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mixtapes vol. 1 mary c. müller

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Müller, Mary C.

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative

Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivações 4.0

Internacional. Isso significa que você pode divulgar, distribuir,

espalhar pro universo, desde que de maneira não comercial. Para

entrar em contato, manda um olá no [email protected].

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Eu não sei bem de onde surgiu essa ideia. Acho que é porque gosto muito da palavra “mixtapes”. E também porque música e literatura são duas coisas que amo, e ambas sempre andam de mãos dadas comigo.

De qualquer forma, eu tava com uma história para “nine in the afternoom, do Panic há um tempão na cabeça, e depois de relutar, acabei escrevendo o conto. E aí vieram mais e mais, todos baseados em letras de músicas. Resolvi juntar todos eles nessa coletânea e já to querendo fazer o volume 2, enquanto ideia pra meu próximo romance não aparece.

Queria agradecer a todos que me incentivaram a continuar, meus leitores betas, meu marido, minha gata caolha e ao pote de café lá de casa.

É isso aí e espero que gostem (dos contos, não do café).

Intro

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Track 1nove horas da tarde

O relógio parado na sala mostrava sempre o mesmo horá-rio. Nove horas. Não sabíamos se havia parado em nove horas da noite ou da manhã, mas isso não importava. Sempre íamos lá durante a tarde, quando o sol ainda estava alto no céu e esquentava aquela sala até nos fazer suar. O ventilador foi a primeira coisa que levamos. Um pequeno pedaço de mobília na casa abandonada, em meio a poeira e balcões velhos. Não tinha como imaginar que ficaria tão melancólico após revisitar a casa tantos anos depois. Ela ainda está lá, com a pintura amarela descascada, o telhado cheio de musgos e com gatos de rua tendo filhotes na churrasqueira. Como se nada tivesse mudado nesses cinco anos.

Tudo começou com uma brincadeira. Um bando de adoles-centes brincando de esconde-esconde, rindo, bêbados por fazer algo tão divertido sem se importar que não eram mais crianças. A Marina contava até cem com a cara grudada em um poste e eu e você corremos na direção oposta, contendo nossas risadas. Olhamos para a velha casa abandonada e assentimos com a cabeça um para o outro. Um sorriso de canto de lábios, sabendo que

Cause it’s nine in the afternoonAnd your eyes are the size of the moon

You could ‘cause you can so you doWe’re feeling so good, just the way that we do

When it’s nine in the afternoonPanic!at the disco - Nine in the afternoom

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nunca ninguém nos encontraria ali, que Marina nunca tentaria nos procurar lá dentro já que morria de medo da velha mansão.

Nos sentíamos tão bem naquela época que era difícil não rir e fazer barulho. Pulamos a janela já meio apodrecida e você quase caiu ao escorregar no tapete cheio de areia. Disparamos escadas acima, sem olhar para os lados e reparar nos móveis velhos, na sujeira, nos cacos de vidro ou pichações. Nem reparamos no cheiro de ratos mortos ou na Marina gritando “CEM” e encontrando o primeiro fugitivo. Você agarrou minha mão e me arrastou até um dos aposentos. Uma sala enorme, vazia, a não ser pelo relógio de parede.

E eram nove horas da tarde.Nos encolhemos logo abaixo da janela fechada para espiar

pelo buraco e ver a rua lá fora. Foi só nesse momento que reparei que você ainda segurava minha mão. Dois dedos entrelaçados nos meus. Puxei a mão de volta na hora, rezando para não ficar verme-lho de vergonha.

— O que foi? — Você perguntou. Me olhava com aqueles olhos curiosos lindos, do tamanho da lua. Olhos dos quais eu sempre desviava para que ninguém percebesse a forma como eu te olhava. Com aquela vontade imensa de me deixar levar, ligar o dane-se para tudo e te beijar.

— Nada — respondi, palpitação atrás de palpitação. Você deu mais uma espiada pela janela, sentou no chão do

meu lado, sem se importar com a sujeira e estendeu a mão. Fiquei olhando para ela um tempo, sem saber se deveria ou não segurá-la de volta. Tinha medo que os outros descobrissem, que meus pais descobrissem, que meu cachorro descobrisse. De ser zoado, de ser xingado, dos meus pais me matarem. Só de pensar na cara da minha mãe, toda austera na mesa de jantar, me acusando de ser um anormal já me dava náuseas, mas você também me dava náuseas. Céus, todas as vezes que pensava em você, lembrava do seu sorriso ou da sua voz, ouvia uma música que lembrava de nós dois. Aquela nossa farsa de melhores amigos quando lá dentro sabíamos muito bem que o que a gente sentia era totalmente diferente. Você sem-pre foi mais corajoso que eu, e naquele dia, às nove horas da tarde,

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não foi diferente. Puxou minha mão para si, entrelaçou os dedos nos meus e deu

um sorriso. — Eu cansei de ter medo — você disse.Eu não respondi, com receio de abrir a boca e vomitar ou cho-

rar ou gritar ou sair correndo. “Eu também”, foi o que pensei. Não queria mais ter medo daquilo, que parecia tão certo e tão bonito e que me fazia sentir tão bem.

Lá fora a Marina gritava nossos nomes e todos os outros se juntaram para tentar nos achar. Lá fora um cachorro latia para o carteiro. Lá fora. Ali dentro tudo estava tão perfeito quanto possí-vel. Seu rosto colado no meu, sua respiração me fazendo cócegas enquanto explorávamos nossas línguas. Pequenas notas adocicadas e um acorde desafinado até que pudéssemos nos sincronizar. O medo me deixando pouco a pouco até que tudo o que eu queria era ficar ali para sempre, naquela sala parada no tempo sem nada nada nada além de eu e você e um discman ligado em uma caixa de som velha – a segunda peça de mobília que levamos para lá, dias depois de nosso primeiro beijo.

Lembra que a Marina não nos achou e que desistiram de nos procurar? Que no outro dia na escola o Marcos fez piadinhas sobre estarmos namorando e que eu fiquei com tanta vergonha que não te olhei na cara pelos próximos dois dias? Até nos encontrarmos de novo lá naquela sala. Você me mandou um bilhete na aula de História dizendo que precisava falar comigo.

“Te vejo às nove da tarde hoje? Vai lá na casa abandonada depois da escola”.

Eu fui, com as pernas tremendo e o estômago despencando vários metros. Lembro de ficar me perguntando a cada segundo o que deveria fazer e se você estava chateado comigo por tê-lo ignorado.

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Pulei a janela podre, te procurei no nosso quarto. Lá dentro estava o ventilador e uma pilha de livros que você levou para ter um pouco de paz longe de casa. Mas não estava lá. Fui te encontrar no sótão. Onde os anti-gos moradores do lugar haviam abandonado centenas de cartas e recortes de jornais. Você estava sentado numa caixa, lendo uma carta manuscrita e lembro de sentir um frio na barriga com a ideia de ler as memórias dos outros. Ao invés de me dar um esporro pelos dias passados, você agiu como se nada tivesse acontecido. Fez com que me sentasse do seu lado e deu uma risada me mostrando a carta. Era algo sobre uma mulher apai-xonada pelo amante e queria deixar o marido e se mudar para a Europa. Algo tão surreal para gente que achamos engraçado, mas que para aquelas pessoas deveria ter parecido com o fim do mundo.

— Será que eles foram embora pra Europa? — você perguntou.— Quem sabe é por isso essa casa foi abandonada.— Sabe, eu não quero mais que minha vida seja como era antes. Não

me importo mais, só quero ficar com você.— E eu com você. Não sei até hoje de onde tirei coragem para dizer aquilo. Eu não era

como você, destemido, impulsivo e que era capaz de mandar o mundo inteiro à merda quando bem entendesse.

Eu era do tipo que ficava quieto no meu canto, baixava a cabeça para brincadeiras de mal gosto e respondia “sim senhor” para meu pai. Mas você fez com que tudo aquilo mudasse. Que eu me levantasse para lutar por mim, por você, por nós, por todos que amam alguém e não podem falar em voz alta por medo.

Nosso segundo beijo foi no sótão. O terceiro, no que um dia havia sido uma cozinha. O quarto, na sala. No quinto já tínhamos o discman e as caixas de som velhos. Levamos algumas toalhas roubadas da dispensa e ficamos deitados no chão, debaixo do relógio parado no tempo, ouvindo música no volume mínimo para não chamar atenção e lendo seus livros em voz alta. Eu fazia a voz do Hamlet, você do Claudius e lembro de dizer um dia “como é bom me sentir assim”.

Nos escondemos ali por um bom tempo. Um dia, determinado, você apareceu do nada na minha casa. “Vamos passear com seu cachorro”, você disse. O colocamos na coleira e andamos pela areia do mar, arras-tados pelo cachorro mais forte que eu e você. Ficamos de mãos dadas e

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ignoramos os olhares de todos. Quando nos chamaram de aberra-ção, não respondemos. Eu olhava para seus olhos de lua e estava tudo bem. Sentia como se tudo pudesse ser feito e não houvesse obstáculo grande o bastante que juntos não pudéssemos transpor.

E era verdade. E sorrimos juntos, e choramos juntos e rimos juntos mais vezes que posso me lembrar.

Hoje eu volto naquela rua com uma sensação boa no meu peito. A saudade rouba um pedaço de mim e se antes meu medo era ser visto com você, agora meu medo é de não me lembrar do seu rosto e da sua voz.

O relógio ainda está parado nas nove horas da tarde, sabia? Como se ali dentro nada nunca tivesse mudado. Como se até hoje fosse nosso cantinho e nosso paraíso particular. Posso sentir você em cada canto do quarto e cada vez que inspiro aquele ar, sinto meus olhos ficarem mais e mais molhados.

Tudo o que passamos e tudo que você me ensinou e só quero que você volte pro meu lado mais uma vez. Que eu possa me sentir invencível como no dia que falei pros meus pais que te amava. Você sempre estará lá, parado no tempo, intocável, incorruptível, uma parte perfeita da história desse universo que é só meu, e mesmo o fim do mundo nunca vai poder acabar com você. Eu não quero chorar nem ficar (muito) triste, pois sei que não é assim que você me imaginava. E não é assim que você me fez. Você me fez forte, resiliente, persistente. Alguém que como você, nunca daria o braço a torcer pelo que amava. Meu pequeno pedaço de tempo, parado às nove horas da tarde.

Lá, de volta no quarto onde tudo começou.

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Track 2É apenas uma fase

Who are you?When will you be through?

Yeah, it’s just a phaseIt will be over soon

Incubus - Its just a phase

É só uma fase, minha mãe costumava dizer, sempre que andávamos juntas pelo centro da cidade e passávamos por vitrines. Olha que blusa linda. E esse sapato então? Você ficaria linda nessa saia.

Era como um discurso eterno, do qual já estava cansada de ouvir. Eu não usava saias nem nada muito curto. Sapatos passa-vam longe de meus pés e não queria ver um salto alto nem perto de mim. Ficava no meu canto sempre que via algo que realmente interessava. Eu tinha vergonha de falar pra ela do que gostava e ela era tão certinha e devotada que ficaria apavorada se descobrisse o que escondia no meu MP3 player.

Assim eu continuava vivendo e me escondendo atrás de rou-pas genéricas, sem graça, personalidade ou vida. Nunca me sen-tindo verdadeiramente confortável nelas, sem saber quem eu era de verdade.

Das pequenas vezes em que me rebelava – de forma extrema-mente tímida – minha mãe falava que era apenas uma fase e que no fim tudo acabaria bem. Me perguntava o que diabos era “uma fase”. Não me contentar com pouco? Querer explodir e poder ser quem sou? Rasgar aquelas roupas ridículas que minhas tias me davam?

Não.

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A fase que eu passava e que tinha que acabar era aquela de ficar me escondendo. De não admitir que dentro de mim vivia uma garota que queria cortar os cabelos bem curtinhos, fazer uma tatua-gem e colocar um piercing no septo, ou na boca ou no nariz ou nos três lugares. Andava na rua invejando as garotas que usavam o que bem entendiam e com cortes de cabelo diferentosos. Com orgulho e sem receios. Lá dentro de mim a vontade de ser como elas crescia cada vez mais e eu olhava para coturnos e all stars em vitrines salivando de desejo. Cinto xadrez ou suspensórios. Tintura de cabelo na cor rosa. A camiseta da minha banda preferida. Um novo aparelho de som. Uma guitarra. Calça bem justa. Um decote, um CD. Listas mentais que eu temia nunca completar.

Mas nunca senti tanto medo quanto naquele dia em que estava voltando do mercado com minha mãe e fiquei tempo demais olhando para a menina parada do outro lado da rua.

— Pare com isso – minha mãe disse, dizendo não ser apro-priado ficar olhando para garotos.

Ela achou que eu estava olhando para o cara parado em frente ao ponto de ônibus. Não estava. Fiquei quieta, fui para casa, comi meu cereal, lavei a louça. Me comportei como a boa moça de família que era. Depois fui para meu quarto e deitei na cama com os fones de ouvido. O volume baixo caso meus pais entrassem ali. Não queria que eles soubessem o que eu escutava quando não estava na igreja.

Vi aquela garota outras vezes. Acho que fazíamos o mesmo caminho para a escola ou coisa parecida, pois passei a vê-la quase todos os dias. Ela tinha um cabelo bem bagunçado em cachos desa-linhados. Óculos vermelhos e uma faixa que prendia a franja para trás. Uma tatuagem do braço e brincos grandes de argola. A pele num tom de chocolate ao leite que reluzia.

Um dia eu estava voltando da aula quando a vi sentada em um banco, tomando sorvete, de mãos dadas com outra garota. Senti falta de ar quando as duas me encararam, como se perguntassem o que diabos eu estava olhando.

Eu não sabia o que fazer, mas ficar parada ali sem tirar os olhos delas não era a melhor opção que eu tinha. Então acenei e disse oi. Elas sorriram e deram uma risada, tampando a boca. Achei que

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estavam rindo de mim, então fechei os punhos e mudei de direção, me afastando. Foi aí que elas me chamaram de volta. Olhei para trás timidamente com medo de tirarem com a minha cara, mas ao invés disso elas me chamaram com a mão.

— Quer um sorvete? – a menina dos cabelos cacheados perguntou.

Fiquei com muita vergonha naquela hora, tomando consciên-cia da minha calça de moletom, da camiseta larga e do tênis velho e rasgado. Do meu cabelo comprido e sem brilho e sem corte que me batia na cintura.

— Não, obrigada – consegui responder.Ela deu de ombros e abriu espaço no banco para que me sen-

tasse. Não entendi porque elas fizeram aquilo. Talvez eu tivesse um pedido de socorro estampado na minha face.

As duas se apresentaram e falei meu nome. A outra garota era bem branquinha, de cabelo platinado e uma argola na boca. Os olhos bem escuros e andorinhas nas clavículas. Me perguntavam onde eu estudava e descobri que elas já estavam na faculdade. Que me viam de vez em quando por ali e que parecia triste e perdida. Não respondi nada, mas meu silêncio apenas confirmou as sus-peitas delas. Então falei sobre minha mãe e sobre como eu não entendia porque as coisas precisavam ser daquela maneira.

— Mas não precisam – elas disseram.Descobri que tínhamos bastante em comum, nós três, mas ao

contrário de mim, elas já haviam superado aquele medo que eu sentia. Passei a vê-las quase todo dia. Elas iam para a faculdade no horário em que eu voltava da aula e às vezes almoçávamos juntas ou tomávamos um sorvete. Numa sexta-feira elas me levaram até um salão e cortei meu cabelo pela primeira vez em anos. Logo abaixo dos ombros, com uma franja repicada.

O que havia de errado naquilo tudo se eu me sentia bem? Deus iria me amar de acordo com o comprimento do meu cabelo? Com a cor de minhas roupas, com o que eu usava nos pés, com o que ouvia e assistia?

Eu não acreditava que sim e fui para casa de punhos bem cer-rados. Foi meu pai quem me viu primeiro. Ele ficou me encarando

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pelo que pareceu uma eternidade. — Ficou bonito — ele disse, depois de mil minutos.A minha mãe não disse nada. Talvez ela já estivesse esperando

aquele tipo de atitude vindo de mim, ou talvez estivesse decepcio-nada comigo. O importante foi que eu amava meu cabelo novo e nada do que ninguém dissesse iria me fazer mudar de ideia.

No mês seguinte foi meu aniversário. Eu disse que não queria nenhum tipo de festa, mas alguns amigos foram até minha casa para comer pizza. Minha mãe me deu uma bíblia nova, e era bem bonita, cheia de ilustrações. Meu pai me deu um livro de fantasia. Minhas duas novas amigas me deram uma caixa grande e preta, estampada com caveiras. Dentro tinha uma “blusa inapropriada”, de uma banda que eu gostava. Minha mãe não gostou da ideia de ter a filha vestindo uma camisa escrito “Incubus” na frente, mas quem era eu para me importar?

Aquela fase havia passado. Eu não era mais uma medrosa e nem tinha receio de me perder ou não saber quem era lá no fundo de mim. Quando minha mãe abriu a boca para reclamar eu apenas disse não. Não para a vergonha, não para o medo, não para aquele aperto na garganta e que descia pelos meus pés e corria meus dedos. Queria abraçar o mundo inteiro de uma só vez, naquela nova etapa da minha vida, onde diria sim para tudo e viveria da forma como eu me sentia bem. Hoje minha lista de eternos desejos está completa.

E aquela fase do medo já passou.

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Track 3Casa na árvore

I have built a treehouseI have built a treehouse

Nobody can see usIt’s a you and me house

I’m from Barcelona - Treehouse

Eles não queriam ser vistos por ninguém. Nem pelos melhores amigos do mundo inteiro, nem seus gatos, peixes ou vizinhos enxeridos. Se conheceram sob circunstâncias desastrosas e levou um tempo até perceberem o que era aquilo que sentiam. Mantiveram tudo em segredo, apagavam todas mensagens e ape-nas se viam na casa da árvore, três vezes por semana e duas vezes aos domingos.

Foi ela quem teve a ideia. Não havia sido fácil encontrar o local perfeito, lá, depois do riacho, depois do lago, depois da estrada de pedras, depois da colina. Se perdeu na mata várias vezes tentando encontrar o caminho de volta nos primeiros dias, enquanto cole-tava tudo que seria preciso para construir a casa.

A árvore era enorme, com os galhos retorcidos cobertos de folhas, parecendo uma grande nuvem verde na paisagem. Lá no meio dos galhos não dava pra ver nada, e foi onde construiu o esconderijo. Ficava num pequeno espaço aberto entre outras árvo-res e perto de uma trilha gasta. Dali podia ouvir o barulho do laguinho, que a embalava junto do radio ligado enquanto cortava, serrava e martelava. Uma música, um álbum de cada vez, até a estrutura da base ficar pronta. Um piso reto, retangular de madeira clara e dura.

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A garota ficou de pé bem no centro da plataforma e pulou várias vezes para testar a resistência. Parecia tão firme quanto se fosse um galho. Voltou para casa cansada, a fronte suada e suja de terra, mas feliz por ter dado tudo certo. Dessa vez se lembrou do caminho correto e aproveitou para recolher algumas pedras pelo caminho, deixando-as em locais estratégicos para nunca se perde-rem por ali.

Um sorriso tolo no rosto se perguntando o que ele acharia daquilo tudo. Será que gostaria do abrigo escondido? Será que usariam ele por anos até terem coragem de contar a todos que se amavam? Será que daria certo e a casa ficaria de pé quando os dois estivessem lá dentro?

Quando pisou em casa a mãe foi logo perguntando que porca-ria era toda aquela nas suas roupas e cabelo. Caí no caminho para casa, ela disse, naquele declive perto da faculdade. Rolei até a cal-çada. Vá tomar um banho e colocar essa roupa na máquina, a mãe mandou, sem perguntar se estava tudo bem. A garota escondeu o sorriso e se trancou no quarto, desenhando e planejando seus pró-ximos passos, sem se preocupar com o graveto preso aos cabelos.

Já estava listando mentalmente as coisas de seu quarto que levaria para lá quando tudo ficasse pronto.

No outro dia lá estava ela novamente. Subiu na árvore, encai-xando os pés nos já conhecidos sulcos e dobras. Durante aquela semana montou as paredes e encaixou a porta e a janela. Essa deu bastante trabalho para ficar como queria. Mais alguns dias e já tinha telhado. Arrumou o trinco e colocou uma cortina na pequena janela. Lixou o que precisava e estendeu o carpete felpudo no chão. Deitou sobre ele por alguns minutos, descansando os braços e per-nas. Os pés batendo no ritmo da música, vendo pela janela um pas-sarinho em um galho próximo, como se aprovasse a construção.

No sábado seguinte tomou um banho longo, tirando enfim todo barro que havia ficado entre as unhas. Limpou as feridas e cortes nos dedos. Arrumou o cabelo, a mochila de presentes para a casa e subiu na bicicleta, para encontrar o garoto no posto de gasolina da rua de cima, onde se encontravam como se fossem apenas amigos.

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Ela não pôde conter o sorriso quando o viu esperando. Correu até ele se esforçando para não pular em seus braços. Prendeu a bici-cleta e andou na direção da cerca que dividia a rodovia do matagal, passando pela grande placa de “área de proteção ambiental”, com ele a seguindo por perto. O garoto não entendia nada, sem saber se apenas sorria com ela ou se ficava confuso. Longe dos olhares de todos, se deram as mãos. Sentiram aquele calor do bem estar os envolvendo, como apenas o toque de alguém amado era capaz de fazer. Estava tão alheia a seus pensamentos, com o estômago tão fundo de ansiedade, que agradeceu por criar uma trilha com as pedras, ou teriam se perdido. O sorriso não deixava seus lábios um segundo, e adorou a expressão na cara dele quando o colocou bem debaixo da árvore e o fez olhar para cima, algo entre o espanto e o maravilhamento.

Teve que o ajudar a subir, mas logo estavam os dois frente a frente à porta de entrada. Na madeira, um coração esculpido que lhe dera vários calos e cortes nas mãos, mas valera a pena. Agora ele finalmente entendia como ela havia se machucado tanto no último mês.

Ela abriu o cadeado e entraram. Era grande o suficiente para ficarem de pé ou deitados lá dentro. A boca dele não parava de formar um grande “o”, sem se conter.

A cortina verde na janela balançava com o vento, e uma pequena prateleira na parede suportava um radinho e uma caixa de chocolates. No chão, um tapete. Ela o puxou pela mão e se sen-taram bem no centro da casa na árvore. Abriu o cesto que trouxe consigo e espalhou tudo pelo chão: biscoitos, sucos, achocolatados e sanduiches. Esqueceu-se de levar almofadas, mas usaram os casa-cos e cachecóis para deitarem a cabeça no chão.

Ali eles não pertenciam ao mundo, apenas a si mesmos. Ninguém poderia ver e tentar se intrometer na vida deles. Falariam do que bem entendessem e não precisavam temer a forma como olhavam um para o outro.

Passaram a melhorar a casa pouco a pouco, com pintura, mais prateleiras, almofadas, cobertores e bichos de pelúcia. Uma lan-terna pendurada no teto, fazendo as vezes de lâmpada. O radinho

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tocando suas músicas preferidas enquanto dobravam vários tsurus de papel colorido, fazendo um desejo a cada ave que ficava pronta e era pendurada no teto da casa. Muito em breve pareciam estar imersos em uma miniatura de jardim de infância com cheiro de chocolate. Tudo colorido, macio e alegre em volta deles.

Na primeira vez que choveu ficaram os dois, cada um em sua casa, preocupados com o que aconteceria. No dia seguinte corre-ram até lá e estava tudo bem. A casinha aguentou aquela e mais um ano de chuva antes de precisarem trocar o teto e fazerem alguns ajustes. E outro ano até as paredes fraquejarem de pregos soltos.

Quando terminaram de arrumar tudo naquele ano, os dois sentaram na grama fofa abaixo da árvore e olharam um para outro, muito sérios.

Já é hora, disse um deles. Eu sei, respondeu o outro. E saíram da mata aquele dia de mãos dadas e foram direto para

a casa dela. Não importava mais nada do que dissessem a eles ou que achariam daquela situação. Se tudo desse errado, arrumariam uma casa na árvore, maior e melhor que aquela, no outro lado do universo. Tudo o que importava é que fossem a casa na árvore um do outro. Protegendo, cuidando, amando e sempre forte, sem nunca cair ou desabar. Aguentassem ano após ano de chuva, frio e calor. Mas assim como a casa que sobreviveu todo aquele tempo, eles viveriam um pelo outro, fazendo e lutando de todas as formas possíveis para que tudo desse certo.

Uma casa na árvore de eu mais você.

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Track 4Corpo

And take my hands, they’ll understandTake my heart, pull it apart

And take my brain, or what remainsAnd throw it all awayMother Mother - Body

A porta bateu atrás de mim com tanta força que ouvi o lustre tilintar na sala. O tipo de coisa que quase faz a gente se arrepender da besteira que está fazendo.

Quase.Não havia mais nada naquela casa que pudesse me fazer sentir

culpada, triste ou frustrada. Já tinha absorvido tudo que era pos-sível, e nem mais uma única gota de descontentamento cabia em mim. Se tentasse entrar, eu explodiria. Pedaços do meu corpo voa-riam pelo quintal e meu cérebro bateria bem na janela do escritório do meu pai, aquele safado preguiçoso. Minha mãe veria as tripas e pensaria “olha o que aquela garota fez agora, terei de limpar a varanda outra vez”.

Esse era o tipo de mãe que eu tinha. Mas felizmente, saí logo de casa e não precisei explodir com

mais nenhum comentário babaca da minha irmã perfeita e magra e linda ou de meus pais imaculados. Andei pela calçada escura sem que nenhuma lágrima escorresse de meu rosto. Acho que já estava tão cansada, tão de saco cheio de tudo aquilo que já tinha secado. Meus pés pisoteavam as folhas secas, deixando aos pou-cos, parte de minha raiva para trás. Só queria me ver livre daquele peso, daquela mágoa, daquele sentimento que era como ácido e me

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corroia membro a membro. Um pedaço do braço, uma perna, uma orelha, o nariz, e em breve eu seria um montinho de nada no chão.

Era uma época em que absolutamente tudo me tirava do sério. Minha irmã me irritava com sua mera presença. As risadas altas ao telefone, o perfume excessivamente doce, o tempo que levava no banheiro para alisar o cabelo. Me incomodava até quando respirava do meu lado.

Quando vinha com os papinhos de festas e bebedeiras então, queria ter uma morte súbita pra não ter que ouvir. Minha mãe era outra criatura de outro mundo, que seria capaz de limpar a sujeira do meu pai mesmo se ele entrasse em casa todo enlameado e saísse rolando pelo carpete. Acho que aquele idiota nunca fez um único sanduíche ou lavou um prato em toda a vida dele.

Minha irmã era o orgulho da casa e adivinha quem é que lavava a louça? Eu, é claro, afinal, a Clarinha precisava estudar pro mes-trado. Quem é que levava o lixo pra fora? Eu, porque tadinha da Clara, está muito ocupada com seus livros de estudo.

Como se eu fosse uma total desocupada. Como se eu mesma não precisasse ler e estudar e tivesse tarefas para fazer. E a idiota da minha mãe não dizia nada, ficava calada igual uma estátua enquanto via aquilo acontecer.

Lembro do dia que ele me deu uma cintada na bunda quando disse que não varreria a sala. Sabe o que ela fez? Mandou eu engolir o choro e obedecer meu pai. O cúmulo foi quando eles disseram que eu precisava ajudar a Clara, e pra isso, deveria arrumar seu quarto. Eu fiz um escândalo tão grande que levei um tapa na cara. E sabe o que fiz depois? Fiquei bem quietinha e arrumei o quarto dela, enquanto ela me olhava com um sorriso de canto de boca, mexendo no computador, lendo um blog qualquer. Um dia tentei contar a eles que ela estudava porcaria nenhuma e ficava namo-rando e vendo besteira no computador.

Eles não acreditaram, claro. Disseram que era inveja, me chamaram de mentirosa e ainda

ameaçaram de me levar num psicólogo. Minha irmã tinha vinte e três anos de idade, e eu ainda tava no ensino médio. Eles espera-vam o que de mim?! Às vezes eu achava que tudo acontecia por