consumo é também imediatamente produção, do mesmo modo que na natureza o consumo de
elementos e das substâncias químicas é produção nas plantas. No consumo o homem faz seu corpo.
Esta é a produção consumidora. A produção é, pois, imediatamente consumo; o consumo é,
imediatamente, produção. Cada qual imediatamente o seu contrário. Ao mesmo tempo, opera-se um
movimento mediador entre ambos. A produção é mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem
os quais não teria objeto. Mas consumo é também imediatamente produção enquanto procura para os
produtos o sujeito para qual são produtos (MARX, 2007, p. 244).
Transpondo este raciocínio para a relação cidade-campo, podemos agora inferir quanto o padrão de
consumo de alimentos engendra a produção no campo. Mesmo sendo o agronegócio dominado por
mercadorias como a soja, o milho e o café, ainda assim multiplicam-se propagandas de cunho ideológico
que fazem apologia ao agronegócio como sendo a solução da fome e do desemprego. Enquanto, na realidade
é a produção do agricultor familiar é que abastece o consumidor citadino, como veremos no próximo tópico.
A concentração dos meios de produção e a diminuição de variedades produzidas no campo está em
relação dialética com a distribuição e com o consumo de alimentos, com o exposto anteriormente por Marx.
Vejamos um exemplo:
(...) dos quatro principais grãos - trigo, arroz, milho e soja para o ano de 2001. Apenas cinco países –
Estados Unidos, Canadá, França, Austrália e Argentina - são responsáveis por 88% das exportações
mundiais de trigo Tailândia, Vietnã, Estados Unidos e China representam 68% de todas as
exportações de arroz. No caso da soja, apenas três países – EUA, Brasil e Argentina – são
responsáveis por 82% da produção mundial. No milho, a concentração é ainda maior, com os Estados
Unidos responsáveis por 78 das exportações e a Argentina por 12%. (...) nosso de cada dia. Cerca de
“90% de nossa alimentação procede de apenas 15 espécies de plantas e de 8 espécies de animais.
Segundo a FAO, o arroz provê 26% das calorias, o trigo 23% e o milho 7% da humanidade. As novas
espécies de cultivares substituem as nativas uniformizando a agricultura e destruindo a diversidade
genética. Só na Indonésia foram extintas 1.500 variedades de arroz nos últimos 15 anos. À medida
que cresce a uniformidade, aumenta a vulnerabilidade (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 3-4).
Seguindo o mesmo raciocínio, a produção padronizada no campo claramente engendra os hábitos
alimentares da população. Isto sem falar que boa parte destes grãos são direcionados à alimentação animal
nos Estados Unidos e Europa.
A ciência e a tecnologia são decisivas neste processo, seja por meio da produção de transgênicos, de
agrotóxicos ou pela mecanização – acabam concretizando um papel acelerador da modernização agrícola, o
que se desdobra em profundas alterações ecológicas, sociais e culturais (Op. cit.).
A soja transgênica, por exemplo, se expandiu globalmente apoiada em argumentos altamente
questionáveis, os quais as pesquisas atuais começam a rebater. Andrioli (2012) explica que a base ideológica
da soja Roundup Ready (RR) se sustenta em promessas de aumento da produtividade, elevação das
exportações e combate à fome. A Monsanto argumenta que a soja resistente a herbicidas além de aumentar a
produtividade, diminuiria o volume de herbicidas utilizado, reduzindo a poluição e os perigos a saúde do
trabalhador. Que maravilha, hã?
Porém, o aumento da produtividade não foi constatado em pesquisas, ao contrário, as variedades
tradicionais mostraram-se mais produtivas, de 2% a 8% acima que a convencional (transgênica). No EUA,
as colheitas tradicionais foram de 5% a 10 % superiores à colheita da soja transgênica e em regiões como
Indiana, esta diferença chegou a 22%. E os custos de produção da soja Roundup foram 40% maiores nos
EUA, em dados de 1996. Some-se a estes custos também os Royalties e a competição com a soja tradicional.
A solução da Monsanto para isso? Eliminação global da soja tradicional (ANDRIOLI, 2012).
Os agricultores “associados” a corporações como a Monsanto acabam duplamente sacrificados: ao
comprar as sementes são obrigados também a comprar o herbicida. Além disso, estas corporações
encontraram um jeito de garantir suas patentes por meio do desenvolvimento da tecnologia Terminator³, a
qual extermina a possibilidade do agricultor semear e cruzar as sementes compradas por mais de um ciclo
produtivo.
Somos levados, portanto, considerando este contexto, a concordar com a afirmação de Séralini (2011,
p. 37):
Porque, efetivamente, no presente, a ciência serve muito mais e objetivamente à técnica e à economia
do que à sociedade; ora, a técnica e a economia podem se desconectar dos interesses societais em
curto, médio e longo prazo, como atestam exemplos múltiplos, simplesmente para os benefícios de
algumas empresas. Não existe sindicalismo da informação científica e isso é lamentável.
A ciência deve estar voltada para o progresso humano, em termos qualitativos, terá conhecido a
essência do espírito humano quando tiver aceitado substituir o progresso tecnológico pelo progresso
humano. Séralini (op. cit) lembra então a relevância da pergunta de Corinne Lepage “É necessário ter medo
da ciência?”.
Os impactos do uso da soja RR são altamente deletérios aos invertebrados do solo e a organismos
aquáticos, além de ser fator seletivo das ervas adventícias (erroneamente denominadas de “daninhas”),
levando ao desenvolvimento de populações mais resistentes ao herbicida, o que repercute necessariamente
no aumento do uso do agrotóxico. A erosão genética também é consequência do cultivo concentrado de
poucas variedades geneticamente modificadas (ANDRIOLI, 2012).
No Brasil, mais de 75% das lavouras transgênicas cultivadas são de soja transgênica da Monsanto
tolerante ao Roundup (herbicida a base de glifosato). A soja transgênica no Brasil foi a principal responsável
pelo maciço aumento no uso de glifosato nos últimos anos, que saltou de 57,6 mil para 300 mil toneladas
entre 2003 e 2009 (LONDRES, 2011).
Os danos à biodiversidade causados pela agricultura industrial se manifestam das seguintes maneiras:
Expansão das áreas agrícolas com perda de hábitats naturais; conversão de vastas áreas em paisagens
agrícolas homogêneas com reduzido valor de hábitats para a vida silvestre; perda de espécies
benéficas e de agrobiodiversidade como consequência direta do uso de agroquímicos e outras
práticas; erosão dos recursos genéticos valiosos por meio do uso crescente de cultivares uniformes de
alto rendimento (ALTIERI, 2012, p. 24).
Ao sabor da ideologia da industrialização da agricultura e da mercantilização generalizada, casos
absurdos vêm à tona. O caso de Percy Schmeiser, um produtor de sementes canadense cujos campos foram
contaminados por canola transgênica patenteada. A Corte Suprema canadense sustentou que a canola GM
identificada nas lavouras de Schmeiser era de propriedade da Monsanto e, consequentemente, o agricultor
deveria ter pago royalties para a empresa. É o poluído que tem que pagar para o poluidor! (APOTEKER,
2011).
____________________________________
³As sementes terminated germinam normalmente, a planta cresce normalmente, floresce normalmente, o grão se desenvolve
normalmente e a planta produz uma colheita normal − à exceção do fato de um dispositivo transgênico ter destruído o germe do
grão. Se for plantado, o grão colhido não germinará (BERLAN, 2011).
Dentre as variedades tolerantes aos herbicidas (as famosas plantas RR, tolerantes ao Round Up da
Monsanto, por exemplo, ou que produzem seus próprios inseticidas (as plantas Bt), “sua distribuição atinge
hoje 99% das plantas geneticamente modificadas comercializadas no mundo (Op. cit., p. 86)”. Outra
conquista alcançada pelas corporações do agronegócio é a inserção na legislação americana do princípio da
equivalência substancial, o qual sustenta que a planta transgênica é equivalente à planta não transformada,
exceto para o gene introduzido. Ou seja, os impactos cumulativos e/ou sinérgicos da planta transgênica
sobre o meio ambiente e sobre a saúde humana sempre estariam postos em cheque a partir deste argumento
jurídico-formal, que de científico não tem nada (IBIDEM).
Passados cerca de sessenta anos da assim chamada Revolução Verde, a solução da fome global está
longe de ser equacionada. A solução talvez esteja para além do problema da distribuição equitativa de renda,
mas na lógica própria do modo capitalista de produção. Assim, para que haja lucro, o capital tem de crescer
a uma taxa anual mais ou menos constante, o que incide na cadeia produtiva de alimentos. Desta forma:
Na base da longa cadeia de oferta que traz os meios de produção para o capitalista, esconde-se um
problema profundo dos limites naturais em potencial. O capitalismo, como qualquer outro meio de
produção, baseia-se no uso-fruto da natureza. O esgotamento e a degradação da terra e dos chamados
recursos naturais não fazem mais sentido no longo prazo do que a destruição dos poderes coletivos do
trabalho, pois ambos estão na raiz da produção de toda a riqueza (HARVEY, 2011, p. 66)”.
A questão central aqui é analisar dialeticamente os limites naturais, as relações de classe e a divisão
intensa do trabalho (que gera mais trabalho alienado) como corresponsáveis pela pobreza e pela fome. Esta
relação torna-se cada vez mais dramática na medida em que os recursos vão se tornando cada vez mais
escassos, o aquecimento global recrudesce, as florestas e hábitats são destruídos ou fragmentados. Estes
meios de produção sob estresse, por sua vez, tencionam as relações sociais e os sistemas de produção, pois
tornam-se mais caros e mais restritos a poucos detentores de poder social para explorá-los.
Cabe aqui então questionar não apenas o que é produzido, mas onde (China, Brasil ou Romênia), por
quem (por mão de obra escrava, prisioneiros ou por trabalhadores sindicalizados), como (em um ambiente
seguro ou em um tóxico) e quando é produzido (morangos no inverno ou no verão) são aspectos tão
relevantes como a poluição, a destruição de recursos naturais, os danos ao meio ambiente, à saúde dos
trabalhadores e consumidores (BERLAN, 2011).
6.0 Conclusão
No agronegócio, em tempos nos quais ser pop é sinônimo de modernidade e desenvolvimento, a
utilização de sementes transgênicas é comemorada pelos setores hegemônicos da mídia e da produção de
comodities agrícolas. Em dados fervorosamente publicados pelo site g1.com (2016), indicam que na safra
2016/17 este tipo de biotecnologia aplicada à produção alcançará 49 milhões de hectares, o que equivale a
93,4% da área total de milho, soja e algodão em todo o território nacional, o que representa um aumento de
7% em relação a 2015. Este avanço vertiginoso é percebido melhor ao compararmos com a safra 2003-2004,
quando o plantio foi regulamentado, a adesão era de 22,1% do total de terras cultivadas.
Este panorama, é claro, não se construiu sem apoio maciço do Congresso Nacional, o qual atualmente
é composto por 162 deputados e 11 senadores da chamada Frente Parlamentar Agropecuária, maior e mais
poderosa bancada de políticos do congresso, a qual movimenta cerca de R$440 bilhões entre a produção
agrícola e pecuária, de acordo com a Carta Maior (2016). Este nexo finanças-estado (Harvey, 2011) é o que
tem sustentado a manutenção dos poderes e mantido de forma periférica as discussões socioambientais sobre
os direitos do agricultor familiar produzir de forma sustentável e economicamente justa. A luta fica com
certeza mais difícil com extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e demais políticas voltadas para obtenção de
crédito; das políticas de proteção da produção, como o Garantia Safra, o PGPAF (Programa de Garantia de
Preços da Agricultura Familiar) e o SEAF (Seguro da Agricultura Familiar); da política de assistência
técnica e extensão rural (Ater) voltada para as necessidades dos e agricultores e agricultoras familiares; do
Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF); do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e
Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae); da reforma agrária; do Programa Amazônia Legal
(CNATER, 2016).
De acordo com a FAO (2013), dentre os Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP), com cerca de 250 milhões de habitantes, prevendo-se que venha a contar com cerca de
323 milhões em 2050; o número de pessoas subnutridas ronda os 28 milhões, distribuídas da seguinte forma:
Angola – 5,4 milhões; Brasil – 13 milhões; Cabo Verde – 44,5 milhares; Guiné-Bissau – 13 milhares;
Moçambique – 9,4 milhões; São Tomé e Príncipe – 12,3 milhares; Timor-Leste – 460 milhares. No Brasil,
considerando o aumento de 12% da população entre 2000 e 2010, em levantamento realizado em 2012,
6,9% da população eram consideradas subnutridas. O relatório continua e enfatiza o papel da agricultura
familiar, mesmo e apesar da forte tensão econômica e fundiária exercida pelos empresários do agronegócio.
A categoria de produtores familiares está legalmente reconhecida no Brasil, mas o seu reconhecimento é
inexistente ou informal nos demais Estados-membros (sem prejuízo da inclusão destes produtores noutras
categorias, tais como “agricultores autónomos”, “pequenos produtores agrícolas” ou “camponeses”). Sua
relevância se reflete nos empregos e na gestão territorial:
São cerca de 11.500 milhões no conjunto da CPLP; explorando áreas pequenas (de 0,20 ha a 18 ha em
média em função do país) e com diferentes níveis tecnológicos, os produtores agrícolas familiares são
responsáveis pela produção de uma média de 70% dos alimentos básicos consumidos na maioria dos
países; este sector é também o maior empregador na maioria dos países (em Angola, Guiné-Bissau;
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste entre 60% e 85% dos indivíduos em idade ativa se
ocupam no sector agrícola) (FAO, 2013, p.06).
No Brasil a área agrícola corresponde à agricultura familiar é de 273,421ha, isto corresponde a 24% da
área cultivada total do país. A população agrícola ativa na agricultura familiar é de 74%, o que resulta na
contribuição de 38% da produção agrícola nacional (Op. cit.). Os dados mais atuais indicam que a
Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), que inclui a produção familiar, respondem por 48% da
produção agropecuária nacional e por 21% da capacidade estática de armazenamento de produtos agrícolas
do Brasil (FAO, 2016).
Em outro relatório, a FAO (2014) alerta que a fome, a insegurança alimentar e a má alimentação são
questões complexas que não serão resolvidas privilegiando apenas um setor interessado. Uma série de
medidas devem ser coordenadas, desde a proteção social da agricultura familiar em articulação com a
agroecologia; políticas públicas e legislações mais inclusivas; recursos humanos e financeiros; mecanismo
de coordenação de inciativas estatais e associações; além de tomar decisões considerando a resiliência dos
socioambientes, em termos ecológicos e sociais.
Considerando o que até aqui explicitamos, a pergunta que motivou este artigo parece possível de ser
respondida. O agronegócio não se guia e nunca teve como propósito o extermínio da fome global. O estado
de insegurança alimentar é um sintoma grave de um modelo que não possui e não suporta a distribuição
equitativa de recursos. Isto porque o próprio conceito de distribuição equitativa é contraditório à concepção
produtiva do modelo capitalista, tornando-o inviável. A terra e todos os recursos dela provenientes são
capitais, os quais, na medida em que são alterados, por meio do trabalho humano objetivado, passam a estar
dotados de mais-valor. Este, ao entrar no mercado passa a ser uma mercadoria, um valor de troca. Desta
advém o lucro, ou seja, da mais-valia incutida na mercadoria, mais valia só materializada por meio da
relação de exploração do trabalho no campo.
Podemos especificar um pouco mais a pergunta sobre a solução da fome global e nos determos na
questão da biotecnologia aplicada à produção de mercadorias de consumo alimentar (considerando aqui
também alimentação de animais na pecuária), o que nos remete às relevantes e atuais questões levantadas
por Altieri (1999), citadas no segundo tópico deste artigo. Vejamos estas questões de forma comparativa
com o que o autor denomina de forma bem adequada de mitos:
Tabela 1: Questões e mitos da biotecnologia e do agronegócio.
MITO
A Biotecnologia beneficiará os agricultores nos Estados Unidos e nos Países
desenvolvidos
A Biotecnologia beneficiará os pequenos agricultores e favorecerá os famintos e os
pobres do Terceiro Mundo
A Biotecnologia não atentará contra a soberania ecológica do Terceiro Mundo
A Biotecnologia estimulará a conservação da biodiversidade
A Biotecnologia é ecologicamente segura e constituirá o início de uma era de
agricultura sustentável livre de químicos.
A Biotecnologia estimulará o uso da biologia molecular em benefício de todos os
setores da população
...
Adaptado de Altieri (1999).
Poderíamos levantar mitos ad infinitum, contudo, mais interessante é mantermos a mente aberta e
criarmos também mútuas relações dialéticas entre um aspecto do real e um mito correlato, para assim
compreendermos melhor a materialidade destes fatores. Estas questões e mitos levantados por Altieri são
altamente relevantes, porém, insuficientes, se não nos concentramos na superação do modo capitalista de
produção. Os limites ecológicos serão sempre potenciais entraves e/ou impulsionadores da alimentação
humana, mas permaneceremos míopes se não enxergarmos para além da relação tecnologia-limites naturais,
se não mergulharmos dialeticamente na materialidade das relações sócio-produtivas prementes no
capitalismo. Concluímos com um pensamento de Karl Kautsky (1980):
O homem não é em todos os lugares tão limitado na escolha de sua comida como na vizinhança do
pólo. Mas em parte alguma ele tem a liberdade de escolher à vontade o alimento. O homem só
encontra em quantidade restrita a porção mais importante de sua comida, e não sem dificuldade e não
em qualquer tempo. Os gêneros suscetíveis de lhe assegurarem, de modo suficiente e regular, a sua
subsistência não dependem de um certo conteúdo de carbono, nem da sua necessidade deste elemento,
mas antes de tudo da espécie e do grau de seu saber técnico, da sua arte de dominar a natureza, numa
palavra - do seu modo de produção (Op. cit., p. 21).
Somamos aqui ao referido modo de produção, as relações de trabalho imersas em um sistema de
propriedade privada concentrada e na intensa divisão do trabalho. Em tempos atuais, este domínio da
natureza tem assumido caráteres de altamente deletérios para o ser humano e para a natureza.
Mas numa sociedade de produtores livremente associados, na qual todos são responsáveis pela
produção e pelos alimentos dela advindos, e que devem necessariamente ser distribuídos equitativamente, já
que o trabalho humano ali materializado não é alienado, o produto deste é de propriedade de todos. Ora,
pode-se visualizar que uma sociedade assim concebida ponderaria, em seu planejamento, os limites da terra
e dos demais ecossistemas, já que os riscos e os efeitos de se subsistir a partir de agroecossistemas com a
resiliência comprometida seriam vivenciados por todos.
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