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A MISSO PARANHOS AO PRATA (1864-1865): DIPLOMACIA E POLTICA NA ECLOSO DA GUERRA DO PARAGUAI

MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

Ministro de Estado Secretrio-Geral

Embaixador Celso Amorim Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente INSTITUTO RIO BRANCO Diretor-Geral

Embaixador Jeronimo Moscardo

Embaixador Georges Lamazire

A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br

CESAR DE OLIVEIRA LIMA BARRIO

A Misso Paranhos ao Prata (1864-1865): diplomacia e poltica na ecloso da Guerra do Paraguai

Braslia, 2010

Copyright Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected] Capa: Athos Bulco Trelia - madeira, localizada na Sala dos Tratados.

Equipe Tcnica: Maria Marta Cezar Lopes Cntia Rejane Sousa Arajo Gonalves Erika Silva Nascimento Fabio Fonseca Rodrigues Jlia Lima Thomaz de Godoy Juliana Corra de Freitas Programao Visual e Diagramao: Juliana Orem e Maria Loureiro

Impresso no Brasil 2010 B271m Barrio, Cesar de Oliveira Lima. A Misso Paranhos ao Prata (1864-1865): diplomacia e poltica na ecloso da Guerra do Paraguai / Cesar de Oliveira Lima Barrio.Braslia : FUNAG, 2010. 168 p. ISBN 978.85.7631.210-9 Dissertao (mestrado) Instituto Rio Branco, MRE. rea de concentrao: Histria Diplomtica. Orientador: Francisco Fernando Monteoliva Doratioto. 1.Brasil Relaes internacionais. 2. Poltica externa. 3. Guerra do Paraguai. 4. Rio da Prata. I. Ttulo. CDU: 341.781(81)

Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

A Veridiana, por todo o amor, o carinho e a dedicao.

Agradecimentos

Agradeo a excepcional orientao e o inestimvel auxlio do Professor Doutor Francisco Doratioto, os conselhos preciosos de professores e amigos do Instituto Rio Branco e a boa vontade dos funcionrios dos arquivos e das bibliotecas em que pesquisei. Tambm agradeo minha famlia e minha esposa Veridiana por todo o seu apoio e por sua infinita pacincia ao longo de todo este trabalho.

Rightly to be great is not to stir without argument, But greatly to find argument in a straw When honours at the stake. (William Shakespeare, Hamlet, act IV, scene IV)

Abreviaturas

ACD Anais da Cmara dos Deputados AHI Arquivo Histrico do Itamaraty AIHGB Arquivo do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro AME Arquivo das Misses Especiais AN Arquivo Nacional APVRB Arquivo Particular do Visconde do Rio Branco AS Anais do Senado CDOMS Correspondncia e Documentos Oficiais da Misso Saraiva RRNE Relatrios da Repartio dos Negcios Estrangeiros

Sumrio

Introduo , 15 Captulo I Condicionantes da diplomacia imperial, 23 1.1 As foras profundas, 23 1.2 O subsistema platino, 32 1.3 Paradigmas de poltica interna e externa, 39 Captulo II A interveno no Uruguai, 49 2.1 A conjuntura poltica brasileira, 49 2.2 A Misso Saraiva, 57 2.3 Das represlias guerra, 69 Captulo III A atuao de Paranhos no Prata, 77 3.1 Contatos iniciais, 77 3.2 Rumo a Montevidu, 86 3.3 s vsperas do ataque, 94 3.4 A pacificao do Uruguai, 100 Captulo IV Resultados e repercusses, 109 4.1 As consequncias da paz, 109 4.2 A exonerao de Paranhos, 115 4.3 A Misso Paranhos em debate, 122

Concluses, 133 Fontes, 145 Anexos, 157 Anexo I Notas reversais de 28 e 31 de janeiro de 1865, 157 Anexo II Convnio de 20 de fevereiro de 1865, 162 Anexo III Protocolo reservado e adicional de 20 de fevereiro de 1865, 165

Introduo

Entre os meses de abril e maio de 1864, o Governo Imperial decidiu alterar poltica externa brasileira para o Rio da Prata e passou a adotar uma postura mais ativa em defesa dos direitos e dos interesses nacionais no Uruguai. A nova poltica resultou em crescente antagonismo entre Brasil e Uruguai e acabou por envolver o Governo Imperial na poltica interna uruguaia e, consequentemente, na guerra civil entre blancos e colorados iniciada no ano anterior. O envolvimento brasileiro no Uruguai motivou a interveno paraguaia, que acabou por precipitar o maior conflito armado da histria sul-americana: a Guerra do Paraguai (tambm denominada Guerra da Trplice Aliana). Para se tentar entender o papel da diplomacia brasileira no contexto que levou Guerra do Paraguai necessrio, portanto, buscar compreender o processo de envolvimento do Brasil no conflito uruguaio, desenvolvido essencialmente ao longo de duas misses especiais enviadas pelo Governo Imperial ao Prata no ano de 1864: a primeira a cargo de Jos Antnio Saraiva (no perodo de maio a setembro) e a segunda sob o comando de Jos Maria da Silva Paranhos, futuro Visconde do Rio Branco (iniciada em dezembro e concluda em maro do ano seguinte). A Misso Saraiva j foi objeto de detida anlise historiogrfica. A Misso Paranhos, por outro lado, ainda constitui, em certa medida, uma lacuna na historiografia brasileira. Alguns de seus documentos foram publicados, mas a correspondncia da misso s acessvel em forma manuscrita no Arquivo15

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Histrico do Itamaraty, no Rio de Janeiro. Embora esse material tenha sido objeto de trabalhos sobre temas mais amplos, no foi possvel identificar, nas principais bases de dados nacionais, nenhum estudo historiogrfico acerca da Misso Paranhos e de seu contexto especfico. Obras mais abrangentes, como as biografias publicadas sobre o Visconde do Rio Branco e as obras existentes acerca da Guerra do Paraguai, no do conta da complexidade da Misso Paranhos. Nesses trabalhos, a prpria amplitude dos temas impede um estudo aprofundado da misso especial e obriga seus autores, muitas vezes, a concentrarem sua abordagem em um nico nvel de anlise metodolgica, com o objetivo de ressaltar apenas aqueles aspectos da misso mais relevantes para a exposio de seus temas. Essa lacuna torna-se tanto mais sensvel quando se constata que: (i) a Misso Paranhos um episdio crucial do envolvimento do Brasil no Prata e representou uma etapa fundamental do processo de formao da Trplice Aliana; e (ii) a Misso Paranhos evidencia algumas contradies a respeito das polticas interna e externa brasileiras que demandam maior esclarecimento. O primeiro ponto evidenciado pelo impacto da misso na conjuntura platina. Quando chegou ao Prata, Paranhos deparou-se com um contexto extremamente adverso: as relaes entre Brasil e Uruguai haviam degenerado a um verdadeiro estado de guerra, em que as foras brasileiras combatiam ao lado dos rebeldes colorados; o Paraguai j havia rompido relaes com o Imprio e preparava-se para invadir o Mato Grosso; a Argentina permanecia neutra e o Corpo Diplomtico era hostil ao Brasil. Quando Paranhos deixou o Prata, a guerra civil estava encerrada, o Uruguai havia passado de inimigo a aliado do Brasil contra o Paraguai, o Imprio contava com a aliana moral da Argentina e havia conquistado as simpatias do Corpo Diplomtico. A rendio de Montevidu foi alcanada por um convnio de paz, sem que fosse necessrio disparar um tiro, e as bases para a formao da Trplice Aliana estavam firmadas. As notcias da rendio de Montevidu foram recebidas com grande jbilo no Rio de Janeiro, mas, no dia seguinte, o convnio foi condenado como deficiente pelo Governo Imperial e o plenipotencirio brasileiro foi imediatamente exonerado. Chega-se, com isso, ao segundo ponto: as contradies. Por que Paranhos foi exonerado se sua misso foi aparentemente um triunfo? Por que o Governo Imperial manteve o convnio se no o considerou satisfatrio? Intensos debates na imprensa e no Parlamento poca apresentaram os mais variados argumentos em defesa de Paranhos ou16

INTRODUO

do Governo Imperial, mas a historiografia posterior chegou a uma hiptese praticamente consensual sobre o que teria acontecido: o convnio atendia s necessidades da poltica imperial, mas o Gabinete preferiu exonerar seu diplomata por razes de poltica interna.1 Essa hiptese ser verificada ao longo deste trabalho, mas no constitui seu elemento central e sim o ponto de partida para outras indagaes a respeito da ingerncia da poltica interna sobre a poltica externa na conduta da interveno brasileira no Estado Oriental: Por que um Gabinete liberal/ progressista escolheu como seu representante diplomtico um lder conservador que criticava sua poltica externa? Por que um Gabinete da mesma colorao (seu antecessor) ordenou uma poltica intervencionista no Prata ao mesmo tempo que defendia o neutralismo? A historiografia oferece algumas respostas a essas perguntas. No se pretende refut-las a partir de novas descobertas extraordinrias, mas reavalilas para compreender melhor as variveis de poltica interna e externa que nortearam a Misso Paranhos e a conduta do Governo Imperial. Com esses subsdios, ser possvel verificar a hiptese central deste trabalho: longe de constiturem fatores isolados, as contradies da Misso Paranhos revelam profundas incongruncias em todo o curso da interveno brasileira no Uruguai, explicveis apenas por um longo processo de sobreposio dos interesses internos do Gabinete de Governo aos objetivos externos do Imprio. Essa investigao no perde sua relevncia pelo distanciamento temporal de seu objeto. Para uma Casa que tanto preza sua histria e valoriza a continuidade de sua atuao diplomtica, orgulhando-se da renovao dentro da tradio, um trabalho que se prope a investigar o processo que levou, pela primeira vez, transformao do antagonismo entre Brasil e Argentina em uma parceria fundada na convergncia de interesses entre os dois principais atores platinos, um convite reflexo sobre as grandes persistncias na poltica externa brasileira. A Misso Paranhos foi, tambm, um dos momentos mais marcantes da carreira diplomtica do Visconde do Rio Branco, um dos grandes estadistas1 A historiografia diverge, contudo, no peso atribudo a diferentes fatores de poltica interna e, embora no negue a questo de poltica interna, Cervo registra uma dissidncia parcial em relao ao restante da historiografia ao apontar um verdadeira falha no Convnio: no haver alcanado nenhuma garantia de proteo aos brasileiros residentes no Uruguai, ou seja, nenhuma garantia de paz futura. CERVO, Amado Luiz. Parlamento brasileiro e as relaes exteriores: 1826-1889. Braslia: Universidade de Braslia, 1981, p. 101-106.

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da histria nacional e um paradigma permanente para sucessivas geraes de diplomatas brasileiros. A ele atribui-se a sntese das principais tendncias da poltica externa imperial em uma poltica externa eminentemente brasileira, fundada na persecuo coerente dos objetivos permanentes da poltica externa brasileira, identificados de forma concreta e objetiva ao interessa nacional.2 A investigao aqui proposta foi iniciada com uma pesquisa documental e historiogrfica de cunho exploratrio nas principais bases de dados nacionais sobre o tema, com nfase nos arquivos da misso especial. O material foi coletado e analisado a partir do marco terico proposto por Renouvin e Duroselle, que concebem a ao diplomtica como produto da interao entre as foras profundas de ordem sistmica que formam o quadro das relaes entre os grupos humanos e a ao do homem de Estado, o indivduo detentor de poder capaz de agir em nome de sua nao.3 Essa interao ocorre por meio do que Duroselle chamou sistema de finalidade e sistema de causalidade. O sistema de finalidade o campo subjetivo em que o homem de Estado elabora seu plano de atuao sobre as foras profundas, com o objetivo de dirigi-las de acordo com a finalidade determinada em seu clculo estratgico. No sistema de causalidade, as foras profundas tambm agem sobre o homem de Estado, delimitando suas possibilidades de atuao e condicionando sua conduta, atuando em sua forma original, difusa e espontnea (as pulses), ou de maneira racionalizada, quando canalizadas por grupos organizados para objetivos definidos (as presses). As foras profundas podem ser de ordem externa ou interna, mesmo no estudo das relaes internacionais, pois no existe nenhum ato de poltica exterior que no tenha um aspecto de poltica interna.4 O marco proposto no exclui outras abordagens e pode ser complementado por diferentes aportes tericos pertinentes afinal, este trabalho no se prope a justificar uma ou outra abordagem terica especfica de relaes internacionais, mas a empreg-las na medida de sua utilidade para facilitar a compreenso do objeto de estudo. Transpondo o marco tericoCERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. Histria da poltica exterior do Brasil. 2. ed. Braslia: Universidade de Braslia, Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais, 2002, p. 68. 3 RENOUVIN, Pierre; DUROSELLE, Jean-Baptiste. Introduo histria das relaes internacionais. So Paulo: Difuso Europeia do Livro, 1967, passim; DUROSELLE, JeanBaptiste. Todo imprio perecer: teoria das relaes internacionais. Braslia: Universidade de Braslia; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, passim. 4 DUROSELLE, Jean-Baptiste. Todo imprio perecer: teoria das relaes internacionais. Braslia: Universidade de Braslia; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, passim.2

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INTRODUO

de Renouvin e Duroselle sobre a trade analtica de Waltz, temos que: (i) a primeira imagem (individual) corresponde conduta pessoal do homem de Estado; (ii) a segunda imagem (estatal) diz respeito s foras internas que condicionam a ao do homem de Estado no plano internacional; (iii) a terceira imagem (sistmica) a estrutura internacional determinada pelas foras profundas.5 Comeando-se com a terceira imagem, foram utilizados alguns conceitos dos autores da tradio realista, como Aron, Morgenthau e Waltz. Nessa concepo, os fatores fsicos e sociais traduzem-se em elementos de poder, que passam a constituir um sistema internacional em que os Estados so os atores centrais e pautam sua ao pela maximizao do poder ou da segurana.6 A opo pelo instrumental realista justifica-se pelas caracterstas do mundo do sculo XIX, quando o Estado era o grande protagonista das relaes internacionais e a poltica de poder ocupava inegavelmente o primeiro plano da diplomacia.7 Na passagem da terceira para a segunda imagem, importante considerar dois elementos: (i) a interao entre poltica interna e poltica externa; e (ii) os paradigmas internos de poltica externa. Robert D. Putnam aborda o primeiro ponto em sua teoria dos jogos de dois nveis (two-level games): a interao entre polticas interna e externa equivale a um jogo de dois nveis em que os lances jogados em um tabuleiro afetam o outro e algumas vezes os lances que parecem razoveis em um tabuleiro podem no o ser no outro. Os tomadores de deciso no podem ignorar nenhum dos tabuleiros, sob pena de serem eliminados do jogo por fora de lances desfavorveis em qualquer dos planos.8

A distino no passa, evidentemente, de um recurso metodolgico, pois o entendimento preciso dos fenmenos de relaes internacionais depende da combinao das trs imagens, no da anlise isolada de qualquer delas. WALTZ, Kenneth N. Man, the State and War: a theoretical analysis. New York: Columbia University, 1969, p. 14. 6 ARON, Raymon. Paz e guerra entre as naes. Braslia: Universidade de Braslia, Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, passim; MORGENTHAU, Hans. A poltica entre as naes: a luta pelo poder e pela paz. Braslia: Universidade de Braslia, Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003, passim; WALTZ, Kenneth N. Teoria das relaes internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002, passim. 7 No se quer dizer, com isso, que o Estado e a poltica de poder tenham deixado o papel central das relaes internacionais nos dias de hoje, apenas que, naquele tempo, sua importncia era maior. 8 PUTNAM, Robert D. Diplomacy and Domestic Politics: the Logic of Two-Level Games. In: International organization. Vol. 42, no. 3 (Summer, 1988), 427-460, p. 433-434.5

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Para analisar o segundo ponto, o instrumental mais adequado parece ser a abordagem construtivista das relaes internacionais. O construtivismo parte da prpria insuficincia das concepes racionalistas (como o realismo) para explicar os motivos que determinam a tomada de decises pelos homens de Estado. H, segundo os construtivistas, uma barreira epistemolgica entre a realidade objetiva e a percepo do formular de poltica externa que desvia a ao diplomtica dos interesses materiais do Estado para as concepes ideacionais dos formuladores de poltica externa. Por essa razo, o construtivismo no nega a premissa racionalista da busca racional dos interesses nacionais, nem mesmo a maximizao de poder advogada pelas teses realistas, mas argumenta que the meaning of power and the content of interests are largely a funcion of ideas.9 Goldstein e Keohane argumentam que ideias reiteradas no tempo podem transformar-se em paradigmas institucionalizados de poltica externa e influir sobre a ao diplomtica de um Estado como mapas de ao para momentos de incerteza ou como focos de consenso diante de situaes com mltiplas possibilidades de ao.10 Parece lgico concluir, ento, que, quanto mais forte a institucionalizao de determinado paradigma, maior sua influncia sobre a ao diplomtica e, portanto, menor a tendncia do homem de Estado de desviar-se do paradigma independentemente das presses ou pulses em outro sentido. A contrario sensu, quanto mais fracos os paradigmas, maior a suscetibilidade do homem de Estado s presses e pulses. Em relao primeira imagem, o instrumental proporcionado por Renouvin & Duroselle parece suficiente para os objetivos deste trabalho. O trabalho foi organizado em quatro captulos, tendo em vista o marco terico adotado e a ordem cronolgica dos eventos. No captulo I, foram isoladas as variveis estruturais de poltica externa e interna que determinaram a ao diplomtica brasileira no Prata. Trata-se, portanto, de uma apreciao de longo prazo de terceira e segunda imagens (nessa ordem). No captulo II, passa-se da estrutura para a conjuntura, com o propsito de apreciar o contexto imediato que ensejou a Misso Paranhos. O marco temporal

9 WENDT, Alexander. Social theory of international politics. New York: Cambridge University, 1999, p. 96. 10 GOLDSTEIN, Judith; KEOHANE, Robert O. Ideas and Foreign Policy: beliefs, institutions and political change. Ithaca: Cornell University, 1993, p. 7-14.

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INTRODUO

escolhido para delimitar o incio da abordagem foi a ascenso ao poder do Gabinete Zacarias, responsvel pela alterao na poltica brasileira para o Prata. A anlise leva em considerao elementos da terceira imagem, mas concentra-se na segunda imagem para explicar as decises que levaram interveno no Uruguai. Para analisar a Misso Saraiva, passa-se primeira imagem. O captulo III focaliza a atuao de Paranhos no Prata, desde sua chegada a Buenos Aires, no dia 2 de dezembro de 1864, at a celebrao do Convnio de Paz, em 20 de fevereiro de 1865. Seu objetivo explicar as atividades do plenipotencirio brasileiro como homem de Estado (primeira imagem), luz das instrues do Governo Imperial e da conjuntura platina. O captulo IV avalia as consequncias da Misso Paranhos para o Imprio e o Prata e procura rever os principais pontos dos debates que se seguiram demisso do plenipotencirio. Nesse captulo, levam-se em considerao elementos dos trs nveis de anlise. A concluso apresenta a reflexo final do autor sobre a Misso Paranhos e seu ponto de vista acerca das principais questes suscitadas ao longo do estudo.

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Captulo I - Condicionantes da Diplomacia Imperial

Este captulo tem o objetivo de identificar as variveis externas e internas que delimitavam a conduta brasileira no Prata. Com esse fim, buscou-se compreender: (i) as foras profundas que perpassavam a sociedade platense e os efeitos de suas pulses sobre os pases da regio; (ii) as caractersticas estruturais do subsistema platino de relaes internacionais e as combinaes entre seus atores; e (iii) os paradigmas da poltica externa brasileira para o Prata e sua relao com a evoluo da poltica interna do Imprio. Esses elementos constituem o pano de fundo para as mudanas conjunturais que resultaram no envio da misso Paranhos ao Prata. 1.1 As foras profundas

Quando as possesses sul-americanas de Espanha e Portugal realizaram sua emancipao poltica nas dcadas de 1810 e 1820, defrontaram-se com dois desafios: a consolidao de novos Estados e sua reinsero no sistema econmico internacional. O primeiro processo implicava redefinir identidades antes subordinadas dominao metropolitana e reconstruir um aparato governamental a partir dos resqucios da administrao colonial. Essa tarefa competiria s elites que fizeram a Independncia, cujo xito dependeria, em grande medida,23

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de sua homogeneidade e da formulao de um projeto de Estado comum.11 Na sociedade platense, fundada na pecuria de exportao, essa homogeneidade no existia. A elite era fraturada em oligarquias rurais e burguesias mercantis que se antagonizavam mutuamente. As oligarquias, compostas por estancieiros (fazendeiros) e saladeiros (charqueadores), faziam a produo pecuria; as burguesias, formadas por comerciantes, encarregavam-se de sua exportao. As oligarquias dominavam a campanha e protegiam o artesanato pr-capitalista local; as burguesias controlavam as capitais porturias e importavam as manufaturas europeias. As oligarquias praticavam o caudilhismo e desejavam uma federao com ampla autonomia regional, que conservasse seu poder e seus privilgios; as burguesias pregavam o liberalismo e ambicionavam um Estado forte e unitrio, capaz de submeter todo o territrio ao controle da capital.12 O segundo processo implicava a reinsero das ex-colnias no sistema econmico internacional dos novos Estados nacionais, crescentemente caracterizado pelo aprofundamento da Revoluo Industrial, pelo advento do capitalismo e pela integrao dos mercados mundiais. A reinsero ocorreria por meio do que Donghi chamou de neocolonialismo, baseado no novo pacto colonial, fundado na diviso internacional do trabalho. A Amrica Latina exportava matrias-primas e gneros alimentcios para as metrpoles europeias e importava seus produtos industrializados.13 Nesse contexto, a integrao entre centros produtores de matrias-primas e gneros alimentcios e seus portos de escoamento tornava-se imprescindvel. Era necessrio desenvolver uma infra-estrutura mnima interligando o campo e a cidade com estradas de ferro e linhas telegrficas, o que exigia a acumulao de capital. A acumulao de capital dependia da ampliao das exportaes11 Carvalho sustenta que a homogeneidade das elites uma condio fundamental para a consolidao dos Estados: Uma elite homognea possui um projeto comum e age de modo coeso, o que lhe d enormes vantagens sobre as elites rivais. Na ausncia de claro domnio de classe, [...] a fragmentao da elite torna quase inevitvel a aflorao de conflitos polticos e a instaurao da instabilidade crnica, retardando a consolidao do poder. CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial. Teatro de sombras: a poltica imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, p. 34. 12 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O expansionismo brasileiro e a formao dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonizao Guerra da Trplice Aliana. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan; Braslia: Universidade de Braslia, 1998, p. 57. 13 DONGHI, Tulio Halperin. Histria da Amrica Latina. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 124-129.

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CONDICIONANTES DA DIPLOMACIA IMPERIAL

e, portanto, da expanso da produo interna. Dada a ausncia de capital e a escassez de mo de obra, o nico fator de produo que poderia ser intensificado para aumentar a produo era a terra. Por essa razo, a expanso da produo dependia da ampliao das terras disponveis.14 A acumulao de capital tambm dependia da atrao de investimentos estrangeiros, o que pressupunha estabilidade poltica, garantias de segurana aos negcios e respeito propriedade e aos direitos dos estrangeiros. Isso demandava uma autoridade central fortalecida, capaz de impor a ordem dentro de seu territrio. A mesma autoridade tambm era necessria para interligar as reas produtoras e os portos de escoamento da produo, assim como expandir as fronteiras nacionais para abrigar novas terras. O antagonismo entre as elites era uma fora profunda de fragmentao intra-estatal. O capitalismo de produo em escala era uma fora profunda de expanso alm das fronteiras provinciais ou estatais.15 As pulses contrrias das duas foras (a primeira, de natureza centrfuga; a segunda, centrpeta) afetaram, em maior ou menor medida, todos os pases da regio, e seu choque imps permanente instabilidade sociedade platina, resolvel apenas por meio da fora.16 Esse choque foi especialmente violento no territrio do antigo Vice-Reino do Rio da Prata. Derrubado o Vice-Rei espanhol em 1810, as elites portenhas tentaram preencher o vcuo de poder e reclamaram a lealdade de todo o territrio, mas fracassaram diante do movimento juntista, que ofereceu identidades regionais distintas mesmo s mais reduzidas jurisdies.17DONGHI, Tulio Halperin. Economy and Society in Post-Independence Spanish America. In: BETHELL, Leslie (Ed.). The Cambridge History of Latin America. Cambridge: Cambridge University, 1989, v. III, p. 313. 15 Essa pulso expansionista no se traduzia, necessariamente, em pretenses anexacionistas. Em muitos casos, as necessidades expansionistas dos atores platinos podiam ser satisfeitas pelo aumento da influncia poltica ou econmica sobre seus vizinhos (como ocorria entre Brasil e Uruguai). Em outros casos, era necessria a submisso poltica de todo o territrio a um nico comando central (como ocorria entre Buenos Aires e as provncias de Entre Ros e Corrientes). 16 A insero dependente dos novos Estados no mercado mundial, aliada instabilidade estrutural da regio, tambm geravam um problema adicional: a constante interferncia de potncias europeias (principalmente Reino Unido e Frana) nas questes sul-americanas em defesa de seus interesses particulares. CERVO, Amado Luiz. Hegemonia coletiva e equilbrio: a construo do mundo liberal (1815-1871). In: SARAIVA, Jos Flvio Sombra (Org.). Relaes internacionais: dois sculos de histria. Braslia: Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais, 2001, p. 80-81. 17 SAENZ QUESADA, Mara. La Argentina: historia del pas y de su gente. 3. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p. 218.14

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Seguiram-se numerosos conflitos, que resultaram na segregao da Banda Oriental (Uruguai), do Paraguai e do Alto Peru (Bolvia), e na fragmentao das remanescentes Provncias Unidas.18 A instabilidade entre as foras de expanso e fragmentao permaneceu ao longo de toda a histria argentina anterior Guerra do Paraguai, ainda que com intensidades variveis. At a ascenso de Juan Manuel de Rosas, em 1829, predominaram as foras de fragmentao, levando Cisneros e Escud a falarem antes em uma constelacin de mini-estados que em uma federao.19 Estancieiro buenairense e federalista, Rosas conseguiu conciliar por algum tempo os interesses das oligarquias provinciais e das burguesias portenhas e trazer estabilidade s Provncias Unidas por meio de uma poltica de diplomacy as well as force, presents as well as punishment.20 Em 1832, Rosas consolidou uma Confederao sob o comando de Buenos Aires, mas atenuou as reclamaes provinciais com polticas comerciais protecionistas.21 Mesmo assim, o conflito permaneceu latente e acabou obrigando Rosas a favorecer um dos lados. Defendendo os interesses de Buenos Aires, Rosas fechou o Rio da Prata livre navegao estrangeira, concentrou o comrcio exterior no porto de Buenos Aires, suprimiu as aduanas interiores e recusou-se a nacionalizar as rendas alfandegrias portenhas.22 Como consequncia, as provncias da mesopotmia argentina passaram a buscar uma rota alternativa para o escoamento de sua produo saladeiril: o porto de Montevidu. A capital uruguaia transformou-se, assim, em uma base estratgica para a resistncia das provncias dominao portenha. Para firmar seu controle sobre as provncias dissidentes, Buenos Aires precisava controlar o Uruguai.23 Essa18 Para Cervo, a Grande Argentina sucumbiu diante das ptrias chicas e transformou-se na Pequena Argentina. CERVO, Amado Luiz. A dimenso regional e internacional da independncia. In: ______; RAPOPORT, Mrio (Orgs.). Histria do Cone Sul. Rio de Janeiro: Revan; Braslia: Universidade de Braslia, 1998, p. 85-86. 19 CISNEROS, Andrs; ESCUD, Carlos (orgs.). Historia general de las relaciones exteriores de la Repblica Argentina. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1998, parte I, tomo IV, p. 159. 20 LYNCH, John. The River Plate Republics from Independence to the Paraguayan War. In: BETHELL, Leslie (ed.). The Cambridge History of Latin America. Cambridge: Cambridge University, 1989, v. III, p. 617. 21 SAENZ QUESADA, 2004, p. 319. 22 BANDEIRA, 1998, p. 58. 23 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Formao dos Estados nacionais e expanso do capitalismo no sculo XIX. In: CERVO, Amado Luiz; RAPOPORT, Mrio (Orgs.). Histria do Cone Sul. Rio de Janeiro: Revan; Braslia: Universidade de Braslia, 1998, p. 169.

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CONDICIONANTES DA DIPLOMACIA IMPERIAL

necessidade permaneceu uma fora expansionista constante na poltica externa argentina e veio ao encontro da velha ambio buenairense de restaurar a integridade territorial do Vice-Reino do Rio da Prata.24 Com a queda de Rosas em 1852, as foras de fragmentao voltaram a imperar. Recusando-se a aceitar o comando do caudilho entrerriano Justo Jos Urquiza, Buenos Aires retirou-se da Confederao e proclamou um novo Estado. A desconfortvel coexistncia de dois Estados argentinos no durou muito. A Confederao no podia subsistir sem as rendas alfandegrias portenhas e a tentativa de fazer do porto santafesino de Rosrio uma alternativa a Buenos Aires nunca foi bem sucedida.25 Por outro lado, Buenos Aires necessitava das provncias para sustentar sua acumulao de capital e alavancar sua expanso econmica.26 Mais uma vez, o choque das pulses contrrias resultou no recurso s armas. Em 1859, Urquiza submeteu Buenos Aires e voltou a unificar a Confederao sob seu comando, mas Buenos Aires rebelou-se novamente e terminou vencendo em 1861. Bartolom Mitre, Governador de Buenos Aires, tornou-se Presidente de uma Confederao unificada. Mesmo assim, as provncias de Entre Ros e Corrientes mantiveram-se fortes e permaneceram uma fonte permanente de instabilidade interna e tenso externa. A emancipao poltica brasileira seguiu um rumo diverso. Em contraste ao que ocorreu nas ex-colnias hispanoamericanas, o Brasil conseguiu manter sua integridade territorial e consolidar sua Independncia com desgastes muito menores.27 Mesmo assim, um conflito intra-elites ocorreu durante o processo de emancipao

Paulo Cavalieri afirma, entretanto, que Rosas nunca pretendeu efetivamente anexar o Uruguay: su tcito plan de reconstruccin virreinal no pas de ser un espantapjaros que se agitaba oportunamente para manter la ansiedad de las potencias extranjeras, la cohesin interna y el statu quo. CAVALIERI, Paulo. La restauracin del Virreinato: orgenes del nacionalismo territorial argentino. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2004, p. 20. 25 LYNCH, 1989, v. III, p. 653. 26 BANDEIRA, 1998, p. 107. 27 Fausto atribui esse resultado em grande medida transmigrao da Famlia Real portuguesa para o Brasil. FAUSTO, Boris. Histria do Brasil. 10. ed. So Paulo: Universidade de So Paulo, 2002, p. 146. Cervo chama ateno para a implantao da monarquia constitucional como Estado forte e centralizado, em consonncia com o projeto das elites que fizeram a Independncia. CERVO, 1998, p. 93. Doratioto lembra as vinculaes econmicas e geogrficas entre as regies do Brasil, submetidas a um aparato estatal com membros experientes e legitimados pela continuidade do regime monrquico. DORATIOTO, 1998, p. 168. Carvalho v na uniformidade da elite poltica brasileira um dos principais fatores responsveis pela manuteno da unidade nacional e pela ausncia da instabilidade poltica que predominou nos outros pases latino-americanos. CARVALHO, 2003, p. 229-235.24

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poltica brasileira, acompanhada do embate ideolgico entre centralizao e descentralizao. Durante o reinado de D. Pedro I, prevaleceram as burguesias mercantis, de origem portuguesa e tendncias unitrias, mas a Revoluo do Sete deAbril de 1831 transferiu o poder s oligarquias rurais, federalistas e abrasileiradas.28 A exacerbao das tendncias federalistas levou ao separatismo, que, clara ou veladamente, motivou algumas das revoltas regenciais em especial a Farroupilha, que durou de 1835 a 1845 e resultou na proclamao de duas repblicas separadas no sul do pas, com repercusses na complexa geopoltica internacional da rea platina.29 Mesmo suprimida a Farroupilha, o Rio Grande do Sul manteve uma identidade regional distinta do resto do pas, tornando-se um fator de instabilidade poltica para o Imprio brasileiro e uma ameaa ao seu projeto de unidade territorial.30 Carvalho demonstrou, contudo, que, na maior parte do pas, o conflito intra-elite foi atenuado e o choque ideolgico, diludo, pela consolidao de uma elite poltica distinta, de carter nacional. Embora essa elite fosse recrutada principalmente a partir das oligarquias rurais, seu processo homogneo de educao e treinamento voltados construo do novo Estado traduzia-se em concepes polticas bastante similares e desvinculadas dos interesses de um ou outro setor da elite socioeconmica.31 A consolidao interna do Imprio ao longo da dcada de 1840, aliada expanso das exportaes cafeeiras, ao protecionismo tarifrio e liberao dos capitais antes investidos no trfico, traduziu-se em apogeu econmico na dcada de 1850. O capital acumulado pde ser investido dentro e fora do pas. Internamente, o investimento traduziu-se em modernizao: estradas de ferro e caminhos em geral, fbricas de todo tipo, telgrafo, bancos, tudo parecia anunciar uma nova realidade.32 Externamente, produziu o que AlmeidaIbid, p. 180. MAGNOLI, Demtrio. O Corpo da ptria: imaginao geogrfica e poltica externa no Brasil (1808-1912). So Paulo: Moderna, 1997, p. 87. 30 Figueiredo atribui essa identidade regional distinta a fatores muito especficos resultantes da construo histrica dos espaos rio-grandense e platino: o Rio Grande de So Pedro uma provncia perifrica marcada pela defesa do federalismo como movimento autonomista herdado pelos estancieiros e lderes polticos rio-grandenses no que interessava do projeto artiguista. FIGUEIREDO, Joana Bosak. O Rio Grande de So Pedro entre o Imprio do Brasil e o Prata: a identidade regional e o Estado nacional: 1851-1865. 2000. Dissertao (Mestrado em histria). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000, p. 43, 49. 31 CARVALHO, 2003, p. 229-235. 32 IGLESIAS, Francisco. Vida poltica, 1848/1868. In: HOLANDA, Srgio Buarque de. Histria geral da civilizao brasileira. 4. ed. So Paulo: Difel, 1985, tomo II, v. III, p. 35-38.28 29

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denominou a diplomacia dos pataces: a concesso de emprstimos financeiros ligados aos objetivos polticos do Brasil na regio, principalmente ao Uruguai e Confederao Argentina.33 Ainda que motivada por objetivos poltico-estratgicos, a diplomacia dos pataces no estava desvinculada de motivaes econmicas: o retorno do capital, remunerado por juros. Isso criava novos objetivos polticoestratgicos para o Imprio, pois a permanente instabilidade platina ameaava a segurana dos investimentos brasileiros. A pacificao dos Estados platinos e sua consolidao interna, assim como a influncia sobre os Governos devedores, tornavam-se, portanto, interesse nacional. Para manter o ritmo de sua expanso econmica, o Imprio necessitava consolidar seu territrio e interligar regies produtoras e rotas de escoamento, o que pressupunha a livre navegao do esturio platino, nica forma prtica de integrar a regio isolada do Mato Grosso ao restante do Imprio e viabilizar o comrcio brasileiro com o Paraguai e as provncias argentinas de Entre Ros e Corrientes. Tambm necessitava assegurar a produo de charque do sul do pas e do Uruguai, que sustentava sua mo de obra escrava. Todos esses elementos impulsionavam o Imprio a adotar uma postura ativa no Prata. As tendncias expansionistas brasileiras e argentinas convergiam sobre o Uruguai e, em menor escala, o Paraguai. Produto de tendncias federalistas e separatistas dentro do Vice-Reino do Rio da Prata, o movimento independentista uruguaio comeou em 1808, mas o territrio foi invadido pela Coroa portuguesa em 1811 e anexado ao Brasil em 1816. Em 1825, a ento chamada Cisplatina proclamou sua independncia e integrou-se s Provncias Unidas, com o apoio de Buenos Aires. Seguiu-se a Guerra da Cisplatina, que terminou em 1828, com a independncia do Uruguai. Mesmo assim, o Estado Oriental permaneceria o foco de convergncia das contradies platinas que desencadeariam a guerra entre o Paraguai e a Trplice Aliana.34 O comando da nova Repblica foi disputado por duas faces adversrias, denominadas blancos e colorados. No se tratava ainda de grupos identificados a ideologias ou interesses mais amplos, mas de simples33 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formao da diplomacia econmica do Brasil: as relaes econmicas internacionais no Imprio. So Paulo: Senac; Braslia: Funag, 2001, p. 197. 34 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: nova histria da Guerra do Paraguai. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 46.

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filiaes heterogneas e personalistas a um ou outro caudilho.35 medida, entretanto, que o conflito desenvolveu-se e transformou-se em uma Guerra Grande, que cindiu o Uruguai de 1839 e 1851, os partidos passaram a assumir identidades relacionadas ao tradicional conflito intra-elite: os colorados passaram a representar a burguesia liberal de Montevidu; os blancos, a oligarquia tradicional da campanha.36 Para fortalecerem-se em seus conflitos internos, os dois partidos buscavam alianas fora de suas fronteiras, com unitrios e federalistas argentinos, farroupilhas rio-grandenses e o Governo Imperial. Quando a Guerra Grande chegou ao fim, o pas estava devastado e tornara-se dependente do Imprio. Para tentar escapar dos permanentes conflitos platinos e da subordinao s influncias brasileiras e argentinas, desenvolveu-se a poltica de fusin, que propunha a conciliao partidria e o fim do caudilhismo com o objetivo de consolidar o pas e colocar os interesses nacionais acima dos interesses das faces internas e das naes estrangeiras.37 A poltica de fusin fracassou internamente na dcada de 1850, mas o blanco Bernardo Berro voltou a perseguir seus objetivos no plano externo no incio da dcada de 1860, agora buscando no Paraguai e nas provncias de Entre Ros e Corrientes um contrapeso ao Brasil e Argentina. A histria paraguaia no atravessou, em seu princpio, as mesmas turbulncias. O Paraguai proclamou-se uma Repblica em 1813 (embora aguardasse at 1842 para anunciar sua independncia formal). Jos Gaspar Rodriguez de Francia assumiu o controle do pas e adotou uma poltica de isolamento e autarquia para fortalecer sua ditadura e manter o Paraguai distante das ambies restauradoras buenairenses.38 A autocracia foi mantida ao longo dos dois Governos seguintes, de Carlos Antonio Lpez e Francisco Solano Lpez, mas o isolamento foi abandonado com a morte de Francia, em 1840.ARTEAGA, Juan Jos. Uruguay: breve histria contempornea. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2000, p. 70. 36 NAHUM, Benjamn. Breve historia del Uruguay independiente. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1999, p. 35. 37 A busca de autonomia face ao Imperio e Confederao foi um tema constante da poltica oriental. Suas razes estavam nas tentativas de Fructuoso Rivera de compor uma ampla aliana com a Repblica de Piratini, as provncias de Entre Ros e Corrientes e o Paraguai, com vistas formao de um Uruguay Mayor. CISNEROS, Andrs; ESCUD, Carlos (Orgs.). In: Historia general de las relaciones exteriores de la Repblica Argentina. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1998, parte I, tomo IV, p. 201-202. 38 O Estado tornou-se o principal agente da produo e do comrcio, fomentando ou regulamentando rigorosamente, todas as suas atividades. BANDEIRA, 1998, p. 79.35

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Para dinamizar sua economia e modernizar-se, o Paraguai precisava ampliar suas exportaes, mas o bloqueio imposto por Rosas livre navegao do Rio Paran dificultava o escoamento da produo agrcola paraguaia.39 Para alterar esse quadro, era necessrio participar da poltica platina. Com a abertura da Bacia do Prata livre navegao aps a queda de Rosas em 1852, o Paraguai ganhou acesso ao mar e pde, com isso, comear a implementar uma estratgia de crescimento para fora baseada nas exportaes de produtos primrios para os mercados regional e mundial. Os excedentes desse comrcio eram apropriados pelo Estado, em sua maior parte, e investidos na infra-estrutura interna e na mquina de guerra paraguaia.40 A reinsero do Paraguai na economia internacional o colocou, entretanto, em rota de coliso com o Brasil, com quem disputava uma faixa de terra fronteiria entre os dois pases, onde se localizava a rea mais rica dos ervatais do Paraguai.41 Para fortalecer sua posio negociadora em relao disputa territorial, o Governo paraguaio vinculava a livre navegao delimitao das fronteiras entre os dois pases, interesse vital do Brasil na regio.42 Como consequncia, as relaes entre os dois pases foram marcadas por permanentes tenses ligadas disputa fronteiria e questo da livre navegao dos rios Paran e Paraguai. A ascenso de Francisco Solano Lpez ao poder em 1862 significou uma poltica de presena paraguaia ainda maior no Prata.43 Para manter seu ritmo de crescimento, o Paraguai deveria ampliar seu comrcio e aumentar seus negcios, projetar-se cada vez mais para fora de suas fronteiras, [...] buscar seu Lebensraum.44 Como a rota de escoamento da produo

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. As relaes entre o Imprio do Brasil e a Repblica do Paraguai (1822-1889). 1989. Dissertao (Mestrado em histria). Universidade de Braslia, Braslia, 1989, p. 22-24. 40 DORATIOTO, 2002, p. 29-30. 41 Principal item de sua pauta de exportaes, o mate paraguaio era mais barato e de melhor qualidade que o brasileiro, e expandia seus mercados s custas das exportaes brasileiras. Quando o mercado internacional de mate comeou a dar sinais de saturao no incio da dcada de 1860, deprimindo os preos do produto, os dois pases foram duramente atingidos e intensificaram suas disputas comerciais. BANDEIRA, 1998, p. 110-112, 124. 42 DORATIOTO, op. cit., p. 32. 43 Lpez acreditava que o desenvolvimento paraguaio conferia-lhe o direito a uma posio mais gloriosa nos assuntos platinos. CAGNONI, Manlio; BORIS, Ivan. El Napolen del Plata: historia de una heroica guerra sudamericana. Barcelona: Noguer, 1972, p. 52. Para Moniz Bandeira, Lpez no passava de um poltico bisonho e inepto, que se acreditava habilssimo diplomata, alm de notvel general e moldava-se em Napoleo III. BANDEIRA, op. cit., p. 121-122. 44 Ibid, p. 120.39

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paraguaia atravessava as provncias argentinas de Entre Ros e Corrientes e terminava no porto de Montevidu, era imprescindvel que as provncias e o Uruguai fossem administrados por governos alinhados com o Paraguai. As pretenses uruguaias, paraguaias e federalistas argentinas passaram a convergir ao longo do eixo Assuno-Paran-Montevidu, que tambm ofereceria aos trs atores as dimenses territoriais e populacionais necessrias para sustentar a acumulao de capital em grande escala. Surgia, com isso, uma pulso contrria s foras expansionistas brasileiras e argentinas, motivando um novo choque. 1.2 O subsistema platino

Desde o descobrimento da Amrica at o incio do sculo XIX, a Amrica do Sul foi palco das rivalidades coloniais entre Portugal e Espanha. O Rio da Prata destacou-se como um dos pontos estratgicos de maior relevncia na disputa entre as duas Coroas, motivando uma grande batalha militar e diplomtica em torno da chamada Banda Oriental, que s terminaria efetivamente com o surgimento do Uruguai independente em 1828.45 Para reforar o equilbrio de poder no que se havia transformado em um subsistema platino de relaes internacionais, a Espanha fundou o Vice-Reino do Rio da Prata, que viria a abranger os territrios correspondentes futuramente a Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolvia. At o incio do processo de emancipao poltica das colnias latinoamericanas, o subsistema platino foi caracterizado pela bipolaridade entre o Brasil e o Vice-Reino. Quando as colnias espanholas comearam a emancipar-se, o plo espanhol implodiu-se e fragmentou-se em uma srie de potncias menores incapazes de fazer frente ao nico grande ator remanescente: o Brasil. Aproveitando-se de sua posio hegemnica na bacia platina, o Brasil (quela poca ainda ligado a Portugal) levou adiante uma poltica expansionista, com a invaso da Banda Oriental em 1811 e sua posterior anexao ao territrio nacional em 1816. Buenos Aires tambm perseguiu uma poltica expansionista com o objetivo de restaurar a integridade do antigo Vice-Reino sob sua autoridade, mas logo perdeu o controle sobre o Paraguai e o Alto Peru. Em razo dos conflitos45

SOARES, Jos lvaro Teixeira. Diplomacia do Imprio no Rio da Prata (at 1865). Rio de Janeiro: Brand, 1955, p. 7, 46.

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entre unitrios e federalistas, mesmo a unidade das provncias platinas remanescentes s foi alcanada em 1824, sob Bernardino Rivadavia, e consolidada a partir de 1829, sob Rosas. As Provncias Unidas voltaram, assim, a constituir um plo (ainda que instvel e assimtrico) oposto ao Brasil no subsistema platino de relaes internacionais, restaurando seu carter bipolar. 46 Com a emancipao poltica brasileira em 1822, foi o territrio brasileiro que se viu ameaado pela fragmentao interna. O novo Imprio reverteu sua poltica para o status quo e passou a combater movimentos secessionistas no Norte e no Sul do pas. Em 1825, a Provncia Cisplatina (antiga Banda Oriental) proclamou sua independncia e tornou-se o ponto de coliso entre a poltica de status quo brasileira e o imperialismo argentino.47 Sucedeu-se a Guerra da Cisplatina entre os dois pases, que terminou sem vencedor em 1828, com a independncia do Estado Oriental.48 A partir da dcada de 1830, conflitos internos entre blancos e colorados no Uruguai desestabilizaram toda a regio. Em 1836, os colorados, liderados por Fructuoso Rivera e apoiados pelos unitrios argentinos, desafiaram o Governo blanco de Manuel Oribe, dando incio Guerra Grande que durou at 1851. Oribe recorreu a Rosas, que, fortalecido pela crescente estabilidade interna argentina, assumia uma poltica cada vez mais expansionista. Com sua interveno, Rosas combatia a dissidncia unitria e ganhava a oportunidade de ampliar sua influncia sobre o Uruguai. O Imprio, por outro lado, desestabilizado pelas insurreies do perodo regencial, retraa-se no apenas poltica de status quo, mas de neutralismo.46 Cisneros e Escud argumentam que, tecnicamente, as Provncias Unidas no poderiam ser consideradas um Estado soberano, pois eram compostas de mini-Estados autnomos que apenas delegavam voluntariamente o exerccio de suas relaes exteriores Provincia de Buenos Aires, conservando seu poder de veto e a discricionariedade de renovar a delegao a cada ano ou no. CISNEROS e ESCUD, 1998, parte I, tomo IV, p. 159. Mesmo assim, do ponto de vista externo, as Provncias Unidas apresentavam-se como um ator unificado enquanto estivessem subordinadas ao comando de Buenos Aires. 47 Logo, a rivalidade entre Brasil e Argentina, que encontrava seus antecedentes nas disputas entre as Coroas de Portugal e Espanha e tambm se nutria da desconfiana mtua entre os regimes monrquico e republicano, refletia, sobretudo, a bipolaridade entre o Imprio e as Provncias Unidas no subsistema platino. 48 A Conveno Preliminar de Paz, celebrada graas mediao da Gr-Bretanha, obrigava o Imprio e as Provncias Unidas a garantirem e defenderem a integridade do novo Estado independente (embora no delimitasse suas fronteiras), e assegurava a livre navegao do Prata e de seus afluentes. CARVALHO, Carlos Delgado de. Histria diplomtica do Brasil. Ed. Fac-similar. Braslia: Senado Federal, 1998, p. 60.

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O conflito complicou-se pela interferncia da Frana, que decretou um bloqueio a Buenos Aires em 1838 com o fim de obter para seus sditos na Argentina os mesmos direitos concedidos aos britnicos. Rosas resistiu e utilizou-se da ameaa externa para consolidar seu poder interno, mas no conseguiu auxiliar Oribe, que foi derrotado e teve que entregar a Presidncia a Rivera. Levantado o bloqueio francs em 1840, Rosas retomou a ofensiva ao lado de Oribe e, em 1843, j dominava a campanha oriental e podia iniciar o stio de Montevidu. Julgando ameaados seus interesses mercantis e a independncia uruguaia, as potncias europeias (Gr-Bretanha e Frana) ameaaram uma nova interveno. Para evit-la, Rosas recorreu ao Brasil. Iniciado o Segundo Reinado, o Imprio voltava a estabilizar-se, mais ainda lutava para submeter os farroupilhas no sul do pas. Nesse contexto, uma aliana com Rosas contra os colorados e os unitrios que apoiavam a Repblica de Piratini passava a interessar ao Brasil. O Governo Imperial anuiu proposta argentina de aliana, mas Rosas negou-se a ratific-la, julgando que o perigo de interveno havia sido afastado.49 Esse artifcio de Rosas teve repercusso negativa no Brasil e levou o Governo Imperial a retomar sua poltica de status quo voltada conteno argentina. O Governo Imperial enviou uma misso diplomtica Europa para negociar com as potncias europeias uma possvel ao conjunta contra Rosas, tornou-se o primeiro pas a reconhecer oficialmente a independncia paraguaia50 e encerrou a Farroupilha com um acordo de anistia geral aos revoltosos. As relaes entre Brasil e Argentina comearam a deteriorar-se rapidamente, mas o conflito direto foi postergado por uma interveno anglo-francesa, em 1845. Quando a interveno foi encerrada sem sucesso, no final de 1849, o Imprio j estava consolidado internamente e podia aproveitar o vcuo deixado pelas potncias europeias para no apenas resistir s pretenses de Rosas, mas aumentar seu prprio poder. Passava-se da conteno ao intervencionismo, do status quo ao expansionismo.49 ARAJO, Joo Hermes Pereira de. Paran e a poltica externa. In: CORRA, Luiz Felipe de Seixas... [et al]. O Marqus de Paran. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2004, p. 81. 50 O Imprio sempre favorecera a independncia do Paraguai com o objetivo de reduzir o poder de Buenos Aires e afastar os rios Paraguai e Paran de seu controle absoluto. Com esse fim, j havia estabelecido relaes com o Paraguai em 1824, mas elas foram rompidas em razo de tenses resultantes da disputa territorial entre os dois pases. Morto Francia, o Paraguai tentou romper seu isolamento e proclamou sua independncia oficialmente em 1842. DORATIOTO, 2002, p. 24-27.

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O Imprio preparou-se com cautela para o conflito com Rosas: com a abolio do trfico negreiro e a ativao da diplomacia dinstica, foi afastado o perigo de interferncia britnica;51 com a diplomacia dos pataces e o contato estreito com os adversrio de Rosas, foi construda ao redor do Brasil uma poderosa rede de alianas que inclua o Governo colorado sitiado em Montevidu, as dissidncias entrerrianas e o Paraguai. O conflito comeou em 1851 e terminou no ano seguinte com a derrota de Rosas e Oribe. Vitorioso, o Imprio emergiu como nova potncia regional, temporariamente hegemnica. A interveno brasileira tambm resultou na reunificao uruguaia sob domnio colorado e em sua transformao em um quase-protetorado do Brasil pelos Tratados de 1851.52 Em 1852, um novo Governo uruguaio, presidido pelo blanco Juan Francisco Gir, tentou anular os tratados e distanciar-se da influncia brasileira, mas o Governo Imperial suspendeu seus crditos mensais e ofereceu apoio a seus adversrios.53 Gir caiu em 1853, depois que o Governo Imperial negou-se a interferir em sua defesa, e o colorado Venancio Flores assumiu a Presidncia da Repblica aps um breve triunvirato de transio.54 Na Argentina, a queda de Rosas resultou na transferncia das principais atribuies antes conferidas a Buenos Aires para Urquiza, Governador de Entre Ros. Buenos Aires recusou-se a aceitar a nova configurao de poderes e retirou-se da Confederao. Passaram a existir, com isso, dois Estados distintos: a Confederao Argentina e o Estado de Buenos Aires. A remoo de Rosas tambm resultou na reabertura do esturio platino ao livre trnsito fluvial, possibilitando o acesso do comrcio paraguaio ao mar. O Paraguai podia agora romper seu isolamento e desempenhar um papel mais ativo no Prata, com base na estratgia do crescimento para fora.

CERVO e BUENO, 2002, p. 115. Esses tratados determinavam: a soluo favorvel das pendncias fronteirias, o tratamento recproco de nao mais favorecida, a abolio dos impostos uruguaios sobre o trnsito de gado em p, a devoluo de escravos fugidos, a aliana perptua com o fim de preservar as respectivas independncias (e a do Paraguai) e a manuteno dos emprstimos pelo tempo que o Imprio julgasse necessrio. DORATIOTO, 1998, p. 190. 53 RRNE 1852, p. 27; SIVOLELLA, Cristina Angela Retta. Ao do Imprio sobre o Prata nos meados do sculo XIX e os Tratados de 1851. 1996. Dissertao (Mestrado em histria). Braslia: Universidade de Braslia, 1996, p. 66. 54 RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. 1864: o contexto platino e a interveno no Uruguai. 1979. Dissertao (Mestrado em histria). Universidade de Braslia, Braslia, 1979, p. 65-66.51 52

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O subsistema platino tornava-se mais complexo. Se antes, apesar da instabilidade interna na Argentina, era possvel consider-lo essencialmente bipolar, pois Uruguai e Paraguai eram atores menores (e este ltimo ainda mantinha-se isolado), agora o sistema tornava-se multipolar em razo da ciso na Confederao Argentina e da nova postura do Paraguai, que desenvolvia uma poderosa mquina de guerra e adotava uma poltica externa mais ativa.55 O principal foco de instabilidade do subsistema platino passou a ser o precrio modus vivendi entre os dois Estados argentinos, que, embora tenham coexistido pacificamente por algum tempo, no abriam mo da ambio final de reunificar o pas sob seu controle. Com esse fim, iniciaram uma guerra econmica em 1856, que logo se transformou em conflito armado. A tenso entre os dois Estados argentinos repercutiu em toda a regio, dando origem a novas alternativas de alinhamento, tornadas mais complexas em razo da multipolarizao do subsistema. Os unitrios de Buenos Aires sempre mantiveram laos estreitos com os colorados uruguaios, enquanto os federalistas que ento comandavam a Confederao Argentina costumavam alinhar-se com os blancos. Restava, agora, compor com o Brasil e o Paraguai. A Confederao tentou compor com ambos, mas logo percebeu que isso seria incompatvel com permanentes tenses entre os dois pases em razo da questo de limites e da livre navegao dos rios Paran e Paraguai. A dependncia econmica da Confederao em relao ao Brasil e sua superioridade de recursos recomendaram a opo pelo Brasil. Embora a ciso argentina pudesse interessar ao Brasil por razes estratgicas, os interesses econmicos brasileiros demandavam o apoio reunificao sob a Confederao, que ento poderia utilizar-se das rendas alfandegrias de Buenos Aires para pagar os emprstimos brasileiros.56 Alm disso, o Imprio desejava o apoio da Confederao em sua disputa com o Paraguai, que chegou beira de um conflito armado em 1856, quando o Paraguai finalmente cedeu e assinou um tratado garantindo a livre navegao do Rio Paraguai e a suspenso, por seis anos, da questo de limites. Mesmo assim, as tenses permaneceram, contribuindo para a assinatura de uma srie de tratados entre o Imprio e a Confederao nos anos de 1856 e 1857.57Durante o perodo de hegemonia brasileira no Prata, talvez fosse possvel falar em unipolaridade, mas a unipolaridade que eventualmente existiu no passou de um fator temporrio e jamais se mostrou forte o bastante ao ponto de sobrepor-se s rivalidades usuais entre os atores platinos. 56 BANDEIRA, 1998, p. 105-106. 57 DORATIOTO, 2002, p. 32-34.55

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No incio de 1858, o Brasil enviou uma misso especial ao Paraguai e forou Lpez a aceitar a livre navegao. A aproximao entre o Imprio e a Confederao tambm resultou em um realinhamento no Estado Oriental, onde o Brasil tradicionalmente apoiava os colorados. Enquanto o Governo blanco de Gabriel Antonio Pereira mantinha-se estreitamente vinculado aos interesses do Brasil e autorizava a criao de uma filial do Branco Mau em Montevidu, o Governo brasileiro retirava suas tropas do territrio uruguaio e negava apoio rebelio colorada de Csar Diaz, que terminou no fuzilamento dos rebeldes em Paso de Quinteros, em 1858.58 Em 1859, o Imprio e a Confederao chegaram a celebrar uma aliana militar, mas, suspensa a disputa com o Paraguai, o Brasil relutou em fazer novos emprstimos ou intervir diretamente no conflito argentino, o que levou Urquiza a rejeitar a aliana e voltar-se ao Paraguai. O Imprio comeava a isolar-se em meio s duas faces hostis que se desenhavam: de um lado, o Paraguai e a Confederao; de outro, Buenos Aires e os colorados uruguaios. Procurou, ento, aliviar as crescentes tenses oferecendo seus bons ofcios para intermediar a disputa entre Buenos Aires e a Confederao, mas Urquiza os rejeitou em favor de uma idntica proposta de Lpez.59 O isolamento do Imprio agravou-se com a vitria da Confederao na Batalha de Pavn, em 1859, que resultou na reintegrao de Buenos Aires, e a eleio do blanco Bernardo Berro, em 1860, que iniciou uma poltica autonomista visando abater a hegemonia do Brasil60 e estabelecer um novo sistema de equilbrio de poder regional a partir da aliana com o Paraguai e as provncias argentinas de Entre-Ros e Corrientes.61 Nessas circunstncias, tornava-se natural uma aliana entre a Confederao, o Uruguai e o Paraguai. A balana de poder platina voltou, contudo, a alterar-se no ano seguinte, quando BuenosAires rebelouse contra a Confederao e venceu as tropas de Urquiza na Batalha de Pavn.6258 Para Ribeiro, o Banco Mau era uma verdadeira filial da chancelaria brasileira, capaz de influir decisivamente na poltica interna uruguaia. RIBEIRO, 1979, p. 72. 59 Embora no desejasse a reunificao argentina, Lpez podia, com a mediao, evitar os riscos de uma aliana com a Confederao e ganhar prestgio internacional como rbitro das disputas platinas. Aps a Batalha de Cepeda, Solano Lpez participou dos entendimentos que resultaram na reintegrao de Buenos Aires Confederao. BANDEIRA, 1998, p. 106. 60 Ibid, p. 109. 61 DORATIOTO, 2002, p. 46. 62 Segundo Cisneros e Escud, no foi, na realidade, uma vitria, mas um acordo: incapaz de dominar Buenos Aires, Urquiza resignou-se e retirou-se do campo de batalha aps um acordo com Bartolom Mitre, Governador de Buenos Aires. Urquiza aceitava a reunificao sob a direo de Buenos Aires, mas resguardava os interesses provinciais. CISNEROS e ESCUD, 1998, parte I, tomo V, p. 81.

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Tentando implementar uma poltica externa independente e romper a postura pendular uruguaia diante da Argentina e do Brasil, o Governo blanco props uma aliana a Solano Lpez, que acabava de assumir o Governo paraguaio. Urquiza tambm desejava a mesma aliana para combater Mitre e enviou emissrios a Assuno quase simultaneamente. O presidente paraguaio evitou formalizar as alianas, mas manteve-as sempre mo, como instrumento para ampliar seu cacife para barganha junto Argentina e o Brasil.63 O problema para Lpez era que, para poder agir como fiel da balana entre os dois pases, sua rivalidade precisava ser mantida, mas, justamente medida que o Paraguai ampliava seu poder de barganha, a barganha tornava-se desnecessria, pois os interesses do Imprio e da Confederao passavam a convergir em oposio ao Paraguai. A convergncia de interesses abria uma nova perspectiva para as relaes entre Brasil e Argentina com base na hegemonia compartilhada entre os dois principais atores do Prata. O ponto de convergncia dos interesses dos dois pases seria o Uruguai, onde Flores desembarcou em 19 de abril de 1863, com apoio argentino, para desafiar o Governo blanco. O Governo oriental exigiu explicaes da Argentina, mas Mitre simplesmente negou qualquer envolvimento, apesar das evidncias em contrrio. Diante disso, Lpez tentou fazer uso de seu poder de barganha e interferiu no conflito exigindo explicaes e afirmando que o apoio da Argentina a Flores teria efeitos desastrosos sobre os interesses paraguaios. O Brasil, por sua vez, enviou seu ministro em Montevidu a Buenos Aires, com o objetivo de reconciliar a Argentina e o Uruguai.64 Aps oferecer explicaes ao Brasil por sua conduta e cientificar-se de que o Governo Imperial no se oporia poltica argentina, Mitre reiterou as explicaes dadas a Berro e afirmou que no conduziria sua poltica externa em funo dos interesses paraguaios. Buscando conter a deteriorao das relaes entre os dois pases, Mitre e Berro firmaram um protocolo comprometendo-se a solucionar suas divergncias pela via arbitral. Mitre props D. Pedro II como rbitro, mas Berro rejeitou a proposta e sugeriu Lpez, a quem Mitre tambm se ops. As tenses elevaram-se e acabaram

63 Lpez acreditava que a exacerbao gradual dos conflitos platinos criaria uma nova situao de equilbrio, do qual o Paraguai poderia tornar-se pea fundamental utilizando suas alternativas de aliana como poder de barganha. DORATIOTO, 2002, p. 46-49. 64 DORATIOTO, 2002, p. 49-50.

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resultando na ruptura de relaes diplomticas.65 Enquanto isso, a Guerra Civil uruguaia comeava a contaminar o Brasil, pois o apoio dos estancieiros riograndenses aos colorados os colocava em rota direta de choque com o Governo uruguaio. 1.3 Paradigmas de poltica interna e externa

O Imprio do Brasil era uma Monarquia constitucional, representada, conjuntamente, pelo Imperador e pela Assembleia Geral.66 Tratava-se de um sistema poltico do tipo orleanista, na terminologia de Duverger, forma intermediria entre a monarquia limitada e o parlamentarismo clssico em que o Governo dependia da dupla confiana do Chefe de Estado e do Parlamento.67 O sistema poltico era bipartidrio, mas com elevada flexibilidade. De um lado da balana, figurava o Partido Conservador; de outro, o Partido Liberal. Algumas vezes, os dois partidos conciliavam-se ou formavam associaes distintas; outras, enrijeciam-se e precipitavam violentas batalhas partidrias.68 O sistema partidrio que vigorou durante todo o Segundo Reinado surgiu na Regncia, a partir de uma ruptura na base do Partido Liberal que compunha o Governo, dando origem ao Partido Conservador (ento chamado regressista). O conhecido discurso atribudo a Bernardo Pereira de Vasconcelos, lder do novo partido, aponta para os princpios fundamentais dos dois partidos:Fui liberal, e ento a liberdade era nova no pas, estava nas aspiraes de todos, mas no nas leis, no nas ideias prticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porm, diverso o aspecto daIbid. A Assembleia Geral era um Parlamento bicameral, com Cmara de Deputados temporria e eletiva e Senado vitalcio, composto por membros indicados pelo Imperador a partir de listas trplices eletivas. Segundo Oliveira Torres, o Imperador, como chefe e smbolo do Estado, representava a vontade coletiva; os membros da Assembleia Nacional representavam o povo, os interesses divergentes e particulares. TORRES, Joo Camilo de Oliveira. A democracia coroada: teoria poltica do Imprio do Brasil. Petrpolis: Vozes, 1964, p. 72. 67 DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas polticos. Coimbra: Almedina, 1985, p. 140. 68 Na realidade, no eram partidos na concepo moderna do termo, mas grandes associaes de notveis, vinculados por interesses comuns, ideais semelhantes ou laos de amizade e parentesco, voltadas disputa de poder. Estavam mais prximos do que Duverger denominou grupos parlamentares: polticos de mesma tendncia reunidos com vistas ao comum. Ibid, p. 72.65 66

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sociedade: os princpios democrticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que ento corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganizao e pela anarquia. Como ento quis, quero hoje servi-la, quero salv-la, e por isso sou regressista.69

Muito se disse a respeito das semelhanas entre os membros dos dois partidos. Ficou famosa a frase de Holanda Cavalcanti: nada se assemelha mais a um saquarema [conservador] do que um luzia [liberal] no poder. 70 Havia, de fato, grandes similitudes entre os membros dos dois partidos, pois, como demonstrou Carvalho, pertenciam todos a uma elite poltica homognea.71 Apesar disso, a diferena entre os princpios fundamentais dos dois partidos traduzia-se em diferentes concepes sobre o papel do indivduo e do Estado e em diferentes plataformas de atuao para seus integrantes. No par analtico proposto por Ilmar Rohloff de Mattos, os liberais identificavam-se com os interesses privados (a Casa); os conservadores, com os interesses pblicos (o Estado). Os liberais concebiam a liberdade como conceito negativo e quantitativo: a liberdade seria tanto maior quanto menor fosse o poder do Estado. Os conservadores a concebiam como conceito positivo e qualitativo: a liberdade seria tanto melhor quanto maior fossea segurana proporcionada pelo poder do Estado. Os primeiros propunham a trplice identidade Liberdade Descentralizao Democracia; os segundos contrapunham Autoridade Centralizao Monarquia.72 Escrevendo em 1855, Justiniano Jos da Rocha descreveu a evoluo poltica do Imprio como processo quase dialtico de contraposio dos princpios democrtico e monrquico: (i) de 1822 a 1831, luta dos elementos monrquicos e democrticos; (ii) de 1831 a 1836, triunfo democrtico incontestado; (iii) de 1836 a 1840, reao monrquica; (iv) de 1840 a 1852, domnio do princpio monrquico; (v) a partir de 1855, transao entre os dois princpios.73 Aperiodizao de Justiniano merece duas observaes para tornar-se mais precisa e poder estender-se at 1865: no foram apenas os princpios monrquico e democrtico que se69 Apud NABUCO, Joaquim. Um estadista do Imprio. 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, v. I, p. 65. 70 Apud FAUSTO, 2002, p. 180. 71 CARVALHO, 2003, p. 230-231. 72 MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema: a formao do Estado imperial. 2. ed. So Paulo: Hucitec, 1990, p. 133-149. 73 ROCHA, Justiniano Jos da. Ao, reao, transao. In: MAGALHES JNIOR, R. Trs panfletrios do Segundo Reinado. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p. 165.

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contrapuseram, mas as trplices identidades a eles relacionadas; e a transao no se deu em iguais termos os princpios conservadores prevaleceram at 1862, e os liberais, aps um perodo de dois anos de transio, de 1864 em diante. As concepes de poltica externa no seguiam rigidamente os vnculos partidrios. Segundo Cervo, a conciliao em matria de poltica externa foi a grande conciliao do sculo XIX, que precedeu e sucedeu quela de que trata a historiografia. Em matria de poltica externa, no h partidos. O prprio Cervo reconhece, entretanto, que essa conciliao permanente dos partidos no eliminou por completo as sequelas naturais da vida partidria sobre a poltica externa, chegando mesmo a ocasionar o sacrifcio de influncias e personalidades aos caprichos de indivduos ou a interesses partidrios. 74 Por essa razo, torna-se til traar um paralelo entre poltica externa e poltica interna. Se foras liberais e conservadoras (embora os dois partidos ainda no existissem em sua forma posterior) conviveram em tenso ao longo do Primeiro Reinado, o Sete de Abril de 1831 levou preponderncia liberal, embora com a excluso de seus elementos mais exaltados.75 No plano da poltica externa, esse perodo correspondeu prevalncia do paradigma neutralista. Do ponto de vista terico, o princpio da no interveno era o que melhor se ajustava ao liberalismo ento prevalecente no pensamento poltico brasileiro, mas a adoo do paradigma neutralista no resultou apenas de concepes tericas, e sim de consideraes pragmticas. Se faltavam ao Brasil interesses concretos a buscar nas disputas platinas, tambm lhe faltavam os meios para concretiz-los. O resultado adverso na Guerra da Cisplatina havia demonstrado ao Brasil o risco elevado de participar das disputas platinas, desencorajando novas interferncias enquanto os interesses vitais do Imprio (a independncia do Uruguai e a livre navegao no esturio do Prata) no estivessem ameaados o que parecia improvvel, ao menos enquanto durasse a desagregao interna nas Provncias Unidas.76 Por outro lado, o sistema de tratadosCERVO, Amado Luiz. Interveno e neutralidade: doutrinas brasileiras para o Prata nos meados do sculo XIX. Revista brasileira de poltica internacional. Rio de Janeiro, ano XXVI, n. 101-104, p. 103-109, 1983. p. 112, 117. 75 Foi o perodo das grandes reformas liberais, como o Cdigo de Processo Criminal e o Ato Adicional. Tambm foi, por outro lado, o perodo das revoltas provinciais, que se alastraram por todo o pas, do Gro-Par at o Rio Grande do Sul. 76 CERVO e BUENO, 2002, p. 59. Alm disso, a maior ameaa aos interesses do Brasil naquele momento no parecia vir do Prata, mas do Reino Unido, em razo das crescentes presses para abolio do trfico negreiro.74

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comerciais desiguais com a Europa a que o Brasil se sujeitara para acelerar o reconhecimento de sua Independncia era extremamente gravoso ao errio e restringia sua margem de atuao diplomtica.77 Alm disso, no era possvel ao Brasil desenvolver uma poltica externa ativa quando o territrio nacional estava a ponto de fragmentar-se e seus recursos necessitavam ser direcionados pacificao interna. Esse contexto de dependncia externa e instabilidade interna precipitou a reao, nos planos interno e externo. Na poltica interna, o poder cessou de ser considerado o inimigo nato da sociedade, foi sendo aceito e invocado como o seu natural defensor, nas palavras de Justiniano.78 A reao teve como consequncia a queda do Regente liberal Diogo Antnio Feij, que perdeu sua base de sustentao e viu-se obrigado a renunciar em 1837, transmitindo a Regncia aos regressistas, na pessoa de Arajo Lima.79 Alijados do poder e descrentes no sistema poltico ainda instvel, os liberais passaram a adotar mecanismos externos disputa partidria para voltar ao Governo. Primeiro fizeram a Maioridade e derrubaram Arajo Lima, mas os conservadores recuperaram o poder no ano seguinte, ainda mais fortalecidos pela vitria monrquica. Recorreram, ento, luta armada, mas foram derrotados, primeiro em So Paulo (1842), depois em Pernambuco (1848-9). Chegaram mesmo a buscar uma conciliao com os conservadores, oferecendo-lhes postos em seus Ministrios, mas pouco ganharam alm de uma pequena dilao temporal.80 Quando o Gabinete Paula Sousa entregou sua renncia em 1848 aps o fracasso de seis Ministrios liberais sucessivos, ficou claro que o Partido Liberal estava exausto.81 Na poltica externa, a reao comeou em 1835, quando a Assembleia Geral recusou seu assentimento aprovao de novos tratados desiguais, eIbid. ROCHA, 1956, p. 190. 79 Os regressistas iniciaram um novo processo de reformas, que resultaria, segundo Iglesias, na destruio da obra do liberalismo. IGLESIAS, Francisco. Trajetria poltica do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 154. A reao conservadora tambm resultou no sufocamento das rebelies provinciais: at 1849, o pas estaria totalmente pacificado. 80 MERCADANTE, Paulo. A conscincia conservadora no Brasil: contribuio ao estudo da formao brasileira. Rio de Janeiro: Saga, 1965, p. 158. 81 De acordo com Oliveira Lima, os seis Ministrios liberais consecutivos encaravam com indiferena os conflitos de ideias e testemunhavam tamanha inrcia em matria de disciplinas que permitiam a discrdia lavrar no seio das maiorias parlamentares que os sustentavam. LIMA, Manuel de Oliveira. O Imprio brasileiro (1882-1889). Braslia: Universidade de Braslia, 1986, p. 40.77 78

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acentuou-se a partir de 1844, quando o Governo Imperial ops-se a renovar o tratado celebrado com a Gr-Bretanha e adotou uma nova poltica aduaneira fundada no protecionismo comercial (as Tarifas Alves Branco). Tratava-se de uma verdadeira reviso conceitual na diplomacia brasileira, que passava a reorientar-se da Europa para a Amrica por meio de uma nova poltica de tratados voltada ao estreitamento dos laos entre o Brasil e seus vizinhos.82 A reao manifestou-se igualmente em relao poltica de neutralidade no Prata, que comeava a ser considerada insuportvel, por ter convertido o Brasil em mero espectador diante das constantes ingerncias francobritnicas e das intenes expansionistas de Rosas, cada vez mais evidentes, alm de agravar a instabilidade interna, pois os farroupilhas buscavam apoio nas faces uruguaias.83 A inflexo da neutralidade inativa para a neutralidade ativa comeou em 1843, com Carneiro Leo, que aceitou a proposta de aliana de Rosas voltada pacificao do Uruguai e do Rio Grande do Sul.84 A negativa de Rosas ratificao do tratado de aliana obstou a transio imediata ao intervencionismo, mas o Imprio no retornou plena neutralidade. Os anos seguintes assistiram ao envio da Misso Abrantes Europa, ao reconhecimento da independncia paraguaia e pacificao do Rio Grande do Sul. Em 1847, chegou-se a falar em aliana com o Paraguai contra a Argentina, mas o parecer do Conselho de Estado, ainda fiel ao paradigma neutralista, foi contrrio.85 Seria necessrio o retorno dos conservadores ao Governo para que se concretizasse a mudana de paradigma. O retorno ocorreu em 1848, com Arajo Lima, ento Visconde de Olinda. Olinda formou um Ministrio dos mais fortes e mais homogneos que o pas j teve, mas permaneceu pouco tempo sua frente. Homem de outra poca, segundo Nabuco, Olinda permanecia neutralista e destoava da nova gerao conservadora, liderada por Eusbio de Queirs, Rodrigues Torres e Paulino Soares de Sousa, a Trindade Saquarema.86 Com a sada de Olinda, sucedido

ALMEIDA, 2001, p. 126, 133; CERVO, 1981, p. 26-29. Ibid, p. 50; CARVALHO, 1998, p. 67. Os primeiros sinais de mudana de perspectiva apareceram, na realidade, em 1837, quando o Governo submeteu ao Parlamento uma proposta de aliana com os blancos contra os colorados e os farroupilhas, mas ela foi rejeitada. CERVO, 1983, p. 112. 84 Id, 1981, p. 54-55; ARAJO, 2004, p. 76-77. 85 CERVO, 1983, p. 112-113. 86 NABUCO, 1997, v. I, p. 122.82 83

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pelo Visconde de Monte Alegre, a pasta dos Negcios Estrangeiros coube a Paulino. Paulino concebeu a nova poltica platina, fundada no paradigma intervencionista: Cumpria prevenir-nos, e antes que o governador de BuenosAires nos trouxesse a guerra, escolhendo para isso a ocasio que lhe fosse mais propcia, levar-lha.87 Celebraram-se as alianas com o Governo colorado de Montevidu, a provncia argentina de Entre Ros e o Paraguai, iniciou-se a diplomacia dos pataces, fez-se guerra a Rosas e Oribe. Quando o conflito terminou, os dois caudilhos haviam sido derrotados, o Uruguai tornara-se dependente do Imprio pelos Tratados de 1851, a Argentina estava enfraquecida e governada por um aliado (Urquiza) e o Paraguai se havia tornado outro aliado. O Brasil era hegemnico no Prata.88 O triunfo das reformas internas e da poltica externa do Gabinete OlindaMonte Alegre representou o apogeu da reao conservadora e a concretizao da hierarquizao ideolgica dos paradigmas: Representao Nacional [os saquaremas] opuseram a Soberania; a Vontade Nacional submeteram Ordem; ao Princpio Democrtico contrapuseram o Princpio Monrquico sempre vitoriosamente.89 Quando Monte Alegre entregou seu cargo em 1852, o trabalho da reao estava completo; o Imprio, pacificado; o Prata, controlado. A conciliao que os liberais buscaram na dcada de 1840 viria agora, mas sob a direo dos conservadores.90 Rodrigues Torres organizou novo Ministrio conservador, mas mais flexvel, com vistas a uma futura87 RRNE, 1852, p. 25. Paranhos, ento um jovem liberal, aplaudia a nova poltica platina nas pginas do Jornal do Commercio: Qualquer, porm, que seja a opinio dos adversrios do Governo sobre a marcha que tem seguido nossa poltica exterior, no estado a que chegou, no moralmente possvel que haja patriota to apaixonado que no veja a humilhao a que exporia o pas, os transtornos que lhe causaria, se sua voz se elevasse para condenar essa poltica. [...] A nossa questo com Oribe, tenente do ditador de Buenos Aires, uma questo de segurana para o presente e para todo o sempre; uma questo de progresso e civilizao para nossos vizinhos, para a humanidade em geral. Que brasileiro, sem estar possudo de um fanatismo que me custa a compreender seja possvel, se atrever a contrariar o Governo de seu pas em empenho to sagrado? [RIO BRANCO], Jos Maria da Silva Paranhos, [Visconde do]. Cartas ao amigo ausente. Braslia: Ministrio das Relaes Exteriores, 1953, p. 102-103. 88 Tambm no plano interno o Gabinete Olinda-Monte Alegre realizou importantes reformas: a abolio do trfico negreiro, a Lei de Terras e o Cdigo Comercial. 89 MATTOS, 1990, p. 152-153. 90 O Imperador prenunciou a conciliao partidria em sua Fala do Trono de 1851: esforcemonos pois em obter o concurso de todos para o bem de todos, preferindo discusso de princpios abstratos de poltica a dos remdios para as primeiras e imediatas necessidades do nosso pas. FT, 1977, p. 278.

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conciliao.91 Paulino, agora Visconde do Uruguai, permaneceu frente dos Estrangeiros e assegurou a continuidade da poltica externa intervencionista, contribuindo para a queda do Governo blanco presidido por Gir. O Gabinete desfez-se em 1853 e o Imperador chamou Carneiro Leo, ento Visconde de Paran, chefe conservador considerado o homem poltico de maior ascendente no pas,92 para presidir o Ministrio da Conciliao, combinando elementos conservadores e liberais. Haviam passado a ao e a reao, comeava agora a transao. frente de outro Gabinete forte e profcuo,93 Paran manteve a poltica intervencionista do Visconde do Uruguai, de quem havia sido o brao direito como negociador dos Tratados de 1851 e depois plenipotencirio em Montevidu. Seus executores, na pasta de Estrangeiros, foram primeiro Limpo de Abreu, depois Paranhos. Flores foi sustentado na Presidncia do Estado Oriental, celebraram-se os primeiros acordos com a Confederao Argentina, imps-se ao Paraguai a livre navegao dos rios Paraguai e Paran. Os maiores legados de Paran a transao e a reforma eleitoral pela Lei dos Crculos foram, entretanto, motivo de ciso dentro do Partido Conservador. Vendo na Conciliao simples amlgama indigesto de homens que conservam princpios opostos, os saquaremas retiraram-lhe seu apoio. 94 O Gabinete sustentou-se at a morte inesperada de Paran, em 1856, mas seu sucessor, o ento Marqus de Caxias, s conseguiu prolong-lo at as eleies de 1857. Os conservadores saram vitoriosos, mas os liberais ampliaram sua minoria, revigorada pela reforma eleitoral e pela partilha do poder. D. Pedro II continuava fiel ideia da Conciliao e tentou dar-lhe sequncia.95 Primeiro, com Olinda, que organizou um Ministrio ao lado do liberal Sousa Franco. No durou muito, pois a composio era por demais heterognea, mais uma coalizo que uma conciliao.96 Fez-se uma ltimaIGLESIAS, 1985, p. 25-26. NABUCO, 1997, v. I, p. 164. 93 Fez a reforma eleitoral e as reformas judicirias, suprimiu as entradas ilcitas de escravos, equilibrou a economia e realizou grandes obras pblicas. IGLESIAS, op. cit., p. 56-57. 94 IGLESIAS, 1985, p. 47-48. O termo saquaremas no empregado aqui em seu sentido amplo, como sinnimo de conservadores; mas em seu sentido restrito, referindo-se ala ortodoxa do Partido Conservador, comandada por Eusbio, Rodrigues Torres e Paulino. 95 LYRA, Heitor. Histria de D. Pedro II. So Paulo: Universidade de So Paulo, 1977, v. I, p. 188. 96 CALMON, Pedro. Histria de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1975, v. II, p. 550. Alm disso, a poltica emissionista de Sousa Franco resultou em baixa cambial em altos ndices inflacionrios, inviabilizando a continuidade do Ministrio.91 92

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tentativa com o Gabinete Abaet-Torres Homem, j mais conservador que conciliador, mas no sobreviveu crise econmica.97 Enquanto isso, a poltica externa intervencionista comeava a ser questionada. Apesar de todas as intervenes no Uruguai, no foram alcanados os resultados desejados. O prprio Visconde do Uruguai reconheceu, desapontado, que julgamos aumentar a nossa influncia e nada conseguimos seno aumentar despesas e colher decepes. No Parlamento, neutralistas como o Visconde de Jequitinhonha argumentavam que o intervencionismo gerava um ciclo catastrfico de violncia (interveno antipatia reao interveno) que s poderia ser rompido pela estrita neutralidade.98 Paranhos, antigo discpulo de Uruguai e Paran, advogava uma poltica intermediria como sntese entre a tese intervencionista e a anttese neutralista, que denominava neutralidade limitada: to desarrazoado seria aquelle que dissesse interveno sempre, subsdios sempre como aquelle que asseverasse nunca devemos intervir, nunca devemos prestar auxlio a governo algum. A neutralidade limitada de Paranhos abandonou concepes belicistas e civilizadoras para fundar seu intervencionismo na legitimidade e na defesa de interesses reais e concretos do Imprio.99 Apesar de todo o debate parlamentar, o paradigma intervencionista foi conservado pelos Gabinetes Olinda-Sousa Franco e Abaet-Torres Homem, ainda que matizado em razo das presses parlamentares dos neutralistas e da influncia de Paranhos, que ocupou a pasta de Estrangeiros no segundo Ministrio. Os atos de poltica externa mais importantes no perodo foram os tratados com a Confederao Argentina (inclusive uma aliana militar) e a Misso Paranhos de 1857 a 1858, que forou o Paraguai a abrir os rios Paraguai e Paran livre navegao. Se a Conciliao havia sobrevivido a Paran e arrastara-se com Olinda, agora estava morta. ngelo Ferraz organizou um Ministrio conservador puro com apoio dos saquaremas, reservou para si a pasta da Fazenda e debelou a crise financeira com medidas ortodoxas de restrio monetria. O Partido Conservador parecia reunificar-se, mas o chamado triunfo democrtico das eleies de 1860IGLESIAS, op. cit., p. 70. CERVO, 1981, p. 78, 83. 99 BOAVENTURA, Toms de Aquino. A poltica externa brasileira na concepo do Visconde do Rio Branco. 1986. Dissertao (Mestado em histria). Universidade de Braslia, Braslia, 1986, p. 70-72.97 98

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CONDICIONANTES DA DIPLOMACIA IMPERIAL

demonstrou que a longa gesto conservadora iniciada em 1848 comeava a dar sinais de esgotamento.Aps uma longa preponderncia do princpio daAutoridade, voltava a afirmar-se o princpio da Liberdade.100 Os conservadores ainda eram majoritrios, mas cada vez mais fragmentados, pois os Saquaremas no conseguiam controlar a ala moderada do partido, cada vez mais prxima dos liberais. Ferraz preferiu entregar seu cargo antes de enfrentar a nova Cmara. Caxias assumiu em seu lugar e organizou um novo Ministrio, mas no conseguiu remediar o cisma partidrio. Os moderados passaram oposio. A 20 de maio de 1862, Nabuco de Arajo fez um discurso veemente condenado o uti possidetis de quatorze anos do Partido Conservador e reclamando a criao de um novo partido, unindo liberais e moderados em torno de novas ideias.101 No dia seguinte, a Cmara derrubou o Governo por maioria de um voto em emenda ao projeto de resposta fala do trono proposta por Zacarias de Gis e Vasconcelos. O Imperador negou o pedido de dissoluo de Caxias e o Ministrio foi obrigado a retirar-se. Era o fim da hegemonia conservadora, o fim do tempo saquarema. Era a aurora da Liga Progressista, da nova Conciliao, agora mais inclinada ao liberalismo.102 O Imperador encarregou Zacarias de formar o novo Ministrio, mas foi derrubado em trs dias pela Cmara e depois sarcasticamente apelidado o Ministrio dosAnjinhos. O Parlamento estava dividido em duas foras antagnicas e equivalentes nenhuma delas, porm, com meios para governar.103 Zacarias pediu uma dissoluo, mas D. Pedro II tambm a negou. Voltou a chamar Olinda, que organizou um Ministrio aparentemente neutro, com antigas figuras polticas j sem grandes vnculos partidrios, que ao menos conseguiam fazer-se aceitar a ambos os partidos e adiar por algum tempo a dissoluo. 104A mudana de paradigmas foi um fator inegvel nas eleies de 1860, mas seu resultado no pode ser justificado apenas em termos ideolgicos. Na realidade, os liberais haviam consolidado suas bases de apoio durante a Conciliao e o Gabinete no conseguiu, no curto espao de tempo que antecedeu as eleies, reativar os mecanismos tradicionais de manipulao eleitoral. BEIGUELMAN, Paula. Formao poltica do Brasil. 2. ed. So Paulo: Pioneira, 1976, p. 97. 101 Apud NABUCO, 1997, v. I, p. 431-437. 102 IGLESIAS, 1993, p. 166. Os princpios da Liga Progressista eram, de fato, liberais, porm moderados. Falava-se em regenerao do sistema representativo e parlamentar, mas no em eleio direta; propunha-se a descentralizao administrativa, no a poltica; discutiam-se limitaes ao Poder Moderador, jamais a Repblica. MELO, Amrico Brasiliense de Almeida. Os programas dos partidos e o Segundo Imprio. Braslia: Senado Federal; Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1979, p. 26-27. 103 BEIGUELMAN, op. cit., p. 99. 104 Nabuco chamou ateno para a extrema ductibilidade poltica de Olinda, que, de fundador do Partido Conservador, agora j se passava quase por ligueiro. NABUCO, 1997, v. I, p. 363.100

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CESAR DE OLIVEIRA LIMA BARRIO

Na poltica externa, o Gabinete retomou o neutralismo, mas no foi capaz de definir uma linha clara. Da mesma forma que o iderio da Ordem na poltica interna, o intervencionismo externo tambm se havia gasto. Sinimbu no Gabinete Ferraz e trs diferentes Ministros no Gabinete Caxias-Paranhos haviam tentado retomar o paradigma intervencionista, com alguns matizes moderados, mas os resultados no foram satisfatrios: o Imprio se indisps com o Paraguai, os federalistas argentinos e os blancos uruguaios sem ganhar a amizade dos unitrios buenairenses nem dos colorados uruguaios. Era preciso redefinir os paradigmas de poltica externa, mas Olinda e Abrantes (Ministro de Estrangeiros), velhas figuras do Primeiro Reinado em um Gabinete de transio no eram as pessoas certas para faz-lo. A debilidade da poltica externa do Ministrio foi demonstrada pela Questo Christie, em que o Ministrio foi considerado incapaz de responder altura s demandas exageradas formuladas pelo Ministro britnico.105 No Prata, o Gabinete guardou a neutralidade do Imprio frente Guerra Civil uruguaia e desinteligncia entre o Estado Oriental e a Confederao, mas tentou aliviar as tenses com a Misso Loureiro, oferecendo o concurso do Imprio para a reconciliao entre os dois pases.

A Questo Christie nasceu de um desentendimento entre o Governo Imperial e o Ministro britnico no Rio de Janeiro, William Dougall Christie, em razo de dois incidentes de pequena importncia (a pilhagem da carga de um navio britnico naufragado na costa brasileira e a priso de trs oficiais britnicos embriagados no Rio de Janeiro) e quase levou os dois pases a um conflito armado. Segundo Lyra, Abrantes no se dava conta da gravidade da situao, fazia pouco caso e preferia uma interveno particular de Mau junto aos ingleses efetiva resposta do Governo Imperial. O prprio Imperador o considerou displicente, assim como Olinda. O nico que parecia corresponder gravidade da situao era Sinimbu (ento Ministro da Justia, que havia ocupado a pasta de Estrangeiros no Gabinete Ferraz), que no escondia sua desaprovao atitude do Ministrio e ameaava renunciar se a proposta de Mau fosse aceita. Foi, no fundo, o Imperador que deu alguma linha atuao do Gabinete, rejeitando a interveno de Mau e opondo-se s ameaas britnicas. LYRA, 1977, v. I, p. 209. Sampaio Vianna, escrevendo ao Baro de Cotegipe poca dos eventos, demonstrou a franca disparidade entre a atuao do Ministrio e a opinio pblica que predominava na Corte: A verdade que a populao que se mostrava desde o princpio da questo na altura que lhe competia, no aceitou com satisfao o desenlace, se tal nome merece. Acrescentava, ainda, que, se alguma energia e dignidade se mostrou no princpio foi devido ao Imperador, o nico brasileiro do governo, que no gostou muito do desfecho da questo. Apud PINHO, Wanderley. Cotegipe e seu tempo: primeira phase (1815-1867). Ed. Illustrada. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p. 678.105

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Captulo II - A interveno no Uruguai

Este captulo tem por objetivo analisar a conjuntura imediata que ensejou a Misso Paranhos. Com esse fim, procurou-se compreender a interao entre a poltica interna do Governo Imperial e sua ao diplomtica no Rio da Prat