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r Território e reestruturação produtiva elementos para a discussão Francisco Fransualdo Azevedo Eliseu Savério Sposito Organizadores editora

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Território e reestruturação produtiva

elementos para a discussão

Francisco Fransualdo Azevedo Eliseu Savério Sposito

Organizadores

editora

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Território e reestruturação produtiva

elementos para a discussão

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editora

Editora

Conselho Editorial

Revisão

Diagramação Eletrônica e capa

Rejane Andréa Matias Alvares Bay

Francisco Fransualdo de Azevedo Celso Donizete Locatel Evaneide Maria de Melo Márcia da SilvaAlessandra Cardozo de FreitasMárcio Adriano de AzevedoJosé Evangelista FagundesHelder Alexandre Medeiros de MacedoJúlio César Rosa de AraújoSamuel LimaSilvano Pereira de AraújoDilma Felizardo

Os autores

Caule de Papiro

Catalogação da Publicação na Fonte.Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Território e reestruturação produtiva: elementos para a discussão / Francisco Fransualdo Azevedo, Eliseu Savério Sposito (Organizadores). – Natal : Caule de papiro, 2016.

356p.

ISBN 978-85-92622-00-8

1. Geografia humana – Rio Grande do Norte. 2. Agricultura - Rio Grande do Norte. 3. Pecuária - Rio Grande do Norte. 4. Economia - Rio Grande do Norte. I. Azevedo, Francisco Fransualdo. II. Sposito, Eliseu Savério. III. Título.

RN/BSE/CCHLA CDU911.3(813.2)

Caule de Papiro Gráfica e EditoraRua Serra do Mel, 7989, Cj. Cidade Satélite, Pitimbu

CEP 59.068-170 | Natal/RN | Brasile-mail: [email protected]

Telefone: (84) 3218 4626

Todos os direitos desta edição reservados aos autores. A violação dos direitos do autor (Lei n. 9610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

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Território e reestruturação produtiva

elementos para a discussão

Francisco Fransualdo Azevedo Eliseu Savério Sposito

Organizadores

editora

Natal, 2016

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Sumário

Apresentação ...............................................................................7Francisco Fransualdo AzevedoEliseu Savério Sposito

Território, técnica e reestruturação produtiva da pecuária no Rio Grande do Norte .....................................................................11Rafael Pereira da Silva

As problemáticas da implantação do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi, Rio Grande do Norte ..........................................43Flávio de Arruda SaronAntonio Nivaldo Hespanhol

Uso do território, reorganizações produtivas e economia solidária no Rio Grande do Norte ...............................................71Leandro de Castro LimaCelso Donizete Locatel

A tecnificação da agricultura no Rio Grande do Norte e os agentes sociais envolvidos ..........................................................101Fernanda Laize Silva de LimaCelso Donizete Locatel

Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte: elementos de uma investigação ....................................123Raquel Silva dos Anjos

Problematizando o uso do território do Seridó Potiguar pelo circuito espacial da produção têxtil ..........................................141Igor Rasec Batista de Azevedo

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A Ceasa-RN na região metropolitana de Natal interações espaciais e circuitos da economia urbana ...............................159Thiago Augusto Nogueira de Queiroz

Do ócio ao negócio e meio de sobrevivência: o circuito inferior da economia na Praia de Ponta Negra.......................................193Thiago Belo de MedeirosFrancisco Fransualdo de Azevedo

Territórios quilombolas e o direito à propriedade coletiva das ter-ras: entraves e avanços dos processos de titulação dos grupos qui-lombolas pêga e arrojado no estado do Rio Grande do Norte ...225Camila da Silva PereiraAlessandro Dozena

Pobreza e desigualdades socioterritoriais no município de Pau dos Ferros/RN: estudo de caso a partir do Bairro Manoel Deodato .........................................................................................257Francisca Elizonete de Souza Lima

Dinâmica espacial da atividade industrial: a indústria de transformação no Vale do Paraíba Paulista .......................... 289Ítalo Franco Ribeiro

Em busca de um território do desenvolvimento: análise do estágio do PROCAD .................................................................317Allain Wilham Silva de Oliveira

Reestruturação produtiva e mundo do trabalho: uma análise das contradições entre o desenvolvimento das forças produti-vas e as relações de produção capitalistas ...............................331Nildo Aparecido de Melo

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Apresentação

Francisco Fransualdo Azevedo Eliseu Savério Sposito

O conjunto de textos apresentados nesta coletânea resulta de teses e dissertações desenvolvidas no âmbito dos Programas de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita, Campus de Presidente Prudente (SP). Os textos têm relação direta com o Projeto de Pesquisa desenvolvido no período de 2012 a 2016, intitulado Casadinho/PROCAD “Reestruturação produtiva e dinâmica urbano-regional no Rio Grande do Norte (1990-2010)”, desenvolvido por ambas as instituições, versando sobre as nuances do processo de reestruturação produtiva e territorial em curso no Brasil e no Rio Grande do Norte. Dada a complexidade desse processo, as análises apresentadas versam sobre realidades intrínsecas às transformações ocorridas nas ati-vidades agrícolas, industriais, comércio, serviços, turismo, enfim, sobre processos diversos, enfatizando também seus reflexos na dinâmica urbana e regional, bem como os seus desdobramentos nas esferas sociais e no mundo do trabalho.

Dentre os trabalhos sobre o processo de reestruturação das atividades agrícolas, destacam-se as leituras sobre o uso crescente de novas máquinas e técnicas na prática da pecuá-ria, as problemáticas derivadas da implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, a tecnificação da agricultura no Rio Grande do Norte e os agentes sociais diretamente envolvidos

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Território e reestruturação produtiva

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nesse processo e as redefinições ocorridas no circuito espacial de produção da mandioca no território potiguar, assim como o papel da economia solidária na emergência de novas formas de organização do trabalho, sobretudo nas áreas rurais.

Discutindo questões ligadas a cidade à luz da teoria dos circuitos da economia urbana, apresentam-se problematizações sobre o conjunto de interações espaciais resultantes da comercia-lização de diversos produtos, em especial hortifrutigranjeiros, realizada na Central de Abastecimento do Rio Grande do Norte e uma leitura da atividade turística na Praia de Ponta Negra a partir das lógicas contra-hegemônicas do território, adotadas pelos agentes do circuito inferior da economia.

Com o intuito de compreender as nuances do processo de reestruturação produtiva no contexto da atividade industrial, lançam-se interpretações sobre o uso do território pelo circuito espacial produtivo da indústria têxtil na região do Seridó poti-guar, assim como sobre as dinâmicas espaciais e transformações recentes da indústria na área do Vale do Paraíba em São Paulo.

Com abordagem territorial ligada à “política”, destacam-se os conflitos inerentes ao processo de titulação das terras quilom-bolas no Rio Grande do Norte, particularmente nas comunidades Pêga e Arrojado, localizadas no município de Portalegre. Ademais, apresenta-se uma leitura sobre o quadro de desigualdades socio-territoriais, ressaltando os desdobramentos de políticas sociais a exemplo do Programa Bolsa Família no combate às desigualdades socioespacias.

Há, também, texto que não trabalha o Rio Grande do Norte, mas que apresenta uma discussão sobre as contradições postas entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção inerentes ao modo de produção capitalista, as quais refletem diretamente sobre as condições de trabalho e sobre as condições de vida dos trabalhadores.

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Francisco Fransualdo Azevedo - Eliseu Savério Sposito (Orgs.)

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Destacando as contribuições do programa de coopera-ção acadêmica firmado entre a UFRN e a UNESP de Presidente Prudente no largo de quatro anos, há, no final do livro, um texto que descreve a experiência vivenciada durante a realização da missão de estudos realizada junto ao PPGe/UFRN, lançando mão das ideias de desenvolvimento e inovação socioespacial para compreender a inserção do Rio Grande do Norte no mercado global de comercialização de frutas tropicais.

As contribuições que fazem parte deste livro são, portanto, os resultados positivos de um intercâmbio que permitiu a mobi-lidade de pesquisadores e alunos (de graduação e pós-graduação) que estabeleceram diálogos producentes para a compreensão e explicação da realidade potiguar, permitiram a formação e o crescimento intelectual de inúmeros estudantes e propiciou aos pesquisadores o ir e vir dos trabalhos de campo, debates e refinamento de ideias e teorias. É com esse balanço positivo que, esperamos, o leitor possa ler os textos, dialogar com eles e contribuir, com suas ideias em confronto ou complementação, para o aprimoramento do conhecimento geográfico no Brasil.

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Território, técnica e reestruturação produtiva da pecuária no

Rio Grande do Norte1

Rafael Pereira da Silva

Introdução

O desenvolvimento da pecuária assim como a produção da cana de açúcar, mineração e a pratica da cotonicultura constituíram as bases do processo de formação econômica e territorial do Rio Grande do Norte, sendo essa primeira uma das principais atividades produtivas indutoras da ocupação e povoamento do interior desta unidade da federação (ANDRADE, 1981).

Neste contexto histórico a pecuária tinha como principais finalidades o fornecimento de força motriz para os engenhos de cana de açúcar localizados no litoral oriental do Rio Grande do Norte, bem como o abastecimento alimentar da população residente no estado, sobretudo dos sertanejos.

Dada a sua importância e dinamicidade a pecuária contri-buiu ainda para a dinamização de outras atividades produtivas

1 Este texto é parte das reflexões empreendidas na construção da dis-sertação intitulada “Produção do espaço e reestruturação produtiva do setor de laticínios no estado do Rio Grande do Norte”, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobre orientação do professor Dr. Francisco Fransualdo de Azevedo.

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Território, técnica e reestruturação produtiva da pecuária no Rio Grande do Norte

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a ela relacionada, tais como a criação das oficinas de carne seca, as quais se concentravam nos municípios de Mossoró e Assú, e a expansão das salinas, estas localizadas, sobretudo nos municípios de Macau e Mossoró (SANTOS, 2010).

Em decorrência de múltiplos eventos e de processos histó-ricos que levaram a derrocada dos engenhos de cana de açúcar, bem como ao fechamento das oficinas de carne seca, o perfil da pecuária potiguar modifica-se, passando a ter como principal subproduto o leite bovino, o qual foi por muitos anos, destinado ao consumo in natura e a produção de derivados lácteos arte-sanais, especialmente o queijo, seja de coalho ou de manteiga (AZEVEDO, 2005).

Desde a década de 1990, a pecuária leiteira tem passado por muitas mudanças, sejam em decorrência da incorporação crescente de novos objetos técnicos ou de técnicas de produção, ou em virtude da formulação de políticas públicas que visam a fortalecimento e industrialização do setor de laticínios, a exemplo do Programa do Leite Potiguar.

A partir do exposto, define-se como objetivo do presente texto, discutir o uso da técnica no contexto do processo de rees-truturação produtiva da pecuária no Rio Grande do Norte. Para a construção da análise proposta adotou-se como variáveis o uso de ordenhadeiras mecânicas, tanques de granelização, inseminação artificial, transferência de embrião, confinamento e rastreamento de bovinos.

Para o cumprimento do objetivo proposto, adotou-se como procedimentos metodológicos, a realização de pesquisa bibliográfica sobre os conceitos de território, técnica e rees-truturação produtiva. Paralelamente efetuou-se a obtenção de dados secundários junto ao banco de dados secundários junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), parti-cularmente os dados referentes ao Censo Agropecuário de 2006. Os dados coletados serão apresentados por meio de mapas, nos

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Rafael Pereira da Silva

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quais apresenta-se a distribuição espacial de objetos técnicos empregados na pecuária.

O texto que se segue apresenta-se estruturado em três seções, nas quais se aborda respectivamente, a discussão teórico-conceitual sobre a relação existente entre o território, o uso da técnica o processo de restruturação produtiva, seguida de breve análise sobre o uso crescente das técnicas nos processos produti-vos agrícolas, sobretudo com a modernização e industrialização da agricultura, e por fim buscar-se-á refletir sobre o uso recente da técnica e da tecnologia na pecuária norte-rio-grandense.

As reflexões empreendidas revelam que o uso da técnica e da tecnologia na pratica da pecuária ocorre de forma seletiva, acentuando-se sobre áreas especificas do território potiguar, contribuindo desse modo para um acirramento das desigualdades regionais, no interior do estado.

Território, técnica e reestruturação produtiva: breves apontamentos teórico-conceituais

Tal como os de conceitos de espaço, paisagem, região e lugar, o território também apresenta-se como um dos conceitos fundantes da ciência geográfica. Este conjunto de conceitos possuem características que os tornam duplamente comple-xos, pois são a um só tempo, o resultado de abstrações teóricas conceituais, ainda que possuam forte vinculação com dados da realidade empírico-concreta.

Ao longo dos últimos anos, diversos autores tem se dedicado ao desenvolvimento de reflexões teóricas-conceituais acerca do referido conceito, dentre os quais destacam-se: Raffestin (1993), Gotmam (2012), Saquet (2010-2011) e Santos (2000-2005).

As leituras e apreciações das obras anteriormente mencio-nadas evidenciam que as discussões sobre o conceito de território têm sido efetuadas a partir de três vertentes analíticas: as relações de poder (o território enquanto arena de conflitos e disputas), a

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Território, técnica e reestruturação produtiva da pecuária no Rio Grande do Norte

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dimensão político-administrativa (Território Nacional - Estados nacionais) e a partir da análise de seus diferentes usos (território usado).

Ao se discutir o conceito de território é imprescindível, que se recorra à obra de Claude Raffestin, um dos pioneiros na elaboração de formulações teóricas que tem como foco o referido conceito. Ao se analisar o conceito por ele proposto, percebe-se com clareza a distinção existente entre os conceitos de espaço e território, pois como esclarece, o território é

um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e infor-mação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder. [...] o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder [...] (RAFFESTIN, 1993, p. 144).

Partindo desta compreensão percebe-se que o processo de definição dos territórios e, por conseguinte das territoria-lidades, se dão por meio da criação das estruturas territoriais, as quais definem a produção e a configuração territorial2

de um Estado Nacional ou unidade da federação (RAFFESTIN, 2009). Nesse sentido, Raffestin (2009, p.26), elucida que “a pro-dução territorial é um processo complexo que devemos aprender a descrever e a entender para reproduzi-lo ou modificá-lo através do planejamento territorial, com o objetivo de aperfeiçoá-lo e/ou de o projetar.”

É valido ressaltar que o processo de produção das estruturas territoriais, assim como o de organização do espaço geográfico, é um processo ininterrupto, nunca acabado, jamais concluído. Por assim ser, “a produção territorial sempre tem um ponto

2 De acordo com Santos (2012, p.84) “seja qual for o país e o estágio de seu desenvolvimento, há sempre nele uma configuração territorial formada pela constelação de recursos naturais, lagos, rios, planícies, montanhas e florestas e também de recursos criados: estradas de ferro e de rodagem, condutos de toda ordem, barragens, açudes, cidades, o que for”.

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Rafael Pereira da Silva

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de partida que nunca é ileso das ações do passado. O processo territorial desenvolveu-se no tempo, partindo sempre de uma forma precedente, de outro estado de natureza ou de outro tipo de território” (RAFFESTIN, 2009, p. 31).

A produção das estruturas territoriais possui estreita vinculação com a técnica, haja vista que essas primeiras estão comumente associadas à instalação de objetos técnicos no territó-rio, sejam com a finalidade de viabilizar o processo de circulação de mercadorias, pessoas e capital, a exemplo das rodovias e ferroviais, ou com o intuito de dinamizar determinadores ramos produtivos, seja a partir da criação dos parques industriais ou complexos agroindustriais.

A estas materialidades dispostas no território, Santos (2009, p. 61) dará a denominação de fixos, os quais englobam “os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condições sociais e redefinem cada lugar”.

Indiscutivelmente, o processo de reestruturação produtiva, possui uma estreita relação com o território e com a técnica, uma vez que este é gerador e dependente da emergência de novas materialidades e formas de uso do território, condizentes com os atuais mecanismos de reprodução ampliada e acumulação acelerada do capital.

Nesse sentido assevera-se que não há processo de rees-truturação produtiva, seja na escala da economia mundial ou de um ramo produtivo, que não suscite a adoção de novas técnicas (produtivas, organizacionais, ou de gestão), criação de novas estruturas territoriais, bem como em novas formas de uso do território.

Ao refletir sobre a ocorrência do processo de reestruturação produtiva, Gomes (2011, p.56) é enfática ao afirmar que este pre-cisa ser analisado “como sendo um processo de mudança espacial,

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Território, técnica e reestruturação produtiva da pecuária no Rio Grande do Norte

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social, tecnológica e organizacional. Partimos da proposição de que a reestruturação tem ritmos, movimentos e temporalidades”. Nesse sentido apreende-se que a reestruturação produtiva não deve ser minimizada a incorporação de novas técnicas, ainda que este seja um dos seus elementos fundamentais, mas sim compreendida a partir do movimento da totalidade.

De acordo com Lencioni (2003), a reestruturação produtiva deve ser sempre analisada em uma perspectiva processual, de modo que esta não seja reduzida a falsa ideia de sobreposição de estruturas produtivas modernas, em substituição a estruturas produtivas herdadas de outros períodos históricos, sejam estes pretéritos ou relativamente recentes, ainda que a reestruturação seja sempre a caracterizada pelo advento de uma “estruturação nova que se impõe à antiga” (LENCIONI, 2003, p.02)

Nesse sentido a referida autora, assevera que o

processo de reestruturação transcendem à soma das proprieda-des de suas partes constitutivas, pois ela é produto da história e, assim, contém descompassos descontinuidades. Ela incorpora o tempo da reestruturação, mas também o tempo do passado que se faz presente e anuncia o tempo do futuro. Em outros termos, há na reestruturação que não foram alcançados pelo processo do presente, mas que estão ali contidos, revelando um processo cuja dinâmica é dada pelo novo convivendo com o velho (LENCIONI, 2003, p. 02).

O processo de reestruturação produtiva, o surgimento de novas técnicas, a fixação de novas formas materiais no território, assim como a multiplicidade de formas de articulação entre os lugares, tem possibilitado que o sistema capitalista desloque espacialmente os centros financeiros e de produção de mercado-rias, de modos a minimizar os efeitos das crises que ciclicamente incidem sobre o modo de produção vigente.

Ainda que os estudos sobre a reestruturação produtiva deem relevo a ocorrência desse fenômeno no âmbito as atividades urbanas-industriais, é valido reconhecer que este afeta também a dinâmica das áreas rurais, sobretudo a partir da adoção de

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Rafael Pereira da Silva

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pacotes tecnológicos, a exemplo dos propagados por meio da revolução verde, os quais em muito influenciaram o processo de modernização da agricultura brasileira.

De acordo com Silva (1996) o conjunto de mudanças ocorri-das na agricultura brasileira foi potencializado, sobretudo a partir de inovações de natureza química, mecânica e biotecnológica, cada uma destas apresentando especificidades, ainda que entre as mesmas existam inúmeras correlações e interdependências.

De acordo com Silva (1996) as inovações químicas caracte-rizaram-se pela massificação do uso de agrotóxicos, fertilizantes, adubos, corretivos de solo, pesticidas (herbicidas, inseticidas, fungicidas, bactericidas e rodenticidas) e defensivos químicos de forma geral. As Inovações mecânicas são verificadas sobre-maneira através do uso crescente de maquinas agrícolas tais como tratores, semeadeiras, colheitadeiras, pulverizadores e subsoladores (SILVA, 1996).

Por fim as inovações biotecnológicas, as quais resultam da fusão entre os conhecimentos científicos e tecnológicos apli-cados à prática agrícola, estas permitindo que se efetuasse o melhoramento genético das espécies, descobertas de vacinas e medicações, a criação e difusão dos transgênicos, a inseminação artificial e transferência de embrião em espécies animais, dentre outros fatos (SILVA, 1996).

A técnica e sua incorporação aos processos produtivos agricolas

Historicamente a técnica se constituiu em um vetor do processo de modernização das atividades econômicas, bem como num fator primordial no contexto da reestruturação produtiva e espacial, eventos indissociáveis que continuamente dão origem a novas formas espaciais ou redefinem funcionalidades previa-mente determinadas, impulsionando desse modo um conjunto de mudanças na organização espacial do sistema mundo.

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Território, técnica e reestruturação produtiva da pecuária no Rio Grande do Norte

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Embora sejamos levados a pensar que o uso e o desenvol-vimento da técnica, são eventos recentes, tal proposição não é verídica, sendo recente apenas o status e a rapidez com que os artefatos técnicos tem se difundido sobre o território, condicio-nando as formas de vida e reprodução socioeconômicas possíveis de serem efetuadas nos diferentes lugares (SANTOS, 2008).

De acordo com as reflexões desenvolvidas por Ellul (1968), a história de desenvolvimento do homem é, em certa medida, uma cronologia da técnica, na medida em que toda a relação estabelecida entre o homem e seu espaço de vivencia são relações mediadas pelo uso de um conjunto de artefatos, as quais por meio do trabalho possibilita a adequação das condições naturais aos interesses dos distintos grupos sociais.

Nesse sentido atentamos para o fato de que a técnica é o elemento de mediação não somente dos homens com o meio natural, mas é igualmente o instrumento de interposição das relações entre os sujeitos e o conjunto dos objetos socialmente construídos (ORTEGA Y GASSET, 2009).

Nessa perspectiva o referido autor enfatiza que toda técnica é social e sociável, pois estas são sempre resultantes do aprimora-mento do trabalho humano, tal como são passiveis de assimilação pelos diversos grupos sociais existentes nas diferentes áreas do planeta (ORTEGA Y GASSET, 2009). Nesse sentido alertamos para o fato de que esta apropriação da técnica, não é homogênea, pois o seu uso ocorre de forma socialmente seletiva e sua distribuição espacial manifesta-se de maneira descontinua (ELIAS, 2006).

Embora a técnica, seja comumente pensada como um elemento disseminador do novo, é preciso que relativizemos os seus impactos e eficiência, pois como destaca Sánches (1991), a implementação de um mesmo objeto técnico em lugares diferen-tes, pode apresentar rebatimentos igualmente distintos, o que evidencia a influência que as condições materiais, a configuração do território, as forças politicas e a forma de organização da

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Rafael Pereira da Silva

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sociedade exercem sobre esta primeira, assim como é influenciada por ela.

Reconhecemos nesse ponto que embora as técnicas sejam em sua maioria, hegemônicas e universais, a adoção destas deve se dar a partir do reconhecimento das condições especificas do lugar, haja vista que no curto prazo tais objetos ou estruturas caem na obsolescência, inúmeras vezes programada, impulsionada pela ineficiência ou inadequação então constatada.

Ao longo dos distintos períodos históricos, a técnica e a ciência apresentam uma relação simbiótica, por meio da qual se influenciaram mutuamente, sendo possível afirmar que o progresso da ciência é igualmente acompanhado pelo avanço da técnica, bem como através da emergência das tecnologias, estas últimas caracterizadas pela ampla capacidade de reprodução dos objetos técnicos, capazes de replicar contínua e progressivamente atividades programadas, estas sendo em sua maioria de natureza mecânica (HARVEY, 2013a).

É nesse contexto que o conhecimento e a ciências, particularmente as de natureza aplicada, convertem-se em forças produtivas, tornando-se um elemento constitutivo do processo de (re)produção acelerada e acumulação ampliada do capital, passando a ser então um componente essencial do capitalismo contemporâneo (HARVEY, 2013a).

Por meio dessa articulação entre técnica, tecnologia e ciência, as grandes empresas, corporações e instituições finan-ceiras, puderam paulatinamente aumentar as suas margens de lucros e diminuir os custos das etapas essenciais de um processo produtivo, sejam elas a produção propriamente dita, a circulação e a distribuição das mercadorias, realidade que só foi viabilizada por meio das inovações tecnológicas.

Conforme destaca Harvey (2013b) a incorporação das tecnologias e a adoção de sistemas técnicos modernos nos pro-cessos produtivos, são motivados, sobretudo, pela possibilidade

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de elevação nos índices de produção, melhorias dos padrões de qualidade e maximização dos lucros, no entanto, tais mudanças não ressoam com a mesma intensidade e propósito sobre o mundo do trabalho ou sobre as dinâmicas sociais.

A intensificação no uso das maquinas, tem desencadeado um processo perverso de ultra especialização e precarização das relações de trabalho, tal como tem favorecido uma diminuição paulatina no corpo de empregados das empresas, pois cada vez mais o desenvolvimento técnico e cientifico tem possibilitado o surgimento de máquinas com maior capacidade produtiva em intervalos cada vez mais reduzidos de tempo. Tal fato permite-nos dizer que o tempo da produção, industrial ou agrícola, é cada vez mais o tempo das máquinas, as quais tem seu ritmo estabelecido pelo desenvolvimento tecnológico e pelos ditames do capital.

Nas palavras de Silva (1987) a aquisição crescente de máqui-nas pelos setores industriais e do agronegócio, corroboraram não somente para a tecnificação das atividades econômicas, mas possibilitaram também o aparecimento e a composição do capital técnico das empresas, o qual tem suas origens “no momento em que a tecnologia incorporada à máquina e a tecnologia aprendida pelo trabalhador ganham autonomia como capital de serviços, na pessoa do trabalhador especializado e qualificado em serviços, que opera não com a prática, mas com a técnica” (SILVA, 1987, p.117).

Esse processo, que caracteriza-se pela substituição do trabalho morto em detrimento do trabalho vivo, foi responsável por alterações substancias nas relações sociais e técnicas de produção estabelecidas, sobretudo no interior das indústrias, pois neste contexto, partes significativas das funções anteriormente desenvolvidas pelos operários que compunham o quadro de funcionários das empresas, são agora realizadas por um número reduzido de operadores de máquinas, os quais executam as ins-truções repassadas pelos programadores de sistemas automati-zados, sendo estes os maiores responsáveis pela qualidade das mercadorias fabricadas na linha de produção.

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Partindo desse entendimento Bernardes (2005), assevera que o processo de modernização conservadora pelo qual passou o Brasil, não mais representou que um conjunto de ações de natu-reza público-privada, ancoradas na implementação de grandes estruturas territoriais e de pacotes tecnológicos, direcionados para os diferentes setores da economia, dentre os quais merece destaque a indústria e a agropecuária.

Se na indústria, como anteriormente exposto, as mudan-ças na base técnica se fizeram perceber por meio do acréscimo de máquinas ao processo produtivo, na agropecuária também se fará sentir pelo mesmo motivo, bem como pelas mesmas razões e circunstâncias. Ressaltamos que no Brasil, o processo de industrialização e modernização da agropecuária, ocorreu concentrando-se com mais intensidade nas regiões Sul e Sudeste, as quais historicamente apresentaram maiores capacidades de captação de recursos e atração de indústrias de diferentes ramos, de diversos portes e com dinâmicas particulares.

No contexto do Nordeste, região que se insere de forma perversa e tardia nesse processo, os estados da Bahia, Pernambuco e Ceará despontaram como os estados onde ambos os conjuntos de eventos ocorreram de forma mais significativa, fato que levou esses estados a se tornarem os mais dinâmicos da região em diversas atividades econômicas, sejam elas de caráter industrial ou agrícola, sem que fosse alterada as estruturas sociais marcadas por exclusão e desigualdade social.

O Rio Grande do Norte em nosso entendimento participa de forma parcial desses processos, ainda que mudanças signi-ficativas tenham se realizado nas últimas décadas, sejam elas impulsionadas pela instalação de indústrias de médio ou pequeno porte em diversos ramos, seja pela consolidação de empresas do agronegócio, sobretudo das que trabalham com a produção de frutas irrigadas, a exemplo da Del Monte Frash (figura 01), agroindústria especializada na produção de banana, ainda que também produza melão em área reduzida e com menor escala.

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Figura 01 ‒ Plantação de banana em fazenda do grupo Del Monte Frash no munícipio de Ipanguaçu

FONTE: Rafael Silva – Pesquisa de Campo – Ipanguaçu/RN – Agosto de 2013.

Já no setor de laticínios não se tem a atuação de grandes indústrias, prevalecendo nesta atividade à atuação das asso-ciações, cooperativas e pequenas indústrias, que trabalham no intuito de atender as demandas do mercado consumidor local, especialmente as que emanam da execução das políticas públicas diretamente vinculadas ao setor.

É válido ressaltar que se na agricultura a uma propensão a que os objetivos técnicos estejam concentrados nas grandes propriedades ou agroindústrias, na pecuária a presença destes utensílios se faz perceber com mais nitidez nas unidades de produção do leite, uma vez que em sua maioria das industriais do setor de laticínios, e particularmente as presentes no território potiguar, dedicam-se, sobretudo ao processamento do leite e a produção dos derivados lácteos.

O que a técnica e a tecnologia revelam sobre a prática da pecuária bovina leiteira no Rio Grande do Norte?

Quanto ao uso dos objetos técnicos empregados na agrope-cuária, o Rio Grande do Norte se apresenta como uma área onde a presença desses se faz de maneira pouco expressiva, se comparado

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a outros estados brasileiros, e descontinua do ponto de vista ter-ritorial, todavia ressalta-se que o emprego de artifícios dotados de funcionalidades cada vez mais sofisticadas e bem definidas apresenta como uma realidade recente e em expansão no estado.

Desse modo, um dos principais pontos de partida para se compreender a dinâmica recente da agropecuária no Brasil é analisar o uso da técnica, que em diferentes momentos, a partir de sua disponibilidade e localização, determinam as formas de produção existentes no campo brasileiro (ARRUZZO, 2005).

Ao se analisar os dados referente ao emprego da ordenha mecânica no Rio Grande do Norte, nota-se que em apenas 27 dos 167 municípios do estado, faz-se uso das ordenhadeiras mecânicas, tal como evidenciado no mapa 01.

Mapa 01 ‒ Rio Grande do Norte – Número de estabelecimentos agropecuários que fazem uso de ordenhadeira mecânica (2006)

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É valido frisar que a realização da ordenha mecânica é pontual não só espacialmente, mas também quanto ao número de estabelecimentos agropecuários nos quais se aplica essa técnica. Dos 27 municípios que fazem uso da ordenhadeira mecânica, apenas 11, sejam eles, Apodi, Bom Jesus, Brejinho, Ceará-Mirim, Cruzeta, Ielmo Marinho, Jardim de Piranhas, Macaíba, Monte Alegre, São Gonçalo do Amarante e São José do Mipibu, apre-sentam mais de um estabelecimento fazendo uso de tal recurso. Isso evidencia como a utilização deste objeto é seletiva e desi-gual, embora se perceba uma concentração do mesmo, ainda que pequena, no Agreste potiguar.

O adensamento destes equipamentos na Microrregião Agreste potiguar, particularmente nos municípios mais próximos a capital do estado, é decorrente do fato dos estabelecimentos patronais presentes nessa área possuírem relações diretas com as indústrias, muitas vezes produzindo especificamente para estas. Não são raros os casos em que os estabelecimentos patronais, os equipamentos de uso específico na pecuária e a indústria pertencem a um mesmo proprietário, a exemplo do verificado no município de Macaíba.

No Rio Grande do Norte, o uso de ordenhadeira mecânica é um dos principais elementos distintivos entre os estabele-cimentos de agricultura familiar e patronal, pois a presença de tal objeto só se faz perceber com maior frequência nestes últimos. A partir da pesquisa de campo constatou-se que nos estabelecimentos em que a agricultura apresenta um caráter familiar, prevalece à realização da ordenha manual, nos moldes tradicionais (Figuras 02 e 03).

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Figura 02 ‒ Realização de ordenha manual no município de Cruzeta

FONTE: Rafael Silva – Pesquisa de Campo. Cruzeta/RN – Fevereiro de 2013.

Figura 03 ‒ Realização de ordenha manual no município de Parelhas

FONTE: Rafael Silva – Pesquisa de Campo. Cruzeta/RN – Fevereiro de 2013.

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Também seguindo esta lógica percebe-se que a distribuição espacial dos tanques de resfriamento é bastante irregular (Mapa 02). De modo pontual percebe-se uma concentração deste equipa-mento no município de Angicos, que possui um total de 6 tanques de resfriamento (IBGE, 2006). Nesse último caso, infere-se que tal fato deva-se, dentre outros fatores, a atuação da Associação dos Pequenos Agropecuarista do Sertão de Angicos (APASA), a qual há décadas trabalha com a produção de derivados lácteos, tais como leite pasteurizado e bebidas fermentadas.

Mapa 02 ‒ Rio Grande do Norte – Número de estabelecimentos agropecuários que fazem uso tanques de resfriamento (2006/2013)

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Ainda que bastante rarefeito, os tanques de resfriamento são os objetos técnicos mais abundantes no território potiguar, fazendo-se presente em 20% dos municípios do Rio Grande do Norte. Nesse sentido destacamos que a utilização do tanque de resfriamento é condição sine qua non, para a produção o armaze-namento do leite, no momento posterior a ordenha. De acordo com a Instrução Normativa 51, de 18 de Setembro de 2002, o uso de tanque de granelização torna-se obrigatório em todo o território nacional. Todavia, sabe-se que são recorrentes os casos em que a referida instrução normativa não é cumprida pelos produtores de leite.

Os últimos anos foram marcados por um aumento sig-nificativo no número de tanques de resfriamento de leite no estado do Rio Grande do Norte. Entre 2006 e 2013, o aumento no número de tanques de resfriamento no estado foi de em média 80%, dos quais não se incluem os tanques pertencentes às unidades industriais do setor ou os que foram adquiridos através da realização de investimentos efetuados diretamente pelos produtores de leite.

É essencial reconhecer que a aplicação de recursos públicos também contribuiu para que inúmeros agricultores familiares também tivessem acesso aos tanques de resfriamento do leite. A obtenção destes recursos resulta em última instância da ação articulada de diversos ministérios, dentre eles o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), o MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e o MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia), os quais financiaram 85 dos tanques existentes no território potiguar,

Os tanques adquiridos com recursos públicos são de tamanhos diversificados, dos quais 28 tem capacidade de 1.000 litros, 11 de 1.500 litros, 40 de 2.000 litros, 4 de 3.000 litros e 2 de 4.000 litros de leite, distribuídos em diferentes áreas do estado. Tais tanques, em sua maioria, atendem necessidades de grupos de produtores, organizados por meio de associações

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e cooperativas, ou encontram-se em comunidades e assenta-mentos rurais, nas quais a pecuária constitui-se como uma das principais atividades produtivas e fonte de renda, para os agricultores familiares.

No Rio Grande do Norte, conforme dados disponibili-zados pelo IBGE (2006) não é expressivo o número de esta-belecimentos que efetuaram transferência de embriões3, nem tampouco o número total de transferências realizadas. Nesse sentido evidencia-se que o número total de receberam embriões corresponde a 0,89% do efetivo de rebanho bovino do estado4. Todavia reconhece-se que a não massificação desta prática deve-se sobremaneira aos elevados custos de sua realização e ao caráter expressivamente familiar que possui a prática da pecuária leiteira no estado.

De acordo com o mapa 03, observa-se que os estabe-lecimentos agropecuários que realizaram transferência de embrião apresentam-se de forma dispersa pelo território potiguar, ainda que o único estabelecimento localizado no município de São Gonçalo do Amarante tenha sido respon-sável por 63,8% das transferências de embrião realizadas no Rio Grande do Norte.

3 “A transferência embrionária (TE) é uma técnica pela qual, embriões colhidos de uma fêmea dadora são transferidos para uma ou várias fêmeas receptoras da mesma espécie que servirão de mães substitutas para prosseguirem com a gestação” (HORTA, 1989, p.01).

4 No ano de 2006 o efetivo de rebanho bovino do Rio Grande do Norte era 907.185 cabeças.

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Mapa 03 ‒ Rio Grande do Norte – Número de transferências de embrião

Os estabelecimentos agropecuários que realizam transfe-rências de embrião são aqueles que têm continuamente buscado a composição de um rebanho especializado na produção de leite ou destinado se dedicado prioritariamente ao melhoramento genético do rebanho, seja este último com vista a maior inserção no setor de laticínios ou na pecuária de corte. Não são raros os casos em que tais fazendas possuem vínculo direto com unidades industriais de processamento do leite, ou integram os negócios de grupos empresariais a estas vinculadas.

No Rio Grande do Norte, o gado especializado na produção de leite é encontrado com mais facilidade nos estabelecimentos patronais, ainda que alguns estabelecimentos familiares pos-suam poucas cabeças que apresentam alta produtividade diária. Nas fazendas que se destacam pela presença desses rebanhos é

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recorrente o emprego de outras técnicas de reprodução animal como inseminação artificial5, havendo casos em que se trabalha também com a comercialização de sêmen (Figuras 04 e 05), como verificado empiricamente.

Figura 04 ‒ Touro reprodutor, utilizado para coleta de sêmen

FONTE: Rafael Silva – Pesquisa de Campo. Taipu/RN – Novembro de 2012.

5 A propagação recente da inseminação artificial resulta da necessidade continua de melhoramento genético das espécies bovinas, destinadas à produção de leite ou para o corte, consistindo assim na fecundação artificial de gametas coletados de touros de raças especificas em vacas previamente selecionadas e com predisposição a produção de leite ou carne, dando assim origem a rebanhos especializados aos fins a que se destinam (HORTA, 1989).

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Figura 05 ‒ Sêmen congelado em palhetas, para inseminação e comercialização

FONTE: Rafael Silva – Pesquisa de Campo. Taipu/RN – Novembro de 2012.

Conforme evidenciado no mapa 04, a realização de insemi-nações artificiais em bovinos, também ocorre de forma bastante pontual no Rio Grande do Norte, concentrando-se, sobretudo na porção central do estado e nos municípios circunvizinhos a capital potiguar. É valido ressaltar que na maioria dos municípios em que tal técnica de reprodução foi utilizada, ela fez-se presente em apenas 1 estabelecimento agropecuário e como um número reduzido de vacas inseminadas.

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Mapa 04 ‒ Rio Grande do Norte – Número de estabelecimentos agropecuários que realizaram inseminação artificial (2006)

Tal como a realização da transferência de embriões e de inseminações artificiais, a criação de gado confinado e a prática do rastreamento animal, também se circunscreve sobremaneira nos estabelecimentos agropecuários de caráter patronal.

O confinamento animal se caracteriza pela colocação de um conjunto de animais em uma pequena área previamente delimitada, a qual deve dificultar a realização de muitos movi-mentos e grandes esforços por parte dos animais. De acordo com Manso e Ferreira (2007) a criação de gado confinado é um mecanismo empregado principalmente nas propriedades em que se sobressai a pecuária de corte, no entanto atentam para o fato de que tal prática vem sendo paulatinamente empregada nos estabelecimentos que se dedicam a pecuária leiteira, os quais

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têm como principal motivação para isso, a necessidade de se criar um número significativo de animais em uma área muitas vezes reduzida, pois como se sabe, a pecuária desenvolvida sobre a lógica capitalista e comercial, só é rentável quando apresenta produção em escala.

Seguindo uma tendência nacional, no Rio Grande do Norte, a criação de gado confinado ocorre principalmente nos estabe-lecimentos patronais onde se destaca a pecuária de corte, com destaque para o abastecimento dos frigoríficos localizados no estado, salvo os casos dos municípios de Macaíba e São Gonçalo do Amarante, onde a criação de gado confinado (figura 06) des-tina-se também a produção de leite.

Figura 06 ‒ Criação de gado confinado no município de Natal

FONTE: Rafael Silva – Pesquisa de Campo – Natal/RN – Novembro de 2012.

Sobre esta forma de criação animal com rebanho bovino, merece destaque o município de Caicó, que embora apresente o maior número de estabelecimentos com gado confinado do estado, não desponta dentre os que têm maior número de cabeças confinadas, conforme ilustrado no mapa 05.

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Mapa 05 ‒ Rio Grande do Norte – Número de estabelecimentos agropecuários que trabalham com confinamento de bovinos (2006)

Assim como o confinamento, a rastreabilidade dos reba-nhos1 no amago da atividade criatória está mais diretamente relacionada à pecuária de corte. Do ponto de vista espacial, no contexto nacional, a região Centro-Oeste, e mais especificamente o estado de Goiás, desponta como sendo um dos estados que apresenta o maior rebanho de gado bovino confinado, dentre as unidades da federação.

1 De acordo com Silva (2004, p. 4) “a rastreabilidade é um mecanismo que permite identificar a origem do produto desde o campo até o consumidor, podendo ter sido, ou não, transformado ou processado. É um conjunto de medidas que possibilitam controlar e monitorar todas as movimentações nas unidades, de entrada e de saída, objetivando a produção de qualidade e com origem garantida”.

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No Rio Grande do Norte, conforme se observa no mapa 06, a prática do rastreamento animal não apresenta expressividade, uma vez que em nenhum município do estado, há um número significativo de estabelecimentos agropecuários que façam uso desta técnica. Todavia ressalta-se que diferentemente das outras variáveis, o uso do rastreamento animal, apresenta uma distri-buição espacial relativamente diferenciada, na medida em que não se concentra no entorno da capital do estado, fazendo se perceber com mais pujança no agreste e no alto-oeste potiguar.

Mapa 06 ‒ Rio Grande do Norte – Número de estabelecimentos agropecuários que trabalham com rastreamento animal bovino (2006)

No Rio Grande do Norte, o confinamento e o rastreamento de bovinos se fazem perceber com mais recorrência nos estabele-cimentos patronais, sendo mais comum nas fazendas de criação

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de gado para corte. Ainda que estabelecimentos agrícolas que apresentam rebanhos compostos por cabeças de gado, de raças com elevada produtividade também façam uso destas técnicas de produção e suas tecnologias.

Por fim ressalta-se que transformações ocorridas na pecu-ária, e particularmente na pecuária leiteira no Rio Grande do Norte, estão sendo impulsionadas por diversos vetores, dentre os quais se destacam a adoção de uma nova base técnica empre-gada nos processos produtivos, formulação de políticas públicas direcionadas para a atividade e o processo de industrialização do setor de laticínios.

A guisa de conclusão O desenvolvimento do modo de produção capitalista é

sumariamente marcado pela ocorrência de crises cíclicas, as quais decorem dentre outros fatores de limitações impostas aos processos de produção acelerada e acumulação ampliada do capital (HARVEY, 2013a).

No intuito de minimizar os efeitos destas crises, as empre-sas e corporações têm adotado estratégias que perpassam a incorporação de novas técnicas e tecnologias aos processos produtivos, redefinições nas relações trabalhistas - a exemplo da contratação de mão de obra terceirizada, diversificação dos produtos - com o intuito de atingir mercados consumidores cada vez mais heterógenos, bem como a reconfiguração na distribuição espacial das unidades de produção, fenômeno que da visibilidade a dimensão geográfica do processo de reestruturação produtiva (GOMES, 2011).

É valido ressaltar que a ocorrência de processo de reestruturação produtiva não se perceber em todas as atividades econômicas da forma, nem tampouco incide sobre os lugares a um só tempo. A natureza contraditória da ocorrência desse processo expressa-se pela gênese de espacialidades diversas e

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temporalidades distintas, as quais estão diretamente vinculadas a emergência de novas materialidades, muitas destas tendo finalidade a dinamização de processos produtivos e interações espaciais.

Conforme destaca Azevedo (2013) a ocorrência do processo de reestruturação produtiva e do território, só se farão perceber no estado do Rio Grande do Norte, remonta a um passado recente, particularmente o final da década de 1980 e inicio da década de 1990, período no qual redefine-se o perfil das atividades produtivas agrícolas e urbanas-industriais, sobretudo a partir da atuação mais efetiva da Petrobras S.A, da criação dos distritos industriais, estimulo ao desenvolvimento do turismo, não obs-tante a modernização de atividade tradicionais como agricultura, pecuária e mineração.

A pecuária, historicamente se constitui em uma importante atividade econômica para o estado do Rio Grande do Norte, figu-rando como um dos principais vetores nos processo do processo de ocupação e povoamento do território potiguar e constituindo em um mecanismo de integração entre o Rio Grande do Norte e outras porções do território brasileiro, sobretudo a partir do surgimento das oficinas de carne seca (GOMES, 1997).

Nas ultimas décadas esta atividade econômica, tem passado por um conjunto de significativas alterações, as quais resultam em boa medida da implementação de políticas públicas que visam fortalecer a dinamizar a bacia leiteira potiguar, da adoção de novas bases técnicas e normatização do sistema produtivo do leite, bem como do recente e acelerado processo de industrialização do setor de laticínios.

No que se refere especificamente ao processo de adoção de novas bases técnicas empregas na prática da pecuária, constata-se que o Rio Grande do Norte, não apresenta a mesma pujança de outras áreas do território brasileiro, a exemplo dos estados da região concentrada, com destaque para Minas Gerais e Goiás.

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Todavia essas diferenciações entre áreas ocorrem também na escala estadual, uma vez que há no território potiguar áreas que tendem a concentrar a presença e o uso de objetos e técnicas, vinculadas a pecuária, em detrimento de outras porções estado nas quais embora haja presença da pecuária bovina, esta se realiza nos moldes tradicionais, sobretudo a partir de técnicas e saberes herdados de gerações passadas.

É valido ressaltar que o uso de objetos tais como ordenha-deiras mecânicas e tanques de resfriamento do leite, assim como a realização de inseminações artificias, transferência de embriões e confinamento animal, não apresentam apenas diferenciações quanto as suas respectivas distribuições espaciais, mas revelam distinções existentes entre os grupos de produtores, na medida em que somente os agricultores e agropecuaristas que disponham de capital, tiveram a oportunidade de investir em tais de técnicas de produção.

Nesse sentido ressalta-se que no estado do Rio Grande do Norte, o processo de tecnificação da pecuária tem contribuído para um acirramento das dissemelhanças no território potiguar, aprofundamento das heterogeneidades entre os sujeitos dire-tamente envolvidos com a o desenvolvimento da pecuária, não obstante ao processo de ampliação das desigualdades no campo, uma vez que a adoção de bases técnicas sofisticadas torna mais produtivos e competitivos os produtores que, paulatinamente, apresentaram maiores condições de investir na atividade, e, por conseguinte aferir maior lucro.

ReferênciasANDRADE, Manoel Correia de. A produção do espaço Norte-Rio-Grandense. Natal: Editora universitária, 1981.ARRUZZO, Roberta Carvalho. Modernização Agrícola, trabalho e organização espacial na BR-163. In: BERNARDES, Júlia Adão; FREIRE FILHO, Osni de Luna. Geografia da Soja: BR 163 Fronteiras em Mutação. Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005, p. 99-114.

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As problemáticas da implantação do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi, Rio Grande do Norte

Flávio de Arruda Saron

Antonio Nivaldo Hespanhol

Introdução

No presente texto discutiremos as problemáticas derivadas da implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, que compreende os municípios de Apodi e Felipe Guerra, situados na região da chapada do Apodi, estado do Rio Grande do Norte (Mapa 1).

São realçados os conflitos derivados da implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, bem como as perspecti-vas para a população que vive nas comunidades e assentamentos rurais no interior e nas proximidades da área de implantação do perímetro irrigado.

Os perímetros públicos têm sido implantados para fomen-tar à modernização da agricultura no semiárido nordestino. Estas ações vêm sendo empreendidas há algumas décadas, espe-cialmente pelo Departamento Nacional de Obras Contra à Seca (DNOCS) e pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF).

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As problemáticas da implantação do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi

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Durante os Governos Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010) e o primeiro mandato do governo Dilma Rousseaff (2011-2014) houve grandes estímulos para a constituição de novos perímetros públicos irrigados no semiárido nordestino, inclusive o Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi.

O projeto de integração do rio São Francisco, mais conhe-cido como projeto de transposição do rio São Francisco integra a principal obra de fomento a expansão da agricultura irrigada no semiárido nordestino.

Mapa 01 ‒ Localização da Microrregião Geográfica (MRG) da Chapada do Apodi

Esta obra e os demais perímetros irrigados, dentre eles o Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi contaram com apoio financeiro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). No referido perímetro, com área total de 13,85 mil hectares, pre-tende-se produzir frutas nos 9 mil hectares passíveis de irrigação.

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Flávio de Arruda Saron - Antonio Nivaldo Hespanhol

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As ações do Estado no apoio ao desenvolvimento da agricul-tura moderna, especialmente da fruticultura irrigada, combinada a atuação de empresas nacionais e transnacionais vinculadas à produção e comercialização de frutas tropicais têm provocado transformações no espaço agrário do semiárido nordestino e potiguar (ELIAS, 2011).

O presente texto foi elaborado com base no levantamento e consulta de bibliografia que trata da política nacional de irri-gação; dos perímetros irrigados implantados no Nordeste e no Rio Grande do Norte; da expansão da fruticultura irrigada (agro-negócio) no semiárido nordestino e potiguar; e, da implantação dos assentamentos rurais no Rio Grande do Norte.

Outra etapa da pesquisa foi a realização de pesquisa de campo na chapada do Apodi, com a realização de entrevistas com dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi (STTRA), duas lideranças contrárias a implantação do perímetro irrigado, com representantes e população residente nos assenta-mentos rurais Milagres e Sítio do Góis.

O texto está estruturado em três partes, além desta intro-dução e das considerações finais. Na primeira apontamos as prin-cipais iniciativas oficiais para o desenvolvimento da agricultura no semiárido nordestino. Em seguida analisamos a atuação e as intervenções do DNOCS, por meio da implantação dos perí-metros públicos irrigados. Por fim, discutimos as implicações decorrentes da implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, com enfoque especial para a mobilização contrária ao projeto, a expansão da fruticultura irrigada e a instalação de assentamentos rurais na região.

Os projetos para o desenvolvimento no semiárido e no Rio Grande do Norte

As ações oficiais para o desenvolvimento da região Nordeste, e, especialmente da porção semiárida são antigas. Ainda no século

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XIX, foi aventada possibilidade de realizar a transposição de águas do rio São Francisco. A justificativa sempre se pautou na necessidade de estimular o desenvolvimento econômico e ame-nizar a precária situação de miséria e fome que frequentemente assola grande parte da população nordestina (CASTRO, 2011). Quadro que em grande medida está associado à inviabilidade da agricultura sem o uso de irrigação em longos períodos, e, é claro a intensa concentração da propriedade da terra e do poder político por parte de latifundiários.

A ação do Estado até os anos 1950 se restringiu a construir obras hidráulicas. As primeiras ações oficiais de incentivo a agricultura irrigada na região Nordeste foram esboçadas nos anos 1950 e 1960. Em 1968 foi criado o Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrícola (GEIDA), órgão sob a guarida do Ministério do Interior. Três anos mais tarde, em 1971 foi lançado o I Programa Plurianual de Irrigação (PPI). No programa havia previsão de implantação de 72 projetos de irrigação, 63 deles na região Nordeste.

As ações previstas no PPI foram inseridas nas metas do pri-meiro e segundo Planos Nacionais de Desenvolvimento (I e II PNDs) e contou com o apoio financeiro do Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (POLONORDESTE) e do Programa Especial de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semiárida do Nordeste (Projeto Sertanejo), instituídos no decorrer do primeiro quinquênio da década de 1970.

Nos Vales do São Francisco e Parnaíba os perímetros públi-cos irrigados foram implantados pela CODEVASF e nas demais áreas do Polígono das Secas os perímetros foram implantados e administrados pelo DNOCS. O intuito principal de tais projetos foi estimular o desenvolvimento da agricultura moderna.

No Estado do Rio Grande do Norte foram implantados os Perímetros de Cruzeta, Itans, Sabugi e Baixo Açú, na Bacia Hidrográfica do Piranhas-Açu, e de Pau dos Ferros, na Bacia Hidrográfica do Apodi-Mossoró.

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A implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, na Bacia Hidrográfica do Apodi-Mossoró, deverá resultar em mais um polo de produção de frutas tropicais irrigadas para a comercialização nos mercados interno e externo e se insere no contexto geral de fortalecimento e expansão do agronegócio brasileiro.

O DNOCS e as políticas de fomento a agricultura irrigada no Nordeste

O DNOCS foi criado no ano de 1945, no final do primeiro mandato do Governo de Getúlio Vargas (1930-1945). O órgão substituiu a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919, em substituição a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), criada em 1909.

Desde 2001, o DNOCS está vinculado ao Ministério da Integração Nacional, mesmo ano em que foi criada a Secretaria Nacional de Irrigação no mesmo ministério.

O órgão foi criado para elaborar e implementar políticas de combate à seca, especialmente a construção de obras hidráulicas, principalmente açudes.

De modo geral, a atuação do DNOCS nunca foi exitosa no que tange a melhoria de vida da população do semiárido nordestino, pois sempre foi e ainda é utilizado como instrumento de poder pelas elites políticas locais/regionais.

Oliveira (1977) apontou a captura do órgão pelas oligar-quias nordestinas em meados do século XX. Em consequência, estradas, açudes e demais obras hidráulicas foram implantadas em propriedades e em benefício da oligarquia algodoeira-pecuária. Em suma, este órgão público federal vem sendo historicamente gerido pela elite regional com o intuito de atender os seus próprios interesses.

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Este é um traço que permanece no âmbito do DNOCS, e pode ser visualizado na íntima ligação de políticos influentes no estado do Rio Grande do Norte com a implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi.

As obras do canal do perímetro irrigado são de responsa-bilidade do consórcio das empresas Empresa Industrial Técnica S/A (EIT) e FIDENS engenharia S/A. No entanto, o projeto, que estava previsto para ser concluído em 2012, foi paralisado por ordem da Controladoria Geral da União (CGU) em razão do envolvimento das duas empresas que compõem o consórcio nos escândalos de corrupção da operação Lava Jato da Polícia Federal (situação ainda vigente em outubro de 2015).

O DNOCS costuma ser comandado por representantes da oligarquia regional. Atualmente, José Eduardo Alves Wanderley, sobrinho do ex-presidente da Câmara dos Deputados e atual Ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), um dos políticos mais influentes do estado potiguar, é o coordenador geral do órgão no Rio Grande do Norte.

José Eduardo Alves Wanderley assumiu o cargo no ano de 2012, após a queda de seu antecessor Elias Fernandes Neto (também indicado por Henrique Alves), acusado de envolvimento no desvio de R$312 milhões da Defesa Civil, de acordo com relatório da CGU.

Em janeiro deste ano (2015), o atual coordenador do DNOCS também esteve sob investigação da Polícia Federal na Operação Itararema, sob acusação de desvio de recursos públicos e fraudes em licitações que envolvem o órgão, prefeituras do interior do estado, deputados e a Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte (CAERN).

Entre os anos de 2011 e 2013, o pernambucano Fernando Bezerra Coelho, que tem negócios do setor de fruticultura irri-gada, foi Ministro da Integração Nacional, havendo, inclusive

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um perímetro irrigado denominado Senador Nilo Coelho (tio do ministro) que abrange áreas dos estados de Pernambuco e Bahia.

Ele e seus familiares empossados no Ministério da Integração Nacional (MIN) e no Congresso Nacional são acu-sados de direcionar verbas públicas para projetos em áreas que constituem seus redutos eleitorais na região de Petrolina, estado de Pernambuco.

O caráter oligárquico do DNOCS (que extrapolou os limi-tes deste órgão) se desdobra em frequentes casos de corrupção derivados da perniciosa relação entre as esferas pública e privada.

O DNOCS e a CODEVASF são os principais órgãos federais de apoio a expansão da agricultura irrigada na região Nordeste. O DNOCS abrange o polígono das secas, e a CODEVASF atua nos Vales dos rios São Francisco e Parnaíba.

Coelho Neto (2009), ressalta que a despeito da prioridade atribuída ao nordeste no âmbito das políticas nacionais de irri-gação, a região não experimentou grande crescimento na área irrigada, tendo perdido participação relativa em comparação com as regiões Sudeste e Sul no período compreendido entre os anos de 1970 e 1998.

A CODEVASF levou adiante os projetos na área correspon-dente aos vales do rio São Francisco e Parnaíba e, atualmente, é responsável pelo projeto de transposição de águas do Rio São Francisco, maior projeto de fomento à agricultura irrigada da história do Brasil. Coelho Neto (2009) assinala que a CODEVASF e o DNOCS se distinguiam em relação ao perfil dos projetos apoiados, a primeira caracterizava-se por privilegiar empresas e o segundo pela alocação de colonos. Ambas, no entanto, tinham em comum a preocupação em fomentar o processo de acumulação capitalista.

A partir da década de 1980, e, principalmente, após meados dos anos 1990, no entanto, os perímetros irrigados implantados

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As problemáticas da implantação do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi

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pelo DNOCS passaram a privilegiar empresas e grandes produtores tecnificados.

Coelho Neto (2009) e Bezerra (2012) destacam o caráter de enclave dos perímetros irrigados no espaço agrário do semiárido nordestino, que destoam da realidade regional circundante, por não dispor de acesso a água para o uso em atividades agrícolas.

O Perímetro Irrigado do Baixo-Açu, por exemplo, se constitui num caso emblemático, pois a justificativa para a sua implantação foi feita com base no seu potencial de geração de desenvolvimento a partir do assentamento das famílias desalo-jadas pela formação do reservatório Armando Ribeiro Gonçalves, mas atualmente nele se encontram, principalmente, empresários e produtores rurais capitalizados, a maioria dos quais provenientes dos Estados de Pernambuco e Paraíba.

Sobre os perímetros públicos irrigados implantados no Semiárido nordestino, Buanin e Garcia (2015) apontam que os que se encontram em funcionamento apresentam inúmeros problemas, sendo frequente a necessidade de investir em sua recuperação, a despeito do alto custo para a sua implantação. Este fato desqualifica o argumento para a criação de novos perímetros, tendo em vista a reduzida disponibilidade hídrica, motivo de muitos conflitos na região.

Com o advento do Programa de Aceleração do Crescimento nos Governos Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010) e Dilma Rousseaff (2011-2014), uma nova geração de perímetros irrigados foi criada no Nordeste, além da ampliação e moderni-zação de perímetros antigos (BUANIN e GARCIA, 2015).

Além disso, a agricultura irrigada foi potencializada com as obras de transposição de águas do rio São Francisco, obra que está conectada a alguns perímetros irrigados, como é o caso do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, que receberá água do rio São Francisco, por meio de canal de capitação e transporte de

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água que se estende do município de Cabrobó, Pernambuco, até o rio Apodi, integrando o eixo norte do projeto de transposição1.

Esta obra se insere na nova geração de perímetros públicos irrigados no semiárido nordestino. Nesse sentido, no próximo item serão discutidas as problemáticas derivadas da implantação do projeto.

As problemáticas da implantação do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi e da expansão da fruticultura irrigada no Rio Grande do Norte

A Barragem Santa Cruz, a segunda maior do Rio Grande do Norte, foi inaugurada no ano de 2002, ainda no Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Na época a cerimônia de inauguração da barragem foi restrita a algumas pessoas, especialmente políticos influentes do estado do Rio Grande do Norte. De acordo com o representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi (STTRA), já naquela época a entidade esboçou preocupação em relação ao uso a ser feito da barragem e iniciou discussões sobre o uso da água, visto que assentados e moradores de comunidades rurais do entorno foram impedidos de participar do evento.

A barragem Santa Cruz do Apodi, com capacidade para armazenar 600 milhões de m³ de água foi construída para pere-nizar o rio Apodi. Na época de sua construção e inauguração, não foi apontado para qual finalidade fora feita a obra, mas finalmente em junho de 2011 foi publicada no Diário Oficial da União a autorização para desapropriar terras visando a implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi.

1 O eixo norte da obra de transposição do rio São Francisco deverá abastecer com água a porção semiárida dos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Para maiores detalhes sobre o histórico, polêmicas e problemáticas derivadas da transposição do rio São Francisco, ver Castro (2011) e Dourado (2015).

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As problemáticas da implantação do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi

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Este era apenas o início das polêmicas relativas ao projeto de implantação do referido perímetro.

O projeto tem sua gênese marcada por polêmicas e com ações e discursos oficiais incoerentes. No dia 10/06/2011 a Presidente da República Dilma Rousseff assinou decreto para desapropriar 13 mil hectares de terras na Chapada do Apodi para implantar o perímetro irrigado.

A mobilização contrária ao projeto foi imediata, e já em 16/06/2011 foi reorganizado o Fórum do Campo Potiguar (FOCAMPO), aglutinando forças diversas contrárias ao pro-jeto. Em 19/07/2011 o então Ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra recebeu membros do FOCAMPO e prometeu rever o projeto, incluindo a utilização da água para irrigação por parte dos pequenos agricultores assentados e de comunidades rurais da Chapada do Apodi. Desde então, inúmeros atos como marchas, reuniões, denúncias, elaboração de documentos têm sido feitos pelo STTRA, Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Comissão Pastoral da Terra (CPT), pesquisadores, dentre outros.

O primeiro ponto polêmico do projeto, conforme rela-tado por lideranças de organizações contrárias a implantação do perímetro irrigado é a desconsideração da existência de muitas comunidades rurais na área por parte do DNOCS.

De acordo com representantes do STTRA, ao assistirem a apresentação do projeto, o DNOCS foi questionado a respeito na inexistência de comunidades rurais nos mapas de apresentação do projeto. O órgão justificou que este projeto data de 1974, quando ainda não estavam instaladas as comunidades e assentamentos rurais na área do projeto.

O grande montante de recursos públicos envolvidos num projeto que beneficiará agentes privados é outro ponto polêmico do projeto. No entanto, não é o único.

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A primeira etapa do projeto abrange 5.200 hectares, mas o projeto abrange área em torno de 13 mil hectares, sendo 9 mil hectares irrigados, conforme se verifica na tabela 1. O custo da primeira etapa está orçado em R$280 milhões, sendo R$40 milhões para a desapropriação de terras. Pretende-se produzir banana, cacau, laranja, feijão, goiaba, mamão, melão e uva na área do perímetro.

Tabela 01 ‒ Perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi, RN

PERFIL DOS IRRIGANTESNÚMERODE LOTES

ÁREA DE CADALOTE

(EM ha)

ÁREA TOTALDOS LOTES

(EM ha)

Pequenos produtores 305 8 2400Técnicos de nível médio 120 16 1920

Profissionais das ciências agrárias (nível superior)

25 24 600

Empresas 5 48 240Total 455 5.160

FONTE: João Abner Guimarães Jr. (2014)

Dos 455 lotes previstos para serem implantados na primeira etapa do projeto, 67,03% (305 lotes com oito hectares) serão destinados a pequenos produtores, 31,87% (40 lotes com 16 a 24 ha.) para os técnicos de nível médio e superior (profissionais das ciências agrárias), respectivamente, e, por fim apenas 1,1% (cinco lotes com 48 ha.) para as empresas, conforme pode-se verificar na tabela 1.

Embora, a grande maioria dos irrigantes serem peque-nos produtores. As experiências de outros perímetros irrigados apresentaram processos de concentração fundiária, com a desis-tência/abandono por parte dos pequenos irrigantes do projeto (ANDRADE, 2013; HESPANHOL, 2015). Uma vez que a produção de frutas irrigadas requer disponibilidade de capital para o manejo

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na atividade, e, principalmente para arcar com alto custo da energia elétrica devido a necessidade de bombeamento da água a grandes distâncias e com declividade acentuada.

A chapada do APODI é uma área com forte concentração de assentamentos rurais, a segunda maior do estado do Rio Grande do Norte, inferior apenas à região Mossoró (COSTA, 2005), conforme se verifica no Mapa 2.

Mapa 02 ‒ Distribuição espacial dos assentamentos rurais no estado do Rio Grande do Norte e na Chapada do Apodi

No assentamento Milagres, a principal reclamação em relação à implantação do perímetro irrigado é a exposição dos moradores aos agrotóxicos. Este fato já vem ocorrendo devido à proximidade do assentamento a área de produção de frutas de duas empresas instaladas nos arredores que utilizam irrigação: a Agrícola Formosa e a Angel Frutas España Export Import, conforme

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relataram moradores do Assentamento Milagres durante a rea-lização da pesquisa de campo. Com a implantação do perímetro este assentamento ficará cercado de áreas de plantio de frutas.

Outra queixa é a preocupação com o aumento da violência, tráfico de drogas e prostituição, visto que as empresas de fruti-cultura trazem grande contingente de trabalhadores rurais de outras regiões e estados, desconhecidos da comunidade (ELIAS e PEQUENO, 2007). Nas proximidades do assentamento Milagres está em funcionamento uma casa de prostituição na zona rural.

As empresas de fruticultura têm se instalado na Chapada do Apodi pelos mesmos motivos que se instalaram em outras áreas do semiárido nordestino e do estado do Rio Grande do Norte, quais sejam: disponibilidades de terras férteis e baratas; oferta de mão-de-obra barata; existência de água no subsolo que permite o desenvolvimento da fruticultura irrigada e conivência e apoio do poder público (Prefeitura e Câmara de Vereadores, órgãos ambientais, Governos Estadual e Federal).

As empresas de fruticultura têm utilizado água para irri-gação proveniente de poços com profundidade média de 500 metros. Este fato representa grande preocupação, pois os poços que atendem os assentamentos e comunidades rurais não passam de 300 metros de profundidade. Com a expansão da fruticultura irrigada e a intensificação do uso da água, os primeiros a sofrerem as consequências do rebaixamento dolençol freático serão os assentamentos e comunidades rurais, que dispõem de poços mais rasos.

Outro fato estranho se refere à posse do documento de outorga do uso da água por parte das empresas de fruticultura irrigada, o que não foi emitido para os assentamentos e comuni-dades rurais. É possível que num cenário de acirramento pelo uso da água, as empresas munidas de amparo legal possam denunciar os agricultores familiares locais a fim de restringir a utilização de água por parte destes.

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A preocupação do STTRA, dos movimentos sociais, Organizações Não Governamentais (ONGs) é que há fortes indí-cios de que se repita na Chapada do Apodi o mesmo desfecho de outras áreas de produção de frutas irrigadas no semiárido.

No próprio município de Apodi e em Baraúna, também no Rio Grande do Norte, além de Quixeré, Icapuí, no estado do Ceará, já há déficit hídrico decorrente da intensa extração de água por meio de poços profundos e da prolongada estiagem nos últimos anos. Como consequência da escassez de água subterrânea entre 2011 e 2014 houve redução de 8 mil para 5,5 mil hectares na área cultivada com melão no estado do Rio Grande do Norte.

A preocupação e a justificativa das lideranças de organi-zações da sociedade civil contrárias a implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi tem como referência os outros perímetros irrigados implantados no estado do Rio Grande do Norte e no semiárido nordestino, especialmente o Jaguaribe, no Ceará.

A implantação dos perímetros irrigados é ideologicamente amparada num forte discurso desenvolvimentista, contendo a promessa de contribuir para alavancar o desenvolvimento nas áreas situadas na região mais pobre do Brasil, o semiárido nor-destino. Em geral, estes projetos encontram muitos defensores na grande mídia e nos meios hegemônicos da política brasileira.

De fato, estes projetos fomentaram fortemente a difusão da agricultura moderna, assentada no uso intensivo de máquinas e equipamentos agrícolas, agrotóxicos, tecnologias que alteraram o perfil produtivo da agricultura até então caracterizada pelo baixo uso de tecnologia e capital. Estas mudanças no espaço agrário foram responsáveis por grande dinamização econômica, com o crescimento da demanda por mercadorias e serviços situados na cidade, propiciando, assim, forte expansão urbana (BEZERRA, 2012; ELIAS, 2011 e 2013).

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No entanto, a implantação de perímetros irrigados não foi positiva para os assentamentos e comunidades rurais, pois estes empreendimentos não foram pensados para fomentar a geração de renda e a melhoria do bem estar das população locais.

São projetos com interesses estranhos as demandas locais, que estão comprometidos com o fomento à acumulação de capital no campo. Os agricultores locais não apresentam o perfil desejado, a não ser para oferecer mão-de-obra barata, como já tem ocorrido com as empresas frutícolas instaladas no lado cearense da Chapada do Apodi, conforme detectou Bezerra (2012). No arranjo dos perímetros irrigados para produção de frutas tropicais são contemplados seleto grupo de agricultores capitalizados e grandes empresas que controlam a produção e a comercialização de frutas nos mercados nacional e internacional.

O fomento ao desenvolvimento propiciado pelos projetos de perímetro irrigado é desconstruído com a comparação de indica-dores sociais, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios e regiões onde foram implantados estes projetos e onde não foram (BUANIN e GARCIA, 2015). Hespanhol (2015) fez este exercício comparativo e constatou que os municípios do Rio Grande do Norte com grande produção de frutas irrigadas possuem IDH inferiores à média estadual.

Embora, a implantação da fruticultura irrigada propicie dinamismo econômico, a riqueza se concentra nas mãos das empresas, dos agricultores irrigantes mais capitalizados e num pequeno número de profissionais qualificados (agrônomos, admi-nistradores etc.). A maior parte dos trabalhadores rurais dispõe de baixa remuneração; condições de trabalho precárias, com exposição e riscos de contaminação por agrotóxicos e trabalho sazonal, geralmente de agosto a dezembro (BEZERRA, 2012; PONTES et al., 2013).

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Em resumo, a expansão da fruticultura irrigada em períme-tros irrigados no semiárido nordestino apresentaram os seguintes resultados:

a) Redução da diversidade produtiva, com a substituição da policultura pela monocultura, ou cultivos de algumas frutíferas;

b) Ampliação da concentração fundiária e da desigualdade social;

c) Contaminação do lençol freático e das pessoas que vivem em comunidades e assentamentos rurais vizinhos aos perímetros irrigados (PONTES et all., 2013);

d) Problemas sociais decorrentes do crescimento rápido das cidades médias, incapazes de oferecer equipamentos públi-cos para atender as demandas sociais por saúde, educação, transporte coletivo etc.;

e) Crescimento nos índices de violência e marginalização social (ELIAS e PEQUENO, 2007).

Os antagonismos em torno da implantação de períme-tros irrigados chegaram às últimas consequências no Vale do Jaguaribe, lado cearense da chapada do Apodi, com o assassi-nato de Zé Maria do Thomé no ano de 2010, liderança local que denunciava a expropriação das terras e pulverização aérea de agrotóxicos.

A morte de Zé Maria do Tomé torna frágil a versão que procura enaltecer a modernidade em torno do agronegócio e mostra a persistência da pistolagem no semiárido nordestino (OLIVEIRA, 2003).

Portanto, os desfechos negativos após a implantação de outros perímetros irrigados explicam a forte mobilização dos movimentos sociais, sindicato dos trabalhadores rurais, CPT e ONGs no lado potiguar da Chapada do Apodi.

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Segundo as lideranças que resistem à implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi entrevistadas, na chapada do Apodi, grandes propriedades rurais improdutivas (latifúndios que não cumpriam sua função social enquadrando-se perfeitamente nos critérios para desapropriação para cons-tituição de assentamentos rurais) estavam em processo de negociação com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para a desapropriação e implantação de projetos de assentamentos rurais em decorrência da pressão de agricultores sem terra, organizados em movimentos sociais, especialmente o MST que realizaram ocupações e montaram acampamentos.

Com o anúncio e início da construção das obras do períme-tro irrigado, os proprietários rurais da região, repentinamente mudaram de postura e desistiram de negociar suas propriedades com o INCRA. Desde o ano de 2009, nenhum assentamento rural foi constituído na Chapada do Apodi (gráfico 1), a despeito da presença de acampamentos às margens da Rodovia BR 405, vizinha ao canal do perímetro irrigado, que chegou a contar com 2 mil famílias.

Conforme, pode-se averiguar nos gráficos 1 e 2, a maioria dos projetos de assentamentos rurais foi implantada na região de Apodi no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000 (1997-2001), quando foram instalados 20 dos 26 projetos de assentamentos rurais, ou seja, 76,92% do número total de assentamentos criados entre 1987 e 2014, conforme se verifica no gráfico 1.

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Gráfico 01 ‒ Projetos de Assentamentos rurais implantados na região de Apodi, RN

FONTE: INCRA (2015). Org: Flávio de Arruda Saron.

Gráfico 02 ‒ Famílias rurais assentadas na região de Apodi, RN

FONTE: INCRA (2015). Org: Flávio de Arruda Saron.

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A maior parte das famílias também foram assentadas nos lotes neste mesmo período (1997-2001), 563 (56,08%) das 1004 famílias assentadas durante o período considerado no gráfico 2. Entre os anos de 2005 e 2008 foram assentadas 304 famílias, perfazendo 30,28% do número total em todo o período considerado (1987 a 2014).

O desinteresse dos proprietários rurais em negociar as suas terras com o INCRA é explicado pelas possibilidades de ganhos com a renda da terra em razão da valorização fundiária propiciada pela implantação do projeto, que ampliou a demanda por terras na região para o cultivo de frutas.

Portanto, a implantação do perímetro irrigado está dificul-tando a implantação de novos assentamentos rurais na Chapada do Apodi, reproduzindo comportamento verificado em todo o território nacional de redução na criação de novos assentamentos numa conjuntura de fortalecimento do agronegócio e ampliação das exportações de commodities, que ganha força a partir do início dos anos 2000, conforme apontam Delgado (2010 e 2012) e Fernandes (2013).

Acrescenta-se ainda que o bom desempenho da economia na primeira década do século XXI, propiciou a redução do desem-prego, e as políticas públicas de cunho distributivo (especialmente o bolsa família) contribuíram para a diminuição da pobreza e a retração das ocupações de terras, enfraquecendo os movimentos sociais, resultando na não implantação de novos assentamentos rurais no país. Contudo, na chapada do Apodi, a partir do ano de 2011, a pressão social para a criação de novos assentamentos rurais se intensificou, e, mesmo assim, não foram implantados novos assentamentos rurais.

De acordo com o representante do STTRA e lideranças contrárias à implantação do perímetro irrigado, a desapropriação de terras na zona em que será implantado o perímetro não é “obrigatória”, embora haja certa coerção e se recorra a práticas clientelistas para retirar os pequenos produtores rurais da área.

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Para viabilizar e reduzir a resistência das comunidades rurais frente ao projeto de implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, o DNOCS têm utilizado como estratégia a cooptação de líderes de comunidades rurais, oferecendo empregos a eles próprios, a seus familiares e pessoas próximas, com o intuito de que os líderes encampem a campanha em prol da implantação do projeto e consigam convencer os demais proprietários a aceitar os termos de desapropriação das terras.

De fato, a adoção desta estratégia por parte do DNOCS tem obtido resultados positivos na desmobilização da resistência a implantação do perímetro irrigado.

Eles (DNOCS) vencem pelo cansaço. A questão das denúncias que a gente faz né. A gente também está desanimando, acho que é uma coisa ruim que o povo está desanimando. Eu avalio que isso é uma coisa ruim né, porquê jamais a gente poderia dizer que está tudo perdido, mas confesso a você, que já cheguei numa comunidade, que dizem tanto faz a gente querer como não. Uma palavra dessa é cruel para gente ouvir.

Nosso povo está sendo entregue para o capital. Na verdade grande parte do nosso povo se tornando assalariada. Não dá para dizer a você que não vai ser isso. O grande público, inclusive do nosso povo (membros filiados ao Sindicato) está trabalhando como assalariado das empresas do agronegócio, enfraquecendo a agricultura familiar, não posso deixar de admitir isso aí de jeito nenhum. É um pouco do que eu vejo da nossa derrota, sabe. Não são todos, mas um bocado de gente. [...] Deixa de produzir para ser assalariado da fruta (Representante do STTRA, 11/09/2015).

De acordo com lideranças contrárias a implantação do projeto do perímetro irrigado entrevistadas, há temor por parte dos agricultores de comunidades rurais e assentados em encam-par a resistência ao projeto e a recusa a aceitarem os termos de desapropriação das terras oferecidos pelo DNOCS. Pois, muitas famílias se sentem impotentes e intimidadas frente à grandiosi-dade do projeto e os interesses poderosos de empresas e políticos

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influentes do Rio Grande do Norte em torno da implantação do perímetro.

Além disso, há várias empresas do setor de frutas já ins-taladas na área, como a Angel Frutas España Export Import e a Agrícola Famosa, antes mesmo da implantação do perímetro irrigado. Diante disso, muitos agricultores firmaram acordos de desapropriação das suas terras, temendo ser inevitável mais cedo ou mais tarde o despejo da área. Preferem, assim, sofrer perdas menores e ceder suas terras para a implantação do projeto.

O processo indenizatório constitui-se em outro ponto polêmico do projeto por duas razões por não negociarem com os agricultores assentados e comunidades rurais o valor a ser pago pelas terras, sendo oferecidos valores inferiores aos vigentes na região. Segundo informações obtidas na pesquisa de campo, foram pagos aos agricultores o valor médio de R$1.200,00 e R$700,00 por hectare de terra desmatados e com mata, respectivamente. O que representa um montante de recursos irrisório para pequenos agricultores que dispõem de áreas em torno de 10 ha., sendo o valor das indenizações insuficiente para recomeçar a vida em outro local.

Trata-se de um projeto implementado de cima para baixo, sem nenhuma discussão. Os assentados e comunidades tra-dicionais não opinaram sobre o projeto. O caráter despótico da implantação do perímetro foi um dos fatores para a forte mobilização de resistência ao projeto.

A perversidade do projeto de implantação do perímetro irrigado não se restringe apenas ao seu aspecto social. Ao terem suas terras desapropriadas os pequenos agricultores das comu-nidades rurais perdem os seus meios de produção e de vida. A terra, além de ser fonte de renda, é responsável por suprir as demandas alimentares das famílias, reduzindo assim as despesas domésticas.

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Trata-se de população com baixo nível de escolaridade que sempre desenvolveu atividades no meio rural. São, portanto, despreparadas para assumir ocupações que possam oferecer melhor remuneração nas cidades. Constituem-se, assim, em reserva de mão-de-obra barata para agricultores capitalizados dos perímetros irrigados e empreendimentos da fruticultura irrigada, ou fortes candidatos a residir na periferia das cidades nordestinas sem qualquer inserção produtiva

Enquanto é alocado grande monta de recursos públicos em perímetros irrigados, os assentamentos rurais e comunidades rurais, estabelecidos há décadas não dispõem de apoio oficial para a implantação de irrigação para o cultivo de alimentos destinados a subsistência e aos mercados locais/regionais. Na maior parte dos assentamentos rurais e comunidades rurais do semiárido nordestino predomina a agricultura de subsistência, sendo este o caso dos assentamentos Milagres e Sítio do Góis, ambos situados na zona de influência do perímetro irrigado em fase de implantação.

Há que se ressaltar ainda que muitos perímetros já implan-tados no semiárido do nordeste permanecem ociosos ou pouco produtivos, à despeito dos elevados investimentos públicos neles já realizados (BUANIN e GARCIA, 2015). A segunda fase do Perímetro Irrigado do Baixo-Açu, por exemplo, até hoje ainda não foi implantada e a infraestrutura de canais foi totalmente destruída pela ação do tempo e de vândalos, conforme verificou Andrade (2013).

Durante a pesquisa de campo, pudemos notar a ociosidade da população que, sem a possibilidade de desenvolver a agri-cultura em grande parte do ano (apenas no período de chuvas, popularmente denominado de inverno, que compreende os meses de abril a maio), depende essencialmente das políticas públicas de cunho distributivo, situação que fica ainda mais grave em virtude da seca que assola a região há mais de 4 anos.

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A população dos assentamentos e comunidades rurais, especialmente, os jovens sem trabalho, em decorrência das secas prolongadas, se convertem em trabalhadores assalariados, con-forme foi verificado durante a realização da pesquisa de campo. Sobre isso, Bezerra (2012) assinala:

As empresas contratam massivamente acampados e assen-tados, tendo acesso fácil ao recurso da força de trabalho nas proximidades das fazendas. Tal fato ajuda a diminuir, sobejamente os custos para os empresários com o pagamento e transporte dos trabalhadores. [...]

Eles são atraídos pela possibilidade de obterem rendimentos mensais garantidos, bem como ter acesso ao seguro desemprego para o período de entressafra (BEZERRA, 2012, p.281).

O relato transcrito abaixo expõe o quadro socioeconômico nos assentamentos rurais da chapada do Apodi.

Rapaz, vou logo te falar com todas as letras. O sindicato é contra isso aí, mas eu sou a favor. Porque assim [...] hoje mesmo eu tenho dois genros que trabalham lá nesse projeto lá no Ceará (Perímetro irrigado do Vale do Jaguaribe em Limoeiro do Norte). Eu acho que isso é uma boa para gente (Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi). Eu comprei 2 mil quilos de silagem (utilizada para a criação de cabras) lá no cabeça preta (Perímetro Irrigado do Vale do Jaguaribe em Limoeiro do Norte). Nós, tendo aqui em Apodi (perímetro irrigado) é mais fácil para gente, para nós criadores (caprinocultura) (F.A.S, 58 anos, 12/09/2015).

Portanto, a precariedade em termos de condições produ-tivas e geração de renda nos assentamentos rurais da chapada do Apodi torna o contingente populacional nos assentamentos passível de assalariamento nos empreendimentos do agronegócio da fruticultura irrigada.

Com a irrigação, a produção nos lotes poderia aumentar significativamente, contribuindo para a injeção de renda nos lotes e assentamentos rurais, contribuindo para a dinamização econômica dos municípios do semiárido potiguar e nordestino. Além disso, seguramente os agricultores assentados e seus

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familiares não se sujeitariam, ou em número reduzido “optariam” pelo assalariamento nos empreendimentos do agronegócio da fruticultura irrigada.

O fomento a implantação de perímetros irrigados para a produção de frutas, e, por outro lado, a ausência de políticas mais efetivas de incentivo à agricultura irrigada nos assentamentos e comunidades rurais denota a opção pelo agronegócio por parte do Estado brasileiro.

Considerações finaisA implantação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi

está inserida na nova geração de perímetros públicos irrigados apoiados pelo Estado brasileiro, cujo exemplo maior é o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do qual faz parte a trans-posição de águas do rio São Francisco por meio da implantação de canais artificiais.

Estas obras estão em consonância com a expansão da agricultura irrigada no semiárido nordestino, que constitui-se num dos principais vetores da expansão do agronegócio nesta área.

Os resultados apresentados por outros perímetros irrigados para a produção de frutas mobilizaram várias forças sociais na chapada do Apodi em oposição à implantação do Perímetro Santa Cruz do Apodi. Este movimento, que é liderado principalmente pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi retardou a implantação do perímetro irrigado.

A implantação do perímetro irrigado é emblemática por ser um dos elementos importantes nas transformações em processo no espaço agrário potiguar e do Semiárido nordestino.

São mudanças desencadeadas pela expansão do agronegó-cio, que no caso potiguar e em boa parte do semiárido nordestino é liderado pelo setor de produção de frutas irrigadas. Dentre as transformações no espaço agrário, destaca-se a conversão de

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agricultura de baixa tecnificação, voltada basicamente para a subsistência e mercados locais/regionais para a agricultura com altos níveis de tecnificação, amparada no trabalho assalariado e ancorada na expansão do cultivo de frutas (no caso potiguar, basicamente constitui-se na monocultura do melão) para a expor-tação por parte de grandes empresas nacionais e transacionais.

Portanto, os interesses do poder público em diferentes escalas e do capital estão em sincronia, favorecendo a expansão do agronegócio na chapada do Apodi, bem como no Rio Grande do Norte, na região Nordeste e no Brasil (DELGADO, 2012). Por outro lado, os assentamentos e comunidades rurais do semiárido continuam carentes de políticas mais efetivas e consistentes de apoio à produção, pois estão limitadas aos programas sociais de transferência de renda. No entanto, para os empreendimentos do agronegócio da fruticultura é importante que a condição produtiva atual nos assentamentos, acampamentos e comunidades rurais seja mantida, de modo que as empresas continuem contando com a grande oferta de mão-de-obra barata nas áreas rurais.

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Uso do território, reorganizações produtivas e economia solidária

no Rio Grande do Norte1

Leandro de Castro Lima

Celso Donizete Locatel

Introdução

A redefinição do processo produtivo, ocorrida a partir da década de 1960, ocasionou mudanças na organização social em nível mundial, dada a ampliação da circulação de mercadorias, do movimento do capital, das normas e das ordens que partem da atuação conjunta de grandes agentes corporativos, moldando distintas configurações territoriais a partir dos usos políticos e econômicos do território.

Por consequência, essas mudanças estruturais também foram sentidas no meio rural, porém com o agravante dos inte-resses da classe latifundiária e das oligarquias, que a partir da propriedade privada da terra e das políticas “modernizantes”, no contexto brasileiro, intensificaram as desigualdades e a exploração

1 O presente texto, é parte das reflexões empreendidas durante a realiza-ção curso do Metrado, realizado junto ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (PPGe) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobre orientação do professor Dr. Celso D. Locatel.

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do trabalhador rural, subjugando-os a uma lógica de produção capitalista.

No Rio Grande do Norte, em decorrência do seu processo histórico, as transformações que ocorrem no meio rural vão sendo constituídas por uma série de conflitos e desigualdades, impulsionadas, justamente, pela classe latifundiária que, junta-mente com o Estado, privilegiou (e ainda privilegia) os interesses do capital, de forma geral e inclusive seus próprios interesses, impulsionando o uso de técnicas em determinadas culturas, que hoje insere-se num processo globalizante.

O privilégio concedido aos que se dedicam a essas culturas, a exemplo da fruticultura irrigada no Rio Grande do Norte, acentuou as desigualdades sociais entre os trabalhadores rurais (assalariados ou pequenos proprietários de terra) e manteve a estrutura conservadora e clientelista posta. Juntavam-se ao Estado, grandes empresas no domínio dos meios de produção e no uso do território, neste caso, no uso dos “recursos territoriais” (SANTOS; SILVEIRA, 2008). A presença dessas empresas, jun-tamente com o Estado, vai conferindo ao Rio Grande do Norte um conjunto de particularidades, principalmente pela presença marcante de empresas multinacionais do agronegócio.

Nesse sentido, o Estado delimita as normas, configurando demandas distintas de uso. Assim, se por um lado há o uso privi-legiado, pelos agentes hegemônicos, do território como recurso, onde a seletividade do capital promove o uso corporativo do território, por outro lado, este também se apresenta como abrigo, permitindo a uma parcela da sociedade (re)criar estratégias para a sua reprodução social. Essa nova (re)produção é denominada de Economia Solidária e surge como alternativa contra-hegemônica a reprodução ampliada do capital, principalmente, nas atividades econômicas presentes no meio rural.

Admitindo que, quanto menor a escala, mais complexa a análise, percebemos que é no território como abrigo que as relações socioeconômicas requerem um apurado olhar geográfico, pois

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esse possibilita a reprodução e, ao mesmo tempo, a permanência dos trabalhadores rurais em certas atividades. Diante disso, o presente texto tem como objetivo discutir a redefinição dos usos do território potiguar a partir da Economia Solidária, no contexto do processo de reestruturação produtiva do capital e seus rebatimentos no setor agrícola.

Para evidenciar esses múltiplos processos, utilizou-se como procedimento metodológico, a realização de uma pesquisa bibliográfica, com base em autores que discutem reestruturação produtiva, usos do território e economia solidária, e de coleta dos dados secundários, obtidos junto a SENAES (2007; 2013), que foram ratados e representados por meio dos mapas. Dessa maneira, nas seções que seguem, abordamos as mudanças ocorrida na base produtiva da economia agrícola, que redefinem os usos do território no Rio Grande do Norte, para posteriormente focarmos na atuação contraditória dos empreendimentos solidários, já que não se constituem plenamente enquanto um novo espaço de produção e de relações sociais.

A economia agrícola no território do Rio Grande do Norte: do uso tradicional ao moderno

A economia do Rio Grande do Norte, marcada pela diver-sidade dos produtos agrícola têm, nas últimas décadas, apresen-tando um crescimento significativo, principalmente no tocante a implementação de projetos de modernização na agricultura, que reflete a necessidade de grandes inversões de capital na produção, executado tanto pelo Estado como por grandes empresas de capital nacional e até mesmo internacional. Entretanto, todas essas transformações atuais representam a materialização de uma séria de mudanças na economia, fazendo com que os setores tradicionais, que se sucedem e se superpõe ao processo de trans-formação da economia agrícola, perda importância para os setores modernos. Para tal análise torna-se indispensável fazermos

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as devidas associações ao contexto de ocupação geográfica do território potiguar.

Num contexto histórico, o desenvolvimento da economia agrícola no RN, iniciou-se na segunda metade do século XVIII, tendo a cotonicultura e, posteriormente, a produção de cana-de-açúcar como atividades agrícolas principais para o processo de crescimento econômico e de ocupação litorânea do território. Nesse mesmo século, a ocupação na área do sertão era realizada pela pecuária extensiva e, muitas vezes, associada com a agricul-tura camponesa, voltada à produção de alimentos. O que marcava a dinâmica da economia agrícola da época era a presença do latifúndio, do uso de técnicas rudimentares na produção e da forte injustiça social, relacionada consubstancialmente com a precária condição de vida de agricultores livres e de trabalhadores escravos.

No final do século XVIII e no século XIX, se destaca na agricultura potiguar a atividade da cotonicultura, exercendo uma importância cada vez maior no contexto econômico colonial e, posteriormente, imperial, fazendo com que os dirigentes de cada período empenhassem cada vez mais na criação de infraestruturas para a dinamização da produção. Entretanto, a base da economia do RN apenas cumpria o papel de produzir matérias-primas para serem exportadas e beneficiada, principalmente fora do nosso país. No caso do algodão, este teve como destino inicial a Europa e, mais tarde o eixo sul e sudeste, frente as demandas da industrialização dessas áreas (SANTOS, 2010).

O processo de industrialização Sul/Sudeste, já no período republicano, insere o estado em um novo contexto na economia nacional. Assim, além de mero exportador de matérias-primas o RN passa agora a beneficiar algumas de suas mercadorias, como no caso da criação das usinas de algodão para beneficiar a retirada da pluma e a produção de óleo do caroço de algodão (NUNES, 2009), pois as complexas transformações ocorridas com a modernização do setor agrário nacional, passam a refletir, embora de maneira desigual e periférica, no território potiguar.

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Todas essas mudanças nas bases técnicas, seja na agricultura ou na indústria, tinha um caráter estratégico para atender o projeto de urbanização nacional em curso, financiado sobretudo por ações governamentais e empresariais. Tudo isso fez com que, no início do século XX, o território potiguar também fosse marcado pela implantação de diversos fixos e fluxos para a dinamização do seu uso enquanto recurso e da sua economia agrícola.

Ocorre então a ampliação e apoio ao crédito por parte do estado, fazendo com que o mercado interno expandisse e dinamizasse toda a sua produção. Com isso, o Estado possibi-litou o fortalecimento não só da cotonicultura, como também impulsionou outras atividades relacionada a pecuária. De acordo com Santos (2010) a agropecuária no estado dinamizou tanto, que no período entre 1939 a 1959 apresentou uma elevada taxa de crescimento de 5,4%, superando, por conseguinte, a média industrial, que era de 2,4%. Posteriormente, até a década de 1980, além do algodão várias outras atividades agrícolas também vinham sendo desenvolvidas no RN.

Destaca-se nesse período, a produção da cana-de-açú-car, destinada a atividade açucareira; da mamona, destinada a indústria de óleo; de couros e peles, com intuito de atender o crescente mercado de calçados no Nordeste; de sisal e cera de carnaúba, direcionada para o mercado externo; e, mais tarde, de caju, dinamizada pela implementação do Projeto de Colonização do município de Serra do Mel e pela instalação de agroindústrias (DIAS, 2011). Tamanha a diversidade na produção, as propostas políticas para o desenvolvimento agrícola do estado começaram a ser realizadas de forma setorizada e por regiões, com o enfoque especifico para cada uma delas.

Isso fez com que o desenvolvimento agrícola passasse a ter uma forte estruturação e regulação por parte do Estado, principal responsável pelas mudanças na configuração territorial e nos usos agrícolas do território norte-rio-grandense. Tais vetores da modernização, apresentavam lógicas alheias ao território pelo

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seu caráter hegemônico e desigual, acarretando um conjunto de mudanças de ordem econômica, política e social, que atingiu fortemente as ações horizontais desenvolvidas pelos pequenos agricultores potiguar que agora se via subjugados a lógica do capital, ao serem forçado a vender sua força de trabalho, seja às agroindústrias, no campo, ou às empresas, na cidade, para garantir a sua reprodução.

Ainda no movimento da modernização agrícola, conjunta-mente com o Governo Federal na década de 1950, o Governo do RN passa a instituir os órgãos de Assistências Técnica e Extensão Rural (EMATER), a fim de fomentar estudos técnicos e de via-bilidade econômica e, mais tarde, o de pesquisa agropecuária, através da criação da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte (EMPARN), em 1979, a princípio para os agricultores familiares, mas que depois viabilizou também a implementação do agronegócio. Nesse mesmo período, em 1975, o estado consegue o primeiro financiamento para a execução do Programa de Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Norte, mais difundido como “Projeto Rural-Norte”, com articulações do Governo Federal, financiamento do Banco Mundial e tendo como objetivo a modernização da agricultura do estado (SANTOS, 2010).

Com a implementação do “Projeto Rural-Norte”, algumas ações são realizadas para dinamizar a economia agrícola do estado. É durante o governo de Cortez Pereira (1971-1975) que ocorre a execução de uma série de Projetos de Colonização, com o intuito de criar novos territórios produtores ou dinamizar os já existentes. Dentre os projetos destacamos: o Projeto para viabilizar o plantio do café na Serra de Martins; o Projeto Vilas Rurais que culminou com a criação do município de Serra do Mel, constituído pela instalação de assentamentos rurais para a viabilização da cajucultura no estado, com mais de 18 mil hectares de produção; o Projeto Camarão, desenvolvido as mar-gens do Rio Potengi e se expandindo, posteriormente, para os diferentes estuários do estado; e o Projeto Lagoa do Boqueirão,

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com o incentivo ao plantio de Coco da Bahia no litoral norte do estado (SANTOS, 2010).

Em contrapartida a esses grandes projetos, no início da década de 1980 o governo do estado também buscou executar pequenos projetos produtivos, a fim de levar desenvolvimento social e de infraestrutura para os pequenos agricultores potigua-res. Dentre o que mais se destacou tem-se o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP) em 1985, que, posterior-mente, com a nova demanda dos recursos do governo do estado ao Banco Mundial, se transformou no Programa de Combate à Pobreza (PCPR), na perspectiva de um desenvolvimento rural, beneficiando primordialmente alguns pequenos fruticultores da região do Alto Oeste, por meio do financiamento as suas cooperativas (NUNES, 2009).

Com o passar do tempo, poucos projetos tiveram continui-dade nos governos que se sucederam, como no caso do Projeto das Vilas Rurais e do Camarão, em muitos casos eles foram sucateados, levando-nos a perceber que os desdobramentos das atividades modernas, frente as atividades tradicionais, vai se constituindo pelos interesses políticos e empresariais das oligarquias e das elites econômica que comandam as ações do Estado. Dessa forma, já na metade da década de 1980, o estado começa a adotar, de maneira tardia ao contexto nacional, as chamadas políticas de modernização da agricultura, o que ocasionou uma restruturação na produção agrícola, para fortalecer a diversificação produtiva do RN, que se deu através de medidas como ampliação de incentivos fiscais e financiamentos públicos para atrair o grande capital.

Diante desses investimentos estatais, sobretudo financiados pelo Fundo de Investimento do Nordeste (FINOR) e estimulados por agências de desenvolvimento, a exemplo da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), que visava a implemen-tação de grandes projetos técnicos2 em vários estados Nordestinos

2 Para mais informações sobre os projetos técnicos da SUDENE, Ver Andrade (2011).

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(ANDRADE, 2011). No caso do RN, este passou a se beneficiar pelos projetos de construção de barragens, açudes e adutoras, incentivado também pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Nesse sentido, se executa no território potiguar o Projeto Agroindustrial do Vale do Assú, conhecido popularmente como o Baixo-Assú, bastante atrativo pela construção da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, a partir do represamento das águas do Rio Piranhas, no ano de 1980.

Todavia, com a implantação do projeto do Baixo-Assú, um mercado de terras a baixo custo começa a se configurar na região, beneficiada ainda pela inserção de sistemas técnicos e de mão-de-obra abundante, constituída pelos agricultores desapropriados das terras inundadas pela barragem, fazendo da região um grande atrativo para o capital produtivo das grandes empresas agroindustriais se instalarem, tais como: a Itapetinga Agroindustrial, a FINOBRASA e, mais tarde, a multinacional Del Monte Fresh Produce (SANTOS, 2010), que passaram a praticar a agricultura irrigada, acompanhada do intenso uso de agrotóxicos.

Em uma rápida análise dos fatores geográficos da área, o Projeto Baixo-Assú se sobressai no contexto econômico do Rio Grande do Norte pelas suas vantagens locacionais, proporcio-nando a estas empresas uma infraestrutura hídrica e logística, através da implementação da barragem e da proximidade da região aos Portos de Natal/RN e de Fortaleza/CE, o que facilita o escoamento da produção, além dos estímulos fiscais e concessões públicas do Estado, as boas condições naturais do vale úmido, dada a fertilidade do solo, o alto índice de insolação e a pouca interferências das intempéries climáticas, bem como o baixo custo da mão-de-obra (NUNES, 2009).

Temos demonstrado que essas ações planejadas pelo Estado, serviram de base para a implantação e expansão das atividades do agronegócio, visando a incorporação de novas atividades agrícolas e a superação das atividades tradicionais anteriormente citadas ou a sua restruturação produtiva com a incorporação

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de novas técnicas ao processo produtivo tradicional, tal como ocorreu na pecuária de leite, com a inserção de tanques para o acondicionamento e resfriamento do leite, o uso de ordenha-deiras mecânicas, de inseminação artificial e transferência de embriões no rebanho. Outras atividades, por exemplo a salineira e a petrolífera em terra, também reestruturaram o seu processo produtivo, passando a ganhar visibilidade na economia do estado e incorporar uma dinâmica maior para a região Apodi-Mossoró.

O programa de agricultura irrigada, pode ser considerado a expressão máxima do agronegócio potiguar, onde a dimensão empresarial da agricultura adquire maior proeminência, gerando novos nexos nas formas de produzir e influenciando fortemente o uso agrícola do território como recurso, o valor das terras e das mercadorias que, através da técnica de irrigação, possibilitava uma produção frutícola padronizada. Amparadas por financia-mentos públicos, algumas empresas foram responsáveis pela forte expressão frutícola do RN, das quais realçamos: a Mossoró Agroindustrial S/A (MAISA), a Frutas do Nordeste (FRUNORTE), como também a Del Monte Fresh Produce e a FINOBRASA.

Atualmente no Rio Grande do Norte, destaca-se na fru-ticultura irrigada a cultura do melão3 já bem consolidada na região oeste do estado, por apresentar os maiores índices de produtividade, de tecnificação do setor, da área irrigada e de exportação, gerando amplas divisas juntamente com outras culturas do estado. Porém, não menos importante do que a cultura do melão, o RN também tem uma forte expressão no cultivo de da banana, realizada pela empresa Del Monte Fresh Produce no Baixo-Assú, com o emprego de apuradas técnicas na utilização de fertilizantes e defensivos, visando garantir a qualidade do fruto, também na utilização da irrigação, realizada por microaspersão, bem como no processo de seleção, lavagem e embalagem do fruto (Figura 01), além da estrutura de logística da empresa.

3 Para mais informações sobre a produção irrigada do melão no Rio Grande do Norte, Ver (ANDRADE, 2013).

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Figura 01 ‒ Padrão Técnico-Produtivo da Banana Del Monte

FONTE: Acervo Del Monte, 2014.

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Ainda em relação a banana, através da EMPARN, também vem sendo desenvolvidos estudos em laboratório e agregando ciência e tecnologia no seu sistema de produção, fortalecendo e selecionando as melhores mudas, em busca de uma melhor eficiência produtiva (Figura 02).Outras culturas também foram beneficiadas por esse processo de modernização agrícola, embora com graus de tecnificação distintos, sendo muitas vezes pouco expressivos, tais como a melancia, a manga, o mamão, o maracujá e o abacaxi (SANTOS, 2010), realizadas por médios agricultores, na maioria das vezes organizados em cooperativas.

Figura 02 ‒ Etapas do desenvolvimento da bananeira no laboratório da EMPARN

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FONTE: Acervo pessoal, 2014.

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De forma especial, ressaltamos ainda a incorporação téc-nica na produção da castanha do caju, desenvolvida no estado pela EMPARN, através dos estudos da Embrapa Agroindustrial Tropical, a partir da utilização da biotecnologia para a produção de cajueiros anão precoce e de cajueiros de porte médio (EMPARN, 2014). A partir do plantio de mudas enxertadas, percebe-se em pouco tempo o alto padrão de produtividade e da qualidade do fruto e da sua resistência aos ataques de pragas, propiciado por um melhoramento genético. Percebendo essas vantagens, grandes jardins clonais (Figura 03) foram implementados no estado, sobretudo na região Oeste, do qual se destaca o município de Serra do Mel.

Figura 03 ‒ Mudas de cajueiros anão-precoce

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FONTE: EMPARN, 2012; Acervo do autor, 2014.

Em face dos exemplos supracitados dessa modernização, podemos afirmar que a economia agrícola do RN se coloca como uma grande contradição uma vez que a maioria dos agricultores camponeses foram marginalizados nesse processo e permanecem com o uso de técnicas tradicionais, descapitalizados e sujeitados à lógica do grande capital. As características da agricultura poti-guar são múltiplas e diversas, o esforço de análise realizado para mostrar as mudanças na base técnica da economia agrícola do RN, não tem por objetivo somente elencar essas mudanças, mas reforçar as contradições no uso do território norte-rio-grandense.

Buscamos compreender o uso do território como recurso, com enfoque, de um lado, para a sua materialidade e de outro para os seus modos de organização e regulação. Portanto, o território visto enquanto recurso é fortemente marcado por uma regulação política e de mercado, que sob a luz do neoliberalismo tornará esses usos cada vez “mais seletivos do que antes e punindo, assim, as populações mais pobres, mais isoladas, mais dispersas e mais distantes [...] dos centros produtivos” (SANTOS; SILVEIRA, 2008,

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p. 303). Em relação ao RN, tais contradições da modernização refletem os usos seletivos e distinto do território: seletivo por apresentar diferentes densidades técnicas, priorizando as culturas que mais fomentavam o mercado nacional e internacional, e distinto pois expropriou a maioria dos agricultores familiares, subjugando-os a lógica do capital.

Queremos destacar, conforme Santos e Silveira (2008, p. 21) que “o uso do território pode ser definido pela implantação de infraestruturas [...], mas também pelo dinamismo da economia e da sociedade”. Com isso, o desenvolvimento da agricultura potiguar apresenta uma forte relação com o grande capital e, sob a égide do mesmo, os agentes hegemônicos buscaram -se inserir novas culturas e reestruturar as culturas tradicionais, reduzindo os custos e maximizando os lucros e acarretando assim um novo modelo econômico que atingiu fortemente as condições de trabalho dos pequenos agricultores. Estes que não desaparecem, mas coexistem nesse processo de modernização, fornecendo mão-de-obra barata e complementando a produção agrícola com outras culturas de menor valor de mercado.

De forma dialética, ao mesmo tempo que a racionalidade dominante oportunizou às grandes empresas de monopolizar a produção, o mercado e os sistemas técnicos da agricultura poti-guar, estabelecendo normas no uso do território, esse processo também gerou um contra-racionalidade, dada as complexas rela-ções sociais que se estabeleciam, as desigualdades desencadeadas e a exploração da força de trabalho. Conforme aponte Santos e Silveira (2008, p. 23) “trata-se de encontrar e desenvolver nexos horizontais e verticais”.

Para tanto, uma nova configuração territorial começa a se estabelecer pela força dos sujeitos locais. Os agricultores a margens de todo esse processo iniciam um movimento de luta por direitos a terra, a moradia, a condições dignas de produção, credito, assistência técnica, enfim de lutam por uma melhor qualidade de vida, principalmente no tocante as questões de ordem econômica.

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Com a abertura do diálogo entre o Estado e os movimentos sociais que se gestavam, algumas reivindicações foram sendo atendidas, a fim de conter a massa dos agricultores que se mobilizava. Dessa maneira, com incentivos dos programas governamentais, uma contra-racionalidade ao projeto racionalizante da economia agrícola potiguar começa a ganhar expressividade, através de alguns princípios de organização coletiva, política e cooperada.

Inicia-se uma organização entre os agricultores camponeses em associações e cooperativas, buscando um desenvolvimento amplo das suas condições socioeconômica e a criação de uma nova dimensão na estruturação das bases sociais, assentadas nos pressupostos da participação popular e abrangendo novos elementos políticos e econômicos para a sua reprodução social, conforme apresentamos em nossa próxima seção.

A economia solidária como contra-racionalidade à reorganização produtiva agrícola no Rio Grande do Norte

O projeto de desenvolvimento e de modernização agrícola no território do Rio Grande do Norte pode ser entendido pelas características de sua materialidade e das ações que o anima. De antemão verifica-se que esse projeto favoreceu os agentes hegemônicos, representados pelos agricultores capitalistas e as grandes empresas, tendo como principal viabilizador o Estado. Por outro lado, verifica-se que ocorreu a penalização dos pequenos agricultores e trabalhadores sem-terra, que ficaram a margem dos processos. Só a título de exemplo, a implantação de muitos projetos Agroindustriais viabilizado pelo DNOCS, levou a desa-propriação de muitos agricultores, tendo um efeito desintegrador nas suas atividades agrícolas, bem como no seu reconhecimento identidário enquanto camponês, pois muitos passaram a servir de força de trabalho para atuarem nesses projetos recém instalados.

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O que percebemos é a implantação de uma materialidade técnica que gerou ações desintegradoras para os pequenos agri-cultores, não só das condições de trabalho mas, sobretudo, pela degradação ambiental intensa, com perdas de recursos ambientais, degradação dos solos e uso de produtos químicos, gerando condições insalubres para uma agricultura de base familiar e agroecológica se estabelecer (SANTOS, 2010). Porém, a partir da década de 1990, as ações para viabilizar a modernização agrícola no estado sofrem drásticas consequências com o agravamento da crise mundial e da abertura dos mercados, fazendo com que houvesse uma redução na intervenção do Estado nesse processo de estruturação da eco-nomia agrícola. Essa redução impactou diretamente a produção das empresas que já vinham sofrendo com a crise, e com gestões ineficientes, mas que agora tinha sua economia inviabilizada de vez, levando algumas empresas a falência, como a MAISA e a FRUNORTE (NUNES, 2009).

Nesse processo de falência das empresas, uma nova con-figuração territorial começa a ser esboçada, a partir de novos usos no território do Rio Grande do Norte. A gestão estadual, buscando diversificar a produção no estado, passa a estimula uma reorganização produtiva do território, através de políticas sociais e programas governamentais, a partir da produção cooperada por pequenos agricultores, com incentivo ao microcrédito e ampliação das áreas de assentamentos rurais (SANTOS, 2010). Todas essas ações, só vieram a reconhecer institucionalmente uma série de reivindicações anteriormente postas pelos movimentos sociais com articulação regional em todo o Nordeste.

Segundo Santos e Silveira (2008) como o território é sem-pre uma construção histórica, permanências e coexistências são identificadas, e ainda dentro da perspectiva cooperativista, ressaltamos no território potiguar a prevalência e manutenção de algumas empresas agrícolas, que buscaram a organização cooperativa a fim de preservar a sua viabilidade econômica. Com isso, grande parte da representação cooperativa do estado era

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composta por grandes latifundiários que comandavam o poder econômico local.

Contudo, antes de analisarmos a estruturação da economia solidária no RN, faz-se necessário nos reportar a um breve histó-rico do cooperativismo no estado, a fim de destacarmos a atuação dos principais agentes sociais nesse processo. Dessa forma, pelo viés histórico, percebemos que, além do papel do estado, a Igreja Católica, representada pela Diocese de Natal com atuação em todo o estado, foi um agente fundamental para fortalecimento do movimento cooperativista potiguar. De acordo com Lucena (1996) a Igreja Católica foi a instituição pioneira nas ações para o processo de formação das cooperativas de agricultores, baseado nos preceitos religiosos cristãos.

Na região Seridó e Oeste do estado, durante a década de 1910, a Igreja através de alguns bispos e padres, constituíram algumas associações, sindicatos e cooperativas rurais, incen-tivando a ajuda mútua e a solidariedade entre os agricultores (SANTOS, 2010). A interferência da Igreja foi tamanha, que inclusive ficou gravada nos estatutos dessas cooperativas, onde em muitos diziam que 50% das sobras obtidas deveriam ser aplicados para as obras sociais da Igreja Católica e o outros 50% na própria Cooperativa (LUCENA, 1996).

Dentro dessas características, diferentes cooperativas começam a ser criadas para atender a demandas diferenciadas. A primeira Cooperativa do Rio Grande do Norte foi criada em 1915, pelo farmacêutico Tércio Rosado Maia no município de Mossoró. Denominada de “Cooperativa Mossoró Novo”. A atuação da cooperativa envolvia atividades voltadas para a produção, consumo, crédito, habitação e educação (FELIPE, 2010). Apesar da forte influência da Igreja Católica, a sua fraca atuação e a pouca adesão de cooperados, fez com que a cooperativa entrasse em processo de falência e não progredisse. Posteriormente, de caráter mais rural, surgiram algumas cooperativas de Crédito que apoiaram atividades agropecuárias, mais conhecidas como

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Caixas Rurais. Segundo Lucena (1996), a pioneira Caixa Rural, surgiu em 1925 no município de Ceará-Mirim, se disseminando para outros municípios, como Martins, Angicos e Natal.

No contexto do Seridó, as cooperativas que surgiam ligadas a Igreja atuavam para os grandes donos de terra, a fim de fomentar a economia da região. Sobre o comando do Bispo José de Medeiros Delgado, três cooperativas foram fundadas com o apoio da Igreja, quais foram: Central Agropecuária do Seridó, Cooperativa de Crédito Agrícola de Cruzeta e Cooperativa Escola Diocesana de Caicó (SANTOS, 2010). A Igreja exercia assim, uma ação educativa no campo, embora fosse para constituir lideranças rurais em associações ou em cooperativas, para atuarem disseminando seus princípios. Para Santos (2010) grande parte das ações católicas para o desenvolvimento cooperativista no RN foram ampliado para outros estados, com o objetivo de ampliarem suas ações para demais comunidades rurais.

Em relação aos grandes latifundiários, estes juntamente com o Estado, constituíram algumas cooperativas de créditos, ou seja, as Caixas Rurais, buscando obter financiamentos com benefícios melhores do que os dos bancos, uma vez que o governo isentou o pagamento de impostos por toda e qualquer cooperativa de crédito (SANTOS, 2010). Mais tarde, por volta da década de 1960, a SUDENE buscou reestruturar as cooperativas do RN, incentiva através Departamento de Assistência ao Cooperativismo (DAC) e o Departamento de Cooperativismo e Organização Rural (DECOR), ligados a Secretária de Agricultura (LUCENA, 1996), fornecendo insumos e assistência financeira para fortalecer a infraestrutura e a organização social das cooperativas.

Retomando as ações do Estado, os incentivos públicos proporcionados pela SUDENE começavam a ser direcionados para as cooperativas, permitindo-os o acesso a aquisição de insumos, assistência técnica e linhas de crédito, com vista ao estímulo e melhoria da qualidade de vida dos agricultores, através da constituição de cooperativas agrícolas, que tinha como plano de

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fundo a perspectiva da organização coletiva. Contudo, na década de 1970 ocorre um refluxo no crescimento do cooperativismo do RN, devido a incapacidade do movimento na superação da extrema pobreza, que se instaurava no meio rural potiguar, fazendo com que as cooperativas pouco contribuíssem para a melhoria das condições de vida dos agricultores, deixando-os insatisfeitos por não conseguirem um desenvolvimento pleno, que atendesse as suas necessidades.

Toda essa insatisfação e refluxo no movimento cooperati-vista do Rio Grande do Norte pode ser constatado na Tabela 01. Durante os períodos analisados os números não são expressivos, a quantidade de cooperativas agrícolas sempre variou em períodos intercalados de aumento e decréscimo, tendo sua maior queda justamente na década de 1980, que culminou com a efetivação de um conjunto de fatores econômicos da década de 1970, dos quais atingiu fortemente as cooperativas agrícolas do RN, e atingindo sua maior expressividade na década de 2000, influenciada por uma série de fatores políticos e econômicos, bem como pelas políticas públicas, em especial da Economia Solidária, como veremos mais adiante.

Tabela 01 ‒ Rio Grande do Norte: evolução das cooperativas agrícolas

ANO1930/

401941/

501951/

601961/

701971/

801981/

901997/ 2007

CooperativasAgrícolas

24 19 15 27 15 13 42

FONTE: OCERN, 2008 apud DIAS, 2011.

Frente a esses dados, se torna importante destacarmos alguns fatores explicativos para a situação observada na década 1980. O decréscimo sentido nesse período, decorrer do processo de recessão econômica sentido em âmbito nacional. Atrelada a essa recessão econômica, houve a escassez de recursos e incentivos

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governamentais, em especial, financeiros, aliado a superação de cooperativas ditas empresariais frente às cooperativas populares, a falta de um ideário coletivo e cooperativista, bem como os períodos prolongados de estiagem que marcaram a época, pre-judicando a produção agrícola e, consequentemente, estagnando todo o movimento cooperado potiguar da época.

Esses reflexos negativos no movimento cooperativista do RN, contribuiu para fragilizar o uso do território enquanto abrigo para os agricultores familiares, que não conseguiram se estabelecer em uma nova divisão do trabalho, de forma autônoma e independente. Entretanto, esse mesmo movimento reorganizou o uso agrícola do território para as grandes empresas, viabili-zado, sobretudo, pelo tripé da ação estatal, da Igreja Católica e, posteriormente, do cooperativismo de negócio (LUCENA, 1996). Percebe-se, em uma análise mais apurada do desenvolvimento do cooperativismo no RN que grande parte dos investimentos públicos forma tangenciados para as empresas e os latifundiários falidos no período de crise. Para Santos e Silveira (2008) a instân-cia política obtém certa ascendência sobre a instância econômica, do qual buscou promover no estado um desenvolvimento exógeno e dependente do mercado nacional e internacional, ao invés da promoção de ações verticais que viessem a trazer melhorias socioeconômicas.

Toda essa regulação política, gerou grande insatisfação dos agricultores sobre o interesse coletivo cooperativista, por não propiciar melhores condições de mercado, principalmente no tocante a comercialização. O movimento social se via contido frente as ações políticas de caráter paternalista e conservadoras, minando inclusive outros direitos, por exemplo, de acesso à terra, moradia, educação e entre outros, essenciais para garantir a reprodução social.

Posteriormente, na década de 1990, o cooperativismo do RN vive um processo de estagnação, não conseguindo superar problemas das mais variadas ordens. Entretanto, será na década

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de 2000 que o RN irá vivenciar uma pluralidade nas experiências socioeconômicas do cooperativismo, que se metamorfoseia agora sob os princípios e valores da Economia Solidária, semeando um novo ideário de desenvolvimento social.

De âmbito nacional, a política de Economia Solidária vai se territorializando no Rio Grande do Norte, estimulada pela práxis da gestão democrática e participativa, pautada na autogestão, bem como pelo apoio das instituições governamentais e não-governa-mentais, se constitui enquanto uma política pública, que engloba as dimensões da produção, de crédito, do beneficiamento e da comercialização e da grande expressão popular. Entendemos que a Política Nacional de Economia Solidária não está circunscrita ao estado do Rio Grande do Norte, sua complexa efetivação no território é marcada por uma série de normas e de eventos, que aparentemente apresentam nexos exógenos, mas que também impacta no uso e na configuração do território potiguar.

No Rio Grande do Norte, a emergência da Economia Solidária se gesta no final da década de 1990, ainda um pouco posterior ao seu período de institucionalização enquanto Política Pública, acompanhando a atuação de alguns movimentos sociais de base popular articulados ao Estado. É a partir da década de 2000, que a Economia Solidária começa a se efetivar mais expressivamente no território do RN.

Com a sua institucionalização, mais precisamente no ano de 2003, com a criação de SENAES no governo Lula, a expressividade dos empreendimentos solidários passa a ser reconhecida em todo o país. De acordo com a SENAES (2007), só no Rio Grande do Norte entre 2005 e 2007 existia 817 empreendimentos de economia solidária, representados por grupos informais (612), associações (111) e cooperativas (78). Desse total, 564 empreendimentos solidários possuem atividades rurais, constituindo um número bem superior aos das cooperativas agrícolas.

Já em 2013, são 1.600 empreendimentos de Economia Solidária, distribuídos nos espaços rurais e urbanos potiguares.

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Ao analisarmos os dados, percebemos que a principal atuação da Economia Solidária no Rio Grande do Norte se dá no meio rural. Dos 1.600 empreendimentos, 496 estão no meio urbano, em sua maioria nos municípios de Natal, Mossoró, Caicó e Pau dos Ferros, e têm atividades voltadas para a prestação de serviços, dentre as quais se destacam: coleta de lixo, crédito, têxtil e artesanato. Em relação aos 1.104 restantes, são empreendimentos rurais distri-buídos por quase todo o território, que tem uma expressividade no estado, devido as relações sociais, políticas e econômicas que permeiam esses empreendimentos.

Assim, as ações da Política Nacional de Economia Solidária estão atreladas aos pequenos empreendimentos, em sua maioria de base familiar. O referido estado não apresenta uma herança cultural do movimento cooperativista, pois o arranjo social que possibilitou a construção dessas experiências associativas se deu dentro de um modelo de desenvolvimento adotado pelo Estado, focando, principalmente, os pequenos agricultores, em especial assentados de reforma agrária.

De acordo com Velloso e Locatel (2011, p. 13) “para desen-cadear um processo de promoção do desenvolvimento, precisa-se criar um ambiente favorável ao desenvolvimento”. Assim, gover-nantes e lideranças locais do Rio Grande do Norte, a partir da década de 1980, passam a incentivar a criação de cooperativas e associações entre os agricultores, com o discurso de fortalecerem a produção e gerar emprego e renda.

Forbeloni (2011, p. 11) ainda destaca:

Nota-se como o motivo “natural” no discurso nacional a busca por renda, no Rio Grande do Norte esse argumento perma-nece como destaque, mas em paralelo e com um índice maior encontra-se as pessoas que estão se envolvendo na proposta solidária como uma condição para ter acesso a financiamentos e outros apoios.

A motivação pela perspectiva da renda cria uma proble-mática que se confronta com os princípios do cooperativismo,

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onde a liberdade econômica é tomada como finalidade maior, em detrimento da liberdade humana, como meio para o desenvolvi-mento (SEN, 2000). Isso faz com que as capacidades individuais dependam, sobretudo, das disposições políticas, pois os indiví-duos associados passam a ser considerados nesse processo como beneficiários do estado, numa condição que inibe a participação e a tomada de ações democráticas.

Esse caráter concentrador do Estado é o que vai diferenciar, primordialmente, o movimento econômico solidário das regiões Sul e Sudeste em relação à região Nordeste, iniciado, mais recentemente, a partir da década de 1980. Dessa maneira, enquanto o primeiro se gestava sob as bases populares, da cobrança e participação dos próprios indivíduos, originado de um movimento horizontal, no segundo, o Estado é o indutor, em última instância, priorizando o financiamento e o desenvolvimento de ações associativas.

Com o repentino crescimento da Economia Solidária, ainda na década de 1990, muitos dos trabalhadores rurais do estado do Rio Grande do Norte, passam a se utilizar de financiamentos da Política de Economia Solidária a fim de investir nas suas associa-ções, diante da falta de outros instrumentos de incentivo para a produção e comercialização no meio rural. Porém, é somente com a institucionalização da Política Nacional de Economia Solidária, que esses trabalhadores passaram a vislumbrar uma nova realidade para o meio rural norte-rio-grandense.

Isso fica aparente quando espacializamos, no Mapa 01, a quantidade de empreendimentos solidários rurais do ano de 2007. A quantidade dos empreendimentos no RN, contabilizados no primeiro mapeamento da SENAES, já despontava diante da realidade da região Nordeste, porém espacialmente observamos que a grande quantidade desses empreendimentos se concentra em alguns municípios, apresentando uma heterogeneidade inerentes ao processo de territorialização da política no estado, dada a força política e a tradição associativa de alguns municípios.

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Mapa 01 ‒ Rio Grande do Norte: número de empreendimentos solidários rurais por município – 2007

FONTE: SIES, 2007.

Percebe-se que a territorialização destes segue a mesma linha de inserção desigual, beneficiando, sobretudo, os grandes empresários rurais e ocasionando restrições cada vez mais níti-das aos pequenos agricultores, no tocante a satisfação das suas necessidades. Essa realidade fica notória quando analisamos os municípios do Alto Oeste do estado (Mossoró, Baraúnas, Governador Dix-Sept Rosado e Apodi), que concentram o maior número de empreendimentos solidários nas atividades da agri-cultura e da pecuária.

Esses empreendimentos solidários de agricultura familiar são responsáveis por grande parte da produção norte-rio-gran-dense, merecendo destaque as associações de produtores rurais na agricultura, apicultura, ovinocultura, piscicultura e caprinocul-tura, voltado para abastecer o mercado interno, principalmente

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nas feiras livres e nos mercados institucionais, através de políticas como o PAA e o PNAE. Por outro lado, algumas associações e cooperativas, que se caracterizam como empreendimentos solidários, direcionam a sua produção para o agronegócio a partir de algumas commodities como; melão, banana, castanha de caju e manga, não tendo o caráter associativo, mas sim empresarial.

Contudo, dada a extrema desigualdade dessas áreas, os empreendimentos solidários ganham força e vêm recebendo adesão por parte dos agricultores familiares. Os dados coletados no ano de 2013 demonstram um considerável aumento nesses empreendimentos solidários rurais, conforme evidenciado no Mapa 02.

Mapa 02 ‒ Rio Grande do Norte: número de empreendimentos solidários rurais por município – 2013

FONTE: SIES, 2013.

Em uma análise comparativa, entre os dados dos empreen-dimentos rurais nos anos de 2007 e 2013, verifica-se uma linha evolutiva dos empreendimentos solidários no Rio Grande do

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Norte. Muitos municípios, da região do Seridó e do Alto Oeste, que não apresentavam empreendimentos em 2007, passaram a apresentar em 2013, e os municípios que já se destacavam na quantidade desses empreendimentos em 2007, obtiveram um crescimento em 2013, mantendo o seu destaque entre os demais.

É importante perceber que os mapas apresentados confirmam a expansão da materialidade da Economia Solidária. Realmente são notórios os avanços e os incentivos políticos nas últimas décadas, por isso que, muitas vezes, é esse discurso hegemônico que o governo dissemina. Destarte, cabe a nós, enquanto pesquisadores engajados num projeto de transformação social, questionarmos a qualidade desses avanços, e a quem beneficia o modelo empreendido por essas políticas.

Nessa perspectiva, enquanto os trabalhadores se esforçam produzindo coletivamente, o território vai se constituindo pelos mais diferentes usos, desde a esfera dos indivíduos associados, a esfera puramente econômica, política e de caráter hegemônico. A atuação do Estado, influenciada mais fortemente pelas leis do mercado, contraditoriamente, privilegia o uso do território enquanto recurso pelo/para o grande capital, criando condições mais favoráveis aos grandes investidores. Contudo, o Estado também proporciona, ainda que de forma não prioritária, a reprodução da força de trabalho, criando outras possibilidades de vida que se realizam onde o território é tomado como abrigo (SANTOS; SILVEIRA, 2008).

Desta forma, a espacialização da Economia Solidária no Rio Grande do Norte vai se configurando numa relação complexa e conflituosa do território como recurso e como abrigo, que reforça um processo de reorganização no uso agrícola do território, dada a diversidade, por englobar diferentes entidades, mas que contém os mesmos princípios e valores de organização.

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Considerações finaisCompreendemos que reorganização do uso agrícola no

território do Rio Grande do Norte, difundida pelos movimentos sociais cooperativistas, foi implementada como alternativa à crise das atividades tradicionais e, mais tarde, novamente motivada pelas profundas desigualdades socioeconômicas ocasionadas pelos sistemas técnicos implementados e pelo processo de modernização e reestruturação agrícola das novas atividades que surgiam, resultante de um conjunto de políticas públicas executadas pelo Estado.

Percebemos, dentro dessa realidade, que o território vai apresentando distintos uso, inicialmente como abrigo, realizada pelos sujeitos subjugados, ao implementar, por exemplo, um “cooperativismo de serviço” como alternativa as más condições de trabalho e desigualdade sociais coletivas e, posteriormente, como recurso a partir das normatizações e regulações do território sob as cooperativas, ocasionada pelas ações verticais do Estado, enquanto sujeito hegemônico, propiciando a organização das empresas e agroindústrias sob um “cooperativismo empresarial” que visava a simples manutenção das práticas capitalista a partir do ideário cooperativista.

Para uma compreensão do fenômeno da economia Solidária a partir do território, fez-se necessário ressaltarmos os seus dife-rentes usos, pois somente a partir dos usos do território podemos compreender as transformações sociais que nele ocorre. Para tanto, focamos nossa análise nos usos e regulação do território norte-rio-grandense a partir da Economia Solidária, reconhecendo suas materialidades no Rio Grande do Norte, inicialmente como um movimento social e, em seguida, como Política Pública.

Todavia, as constatações das mudanças nas organizações associativas no estado não foram apenas no quantitativo da materialidade, foi também no qualitativo. Todo esse aumento, verificado no território do estado, é sobretudo ainda concentrado

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na região do Alto Oeste, a realidade rural ainda não constitui um ambiente favorável para a reprodução social dos camponeses associados, pois as desigualdades sociais evidenciam com notorie-dade os isolamentos das unidades produtivas. É preciso ampliar as possibilidades e condições adequadas para uma união entre concepção e execução da Política Nacional de Economia Solidária. Em outras palavras, é preciso buscar um projeto político que tenha um potencial emancipatório, e não a mera multiplicação desses empreendimentos.

A Economia Solidária precisa ser paulatinamente incor-porada, não só no discurso, mas também na prática de quem a realiza. Ela requer dos seus trabalhadores associados uma nova maneira de agir e de pensar, destituída da lógica de mercado que permeia nossa sociedade. O Estado moderno neoliberal não se preocupa com essa formação, embora incentive a criação desses empreendimentos, mas não resolve os problemas de produ-ção, planejamento, gestão e comercialização dos trabalhadores envolvidos.

ReferênciasANDRADE, Alexandre Alves de. Os usos do território pela fruticultura irrigada no Rio Grande do Norte: uma análise a partir do circuito espacial produtivo do melão (Cucumis Melo L.). Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEo/UFRN), 2013.ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 8ºed. São Paulo: Cortez, 2011.DIAS, Thiago Ferreira. Gestão social em empreendimentos econômicos solidários: uma abordagem no Oeste Potiguar. Tese de Doutorado. Natal, RN, 2011.FELIPE, José Lacerda Alves. Rio Grande do Norte: uma leitura geográfica. Natal, RN: EDUFRN, 2010.

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FORBELONI, Jacimara Villar. Políticas Públicas e Economia Solidária: alternativas de geração de trabalho e renda no estado do Rio Grande do Norte. In.: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Salvador: Universidade Federal da Bahia – UFBA, Campus Ondina. 07 a 10 Ago. 2011.LUCENA, Manuel B. O cooperativismo no Rio Grande do Norte. Coleção Histórica do Cooperativismo. OCB: Natal, 1996.NUNES, E. M. Restruturação Agrícola, Instituições e Desenvolvimento Rural no Nordeste: as dinâmicas regionais e a diversificação da agricultura familiar no Polo Açu-Mossoró (RN). Tese de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS), 2009.SANTOS, Milton; SILVEIRA, María Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.SANTOS, Paulo Pereira dos. Evolução econômica do Rio Grande do Norte (Século XVI-XXI). 3º ed. Natal, RN: Departamento Estadual de Imprensa, 2010. SECRETÁRIA NACIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA – SENAES: 2007/2013. Brasília. Disponível em: <www.mte.gov.br>. Acesso em: 20 Jan. 2015.SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhias das Letras, 2000.VELLOSO, Tatiana Ribeiro; LOCATEL, Celso Donizete. A trajetória do movimento cooperativista no Brasil: da vertente de controle estatal para instrumento de promoção de desenvolvimento regional. In.: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Salvador: Universidade Federal da Bahia – UFBA, Campus Ondina, 07 a 10 ago. 2011.

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A tecnificação da agricultura no Rio Grande do Norte e os agentes sociais envolvidos

Fernanda Laize Silva de Lima

Celso Donizete Locatel

Introdução

Nas últimas décadas, a agricultura brasileira vem passando por mudanças significativas na sua base técnica de produção, de modo que a prática de agricultura moderna em bases empresariais vem ampliando sua importância na produção de commodities agrícolas e gerando divisas, ao contribuir com mais de um terço do valor das exportações, bem como por assegurar os sucessivos superávits na balança comercial do país (HESPANHOL, 2007; 2008).

Trata-se do que estamos considerando aqui como sendo o processo de tecnificação da agricultura, o qual atinge não só a base técnica, mas também a econômica e social do setor produtivo, exercendo profundas mudanças na configuração e no uso agrícola do território, como resultado da dispersão espacial dos sistemas de objetos e dos sistemas de ações característicos do período atual, que tem na globalização econômica um de seus vetores principais (SANTOS, 1996).

O processo de tecnificação da agricultura em um pri-meiro momento foi marcado pela incorporação de inovações

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A tecnificação da agricultura no Rio Grande do Norte e os agentes sociais envolvidos

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genuinamente mecânicas, mais eficientes que as preexistentes (como melhores técnicas de plantio e irrigação, aquisição de máquinas e equipamentos agrícolas), tratando-se, portanto, da “mecanização da agricultura”. Em seguida, caracterizou-se pela possibilidade de aplicação da ciência ao processo produtivo, sobre-tudo pela aplicação da biotecnologia à pesquisa agropecuária e o uso crescente de aditivos químicos na produção. E na atualidade a agricultura brasileira é marcada principalmente pelo uso das novas tecnologias da informação, com técnicas produtivas de precisão e alta produtividade, bem como pela forte financeirização e informatização da produção.

Faz-se salutar salientar o caráter seletivo da tecnificação da agricultura no Brasil, que ocorre de maneira desigual espaço-temporalmente, na medida em que não são todos os subespaços do território nacional que são inseridos na lógica produtiva global e as inovações não se realizam simultaneamente em todos os lugares, de tal maneira que a difusão de especializações terri-toriais produtivas tem acirrado e redefinido as divisões técnica e territorial do trabalho agrícola e a competitividade entre os lugares. É assim que no momento histórico atual, não são mais apenas os estados das regiões Sul e Sudeste, que compõem a Região Concentrada, os alvos das inovações, mas nas últimas décadas, novos subespaços vêm sendo incorporados pelos avanços técnicos da agricultura (SANTOS e SILVEIRA, 2001).

As frações do território brasileiro que vêm sendo recente-mente incorporadas à dinâmica agrícola moderna correspondem à região norte do país, de maneira incipiente e parcial, a partir da faixa de expansão da fronteira agrícola moderna, assim como a região Nordeste, que pode ser considerada a área que apresenta maior resistência às inovações (ELIAS, 2006). Logo, se a dispersão do meio técnico-científico-informacional e o desenvolvimento de uma agricultura propriamente científica ocorrem de maneira contínua na Região Concentrada, estes se expandem como pontos

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e manchas em todo o restante do território brasileiro (SANTOS e SILVEIRA, 2001).

O estado do Rio Grande do Norte, recorte empírico deste trabalho, se apresenta como um subespaço do território brasileiro que, nas últimas décadas, vem passando por mudanças impor-tantes no âmbito da produção agrícola. Embora no contexto da tecnificação da agricultura brasileira, este estado se constitua enquanto uma área de rarefação, dispondo de níveis técnicos, cien-tíficos e informacionais pouco expressivos no processo produtivo e mesmo pela ausência de determinadas inovações já contidas no território nacional, algumas áreas do estado sobressaem com maiores níveis de tecnificação agrícola. Temos como objetivo neste trabalho caracterizar os agentes sociais envolvidos com o processo de tecnificação da agricultura no Rio Grande do Norte, atentando para as relações por eles estabelecidas e destacando a maneira como cada um deles participa do referido processo.

Os agentes sociais envolvidos com a tecnificação da agricultura no Rio Grande do Norte

Até meados da década de 1980, a economia do Rio Grande do Norte esteve pautada em atividades, como o cultivo da cana-de-açúcar, sobretudo na faixa litorânea; a pecuária extensiva, com destaque para o semiárido potiguar; a prática de uma agricultura para o autoconsumo, em especial no agreste potiguar. Além do cultivo e comercialização do algodão e do extrativismo vegetal, destacando a carnaúba, a oiticica e a castanha de caju. Todas estas atividades apresentavam baixos níveis de produtividade e o uso de técnicas produtivas rudimentares. Entretanto, nas últimas décadas, a atividade agrícola no RN obteve maior dinamização, apresentando maiores volumes de investimentos recebidos, maiores níveis de produção e de produtividade, maiores volumes de exportações de produtos agrícolas e elevação do consumo produtivo agrícola.

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Tais mudanças significativas que ocorreram na configura-ção territorial e no uso agrícola do território potiguar decorreram de um conjunto de fatores de ordem econômica, política e social, externos às dinâmicas preexistentes, caracterizando-se especial-mente pela incorporação de sistemas técnicos com conteúdos marcadamente científicos e informacionais na produção agrícola, que compreendem o processo de tecnificação da agricultura. Ressaltamos ainda que as áreas do estado que apresentam maior integração aos mercados nacional e internacional e maiores den-sidade e eficiência científica-informacional nos sistemas técnicos agrícolas, apesar de se destacarem no contexto da agricultura potiguar, por vezes, possuem dinâmicas pouco expressivas quando analisadas no contexto da agricultura brasileira.

A intensificação do uso de técnicas informacionais na agricultura não ocorre de maneira homogênea no RN, seguindo uma tendência nacional, ao privilegiar determinadas áreas, lavouras e segmentos sociais, com destaque para a faixa litorânea do estado, com o desenvolvimento do setor sucroalcooleiro e a predominância de grandes empresas controlando a produção; bem como a região do Vale do Açu, com o desenvolvimento da fruticultura irrigada, também com a presença marcante de mul-tinacionais do agronegócio.

Estas mudanças na dinâmica agrícola alteram sua base técnica de produção e a organização do território, a partir do aumento do consumo produtivo agrícola de todos os fatores de produção, clivados de técnica, ciência e informação, possibili-tando a formação de setores industriais que antecedem e outros que sucedem a produção agrícola e pecuária e que, portanto, ao integrar, sujeitam a agricultura à indústria. A agricultura, sob a lógica de produção capitalista, precisa adequar-se às exigências e comandos dos agentes financiadores, das grandes empresas, do Estado (MÜLLER, 1989; LOCATEL, 2003; 2004) (Figura 01).

Com a intensificação dessas relações intersetoriais multi-plicam-se os agentes sociais envolvidos, logo a etapa de produção

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propriamente dita, a produção agrícola em si, tornou-se apenas mais um elo no processo produtivo, em razão do desenvolvimento de um setor que antecede (à montante) e de outro que sucede a etapa de produção propriamente dita (à jusante), desse modo, a agricultura que apresenta níveis técnicos e informacionais mais elevados reclama o investimento de capital no uso da força de trabalho qualificada, no emprego de aditivos químicos, de máquinas, de computadores, de novos métodos de gestão, além dos investimentos em marketing, processamento, logística, que modificam a organização do território.

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Figura 01 ‒ Fluxograma com os principais agentes sociais envolvidos com agricultura no Rio Grande do Norte

FONTE: Elaboração própria.

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O fluxograma apresentado consiste em um esboço sim-plificado das relações estabelecidas entre os principais agentes sociais envolvidos com a agricultura no Rio Grande do Norte na contemporaneidade. De maneira geral, podemos perceber a participação de agentes sociais de diversas escalas – local, regional, nacional e global – em situações as mais diversas, quanto ao poder econômico e político que possuem; quanto às condições técnicas de que dispõem; quanto às instâncias da produção que participam e funções que desempenham; quanto às solidarieda-des que estabelecem. O fato é que acreditamos que cada agente (pessoas, empresas, instituições) envolvido com a agricultura no RN redefine as relações sociais preestabelecidas, na medida em que estabelece relações de conflito e de cooperação, bem como a partir da maneira como usa o território – engendrando as ações e produzindo os objetos.

Também destacamos, antecipadamente, a presença de agentes sociais de diferentes atividades econômicas, do capital financeiro, de assistência técnica, de logística, os quais tornam o uso agrícola do território ainda mais complexo. Isto porque as rela-ções estabelecidas por estes agentes podem ser diretas e indiretas e compreendem os fluxos materiais, como as mercadorias (linha completa do fluxograma) e os fluxos imateriais (representados pela linha pontilhada do fluxograma), que envolvem os fluxos de capitais, ordens, mensagens e normas. É nessa perspectiva que embora tenhamos destacado a atuação do Estado – em suas diferentes esferas e instituições – como sendo o regulatório, ressalvamos que as empresas, os produtores agrícolas, os traba-lhadores e o próprio território também possuem suas normas e as impõem ao processo produtivo agrícola.

Destacamos, portanto, que a circulação de fluxos materiais e imateriais perpassa todo o processo produtivo, assim como o consumo produtivo agrícola igualmente está presente em todas as instâncias da produção, tornando a etapa de produção pro-priamente dita, a produção agrícola, cada vez mais dependente

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dessas relações mantidas com os demais setores. Salientamos ainda que tais relações estabelecidas entre estes agentes são complexas também porque, por vezes, conforme Santos (1985) nos alerta, as instituições, empresas e os homens confundem seus papéis e passam a desempenhar também as funções de outros agentes, na medida em que todos esses agentes são redutíveis uns aos outros por fazerem parte de uma totalidade.

É por isso que uma única cooperativa, associação ou empresa pode atuar em todas as etapas da produção agrícola, como é o caso da empresa USIBRAS, detentora da marca DUNORTE, que fabrica e comercializa castanha de caju, com matriz no município de Mossoró e dois parques industriais, sendo uma filial no município de Aquiraz – CE e outra Camdem, Nova Jersey – EUA, atuando de forma expressiva no mercado norte-americano e totalizando 1.500 funcionários, além de possuir centros e escritórios de distri-buição em todo o território brasileiro. Outro exemplo é a empresa NOLEM, produtora de melão também situada no município de Mossoró, que a partir do ano de 2010 teve sua propriedade de 3 mil hectares arrendada pela empresa Agrícola Famosa.

Esta empresa, por sua vez, tem sede no município de Icapuí – CE e investe em pesquisa agropecuária, na compra de sementes importadas; possui um amplo parcking house com capacidade de estocagem para até 900 pallets de caixas de frutas; possui 110 tratores, 340 carroções, uma frota de ônibus para o transporte da produção; emprega um total de 5.000 funcionários; para a irrigação, possui um total de 4 poços profundos (800 m) e outros 100 poços rasos, obtendo capacidade para extração de 4.900 m³/hora, bem como nas fazendas arrendadas existem outros 27 poços com capacidade de extração de 3.300m³/hora.

Todavia, quase a totalidade dos produtores agrícolas no Rio Grande do Norte apresenta condições técnicas e informacionais pouco elevadas, baixa integração ao mercado e inexpressivo consumo produtivo. Mesmo nesses casos, tais produtores agrí-colas também estão inseridos nesse novo modelo de organização

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agrícola, cada vez mais dependente da integração com outros setores. Comumente, é exatamente esta a função destes produ-tores, a de permanecerem pouco integrados, uma vez que são estes no geral os responsáveis pelo abastecimento do mercado interno, ao produzir as lavouras que não são de interesse d o grande capital, de modo que podemos verificar essa prática agrí-cola para o autoconsumo principalmente no Agreste Potiguar, historicamente caracterizada enquanto área produtora de lavouras alimentícias no RN.

Para que o consumo produtivo agrícola se efetive, o investi-mento de capital na produção se faz primaz, conferindo ao finan-ciamento agrícola um importante papel, bem como às agências bancárias que operacionalizam o SNCR (BB, BNB, BNDES e mais recentemente, a partir do início do ano de 2014, a Caixa Econômica Federal), bem como as cooperativas de crédito do BACEN e a Agência de Fomento do RN, todas estas distribuídas em todo o estado, a fim de possibilitar a operacionalização do crédito rural. Vale salientar que além da operacionalização do crédito, muitas agências bancá-rias também atuam no fomento e desenvolvimento de pesquisa agropecuária, sobretudo a Fundação Banco do Brasil.

Quanto ao desenvolvimento da pesquisa agropecuária no Rio Grande do Norte, destacamos o fato de que não há no estado centros de pesquisa ou laboratórios da EMBRAPA, apenas um Campo de Experimentação em Mandiocultura e Fruticultura, no município de Mossoró, que é vinculado ao Centro de Pesquisa EMBRAPA Mandiocultura e Fruticultura no estado da Bahia, além dos projetos desenvolvidos e as parcerias estabelecidas com a EMPARN, a principal responsável hoje pelo fomento e realização de pesquisas e inovações na agricultura do estado. Juntamente com os serviços de ensino técnico e superior públicos e privados, como o papel desempenhado pela UFERSA (inclusive com campos de experimentação), EAJ-UFRN, IFRN. Em menor proporção, mais com ações importantes, estão o SENAR-RN e

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o SEBRAE-RN, que oferecem cursos profissionalizantes para qualificação do pessoal ocupado na agricultura.

Tais inovações resultantes do desenvolvimento das pesquisas chegam aos produtores, por meio das ações de assistência técnica e extensão rural e no RN, destacamos o papel da EMATER-RN, que mais recentemente adotou o sistema de descentralização e munici-palização de suas ações, dispondo de escritórios municipais em todo o estado, com exceção de 12 municípios, os quais são assistidos por escritórios vizinhos, contando ainda com 10 escritórios regionais de maior porte (Figura 02). No entanto, o que constatamos nas ações da EMATER é a existência de escritórios municipais sucateados, que não dispõem das condições de infraestrutura necessárias para o atendimento e realização das ações de ATER aos produtores rurais, uma vez que não possuem veículos e combustível, nem um quadro de profissionais habilitados, em número suficiente, para se deslocar às unidades de produção.

Figura 02 ‒ Escritório da EMATER no município de Angicos-RN

FONTE: Acervo do autor, 2013.

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Dentre as ações desenvolvidas pela EMATER-RN, conside-ramos importante destacar que as ações desta não se restringem à assistência técnica, mas também podemos elencar a operacio-nalização do crédito rural do PRONAF; o Garantia Safra, ação do PRONAF destinada aos produtores situados em área semiárida que sofrem perda de safra no período de estiagem; o controle financeiro e administrativo do Programa Estadual do Leite; o Compra Direta, com a aquisição de produtos agrícolas de produ-tores vinculados ao PRONAF, para a realização dos programas sociais do Governo do Estado; além da execução do PAA – Leite Fome Zero, em parceria com o MDS. Não obstante, a CONAB-RN também desempenha importante papel na comercialização dos produtos, não só pela disponibilização dos armazéns públicos, como também pela operacionalização do Compra Direta, com doação simultânea.

Além da EMATER, com relação aos serviços de ATER, destacamos o papel do INCRA, sobretudo no que concerne à pres-tação desses serviços aos produtores agrícolas dos assentamentos rurais de Reforma Agrária. Também consideramos importante a criação recente, no início do ano de 2014, da Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – ANATER.

Também se tornam necessárias para a realização da agri-cultura não só as empresas de processamento que atuam no RN, sobretudo aquelas de preservação e produção de conservas de frutas; de fabricação e refino de açúcar e os laticínios, mas também as empresas de fabricação e de comércio de tratores, de máquinas e de equipamentos para a agricultura e obtenção de produtos animais; as empresas de transporte marítimo de longo curso; as empresas de concessão de crédito e de prestação de assistência técnica; de serviços veterinários (Figuras 03, 04 e 05), podendo-se observar uma concentração dessas empresas que prestam serviço à agropecuária nos municípios de Natal, Mossoró, Caicó e Parnamirim.

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Figura 03 ‒ Empresa Coop Agrícola

Figura 04 ‒ Jodiesel

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Figura 05 ‒ NorteAgro

FONTE: Acervo do autor, 2014. Pesquisa de campo em Mossoró - RN, 2014.

Além do consumo produtivo de máquinas e equipamentos, também existe no RN um total de quatro empresas fabricantes/fornecedoras de aditivos químicos para a agricultura e são elas: a empresa Adubos Santa Raquel, localizada em Natal, desde o ano de 2000, que fabrica farinha de osso para adubos; farinha de osso para ração e farinha de chifre, tanto para o mercado interno, quanto para exportação. A empresa RAROS Agroindústria S/A produz, desde 1976, aditivos químicos, estando situada no município de Macaíba. Situada em Natal, desde 2000, a empresa RCM Industrial produz adubos para o mercado interno, os quais são comercializados com a marca Santa Raquel e exporta restos não comestíveis de animais (subproduto). Também a empresa RICI CHEM Produtos Químicos Ltda., situada em Parnamirim, criada em 2008, que produz adubos químicos e processa chifres, cascos, ossos, bílis bovina e vergalhos, que são exportados (FIERN, 2010; RAIS-CAGED, 2011).

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Todas essas mudanças na organização e na produção agrí-cola, a partir do aumento do consumo produtivo; da integração com outros setores da economia, como o comércio e serviços especializados nas demandas agrícolas; do processamento da produção; da crescente demanda por pesquisa e assistência téc-nica; de logística desencadeiam, por conseguinte, mudanças no mercado de trabalho, uma vez que se verifica no Rio Grande do Norte o emprego crescente de mão de obra com alta qualificação não só nos estabelecimentos agropecuários, como também nas empresas de processamento da produção (industrial e artesanal) e nas empresas fornecedoras de insumos e bens de produção. Muito embora quase a totalidade dos empregos gerados nos estabelecimentos agropecuários do RN seja a partir de relações de trabalho não assalariadas, caracterizando um trabalho tipi-camente familiar (IBGE, 2006). Além do uso mão de obra com vínculo empregatício temporário, sobretudo no período de safra das grandes empresas. No que concerne aos postos de trabalho gerados pela atividade agropecuária, verifica-se que esta atividade absorve em torno de 20% do pessoal ocupado no estado, dos quais 95% estão na informalidade (Tabela 01).

Tabela 01 ‒ Pessoal ocupado por setor, de acordo com vínculo contratual, 2009

SETORES TOTAL EM %TOTAL EM %

FORMAISIN-

FORMAISFORMAIS

IN-FORMAIS

Agropecuária 301.000 20,4 15.112 285.888 5,0 95,0Indústria 269.000 18,3 112.408 156.592 41,8 58,2

Comércio e Serviços

904.000 61,4 411.237 492.763 45,5 54,5

Total 1.473.000 100 538.757 934.243 36,6 63,4

FONTE: Elaboração própria com base em IBGE/ PNAD, 2009 e MTE/RAIS, 2009.

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Há que se considerar que com as mudanças ocorridas, a partir da década de 1980, nas bases técnicas e produtivas da agricultura no RN, esta atividade passou a se desenvolver de maneira integrada à indústria, tornando a etapa de produção propriamente dita apenas mais um elo na produção. Portanto, com o desenvolvimento desse processo de tecnificação agrícola, podemos contabilizar também o pessoal ocupado na indústria de transformação de produtos alimentícios (indústrias de proces-samento de balas, chicletes e pirulitos, panificação e laticínios), que no Rio Grande do Norte, em 2009, correspondia a 18.389 pessoas (FIERN, 2012).

Além das indústrias de panificação e laticínios, estas com menor porte, destacam-se em número de funcionários, três grandes indústrias: a Vale Verde empreendimentos agrícolas LTDA, que produz açúcar e álcool no município de Baia Formosa, com 3.634 funcionários; a Estivas – LDC Bioenergia S/A, que pertence ao grupo Louis Dreyfus, e produz açúcar e álcool no município de Arês, com 3.283 funcionários, e a SIMAS Industrial de Alimentos S/A, com produção de balas, pirulitos e chicletes no município de Macaíba, possui 1.355 funcionários (RAIS, 2011).

Buscando compreender as dinâmicas territoriais não só da etapa de produção agrícola em si, mas das demais instâncias da produção agrícola, que envolvem uma demanda significativa por um conjunto de atividades, como dos setores industriais, comércio e serviços especializados e a logística, podemos notar que a expressividade e importância deste setor na dinâmica econômica e social do Rio Grande do Norte (Cartogramas 01 e 02). Havia no ano de 2012 um total de 5.777 estabelecimentos dos demais setores da economia com suas atividades voltadas para atender às demandas da atividade agrícola, seja na compra de insumos produtivos, no processamento dos produtos agrícolas e mesmo na distribuição e circulação de mercadorias.

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Cartograma 01 ‒ Rio Grande do Norte: estabelecimentos que desenvolvem atividades relativas à agricultura

FONTE: Elaboração própria com base em RAIS – CAGED, 2012.

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Cartograma 02 ‒ Rio Grande do Norte: pessoal ocupado em estabelecimentos que desenvolvem atividades relativas à agricultura

FONTE: Elaboração própria com base em RAIS – CAGED, 2012.

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Observando então a distribuição espacial de um conjunto de serviços relacionados com a agricultura e a pecuária no Rio Grande do Norte, privilegiamos os estabelecimentos e pessoal ocupado nas atividades de: abate e preparação de produtos de carne; processamento, preservação e produção de conservas de frutas, legumes e outros vegetais; laticínios; moagem, fabricação de subprodutos e de rações balanceadas para animais; fabricação e refino de açúcar; torrefação e moagem de café; fabricação de outros produtos alimentícios; fabricação de produtos do fumo; fabricação de defensivos agrícolas; fabricação de tratores e de máquinas e equipamentos para a agricultura e para obtenção de produtos animais; comércio atacadista de matérias-primas agrícolas e animais vivos; comércio atacadista de máquinas, aparelhos e equipamentos para uso agropecuário; transportes terrestres para movimentação e de armazenamento de cargas; transporte dutoviário; transporte marítimo de cabotagem e longo curso; atividades de concessão de crédito agrícola; serviços veterinários agropecuários.

Constatamos que havia no ano de 2012 um total de 47.854 pessoas ocupadas em estabelecimentos industriais, de comércio e serviços voltados para atender às demandas da agricultura no Rio Grande do Norte. Há, portanto, uma concentração tanto dos estabelecimentos quanto do pessoal ocupado nesses segmentos econômicos nos municípios de Natal, principalmente; seguido de Mossoró, Parnamirim e Caicó, estes últimos constituindo-se em municípios que também concentram parte considerável do pessoal ocupado nesses estabelecimentos com atividades relati-vas à agricultura no estado. Há também uma concentração das instituições que atuam no Rio Grande do Norte, no que concerne à prática agrícola, bem como uma concentração das empresas que atuam na circulação e transporte das mercadorias agrícolas.

É dessa maneira que acreditamos que a existência e as relações mantidas entre todos esses agentes sociais modificam a configuração territorial do Rio Grande do Norte, pela instalação

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das empresas e instituições, pela própria produção agrícola nos estabelecimentos e pela presença dos sistemas técnicos agrícolas, ao mesmo tempo em que tais relações entre os agentes tornam mais complexo o uso do território pela agricultura no RN, uma vez que se sobrepõem distintos interesses e fluxos materiais e imateriais de toda ordem: de capital, de normas e informações, de pessoal ocupado e de mercadorias.

Considerações finaisO conjunto de ações desenvolvidas pelo Estado, no Brasil e

no Rio Grande do Norte, teve sempre por objetivo a mecanização do processo produtivo e melhoria das estruturas viárias, buscando ampliar as possibilidades de fluxos de pessoas, mercadorias, ordens e dinheiro, além do aperfeiçoamento da circulação das mercadorias. De modo particular, a tecnificação agrícola somente foi viabilizada pelas políticas adotadas pelo Estado brasileiro, permitindo a incorporação de inovações tecnológicas e de inves-timentos maciços de capital na agricultura, com o intuito de aumentar a produtividade e a margem de lucros dos empresários do agronegócio. Por essa razão, a agricultura praticada nos moldes acima descritos não se sustenta mais sem o aparato criado pelo Estado.

Faz-se primaz que se compreenda que este processo possui uma face perversa, na medida em que as políticas e ações de caráter modernizante que foram direcionadas para agricultura, não foram acompanhadas pela formulação de estratégias que viabilizassem o a ampla distribuição desses recursos e o desenvolvimento rural. Isto porque a tecnificação agrícola foi implementada, favorecendo principalmente os detentores do capital e dos meios privados de produção, ou seja, os empresários do agronegócio. O processo de tecnificação da agricultura no Brasil é essencialmente marcado pelos demais mecanismos de marginalização, aos quais estão submetidos os agricultores familiares.

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Sendo assim, um traço marcante da agricultura brasileira reside no fato de que o uso das técnicas ocorreu e vem ocorrendo de maneira seletiva espaço-temporalmente, o que resultou na acentuação das históricas disparidades regionais. Seguindo então uma tendência nacional, a composição desse processo de tecnificação agrícola no RN está nas combinações singulares de seus elementos constitutivos, tanto internamente quanto em relação ao restante do território brasileiro, ou seja, a forma de realização desse processo no RN é única e pode ser compreendida através da presença e da ausência de seus elementos indicativos, em diferentes níveis técnicos e com temporalidades distintas.

Embora apresentando níveis técnicos pouco expressivos e um processo de incorporação de novas tecnologias incipiente, podemos afirmar que, a partir da década de 1980, a agricultura no Rio Grande do Norte passou a apresentar mudanças significativas no processo produtivo, que podem ser evidenciadas pelo aumento do consumo produtivo das máquinas e equipamentos, do uso de aditivos químicos, de métodos sofisticados de irrigação, além do desenvolvimento da pesquisa e uso crescente da biotecnologia e do financiamento público da produção, estes constituem os elementos indicativos deste processo no RN.

Acreditamos na possibilidade de a baixa capacidade orga-nizativa e de integração entre os produtores agrícolas refletir no baixo nível tecnológico de que dispõe sua maioria; os baixos níveis técnicos associados à histórica atuação do Governo do Estado podem resultar, em muitos casos, na dependência dos produtores agrícolas, em relação aos fatores de ordem natural, mantendo-se sujeitos às constantes adversidades edáficas e climáticas; a ine-xistência de políticas públicas de caráter efetivamente territorial, visto que o conjunto de políticas públicas implementadas para o setor agropecuário no Brasil e no RN contribuiu para acirrar as desigualdades entre os produtores, as áreas do território e os segmentos produtivos; além da coexistência de forças políticas conservadoras e ineficientes no Governo do Estado, não obtendo

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este último expressividade em suas ações voltadas para o setor, por meio da atuação da EMATER-RN, EMPARN e IDIA-RN.

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A tecnificação da agricultura no Rio Grande do Norte e os agentes sociais envolvidos

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte:

elementos de uma investigação

Raquel Silva dos Anjos

Introdução

A formação territorial do Rio Grande do Norte está atrelada ao desenvolvimento de atividades econômicas que foram bastante significativas no referido processo. Cada etapa da formação territorial do estado é marcada por uma ou mais atividades econômicas, e nesse sentido, a cana-de-açúcar, considerada o “ponto de partida”; a pecuária como “elemento de expansão”, e o algodão como um “produto de redefinição” (Gomes, 1998), são as atividades mais emblemáticas na constituição do território potiguar. Desse modo, a ocupação e construção do território do Rio Grande do Norte têm sua base no desenvolvimento de atividades agrícolas, com a utilização de técnicas tradicionais.

Consorciadas às atividades da cana-de-açúcar, da pecuária e do algodão, a economia de subsistência (autoconsumo) também se desenvolvia com uma produção voltada para culturas alimentares, sobretudo feijão, milho, batata e mandioca. Referindo-se à cons-trução do território norte-rio-grandense, Gomes (1998) destaca a produção de mandioca nas regiões serranas, responsável pela reprodução da pequena produção dos que residem nessas áreas; assim como na região sertaneja. Na região agreste, a referida

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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atividade teve grande importância no que se refere, inclusive, ao processo de formação territorial dessa região (Salvador, 2010).

A expansão da cultura de mandioca no Rio Grande do Norte realizou-se durante décadas em áreas de solos mais pobres, assu-mindo características de exploração de subsistência em pequenas áreas. Atualmente, a mandioca não é mais cultivada pelos produ-tores com o escopo primordial de garantir sua subsistência, mas sim com o intuito de atender à demanda por matéria-prima das casas e das indústrias de farinha (Salvador, 2010).

No território potiguar, a mandioca ganha relevância, prin-cipalmente por sua tolerância às severas condições climáticas do semiárido, que abrange cerca de 85% do território potiguar (Araújo e Arruda Júnior, 2013). De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB-RN, as principais áreas de cultivo de mandioca estão localizadas nas regiões Agreste e Leste Potiguar. A produção é destinada, basicamente, aos seguintes segmentos: I – indústria (casas de farinhas) para fabricação de farinhas e goma; II – consumo animal; III – consumo in natura (mandioca de mesa: macaxeira ou aipim). Sob a forma de farinha, a mandioca constitui-se alimento essencial e de forte tradição na dieta alimentar da população potiguar como um todo; e a farinha de mandioca é o principal produto comercial destinado ao mercado local e regional.

Estabelecendo nexos com o processo de reestruturação produtiva que, no Rio Grande do Norte foi marcado dentre outros aspectos, pela falência de determinadas atividades econômicas, redefinição e reestruturação de outras, mas, sobretudo, pelo surgimento de atividades até então inexistentes no território potiguar (Azevedo, 2013); pode-se afirmar, diante da atual conjuntura econômica do Rio Grande do Norte, tendo em vista os rebatimentos dos processos econômicos no território, que houve a reestruturação do setor da mandiocultura no estado, compreendendo assim, a reestruturação do circuito espacial de produção de mandioca propriamente dito. Tal processo deu-se de

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modo difuso, com permanências e coexistências de práticas, de relações sociais de produção; mas também de redefinição do uso do território pela mandiocultura a partir do papel que passou a ter a mecanização, sobretudo no que se refere ao beneficiamento da mandioca.

Nesse contexto, é discutida a questão da modernização da atividade mandioqueira. Salvador (2010) trata da inserção de instrumentos técnicos mecanizados nas casas de farinha que vem causando transformações no processo de produção da farinha bem como nas relações de trabalho que perpassam esse processo no agreste potiguar. Todavia, afirmar que a referida atividade esteja sendo modernizada, não significa defender que a atividade mandioqueira se apresente totalmente diferente do cenário anterior. Pelo contrário, no momento atual ainda perduram várias características “tradicionais” como a presença do trabalho familiar no cultivo da mandioca e o uso de alguns instrumentos movidos à força humana nas casas de farinha. O que é certo, porém, é que a atividade vem, desde a década de 1980, passando por mudanças, as quais são comandadas pela lógica da modernização, isto é, do capital, visando obter maior produtividade e lucratividade. (SALVADOR, 2010).

Diante disso, algumas questões constituem-se como nor-teadoras da pesquisa: Como as coexistências e permanências (práticas, relações de trabalho, relações sociais de produção da mandioca) vêm sendo verificadas no estado do Rio Grande do Norte e em quais regiões são mais significativas? Em que medida a mecanização do processo de beneficiamento da mandioca vem ocorrendo no Rio Grande do Norte? Houve acesso ao crédito e/ou financiamento da produção de mandioca no estado? Como está se desenvolvendo o sistema de circulação, comercialização e consumo produtivo da mandiocultura no RN? Como se dá o uso do território pelo circuito espacial de produção da mandioca no Rio Grande do Norte, considerando o período atual?

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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Dessa forma, o principal objetivo da pesquisa é estudar o circuito espacial e os círculos de cooperação da mandiocultura no uso território do Rio Grande do Norte, sobretudo no que se refere aos processos de produção, processamento, distribuição e consumo da mandioca e seus derivados. Os objetivos especí-ficos são: evidenciar aspectos históricos marcantes no processo de produção de mandioca no Rio Grande do Norte; analisar as coexistências e permanências de práticas e relações sociais de produção existentes na mandiocultura no território potiguar; entender como o processo de mecanização do beneficiamento da mandioca vem ocorrendo no Rio Grande do Norte; e analisar o sistema de circulação, comercialização e consumo produtivo da mandiocultura no Rio Grande do Norte.

A partir do exposto, acredita-se que a pesquisa justifica-se ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com área de concentração “Dinâmica Socioambiental e Reestruturação do Território”, por constituir-se em um estudo que permite com-preender, sobremaneira, as dinâmicas territoriais a partir do desenvolvimento do circuito espacial de produção da mandioca no Rio Grande do Norte. No que se refere à linha de pesquisa, a qual o projeto de dissertação é submetido (Linha I), denominada “Território, Estado e Planejamento”, tal vinculação se explica em razão da coerência tanto teórica quanto metodológica que há entre o projeto e a própria linha de pesquisa, quando é notável a preocupação com questões que envolvem o uso do território potiguar, levando-se em consideração as economias presentes e que são determinantes para a sua configuração e/ou reconfigu-ração produtiva.

A análise do território fundamentada nos circuitos espa-ciais de produção e nos círculos de cooperação é bastante válida e permite, portanto, reconhecer as articulações estabelecidas entre os agentes e os lugares de aquisição de matéria-prima, gestão, produção, distribuição e consumo. (BOMTEMPO; SPOSITO,

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2012). Ademais, a proposta viabilizará avanços nas discussões sobre os circuitos espaciais de produção, contribuindo de maneira pontual para a compreensão do circuito espacial de produção da mandioca no estado do Rio Grande do Norte, com a construção de novas análises e novas abordagens a respeito das questões e problemáticas existentes, colaborando, deste modo, para a apreensão das dinâmicas territoriais inerentes ao referido estado. Por fim, reforça-se a importância do tema na construção de uma base teórico-metodológica capaz de subsidiar outras pesquisas e/ou trabalhos que estejam relacionados ao tema ora apresentado.

Circuitos espaciais de produção e círculos de cooperação no espaço: uma aproximação teórico-conceitual

O emprego da noção de circuito espacial da produção na Geografia e demais disciplinas vinculadas à temática espacial é relativamente recente (CASTILLO e FREDERICO, 2010). Em “A construção do espaço”, Santos (1986) sobre os circuitos espaciais de produção, menciona o Centro de Estudios del Desarrollo da Universidade Central da Venezuela (Caracas), o internacional-mente conhecido CENDES, quando da realização de uma impor-tante pesquisa teórico-empírica para a construção-simulação de um Modelo Regional (MORVEN), havendo adotado como ponto de partida o reconhecimento, na sociedade e sobre o território de um país, de circuitos de acumulação regional. O projeto MORVEN, elaborado no final da década de 1970, constitui, portanto, um passo relevante no que diz respeito à produção voltada ao entendi-mento dos circuitos espaciais de produção, e nesse viés, destaca-se Sonia Barrios, uma das autoras do referido projeto.

Segundo Sonia Barrios, “esses circuitos de produção e acumulação se estruturam a partir de uma atividade produtiva definida como primária ou inicial” e compreendem “uma série de fases ou escalões correspondentes aos distintos processos de transformação pelos quais passa o produto principal da atividade

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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até chegar ao consumo final”. A essa primeira definição Sonia Barrios acrescenta, para completá-la: “Uma atividade pertencerá a um dado circuito quando seu insumo principal provier da fase anterior do mencionado circuito; caso contrário, considera-se que a partir desse ponto se desenvolve outro circuito, que deve ser analisado separadamente”. (SANTOS, 1986).

No mesmo projeto, Milton Santos propõe a existência de três circuitos: “circuito por ramos”, “circuito de firmas” e “circuito espacial ou territorial”. O primeiro refere-se às relações técnicas e sociais, à localização das atividades e à tipologia dos lugares. O segundo trata da ação das grandes empresas, suas relações econômicas e círculos de cooperação estabelecidos em diferentes escalas. Por fim, a noção de circuito espacial sintetiza os prece-dentes, indicando ao mesmo tempo o uso do território por ramos produtivos e pelas firmas. Ele nos oferece, a cada momento, a situação de cada fração do espaço em função da divisão territorial do trabalho de um país. (CASTILLO e FREDERICO, 2010).

Castillo e Frederico (2010) compreendem que o conceito de circuito espacial de produção enfatiza a um só tempo a cir-culação, os fluxos que permitem a produção (circuito); o espaço geográfico enquanto instância social que se impõe a tudo e a todos (espacial); e a atividade produtiva dominante, devendo-se levar em consideração os agentes e, sobretudo, as firmas (produtivo). Sendo assim, o mais adequado é buscar compreender o movimento que é próprio do território, este se caracterizando tanto como o resultado do processo histórico quanto à base material e social das novas ações humanas.

Os circuitos espaciais de produção são “as diversas etapas pelas quais passaria um produto, desde o começo do processo de produção até chegar ao consumo final” (SANTOS, 1991, p. 49). De acordo com Santos (1991, p. 50), “uma mesma área, hoje, pode ser ponto de confluência de diversos circuitos produtivos. Numa mesma região realizam-se distintas fases de distintos circuitos de produção. A análise dos circuitos espaciais de produção deve

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ser feita, juntamente, com os círculos de cooperação (MORAES, 1985).

Acredita-se que para compreender um circuito espacial de produção, deve-se identificar a atividade produtiva dominante – de forma a buscar analisar seus aspectos técnicos e normativos; os agentes envolvidos e seus círculos de cooperação – identificando os diversos círculos de cooperação que existem num circuito, de forma a apreender a relação existente entre as empresas, entre as empresas e o poder público, instituições e associações; a logística - uma vez que através desta se estabelece a conexão das etapas da produção, aqui se deve verificar suas redes técnicas – redes com níveis de densidade técnica cada vez mais seletiva e dispersas, são os nós - e seus equipamentos; e por fim deve-se preceder de uma análise sobre o uso e a organização do território, uma vez que em cada etapa do circuito; a decisão a respeito da localização da atividade resulta de decisões corporativas sobre os atributos naturais, técnicos e normativos de cada lugar. Por meio desta análise pode-se perceber a distribuição, a densidade, o nível técnico e o arranjo dos sistemas de objetos envolvidos na circulação da produção, bem como em todo o circuito espacial de produção. (CASTILLO e FREDERICO, 2010).

Os círculos de cooperação “integram diferentes lugares numa mesma circularidade (de mercadorias, e de capitais). Estes círculos desenham hierarquias, especializações, fluxos. Suas sobreposições delineiam a divisão territorial do trabalho. “É no seu interior que se movimentam os processos de transferência geográfica do valor” (MORAES, 1985). Os círculos de cooperação ajudam a pensar e analisar de onde se origina o capital para a atividade, a mão de obra necessária, o maquinário, o desenvolvi-mento técnico-científico por trás da produção e as informações produzidas para gerar a produção, de onde vem a matéria-prima, e as formas de transportá-la. Os círculos de cooperação podem ser entendidos como a relação estabelecida entre os lugares e os agentes – que compõem o circuito espacial de produção – por

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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intermédio dos fluxos de informação (políticas das empresas, ordens, mensagens e capital).

Os círculos de cooperação são importantes, pois apesar das etapas do processo produtivo estarem cada vez mais dispersas, dada a crescente especialização produtiva dos lugares, há por outro lado uma crescente expansão das redes de informação (CASTILLO e FREDERICO, 2010), assim sendo os círculos de cooperação evidenciam que apesar de estarem dispersos, os espaços produtivos são interdependentes.

O circuito espacial inicia-se com a produção propriamente dita (SANTOS, 2008a), posteriormente há a etapa de circulação das mercadorias produzidas e sua distribuição pelos diversos pontos do mundo, além de analisar a estocagem de parte da produção, evidenciando também o transporte, a qualidade e quantidade de armazéns, e as vias utilizadas. E, por fim, há a etapa ligada ao comércio e ao consumo, observando se há um monopólio da atividade, as formas de pagamento, a taxação de impostos, quem consome, e qual o tipo de consumo: produtivo ou consumptivo.

De acordo com Arroyo (2008) a escala geográfica de ação dos diferentes circuitos constitui um princípio de organização espa-cial, criando um tecido cuja forma, extensão e complexidade estão mudando permanentemente. Mesmo que as fases ou momentos produtivos se desenvolvam de forma geograficamente dispersa, inclusive para além das fronteiras nacionais, haverá sempre uma unidade do movimento que permite indicar como cada fração do território é interdependente das demais. Os circuitos espaciais de produção são, portanto, úteis para revelar o quanto o trabalho é comum, solidário e circular.

Ademais, cabe uma distinção entre os conceitos de cadeia produtiva, este mais usualmente utilizado, e circuito espacial de produção, que constitui o marco teórico da presente pesquisa. Nesse sentido, de acordo com Castillo e Frederico (2010), os conceitos de cadeia produtiva e de circuito espacial produtivo

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pertencem a corpos teóricos e respondem a objetivos distintos, mas compartilham vários pressupostos e alguns procedimen-tos analíticos, tornando oportuno o estabelecimento de suas diferenças.

A ideia de cadeia produtiva surge no âmbito da administra-ção de empresas e da busca por maior racionalidade econômica, visando ganhos de competitividade de agentes e de setores, pressupondo que esse objetivo traz benefícios para o conjunto da sociedade, mormente a local. Outrossim, faz parte de um sistema de conceitos e ideias que inclui a divisão técnica e social do trabalho, o desenvolvimento local (arranjos e sistemas produtivos locais e/ou clusters), competitividade sistêmica (do produto e da empresa), integração funcional entre outros. Na abordagem da cadeia produtiva, considera-se o espaço e a região como parte do “ambiente externo”, como um fator que pode afetar, positiva ou negativamente, o processo produtivo. (CASTILLO e FREDERICO, 2010).

Por sua vez, a abordagem proposta pelo circuito espacial produtivo desloca o foco da empresa para o espaço geográfico. O objetivo deixa de ser a identificação de gargalos que dificultem a plena integração funcional e prejudiquem a competitividade final dos produtos e passa a ser as implicações socioespaciais da adaptação de lugares, regiões e territórios aos ditames da competitividade, bem como o papel ativo do espaço geográfico na lógica de localização das atividades econômicas, na atividade produtiva e na dinâmica dos fluxos (Idem, 2010).

Circuito espacial da mandiocultura no Rio Grande do Norte: abordagens preliminares da pesquisa

Na atualidade acredita-se que o estudo de um determinado setor da economia e/ou a produção de um produto em específico deve-se realizar por meio do estudo dos circuitos espaciais de

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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produção, principalmente quando em se tratando de um trabalho de caráter geográfico, pois como adverte Santos e Silveira (2008, p. 143):

para entender o funcionamento do território é preciso captar o movimento, daí a proposta da abordagem que leva em conta os circuitos espaciais da produção. Estes são definidos pela circulação de bens e produtos, e por isso oferecem uma visão dinâmica, apontando a maneira como os fluxos perpassam o território.

Dessa forma, reforça-se o estudo do circuito espacial de produção da mandiocultura no território do Rio Grande do Norte e de seus respectivos círculos de cooperação. Nessa seção, serão apresentados alguns dados secundários e informações condizen-tes, principalmente, com a etapa da produção. Isso não significa que as demais etapas do circuito espacial da mandioca no Rio Grande do Norte serão negligenciadas, significa apenas que, para o momento inicial da pesquisa, os dados relacionados à produção de mandioca no estado foram mais facilmente obtidos. De antemão, é interessante ressaltar que, no estado do Rio Grande do Norte, a mandioca ganha relevância, principalmente, por sua tolerância às severas condições climáticas do semiárido, que abrange cerca de 85% do território potiguar (Araújo e Arruda Júnior, 2013).

A mandioca é cultivada praticamente em todo o Estado do Rio Grande do Norte. Entretanto, as principais áreas estão localizadas nas regiões Agreste e Leste Potiguar, com base nos dados da Companhia Nacional de Abastecimento do Rio Grande do Norte (CONAB-RN, 2009). O mapa a seguir (Figura 1) mostra os municípios do estado com maior produção (em toneladas) de mandioca no ano de 2013.

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Mapa 01 ‒ Rio Grande do Norte: municípios com maior produção de mandioca (t) no ano de 2013

FONTE: IBGE/SIDRA, 2015.

O mapa, como se pode observar, reafirma os dados da Companhia Nacional de Abastecimento do Rio Grande do Norte, ao mencionar que as principais áreas de cultura de mandioca estão localizadas nas regiões Agreste e Leste Potiguar. Em 2013, os municípios de Macaíba e São José do Mipibú, ambos localizados no leste potiguar, produziram, cada um, 6.000 toneladas de mandioca, conforme os dados da Produção Agrícola Municipal de 2013 (IBGE). Em seguida, com a produção de 4.800 toneladas de mandioca, destaca-se o município de Boa Saúde, localizado na Microrregião do Agreste Potiguar; e com 4.000 toneladas de mandioca, o município de São Gonçalo do Amarante. Na Microrregião da Serra de Santana, destaque para o município de São Vicente, que em 2013, produziu 3.600 toneladas de mandioca. No litoral setentrional do estado, destaque para o município de

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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Areia Branca, localizado na região da Costa Branca. O referido município produziu, no ano de 2013, 1.100 toneladas de mandioca.

No que se refere à área plantada e colhida (hectares) da produção de mandioca no estado, uma análise do Gráfico 1 (Figura 2), também embasado nos dados da Produção Agrícola Municipal, evidencia como se deu a produção de mandioca no Rio Grande do Norte ao longo dos anos, considerando tanto o aumento quanto o encolhimento da área plantada e colhida.

Gráfico 01 ‒ Rio Grande do Norte: produção de mandioca (área plantada e área colhida em hectares)

FONTE: IBGE. Produção agrícola municipal, 2013.

De acordo com o gráfico, ao longo dos anos a produção de mandioca no estado do Rio Grande do Norte passou por algumas oscilações, em termos de área plantada e área colhida. No ano de 1990, a área plantada de mandioca foi de 47.206 hectares, com respectiva área colhida de 43.350 hectares, o que representou uma perda considerável da produção nesse ano. Já em 1995, a área plantada aumenta, chegando a 50.739 hectares, mantendo o

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número em área colhida, o que significa um excelente aproveita-mento da produção de mandioca no estado. Em 2000, há redução tanto da área plantada quanto da área colhida, a primeira com 42.944 hectares e a segunda com 40.401 hectares. Cinco anos depois, a área plantada aumenta significativamente, passando para 60.766 hectares, com área colhida de 60.676 hectares; foram os maiores números registrados até então. Em 2010, ocorre um novo encolhimento da área plantada (30.509 hectares), mantendo o mesmo número para área colhida. Já em 2013, há a maior redução registrada em área plantada e área colhida, chegando a 8.084 hectares na primeira e 8.025 hectares na segunda.

A redução é explicada pela seca que ocorreu em 2013 no estado, afetando a produção de mandioca – rareando a oferta e elevando o preço da raiz, a matéria-prima – o que ocasionou o fechamento de algumas casas de farinha; e, em outras, a atividade foi mantida de forma intermitente, isto é, apenas quando aparecia a matéria-prima. Até então, o estado do Rio Grande do Norte era o sétimo produtor regional de mandioca, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com cerca de 400 mil toneladas produzidas ao ano. O gráfico a seguir (Figura 3), ilustra o rendimento médio da produção de mandioca (kg/ha) no Rio Grande do Norte, nos anos de 1990, 1995, 2000, 2005, 2010 e 2013, mostrando que, apesar da produção ter sido afetada pela seca em 2013, tanto em área plantada quanto em colhida, ainda conseguiu atingir um rendimento médio de 10.054 kg/ha, no mesmo ano.

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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Gráfico 02 ‒ Rio Grande do Norte: rendimento médio da produção (kg/ha) de mandioca no RN

FONTE: IBGE. Produção agrícola municipal, 2013.

As estimativas da produção, porém, são muito boas. Com base nos indicadores IBGE – Estatística da Produção Agrícola (março/15), nos estados nordestinos, a estimativa da produção está crescendo, em relação ao ano de 2014. O Rio Grande do Norte apresenta uma estimativa de crescimento da produção de mandioca de 84,8%, ficando atrás apenas do Piauí, cuja estimativa é de 99,6%. (IBGE, 2015).

Conforme Salvador (2010), a modernização da atividade mandioqueira, iniciada na década de 1980, marca a realidade de todos os espaços onde se cultiva a mandioca no Rio Grande do Norte; e nesse contexto, é válido destacar a transformação, embora que gradual, das casas de farinha em indústrias de fari-nha. De acordo com um mapeamento realizado no presente ano pelo Serviço de Apoio às Pequenas e Grandes Empresas do Rio Grande do Norte (SEBRAE-RN), o Rio Grande do Norte possui aproximadamente duzentas “fábricas” de farinha de mandioca. O SEBRAE-RN constitui-se em um órgão de apoio técnico para o funcionamento de muitas indústrias de farinha, inclusive, como

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fornecedor de licença ambiental, autorizada pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (IDEMA-RN).

O Sistema da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Norte (FIERN) apresenta em seu cadastro 15 (quinze) indústrias, responsáveis pela “fabricação de mandioca e deri-vados”, de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE 2.0). As indústrias estão localizadas principal-mente nos municípios de Vera Cruz e Brejinho, na Microrregião Agreste Potiguar; mas também há indústrias nos municípios de Serrinha, São Gonçalo do Amarante, Macaíba e no município de São Vicente. Vale destacar que a grande maioria encontra-se na zona rural, conforme os dados da FIERN.

Por fim, tratando-se das etapas distribuição e comercia-lização do circuito espacial de produção de mandioca no Rio Grande do Norte, de acordo com dados do Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (EMATER-RN), a produção, sobretudo de farinha mandioca, é voltada para o próprio estado, como também para os estados de Pernambuco e Ceará; e a comercialização dá-se principalmente em feiras livres. Todavia, sabe-se que a farinha produzida no município de Brejinho é a que ocupa, predominantemente, as prateleiras dos grandes supermercados localizados em Natal. (Salvador, 2010).

Considerações finaisReforça-se a importância do estudo dos circuitos espaciais

de produção e dos círculos de cooperação na ciência geográfica pelo seu potencial explicativo. Os circuitos espaciais de produção oferecem uma abordagem dinâmica, trata-se do movimento e de como os fluxos perpassam o território. Constituem a circulação de bens e produtos, e nessa perspectiva, o setor da mandiocultura no estado do Rio Grande do Norte, tem sua ênfase no presente projeto de pesquisa.

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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É sabido que a pesquisa em tela está em sua fase inicial, portanto, tem-se muito o que explorar, tanto na abordagem teórica e mais ainda na abordagem empírica. Desse modo, primei-ramente, deve-se considerar que a mandioca não é um produto de interesse da agroindústria, pelo contrário, seu envolvimento ainda é bastante incipiente, e a produção é voltada para o mercado interno, pois não constitui-se em uma commoditie internacional valorizada; e no contexto da própria modernização da agricultura, também é desvalorizada. Na realidade do Rio Grande do Norte, considerando que a modernização do setor é bastante recente, esse processo tem se definido principalmente a partir do papel da mecanização, sobretudo no que se refere ao beneficiamento da mandioca.

Por outro lado, a mandioca e mais ainda a farinha, seu principal derivado, são produtos que estiveram sempre presentes e que possuem grande importância na alimentação. Então, o estudo dos circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte é válido como forma de entender tais questões, em uma abordagem que considere as diferentes finalidades desde a etapa da produção até o consumo final; e como os círculos de cooperação integram essas diferentes etapas e mais além: o reconhecimento dos principais agentes envolvidos e o modo como estabelecem tais círculos de cooperação, a logística e o uso do território potiguar pela mandiocultura.

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Raquel Silva dos Anjos

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Circuitos espaciais de produção de mandioca no Rio Grande do Norte

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Problematizando o uso do território do Seridó Potiguar pelo circuito

espacial da produção têxtil

Igor Rasec Batista de Azevedo

Introdução

O presente artigo é fruto das reflexões iniciais a respeito do projeto de dissertação de Mestrado, provisoriamente intitulado, Reflexos da reestruturação produtiva no Seridó Potiguar: o uso do território de Caicó e Jardim de Piranhas pelo circuito espacial da produção têxtil, em curso no Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte1. Vale ressaltar, contudo, o caráter inicial deste processo, cujo estágio atual é de consolidação das bases teóricas, empíricas e temporais.

Nosso interesse investigativo ulterior consiste em analisar o uso do território do Seridó Potiguar pelo circuito espacial da produção têxtil, considerando as etapas posteriores de nossa pesquisa. Para tal, traçaremos um percurso cujo objetivo é cons-truir uma periodização da atividade têxtil no Seridó Potiguar e analisar o seu papel e nexos com o processo de reestruturação produtiva; identificar os agentes envolvidos no circuito espacial

1 Este trabalho está sendo desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Francisco Fransualdo de Azevedo, docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Problematizando o uso do território do Seridó Potiguar pelo circuito espacial da produção têxtil

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de produção têxtil, analisando as articulações empreendidas entre eles nos círculos de cooperação do espaço; culminando na análise de como o circuito espacial da produção têxtil usa e organiza o território seridoense2.

Nessa perspectiva, o artigo em tela tem como objetivo pro-blematizar o uso do território pelo circuito espacial de produção têxtil a partir dos processos, dinâmica e conteúdo desta na região do Seridó Potiguar, enfatizando a fabricação de artefatos têxteis para uso domésticos e seus nexos. Nesta perspectiva, desenvolve-remos uma reflexão sintética sobre o conceito de circuito espacial produtivo, bem como uma caracterização geral do modo como se configura a produção têxtil na região em destaque.

Destarte, discorreremos, em linhas gerais, sobre a forma com a qual a nossa problemática está atrelada ao paradigma contraditório da produção que, em nossos dias, torna cada vez mais espesso o fenômeno da divisão territorial do traba-lho através de seu espraiamento, concomitante ao acúmulo de sobreposições advindas da materialidade pretérita somando-se à pulverização de novas atividades e vetores de modernização. Este panorama vincula-se, sobremaneira, à estruturação do meio técnico-científico-informacional.

Abordaremos, por conseguinte, as implicações desse pro-cesso para o Estado do Rio Grande do Norte que, em uma de suas manifestações, perpassa os nexos com a reestruturação produtiva. Desta, salientamos um dos eixos da indústria potiguar que é o têxtil, especificamente da fabricação de produtos têxteis,

2 A região do Seridó Potiguar está localizada na mesorregião central do Estado do Rio Grande do Norte e subdivide-se nas microrregiões Seridó Ocidental e Seridó Oriental e compreende os municípios, a saber: Caicó, Ipueira, Jardim de Piranhas, São Fernando, São João do Sabugi, Serra Negra do Norte e Timbaúba dos Batistas – Seridó Ocidental; Acari, Carnaúba dos Dantas, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Jardim do Seridó, Ouro Branco, Parelhas, Santana do Seridó e São José do Seridó – Seridó Oriental.

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excetuando-se o vestuário, na qual o Seridó Potiguar assume notoriedade.

Esta produção é desenvolvida, em sua grande maioria, em pequenos estabelecimentos, cuja disseminação no territó-rio seridoense expressa uma verdadeira capilaridade social. Outrossim, esta lógica produtiva, portanto, o uso intensivo de capital vincula-se mais aos contornos da escala local e regional, apesar dos vetores globais que incidem no território.

As dimensões do uso território do Seridó Potiguar pelo circuito espacial da produção têxtil

Salientamos, inicialmente, que “[...] A pesquisa parte de um problema e se inscreve em uma problemática” (LAVILLE e DIONNE, 1999, p. 85). Para Netto (2011), o objeto da pesquisa imprime uma existência objetiva, que independe da consciência do pesquisador. Nesse sentido, nossa pesquisa tem como objeto/problema o uso território do Seridó Potiguar pelo circuito espacial de produção têxtil.

Este apenas encontra significado se apreendido através de elementos distintos, mas imbricados em uma lógica epistemo-lógica própria, particular. Isto é, toda problemática é composta por dimensões de ordem teórica e empírica, intercambiáveis, por se complementarem, mas que não devem se confundir, por preservarem traços particulares.

Trata-se de uma síntese, a qual Althusser (1978) nos cha-mou atenção, relativa à combinação/conjunção de dois tipos de elementos de conhecimentos, isto é, teóricos e empíricos. Segundo o autor, os aspectos teóricos são de natureza abstrato-formal, sendo os aspectos empíricos da ordem da singularidade dos objetos concretos.

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A problemática da pesquisa inscreve o nosso objeto no contexto geral do paradigma contraditório da produção. Este, em nossos dias, torna cada vez mais espesso o fenômeno da divisão territorial do trabalho, através de seu espraiamento, e do concomitante acúmulo de sobreposições, advindas da soma entre a materialidade pretérita e a pulverização de novas atividades e vetores de modernização. Este panorama vincula-se, sobrema-neira, à estruturação do meio técnico-científico-informacional.

Percebe-se, dessa maneira, que o entendimento deste paradigma passa por uma discussão mais ampla, que escapa aos contornos da produção propriamente dita. Ora, as heranças pretéritas se esmaecem, apesar de não se anularem, para serem incorporadas uma série de vetores, de ordens distintas e naturezas diversificadas, cujas marcas denotam a urgência de algo novo. Na realidade, interessa vislumbrar, minimamente, a forma como o mundo se estrutura na história atual.

Neste sentido, Silveira (2012) discute como a técnica trans-forma, incessantemente, o uso do território no período atual da globalização. Cujo entendimento deve passar por três tendências, que lhe são constitutivas - também chamadas de unicidades. A autora fundamenta o desenvolvimento de suas ideias em Santos (2012), para quem a compressão do mundo passa pelo papel do fenômeno técnico e por suas manifestações atuais, engendradas no processo de constituição de uma inteligência planetária.

A primeira dessas tendências é a unidade técnica, isto é, a planetarização de um sistema técnico que abrange todos os lugares. A segunda trata-se da convergência dos momentos, ou seja, o conhecimento instantâneo dos eventos que nos possibilita a percepção da simultaneidade, cuja base material é a técnica da informação, culminando no que Milton Santos chamou de cognoscibilidade do planeta. A terceira delas é a unicidade do motor ou a mais-valia tornada mundial, legitimada por um denso aparato normativo. “Essas três unicidades são a base do fenômeno

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de globalização e das transformações contemporâneas do espaço geográfico.” (SANTOS, 2012, p. 189).

Este fenômeno está imbricado à consolidação, iniciada no momento pós-segunda guerra mundial, do meio técnico-cientí-fico-informacional. Trata-se da “cara geográfica da globalização” (SANTOS, 1999, p. 11).

Para este autor, o período em que vivemos se diferencia dos demais pela vicissitude de um casamento perfeito entre técnica e ciência, ungidos pela égide do mercado, tornado global, graças a condições propiciadas por essa união. Nesta lógica, a informação triunfa como o “nexo fundamental”, uma vez que, ela não só está presente no espaço, nos objetos e nas coisas que o constituem, como as realizações das ações que nele se desenvolvem lhes são tributárias; todo o território tende a ser equipado em favor da livre circulação desses nexos.

A implicação direta desse processo é a tendência à requali-ficação abrupta dos subespaços (SILVEIRA 2010a), reformulando os seus atributos, intentando amparar as demandas dos atores hegemônicos da economia, da política e da cultura, em detrimento dos demais (SANTOS, 2012; SANTOS, 1999).

Desse modo, “Ao mesmo tempo em que aumenta a impor-tância dos capitais fixos [...] e dos capitais constantes [...], aumenta também a necessidade de movimento, crescendo o número e a importância dos fluxos [...]” (SANTOS, 1999, p.11). Nesta pers-pectiva, o capitalismo está sempre movido pelo ímpeto de acelerar o tempo de giro do capital, apressar o ritmo de circulação e, em consequência, de revolucionar os horizontes temporais do desenvolvimento, conforme explicita Harvey (2009).

Ou seja, “[...] não basta produzir, mas pôr a produção em movimento, sobretudo porque não é mais a produção que preside à circulação, mas esta é que conforma a produção” (SANTOS, 2012, p. 275).

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Observa-se, neste sentido, uma verdadeira irrupção no paradigma da produção, pois, “[...] diminui a arena da produção, enquanto a respectiva área se amplia. Restringe-se o espaço das outras instâncias da produção, circulação, distribuição e consumo” (Idem). Em outros termos, temos no período atual uma divisão territorial do trabalho mais esparsa, estendida; não obstante aos avanços técnicos que possibilitaram à concretização da previsão de Marx – assinalada pelo autor – relativa à redução da área e do tempo necessários à produção das mesmas quantidades.

Outra contradição aparente é observada por Silveira (2010b), para quem este “centrifuguismo” é paralelo ao “cen-tripetismo” de nexos extrovertidos emanados das metrópoles; onde, em geral, são realizadas “as principais tarefas de concepção técnica, informacional, mercadológica e a transformação dos instrumentos financeiros em outros” (SILVEIRAb, 2010, p. 78).

É necessário frisar, ainda, conforme aponta a autora, que não se trata apenas de uma simples ampliação dos contextos, onde todos os lugares são convidados a produzir ativamente. Há, na realidade, uma pluralidade e coexistência de divisões do trabalho, sobrepondo-se no uso do território; tendo como condição e resultado as infraestruturas, os movimentos de população, as dinâmicas agrícolas, industriais e de serviços, a estrutura normativa e a extensão da cidadania.

Neste sentido, podemos afirmar com Santos (2009) que o espaço é uma acumulação desigual de tempos; cada lugar abri-gando, ao mesmo tempo, temporalidades distintas. Seguindo este raciocínio, temos de concordar com Silveira (2010b, p.74) que o espaço geográfico é “um rendilhado de divisões territoriais, um sinônimo de território usado”. Ou mesmo, para finalizar, que o espaço é “a soma dos resultados da intervenção humana sobre a terra” (SANTOS, 2009, p. 29).

Sempre segundo Santos (2012), os novos subespaços, inseridos nessa lógica, não detêm capacidade uniforme de ren-tabilizar determinada produção, pois, cada combinação possui

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sua respectiva lógica, autorizando formas de ação e agentes econômicos específicos para cada situação. Dessa maneira, os lugares seriam diferenciados pela sua capacidade particular, maior ou menor, de rentabilizar investimentos, a depender das condições locais de ordem técnica e organizacional.

Esta “rentabilidade” não é, para o autor, um dado absoluto do lugar. A eficácia mercantil estaria, na realidade, ligada ao produto, mais precisamente à um produto específico, isto é, à uma atividade predominante específica. Isso abre margem para que os lugares se especializem, adrede, em determinado(s) ramo(s), em que pese as virtualidades naturais, a capacidade técnica e organizacional e as vantagens de cunho social.

Aflora, entrementes, uma extrema competitividade entre os lugares e suas forças, repercutindo. Esses lugares

[...] repercutem os embates entre os diversos atores e o território como um todo revela os movimentos de fundo da sociedade. A globalização, com a proeminência dos sistemas técnicos e da informação, subverte o antigo jogo da evolução territorial e impõe novas lógicas (SANTOS, 2004, p. 79).

Depreende-se disso um agravamento galopante da neces-sidade de acumulação, engendrada pelo parâmetro atual da produção, que dá especial relevo ao movimento, implicando à circulação um ritmo frenético. Isto requer dos subespaços um denso aparato técnico, organizacional e normativo viabilizando essa mobilidade.

É evidente que não há uma uniformidade de resposta aos reclamos acima citados, implicando numa segmentação do mercado. Segundo Arroyo (2008), isso acontece pelo fato de existirem diferentes formas de produzir que, por usa vez, correspondem a diferentes formas de consumir, autorizando a convivência de uma ampla variedade de formas de realização econômica, que trabalham segundo diversas taxas de lucro, produtividade, rendimentos e salários.

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Em suma, o mundo encontra-se organizado em subespaços articulados em uma lógica global, cada lugar sendo resultado de uma ordem global e de uma ordem local, convivendo dialetica-mente. Como decorrência dos inúmeros fluxos de todos os tipos, intensidades e direções, rompem-se os equilíbrios precedentes. O desenlace deste processo modifica a estrutura da produção; cujas etapas estão atualmente organizadas na forma de circuitos espaciais produtivos (SANTOS, 2008).

A emergência destes novos aspectos, logicamente, também trouxeram implicações para o Estado do Rio Grande do Norte. Com as crises instaladas, sobretudo a partir dos anos 1980, inicia-se um processo de solapamento da base econômica do Estado, que naquele momento era essencialmente rural. Ou seja, um dos nexos do novo período manifesta-se através do processo de reestruturação produtiva.

Para Azevedo (2013, p. 114), “O processo de reestruturação produtiva compreende um conjunto de transformações de caráter estrutural, organizacional e técnico, fazendo-se refletir no espaço geográfico em sua totalidade”. No Rio Grande do Norte, “esse processo impôs a reestruturação do território, marcado dentre outros aspectos, pela falência de determinadas atividades eco-nômicas, redefinição e reestruturação de outras, mas sobretudo o surgimento de ‘novas’” (AZEVEDO, p. 114).

O autor salienta que um dos eixos significativos dessa rees-truturação é o industrial, que se desenvolve, sobretudo, a partir da agroindústria, do extrativismo e do setor têxtil. Neste contexto, para Azevedo (2007), é necessário atentar para a relevância da região do Seridó Potiguar em relação ao setor, especialmente o de alimentos, o cerâmico e o têxtil.

É mister, neste momento, uma distinção em relação à esta última, haja vista à relevância da mesma. De maneira geral, a Indústria Têxtil envolve dois segmentos principais; ambos se desenvolveram, de maneira geral, no Rio Grande do Norte, e especificamente, no Seridó Potiguar. Estamos nos referindo à

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fabricação de produtos têxteis e a confecção de artigos do vestuário e acessórios.

Segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE, 2015) a fabricação de produtos têxteis compreende: 1) preparação e fiação de fibras têxteis; 2) tecelagem, exceto malha; 3) fabricação de tecidos de malha; 4) acabamentos em fios, tecidos e artefatos têxteis; e 5) fabricação de artefatos têxteis, exceto vestuário. Enquanto a confecção de artigos do vestuário e acessórios compreende: 1) confecção de artigos do vestuário e acessórios; e 2) fabricação de artigos de malharia e tricotagem. (CNAE, 2007)

Queremos com esta pequena diferenciação jogar luz ao fato de que as respectivas atividades possuírem lógicas de localização distintas, ao passo que envolvem lógicas produtivas também distintas. Em vista disso, constituem uma variável significativa para nossa formulação e delimitação analítica, à guisa de uma perspectiva eminentemente geográfica, vislumbrando compre-ender a trama locacional empreendida pela produção têxtil no Seridó Potiguar, cuja explicação, todavia, não está circunscrita à região.

A expressão “trama locacional” refere-se a um conjunto de “posições relativas segundo um sistema de referências espaciais” (Gomes, 2013, p. 36). Para o autor a explicação geográfica está mais relacionada à forma de inquirir os objetos investigados, do que neles próprios, em sentido estrito. Seria patente à geografia explicar porque este sistema de referências espaciais intervém na construção de sentidos, isto é, explicar o porquê do onde.

O raciocínio é desenvolvido pelo autor da seguinte maneira:

[...] os lugares, como pontos dentro de um sistema de referência, só passam a produzir sentido a partir do momento em que são ocupados por alguma coisa. A natureza, o conteúdo, a forma como ela se apresenta se combinam com o lugar onde ela aparece, com a posição que ocupa, e juntos, o lugar e o que nele se apresenta, produzem sentido. [...] uma análise geográfica é

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necessária e rica, uma vez que mostra a dependência da pro-dução de sentido relativamente ao universo posicional dentro do qual os objetos, as pessoas e os fenômenos se inscrevem. (GOMES, 2013, p. 36-37)

Nesta perspectiva, como o conceito de circuito espacial produtivo busca explicar a espacialidade da produção partindo do ramo, a indústria têxtil envolve, grosso modo, principalmente, os circuitos espaciais do vestuário e da produção têxtil. Nossa pesquisa irá tratar deste último. Não obstante, ambos estão imbricados, apesar de inconfundíveis, uma vez que envolvem produtos específicos e, sobretudo, uma atividade produtiva pre-dominante específica.

A relevância do Seridó Potiguar para a fabricação têxtil, e vice versa, é bastante nítida, tendo uma sensível expressividade, observada a partir de uma forte especialização regional em relação ao setor. Se levarmos em conta o Estado do Rio Grande do Norte, a fabricação têxtil desenvolvida no Seridó Potiguar equipara-se apenas a região metropolitana do Estado, que concentra o maior número de empresas, em termos relativos e absolutos, de toda a indústria de transformação, em geral.

Do total de 160 empresas de todo o setor industrial de fabricação têxtil no Rio Grande Norte, 95 estão no Seridó Potiguar (FIERN, 2015). Estes números representam mais de 59% das empresas, isto é, mais da metade das indústrias de todo o Estado se concentram na região. Isto ratifica o fenômeno de especia-lização dos lugares, haja vista a expressão da especialização regional para o setor, ao passo que conjectura um dos elementos há serem explorados, ulteriormente, referente às Regiões Produtivas (SANTOS, 2008b).

Esta atividade também está espacialmente distribuída de forma concentrada na própria região, sobretudo em sua porção ocidental. Dos 17 municípios da região, são apenas 6 os que abrigam pelo menos uma empresa do ramo, tendo maior evi-dência os de Jardim de Piranhas e Caicó, com 71 e 17 empresas,

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respectivamente. São 88, de um total de 95, o que representa 92,6% do percentual.

Se subtrairmos deste percentual Caicó, observaremos, ainda, que o município de Jardim de Piranhas concentra 74,7% do total de empresas da região. As 7 empresas restantes encontram-se localizadas em Currais Novos, Timbaúba dos Batistas, São José do Seridó e Serra Negra do Norte, com, consecutivamente, 3, 2, 1 e 1 unidades. (FIERN, 2015)

Outro fator extremamente relevante da presença do circuito espacial da produção têxtil no Seridó Potiguar está relacionado à origem/tipologia do capital, que emprega na produção, ao mesmo tempo, um uso intensivo de mão de obra, que é típico da produção têxtil em geral, diferenciando-se, contudo, por outro lado com o baixo valor tecnológico agregado à produção.

Esta se desenvolve a partir da pulverização de pequenos estabelecimentos fabris, cuja disseminação no território seri-doense expressa uma verdadeira capilaridade social. Inexistem, por exemplo, na região, grandes ou até médias empresas no segmento. Se levado em consideração o critério de classificação de empresas segundo o número de empregados utilizados pelo IBGE, 77,89% das unidades fabris são Microempresas (até 19 empregados) e os outros 22,11% são de Pequenas-Empresas (entre 20 e 99 empregados).

O circuito espacial de produção têxtil se configura na região a partir de atividades produtivas específicas predominantes, que podem ser classificadas de acordo com o ramo da atividade. A maioria das empresas seridoenses inseridas no circuito trabalha com a fabricação de artefatos têxteis para uso doméstico (38 unidades fabris, 40% do total) e com a fabricação de outros produtos têxteis não especificados anteriormente (30 unidades fabris, 31,58% do total).

Há, ainda, em termos relativos, uma quantidade signifi-cativa de empresas em três outros ramos: tecelagem de fios de

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algodão (8 unidades fabris, contabilizando 8,42%), acabamentos em fios, tecidos e artefatos têxteis e fabricação de artefatos de cordoaria (com 7 unidades fabris e percentual de 7,37%, cada uma), ambas diretamente relacionadas ao desenvolvimento das duas atividades precedentes. Da mesma forma, podemos observar produções mais residuais, tais como: fabricação de linhas de costurar e bordar (3 unidades fabris, 3,16%), preparação e fiação de fibras têxteis naturais, exceto algodão e tecelagem de fios de fibras têxteis naturais, exceto algodão (1 unidade fabril e percentual de 1,05%, cada). (FIERN, 2015)

A espacialidade da produção: breves considerações teórico-metodológicas sobre o conceito de circuito espacial produtivo

Segundo Netto (2011), a teoria é, com base em Marx, um modo bem peculiar de conhecimento, o qual aborda aspectos como a arte, o conhecimento prático da vida em seu cotidiano, a mística, entre outros aspectos. Portanto, “[...] o conhecimento teórico é o conhecimento do objeto – de sua estrutura e dinâmica – tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva, independente dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador” (NETTO, 2011, p. 20, grifos do autor).

Entretanto, como nos explica Althusser (1978), a pesquisa nunca é passiva. Desenvolvê-la exige do pesquisador uma direção e um controle dos elementos teóricos que nela agem, implicando em regras de observação, seleção e classificação. Além disso, há montagem técnica, constituída pelo campo da experiência.

Nesta perspectiva, a teoria se refere, precisamente, a objetos abstrato-formais, conceitos, e, consequentemente, ao encadea-mento dos mesmos nos sistemas de relações teórico-conceituais. Todavia, esta trama lógico-formal apenas efetiva-se na medida em que sua intervenção ocorre para a contribuição do conhecimento

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dos objetos reais-concretos, não se tratando, pois, de um jogo de abstração pura. (Althusser, 1978)

Em nossa pesquisa, nos respaldamos na teoria dos cir-cuitos espaciais de produção. Neste sentido, as próximas linhas objetivam traçar um sintético panorama conceitual, seguido de um esquema operacional.

Os estudos relativos ao circuito espacial produtivo são relativamente recentes na história da ciência geográfica. Segundo Castillo e Frederico (2010), a formulação mais direta desta pro-blemática foi realizada, em 1970, por Sonia Barrios no projeto “MORVEN: Metodologia para o Diagnóstico Regional”, desen-volvido pela Universidade Central da Venezuela.

Esta noção enfatiza, a um só tempo: a centralidade da circulação no encadeamento das diversas etapas da produção (circuito); o espaço enquanto variável significativa da reprodução social (espacial); e o enfoque centrado em determinado ramo, numa atividade produtiva dominante (produtivo) (CASTILLO; FREDERICO; 2010).

Para os autores, a teoria remonta à Marx (2008), quando este discorre sobre a unidade contraditória entre as diferentes etapas da produção. Trata-se de uma geografização das instâncias produtivas. Isto é, a teoria vislumbra compreender o sentido da localização (espacialidade) das atividades econômicas, no período atual, ou seja, “é discutir a espacialidade da produção-distribuição-troca-consumo como movimento circular constante” (MORAES, 1985, p. 156, apud CASTILLO; FREDERICO; 2010).

Nesta perspectiva, segundo Santos (2008), é mister atentar para a indivisibilidade do espaço, enquanto totalidade. Portanto, estas instâncias, não possuem valor real se vistas separadamente, de maneira independente. Contundo, são passíveis de distinção analítica, por disporem de certa autonomia, cujo autor demonstra a partir do que ele chama de espaços “da produção propriamente dita”, “da circulação e da distribuição”, e “do consumo”.

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Aliás, se tratando deste último, não o concebemos enquanto “fim” do encadeamento produtivo. Pelo contrário, é esta a ins-tância que retroalimenta o circuito espacial de produção, não se tratando, pois, de um ciclo, mas de um espiral, de um acúmulo. Dessa forma, o processo produtivo não comporta uma sucessão produção-circulação-distribuição-consumo.

Vale reforçar, pois, que se trata de uma abstração, haja vista que nas próprias etapas de produção propriamente dita, circulação e distribuição há consumo. Desta forma utilizaremos a distinção utilizada por Santos (2008) que diferencia o consumo em duas formas.

O autor chama atenção, ainda, à interdependência das categorias modo de produção, formação social e espaço (SANTOS, 2005). Para ele, as instâncias, apreendidas em união, formam um modo de produção. Este se realiza num movimento conjunto, cujo desenvolvimento se dá através da formação social. Esta compreende, ao mesmo tempo, uma estrutura produtiva e uma estrutura técnica. Desse modo, “Trata-se de uma estrutura técnico-produtiva expressa geograficamente por uma certa distribuição da atividade de produção” (SANTOS, 2005, p. 28).

Conceitualmente, as diversas etapas pelas quais passaria um produto, desde o começo do processo de produção até chegar ao consumo final, para Santos (2008a), caracterizam e definem os circuitos espaciais de produção. Dessa forma, eles pressupõem atentar a um conjunto de elementos distintos do encadeamento produtivo, tais como: matéria prima, mão de obra, estocagem, transportes, comercialização e consumo.

Segundo Santos (2008b) para entender o uso do território é necessário captar o movimento, de onde surge a referida proposta de abordagem teórica. Para o autor, como os circuitos espaciais de produção são definidos através da circulação de bens de produtos, oferecem uma compreensão dinâmica da maneira como os fluxos perpassam o território.

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Destarte, para manter e reproduzir esse movimento são necessários abundantes conteúdos organizacionais, com impor-tante e prévio trabalho intelectual. Ou seja, fluxos imateriais. A interlocução destes vetores empreende verdadeiros círculos de cooperação. Para Silveira (2010) as tessituras destes círculos de cooperação cingem o território sob a forma de ordens, informa-ções, propaganda, dinheiro e outros instrumentos financeiros.

A interpretação conjunta dessas duas noções possibilita verificar a interdependência dos espaços produtivos, compreen-dendo, ao mesmo tempo, a unidade e a circularidade do movi-mento. Em suma, “Circuitos espaciais de produção e círculos cooperação mostram o uso diferenciado de cada território por parte das empresas, das instituições, dos indivíduos, e permitem compreender a hierarquia dos lugares” (SANTOS, 2008b, p. 144).

Concernente à dimensão metodológica da teoria, Castillo e Frederico (2010) propõem um esquema analítico que, grosso modo, perpassa quatro parâmetros.

Inicialmente, pelo fato da referida teoria partir de um ramo específico, e não dos agentes (caso da teoria dos circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos), deve-se iden-tificar a atividade predominante, que no caso da nossa pesquisa é a fabricação de produtos têxteis. Outra orientação é reconhecer os principais agentes envolvidos, no circuito, e as respectivas formas de articulação. Trata-se da compreensão dos círculos de cooperação do espaço, visando identificar quem usa e quem domina.

Em seguida, além de compreender a logística, isto é, analisar as condições materiais e o ordenamento dos fluxos, o trabalho deverá culminar na explicação sobre a organização e o uso do território pelo circuito espacial da produção. Isto é, compreender o sentido da localização desses nexos.

Outrossim, a explicação deve permear a organização interna dos subespaços; o uso seletivo dos sistemas técnicos; e

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a forma como são estabelecidas as relações com outros subespaços. Levando em consideração esses elementos, a pesquisa permitirá: confrontar a configuração territorial pretérita com os novos arranjos espaciais produtivos; avaliar as relações de conflito e cooperação entre os agentes; e identificar a hierarquia entre os lugares e as diversas temporalidades coexistentes.

Para finalizar, gostaríamos de tecer um breve comentário relativo ao consumo. Em nosso entendimento, este não presume o “fim” do encadeamento produtivo. Pelo contrário. Esta é a instân-cia que retroalimenta o circuito espacial de produção, que, por seu turno, não é um ciclo, mas um espiral, um acúmulo. “Cada lugar abriga, ao mesmo tempo, diferentes etapas de diversos circuitos espaciais produtivos” (CASTILLO; FREDERICO; 2010; p. 466).

Acreditamos que a diferenciação realizada por Santos (2005), em dois de tipos de consumo, nos sirva como um meio de dirimir o problema. Segundo o autor, ao lado da ampliação, na atualidade, do consumo consuntivo, se dá a ampliação de um consumo de natureza produtiva. Ambas as formas compreendem um consumo tanto da ordem de bens materiais, quanto da ordem de serviços ofertados.

O consumo consuntivo esgota-se nele mesmo, e sua demanda está relacionada à heterogeneidade dos estratos de renda; compreende, sobretudo, os gastos relativos à saúde, educa-ção, lazer etc., e bens conspícuos, duráveis ou não. Já o consumo produtivo possui uma demanda relacionada à heterogeneidade dos subespaços; compreende, sobretudo, os gastos com equipamentos mercantis, e com a força-trabalho, em massa e especializada.

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A Ceasa-RN na região metropolitana de Natal interações espaciais e circuitos da economia urbana

Thiago Augusto Nogueira de Queiroz

Introdução

As centrais de abastecimento alimentar (Ceasas) foram criadas na década de 1970 pelo governo federal. No final da década de 1980, houve um processo de descentralização da gestão dessas centrais que passaram a ter o poder acionário controlado pelos governos estaduais ou municipais. Esses entrepostos de abastecimento alimentar são responsáveis pelo comércio de hortifrutigranjeiros nas cidades e regiões onde estão instalados.

A Central de Abastecimento S.A. do Rio Grande do Norte (Ceasa-RN) é formada por apenas um entreposto, localizado em Natal. Essa central foi criada em 1975 pelo governo federal, e em 1988 teve seu controle acionário transferido da instância federal para o governo estadual do RN, vinculando-se à Secretaria de Agricultura, Pecuária e Pesca (Sape). A central de abastecimento do RN tem como principal finalidade o abastecimento horti-frutigranjeiro no estado do Rio Grande do Norte, em especial a cidade de Natal e Região Metropolitana.

Este artigo tem como objetivo demonstrar que a Ceasa-RN, em primeiro lugar, possui interações espaciais (CORRÊA, 1997) com os circuitos da economia urbana (SANTOS, 1979) de Natal

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e região, e em segundo lugar, é constituída em seus interstícios por um circuito superior, incluindo a porção marginal, e por um circuito inferior. Assim, comprovando a hipótese levantada que a Ceasa-RN, como também as demais centrais de abastecimento alimentar do Brasil, é um elemento híbrido ou misto dos circuitos da economia urbana.

Para tal fim, utilizaram-se como procedimentos meto-dológicos, entrevistas, levantamento de dados secundários, observações e registros fotográficos da central de abastecimento do RN. Como também, foram feitos uma pesquisa de campo e uma aplicação de formulários, para o levantamento de dados primários, sobre a Ceasa-RN, nas feiras livres, mercados públi-cos, hipermercados, supermercados varejistas e atacadistas do município de Natal. Com os dados primários e secundários, foram produzidos mapas, gráficos, quadros e figuras, que serão demonstrados ao longo do artigo.

Este artigo está divido em duas partes. Na primeira secção discute-se sobre as interações espaciais da Ceasa-RN com os elementos do circuito superior (hipermercados, supermercados e atacadistas) e com os elementos do circuito inferior (feiras livres e mercados públicos) da economia urbana. Na segunda parte, demonstra-se que esses circuitos da economia urbana compõem a Ceasa-RN internamente, fazendo com que essa instituição se comporte como um elemento híbrido, um elemento misto dos circuitos da economia urbana.

As interações espaciais entre a Ceasa-RN e os elementos dos circuitos da economia urbana

O entreposto da Ceasa-RN é classificado como sendo de porte médio, comercializando anualmente, de acordo com os dados de 2009 da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), mais de 264 mil toneladas de alimentos ao ano, e 22 mil toneladas

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por mês, correspondendo a 1,1% da comercialização total das centrais de abastecimento brasileiras.

Segundo os dados informados em entrevista, o cresci-mento anual no volume total de alimentos vendidos está em uma média de 10%. Por exemplo, em 2012 o volume comercializado totalizou 257.744 toneladas de alimentos que representou uma evolução de 6,6% em relação ao ano de 2011, que foi de 241.754,7 toneladas. Mensalmente são originadas cerca 310 toneladas de resíduos alimentares, que são adquiridos pela gestão social dessa infraestrutura de abastecimento e distribuídos à população de rua, através do denominado “sopão”, oficialmente o Programa Mesa da Solidariedade.

De acordo com os dados fornecidos em entrevista na própria instituição, a área total desse entreposto é de 76.783,82 m², distribuídos em nove áreas de mercados permanentes e quatro áreas de mercados livres e uma área de mercado da melancia, melão e abacaxi. As áreas permanentes são compostas com 228 boxes para os permissionários (pessoas jurídicas). As demais cinco áreas são compostas por 1049 módulos (denominados também de pedras) para os permissionários (pessoas físicas), produtores e atravessadores. A Ceasa-RN, devido à sua grande dimensão espacial, pode ser considerada também, o que Silveira (2004) denomina de área de especialização, onde a divisão do trabalho se especializa no circuito espacial produtivo de frutas, legumes e verduras.

O rendimento mensal da central de abastecimento do RN é de 33 milhões de reais. De acordo com os dados fornecidos em entrevista, tal instituição gera 1000 empregos diretos. Além disso, essa central de abastecimento tem 62 transportadores autorizados (fretistas) e 72 carregadores autônomos (cabeceiros). Existe em média um fluxo de 74 mil pessoas circulando mensal-mente nesse entreposto. Também circulam em torno de 72 mil veículos mensalmente.

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Fluxos de pessoas, mercadorias e informações se originam da e se destinam às centrais de abastecimento, e em especial a Ceasa-RN. Esse conjunto de fluxos é denominado por Corrêa (1997) de interações espaciais. Estas passam por transforma-ções com o advento do período técnico-científico-informacional (SANTOS, 1996), baseada na inovação tecnológica e informacional dos transportes e das comunicações. Essas interações espaciais passam a se caracterizar pelo aumento da massa e da frequência do fluxo de pessoas, mercadorias e informação em circulação, pelos novos meios de circulação e de comunicação, pela velocidade de superação das barreiras espaciais em um tempo menor, pela complexidade das redes com um maior número de nós, de vias, de fluxos e de agentes socioespaciais, pela ampliação da importância de integração das instâncias econômicas, políticas e culturais da sociedade e do espaço, e por fim, pela modificação das interações na rede urbana – entre as grandes cidades, entre as grandes e pequenas cidades, entre as pequenas cidades, e entre cidade e campo – dentro de uma mesma região ou de regiões distintas.

Os padrões das interações espaciais podem ser, segundo Corrêa (1997): fortemente locais, regionais, ou territoriais, quando dispõem de uma interação maior interna ao lugar, ou à região ou território; fortemente extralocais ou extrarregionais, quando há uma interação mais forte com o externo ao lugar, ou à região ou território; diferenciadas pela direção, ou seja, as interações alteram-se direcionalmente de acordo com as diferentes escalas do espaço; e diferenciadas pela descontinuidade no tempo, os padrões de interação alteram-se em diferentes escalas de tempo também.

A Ceasa-RN, assim como as demais centrais de abasteci-mento, interagem espacialmente com os elementos dos circuitos da economia urbana (SANTOS, 1979). O circuito superior, o circuito moderno, dotado de alto grau de ciência e tecnologia, tem como principais representantes, no comércio de hortifru-tigranjeiros, os supermercados, hipermercados e atacadistas. O

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circuito inferior, o circuito popular, com baixo grau de ciência e tecnologia é representado, no comércio de frutas, legumes e verduras pelas feiras livres, mercados públicos, mercadinhos, mercearias e quitandas.

Segundo os dados fornecidos em entrevista, a Ceasa-RN é responsável por 65% do volume total do abastecimento e comercialização dos produtos hortifrutigranjeiros da Região Metropolitana de Natal (RMN). Em relação às interações com os estabelecimentos da RMN, 40% dos produtos são comercializados com os supermercados, 20% com as feiras livres, 20% com os pequenos mercadinhos de bairro e mercados públicos, e 20% para as mercearias e quitandas. Se for considerado somente o município de Natal, observa-se que é maior a participação dessa infraestrutura de abastecimento no volume de comércio de hortifrútis, assim como é maior o percentual de fornecimento para hipermercados e supermercados e feiras livres, já que, em relação aos mercados públicos, mercearias e quitandas, o volume total dentro desse município é inexpressivo.

Os dados da Ceasa-RN do ano de 2010 mostram que 51% dos produtos comercializados nessa central são originados do estado do Rio Grande do Norte. Os demais 49% estão divididos da seguinte forma: Pernambuco (14%), Paraíba (12%), Bahia (7%), Santa Catarina e Rio Grande do Sul (4% cada estado), Ceará e Minas Gerais (3% cada estado), São Paulo (1%), e demais estados com 1% (Mapa 01). Portanto, no entreposto de abastecimento do RN, prevalecem as frutas, legumes e verduras produzidas no próprio estado, seguido dos estados da região Nordeste – Pernambuco, Paraíba, Bahia e Ceará, que detêm juntos 36%. Os demais estados fornecedores, acima de 1%, são Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais e São Paulo, sendo que os dois primeiros estados concentram suas participações na produção de maçã e pera.

Da totalidade dos hortifrutigranjeiros que são produzidos no Rio Grande do Norte, os locais de origem dos mesmos são:

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Açu (36%), Baraúna (18%), Touros (17%), Ceará Mirim (3%), com 2% da produção local os municípios de Ielmo Marinho, Jaçanã, Mossoró, Rio do Fogo, Serra do Mel e São José do Mipibu, com 1% da produção os municípios de Alto do Rodrigues, Baía Formosa, Campo Redondo, Cruzeta, Jandaíra, Macaíba, Nova Cruz, Parnamirim, Tenente Laurentino e Upanema, e os demais municípios com 4% dos hortifrutigranjeiros produzidos no RN (Mapa 02). Nota-se que 96% da produção local concentra-se em apenas 20 municípios dos 167 que compõem o estado do Rio Grande do Norte. Os três maiores municípios fornecedores (Açu, Baraúna, Touros) detêm 71% da produção local. Esses hortifrútis são transportados para Natal, principalmente através das rodovias BR 101 (Touros-Natal) e BR 304 (Baraúna-Açu-Natal).

Nesse sentido, as centrais de abastecimento, particular-mente a Ceasa-RN se caracteriza como uma infraestrutura que agrega diversos circuitos espaciais de produção agrícola, ou seja, os entrepostos de abastecimento tornam-se um momento do processo de circulação do capital (produção, distribuição, troca, consumo). Os circuitos espaciais de produção “se estruturam a par-tir de uma atividade produtiva definida como primária ou inicial e compreendem uma série de fases ou escalões correspondentes aos distintos processos de transformação por que passa o produto principal da atividade até chegar ao consumo final” (SANTOS, 1986, p. 121). Cada hortifrúti trocado no mercado representa uma face de um circuito espacial produtivo. Tal circulação de mercadorias ocorre associada aos círculos de cooperação, que complementam e dão suporte aos circuitos produtivos. Assim, as centrais de abastecimento são também elementos do círculo de cooperação de diferentes circuitos de produção agrícola do Brasil.

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Mapa 01 ‒ Fluxos de hortifrutigranjeiros dos estados brasileiros para a Ceasa-RN

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Mapa 02 ‒ Fluxos de hortifrutigranjeiros dos municípios do Rio Grande do Norte para a Ceasa-RN

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A partir dos dados obtidos em atividade de campo, consta-tou-se que 82 feirantes (dos 100 entrevistados) compram frutas, legumes e verduras nas centrais de abastecimento do RN, para revender nas feiras livres. Desses 82 feirantes, 49 adquirem mercadorias apenas na central de abastecimento, e 33 deles adquirem no entreposto de abastecimento do RN apenas parte dos produtos revendidos (Gráfico 01). Esses 33 feirantes adquirem o restante de suas mercadorias diretamente ao produtor.

Desses 82 feirantes, 47 adquirem o produto na Ceasa-RN através do transporte próprio, sendo que os demais 35 contratam o serviço de frete para o transporte das mercadorias da central para as feiras livres (Gráfico 02). Um dado que chama atenção é que 31 feirantes do arranjo espaço-temporal norte (dos 39 que compram na infraestrutura de abastecimento do RN) adquirem suas mercadorias utilizando o transporte próprio. Esse dado é inverso ao predominantemente encontrado nas feiras do arranjo espaço-temporal sul, nas quais apenas 16 (dos 43 feirantes que compra na Ceasa-RN) adquirem suas mercadorias utilizando o transporte próprio.

Gráfico 01 ‒ Número de feirantes por feira que adquirem toda ou parte das mercadorias na Ceasa-RN

0 50 100

Rocas

Carrasco

Coqueiros

Esperança

Total

Adquirem na Ceasa-RN parte dasmercadoriasAdquirem mercadorias apenas naCeasa-RN

FONTE: Pesquisa de campo (2013).

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Gráfico 02 ‒ Número de feirantes por feira que adquirem mercadorias na Ceasa-RN com transporte próprio ou transporte fretado

0 50 100

Rocas

Igapó

Carrasco

Panorama

Coqueiros

Alecrim

Esperança

Nova Natal

Total

Adquirem mercadorias na Ceasa-RNcom transporte fretado

Adquirem mercadorias na Ceasa-RNcom transporte próprio

Adquirem mercadorias na Ceasa-RN

FONTE: Pesquisa de campo (2013).

Apenas 9 feirantes (dos 18 que não compram na Ceasa-RN) são os próprios produtores, ressaltando-se a presença de mais atravessadores. Perguntou-se também onde eram produzidas as frutas, verduras e legumes que não eram adquiridos na Ceasa-RN. Tal questionamento foi feito aos 33 feirantes que compram somente parte das mercadorias no entreposto de abastecimento e aos 18 (produtores e atravessadores) que não compram na central. As respostas mostraram que esses hortifrutigranjeiros eram adquiridos de diferentes lugares.

Dentro do município de Natal identificou-se a área agrícola de Pajuçara, onde são produzidos: alface, berinjela, cebolinha,

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coentro, couve comum, corona, hortelã, manjericão, pepino, pimentão, quiabo e rúcula. Na Região Metropolitana de Natal (RMN), foram identificados os hortifrutigranjeiros produzidos em Extremoz, Ceará Mirim, Macaíba, Parnamirim e São José do Mipibu. Em Extremoz, a produção agrícola ocorre na comunidade de Estivas (banana, caju e manga). Em Ceará Mirim, é produzido o mamão vendido diretamente nas feiras. Em Macaíba, destaca-se a comunidade de Mangabeira (produzindo cajá, coco, manga e melão), e a comunidade de Laranjeiras (batata, feijão verde e macaxeira). Em Parnamirim, há a produção de banana na comunidade de Pium. Em São José de Mipibu, são produzidos os cocos e as pitombas. Identificou-se também a produção vendida diretamente nas feiras originadas de outros municípios do Rio Grande do Norte, a saber: Touros, com a produção de mangaba; e Açu, com a produção de acerola, cajá, mamão, manga e umbu.

De acordo com as informações recebidas nas entrevistas, a compra de produtos hortifrúti na Ceasa-RN pelos hipermerca-dos, supermercados e atacadistas tem uma variação em relação à quantidade de produtos: apenas 10% no Carrefour, 33% do hortifrúti vendido no Sam’s club, 50 % no Extra, 60 % no Hiper Bompreço, 65% no Atacadão, 70% no Nordestão, 75% no Super Fácil, 75% no supermercado Favorito, 75% no supermercado Rede Mais, 95% no supermercado Supercop e 100% no supermercado Super Show e no atacadista Makro (Gráfico 03).

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Gráfico 03 ‒ Percentual de hortifrutigranjeiros fornecidos pela Ceasa-RN aos supermercados, hipermercados e atacadistas da cidade de Natal-RN

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Percentual de hortifrutigranjeiros fornecidos pela Ceasa-RN

FONTE: Pesquisa de campo (2013).

Observa-se no Gráfico 03 que há uma média de 83% na participação da Ceasa-RN no abastecimento dos supermercados, essa média é de 68% em relação aos supermercados atacadis-tas, chegando apenas a 40% nos hipermercados. Tal variação está relacionada ao consumidor final, como se verá adiante, os hipermercados funcionam, especificamente no comércio de hor-tifrutigranjeiros, como atacadistas, enquanto os supermercados atacadistas vendem frutas, legumes e verduras, principalmente, no varejo. Daí a estratégia de os hipermercados serem fornecidos diretamente pelo produtor, sem a intermediação da Ceasa-RN.

No geral, como nota-se no Gráfico 03, a central de abasteci-mento do RN tem a participação de 67% dos hortifrutigranjeiros comercializados nesses estabelecimentos do circuito superior,

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ao passo que atinge 82% nas feiras livres e 100% nos mercados públicos, estes dois últimos são elementos característicos do circuito inferior. No entanto, os mercados públicos de Natal tem uma participação incipiente na comercialização de frutas, legumes e verduras, sendo desprezível no volume total comercializado na capital potiguar. As principais empresas distribuidoras ata-cadistas, que fazem parte da Ceasa-RN, e tem uma considerável participação no fornecimento de frutas, legumes e verduras para hipermercados, supermercados, atacadistas e feiras livres são: Paraíso da Banana, Casa do Milho e GJ de Medeiros.

Os produtos que não são fornecidos pelas empresas da Ceasa-RN são fornecidos por outras firmas de produção agrícola. Entre elas destaca-se a firma Frutas Doce Mel, que está localizada no município de Mamanguape-PB, com filiais em Maracanaú-CE, Salvador-BA, Baraúna-RN, e Recife-PE, sendo especializada na produção de mamão, abacaxi, melão, melancia e uva. Esses pro-dutos vendidos nos hipermercados e supermercados e atacadistas de Natal são quase exclusivamente fornecidos pela Doce Mel.

Outra importante empresa é a Hortaliças Sempre Verde, que fornece para o Extra e Hiper Bompreço, além dos supermercados de Natal, Nordestão, Supercop, Super Show, e o Boa Esperança da cidade de Parnamirim-RN. Esta empresa tem sede no município de Alagoa Nova-PB e seus principais produtos fornecidos são: agrião, alecrim, alface roxa, almeirão, bredo, brócolis, cebolinha, chicória, coentro, couve folha, escarola, espinafre, hortelã, mostarda, nabo, rabanete, salsa, acelga, abobrinha, berinjela, couve-flor, chuchu, jiló, limão, maxixe, pepino, pimentão, quiabo, repolho, vagem, rúcula, capim santo e salsão. Nota-se que, enquanto as folhas e verduras que são vendidas nas feiras livres são produzidas principalmente no município de Natal e em algumas outras áreas da Região Metropolitana, as folhas e verduras fornecidas para os hipermercados e supermercados são produzidas no município de Alagoa Nova, na Paraíba, fazendo com que haja uma maior complexidade da divisão do trabalho.

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Nesse contexto dos fluxos de mercadorias que se desti-nam a Ceasa-RN, as interações espaciais dessa infraestrutura de abastecimento são fortemente locais (estaduais), sendo a segunda escala o Nordeste (regional; extralocal). Os fluxos são, em sua maioria, oriundos dos circuitos espaciais de produção agrícola do Rio Grande do Norte, com destaque para os municípios de Açu, Baraúna e Touros. Em termos regionais, a maior parte dos fluxos origina-se dos estados nordestinos, Pernambuco e Paraíba. Esses fluxos se modificam em termos temporais devido à velocidade e frequência; e devido à sazonalidade dos produtos hortifrutigranjeiros.

Em relação aos fluxos de mercadorias que se originam da Ceasa-RN, as interações espaciais são fortemente locais (pre-dominantemente pra cidade de Natal) ou regionais (quando se considera a Região Metropolitana). Esses fluxos que se originam da central de abastecimento do RN são destinados principalmente para os elementos dos circuitos da economia urbana, sendo mais importante no abastecimento alimentar do circuito inferior – as feiras livres –, seguido do abastecimento hortifrutigranjeiro do circuito superior – supermercados, hipermercados, atacadistas –, variando também segundo a dimensão temporal dos fluxos de mercadorias (velocidade, frequência, sazonalidade). Essas mercadorias têm diferentes consumidores finais, de acordo com o elemento geográfico – hipermercados, supermercados, atacadistas, feiras livres e mercados públicos – que faz a troca para o consumo.

A Ceasa-RN, assim como as demais centrais de abaste-cimento, não só se relaciona com os elementos dos circuitos da economia urbana, como também é constituída pelo circuito superior, incluindo sua porção marginal, e pelo circuito inferior. Tal evento caracteriza esse importante elemento do abastecimento alimentar, de acordo com Queiroz (2014) e Queiroz (2015), como um elemento misto dos circuitos da economia urbana.

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A Ceasa-RN como elemento misto dos circuitos da economia urbana

Santos (1979) afirma que o circuito superior da economia urbana é formado por atividades “puras”, “impuras” e “mis-tas”. As indústrias modernas, as construtoras e os comércios e serviços modernos compõem o circuito superior “puro”, pois estão relacionadas diretamente com a cidade. As atividades de indústria, de construção civil e de comércio e serviços voltados exclusivamente para exportação, formam o circuito superior “impuro”. Por fim, o circuito superior “misto” é formado pelos intermediários (atacadistas, transportadoras, distribuidoras e operadores logísticos), pois esses elementos se relacionam tanto com o circuito superior quanto com o circuito inferior.

Ainda sobre as divisões do circuito superior, existe o cir-cuito superior marginal. Estas são caracterizadas por atividades menos modernas organizacionalmente e tecnologicamente, que pode ser emergente, quando estão em processo de modernização, e pode ser residual, quando não conseguem modernizar-se de acordo com o avanço tecnológico imposto pelo período, assim tendem sempre a sair do circuito superior. O circuito superior em sua totalidade (“puro”, “impuro”, “misto” e “marginal”) utiliza a cidade como abrigo e, principalmente, como recurso.

De acordo com Santos (1979), dois fatores fazem com que se desenvolvam as atividades de intermediários, a saber: a exigência que o circuito superior tem para aumentar e acelerar a produtividade, a distribuição e o consumo dos seus produtos, tornando os intermediários facilitadores dessa circulação; e a dependência do circuito inferior desses intermediários como base condicional da existência, pois quanto mais pobre o indivíduo mais ele depende dos intermediários para se abastecer, como é o caso das feiras livres, dos feirantes em Natal (AZEVEDO & QUEIROZ, 2013; QUEIROZ & AZEVEDO, 2012; QUEIROZ, 2011).

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Além disso, os intermediários, muitas vezes, tem uma capacidade de armazenamento maior que a dos agentes desse circuito não moderno. Santos (1979) mostra, também, que a modernização provoca uma mudança no papel dos intermediários. Inicialmente, estes agentes eram importadores e exportadores, posteriormente, com a intensificação da urbanização também passam a coletar, transportar e distribuir produtos alimentícios, na medida em que os comerciantes, muitas vezes, não têm con-dições econômicas, nem condições de transporte para ter acesso direto ao produtor.

Como o referido autor coloca, as relações diretas entre o produtor rural e o consumidor urbano, em relação à produção e circulação agroalimentar, tendem a diminuir e até despare-cer com o processo de urbanização, aumentando o número de atravessadores. Essa tendência torna-se mais intensa devido à modernização dos transportes, no qual os produtores com pouco capital não têm acesso ou não podem comprar tais meios de circulação.

A Ceasa-RN, assim como todas as centrais de abasteci-mento do Brasil, classifica-se, de acordo com o proposto por Santos (1979), como um elemento do circuito superior “misto”, mais precisamente um intermediário, ou seja, aquele agente que estabelece uma relação de fluxos entre o circuito superior e o inferior e vice versa.

Um dos objetivos da criação das centrais de abastecimento no Brasil era a eliminação dos atravessadores entre a produção e o consumo, mas, ao contrário, as centrais fortaleceram o papel dos atravessadores, pois, os próprios entrepostos de abasteci-mento, por si só, já funcionam como uma instituição formada por intermediários, entre eles, os atravessadores.

No caso, essas instituições deveriam proporcionar a par-ticipação da agricultura não capitalizada, das cooperativas, das associações diretamente no comércio de hortifrutigranjeiros, e no contato direto com o consumidor. Mas, o modelo de modernização

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dos transportes e das comunicações e a ineficácia de políticas, historicamente retratada no país, que incentivassem o desen-volvimento da agricultura com baixo capital, fizeram com que esses produtores descapitalizados se distanciassem das centrais de abastecimento, como ocorreu no Rio Grande do Norte. Tal fato evidencia-se na Central de Abastecimento da Agricultura Familiar, anexo à Ceasa-RN, que foi criada em 2010 e até hoje não entrou em funcionamento.

Nesse sentido, as centrais de abastecimento são institui-ções formadas por um conjunto de firmas e funcionam como intermediários nos circuitos da economia urbana. Assim, os intermediários agem como um elo entre a demanda e a oferta (SANTOS, 1979), logo, esses agentes tornam-se estratégicos no abastecimento agroalimentar, no controle dos preços das mercadorias, assim como, na especulação.

Assim, essas grandes firmas, que possuem capital e rela-tivo acesso ao transporte, conseguem comprar diretamente do produtor. Ao contrário, os agentes do circuito inferior, como os feirantes, não possuem o capital necessário, nem a técnica de transporte, o que provoca uma maior dependência desse grupo social para com os intermediários, em especial os atravessadores e os fretistas. A Figura 01 mostra o esquema de relações entre os elementos dos circuitos da economia urbana, criado por Santos (1979).

O esquema da Figura 01 mostra que os intermediários (transportadores, atacadistas) estão no topo do circuito inferior e na base do circuito superior. Entre si, os transportadores e atacadistas possuem uma relação de complementaridade mútua ou recíproca. Essa relação recíproca ocorre entre esses intermediários e o comércio não moderno (feiras livres, mercadinhos, quitandas, camelôs, mercados públicos etc.), no entanto, em alguns casos, os transportadores têm uma relação de complementaridade com o comércio não moderno, e os atacadistas, uma relação hierárquica com esse comércio dito “tradicional”.

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Figura 01 ‒ As relações entre os elementos dos circuitos da economia urbana

FONTE: Santos (1979).

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Figura 02 ‒ As centrais de abastecimento e os elementos dos circuitos da economia urbana

FONTE: elaborada pelo autor, com base em Santos (1979) e nos trabalhos de campo.

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Os atacadistas mantém uma relação de reciprocidade com a indústria não moderna (facções, artesanatos, manufaturas etc.), e as transportadoras mantém esse tipo de relação com as atividades regionais. Por fim, as transportadoras recebem uma relação de complementaridade do circuito moderno extrarregional e dos bancos; enquanto os atacadistas recebem uma relação hierárquica desses mesmos elementos.

A tese de Xavier (2009) traz uma importante contribuição sobre os circuitos da economia urbana, focando a importância do intermediário, em especial os atacadistas. O autor mostra o crescimento quantitativo e as diferenciações qualitativas desses agentes nos últimos 20 anos.

Para Xavier (2009), os atacadistas não podem ser mais vis-tos apenas como intermediários entre o produtor e o consumidor, pois são também prestadores de serviços, agregadores de valor, contribuindo para a racionalidade não só do circuito superior, como também para a eficácia do circuito inferior, viabilizando a expansão do consumo.

A cooperação estabelecida entre as empresas atacadistas distribuidoras e o circuito inferior envolve os serviços logísti-cos, a oferta de crédito, a profissionalização do varejo, agindo também nos pontos de venda, enquanto em relação ao circuito superior a cooperação é feita com as indústrias e agronegócios, na logística de distribuição, e no levantamento de dados sobre o comportamento do consumidor relacionado aos produtos comercializados.

Xavier (2009) mostra que há duas formas de se classifi-car as atividades atacadistas: 1) segundo suas operações; e 2) segundo o nível de capital, tecnologia e alcance territorial. A partir dessas possibilidades de classificação, distinguir-se-ão as centrais de abastecimento das demais firmas atacadistas, por exemplo, do Makro, do Atacadão, do Sam’s Club, e do Super Fácil.

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Duas ressalvas devem ser feitas. Primeira ressalva, todo distribuidor é atacadista, mas nem todo atacadista é distribuidor. Pois, o distribuidor se constitui em uma firma que comercializa no atacado produtos de uma determinada empresa ou conjunto de empresas, de forma fixa e contratual. Assim, esses supermer-cados são atacadistas, na medida em que não são distribuidores específicos de uma determinada e exclusiva marca, esses agentes distribuem no atacado as mercadorias de variadas empresas, sem contrato fixo. Segunda ressalva, a Ceasa-RN não é um ata-cadista, e sim, uma infraestrutura, uma instituição formada por diversos atacadistas, sendo estes, em sua maioria, de produtos hortifrutigranjeiros.

Neste caso, as centrais de abastecimento no Brasil, e em especial a Ceasa-RN, podem ser classificadas de acordo com suas operações enquanto um conjunto de comércios atacadistas de alimentos, especificamente de hortifrutigranjeiros. Nesse sentido, a central de abastecimento do RN, e de outros estados federados brasileiros, é caracterizada também enquanto uma infraestrutura formada pela simultaneidade de empresas: de atendimento no balcão, como no varejo tradicional, sem o acesso direto do cliente ao produto; de autosserviço, com produtos em gôndolas com acesso direto do cliente, para o consumo no varejo; e de entrega, atendendo a diversos estabelecimentos do varejo e também do atacado.

O entreposto de abastecimento do RN também pode ser classificado enquanto uma empresa generalista de entrega e de balcão, ao mesmo tempo distribuindo hortifrutigranjeiros diversificados para empresas varejistas diferentes, e comercia-lizando para os consumidores que visitam os atacadistas dessa infraestrutura. Assim, as centrais se diferenciam dos supermer-cados atacadistas na medida em que estes últimos se classificam como comércio atacadista de produtos em geral, para além dos hortifrútis, constituindo-se em firmas do tipo Cash & Carry, ou seja, atacado de autosserviço.

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Em relação ao capital, tecnologia e alcance espacial, os atacadistas podem ser classificados, segundo Xavier (2009) em: macrocircuito, mesocircuito e microcircuito. O macrocircuito de atacadistas se caracteriza por empresas que tem um alcance nacional ou em mais de uma região brasileira, adotando sistemas informatizados em várias operações, diversificando suas ativida-des para o setor de serviços e, às vezes, criam marcas próprias. O mesocircuito de atacadistas tem as mesmas características do macrocircuito, mas com um grau menor de capital e tecnologia, tendo seu alcance espacial restrito a alguns estados federados nacionais ou a alguns municípios.

As empresas do microcircuito atacadista são empresas menos modernas e pouco capitalizadas, que não chegam a formar redes como as empresas do macro e mesocircuitos, e têm o alcance de suas ações apenas na dimensão local de um município. Mas, estas empresas não podem ser confundidas como pertencentes ao circuito inferior da economia urbana, pois seu volume de negócios no circuito inferior e a busca constante por pequenas vantagens tecnológicas o caracterizam como uma empresa do circuito superior.

Se considerarmos as centrais de abastecimento em sua totalidade, o sistema das Ceasas como um todo, verifica-se esses entrepostos pertencentes ao macrocircuito de atacadistas, com alcance nacional, e até internacional em relação há alguns pro-dutos, com sistema informatizado e com diferentes serviços prestados no atacado e no varejo.

No entanto, considerando a particularidade de cada central de abastecimento, essa classificação é mutável. Por exemplo, a Ceasa-RN tem uma abrangência fortemente local, em menor medida regional e até nacional na obtenção de alguns hortifrútis, ou seja, pertencente ao macrocircuito no seu próprio abasteci-mento. Porém, em relação ao papel de atacadista distribuidor, a Ceasa-RN tem seu papel praticamente restrito ao estado do Rio Grande do Norte, e mais fortemente concentrado na Região

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Metropolitana de Natal, podendo ser classificado dentro de um microcircuito.

Mas, ao verificar que essa central tem um relativo avanço tecnológico e um capital elevado em algumas empresas que a com-põem, esta já poderia ser considerada de um mesocircuito. Nesse contexto, considerar-se-á a Ceasa-RN como uma infraestrutura que faz parte de um sistema maior, interconectado através dos fluxos de informação com as demais centrais do Brasil, formando uma rede de centrais de abastecimento.

Nessa perspectiva geográfica, as centrais de abastecimento, incluindo assim a Ceasa-RN, podem ser caracterizadas como um agente atacadista do macrocircuito. Os supermercados atacadistas também são, em sua maioria, pelo menos todos os existentes em Natal, pertencentes ao macrocircuito.

Observa-se que essas classificações são limitadas. São importantes na medida em que consideram as funções e as ope-rações realizadas, no entanto, negligenciam a dimensão espacial desses agentes. A classificação proposta por Xavier (2009) traz uma importante contribuição para enfatizar a dimensão geográ-fica, ao lado do capital e da técnica, no entanto, ainda demonstra limitações, principalmente quando se leva em consideração as centrais de abastecimento.

Assim, há uma necessidade de se acrescentar uma tipologia específica para as centrais, que se constituem em instituições formadas por firmas que possuem diferentes operações, diversos níveis de capital e tecnologia utilizada, e com diferentes escalas de atuação. Essa é o primeiro fator que caracteriza a Ceasa-RN e as centrais de abastecimento enquanto elemento misto dos circuitos da economia urbana. A Ceasa-RN (Foto 01) também não segue aquelas características dos circuitos da economia urbana elencadas por Santos (1979), sendo o segundo fator que evidencia esses elementos como um elemento misto dos circuitos da economia urbana.

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Em termos de tecnologia e capital, destaca-se a empresa GJ de Medeiros, que utiliza alta tecnologia como uma máquina que separa as maçãs de alta e baixa qualidade, entre outros hortifrútis comercializados por esta empresa. Observou-se que a GJ de Medeiro, o Paraíso das Bananas e a Casa do Milho são as principais empresas que fornecem para os hipermercados e supermercados de Natal, devido principalmente à capacidade tecnológica de seleção e armazenamento de produtos (Foto 02), e de atender o padrão de qualidade exigido pelas firmas do circuito superior.

Ao mesmo tempo em que a Ceasa-RN, assim como as demais centrais de abastecimento, são constituídas por empresas que utilizam alto nível de tecnologia, organização administrativa e capital, há também aqueles pequenos produtores e atravessadores, os permissionários de pessoa física, que utilizam baixo grau de tecnologia e capital.

A partir das observações em campo, criou-se o Quadro 01. Nesse sentido, observa-se que a Ceasa-RN é formada por empresas de grande porte (permissionários de pessoas jurídica) que se caracterizam pelo uso de tecnologia moderna emergente, capital intensivo, trabalho reduzido, organização em redes, emprego assalariado predominante, grande quantidade de estoques, pre-ços fixos, cartão de crédito, margem de lucro elevada, relações impessoais com a clientela, custos fixos importantes, publicidade utilizada e rara reutilização de bens.

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Quadro 01 ‒ Características das centrais de abastecimento alimentar, enquanto elementos mistos dos circuitos da economia urbana

CA

RA

CT

ERÍS

TIC

AS

ELEMENTO MISTO DOS CIRCUITOS DA ECONOMIA URBANA (CENTRAL DE ABASTECIMENTO - CEASA)EMPRESAS

DE GRANDE PORTE

(PERMIS-SIONÁRIOS DE PESSOA JURÍDICA)

EMPRESAS DE MÉDIO E

PEQUENO PORTE (PERMISSIONÁ-RIOS DE PESSOA

JURÍDICA)

FEIRANTES PRODUTORES E FEIRANTES

ATRAVESSADO-RES (PERMIS-

SIONÁRIOS DE PESSOA FÍSICA)

TecnologiaModerna

emergenteModerna residual Não moderna

Capital Volumoso Reduzido Reduzido

Trabalho Reduzido Volumoso Volumoso

Organização Em redes Simples Simples

Emprego assalariado Predominante Predominante Não predominante

EstoquesGrande

quantidadeMédia quantidade Pequena quantidade

Preços FixosSimultaneamente fixos e submetidos

à discussãoSubmetidos a discussão

CréditoUso de cartões

de crédito

Cartão de crédito e de mercadorias

como crédito

Somente uso de dinheiro em espécie

Margem de lucroElevado no

volume totalReduzido no volume total

Reduzido no volume total

Relações com a clientela

Impessoal Impessoal Pessoal

Custos fixos Importantes Importantes Não importantes

Publicidade Utilizada Não utilizada Não utilizada

Reutilização dos bens

Raro Ocasional Frequente

Overhead capital/ajuda gover-

namentalIndispensável Indispensável Indispensável

Dependência direta do exterior

Nula Nula Nula

FONTE: elaborada pelo autor, com base em Santos (1979) e nos trabalhos de campo.

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Da mesma forma, há na central de abastecimento do RN, predominantemente, empresas de médio e pequeno porte (permissionários de pessoas jurídica), que se diferenciam das empresas de grande porte nos seguintes aspectos: uso de tec-nóloga moderna residual, capital reduzido, trabalho volumoso, organização simples, estoques em média quantidade, preços ao mesmo tempo fixos e submetidos a discussão, uso de cartão de credito e das próprias mercadorias como crédito, margem de lucro reduzida, a publicidade não é utilizada, e ocasionalmente reutiliza os bens.

Por fim, a Ceasa-RN se caracteriza pela existência de feiran-tes produtores e feirantes atravessadores (ambos permissionários de pessoas física) que se caracterizam pelo uso de tecnologia não moderna, capital reduzido, trabalho volumoso, organização simples, emprego assalariado não predominante, estoques em pequena quantidade, preços submetidos à discussão, uso exclusivo do dinheiro em espécie, margem de lucro reduzida, relações pessoais com a clientela, custo fixos não são importantes, a publicidade não é utilizada, e a reutilização dos bens é frequente.

As empresas de todos os portes e todos os tipos de feirantes recebem ajuda governamental. Só o fato de constituírem a central de abastecimento do RN, já os torna aptos a receberem auxílio do Estado. Essa constituição da Ceasa-RN, e das centrais de abaste-cimento alimentar em geral, por elementos do circuito superior e por elementos do circuito inferior, é que dá a especificidade para esse agente do abastecimento alimentar enquanto um elemento misto dos circuitos da economia urbana.

Nesse contexto, os supermercados atacadistas se compor-tam como um elo entre o circuito superior e o circuito inferior da economia urbana (Xavier, 2009). A Ceasa-RN, e as demais centrais de abastecimento, também se caracterizam enquanto elo entre os circuitos, na medida em que mantém relações com as grandes empresas do agronegócio, com o produtor agrícola descapitalizado, com as transportadoras e operadoras logísticas,

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com caminhoneiros e fretistas (Foto 03), com hipermercados e supermercados e com feiras livres e mercados públicos.

Para além dessas relações externas, a central de abaste-cimento do RN se caracteriza pela coexistência dos circuitos da economia urbana no interior de sua infraestrutura através da presença de empresas atacadistas de hortifrutigranjeiros de grande, médio e pequeno porte (Foto 04), através dos produtores e atravessadores (Foto 05), como também de carregadores de mercadorias (Foto 06) que constituem essa instituição, fortale-cendo a sua característica de um elemento misto dos circuitos da economia urbana.

Assim, de acordo com a Figura 02, as centrais de abasteci-mento são racionalizadas pelas grandes empresas do agronegócio e pelas firmas que propagam a modernização e a globalização. E, ao mesmo tempo, essas instituições tendem a racionalizar as atividades do circuito inferior da economia urbana, em especial as feiras livres e os mercados públicos, estabelecendo-se um acontecer hierárquico. Os entrepostos de abastecimento funcio-nam também como essa interconexão entre o campo e a cidade, entre a agricultura (seja no campo ou na cidade) e as atividades comerciais urbanas.

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A Ceasa-RN na região metropolitana de Natal interações espaciais e circuitos da economia urbana

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Fotografia 01 ‒ Ceasa-RN, Av. Capitão Mor Gouveia, Bairro Lagoa Nova

FONTE: Observações de campo, setembro de 2013.

Fotografia 02 ‒ Fachada das empresas Paraíso das Bananas e G.J. de Medeiros

FONTE: Observações de campo, dezembro de 2013.

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Fotografia 03 ‒ Caminhões sendo descarregados na Ceasa-RN

FONTE: Observações de campo, dezembro de 2013.

Fotografia 04 ‒ Área das empresas – permissionários de pessoa jurídica – da Ceasa-RN

FONTE: Observações de campo, dezembro de 2013.

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A Ceasa-RN na região metropolitana de Natal interações espaciais e circuitos da economia urbana

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Fotografia 05 ‒ Área dos feirantes produtores ou atravessadores – permissionários de pessoa física – da Ceasa-RN

FONTE: Observações de campo, dezembro de 2013.

Fotografia 06 ‒ Exemplo de um carregador de mercadoria da Ceasa-RN

FONTE: Observações de campo, dezembro de 2013.

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Então, o produtor com baixo capital e os atravessadores complementam essas instituições, assim como, estas funcionam como um acontecer complementar para os hipermercados e super-mercados que dependem desse conjunto de firmas atacadistas para o abastecimento alimentar, estabelecendo-se o acontecer complementar. Por último, há uma relação de reciprocidade, um acontecer homólogo, entre as centrais de abastecimento com os atacadistas que as constituem e os transportadores (caminhonei-ros, empresas e operadores logísticos) que participam diretamente do (des)carregamento de produtos hortifrutigranjeiros, formando uma contiguidade funcional em uma área da cidade.

Por fim, pergunta-se se as centrais de abastecimento, a partir do que foi observado no entreposto do Rio Grande do Norte, podem ser caracterizadas como um elemento misto dos circuitos da economia urbana, pois, como há uma indissociabili-dade entre o circuito superior e o circuito inferior, praticamente as características de ambos os circuitos perpassam as firmas e as instituições nos países subdesenvolvidos, em especial no Brasil.

Porém, em cada firma ou elemento da economia urbana há uma predominância de características do circuito superior ou do circuito inferior, em termos de tecnologia, capital e organização. No caso das Ceasas, essa situação muda, pois, componentes dos dois circuitos a constituem não podendo ser caracterizada como pertencente a um ou outro circuito, na medida em que nas características de algumas empresas que delas fazem parte predomina o circuito superior e em outros casos predomina o circuito inferior. Fugindo dessa lógica classificatória, as centrais de abastecimento se constituem internamente com características de ambos os circuitos, sem um predomínio evidente de um ou de outro, mas, a coexistência de ambos em uma mesma instituição ou infraestrutura urbana.

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A Ceasa-RN na região metropolitana de Natal interações espaciais e circuitos da economia urbana

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Considerações finaisA Ceasa-RN agrega, assim, através das interações espaciais,

os fluxos de diversos circuitos espaciais de produção agrícolas – locais, ou regionais, ou nacionais –, com destaque para o próprio estado do Rio Grande do Norte – municípios de Açu, Baraúna e Touros – e para os estados nordestinos, Paraíba e Pernambuco. Além disso, a Ceasa-RN realiza interações espaciais com os cir-cuitos da economia urbana no município de Natal, seja com o circuito superior – hipermercados e supermercados e atacadistas – seja com o circuito inferior – feiras livres, mercados públicos, mercadinhos, mercearias e quitandas –, dinamizando o comércio de hortifrutigranjeiros.

Diferente de outros agentes intermediários, como os atacadistas e as transportadoras, que constituem um circuito superior “misto”, a Ceasa-RN não só mantém uma relação com ambos os circuitos, mas é constituída em seus interstícios pelos dois circuitos da economia urbana. Isto é, são formadas simul-taneamente pelo circuito superior, no caso de grandes e médias empresas que a compõe, ou pelo circuito inferior, por exemplo, os feirantes permissionários. Essa constituição simultânea do circuito superior e do circuito inferior faz com que essa central de abastecimento seja classificada, não como um elemento do circuito superior “misto”, mas, como um elemento misto dos circuitos da economia urbana.

A Ceasa-RN participa da dinâmica do comércio de horti-frutigranjeiros na Região Metropolitana de Natal, juntamente com supermercados, hipermercados, atacadistas, feiras livres, mercados públicos, quitandas etc.. Pensando a totalidade do estado do Rio Grande do Norte, ficam algumas lacunas: qual a dinâmica do abastecimento alimentar em outros grandes cen-tros urbanos como Mossoró e Caicó, que não são constituídos pelos mesmos elementos de Natal? Essas, entre outras questões, poderão ser respondidas em trabalhos posteriores.

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ReferênciasAZEVEDO, Francisco Fransualdo de; QUEIROZ, Thiago Augusto Nogueira de. As feiras livres e suas (contra)racionalidades: periodi-zação e tendências a partir de Natal-RN-Brasil. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, Vol. XVIII, n. 1009, 15 de enero de 2013.CORRÊA, Roberto Lobato. Interações espaciais. CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.QUEIROZ, Thiago Augusto Nogueira de. As feiras livres de Natal-RN: um estudo a partir da teoria dos circuitos da economia urbana. Monografia de Graduação (Geografia). Natal: UFRN, 2011.QUEIROZ, Thiago Augusto Nogueira de. A Ceasa-RN e os circuitos da economia urbana: a circulação de hortifrutigranjeiros em Natal-RN. Dissertação de Mestrado (Geografia). Natal: UFRN, 2014.QUEIROZ, Thiago Augusto Nogueira de. As centrais de abasteci-mento alimentar: agentes mistos dos circuitos da economia urbana. Sociedade e território, Natal, v. 27, n. 1, p. 157-177, jan./jun. 2015.QUEIROZ, Thiago Augusto Nogueira de; AZEVEDO, Francisco Fransualdo de. Circuitos da economia urbana: arranjos espaciais e dinâmica das feiras livres em Natal-RN. Sociedade e território, Natal, v. 24, n. 1, p.115-133, jan./jun. 2012.SANTOS, Milton. O espaço dividido. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.SANTOS, Milton. Circuitos espaciais da produção: um comentário. SOUZA, Maria Adélia de; SANTO, Milton (Orgs.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986.SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.SILVEIRA, María Laura. Globalización y circuitos de la economía urbana en ciudades brasileñas. Cuadernos del Cendes, Caracas, v. 21, n. 57, p. 1-21, set./dic. 2004.XAVIER, Marcos Antonio de Moraes. Os elos entre os circuitos da economia urbana brasileira no atual período: os atacadistas distribuidores e seu papel intermediador. Tese de Doutorado (Geografia). Campinas: Unicamp, 2009.

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Do ócio ao negócio e meio de sobrevivência:

o circuito inferior da economia na Praia de Ponta Negra

Thiago Belo de Medeiros

Francisco Fransualdo de Azevedo

Introdução

Com uma extensão de litoral de aproximadamente oito mil quilô-metros, o Brasil se volta para o cenário do turismo internacional por possuir belas paisagens naturais, constituídas, sobretudo, de praias, falésias, montanhas, vegetação e dunas exuberantes. Com esse patrimônio natural, o país atrai, além dos turistas estrangeiros, milhões de brasileiros, que frequentam sua costa o ano inteiro e aproveitam o clima tropical que predomina no litoral, ajudando a desenvolver o fenômeno turístico, atividade econômica e prática social.

Nesse contexto, além da estruturação do circuito superior no litoral brasileiro por meio do turismo, há também a geração de uma nova forma de manifestação do circuito inferior da economia que ocorre através de um número expressivo de comerciantes, seja em estabelecimentos fixos ou como ambulantes. Esses agentes, atentos à oportunidade de trabalho, vendem, desde variados

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Do ócio ao negócio e meio de sobrevivência

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tipos de alimentos e bebidas até souvenires para os turistas e frequentadores das praias.

Nesse sentido, observamos que as praias brasileiras são usadas não somente como um dos principais lugares de lazer e usufruto do tempo livre, mas também como um lugar de trabalho para muitos agentes. Contudo, mesmo com a notória importância da atividade para a população local, é incipiente a existência de trabalhos/pesquisas que versem sobre os trabalhadores de praia, mostrando sua forma de organização, a articulação com a economia do turismo e a precariedade do trabalho que os cerca.

Dessa forma, no trabalho em tela, tem-se por objetivo anali-sar o circuito inferior da economia urbana em Ponta Negra (Natal/RN), a partir da complementaridade e concorrência oriunda da inserção da atividade turística e a expansão dos trabalhadores de praia, destacando a importância desse circuito na dinâmica socioeconômica da cidade. Destacamos que esse trabalho traz resultados sumários da dissertação “O turismo de sol e praia e o circuito inferior da economia urbana: um estudo a partir da Praia de Ponta Negra – Natal/RN” e pautou-se, fundamentalmente, nos vendedores ambulantes que trabalham na referida praia.

Optamos por analisar o circuito inferior em uma praia urbana, pois a cidade de Natal e parte do litoral potiguar, a exemplo de outras cidades do Nordeste, nas últimas décadas vêm passando por intensas e aceleradas transformações com o advento da atividade turística. Nesse sentido, paralelo ao conjunto de vetores modernos que se inserem na cidade há também uma significativa parcela da população que sobrevive dos resultados do turismo: os trabalhadores de praia, dentre outras atividades do circuito inferior.

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Os circuitos da economia urbana: breve contextualização

O mundo, a partir do período técnico-científico-infor-macional, caracterizado pela profunda interação entre a ciência e a técnica, e sob a égide do mercado, tornou-se muito mais articulado e integrado por meio das grandes empresas. Assim, tais empresas produzem privadamente suas próprias normas, sendo, geralmente e sob muitos aspectos, alheio aos contextos que estão se inserindo (SANTOS, 2008a).

Cria-se, então, nas cidades uma “luta” pelo uso do território entre as grandes empresas - que assumem uma posição ativa – e as demais empresas, marcadamente “passivas”, subordinadas. Por esse motivo, empresas e instituições, dos mais variados níveis, convivem em constantes conflitos, cabendo aos estados e as esferas locais suprimir ou atenuar essa situação através de regulações.

Essa situação de “convivência necessária, mas de conflito inevitável” também se manifesta por meio dos usos da infraes-trutura local. Se por um lado observamos uma corporatização do território, na qual a destinação dos recursos públicos volta-se para atender às necessidades das grandes empresas; por outro constatamos que os agentes não hegemonicos respondem con-forme sua própria racionalidade (SANTOS, 2008a).

Essa racionalidade é expressa, no campo das atividades econômicas, pelo circuito inferior com todas as suas formas de organização: microempresas pouco capitalizadas, adequadas nas próprias residências ou em estabelecimentos comerciais, podendo ser familiar ou individual; vendedores ambulantes nas praias, próximos às empresas do circuito superior ou em centros populares; pequenas indústrias, como as alimentícias e de vestuário que atendem mercados locais e/ou regionais etc..

Podemos acrescentar ainda que essa racionalidade (ou contrarracionalidade na concepção hegemônica) se manifesta

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também pela apropriação das variáveis modernas (a técnica, a informação, o consumo, a publicidade e as finanças), próprias do circuito superior, para se fortalecerem e permanecerem no mercado cada vez mais competitivo. Aliado a isto, conta tam-bém com as relações de proximidade, uma forma de rede social, organizada para servir de resistência às forças hegemônicas contemporâneas (RIBEIRO, 2000).

Dessa forma, devemos analisar a cidade sempre como uma totalidade, seja qual for sua dimensão ou localização, pois permite a coexistência dos diferentes agentes e abrigam inúmeras redes, manifestações, fluxos etc.. De acordo com Arroyo (2008), para entendê-la é necessário também reconhecer que a mesma é uma totalidade dentro de duas outras totalidades, ou seja, o mundo e a formação socioespacial nacional que, por sua vez, expressam e se concretizam justamente na cidade. Portanto, são os processos que compõem a cidade, imbricados, que determinam seu dinamismo, variando conforme os eventos e os agentes envolvidos.

Sendo o resultado das modernizações que atingem os países subdesenvolvidos, os circuitos da economia urbana caracteri-zam a urbanização em constante transformação desses países e envolvem as atividades econômicas e seus respectivos agentes por meio dos diferentes níveis de tecnologia, organização, capital e trabalho.

Todavia, como os vetores modernos são seletivos, atingem apenas alguns pontos das cidades e privilegiam o uso de parcelas do território, deixando as demais, juntamente com sua população, à margem do processo. Por isso, o circuito inferior é o resultado indireto das modernizações que atingem os países. Corroborando com nossas análises, destacamos que:

Ao mesmo tempo, os dois circuitos da economia urbana servem para entender a cidade como totalidade, já que eles se relacio-nam entre si por meio da cooperação, da concorrência e/ou da subordinação. Os circuitos superior e inferior interagem e participam do movimento que se desenvolve dentro da mesma

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cidade: trata-se de um único meio construído, embora desigual e fragmentado, e de um único mercado, embora fortemente segmentado (ARROYO 2008, s.p).

Por esse motivo, mesmo que as grandes empresas capitalis-tas busquem homogeneizar o mundo conforme suas lógicas para melhorarem suas atuações, podemos observar que as cidades, sobretudo, as metrópoles, se configuram a partir de inúmeras combinações materiais e sociais. Logo, embora os agentes não hegemônicos não possuam de forma absoluta o poder, através de sua criatividade e em número, os mesmos conseguem atuar também na configuração do território, usando-o como abrigo. Tais agentes, tendo o território como abrigo, buscam incessantemente uma adaptação do meio geográfico ao qual estão inseridos, criando e recriando estratégias para garantirem suas sobrevivências nos lugares.

Pelo exposto até o momento, ressaltamos que nossas análises estão pautadas no conceito de espaço geográfico1 a partir do território usado, visto que este está voltado para a operacionalização daquele conceito. Desta forma, conforme Santos (2005), o território usado deve se compreendido como sinônimo de espaço geográfico, espaço banal, ou seja, espaço de todos os agentes, de todas as instâncias da sociedade.

Destacamos, nesse ínterim, que o entendimento de espaço geográfico como sinônimo de espaço banal, inspirado em François Perroux, nos impõe que levemos em consideração todos os elemen-tos e a perceber a inter-relação entre os fenômenos (SANTOS et al., 2000). Assim, o espaço geográfico, empiricizado pelo território usado, é o resultado de processos históricos acrescido das bases materiais e sociais que as novas ações impõem. Ampliando a compreensão, temos que a:

1 O espaço geográfico é formado, conforme Santos (2008a), por “um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”.

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[...] perspectiva do território usado conduz à ideia de espaço banal, o espaço de todos, todo o espaço. Trata-se do espaço de todos os homens, não importa suas diferenças; o espaço de todas as instituições, não importa a sua força; o espaço de todas as empresas, não importa o seu poder. Esse é o espaço de todas as dimensões do acontecer, de todas as determinações da totalidade social. É uma visão que incorpora o movimento do todo, permitindo enfrentar corretamente a tarefa de análise. Com as noções de território usado e de espaço banal, saltam aos olhos os temas que o real nos impõe como objeto de pesquisa e de intervenção (SANTOS et al. 2000, p. 104).

Desta forma, concordamos com Montenegro (2006) ao considerar que a teoria dos circuitos da economia urbana permite avançar na compreensão do espaço geográfico enquanto território usado, nos quais os agentes de cada circuito possui força diferente. Assim, enquanto os agentes do circuito inferior usam o território como abrigo, os agentes do circuito superior usam-no como recurso para realização de seus interesses corporativos. Mesmo cientes de que cada ação, hegemônica ou hegemonizada, se dá conforme o seu tempo, as diversas ações se dão conjuntamente, na qual o espaço reúne a todas, além de expressar as múltiplas e desiguais combinações de uso do território e do tempo.

Ao adotarmos a teoria dos circuitos da economia urbana como recorte para nossas reflexões, consideramos a cidade como totalidade em constante movimento e que abriga duas diferen-tes áreas de mercado diferenciadas, porém complementares. Destarte, a cidade só pode ser compreendida a partir da coexis-tência das divisões territoriais do trabalho (SANTOS 2008b; MONTENEGRO, 2006).

Portanto, os circuitos da economia urbana podem ser vistos como subsistemas do sistema urbano, nos quais todas as formas de trabalho estão associadas. Ambos possuem a mesma origem, embora compreendam resultados diretos e indiretos da modernização. Logo, os circuitos não são sistemas fechados em si mesmo, pois estabelecem relações de complementaridade e de concorrência.

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Todavia, a complementaridade dos circuitos não suprime a concorrência e a hierarquia, na qual o circuito inferior é, na maioria dos casos2, dependente do circuito superior ao passo que necessita dos serviços prestados pelos fornecedores de crédito, por atacadistas e, por vezes, de transportadores (SANTOS, 2008b).

Nessa perspectiva, os circuitos da economia urbana nos ajuda a analisar a divisão do trabalho a partir da coexistência dos diferentes tipos de trabalho, pois estamos constantemente presenciando divisões do trabalho que se sucedem e coexistem a cada período. Contudo, é importante ressaltar que mesmo que se trabalhe com uma divisão do trabalho oriunda do passado, a ação é sempre presente - carregada de rugosidades3 - ou seja, de heranças de formas espaciais pretéritas produzidas em momentos distintos do modo de produção (SANTOS, 1978; 2008b).

Diante do exposto, é possível perceber que a economia urbana é composta por um circuito superior, também articu-lado com o circuito superior marginal, embora este último não constitua um terceiro circuito, e um circuito inferior, apesar de ambos não poderem ser vistos de forma dissociada.

O circuito superior é o resultado direto das modernizações que atingem o território, sendo composto pelos bancos, indústrias e comércio de exportação, indústria urbana moderna, comércio moderno, inclusive atacadista, serviços modernos e transportado-res (SANTOS, 2008b). Como nos informa Silveira (2007), devido à relevância da informação e da finança no atual período, deve-se

2 As atividades nunca são totalmente autônomas, pois dependem da aquisição de algum insumo ou mesmo ferramenta fornecida por empresas do circuito superior e, principalmente, porque a existência e a expansão do circuito inferior se explicam pelo déficit de empregos e serviços não atendidos pelo circuito mais moderno da economia (ARROYO, 2008).

3 Como assevera Santos (1978, p. 138), “as rugosidades nos oferecem, mesmo sem tradução imediata, restos de uma divisão de trabalho internacional, manifestada localmente por combinações particulares do capital, das técnicas e do trabalho utilizados”.

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acrescentar a esse quadro as corporações globais e multissetoriais, empresas de produção e serviço de alta tecnologia, grandes firmas do entertainment, empresas de consultoria e firmas produtoras de informação, além do sistema financeiro, como, por exemplo, os fundos de investimento, fundos de pensão etc.

Já o circuito inferior4 constitui-se essencialmente por formas de fabricação de “capital não intensivo”, serviços não modernos fornecidos no varejo, comércio não moderno e de pequena dimensão, inclusive “ambulante” e é moldado pelos tempos e formas do lugar. Dito de outra forma, ele abarca a fabricação e comércio em pequenas quantidades, diversas for-mas de artesanato, prestação de “serviços banais”, reparação e consertos, alguns transportes e, principalmente, utiliza-se de capitais reduzidos (SANTOS, 2008b; SILVEIRA, 2007). Segundo Xavier (2009, p. 9-10),

A origem destes dois circuitos estaria na forma como, a partir do período tecnológico que tem início com a Revolução Técnico-científica após a Segunda Guerra Mundial, as sucessivas modernizações passaram a chegar aos países subdesenvolvidos se sobrepondo aos sistemas pré-existentes, levados a uma adequação frente a novas situações. Não apenas a produção, mas também a distribuição e o consumo se transformaram, gerando novas combinações e coexistências entre o novo e o velho. Estas modernizações têm chegado aos países periféricos de forma seletiva, de tal forma que a produção moderna se concentra em certos pontos do território enquanto o consumo, respondendo às forças de dispersão, tende, de um lado, a se expandir territorialmente, mas, de outro, a também ser freado em função dos diferentes níveis de renda.

Temos ainda o circuito superior marginal, que, segundo Santos (2008b, p.103) é o “resultado da sobrevivência de formas menos modernas de organização ou resposta a uma demanda incapaz de suscitar atividades totalmente modernas”. Ainda

4 Além disso, constitui-se através de uma gama de condições de emprego, podendo ser: pequenas empresas, acordos pessoais entre funcionário e patrão, trabalho autônomo ou trabalho familiar.

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conforme o mesmo autor, essa demanda pode vir tanto de ativi-dades modernas, quanto do circuito inferior. Portanto, o circuito superior marginal possui, ao mesmo tempo, um caráter residual e um caráter emergente.

Atuação e estrutura do circuito inferior na Praia de Ponta Negra: o uso do território como abrigo

Em Natal, a atividade turística tem crescido de forma expressiva a partir da década de 1980, ganhando destaque na política geoeconômica e ditando sua configuração territorial, sendo consequência de políticas públicas que visavam desenvolver o turismo de sol e mar no estado. Dessa forma, acreditando na sua capacidade de dinamizar a economia e financiar o processo crescimento a partir da criação de novos postos de trabalho e na arrecadação de tributos (MARANHÃO; AZEVEDO, 2010), o período de consolidação do turismo em Natal pode ser carac-terizado pela atuação do Estado na preparação do território (infraestrutura, incentivos e financiamentos) para as empresas do circuito superior.

O Mega Projeto Parque das Dunas/ Via Costeira (meados da década de 1980) foi o marco efetivo do fomento da atividade turística no Rio Grande do Norte e, por conseguinte, em Natal. Isto pode ser justificado pelo fato dele ter sido o projeto estru-turante da atividade, visto que nenhuma das ações anteriores o promoveu eficazmente. Contudo, a inserção da atividade turística e do circuito superior a ela atrelada se deu de forma concentrada em Natal, vinculada aos investimentos e equipamentos públicos destinados ao seu fomento.

Ademais, como estratégia do governo federal para desen-volver a região Nordeste, os investimentos no turismo foram importantes para a dinamização das economias das cidades, sobretudo, as litorâneas. Foi nesse contexto que na década de 1990 surgiu o PRODETUR, o qual financiou a infraestrutura e

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dotou várias cidades de novos objetos técnicos para viabilizar a recepção dos turistas. Podemos afirmar então que o estado do RN está inserido num cenário em que:

O aprofundamento das políticas neoliberais nos países periféri-cos confere maior viabilidade para as estratégias de acumulação de empresas transnacionais que, estimuladas por incentivos fiscais e territoriais múltiplos, ampliam expressivamente os seus lucros nestes países. O território e os recursos de que dispõe são utilizados por tais atores que, de modo corporativo, orien-tam os investimentos públicos em infraestruturas (sobretudo as de transporte e informação), potencializando assim suas estratégias territoriais de acumulação. O próprio Estado atua como cooperador para que as modernizações sejam seletivas e o território seja apropriado de forma corporativa, isto é, apenas por alguns. Assim, a ideia de “ausência do Estado” ou de “Estado mínimo” torna-se uma falácia, já que tal instituição se faz presente e é fundamental à viabilização do território como recurso aos atores hegemônicos (NASCIMENTO JÚNIOR, 2011, p. 54).

A forma de implantação do turismo no Brasil pautando-se no viés economicista acarreta um território descontinuo reticular, portanto, seletivo espacialmente, com uma organização complexa e de caráter mercantil. Tal organização integra o turismo local ao contexto do mercado global e expressa como essa atividade é conduzida pelos agentes hegemônicos e suas lógicas organiza-cionais (RODRIGUES, 2006).

Todavia, paralelo a expansão da atividade turística e do circuito superior da economia a esta vinculado, há uma tendência de resistências pelos agentes não hegemônicos, assim como contrarracionalidades, mostrando que embora o uso turístico do território nos remeta a uma paisagem organizacional, existe também, no lugar, o uso cotidiano dos moradores.

Assim, a cidade abriga as atividades econômicas dos agentes hegemônicos e não hegemônicos, ao passo que não é apenas o lugar dos eventos modernos, mas também abriga atividades pretéritas e/ou “consideradas residuais, informais ou atrasadas” (SILVEIRA,

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2007, p. 3). Logo, há também a expansão e diversificação, ao mesmo tempo, do número de pessoas e de atividades envolvidas no circuito inferior. Assim, como afirma Arroyo, 2008:

O processo de crescimento econômico e modernização tecno-lógica, seletivo e concentrador, não consegue atender de igual forma todos os habitantes da cidade grande, que fazem parte do mesmo mercado, porém com os mais diferentes níveis de capital, trabalho, organização e tecnologia. [...] Essa segmentação do mercado autoriza a convivência de uma ampla variedade de formas de realização econômica, que trabalham segundo diversas taxas de lucro, produtividade, rendimentos e salários (ARROYO, 2008).

No Bairro de Ponta Negra, em Natal, observamos esse movimento mais nitidamente, ao passo que paralelo à inser-ção de novos agentes hegemônicos voltados para o turismo, existe também a diversificação do circuito inferior, revelando a superposição de divisões do trabalho no lugar. Então, para se compreender a dinâmica econômica da cidade, dentre outros fatores, precisamos perceber a relação direta existente entre atrativo das praias, turismo e circuito inferior - embora esse último, na visão da maioria, seja “invisível5”.

Atentar para essa realidade é uma forma de mostrar que os usos que os agentes hegemônicos fazem do território vem transformando de forma rápida e intensa a cidade de Natal, contudo, há uma parcela da população que não se beneficia dela, ou se beneficia precariamente. Dessa maneira, para sobreviver, essa última se insere no circuito inferior da economia urbana nas praias, no qual há a possibilidade de emprego, mesmo que precário, não regulamentado e com longas jornadas de trabalho e sob condições insalubres.

A praia expressa a co-presença das esferas do trabalho e do lazer, ao passo que, enquanto muitos se divertem, outros tantos estão trabalhando. Há, então, no território usado pelo

5 Termo utilizado por Arroyo (2008) ao relacionar o circuito inferior à economia com pouca visibilidade dos agentes não hegemônicos.

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turismo toda uma infraestrutura urbana acrescida de agentes hegemônicos e não hegemônicos representados desde os pro-dutores imobiliários, agências de viagem, hoteleiros, etc. até artesãos, vendedores de sorvete, de diversos alimentos e bebidas, acessórios, entre outros ofícios.

Desta maneira, além das atividades lúdicas e esportivas, as praias comportam atividades comerciais e de serviços que carregam consigo muitas questões como: exploração da mão de obra, higiene na produção dos alimentos, qualidade e procedência questionável de certas mercadorias, saúde do trabalhador etc. Atrelado a isso, a dinâmica das praias exige também atenção das administrações municipais, garantindo segurança, limpeza e ordenamento no uso dessa parcela do território.

Consonante ao apresentado e ciente de que os principais motivos que levam que esses trabalhadores estejam na praia referem-se, dentre outros, a falta de qualificação profissional, ao desemprego e aos precários empregos oferecidos pelas empresas relacionadas ao turismo, desvendar as dinâmicas que definem e perpassam o circuito inferior na Praia de Ponta Negra torna-se um desafio o qual examinaremos adiante.

Levando em consideração que o circuito inferior e a pobreza são, de certo modo, sinônimos (Santos, 2008b), é nesse circuito que a maior parte da população pobre encontra um abrigo, uma forma de se sustentar, pois exige menor volume de investimentos e não demanda, necessariamente, mão de obra qualificada. Por esse motivo, como observa Montenegro (2006), há um processo de transformação e renovação de uma divisão endógena à cidade, ao passo que o circuito inferior vem, progressivamente, aumentando sua capacidade de abrigar mais pessoas.

Assim, as condições precárias em que vive uma parcela da população das grandes cidades dos países subdesenvolvidos levam a criação e a reprodução contínua dessa divisão do trabalho, sendo esta caracterizada por uma variedade infinita de ofícios. Corroborando com tal afirmação Nascimento Junior (2011, p. 55)

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destaca que “A situação de escassez enfrentada pela população mais pobre é criadora constante de alternativas (de trabalho e de renda) que de um modo ou de outro garantem a sobrevivência no lugar”.

Desempenhando historicamente o papel fundamental de absorvedor de mão de obra da cidade, ainda que com ocupações precárias e desprotegidas, o circuito inferior torna-se uma alter-nativa para uma gama da população, visto as crises econômicas e a nova estrutura de emprego das últimas décadas, geradora do desemprego (NASCIMENTO JÚNIOR, 2011), ou seja, pela incapacidade de circuito superior comportar um alto coeficiente de empregados.

Podemos acrescentar ainda que a expansão do circuito inferior pode estar relacionada também a necessidade dos agentes aumentarem suas rendas para conseguirem atender suas carên-cias. Isto porque, como advertem Cataia e Silva (2013, p. 60-61) ao retratar a realidade da cidade de São Paulo, “ainda que exista a diminuição do desemprego verifica-se o aumento da pobreza na cidade, pois mesmo aqueles que estão empregados não possuem renda suficiente para atender suas necessidades”, sejam elas fundamentais, como saúde, educação, transporte, habitação e lazer ou mesmo relacionadas os imperativos dos consumos modernos. Dessa forma, os autores mostram que o aumento do emprego com carteira assinada não expressa, essencialmente, que a renda seja suficiente para atender suas necessidades.

Verticalizando nossas análises sobre os circuitos da eco-nomia urbana em Ponta Negra6, ressaltamos que este bairro está localizado na Região Administrativa Sul de Natal e abrange onze conjuntos habitacionais. Esse bairro teve seus limites definidos pela Lei nº. 4.328, de 05 de abril de 1993 e oficializado em 07 de setembro de 1994, tendo seus limites com o município de Parnamirim ao Sul, Bairro Capim Macio e Parque das Dunas ao

6 Adverte-se que a praia e o bairro possuem o mesmo nome.

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Norte, o Oceano Atlântico a Leste e o Bairro Neópolis a Oeste (SEMURB, 2008).

Além disso, o referido bairro possui uma área de 1.382,03 hectares, com uma população residente de 24.681 habitantes e 7.928 domicílios particulares permanentes (IBGE, 2010). Historicamente o bairro não possui grande densidade demo-gráfica, visto que na década de 1920, por exemplo, havia apenas 500 habitantes, chegando a 1980 com uma população de 10.535. Logo, foi a partir da atividade turística que o bairro passou a abrigar mais pessoas, chegando ao ano de 2000 com o total de 23.600 habitantes (PINHEIRO, 2011).

A partir do turismo de sol e praia a cidade de Natal, especi-ficamente, o Bairro de Ponta Negra tornou-se um dos principais pontos turísticos do estado do Rio Grande do Norte. Isso se deve a sua divulgação internacionalmente como principal destino turístico da cidade e com base nos investimentos públicos e pri-vados, tornando-o atrativo, do ponto de vista das materialidades criadas, aos turistas nacionais e estrangeiros.

Mesmo que o processo de transformação do Bairro de Ponta Negra em destino turístico internacional tenha ocorrido a partir da reurbanização da sua orla marítima (no final da década de 1990), já na segunda metade da década de 1980 percebemos significativas mudanças, deixando de ser uma área periférica de Natal. Isto porque, além dos conjuntos habitacionais, em 1983, ocorreu ainda a inauguração da Via Costeira e a duplicação Av. Eng. Roberto Freire, iniciando a expansão do circuito superior nessa direção.

Logo, Ponta Negra tornou-se o novo lugar de lazer para os residentes após a conclusão da Via Costeira, visto que ante-riormente, a praia era o local de veraneio Classe Média e Alta. Ademais, os investimentos do PRODETUR em equipamentos e infraestrutura urbana no final da década de 1990, tornou Ponta Negra repleto de atividades do circuito superior. Analisando o bairro, Silva (2010, p. 325) assevera que:

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Ponta Negra até o início da década de 1980 era uma zona peri-férica, de banhistas natalenses e de poucos turistas nacionais. A implantação do Projeto Via Costeira, a duplicação da Av. Eng. Roberto Freire e a construção dos primeiros hotéis, aliados as qualidades naturais do bairro e a facilidade de acesso a linha de praia (com novas ruas pavimentadas em 1988, pelo então prefeito Garibaldi Alves), trouxeram modificações em seu padrão de ocupação urbana. Mas foi entre 1998 e 1999 com as obras do PRODETUR NE-I, relativas à reforma do calçadão da praia, saneamento básico e sinalização turística, que o bairro enfrenta uma forte valorização imobiliária, com construção de edifícios verticalizados residenciais, flats, hotéis e pequenos centos comerciais.

Aproximando-nos dos trabalhadores de praia, observa-se que essas formas de trabalho representam quase que uma tradição popular no litoral brasileiro atualmente, principalmente nas cidades com forte apelo turístico. Por esse motivo, ao percorrer a orla da Praia de Ponta Negra, observamos centenas de agentes comercializando diversas mercadorias de variadas formas, aten-dendo à necessidade de consumo imediato e acessível a todas as camadas sociais.

A Praia de Ponta Negra, principalmente a partir da intensi-ficação da atividade turística em Natal, tornou-se um subespaço progressivamente abrangente na comercialização de produtos e serviços, sobretudo, pela atuação do circuito inferior. Isto porque, as atividades gestadas por esse circuito sofreu diretamente a influência das transformações oriundas das políticas públicas do turismo, ao passo que a urbanização litorânea da cidade repercutiu no seu crescimento e nas novas possibilidades de trabalho.

Deste modo, o circuito inferior vem se constituindo como alternativa para a redução da pobreza, ainda que não possamos exaltá-lo ou mesmo incentivá-lo, devido às condições precárias de trabalho em que muitos desses agentes estão sujeitos.

Ademais, os trabalhadores de praia, aqui expressos pelos vendedores ambulantes, não podem ser vistos como meros ele-mentos de suporte ao lazer dos turistas e frequentadores da praia

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quando necessitam de algum produto/mercadoria para aproveitar melhor sua distração, mas como agentes que contribuem na dinamização da economia da cidade, ao passo que se constituem como o último elo entre a cadeia produtiva e o consumidor. Retratando a dinamicidade econômica nas praias brasileiras Araújo et al. (2012, p. 375) destaca que:

A circulação monetária nas praias é imensa e mantém muitas famílias e comunidades ao longo do litoral brasileiro. Estima-se que a circulação diária de dinheiro em uma praia urbana como Copacabana (Rio de Janeiro, RJ), Boa Viagem (Recife, PE) ou Praia Central (Balneário Camboriú, SC), no verão, seja da ordem de algumas centenas de milhares de Reais por dia. A economia da praia na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, formada por pequenos negócios promovidos entre o calçadão e o mar, movimenta aproximadamente R$ 80 milhões por mês (Souza & Lages, 2008). Somente os ambulantes na areia giram cerca de R$ 10 milhões a cada fim de semana e têm uma renda média de R$ 1 mil. Ainda deve-se notar que outras formas de circulação monetária formal e informal existem na praia, sobretudo na forma de concessões públicas de quiosques e compra/venda de “pontos de barraca”. Essa circulação de dinheiro (muitas vezes em espécie) na praia é frequente, e de grande monta.

Iniciando as reflexões acerca das formas de trabalho encontradas na orla de Ponta Negra, constatamos, através das observações, que a extensão da praia é marcada por certa diferen-ciação em sua paisagem ao percorrer seus aproximadamente 4 km.

Caminhando no sentido norte, em direção ao trecho ocu-pado pelos hotéis na Via Costeira, encontram-se, principalmente, hotéis e algumas barracas que vendem moda praia, logo, diminui o número de vendedores ambulantes nessa direção, visto o menor fluxo de pessoas. Assim, quanto mais próximo aos hotéis da Via Costeira, mais a praia vai tornando-se praticamente deserta, quase que privativa aos hóspedes – embora alguns artesãos se destinem a esse local para vender sua arte aos turistas com “autorização” dos hotéis.

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Paralelo a isso, indo no sentido sul, ou seja, em direção ao Morro do Careca7, há intensa ocupação por estabelecimentos turísticos em todos os segmentos (bares, restaurantes, hotéis, pequenas galerias de shopping etc.). As áreas que eram de uso dos nativos da Vila de Ponta Negra passaram por intensa valorização através do interesse dos agentes hegemônicos. Entretanto, a área é compartilhada também por menores estabelecimentos na Avenida Erivan França e por residências nas ruas e quadras situadas atrás desta.

Concomitantemente, também se constata nessa área uma forte concentração dos agentes do circuito inferior, sobretudo, vendedores ambulantes, na areia da praia ou no calçadão, aten-dendo o intenso movimento de pessoas. Ademais, quanto mais próximo ao Morro do Careca, mais se percebe a presença da população local, da Vila de Ponta Negra, exercendo atividades tradicionais, como a pesca.

Como em outras cidades do Nordeste, presenciamos em Natal, principalmente em Ponta Negra durante a alta temporada do fluxo turístico (de dezembro a fevereiro e junho/julho) a pre-sença expressiva de turistas. Paralelo a esse movimento, cresce o número de pessoas procurando formas alternativas de renda e, por esse motivo, a expansão do circuito inferior em Ponta Negra é, em grande medida, resultado da inserção da atividade turística.

Conforme as informações do líder da Associação dos Trabalhadores de Ponta Negra (ATPON), no período de maior fluxo de turistas e banhistas (alta estação) muitas pessoas chegam à cidade no intento de buscar maiores rendas. Nesse período, de acordo com o entrevistado, a praia chega a abrigar entre 1500 a 1800 trabalhadores. Todavia, os problemas de infraestrutura

7 O Morro do Careca, uma duna de 107 metros de altura margeada por vegetação, é o principal cartão postal da cidade, onde banhistas e turistas escalavam o morro. Porém, devido à necessidade de manu-tenção da mata nativa, bem como para não reduzir a altura do morro, foi proibido desde meados de 1990 sua escalada.

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e obras na orla da praia, reduziu esse número (ficando entorno dos 700 trabalhadores) em 2013.

Logo, devemos reconhecer que tais atividades carregam em si grande perversidade, visto que, embora permitam aos agentes uma forma de sustento, devido ao caráter sazonal do turismo, ainda que não acentuado em Natal, elas não representam, para todos os agentes, uma ocupação fixa, tornando-se para uma parcela da população, um trabalho ocasional ou complementar, pois não há garantia de renda satisfatória durante todos os meses do ano.

Devido a essa sazonalidade, a realidade do circuito inferior nas praias o diferencia das demais manifestações do circuito inferior em outros lugares, como nos centros comerciais ou mesmo em áreas periféricas da cidade. Contudo, tal como nos centros comerciais, observamos que estes agentes se valem do baixo preço de suas mercadorias, da flexibilização dos seus preços e do acesso ao consumidor para auferir maiores lucros.

As dificuldades para que os vendedores ambulantes reali-zem seus ofícios na praia são numerosas e expressam a precarie-dade de trabalho a que se sujeitam a fim de garantir uma forma de sobrevivência. Dentre as maiores dificuldades encontradas para realizar seus ofícios destacam-se: a falta de capital de giro, o despreparo profissional, a necessidade de curso de idiomas, a locomoção para chegar à praia com as mercadorias, a diminuição do fluxo de turistas nos últimos anos, os períodos de marés cheias, a concorrência com os quiosques e barracas, o cansaço oriundo das longas caminhadas carregando os produtos sob o sol forte, a insegurança e o não aproveitamento de determinados alimentos no dia seguinte.

Destacando ainda as dificuldades em se trabalhar na praia, observamos que os dias de chuva prejudicam o pleno desenvolvi-mento das atividades por parte dos agentes do circuito inferior. Nessa situação se reduz o número de pessoas na praia e, por conseguinte, percebemos também a redução dos vendedores

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ambulantes e muitos quiosques e barracas fechadas. Observamos, assim, a complexidade das atividades do circuito inferior, as quais não dependem apenas da disposição para trabalhar, mas também das condições do tempo.

Ressalta-se também que os vendedores ambulantes, his-toricamente, sofrem com a fiscalização e ações arbitrárias do poder público – que até o momento não resolveu a questão da apropriação do espaço público na orla por esses agentes. Com a capacidade de normatizar os usos do território, o Estado vem tentando disciplinar os trabalhadores ambulantes da praia de Ponta Negra, desde meados da década de 1990, coibindo suas atuações, ao mesmo tempo em que não oferece uma contrapartida: seu efetivo cadastramento, regularizando-os para trabalharem na praia e/ou a construção da área destinada a eles.

Paralelamente aos problemas identificados para a prática de seus ofícios, esses ambulantes acreditam que para melhorar suas atividades é necessário, dentre outros motivos: apoio por parte da prefeitura, melhor policiamento, redução da fiscalização, cursos profissionalizantes, cursos de manipulação de alimentos, melhoria na infraestrutura, legalização dos ambulantes nas praias (SEBRAE, 2007; PESQUISA DE CAMPO, 2013).

É interessante notar que os vendedores ambulantes, quantitativamente expressivos e qualitativamente diversificados na praia de Ponta Negra, dependendo do produto comercializado circulam em diferentes horários do dia e permanecem também em horários variados. Dessa forma, enquanto há agentes que passam em média 4 horas trabalhando, outros chegam passar até 12 horas na praia. Ademais, enquanto o número de comerciantes ambulantes durante o dia se concentre na praia (com alimentos, bebidas e acessórios), sobressai à noite os vendedores de artesanato especificamente no calçadão.

Analisando as formas de trabalho dos comerciantes ambulantes, percebemos que a criatividade é um dos principais elementos para a comercialização dos seus produtos. No intento

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de lograrem maiores lucros, bem como por ser mais fácil fugir de uma fiscalização inesperada, os vendedores providenciam diversas meios de carregar suas mercadorias e alcançar um número maior de potenciais consumidores.

Dessa forma, as formas de transportar suas mercadorias são variadas, passando das mais simples (uma caixa de isopor com picolés e sorvetes nos ombros, mostruários feitos de canos e tecidos ou apenas conduzindo nas mãos) às mais complexas: bicicletas estruturadas e adaptadas com guarda-sol e caixa de isopor para acondicionar os perecíveis e ainda lixeira; carrinhos equipados com fogão a gás para produzir crepes, churrasco ou camarão; araras (expositores) com rodas; carrinhos estruturados e adaptados para produzir diferentes bebidas alcoólicas, churros etc..

Todavia, a criatividade desses agentes não se restringe apenas ao deslocamento e a movimentação das suas mercadorias. Surpreende, especialmente o turista, a variedade de produtos à disposição; as diferentes formas de abordagem, apresentação e oferecimento; a tentativa de diálogo valendo-se de outras línguas (como o espanhol e o inglês “arranhados”); a forma de recebimento do consumidor, que pode ser em dinheiro, cartão de crédito ou, ainda que com raríssimas exceções, fiado; e as variadas formas de negociação.

Nesse contexto, a criatividade, de certa forma, compensa a falta de publicidade, visto que poucos são os ambulantes que realizam alguma propaganda não classificada como “boca a boca”. Dentre aqueles que realizam algum tipo de publicidade, a distri-buição de panfletos/cartões e alto-falantes embutidos em seus carrinhos foram as únicas formas identificadas de propaganda.

Em relação à mão de obra, aqueles agentes do circuito inferior que vendem bebidas e, principalmente, alimentos na praia, frequentemente contam com a ajuda de familiares na atividade. Essa ajuda varia desde a compra da mercadoria e/ou seu preparo ou mesmo nas vendas. Logo, percebe-se a complexidade

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do circuito inferior na praia, haja vista que a rede de pessoas nele envolvidas nem sempre são perceptíveis. Acrescentamos que, por se tratar de uma atividade familiar, muitas vezes o parente não recebe salário ou, em última instância, recebe uma porcentagem do lucro diário, variando conforme o vendedor.

Contudo, há também os “comerciantes-proprietários”, onde o comerciante ambulante possui mais de um carrinho para vender seus produtos, ficando a cargo de outros familiares ou mesmo “funcionários”, todos com a devida “marca” estampada em suas fardas. Detalhando essa forma de relação de trabalho na praia de Boa Viagem em Recife/PE, Araújo et al. (2012, p. 384) aponta:

Esses comerciantes-proprietários, embora inseridos na eco-nomia informal, muitas vezes empregam outras pessoas, porém também de maneira informal. Cria-se assim um leque de ramificações da atividade, no qual a comercialização de um determinado produto caseiro como, por exemplo, caldinho, torna-se padronizada através da adoção de uma “marca fictícia” não registrada, mas facilmente reconhecida pelos usuários. As formas de abordagem (chamadas vocais) também são carac-terísticas, e compõem a identidade do ambulante/produto, fortalecendo ainda mais esse aspecto.

Há, também, outra forma de relação na qual empresas de pequeno e médio porte contratam trabalhadores temporariamente para comercializarem seus produtos na praia, principalmente nos períodos de alta estação. Ao estudar a dinâmica das praias da cidade Natal, Fernandes (2008) destaca que alguns vendedores chegam à praia e são transportados de volta pelo proprietário das mercadorias comercializadas, sendo exemplo, vendedores de picolés, água de coco, redes de tecido etc.

Versando especificamente sobre as formas de negociação, constatamos que a maioria dos vendedores ambulantes estão abertos a “pechincha”. Cabe-nos evidenciar que os agentes que estão menos abertos a negociação são os vendedores de bebidas, por já trabalharem com uma margem de lucro baixa, se compara-dos com os outros a gentes. Já os agentes que estão mais abertos

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à negociação são aqueles que comercializam artesanatos (por serem muitas vezes os próprios artistas), ou acessórios e aqueles relacionados a produtos alimentícios, sobretudo, aqueles produtos perecíveis e que não poderão ser aproveitados no dia posterior e nem devolvidos ao fornecedor.

Em relação às formas de recebimento que os vendedores ambulantes oferecem aos seus clientes, atentamos que, tal como ocorre em outras praias do Brasil, incipientemente os vendedores ambulantes estão recebendo seus pagamentos através de cartão de crédito. Isso mostra-nos que o sistema financeiro está expandindo sua capilaridade por todo o território. Além disso, reflete o interesse do Estado em reduzir a informalidade a partir da constituição do CNPJ na figura do microempreendedor individual, atrelado ao baixo custo, menor burocracia e ao direito a aposentadoria, auxílio-maternidade e auxílio-doença.

No tocante à origem dos produtos que os trabalhadores de praia vendem, constatamos que os vendedores ambulantes de alimentos e bebidas os adquirem, principalmente, na própria cidade. Apenas aqueles que comercializam acessórios/vestuário e artesanatos estabelecem maiores relações fora da cidade, com-prando-os na cidade de Caicó, Fortaleza, Rio de Janeiro etc.. Logo, ao percebemos que alguns produtos são comprados em regiões distantes, constatamos que os agentes do circuito inferior também se aproveitam da unicidade das técnicas e da interdependência dos lugares (SANTOS, 2008a) para desenvolver seus ofícios.

Refletindo sobre a dialética entre os circuitos da economia urbana, constatamos a relação de complementaridade entre eles na medida em que os produtos que os vendedores ambulantes adquirem, sobretudo, os alimentos e bebidas, são geralmente oriundos das redes de supermercados e atacadistas da cidade. Essa relação de complementariedade é expressa também pela localização, pois os agentes do circuito superior (bares, hotéis, restaurantes, agências de viagem, locadoras de veículos etc.) se instalam nas margens das praias ou pulverizados pelo bairro,

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enquanto os agentes do circuito inferior se instalam na faixa de areia vendendo os mais diversos tipos de produtos e serviços.

Porém, é comum encontrarmos fornecedores do circuito inferior que também são agentes desse mesmo circuito, como é caso dos pescadores e artesãos, pessoas que produzem cd’s e dvd’s falsificados etc.. Além do mais, devido ao baixo capital envolvido na atividade, muitas das mercadorias comercializadas (excetuando-se as industrializadas) são produzidas pelos próprios agentes ou por alguém da família, como é o caso dos ovos de codorna, a ginga com tapioca, o milho cozido, a castanha de caju, o amendoim, o camarão etc.

Percebe-se então, por meio da análise realizada acerca da realidade vivenciada pelos trabalhadores de praia, que esses agentes estabelecem um contraponto, uma contrarracionali-dade, à ordenação imposta pela instância política e pelas grandes empresas. Logo, pela própria relação dialética entre os circuitos da economia urbana, onde a complementaridade e a concorrência são elementos chaves para a sua compreensão, os agentes do circuito inferior estabelecem ações solidárias e criativas fundamentais para a sua manutenção. Nesse sentido, é imperativo destacar que:

A complementaridade significa que as atividades de um dois circuitos demandam imputs do outro circuito ou utilizam algu-mas de suas atividades ou produções como economias externas. Mas, as e relações funcionais entre os dois setores podem ser de natureza inteiramente diferente, quer dizer, relações hierárquicas, portanto de dependência e relações de dominação, exercidas de cima para baixo no tocante à decisão, mas também de baixo para cima, pois a dominação e a dependência fazem com que o dominado e o dependente contribuam para desen-calhar o que se situa no alto da escala; é o caso do atacadista que é o “banqueiro” das outras atividades do circuito inferior, mas que não sobreviveria sem elas (SANTOS, 2008b, p. 261).

É evidente, então, os cruzamentos e “invasões” entre os circuitos da econômica urbana no atual período, havendo uma maior intercomunicação entre ambos, embora cada um mantenha suas características definidoras. Perceber e analisar

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esse hibridismo que vem crescendo entre os circuitos é, sem dúvidas, um dos grandes desafios para interpretação das cidades no contexto atual (SILVEIRA, 2007).

Tratando dos clientes que consomem no circuito inferior na praia de Ponta Negra encontramos certa especificidade. Isto porque, se a premissa é verdadeira que os produtos oferecidos pelo circuito inferior nas áreas centrais e periféricas das cidades são, geralmente, ofertados e consumidos pela população de menor poder aquisitivo, o mesmo não vale para análise do circuito inferior nas praias.

Nesse subespaço os agentes não hegemônicos comercia-lizam seus produtos também para as classes mais abastadas, incluindo também os turistas, dando uma feição especial a esse circuito nas praias. A maioria dos trabalhadores entrevistados ressaltou que vendem seus produtos desde aos banhistas, mora-dores da cidade, até os turistas nacionais e internacionais e que o perfil de quem consome seus produtos são, geralmente, da classe média, seguido da população com maior poder aquisitivo.

Conforme observado no quadro 01, as mercadorias comer-cializadas na praia é complementar a atividade de lazer e, embora certamente não tenham sido contemplados todos os produtos vendidos, dimensiona sua variedade. Ressaltamos que os produtos oferecidos na praia não diferem, essencialmente, dos vendidos nas outras praias da cidade ou mesmo em outras cidades litorâneas com apelo turístico e que dentre a diversidade de produtos encontrados na praia podemos subdividir em três categorias:

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Quadro 01 ‒ Produtos comercializados na Praia de Ponta Negra

BEBIDASRefrigerante, cerveja, água mineral, água de coco,

caipirinha, sucos, hula-hula8, caipifruta etc.

ALIMENTOS

Espetinho (churrasco), camarão, queijo de coalho, batata frita, salgados, doces, crepe, sorvete, salada

de frutas, picolé, algodão doce, castanha, amendoim, ovo de codorna, ginga com tapioca, sanduíches

naturais, frutas do período, bolo, cocada, ostra etc.

ACESSÓRIOS, VESTUÁRIO E ARTESANATO

Protetor solar, bronzeador, óculos, chapéu, camisetas, cd e dvd, biquines, maiôs, cangas,

sandálias, sunga, colares, pulseiras, acessórios de cabelo, tapetes, artesanatos, boias, brinquedos

de praia, bolsa, pintura em tela, rede etc.

FONTE: Pesquisa de Campo, 2013.8

Em linhas gerais, inferimos que a quantidade e variedade de produtos e serviços ofertados em Ponta Negra pelo circuito inferior estão diretamente relacionadas com a necessidade de consumo dos frequentadores e turistas que chegam à praia, atrelada a comodidade de adquirir produtos na própria areia. Assim, mesmo com a incerteza da manutenção de suas ativi-dades, visto os conflitos com o poder público, e a concorrência com determinados setores do circuito superior, esses agentes expressam mais que uma face perversa da economia da cidade, ou seja, evidenciam também uma forma de reprodução social atrelado ao turismo em Natal.

Ademais, os vendedores ambulantes na praia, assim como aqueles que vendem na rua são resultados das próprias neces-sidades do circuito superior, ao passo que esses fornecem suas

8 Bebida alcoólica produzida com vodka, gelo e leite condensado e servida dentro de um abacaxi utilizando-se, por vezes, de outras frutas para enfeitar.

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mercadorias independentemente da sua faixa etária, mesmo que seja para idosos ou menores de idade e ainda não perdem tempo ou gastam dinheiro para encontrar sua clientela. Dessa forma, na realidade os vendedores ambulantes são verdadeiros empregados de patrões invisíveis que comandam cadeias de comercialização.

Além disso, percebemos como traço ainda marcante atu-almente entre os trabalhadores de praia o fato da rapidez da renovação dos estoques, visto que em grande medida eles se reabastecem em pequenas quantidades e quase todos os dias devido às limitadas possibilidades de estocar e o pouco capital. Ocorre que:

Guardar uma mercadoria, mesmo por algumas horas ou alguns dias, pode representar um prejuízo maior que vendê-la a baixo preço, aparentemente com prejuízo. Na realidade, a falta de lucro é compensada pela recuperação do dinheiro líquido com o qual uma nova compra pode ser feita, permitindo o reinvestimento, e a reinserção do comerciante no circuito dos negócios. Por outro lado, para a maioria trata-se de ganhar o pão de cada dia, sendo essa a preocupação primordial, que ultrapassa a preocupação com o lucro como elemento funcional da atividade (SANTOS, 2008b, p. 249).

A pesquisa revelou que à medida que o circuito inferior na Praia de Ponta Negra veio crescendo a partir da dinamização do turismo, este foi assumindo um importante papel na eco-nomia da cidade, o que ocorre sobremaneira em virtude deste constitui-se num reduto de trabalhadores que necessitam se reproduzir socialmente; assim como por contribuir para a própria complementaridade entre os circuitos, ao passo que muito dos seus produtos são comprados em grandes empresas.

É interessante notar, ao se analisar os agentes do circuito inferior na praia, que a metade dos entrevistados não estava interessada em assumir um emprego “formal”. O fato de ganhar apenas um salário mínimo nos empregos que possuíam, ou seja, o desalento com suas remunerações (sendo reflexo dos salários pagos pelo setor terciário em todo o Brasil), atrelado à autonomia,

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a flexibilidade do horário e dia de trabalho e a possibilidade de melhores remunerações tornaram-se importantes motivos pelos quais esses agentes preferem estar na praia, mesmo que às vezes com extenuantes jornadas.

Não estamos negligenciando aqui a questão do desemprego como um dos motivos pelos quais faz com que esses agentes estejam trabalhando na praia. Contudo, essa resposta, de certa forma, já seria esperada. Logo, o singular foi observar que não é apenas a suposta diminuição da oferta de empregos que faz o circuito inferior se expandir em nosso recorte, mas, principal-mente, o nível de renda e os postos de trabalho precarizados no setor “formal”.

Por fim, estamos presenciando um processo no qual os cruzamentos e “invasões” entre os circuitos da economia urbana possibilitam a expansão do circuito inferior, mas também o agravamento das relações de competição. Dito de outra forma, partindo do nosso recorte espacial, percebe-se que a inserção da atividade turística no Bairro de Ponta Negra e das variáveis modernas gerou a expansão do circuito inferior no referido lugar, criando um mercado de trabalho envolvido em uma ampla varie-dade de atividades.

Logo, o dinamismo econômico oriundo do turismo no referido bairro possibilitou uma conformação de diversas opções de trabalho, inclusive na orla marítima, variando os graus de exigência em relação à escolaridade, especialização ou capital empregado, conforme o circuito que participa. Ademais, a varie-dade de atividades expressam interesses antagônicos: enquanto os agentes do circuito inferior buscam, principalmente, sua própria sobrevivência, os agentes do circuito superior, através da reali-zação de seus interesses corporativos, buscam o lucro.

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Do ócio ao negócio e meio de sobrevivência

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Considerações finaisSendo um tema ainda pouco estudado, tentamos nesse

trabalho mostrar que a atividade turística realizada em cidades litorâneas tem se apresentado com importante mecanismo para a promoção das ocupações no circuito inferior, ao passo que se expandem os trabalhadores de praia devido a pouca exigência no que tange a capital, organização e tecnologia. Embora esses também expressem ofícios, geralmente, precários, com cansativas jornadas de trabalho e com baixa remuneração.

Ao traçar um paralelo entre as características evidenciadas do circuito inferior na Praia de Ponta Negra com a realidade descrita por Santos (2008b) sobre esse circuito entre as décadas de 1960/70 percebe-se ainda várias similaridades, ao passo que ainda se identifica que “As empresas familiares e os autônomos são numerosos, o capital é muito pequeno, a tecnologia, obsoleta ou tradicional e a organização, deficiente. A procura de dinheiro líquido é desenfreada. Às despesas de publicidade são quase inexistentes” (SANTOS, 2008b, 197-198).

Além disso, o trabalho continua sendo a base fundamental desse circuito, onde a cada dia há mais pessoas comercializando produtos, criando uma área de consumo e um mercado de tra-balho que é condição de existência desses agentes. Dessa forma, constata-se que a importância do circuito inferior é diretamente proporcional à massa da população que dele faz parte (SANTOS, 2008b)

Destacamos que dois limites inviabilizam uma análise mais acurada e profunda sobre a realidade do circuito inferior em Ponta Negra: primeiro, os trabalhos que versam sobre o turismo, geralmente, não levam em consideração os agentes não hegemô-nicos; segundo, não há estatísticas referentes à economia de praia e sua importância dentro da economia urbana. Por esse motivo, o trabalho de campo foi fundamental para o conhecimento, mesmo que parcial, da realidade de uma gama de trabalhadores.

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É interessante notar que as praias, ao se constituírem como subespaços democráticos e acessíveis a todas as camadas sociais (os moradores locais, os turistas ou veranistas, os ricos, os pobres), tornam-se lugares atrativos para os agentes do circuito inferior que se expandem, progressivamente, em número e diversidade. Todavia, paralelo à importância das praias para a economia e para uma parcela da população das cidades litorâneas, nos deparamos com a escassez de estudos sobre elas, consequentemente, de políticas públicas que atenuem os problemas enfrentados pelos trabalhadores de praia.

Cabe-nos ainda uma última reflexão: as praias são, atual-mente, um importante lugar para o desenvolvimento de atividades econômicas, tanto do circuito superior, quanto do circuito infe-rior, contribuindo para a dinamização da economia das cidades costeiras, de modo particular no mundo subdesenvolvido. Logo, os milhares de trabalhadores que atuam na orla precisam deixar de ser criminalizados ou esquecidos para constituírem de fato e de direito, dentro do sistema econômico, efetivamente um importante segmento da economia urbana. Isto porque “Se, em princípio, o lucro é o motor da atividade comercial, nos escalões inferiores do circuito inferior a maior preocupação é, antes de tudo, a sobrevivência” (SANTOS, 2008b, p. 246).

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Territórios quilombolas e o direito à propriedade coletiva das terras:

entraves e avanços dos processos de titulação dos grupos quilombolas Pêga e Arrojado

no estado do Rio Grande do Norte

Camila da Silva Pereira

Alessandro Dozena

Introdução

A política de titulação de terras quilombolas constitui uma das ações de reparação do histórico de desigualdade no acesso à terra, herdado do período colonial. Os inúmeros conflitos lide-rados por organizações com interesses divergentes com base na terra são uma herança histórica. Destacamos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e os conflitos indígenas como os principais responsáveis pelas tensões sociais que caracterizam os debates sobre o direito à terra atualmente no Brasil. Não menos importante, mas possuindo outras características, as comunidades tradicionais quilombolas também se enquadram na discussão sobre a politização territorial aqui proposta. Utilizamos esse termo para nortear as discussões no sentido de destacar o conteúdo político do território, que também se faz presente nas manifestações culturais desses grupos, acentuado após os marcos jurídicos que modificaram o papel do Estado enquanto agente

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Territórios quilombolas e o direito à propriedade coletiva das terras

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regulador e os direitos e deveres da sociedade civil. De acordo com Moraes (1999) a Constituição Federal de 1988 abrange uma série de princípios gerais, fundamentais e jurídicos, que orientam e fundamentam nosso sistema político, o modelo de Estado e a ordem econômica e social.

Há um jogo político de Estado bastante forte inerente à essa questão que, tendo como princípio para a inserção desses grupos no quadro das políticas públicas, a imposição de uma série de conceituações, que visando definir seus modos de vida e a própria validação de suas identidades quilombolas, acaba por simplificar as formas de compreendê-las, construindo no imaginário social determinações que as enquadram em padrões de cor e comportamento que se não cumpridos, colocam em risco a possibilidade de terem acesso aos benefícios que lhes são destinados enquanto “medidas de reparação de desigualdades”.

Considerando a necessidade de contribuir com uma leitura sobre os territórios quilombolas na Geografia, sobretudo pensando aqueles que compõem a região oeste do estado do Rio Grande do Norte, e tendo em vista a existência de pouca bibliografia dessa natureza sobre as comunidades Pêga e Arrojado no município de Portalegre, o presente texto configura um desdobramento de discussões desenvolvidas na dissertação de mestrado de Pereira (2014) e visa contribuir com essa temática, que acreditamos ser relevante para pensarmos as especificidades dos grupos qui-lombolas, que podem direta e/ou indiretamente funcionar como entraves do processo, bem como meios para que haja avanços.

Pretendendo não nos limitarmos somente ao discurso hegemônico de que a política de titulação constitui tão somente uma forma de ressarcir os grupos sociais que historicamente foram desfavorecidos, temos como etapa fundamental a produção das informações em campo e a coleta de dados primários, com a colaboração dos moradores das comunidades, nas quais foram realizadas duas visitas a fim de compreendermos a forma pela qual eles pensam a titulação de suas terras. Nossa metodologia

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de entrevistas com os quilombolas funcionou por saturação1 e após transcrevermos as entrevistas, selecionamos os relatos que nos permitiram pensar, em linhas gerais, como os moradores do Arrojado e Pêga se posicionam a respeito da política de titulação.

Além de dialogarmos com os moradores das comunidades, também entrevistamos o antropólogo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, responsável pelos processos de titulação das comunidades do Rio Grande do Norte. Por fim, buscamos dialogar com o poder público do município de Portalegre, representado pelo Secretário de Assistência Social2.

Tendo ainda como meio de análise os dados secundários propomos construir um panorama com a presença de vários discursos que convergem e se contrapõem, mas que de modo geral representa a visibilidade que, de maneiras diferenciadas, os grupos quilombolas e suas organizações territoriais passaram a ter sobretudo após a abertura dos debates no âmbito acadêmico e jurídico, como resultado da união de forças de movimentos; como o Movimento Negros Unificado.

A Constituição Federal de 1988 e a normatização dos territórios quilombolas

Pensar o conteúdo político dos territórios quilombolas nos coloca diante das relações de poder que têm a terra como sua base de difusão e representam um jogo de interesses múltiplos

1 A pesquisa por saturação funciona com base na seleção de uma amostra relativamente pequena de sujeitos a serem entrevistados e à medida que as respostas apareçam semelhantes, o entrevistador para o processo e consegue a partir do exposto pelos entrevistados, estabelecer um quadro geral que possibilita estabelecer suas interpretações. É preferível que esse tipo de metodologia seja desenvolvido em comunidade ou grupos que compartilhem experiências semelhantes com vistas de haver menos disparidades (MAY, 2004)

2 Neste trabalho optamos por utilizar siglas ou codinomes para fazer referência aos entrevistados, visando a preservação de suas identidades.

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em que grupos quilombolas e o Estado configuram formas de poder no território. Relações de poder acionadas numa ordem social localmente organizada, a partir daquilo que Raffestin (1993) chamou de “vivido territorial” - os objetos, os símbolos e os valores atribuídos a estes ao longo da construção físico-social do território. Também o poder diz respeito às relações econômicas e políticas de modo específico e faz referência ao território como campo do exercício da política do Estado e dos interesses de controle desse território. Daí as múltiplas relações que coexistem, tendo em vista que o mesmo território de atuação política por parte do Estado é também o território do exercício do poder simbólico, que permeia as relações sociais que o territorializam do ponto de vista da cultura desses grupos.

De acordo com Anjos (2004), a questão negra ganha força no Brasil junto com o debate sobre o campesinato brasileiro, em seguida associado às ações do Movimento Negro Unificado, dando impulso para a criação de leis que atribuem direito à propriedade da terra. Há que se citar as ações desenvolvidas pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), com o desafio de dar força ao debate sobre a questão quilombola e de ressignificar os termos que caracterizam a formação desses grupos, como forma de ampliação da visão sobre os diversos processos de sua formação, com vistas a facilitar o processo de reconhecimento frente à Fundação Cultural Palmares.

A proposta aqui não é a de elaborar um caminho para solucionar o problema da concentração de terras e da regulari-zação dos territórios quilombolas. O que pretendemos com esse quadro geral apresentado sobre o problema é situá-lo e apresen-tá-lo como resultado de um processo complexo que necessita de debate e ação conjunta do Estado e dos demais agentes ligados à questão fundiária e aos entraves que dificultam o andamento dos processos de titulação das terras dos grupos quilombolas.

Não é nossa intenção adentrar nos fatos que explicam a desigual distribuição de terras no Brasil, mas há que se destacar

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que tendo como base de formação territorial o sistema capitalista mercantil, e em seguida financeiro, a estrutura fundiária capita-lista configura a forma mais cruel de submissão das populações menos favorecidas e sem acesso à propriedade da terra. De acordo com Guimarães (1989, p. 34), “a estrutura agrária existente em nosso país foi desde os mais remotos tempos, e continua sendo, capitalista”. Por assim ser, um questionamento surge e insere a terra pertencente às comunidades quilombolas. Nas comunida-des pesquisadas as quais os moradores têm suas propriedades particulares, será de fato interesse dos quilombolas terem a terra titulada coletivamente, impossibilitando a venda ou a troca de sua propriedade? Essa é uma discussão mais complexa do que parece, pois envolve interesses econômicos, políticos e também afetivos, sobretudo se pensarmos que essas terras, em muitos casos, têm valor simbólico por serem de herança familiar.

No auge da abolição da escravatura, no contexto da Lei de Terras após 1850, o trabalhador negro “ex-escravo” torna-se “tra-balhador livre (PINTO, 2012). Percebemos que o negro no Brasil ficou relegado apenas a uma mudança em sua denominação, e raros foram os casos em que estes conseguiram comprar pequenos lotes de terras por preços irrisórios, devido a sua localização e baixa capacidade produtiva, ou aqueles que receberam doação dos donos de terras, como ocorreu nas comunidades pesquisadas, onde atualmente a propriedade da terra é assegurada por herança.

Essa forma de gerenciar a propriedade rural no Brasil em certa medida suscitou mobilizações no campo por aqueles que não estavam satisfeitos com esse modelo de uso das terras. Como forma de apaziguar as mobilizações das ligas camponesas e dos sindicatos rurais, foi instaurado no Brasil o Estatuto da Terra no período do regime militar, a fim de disciplinar o uso e a ocupação das terras, visando o desenvolvimento de uma Reforma Agrária brasileira que, até os dias atuais, desenvolve-se de maneira bas-tante lenta sob a responsabilidade direta do INCRA.

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Com a sanção da Constituição Federal de 1988, teorica-mente instituída para assegurar alguns dos direitos negligen-ciados à determinadas parcelas da sociedade ao longo do tempo, tendo como base de fundamentação a redemocratização do Brasil com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a redução das desigualdades sociais e regionais, o INCRA efetiva-mente se tornou parte do arranjo burocrático-institucional para a execução das políticas de reforma agrária no Brasil. Atualmente, subordinado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o INCRA desenvolve políticas públicas de regularização fundiária, obtenção de terras, criação de assentamentos e desenvolvimento de projetos de assentamentos (PINTO, 2012). Não menos impor-tante que estas ações, o INCRA também lida diretamente com o processo de titulação das comunidades reconhecidas enquanto quilombolas pela Fundação Cultural Palmares.

Um dos principais quesitos instaurados pela Constituição sobre as questões fundiárias e que é de interesse direto de nossa pesquisa é a garantia do acesso à propriedade coletiva das terras às comunidades tradicionais quilombolas, com base no art. 68 das Disposições Constitucionais Transitórias. Reforçada pelo Decreto 4.887/2003 que regulamenta o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação, essa tarefa passou a ser de responsabilidade de órgãos vinculados ao Estado, sendo eles o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em parceria com a Fundação Cultural Palmares.

Embora o acesso à propriedade coletiva das terras seja um direito assegurado pela constituição, enfrenta-se um arranjo burocrático que torna o acesso a essas terras um processo bastante lento. Além disso, os próprios quilombolas podem se manifestar a favor ou contra esse benefício. Tal fato torna o processo mais complexo, pois os impasses não se restringem somente à própria política do Estado, mas também aos interesses divergentes exis-tentes dentro das comunidades, nas quais os membros muitas

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vezes não comungam das mesmas opiniões e podem tornar o processo ainda mais lento e complexo.

Por se tratar de uma ação conjunta em que o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o INCRA, a Fundação Palmares e o próprio Governo nas instâncias municipal e estadual estão envolvidos, a política de titulação de territórios quilombolas é extremamente burocrática pela própria forma de aquisição das terras brasileiras ao longo do tempo, o que dificulta o andamento dos processos. Além disso, pela força da conjuntura política bra-sileira e de modo específico no Nordeste, em que o coronelismo exerceu forte influência na apropriação das terras e no andamento das ações políticas dos estados, não se trata de uma política de simples resolução. Vários sujeitos que representam o poder no território, em graus diferenciados, estão envolvidos, a começar pelos próprios quilombolas, já que o processo de titulação, na maior parte dos casos, tem início a partir da autodeclaração de suas identidades, devido à própria autonomia e consciência que os grupos quilombolas vêm ganhando ao longo do tempo. De acordo com Arguedas:

O conjunto de atores sociais, políticos e institucionais que interveem no processo de reconhecimento de um território e uma identidade configuram relações complexas e às vezes contraditórias e conflitantes. Por exemplo, as comunidades quilombolas, em procura de sua autonomia, devem passar por uma série de procedimentos técnicos, administrativos e às vezes judiciais, involucrando diversos órgãos governamentais e outros agentes. Através da ação de grupos organizados da sociedade civil, especialmente o Movimento Negro, se conseguiu incluir os grupos quilombolas dentro das políticas públicas, mas isso não garante o reconhecimento real na materialidade da vida cotidiana (ARGUEDAS, 2013, p. 16).

Nesse sentido, faz-se necessário discutirmos o caráter normativo instituído a esses territórios, tendo em vista que são lócus da ação de órgãos vinculados ao poder que o Estado de maneira geral exerce no território. Pela Constituição Federal, não somente o território das comunidades remanescentes de

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quilombo passa a ter valor normativo, mas também a identidade desses grupos adquire valor político frente às normas legislativas instituídas pelo Estado democrático.

Sobre a questão da autoatribuição étnica dos grupos qui-lombolas, destacamos a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3239/2004), desencadeada pelo antigo Partido da Frente Liberal, atual Democratas, contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta a titulação das terras quilombolas. A ação questiona o critério da autoatribuição na definição das comunidades rema-nescentes de quilombos, alegando que as informações fornecidas pelos quilombolas necessitam de marcos que as tornem objetivas (CPISP, 2013).

Vários questionamentos surgem quanto ao direito dos declarados quilombolas às terras. Segundo Leite (2000, p. 334), “os negros, diferentemente dos índios – considerados como ‘da terra’ –, enfrentaram muitos questionamentos sobre a legitimi-dade de apropriarem-se de um lugar, cujo espaço pudesse ser organizado conforme suas condições, valores e práticas culturais”. Essa identidade muitas vezes não é declarada por alguns membros das comunidades, pelo próprio desconhecimento de sua história, sendo imposta por outros como forma de tentativa de acesso aos direitos destinados a esses grupos. Assim, as identificações dos grupos atuam como o ponto principal de reivindicação dos direitos que lhes são destinados pela Constituição Federal.

Não consideramos a autodeclaração das identidades qui-lombolas como forma de manipulação da identidade, mas como uma tomada mínima de consciência que vem impulsionando muitas comunidades a buscarem alguns de seus direitos. Se forem reconhecidas por uma herança de trabalho escravo e cultura afrobrasileira, esses grupos devem utilizar essa identificação para garantir o básico para o melhoramento de suas condições de vida, uma vez que sabemos que muitas das políticas destinadas a esses grupos, constantes no documento do Programa Brasil Quilombola, não se emanciparam do papel.

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Ao nosso ver, esta ação comandada contra o decreto 4.887/2003 que reforça o direito às terras coletivas às comuni-dades quilombolas, funciona como mais uma forma de retardar ou negar o que é de direito desses grupos, em favor de manter o poder dos latifúndios e das oligarquias políticas e econômicas, que caracterizam a forma de propriedade da terra no Brasil.

A visibilidade que as comunidades quilombolas têm ganhado a partir do Movimento Negro Unificado incomoda alguns setores políticos de nosso país que, mesmo sabendo das influências evidentes de antepassados negros escravizados na formação dessas comunidades, lutam para negar o direito à manu-tenção de sua cultura de maneira geral, que sendo ressignificada ao longo do tempo, não pode mais ser enquadrada em concei-tos colonialistas. Essa visão engessada de que as comunidades devem permanecer e resguardar traços genuinamente africanos limita a análise dos modos de vida desses sujeitos, bem como das diferentes formas de aquisição e ocupação de suas terras, e os coloca em uma situação de extrema exclusão social. Essa mesma visão engessada dos fatos é utilizada como instrumento de combate aos direitos dos grupos negros. O argumento é o de que se elas não mais possuem todas as práticas culturais de séculos passados e não podem provar o parentesco com antigos negros escravizados, não podem ter direito à terra. Trata-se de um argumento que reduz e marginaliza ainda mais esses grupos, como se não tivessem o direito e não estivessem inseridos na dinâmica social que transforma todos os espaços, a começar pelos seus próprios locais de vivência.

Tornando-se um sujeito político localizado em uma dada porção do espaço que não limita às relações com outros lugares, os territórios quilombolas se inserem na discussão de territó-rio feita por Haesbaert, que acreditamos ser bastante coerente para compreendermos o funcionamento das relações sociais nos territórios do Pêga e Arrojado - o território em uma perspectiva materialista e também culturalista.

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Vemos o território na perspectiva das duas vertentes defen-didas por Haesbaert (2001), são elas: a vertente jurídico-política na qual o Estado funciona como um instrumento de ordenamento das relações de poder e, portanto, do território como espaço onde estas se materializam e, nesse contexto, as políticas públicas destinadas aos territórios quilombolas funcionam como as formas mais evidentes de intervenção do Estado nesses territórios; e a vertente culturalista, sendo estudada a partir da ligação simbólica e afetiva que um grupo tem com o seu espaço vivido.

Outros autores comungam da ideia de território exposta por Haesbaert, entre eles Albagli (2004), ao destacar que o território pode adquirir significados distintos conforme a sua formação socioespacial. Esses significados caracterizam o território a partir de variadas dimensões: sociopolítica, que reforça a noção de poder a ele atribuída como destacamos inicialmente; além das dimensões física, econômica e simbólica. Vemos que por ser uma construção social, o território adquire características diversas que, em conjunto, dão-lhe movimento, permitindo transformações a partir da ação dos sujeitos em seu conteúdo, seja ele político, econômico, simbólico (cultural) ou físico.

Sem dúvida, a forma de legislar a questão fundiária no Brasil após a Constituição reforçou o caráter político do acesso à terra e do direito à sua propriedade, suscitando maior capacidade de mobilização dos sujeitos diretamente beneficiados pelas novas leis, aumentando a quantidade de políticas públicas direcionadas aos grupos sociais rurais, sejam eles quilombolas, ribeirinhos, indígenas, assentados rurais, entre outros. No entanto, o acesso aos benefícios disponíveis pelas leis agrárias e fundiárias é difi-cultado pela burocracia do arranjo político brasileiro em que a elite política na maioria das vezes é também a elite agrária. Corroboramos com Guimarães (1989, p. 38) ao relatar que “a redistribuição da terra e a divisão da propriedade latifundiária não é uma simples operação aritmética, uma reparação de injustiças ou uma medida de assistência social”.

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O território o qual estamos nos referindo configura-se como campo da ação do Estado e por isso tem um caráter normativo controlado por ações que vêm de fora e também se manifestam como lugar de vivência dos grupos negros e de construção de suas identidades ou de seus processos de identificação3, considerando as identidades enquanto passíveis de mudanças.

Vale salientar que de acordo com o documento do Programa Brasil Quilombola - PBQ (2008), alguns estados contam com legislação própria para gerenciar os processos de titulação dos territórios quilombolas identificados em suas respectivas regiões administrativas: Maranhão, Bahia, Rio Grande do Norte, Goiás, Pará e Mato Grosso. Embora o Rio Grande do Norte não tenha número elevado de comunidades reconhecidas, o estado tem autonomia para gerenciar seus processos, sendo importante com-preender como o órgão responsável por esse arranjo burocrática está desenvolvendo as ações que lhe competem.

Estar entre os territórios reconhecidos não garante que os direitos destinados a essas comunidades serão de fato assegurados e efetivados, visto que muitas delas não têm acesso aos direitos básicos como acesso a água, educação e saúde. De acordo com o documento do PBQ (2008), apesar da existência e extensão da bibliografia no campo jurídico, antropológico, histórico e geográfico sobre comunidades quilombolas no Brasil, o tema da regularização fundiária para essas comunidades conta com uma gama de argumentos que evocam o desconhecimento, a insegu-rança jurídica, bem como a falta de acordo sobre os conceitos para caracterizar as terras ocupadas e sua autodefinição, o que também dificulta a garantia da propriedade coletiva para a defesa da manutenção de uma realidade miserável, que perdura desde meados do século XIX, quando foi sancionada a Lei de Terras.

3 Hall (2006) e Woodward (2012) discutem os processos de identificação considerando que a identidade é construída historicamente e não biologicamente, uma vez que a cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar por modos subjetivos de ser.

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Tendo sido apresentado brevemente o nosso tema, entra-mos na discussão do andamento dos processos de titulação dos territórios quilombolas Pêga e Arrojado em Portalegre - RN, destacando o avanço dos processos e seus entraves.

Andamento e impasses nos processos de titulação das terras de remanescentes quilombolas Pêga e Arrojado: reflexões a partir da contraposição de discursos

Poucos autores na atualidade investigam a importância que o trabalho escravo negro teve no âmbito das atividades econô-micas do Rio Grande do Norte e na constituição dos territórios quilombolas atualmente reconhecidos no estado. Entre eles, destacamos Monteiro (2010), Cavignac (2003 e 2007), Moraes (2003 e 2005), entre outros, sendo que a maior parte de suas pesquisas está voltada para as comunidades da região do Seridó4.

São vinte e um territórios quilombolas no Rio Grande do Norte, reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, em parceria com a Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afrobrasileiro. O mapa 01 apresenta a localiza-ção dos territórios quilombolas catalogados. Nele, veremos que quatro ainda não apresentam processo aberto no INCRA, talvez pela ausência de articulação dos representantes quilombolas ou pela própria burocratização das ações organizadas por etapas, atribuindo a vários órgãos a responsabilidade de analisar e par-ticipar dos processos de regularização. O INCRA em parceria com o MDA e a Fundação Palmares são os órgãos que respondem pelo andamento dos processos, mas a Comissão Pró-Índio de São Paulo também apresenta dados referentes às comunidades no Brasil e seus processos de titulação, demonstrando que a regularização das terras é uma ação que envolve diversos órgãos

4 A região do Seridó está localizada ao sul da Mesorregião Central Potiguar, abrangendo os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba.

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ligados ao Estado, sendo fundamentalmente uma discussão de caráter político, pensando nos interesses inerentes a esta ação e na força política que os sujeitos envolvidos e organizados exercem.

Mapa 1 ‒ Territórios quilombolas do Rio Grande do Norte

FONTE: Fundação Cultural Palmares e INCRA, 2013.

No intuito de entender como os quilombolas do Pêga e Arrojado estão mobilizadas em relação ao direito de titulação das terras, buscamos analisar seu processo de reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares, bem como qual é posicionamento dos quilombolas sobre a importância das terras serem tituladas.

Com base na documentação referente ao reconhecimento das comunidades Pêga e Arrojado junto a Fundação Cultural

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Palmares5, a abertura do processo de reconhecimento da comu-nidade Pêga teve início em 17 de maio de 2006, com uma soli-citação feita pelo então presidente da Associação Quilombola do Pêga: Francisco Edvan de Bessa, à Diretoria do Patrimônio Afro-brasileiro, que trabalha em parceria com a Fundação Cultural Palmares no reconhecimento das comunidades. Atualmente tivemos informações de que a representante da comunidade é Antonia Maria de Jesus.

O processo de reconhecimento da comunidade Arrojado teve início em 07 de dezembro de 2006. No documento de reconhecimento, a comunidade Pêga é citada no item que trata das condições de vida dos quilombolas de Portalegre. Um fato que merece atenção é o de que, embora o território do Arrojado e Engenho Novo sejam comunidades rurais distintas, foram reconhecidas como uma só pelo fato de que segundo os próprios moradores, grande parte deles migrou do Engenho Novo para o Arrojado, por se tratarem de áreas limítrofes. Tanto é que no site da Fundação Palmares as duas comunidades estão enquadradas em um único processo de reconhecimento.

Além disso, o documento de solicitação de reconhecimento redigido pela presidente da Associação Quilombola do Arrojado, Marlúcia Ribeiro de Bessa, igualmente solicita algumas melhorias para as comunidades, a exemplo da construção de banheiros, melhoria das habitações, construção de uma cooperativa de produtores, entre outras necessidades. Algumas destas melhorias já são possíveis de serem identificadas nas comunidades.

5 Tivemos acesso aos documentos de reconhecimento das comunida-des disponibilizados pela Fundação Cultural Palmares, contendo: Relatório sobre as condições de vida nas comunidades, as solicitações de reconhecimento emitidas por representantes das comunidades e as certidões de autorreconhecimento das comunidades catalogadas no ano de 2007, emitida pelo presidente da Fundação Cultural Palmares na época - Ubiratan Castro de Araújo.

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Quando se trata de trabalho no campo e geração de renda para as famílias, é unânime o relato dos quilombolas de que a falta de oportunidade de trabalho fixo tem ocasionado a migra-ção de grande parte dos jovens das comunidades para outros municípios da região e de outros estados. De acordo com Scarlato (2011), os movimentos migratórios causam tanto uma ruptura do sujeito com o seu lugar de origem, quanto o seu processo de reintegração em um novo ambiente com costumes diferenciados daquele de origem. Corroborando com esse pensamento, Turra Neto aponta que:

Pelo fato de uma pessoa estar num determinado lugar e num determinado tempo, participa de redes de sociabilidade que lhe permitirão construir seus referenciais e lhe ordenarão o mundo. Estes podem vir a se transformar quando a pessoa muda de lugar e já está mais madura, participando assim de um outro contexto e recebendo, deste, suas influências. Assim, as pessoas se constroem, constroem grupos de referência e sociabilidade, seus lugares de encontro e constroem também o mundo para si (TURRA NETO, 2001, p. 208).

No documento de solicitação de abertura do processo, vimos que uma Associação Quilombola é citada e se localiza na comunidade Pêga. Essa associação também foi citada como a responsável pela abertura do processo do Arrojado. No entanto, no contato com as comunidades durante a pesquisa de campo, não descobrimos o local onde funciona a sede da associação, e os moradores também desconhecem essa informação, deixando essa lacuna em nossa análise, além da falta de explicação sobre a presença de uma associação no documento de abertura do processo e a inexistência da mesma no campo de estudo.

Em uma de nossas conversas, realizada em janeiro de 2014 com uma moradora da comunidade Arrojado, obtivemos um relato muito interessante, afirmando que ela não soube quem escolheu a representante da comunidade para que ficasse à frente dos problemas e do processo de titulação e que, a sua escolha para representar os moradores possivelmente tenha sido por

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influências políticas, pois os moradores em nenhum momento foram comunicados sobre a escolha, além de não ter havido uma reunião para que fosse tomada essa decisão. Além disso, a moradora afirma que nada do que é discutido nas reuniões que ocorrem na capital do estado, juntamente com o INCRA sobre os grupos quilombolas, é repassado à comunidade.

Essa reclamação nos foi feita e pelo fato de não conseguir-mos ter obtido contato com os representantes das comunidades, tomamos a fala dessa moradora como fundamental para per-cebermos os conflitos que existem no grupo e que de alguma forma influencia em seu enfraquecimento no que se refere à conscientização e busca de seus direitos.

A existência de uma associação com a presença de um representante não garante que os direitos dos quilombolas sejam assegurados em sua totalidade, até mesmo pelo fato do jogo polí-tico que subordina esses grupos em determinados municípios do interior dos estados brasileiros, o que faz com que as oligarquias exerçam força econômica e política muito forte. O fato de as comunidades possuírem representantes que levem ao conhe-cimento dos moradores a importância que a causa quilombola tem frente às desigualdades no acesso aos direitos básicos, sem dúvida é um importante passo na tomada da consciência desses grupos. No entanto, a representação das comunidades Pêga e Arrojado através de seus militantes apresenta-se bastante débil. Sobre a exigência e importância da existência de uma Associação Quilombola frente à regularização, Arguedas comenta que:

Um dos motivos pelos quais se exige a existência de uma asso-ciação é porque no momento de emitir o título ele é feito ao nome daquela. Este fato tem implicações importantes do ponto de vista da territorialidade. Em teoria, a terra não pertence a indivíduos, mas ao grupo, à comunidade como um todo. A titulação é coletiva e indivisa, ou seja, não pode ser dividida nem vendida, é de usufruto exclusivo da comunidade para garantir sua manutenção e reprodução material-cultural (ARGUEDAS, 2013, p. 09).

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Nas comunidades do Pêga e Arrojado não conseguimos perceber um engajamento dos representantes no processo de conscientização sobre a importância das tradições e dos direitos das comunidades. Há somente a participação eventual dos repre-sentantes em reuniões para a discussão do movimento quilombola e das políticas públicas destinadas às comunidades. É necessária a conscientização desses grupos não somente sobre a política de titulação de terras quilombolas, mas sobre direitos básicos que ainda são precariamente disponibilizados aos quilombolas. Esta política, mesmo funcionando como uma forma de controle do território pelo Estado, também constitui uma medida reparadora da desigual apropriação e distribuição de terras no Brasil, de fundamental importância na territorialidade desses grupos bem como na valorização e manutenção de suas práticas culturais. De acordo com Arguedas (2013), “o reconhecimento dos direitos sobre as terras tradicionais quilombolas, rompe com uma larga história de invisibilização destes grupos, no qual o território se apresenta como uma categoria fundamental na demanda por justiça social” (ARGUEDAS, 2013, p. 02).

Dos processos de titulação abertos no Rio Grande do Norte, dezessete comunidades possuem processo aberto no INCRA e somente quatro delas contam com o reconhecimento da Fundação Palmares, ainda não tendo suas terras demarcadas, como também o Relatório Antropológico concluído como é o caso das comunida-des por nós pesquisadas. Conforme apresentado anteriormente no mapa 01, algumas comunidades tiveram seu processo aberto no INCRA anos depois de seu reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares.

Em entrevista realizada em novembro de 2013, com o antropólogo do INCRA: André Braga; responsável pelo encami-nhamento dos processos de titulação de comunidades quilombolas no estado do Rio Grande do Norte, o mesmo afirmou que o fato de os processos de algumas comunidades terem sido abertos anos depois do reconhecimento, decorre da circunstância da

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documentação de reconhecimento das comunidades feita pela Fundação Palmares não ter sido enviada ao INCRA logo após a sua expedição. A documentação do Pêga e Arrojado, embora tenha sido expedida em 2007, somente chegou ao conhecimento do INCRA no segundo semestre de 2010, sendo que, após avaliação das certidões de reconhecimento, o INCRA prosseguiu com a abertura do processo.

Há muitos elementos que certamente respondem por essa situação. No tocante à realidade dos territórios do Pêga e do Arrojado, as pesquisas de campo realizadas, não tivemos acesso às informações sobre o funcionamento das Associações Quilombolas, que pudesse impulsionar a visibilidade das comunidades frente à titulação. Por outro lado, na narrativa de alguns quilombolas, não percebemos um discurso de mobilização em favor dessa política e, os gestores do poder público local, quando interrogados, não mencionam ações conjuntas com os quilombolas no sentido do estímulo ao andamento do seu processo de titulação.

Segundo informações do INCRA, a comunidade Jatobá em Patu é a que apresenta o processo mais adiantado, já tendo recebido a emissão de posse do INCRA, ou seja, as terras da comunidade estão sob a posse do Instituto. Toda a área demarcada para uso da comunidade está sob o domínio do INCRA, sendo que a comunidade pode utilizá-la para as suas atividades. A última etapa diz respeito à emissão de posse das terras em nome da Associação Quilombola da comunidade, pois ainda há terras na comunidade que não tiveram o processo de desapropriação finalizado. Fora esta, as comunidades que mais apresentam avanço são a de Acauã, Boa Vista dos Negros e Capoeiras. As demais estão com processo estancado.

No intuito de compreendermos quais ações vêm sendo desenvolvidas no sentido da continuidade ao processo de reco-nhecimento do Pêga e Arrojado, bem como no entendimento sobre quais fatores que respondem pelo aceleramento do pro-cesso de determinadas comunidades em detrimento de outras,

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estabelecemos contato com o antropólogo responsável pelo encaminhamento dos processos de titulação no Rio Grande do Norte. Direcionamos questões voltadas para o conhecimento das ações desenvolvidas pelo órgão a fim de dar continuidade aos processos abertos no estado e averiguar se o andamento dos processos era ditado por ordens externas ao INCRA. A explicação que nos foi dada é a de que o Decreto 4.887/2003 autoriza o INCRA a abrir um processo de titulação caso o órgão identifi-que que existem comunidades tradicionais quilombolas em sua extensão territorial, sem necessariamente essas comunidades se autorreconhecerem. No entanto, tendo em vista os impulsos que os grupos negros tiveram e ainda continuam a ter no Brasil, as comunidades estão muito mais engajadas e até certo ponto conscientes de seus direitos, tendo autonomia. Para o antropólogo, é responsabilidade do INCRA encaminhar e agilizar os processos no estado.

Sobre esse posicionamento, lançamos outro questiona-mento. Sendo tarefa do INCRA dar andamento aos processos, quais seriam os possíveis motivos de vermos comunidades que ainda estão em fase inicial em sua análise com processos estanca-dos, a exemplo das comunidades Pêga e Arrojado? A resposta que obtivemos está ligada a alguns impasses no processo, a começar pela falta de recursos disponibilizados pelo Governo Federal ao Ministério do Desenvolvimento Agrário que, em seguida, é repassado ao INCRA para dar suporte aos trabalhos relacionados ao mapeamento e reconhecimento das áreas de ascendência afri-cana. Por essa falta de recursos financeiros apresentada, o INCRA argumenta outro impasse: a falta de apoio técnico pela escassez de recursos para a contratação de geógrafos e antropólogos para os estudos das áreas, fato que inviabiliza a elaboração dos rela-tórios antropológicos. Isso constitui uma das mais importantes etapas, se pensarmos no resgate da história oral dos grupos e das referências culturais de modo geral, que poderiam facilitar a compreensão do processo de formação dos territórios do Pêga e Arrojado, especificamente.

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Por último, outro impasse no andamento dos processos, é o fato de algumas comunidades terem membros que se opõem à titulação para não abrirem mão de suas propriedades particulares, a serem tituladas em nome da Associação Quilombola, para o uso coletivo. Esse pode ser um dos impasses para a titulação das terras das comunidades Pêga e Arrojado, uma vez que os moradores têm a propriedade individual de suas terras registradas em cartório e recebidas como herança. Antes de refletirmos sobre a constituição de um grupo social, devemos pensar que esse grupo é composto por diferentes sujeitos, com processos de identificação que alteram suas formas de pensar e agir dentro do convívio. De acordo com Woodward (2012), “as formas pelas quais a cultura estabelece fronteiras e distingue a diferença são cruciais para compreender as identidades. A diferença é aquilo que separa uma identidade da outra, estabelecendo distinções, frequentemente na forma de oposições [...]” (WOODWARD, 2012, p. 42).

Essa tomada de posição contrária com relação à necessidade de desapropriar-se de seus imóveis em favor do uso coletivo, pode ser estimulada pela construção ideológica do valor capital da terra, que coloca em segundo lugar a ideologia da sua função social, bem como pode fazer referência ao fato de, na maioria das vezes, essas terras serem herdadas e adquirirem um valor parental que, materialmente e não simbolicamente, se perderia ao serem de uso coletivo. São interpretações que podem contribuir para pensar as posições divergentes que fragmentam muitas das relações sociais dentro dos grupos e podem enfraquecer seu caráter político organizacional.

Sobre a importância da titulação das terras para as comunidades de um modo geral, tanto do ponto de vista da implementação de muitas das políticas públicas voltadas a essas comunidades, quanto no sentido da manutenção de sua cultura, que varia bastante de uma realidade para outra, o antropólogo destaca a importância da terra enquanto base para o cultivo dos alimentos da comunidade e para a continuação das famílias

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nas terras de ocupação tradicional. É necessário também que as políticas e programas já existentes no documento do Programa Brasil Quilombola sejam implementados nas comunidades, e que por uma série de burocracias internas, não chegam a ser concretizados. O território, segundo o antropólogo, é o ponto inicial mais importante para essas comunidades que, na maioria das vezes, são rurais, mas também para as comunidades urbanas, no sentido de ser a base de fornecimento de segurança alimentar, organização e “coesão” interna.

Comunidades em luta pelo direito à propriedade coletiva da terra? O posicionamento quilombola no contexto dos entraves e avanços

Sabemos dos avanços ocorridos a partir de ações políticas para o melhoramento das condições de vida em muitas comu-nidades quilombolas no Brasil. No entanto, consideramos que há muitos impasses para a efetivação de algumas dessas ações. Acreditamos que fatores internos às comunidades, a exemplo de posicionamentos contrários à titulação, também podem vir a ser um futuro empecilho para a concretização da política de titulação de suas terras.

Se considerarmos que os moradores das comunidades Pêga e Arrojado possuem a propriedade individual de suas terras e que a titulação eliminará essa forma de propriedade para que as terras sejam de uso coletivo, possivelmente os moradores se mostrem contra a efetivação da política. Pensamos nisso como uma importante ação política de resistência dos grupos que acionam formas de poder e controle no território.

Considerando que muitos dos direitos garantidos às comunidades negras no Brasil foram conquistados a partir de mobilizações e devido ao espaço que a questão ganhou nas universidades e demais locais de discussão, pensamos que a

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titulação das terras das comunidades depende em grande medida da participação e organização das comunidades em favor disso e dos seus demais direitos. Entretanto, essa não é a garantia de que estes serão alcançados, uma vez que o Estado é um dos agentes que gerenciam algumas das políticas públicas destinadas ao melhoramento das condições de vida nas comunidades e, portanto, o andamento dos processos depende de outras ações que não estão diretamente ligadas às formas de representação política dos grupos quilombolas.

Realizamos duas visitas em cada comunidade para a coleta das informações necessárias à interpretação da forma pela qual os moradores pensam a titulação das terras. Destacamos os relatos que elencamos como os principais, pois nos forneceram elementos importantes para analisarmos a consciência que os moradores têm da política de titulação.

Entrevistamos Dona. Ana6 (80 anos) na comunidade Arrojado, devido por sua importância frente à comunidade. No momento da entrevista também estava presente o seu esposo, Antônio. Dona Ana afirmou ser importante a terra ser proprie-dade de toda a comunidade. No entanto, após eu explicar que ela não poderia ser vendida para pessoas de fora da comunidade, somente passada por herança às gerações futuras, Seu Antônio se pronunciou afirmando que as coisas estavam bem do jeito que estão, cada qual com sua terra e fazendo dela o que quiser. Porém Dona Ana manteve a sua opinião dizendo:

Eu nem quero nada só pra mim e eu gosto muito de ajudar, mas se J. acha que tá bom do jeito que tá, a palavra dele é que vale, porque a terra é dele, eu tenho algum direito, mas é dele. Pelo meu pouco entendimento, se a terra pode ficar “pra” todo mundo eu acho que seria bom, porque vai servir pra mim, para meus vizinhos, para os meus netos, para meus filhos, eu acho importante essa coisa de continuar só entre a

6 Utilizamos nomes fictícios dos entrevistados no intuito de preservar as informações compartilhadas para a realização de nossa pesquisa.

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gente (Relato produzidos em pesquisa de campo realizada em novembro de 2013).

Outra entrevistada de nome Ana Maria (24 anos) relatou que:

A titulação das terras para a comunidade é importante, mas não sei dizer o motivo, só acho que deve continuar sendo da nossa família, dos nossos filhos, pra que outras pessoas que não são daqui não possam quebrar o que já foi construído e também pode acontecer de vir melhorias pra gente, talvez educação, saúde melhor e outras coisas que aqui precisa muito (Relato produzido em pesquisa de campo realizada em novembro de 2013).

Dona Antônia (89 anos), a moradora mais velha da comu-nidade Arrojado, deixou claro a importância das terras serem de uso coletivo:

Se a terra pode ser de todos, pra que eu vou querer só pra mim. Acho importante porque assim o São Gonçalo vai continuar sendo dançado, as festas vão continuar sendo feitas e meus netos e bisnetos vão saber a importância de cuidar do que foi dos avós” (Relato produzido em pesquisa de campo realizada em novembro de 2013).

Esses foram os principais relatos que conseguimos obter. Percebemos um destaque a questão da permanência da cultura e das tradições. Os demais depoimentos que não apresentaram elementos de maior aprofundamento na questão limitaram-se a reforçar a importância da titulação, sem deixar claro quais razões, nem o que possivelmente mudaria em suas vidas. Além disso, as entrevistas nos revelaram que grande parte dos moradores afirma ser importante a política e que ouviu falar dos representantes que participam das reuniões, que muitos benefícios podem vir para a comunidade. Mas eles não sabem de que forma essas ações podem melhorar as suas condições de vida. Muitos expuseram que questões de oposição política dificultam bastante o acesso a alguns benefícios básicos e que, por esse motivo, não acreditam em melhorias que possam vir através da titulação. Há também

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moradores que expuseram o desinteresse pela titulação, pois possuem imóveis e vêm as terras da comunidade como mais uma forma de obtenção de lucro, mesmo que apresentem valores baixos.

Nas entrevistas realizadas com os moradores do Pêga, vimos que também há o desconhecimento sobre a titulação. Grande parte dos entrevistados acredita ser importante que as terras sejam tituladas no nome da comunidade, mas não conse-guem relatar quais mudanças poderiam advir dessa titulação e tampouco sabem como ocorre o processo. Os moradores entre-vistados no Pêga apresentaram menos argumentos no sentido do reforço da importância de ter a terra garantida para as futuras gerações. Destacamos o depoimento de Dona Maria (76 anos) que nos revela elementos para compreendermos como ela vê a política. O relato expressa o que os moradores afirmaram sobre a importância da terra para as futuras gerações, persistindo a dúvida com relação às melhorias para a comunidade:

A terra de papai tá lá, o pai dele morreu e deixou pra ele, ele dizia toda vida, também não vendo, deixo “pra” meus filhos e quando ele morrer fica “pra” nós e “pra” meus filhos. Não sei o que pode mudar com essa titulação, mas a coisa sendo garantida nossa é melhor, pode ser que venha mais coisa boa pra gente. Ave maria eu adoro o Pêga, se eu tiver na rua pode ser a hora que for eu venho pra casa, aqui é bom demais (Relato colhido durante a pesquisa de campo realizada em outubro de 2013).

Dona Amália também participa das reuniões representando a comunidade Pêga frente ao INCRA, e quando perguntei sobre a titulação ela afirmou:

Eu acredito que seja boa a titulação, mas já faz muito tempo que eu vou pra reunião e reunião e as melhorias pra comunidade não chegam. Falam de muita coisa que pode vir e melhorar nossa vida, mas fica tudo na promessa. Me chamaram pra mais uma reunião mas eu não vou mais. Se tiver de acontecer essa titulação tudo bem e se for pra ser bom que venha (Relato colhido durante a pesquisa de campo em novembro de 2013).

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Alguns moradores se negaram a dialogar, outros limita-ram-se a responder que acham a titulação importante, mas não sabem os motivos. E com base na grande quantidade de respostas dessa natureza, consideramos que há pouca articulação entre os moradores de ambas comunidades em prol do andamento de seu processo no INCRA, o que enfraquece a visibilidade dessas comunidades.

Segundo o antropólogo do INCRA, a organização das comu-nidades e sua participação nas ações relacionadas ao processo de titulação através de seus representantes contribui para que elas adquiram visibilidade frente ao Estado. No entanto, o andamento dos processos não tem essa influência como uma determinante para serem tituladas. Fatores como a falta de recursos para a contratação de pessoas especializadas para o mapeamento e realização dos relatórios antropológicos das comunidades é o principal determinante para explicar o estancamento do processo do Pêga e Arrojado, segundo o entrevistado. A participação dessas comunidades é importante, até mesmo pelo fato de que após todo o andamento da burocracia política, a titulação só ocorre se a comunidade entrar em consenso e aceitá-la.

Outra questão que merece ser destacada e que descobri-mos a partir das pesquisas de campo junto ao INCRA é que as comunidades pesquisadas não estão localizadas em áreas de conflito por terras, ou seja, não existem confrontos entre pro-prietários e os quilombolas. Isso agregado ao fato de todos os moradores terem a propriedade de suas terras assegurada, não ocasiona tensões relacionadas a disputas por terras e segundo o antropólogo do INCRA, esses fatores não compõem um quadro urgente de necessidade da titulação, sendo um agravante para o estancamento dos processos. Acrescente-se a isso o fato de não haver prazo para a finalização de processos abertos, o que acaba contribuindo para a inércia da ação do Estado em relação aos direitos dos grupos quilombolas. Segundo Barbosa:

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Na prática, o reconhecimento e a garantia dos direitos étnicos/culturais e territoriais de povos e comunidades tradicionais, de forma geral, ainda pouco se concretizam especialmente pelo fato do reconhecimento dessas territorialidades implicar em uma política (de reforma) agrária que efetive o reconhecimento por meio da regularização fundiária, ou seja, implica em uma política de desmercantilização e de bloqueio do mercado de terras (BARBOSA, 2013, p. 09).

As comunidades em foco já haviam sido reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares desde 2007, no entanto, seu processo só foi aberto no INCRA em 2011. Essa abertura somente ocorreu para que uma maior quantidade de recursos financeiros a serem utilizados para reconhecimento e continuidade dos pro-cessos fosse disponibilizada ao INCRA-RN, visto que o aumento da quantidade de recursos financeiros ocorre concomitante ao aumento de comunidades com processos abertos. Não tivemos conhecimento do valor desses recursos, o fato é que mesmo havendo a abertura de capital para a avaliação das comunidades no estado e para a continuidade das etapas de seus processos, os processos das comunidades pesquisadas não apresentaram avanço algum. Também não nos foi informado em quais ações esses recursos foram aplicados, embora outras comunidades do estado como a Jatobá e Boa Vista dos Negros tenham avançado.

Os fatores citados dificultam o andamento dos processos das comunidades Pêga e Arrojado. Estes, ligados ao baixo nível de articulação das comunidades, respondem pelo quadro atual dos processos das comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte. Devemos destacar que o baixo nível de organização, possivelmente ocorra pelo desconhecimento dos direitos que lhes são destinados por serem reconhecidas enquanto quilombolas, termo que eles não sabem explicar. Por saberem que a terra dei-xará de ser propriedade individual para ser propriedade coletiva, acreditamos que esses territórios, uma vez que forem titulados, poderão se tornar cada vez mais campo de atuação do poder do Estado e menos de atuação dos quilombolas.

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Através dos discursos dos sujeitos entrevistados, a titulação das terras constitui um interesse mais direto do poder público municipal justificado quase exclusivamente pela aquisição de verbas para a aplicação na melhoria das condições das comunida-des. O interesse pela efetivação da política de titulação de terras é irrisório na fala dos sujeitos quilombolas, fato que expressa o desconhecimento da política, bem como de seus direitos, o que também é reflexo da falta de incentivo e resgate de suas origens, o que possivelmente garantiria o reconhecimento mais forte dessa identidade étnica, além de demonstrar as fragilidades dos membros que estão à frente desse processo representando as comunidades.

Considerações finaisA discussão desenvolvida nesse trabalho configura-se

como mais uma tentativa de se avançar na compreensão da questão do direito à titulação coletiva das terras de remanescen-tes quilombolas. Acreditamos ter apresentado reflexões para o aprofundamento de pesquisas futuras, sobretudo no sentido de destacar a importância do diálogo com os dois lados do processo: grupos quilombolas e o Estado por meio de seus representantes.

Após os contatos estabelecidos com os sujeitos envolvidos no campo de estudo, pudemos perceber que limitar-se ao discurso hegemônico, bem como somente ao dos quilombolas, não permite entender as contradições existentes em seus discursos, bem como identificar os entraves na efetivação das políticas públicas dire-cionadas aos grupos remanescentes. Tendo como meta principal investigar a forma como os moradores do Pêga e Arrojado estão organizados em favor do direito à titulação das terras, acreditá-vamos que iríamos ouvir pessoas bem articuladas e discursos que esboçassem a mobilização dos moradores em favor desse direito, no entanto, encontramos em campo, comunidades carentes de serviços básicos, com jovens e adultos apresentando baixo grau de escolaridade e mínima consciência de seus direitos. O baixo

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nível de conscientização e a ausência de conhecimento sobre a força política que articula o movimento quilombola de modo geral, desperta um questionamento que sem dúvida abre espaço para novas discussões: Como exigir desses grupos a conscientização e mobilização com base em uma condição que até pouco tempo atrás eles não tinham conhecimento?

Atribuímos a ausência de interesse pela titulação das terras expressa por alguns moradores entrevistados como uma possível forma de defesa que expressa o valor simbólico que as terras têm, ao passo em que foram adquiridas através de herança. De algum modo isso nos soa como uma representação de poder nesses territórios, em que os quilombolas podem se posicionar contra a ação do Estado no sentido da titulação das terras, em razão seja de um interesse material, de venda da terra; ou simbólico, de seu valor parental.

Com isso não pretendemos negar ou colocar à prova o direito que as comunidades têm; principalmente se conside-rarmos que muitas vivem em terras não legalizadas sujeitas a inúmeros conflitos. Consideramos que o ganho de visibilidade da causa quilombola é o primeiro passo para que esses grupos sejam pensados e ressarcidos de seus direitos, que não se limitam ao acesso à terra titulada, mas devem ser garantidos não pela condição étnica desses grupos, mas, sobretudo, pelas questões de cidadania que os envolvem.

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Pobreza e desigualdades socioterritoriais no município

de Pau dos Ferros/RN: estudo de caso a partir do

Bairro Manoel Deodato

Francisca Elizonete de Souza Lima “É nas capilaridades dos ter-ritórios que desvendamos as

problemáticas sociais. E, é com a interpretação do território

que encontramos a chave para a resolução dessas problemáticas”

(Dirce Koga).

Introdução

A discussão aqui proposta objetiva empiricizar aportes teóricos estudados no sentido de compreender o processo de territo-rialização da pobreza e das desigualdades socioterritoriais no município de Pau dos Ferros no Rio Grande do Norte. Para tanto, embasamo-nos na pesquisa em campo que agrega dados, imagens e entrevistas com os gestores responsáveis pelas políticas sociais no município, bem como com alguns moradores do Bairro Manoel Deodato que configura o foco da caracterização e análise dos processos acima citados.

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Pobreza e desigualdades socioterritoriais no município de Pau dos Ferros/RN

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Nesse intento, o trabalho está dividido em duas partes. Na primeira trabalhamos algumas dimensões da pobreza na escala municipal a partir dos dados do CadÚnico para o município de Pau dos Ferros - RN. Em seguida apresentamos a distribuição das famílias pelo número de habitantes por domicílio e dos ren-dimentos dos chefes de família com base em mapas produzidos com dados do censo do IBGE (2010)1.

Na segunda parte desenvolvemos uma discussão sobre o Bairro Manoel Deodato, considerado uma das áreas mais pobres e vulneráveis do município de Pau dos Ferros2. Por isso, adentra-mos na escala do intra-urbano a partir da seleção de uma área que apresenta as principais características da pobreza em sua multidimensionalidade3. Buscamos nas conclusões, coadunar as reflexões teóricas levantadas com o trabalho de campo, conside-rando sobretudo a necessidade de continuação do estudo acerca da pobreza e das políticas públicas materializadas nos territórios com vistas na sua amenização.

1 Utilizamos os mapas objetivando conhecer e representar o município no sentido de não absolutizar alguns espaços e comprovar a nossa hipótese inicial de que o Bairro Manoel Deodato se configura como um dos mais pobres e vulneráveis no município.

2 O bairro apresenta a pobreza na perspectiva multidimensional conforme constatações a partir dos trabalhos em campo e pela análise dos mapas da exclusão social elaborados a partir de dados do IBGE.

3 Entendemos por pobreza numa perspectiva multidimensional aquela que se reflete sob múltiplos aspectos, ou seja, sobre as óticas econômica, política, cultural e social. Como destaca Silva (2009) “trata-se de uma dimensão essencialmente social, senão, política da pobreza. Isso porque as condições de vida não se restringem exclusivamente aos aspectos materiais como moradia, alimentação e renda. Elas incluem as relações sociais, acesso ao trabalho, assistência médica, entre outras dimensões” (SILVA, 2009, p 55).

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Reflexões a partir do cadúnico e dos dados do censo do IBGE (2010)

Mapa 1 ‒ Localização do município de Pau dos Ferros/RN

FONTE: IBGE.

Concordamos da discussão de que a pobreza deve ser refletida a partir do aspecto multidimensional4. Acreditamos que o território é revelador deste fenômeno como também das potencialidades para o seu enfrentamento. Assim, nesta seção nos propomos refletir acerca do fenômeno da pobreza no município de Pau dos Ferros/RN, com base no trabalho de campo, entrevistas realizadas com os gestores e responsáveis pela territorialização

4 Sobre essa discussão ver: Demo (2003), Sen (2000), Silva (2009)

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Pobreza e desigualdades socioterritoriais no município de Pau dos Ferros/RN

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das políticas sociais no município, além de alguns habitantes e beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF)5.

O município em estudo foi criado enquanto distrito em 1759, elevado à categoria de município em 1857 e sua sede, considerada cidade em dois de Dezembro de 1924. O município está localizado no sertão nordestino, no semiárido potiguar. Teve seu desenvolvimento ligado a atividade pecuária (IBGE, 2010). Assim, desde a sua formação, o município exerce uma influência econômica para aqueles que “transitam seu espaço, seja através da oportunidade da compra e venda de produtos de subsistência ou através da comercialização do gado” (FERNANDES; FERREIRA, 2012, p.61).

O município de Pau dos Ferros agrega um contingente populacional de 27.745 habitantes, sendo que deste contingente apenas 2.194 residem na área rural e 25.551 na área urbana. O IDHM6 está na faixa de 0,678 considerado médio e o PIB de R$ 8.598.08 segundo dados do IBGE (2010). O município tem sua sede como centro regional da mesorregião do Alto Oeste Potiguar por ofertar um número expressivo de serviços.

Percebe-se que Pau dos Ferros exerce uma hierarquia sig-nificativa com uma área de influência que abrange cerca de 50 municípios, sendo 39 do RN e os demais dos estados fronteiriços: Paraíba e Ceará. A influência exercida por essa cidade se dá por inúmeros fatores dentre os quais, ganha destaque a sua localização às margens de duas Rodovias Federais (BRs 405 e 226). Além disso, se encontra distante dos centros maiores como Mossoró e Natal e, no seu entorno, nenhuma cidade possui crescimento econômico de grande destaque como a cidade do município em estudo (DANTAS; CLEMENTINO, 2013).

5 Programa do Governo Federal voltado para a minimização da pobreza e pobreza extrema no país. A respeito do PBF ler “Vozes do Bolsa Família” de Rego e Pinzani (2013).

6 Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.

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Notamos ainda que a cidade de Pau dos Ferros apresenta uma dinâmica semelhante a de uma cidade média7, especial-mente devido a sua área de influência8. Embora seja uma cidade que agregue um número significativo de serviços, tornando esta, um centro regional, Pau dos Ferros ainda é marcada pela concentração da pobreza em algumas áreas. A pobreza aí verifi-cada, se territorializou à medida que o município foi ganhando destaque econômico em detrimento do social, pois no trabalho de campo verificamos áreas em que o poder público quase não atua, a exemplo, do Bairro Manoel Deodato e o Alto São Geraldo faltando à população ali residente, o mínimo de infraestrutura.

Assim, verificamos que o aumento populacional e o cres-cimento econômico não acompanhados pelo desenvolvimento de políticas públicas sociais, têm acarretado problemas de ordem diversa como a segregação espacial9, a concentração de pobreza em determinadas áreas da cidade, a violência, o desemprego e demais fatores que juntos configuram pobreza multidimensional, ou seja, que se dá mediante vários aspectos e não somente devido a falta de renda. Bezerra e Lima (2011) vêm contribuir com essa

7 No Brasil o debate acerca das cidades médias surge a partir dos anos 1970. Alguns a definem a partir da população aí residente sendo considerada cidade média aquelas com 100 a 500 habitantes (IBGE). Já alguns autores (como SPOSITO, 2004, p. 338) definem a cidade média a partir de alguns papeis que ela desempenha. “as cidades médias podem em princípio ser definidas por: a) sua situação geográfica em relação a outras cidades de mesmo porte; b) sua distância maior ou menor das cidades de maior porte; c) números de cidades pequenas que estão em sua área de influência [...]”. Neste sentido, consideramos a dinâmica da cidade de Pau dos Ferros semelhante a dinâmica de uma cidade média devido especialmente alguns papeis que ela desempenha como caracterizado acima.

8 Para compreender a influência exercida por Pau dos Ferros nas cidades do seu entorno ler: Dantas e Clementino (2013).

9 Sobre esse tema em pequenas cidades ver Roma (2009). Vale lembrar que no município verificamos a segregação, mas as distâncias físicas entre ricos e pobres são pequenas devido a própria dimensão do município.

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Pobreza e desigualdades socioterritoriais no município de Pau dos Ferros/RN

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reflexão, diagnosticando esse processo na mesorregião do Alto Oeste Potiguar, colocando que:

[...] o processo de produção sócio-territorial das cidades na região se deu em meio ao crescimento da população, que foi se concentrando em seus perímetros urbanos. O aumento do número populacional não sendo acompanhado de um respectivo aumento nas políticas públicas, também trouxe para estes espaços, alguns dos chamados problemas urbanos, dos quais podemos mencionar a insuficiência de uma infraestrutura básica, como calçamentos, ou sistema de abastecimento de água e coleta de lixo; a ocupação de áreas de risco; insuficiência nos serviços de educação, saúde e segurança; falta de emprego, além da violência, marginalização ou exclusão. Neste contexto, torna-se possível observar o surgimento de alguns espaços segregados frente a outras áreas dessas cidades (BEZERRA; LIMA, 2011, p. 47).

Sobre o tema da segregação citados pelos autores, vale ressaltar que a pobreza no município convive lado a lado com a riqueza, como veremos no decorrer do trabalho, pois como se trata de um município pequeno, não há grande segregação espacial, pois a distância “física” entre essas classes não é tão grande como comumente ocorre nas grandes cidades devido a própria dimensão do município.

Dados do Cadastro Único (CadÚnico) em Pau dos Ferros/RN: reflexões a partir de algumas dimensões da pobreza

O município de Pau dos Ferros, como posto anteriormente agrega números significativos de crescimento econômico, mas também apresenta uma realidade social ainda injusta com alguns espaços segregados marcados pela pobreza e outros detentores de boa infraestrutura e concentração de riqueza onde reside a classe social mais abastada.

Com vistas a discussão ora posta, buscaremos, para este momento, refletir a partir de dados do CadÚnico sobre as

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condições de vida (habitação, renda, educação, infraestrutura, saneamento básico) da população menos abastada do município, ou seja, aquelas que estão cadastradas no CadÚnico. Pontuaremos essa reflexão também com a produção dos mapas de renda (uma das dimensões da pobreza) e habitantes por domicílio a partir dos dados do censo do IBGE (2010).

O CadÚnico, considerado como um censo da população mais pobre por agregar informações de ordem diversas a respeito das condições sociais e econômicas das famílias cadastradas, foi criado em 2001, objetivando o cadastramento e a manutenção das informações atualizadas das famílias com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa e/ou com renda mensal total de até três salários mínimos, sendo possível a sua utilização pelas três esferas de Governo buscando assim, “identificar potenciais beneficiários para os programas sociais, proporcionar melhor focalização e evitar a sobreposição de programas para uma mesma família” (BARROS, CARVALHO e MENDONÇA, 2008, p.03).

Dessa forma, o CadÚnico permite conhecer a realidade social e econômica das famílias, dos seus domicílios e do acesso que estas possuem aos serviços públicos. É coordenado pelo MDS10, onde os dados precisam sempre estar atualizados, possibilitando localizar possíveis beneficiários e famílias em vulnerabilidades. Desse modo, o CadÚnico ainda se vincula como um ganho social, na medida em que aproxima os sujeitos de alguns dos seus direitos como depreende o coordenador do CadÚnico de Pau dos Ferros:

Considero o CadÚnico como a voz dos pobres sobre suas condi-ções sociais e econômicas, pois esta ferramenta é construída a partir de dados alto declarativos, ou seja, a família é quem diz todos os elementos que constitui suas condições socioeconô-micas e é no município que o cadastro é feito. É bem verdade que enfrentamos problemas sobre essas alto- declarações, pois têm famílias que declaram uma renda mínima para continuar recebendo algum benefício, já outras declaram uma renda mais alta, pois sentem vergonha quando estão declarando seus

10 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

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dados aos técnicos que aqui trabalham. (Trabalho de campo, 2013, fala do Coordenador do CadÚnico de Pau dos Ferros).

Percebemos a importância do CadÚnico no levantamento de informações sobre as famílias para fazer chegar até elas as políticas públicas. Porém, é preciso levar em conta as informações repassadas pelo indivíduo. Para tanto, é preciso o diagnóstico prévio sobre as condições de vida das famílias cadastradas para então fazer valer a importância dessa ferramenta considerada uma das mais importantes fontes de informação da população pobre.

Para o Coordenador entrevistado, é preciso ampliar a fiscalização, pois existem famílias em vulnerabilidades fora do cadastro, enquanto outras, com boas condições financeiras continuam cadastradas e recebendo algum benefício do Governo (como o Bolsa Família) ocupando a vaga de quem realmente necessita (esse dado foi comungado também pelas Assistentes Sociais entrevistadas).

Ainda sobre a importância do CadÚnico, Barros, Carvalho e Mendonça (2008) sinalizam que uma das suas principais fun-ções é a diagnóstica, pois através dela podemos visualizar e compreender as diferentes dimensões da pobreza em que se encontram as famílias, seja pelo nível educacional, pelo total de dependentes ou condições de moradia, dentre outros. Neste sentido, a importância se amplia, pois só com a utilização de um único cadastro é possível conduzir à família o acesso simultâneo a diversos programas e oportunidades que ela necessita para superar a pobreza (BARROS, CARVALHO e MENDONÇA, 2008).

De acordo com os dados do CadÚnico em Março de 2013, estavam cadastradas no município 6.323 famílias, sendo que 5.509 famílias residem na zona Urbana e apenas 714 na zona rural. O total de famílias cadastradas corresponde a 18.560 pessoas, ou seja, mais da metade da população residente em Pau dos Ferros está cadastrada no CadÚnico, o que significa dizer que essa população sobrevive na faixa de renda que vai de 0 a

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3 salários mínimos. A tabela 11 apresenta a faixa de renda das famílias cadastradas:

Tabela 1 ‒ Faixa de renda das famílias cadastradas no CadÚnico em Pau dos Ferros/RN, (2013)

ATÉ 1 S.MENTRE 1 E 2/S.M

ENTRE 2 E 3 S.M

ACIMA DE 3 S.M

TOTAL

5.560 640 88 15 6.323

FONTE: TABCAD/MDS (2013). Elaboração dos autores.

De acordo com a tabela 1, mais de 80% das famílias cadas-tradas sobrevivem com até um salário mínimo e um grande número dessas famílias, de acordo com a Secretária de Assistência Social do município, possui como única fonte de renda o benefício do BPC11 e/ou do PBF. Na faixa que vai entre um e dois salários mínimos, estão cadastradas 640 famílias, correspondendo a pouco mais de 10% destas. Entre dois e três salários mínimos apenas 88 famílias estão nesta faixa de renda, representando quase 1,5% dos cadastrados. Já acima de três salários mínimos são apenas 15 famílias.

Nestas perspectivas, a maioria das famílias cadastradas no CadÚnico de Pau dos Ferros (88%) está numa faixa de renda que a depender da composição familiar, os caracteriza como famílias pobres e extremamente pobres, diagnosticando assim, que no município a pobreza e desigualdade de renda ainda são acentuadas, pois de uma quantidade de 6.323 famílias apenas 15 sobrevivem com mais de 3 salários mínimos enquanto 5.560 com até um salário mínimo. Mais uma vez chamamos atenção

11 De acordo com o MDS, O BPC (Benefício de Prestação Continuada) é um benefício da Política de Assistência social que assegura a transferência mensal de um salário mínimo aos idosos a partir de 65 anos e a pessoas com deficiência física ou mental.

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para importância do acréscimo na renda que pode advir de pro-gramas sociais e possibilitam às famílias suprirem problemas mais emergenciais. A fala de D. Magda, beneficiária do Programa Bolsa Família auxilia-nos a este entendimento:

Eu sou separada e tenho quatro crianças, uma já é uma moça tem 15 anos. A renda fixa (né assim que fala?) que eu tenho é a do Bolsa e nos fins de semana eu vendo cheiro-verde na feira com meus meninos. Isso me ajuda a comprar mais coisas para dentro de casa, mas garanto que falta muito, pois eu não consigo comprar remédio quando os meninos adoecem e tenho que pedir no posto que as vezes num tem, não consigo comprar roupa nova para eles (eles vestem muitas roupas que eu recebo das vizinhas). O pior né isso, o pior é quando falta comida mesmo sabe, as vezes vejo eles comendo só o arroz e o feijão e isso maltrata muito a gente que é mãe e quer dar tudo de melhor pros nossos filhos (Trabalho de campo, 2013, fala de D. Magda beneficiária do PBF).

O discurso de D. Magda mostra a importância da renda no contexto familiar. Como visto, no município em estudo, existe um número acentuado de famílias vivendo com até um salário mínimo, muitas dessas recebem menos que isso, a exemplo da família de D. Magda que acaba passando privações diversas, não conseguindo muitas vezes suprir suas necessidades básicas. Mas, além da falta de renda, outras dimensões precisam ser conside-radas, como a falta de acesso a serviços públicos de qualidade, moradias precárias, dentre outros como veremos.

No que concerne à questão do domicílio, infraestrutura e saneamento básico onde residem essas famílias, diagnosticamos que 95% dessas possuem banheiro em suas residências e apenas 5% não possuem. Com relação à água canalizada, quase 93% dos cadastrados possuem em seus domicílios. No que tange ao serviço de energia elétrica, 99% da população tem acesso. Já no que se refere ao escoamento sanitário ainda observamos que muitas das residências utilizam fossa rudimentar ou vala a céu aberto o que acarreta uma série de doenças e contaminação ao meio ambiente.

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Esse quadro é resultado também da ineficiência do poder público em investir em infraestrutura e saneamento básico nas localidades mais pobres. Neste sentido, verificamos que quanto mais precária for a moradia, quanto menos infraestrutura e saneamento a família tiver acesso, mais vulnerável e pobre ela se torna.

Outra dimensão que decidimos analisar, mesmo que de forma pontual, foi a dimensão da educação a partir do nível de escolaridade da família, pois “o insucesso na trajetória escolar pode acarretar também menor acesso a direitos básicos, acabando por produzir o ciclo de pobreza da geração anterior” (CRAVEIRO; XIMENES, 2013, p. 110). Isso vem comungar com nossas análises anteriores de que o acesso a educação permite maiores conquis-tas sociais e, portanto, maiores possibilidades de superação da pobreza. Vejamos a tabela 13:

Tabela 2 ‒ Grau de instrução das pessoas cadastradas no CadÚnico. Pau dos Ferros/RN, (2013)

SEM INS-TRU-ÇÃO

FUND. INCOM-PLETO

FUND. COM-

PLETO

MÉDIO INCOM-PLETO

MÉDIO COM-

PLETO

SUPE-RIOR

INCOM-PLETO

OU MAIS

SEM RES-

POSTA.TOTAL

4.747 7.107 1.401 1.224 1.606 318 2.157 18.560

FONTE: TABCAD/MDS (2013). Elaboração dos autores.

Analisando a tabela 2, podemos perceber que 25% das pessoas cadastradas no CadÚnico não possuem nenhum grau de instrução. 31% possuem o Fundamental Incompleto. Cerca de 10% possuem o Ensino Médio completo e apenas 2,1% estão no Ensino Superior (cursando ou já concluído). Ainda verificamos que a baixa escolaridade é acentuada nas famílias pobres e extremamente pobres. Embora, tenham acontecido avanços na última década no que tange a inserção de pessoas com baixo poder aquisitivo

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nas Universidades e Faculdades do país como diagnosticado em Craveiro e Ximenes (2013), esse acesso ainda é pequeno no município em estudo.

Além disso, o número de pessoas sem instrução e com o Ensino Fundamental incompleto é muito alto, assim, “ao mesmo tempo em que, recentemente, quase se conseguiu universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental, ainda se está dis-tante de se alcançar a universalização da conclusão do ensino fundamental na idade correta, ou pelo menos próxima a esta” (CRAVEIRO; XIMENES, 2013, p. 116), o que denota uma baixa participação da população pobre nos ambientes escolares e a dificuldade de avançar na educação por parte dessa população, constituindo mecanismo fundamental para a perpetuação de uma sociedade alienada e com pouca autonomia.

Neste sentido, compreendemos que para romper com o ciclo da pobreza é necessário prover o acesso à educação, mas é preciso que este acesso seja acompanhado de uma educação de qualidade pautada nas conquistas sociais e concretizada a partir da implementação de políticas públicas nas áreas mais vulneráveis onde se concentram as populações mais pobres. É necessário, melhorar as estruturas físicas das escolas, valorizar os profissionais da educação, bem como os alunos, criar espaços no âmbito das escolas que favoreçam uma aprendizagem mais significativa e que acima de tudo, construa cidadãos críticos/reflexivos possibilitando a estes, oportunidades de transformar suas vidas marcadas pelos processos resultantes da pobreza.

Com vistas à discussão aqui proposta, percebemos que a pobreza em Pau dos Ferros se dá mediante múltiplos fatores. De um lado, pesam as condições financeiras e habitacionais das famílias, do outro, o nível de escolaridade que, por ser ínfimo na maioria das famílias cadastradas, contribui para que estas

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continuem invisíveis ao sistema político e a sociedade como um todo.

E finalmente, é preciso uma junção de políticas de caráter emancipatório, que busquem melhorar as condições de vida e de habitação das famílias mais vulneráveis, fortalecendo seus vínculos e disponibilizando serviços e oportunidades para a construção de sua autonomia baseado na dinâmica territorial onde estão inseridas essas famílias.

Pobreza e desigualdades socioterritoriais em Pau dos Ferros/RN: uma contextualização a partir de alguns dados do censo do IBGE (2010)

Propomos neste momento, trabalhar com alguns dados do censo do IBGE (2010), problematizados e expressos em mapas que espacializam a pobreza e riqueza no município, atentando para variáveis como habitantes por domicílio e o rendimento dos chefes de família.

Os mapas mostram uma divisão do município por setores censitários12. Como os bairros em Pau dos Ferros não são legali-zados, mas apenas as ruas, fizemos a decodificação dos setores censitários13 do IBGE com base em um documento disponibilizado pela prefeitura e sinopse dos setores censitários. Vejamos os mapas a seguir.

12 A metodologia para a produção dos mapas foi caracterizada pelos pesquisadores do Centro de Estudos e Mapeamento da Exclusão Social para Políticas Públicas - CEMESPP.

13 Decodificamos os setores através do link: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopseporsetores/>.

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Mapa 2 ‒ Habitantes por domicílio.Pau dos Ferros-RN, 2010

FONTE: IBGE, 2010.

Podemos averiguar que os setores mais extensos corres-pondem à zona rural do município, já os aglomerados mais ao centro referem-se ao perímetro urbano. Assim, os setores em que há maior número de habitantes por domicílio, ou seja, de 3 a 4 habitantes são as áreas em vermelho no mapa.

Correspondem a essas áreas: a parte leste da zona rural do município; uma pequena parte do Bairro João XXIII (ao norte do mapa); Parte do Bairro Riacho do Meio, do Paraíso e a Rua 25 de Março (Bairro Centro) na saída para o Encanto (setor mais ao leste do mapa); maior parte do Bairro Manoel Deodato e final do Bairro Princesinha.

No que se refere à zona rural do município que apresenta um elevado número de habitantes por domicílio vale lembrar

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que esta, apresenta um pequeno número de habitantes e poucas residências, algo característico das áreas rurais dos municípios do Alto Oeste Potiguar.

Ao analisar os bairros, alguns apresentam um número expressivo de habitantes por domicílio, a exemplo desses está o Manoel Deodato. Essa é uma característica também das áreas mais pobres, pois uma das dimensões da pobreza é o número expressivo de indivíduos na família que causa maior dependência e maiores custos. Muito embora, a taxa de fecundidade nas famílias pobres e extremamente pobres tenha caído significativamente na última década, ainda percebemos que estas são numerosas.

Compreendemos que muito precisa ser feito no campo das políticas públicas com vistas a minimização da pobreza e da desigualdade. Para tanto, estas precisam ser elaboradas considerando a conjuntura territorial, não podendo ser apenas institucionais, pois é a dinâmica territorial que revela todas as faces da desigualdade e da pobreza o que leva a crer que o território deve ser o chão das políticas sociais, o ponto de partida para se implementar ações.

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Mapa 3 ‒ Chefes de família com rendimento até 2 salários mínimos. Pau dos Ferros/RN, 2010

FONTE: IBGE, 2010.

Analisando o mapa podemos verificar que as áreas em vermelho onde estão localizados os maiores quantitativos de chefes de famílias nessa faixa de renda correspondem aos Bairros Riacho do meio, parte do Bairro Paraíso, do Bairro Centro (parte da Rua 13 de Maio), parte do Bairro Alto do açude (estes estão representados nos setores em vermelho na parte leste do mapa). Já os setores em vermelho a oeste correspondem aos Bairros Princesinha do Oeste (final desse bairro para o início do Manoel Deodato), parte do Bairro Manoel Deodato e parte do Bairro São Benedito (próximo ao Bairro Manoel Deodato).

As distâncias físicas entre os bairros não são tão extensas, nota-se que as ruas dos Bairros São Benedito e Princesinha do Oeste, (bairros onde reside boa parte da classe média alta do

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município) que se aproximam do Bairro Manoel Deodato possuem características similares à maioria das ruas desse bairro. Assim no município o total de chefes de família com rendimentos de até dois salários mínimos é de 5.867. E a amplitude total nessa faixa de renda nos setores que apresentam o maior percentual de chefes varia entre 4,07 a 4,91 caracterizados por 6 setores.

As áreas onde há menor percentual de chefes de família nesta faixa de renda são as representadas na cor mais clara do mapa; a parte mais clara ao leste do município corresponde a zona rural. Já a parte ao sul corresponde ao final do Bairro Princesinha do Oeste, contornando a Universidade do Estado e finalizando na estrada para o município de Água Nova. A parte mais clara no centro do mapa corresponde aos Bairros São Benedito, São Judas Tadeu, COHAB e Centro da cidade. A parte clara ao Norte do município, corresponde ao Bairro João XXIII. Enfim, a parte clara a leste do município corresponde à zona rural, denominada de Perímetro Irrigado. Assim a amplitude total nessa faixa varia de 0,46 a 2,84 caracterizados por 14 setores.

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Mapa 4 ‒ Chefes de família sem rendimento. Pau dos Ferros/RN, 2010

FONTE: IBGE, 2010.

De acordo com o mapa 4, são 755 chefes de família sem rendimento. Quatro setores abrangem o maior percentual de chefes sem rendimento e a amplitude total nessa faixa varia de 5,44 a 9,14. Os setores em vermelho na parte oeste do município correspondem aos Bairros Riacho do Meio, parte do Bairro Centro próximo ao Bairro Riacho do meio. Enquanto os setores em vermelho a leste do município correspondem a maior parte do Bairro Manoel Deodato e o final do Bairro Princesinha do Oeste.

Evidencia-se de acordo com os mapas e os dados já apresen-tados, que o Bairro Manoel Deodato é de fato um dos mais pobres do município em estudo, haja visto, esse bairro abriga também um número expressivo de chefes de família sem rendimento. Lembramos que o fator renda não diagnostica por si só a situação de pobreza de uma família. No entanto, a falta de renda gera

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certas vulnerabilidades que condiciona (juntamente com outras dimensões) uma vida marcada por privações, portanto, pobre.

Outras partes do município também apresentam um número significativo de chefes de família sem rendimento, numa amplitude total de 3, 59 a 5, 44 chefes. Estão nessa faixa os setores na cor laranja no mapa. Corresponde a esses setores na faixa a leste do município, uma parte da zona rural. No perímetro urbano na parte sul do município estão os Bairros Princesinha do Oeste e São Benedito e parte do Bairro Manoel Deodato.

Quanto aos setores que apresentam o menor percentual de chefes de família sem rendimento, representando uma amplitude de 0,26 a 2,39 caracterizados por 17 setores correspondem as áreas a oeste do município a zona rural no cruzamento do Riacho do Meio com a Br 405; na parte mais ao sul do município corres-ponde ao final do Bairro Princesinha do Oeste, contornando a Universidade na estrada para o município de Água Nova.

Na área onde há maior aglomeração de setores censitários nessa faixa de amplitude, o lado ao sul do perímetro urbano corresponde as partes dos Bairros Princesinha do Oeste, São Benedito e final do Bairro São Judas Tadeu cruzando com a estrada para a ASSEC14. A parte mais ao centro do município corresponde aos Bairros Alto do açude, São Judas Tadeu e Centro. O lado a oeste do perímetro urbano estão os Bairros São Geraldo e São Benedito. Enfim, os setores mais ao norte do perímetro urbano correspondem aos Bairros João XXIII, Domingues Gameleira, Paraíso e uma pequena parte do Bairro Riacho do Meio.

14 Associação dos Servidores da CAERN.

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Mapa 5 ‒ Chefes de família com rendimento superior a 20 salários mínimos. Pau dos Ferros/RN, 2010

FONTE: IBGE, 2010.

Analisando o mapa acima, podemos perceber que em alguns setores há um aglomerado de chefes de família com rendimento superior a 20 salários mínimos. Na zona rural do município não se encontra nenhum chefe de família nesta faixa de renda. Denota-se que estes chefes se encontram no perímetro urbano, correspondendo a um total de 26; sendo exato quatorze setores que abrangem chefes de família com este nível de renda e os setores que apresentam um maior percentual são no total sete, obedecendo uma amplitude total de 7,69 a 11,54 chefes de família.

Decodificando os setores podemos diagnosticar os bairros em que residem tais chefes neste extrato de renda. Seriam: na parte oeste do perímetro urbano o início do Bairro Riacho do meio cruzando como a Rua 13 de Maio (Bairro Centro); na parte mais ao sul está o final do Bairro São Judas Tadeu cruzando com a estrada para a ASSEC; mais ao leste, uma pequena parte do

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Bairro Manoel Deodato no cruzamento com o Bairro Princesinha do Oeste; grande parte do Bairro Princesinha do Oeste; mais ao centro do perímetro urbano está parte do Bairro São Judas Tadeu; parte do Bairro Conjunto Marechal Dutra (COHAB); Bairro São Benedito e parte do Bairro Centro.

A maioria dos bairros em Pau dos Ferros não apresenta nenhum chefe de família com rendimento superior a 20 salários mínimos (correspondendo a um total de 19 setores censitários) sendo eles, na faixa mais ao leste do perímetro urbano, parte do Bairro Domingues Gameleira; início do Bairro Riacho do Meio; pequena parte do Bairro Centro; na faixa mais ao sul, final do Bairro Princesinha do Oeste, contornando a UERN, e passando pela estrada que vai para o município de Água Nova; na faixa mais a Oeste estão os Bairros Manoel Deodato, parte do Bairro São Benedito, parte do Bairro São Geraldo, parte do Bairro João XXIII; e por fim, o setor mais ao centro do mapa, corresponde ao Bairro paraíso.

Dessa forma, analisando essas informações e nas visitas in loco, alguns bairros onde estão localizados número considerável de chefes de família com rendimento superior a 20 salários mínimos, são dotados de boa infraestrutura. Em relação a alguns bairros onde estão um número considerável de chefes de família sem rendimento, apresentam problemas quanto a infraestrutura, saneamento básico e a ineficiência de alguns serviços públicos como iluminação e coleta de lixo.

Por fim, de acordo com os mapas acima da exclusão social, produzidos a partir do censo do IBGE (2010), verificamos que a pobreza em Pau dos Ferros convive lado a lado com a riqueza; isso se justifica especialmente por se tratar de um município com pequena extensão territorial e número de habitantes. Mas também verificamos áreas em que há concentração de pobreza a exemplo do Bairro Manoel Deodato onde se localiza um número expressivo de chefes de família sem rendimentos, e outras áreas em que há uma concentração maior de chefes de família com

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rendimento superior a 20 salários mínimos como, por exemplo, o Bairro São Judas Tadeu, Princesinha do Oeste, dentre outros.

Em suma pelo quantitativo da renda e também pela visu-alização de outras dimensões, em visita a campo conseguimos confirmar nossa hipótese inicial de que o Bairro Manoel Deodato se configura como um dos mais pobres do município por con-centrar certas vulnerabilidades sociais como veremos ainda na próxima seção deste trabalho.

Pobreza multidimensional: algumas análises a partir do trabalho de campo no Bairro Manoel Deodato

Mediados pela discussão que vimos realizando, consi-deramos o Bairro Manoel Deodato onde se localiza a antiga favela “Beira Rio”, um espaço segregado15, onde se concentra a população mais pobre de Pau dos Ferros, destituído de mínima infraestrutura. Nesse espaço também se visualiza altos índices de violência, de prostituição e uso de drogas ilícitas, de acordo com o mapeamento feito pela equipe do CRAS16 São Benedito.

15 Embora não adentraremos na discussão conceitual desse termo devido a escolhas teóricas. Para aprofundamento desse conceito ver: Corrêa (2005).

16 Centro de Referência da Assistência Social. Segundo a PNAS (2004) este é uma unidade de base territorial e deve estar localizado em áreas de vulnerabilidade social. Para Melazzo e Magaldi (2013), o CRAS representa um equipamento de grande importância para a consolidação das ações sociais no território, pois se constitui como “uma porta de acesso mais direta a conquista dos direitos universais”.

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Mapa 6 ‒ Bairro Manoel Deodato: área de pobreza acentuada em Pau dos Ferros/RN

Comungando com a discussão já evidenciada acerca da pobreza multidimensional e da perspectiva territorial, acha-mos por bem caracterizar o Bairro Manoel Deodato onde estão concentradas as maiores vulnerabilidades sociais do município. Partimos, não apenas do ponto de vista da renda, mas buscamos analisar as questões ligadas a infraestrutura, saneamento, acesso a serviços públicos como educação e saúde, dentre outros. Para tanto, realizamos visitas in loco, entrevistamos alguns moradores do bairro e as assistentes sociais do CRAS São Benedito, respon-sáveis pelo trabalho com as políticas sociais no bairro.

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Esse bairro conta com cerca de 2.800 habitantes, tem a maioria das casas assistida pelos serviços de energia e água. Contudo, existem algumas residências, especialmente as de taipa que não tem acesso a esses serviços. Sobre o sistema de esgotamento sanitário podemos perceber a existência de algumas fossas sépticas, fossas rudimentares e também a céu aberto. O lixo é coletado semanalmente, mas observamos lugares onde a há alta concentração.

Com relação à renda, segundo as assistentes do CRAS São Benedito, a principal fonte dos moradores é o benefício advindo do Programa Bolsa Família, aposentadorias, alguns funcionários públicos e empregos informais como domésticas que trabalham sem carteira assinada. Em conversas informais com alguns moradores, obtivemos depoimentos a respeito das condições de vida no bairro:

Olha moça, morar aqui não é fácil não viu. A gente sempre escuta promessas de que as coisas vão melhorar, mas só fica mesmo nas promessas. Você tá vendo como é a situação. Eu moro nessa casa de taipa porque não tenho um outro lugar para morar. Eles estão prometendo que vamos ganhar uma casa nesse programa aí da “minha casa”1. Mas minhas esperanças são poucas. Aqui nós convive com a violência e com as drogas imagine como é criar filho nesse lugar viu! As coisas boas ficam no centro, tem um CRAS que é para a gente participar, mas fica lá pros lados do centro mesmo. O que eu queria era que os políticos investisse mais aqui, melhorassem esse lugar, colocasse um calçamento nas nossas ruas, uns esgotos fechados porque tudo é assim como a senhora está vendo, aberto né e a assistente social disse que isso traz muita doença e que nós também arriscamos morando em casa de taipa porque pode ter aquela doença lá do barbeiro (Trabalho de campo, 2014, fala de um morador do Bairro Manoel Deodato).

Percebemos que o bairro em análise apresenta acentuadas vulnerabilidades sociais. A população aí residente é obrigada a

1 O Programa citado pelo morador é o programa “minha casa, minha vida” do Governo Federal. Durante a visita em campo registramos alguns conjuntos habitacionais sendo construídos no bairro.

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conviver com a violência, as drogas, a falta de infraestrutura e de saneamento básico. Existem ainda muitas famílias morando em casa de taipas, que segundo a secretária de Assistência Social, esse quadro ainda persiste devido à burocratização dos programas de habitação e também devido a atitude de alguns moradores que receberam casas de projetos, mas venderam ou se desfizeram por motivos desconhecidos e voltaram a viver nas casas de taipa. As figuras 01 e 02 revelam as condições de habitação de algumas famílias residentes neste bairro.

Figuras 1 e 2 ‒ Aspecto das residências e infraestrutura do Bairro Manoel Deodato

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FONTE: Acervo dos autores, 2014.

Verificamos que existem cerca de 20 famílias ainda vivendo em casas de taipa, destituídas de infraestrutura e saneamento. Não diferentemente, a maioria das ruas do bairro em estudo não é calçada, não existe uma rede de esgoto canalizada. O abaste-cimento de água está prejudicado devido ao longo período de estiagem combinado com a negligência do poder público local. Muitas famílias precisam comprar água para beber, mas aquelas que sobrevivem apenas do Bolsa Família, são obrigadas a utili-zarem uma água que é imprópria para o consumo por não terem condições de comprarem água potável.

Ainda sobre as condições de vida no bairro e a falta de credibilidade dos moradores para com os gestores locais, cabe para o momento, a fala de D. Maria moradora do bairro há mais de 20 anos:

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Olhe minha filha eu moro aqui tem mais de 20 anos, nunca vi mudanças boas, o que vi foi encher de gente neste bairro, gente pobre. O que vejo são promessas a cada ano que tem eleição os políticos vem aqui enchendo de promessas (alguns ainda acreditam). Eu perdi a esperança, nunca vi nada melhorar para a gente vejo muito é droga, violência, morte, crianças daqui pedindo nas ruas do centro. Tenho essa casa porque tenho dois filhos que trabalham como pedreiro e passamos muitos anos comprando material e fazendo um pedaço (nesse momento D. Maria fez uma pausa com lágrimas nos olhos). Recebi muitas promessas que iria ganhar uma casa e essa nunca chegou porque eu não votei neles. Morei mais de 15 anos em casa de taipa. Agora eu me conformo, pois hoje as coisas estão um pouco melhor porque eu e meu velho somos aposentados, não passamos mais fome e ainda ajudamos nossos filhos com um pouquinho, pois não dá para ajudar tanto. Mas ainda sofremos (...). Até gosto de morar aqui, pois foi aqui que terminei de criar meus 7 filhos, mas se pudesse mesmo moraria em outro lugar (Trabalho de campo, 2014, fala de uma moradora do Bairro Manoel Deodato).

As palavras de D. Maria registrada acima, nos auxilia na interpretação da pobreza do ponto de vista multidimensional. Percebemos que existem várias dimensões que caracterizam a pobreza vivenciada por grande parte dos moradores do bairro como as moradias precárias, falta de acesso aos serviços de educação e saúde de qualidade, violência e falta de uma renda mensal. Percebemos ainda, que mesmo com a oportunidade de uma renda todos os meses advinda da aposentadoria, D. Maria ainda sofre com algumas dimensões da pobreza como a falta do acesso a saúde de qualidade o que nos leva a considerar que o acesso à renda supre o mais emergencial, mata a fome, permite alguns acessos, mas não é suficiente para sanar a problemática da pobreza, pois para isso é preciso outras ações como melhorar os serviços prestados à população e oportunizar o acesso a esses serviços.

Além disso, ainda perdura nesses espaços o sistema per-verso do clientelismo ou patrimonialismo como observado na fala de D. Maria quando a mesma coloca que não ganhou a casa

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“prometida” por ter votado “contra”. Neste sentido, analisar a pobreza do ponto de vista multidimensional é perceber quais dimensões são responsáveis por perpetuá-la em determinados espaços e não absolutizar apenas a dimensão da renda.

Corroborando com as análises acerca da pobreza mul-tidimensional e da importância de ouvir os pobres sobre suas condições, Crespo e Gurovitz (2002) afirmam que no estudo acerca da pobreza é fundamental que se dê ouvido aos pobres, pois são estes os sujeitos capazes de conduzirem através de sua experiência as verdadeiras reflexões sobre suas condições de vida e sobre os mecanismos que os possibilitaram a viverem assim. Para os autores a pobreza sentida e vivida pelos pobres, se conceitua por alguns elementos e dimensões, para eles:

Pobreza é fome, é falta de abrigo. Pobreza é estar doente e não poder ir ao médico. Pobreza é não poder ir à escola e não saber ler. Pobreza é não ter emprego, é temer o futuro, é viver um dia de cada vez. Pobreza é perder o seu filho para uma doença trazida pela água não tratada. Pobreza é falta de poder, falta de representação e liberdade (CRESPO e GUROVITZ, 2002, p. 11).

Essas afirmações a respeito da pobreza vêm de encontro com os depoimentos colhidos dos moradores residentes no Bairro Manoel Deodato, especialmente na fala de D. Maria evidenciando que suas condições de vida lhe impossibilita sair do local onde vive, pois embora diga gostar do bairro, moraria em outro lugar se pudesse. Falta ao pobre a liberdade de escolhas, a mobilidade (pois esta é reduzida) e a garantia dos seus direitos.

Além desses elementos, frisamos a importância da repre-sentação, sobretudo local, por parte dos moradores. Em conversas com alguns moradores, diagnosticamos que não existem lideran-ças locais nem governança, não existem movimentos de bairro que seria um fator predisponente para reivindicação de direitos e melhorias para o bairro e para as famílias ali residentes, fato comprovado nas entrevistas com alguns moradores e com as assistentes sociais responsáveis pelo bairro.

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Considerações finaisA análise aqui desenvolvida nos levou a algumas reflexões

a respeito da pobreza em suas múltiplas dimensões. Percebemos que o quantitativo da renda não pode ser absoluto na análise acerca das condições de vida dos pobres, mas essa dimensão juntamente com outras nos dão suporte para interpretar a pro-blemática da pobreza, evidenciando para tanto, a leitura prévia do território. Nesse interim, a Geografia com seu arcabouço teórico/metodológico nos auxilia na construção de uma reflexão mais rica e crítica sobre o fenômeno ora evidenciado.

Nesse intento, o uso da ferramenta do Cadúnico (como função diagnóstica), juntamente com dados do Censo do IBGE nos permitiu diagnosticar as condições de vida das famílias, veri-ficadas posteriormente com a visita in loco. A partir das análises feitas, levando em consideração a realidade espacial de Pau dos Ferros nas escalas do intraurbano e do município, percebemos que o Bairro Manoel Deodato, é um espaço segregado, onde residem cerca de 2.800 pessoas, sendo a maioria destas, consideradas pobres ou extremamente pobres. Neste bairro diagnosticamos um número considerável de famílias vivendo em casas de taipas, onde a ineficiência do poder público e a burocratização das polí-ticas contribuem para o agravamento das condições materiais e sociais de vida desta população.

Assim, com as entrevistas realizadas, os questionários, as imagens registradas e, por conseguinte as análises feitas, esboçamos um panorama geral acerca da pobreza e das ações, caso das políticas sociais territorializadas no município de Pau dos Ferros-RN. Com isso, evidenciamos que o município de Pau dos Ferros ainda apresenta números expressivos de famílias em condição de pobreza. O que requer um conhecimento mais aprofundado por parte dos pesquisadores e, principalmente do poder público local, em conhecer o território em que vivem essas famílias, as quais estão marcadas historicamente por diversas vulnerabilidades. Isso se faz necessário para que se efetive uma

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real intervenção na realidade e no cotidiano dessas famílias, de modo a propiciar oportunidades de superação das condições precárias em que vivem, construindo a partir disso a cidadania, por conseguinte, território de direitos, que é dever do Estado.

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Dinâmica espacial da atividade industrial:

a indústria de transformação no Vale do Paraíba Paulista1

Ítalo Franco Ribeiro

Introdução

No presente texto discorreremos sobre a industrialização no Vale do Paraíba paulista e as mudanças contemporâneas acerca do perfil da produção industrial. Nosso foco de análise são os processos mais gerais que possibilitaram a essa região atingir um patamar produtivo industrial que apresenta setores com significativo valor agregado e incremento tecnológico. Nesse sentido, apontaremos algumas especificidades econômicas da região frente as transformações estruturais que ocorreram no estado de São Paulo ao longo do século XX e início do século XXI e que incidiram na paulatina consolidação da indústria como principal setor de atividade econômica regional.

Ao tratar, em um primeiro momento, das especificidades da industrialização no VPP2, ressaltamos que as atividades

1 Esse artigo é desdobramento da dissertação de mestrado defendida na FCT-Unesp/Presidente Prudente, orientada pelo Prof. Dr. Eliseu Savério Spósito.

2 A partir desse momento, ao escrevermos a sigla VPP, estaremos nos referindo à região do Vale do Paraíba Paulista.

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Dinâmica espacial da atividade industrial

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industriais que impulsionaram esse processo correspondiam aos setores atrelados aos contextos mais amplos de industrialização do país, posteriormente, em decorrência do acúmulo de estruturas e condições materiais que foram se constituindo em função de diferentes dinâmicas e processos espaciais, sobretudo na escala do estado de São Paulo, a região do VPP correspondeu a um conjunto de decisões locacionais que concentrou em seu eixo uma parte importante da divisão do trabalho industrial brasileiro.

Nesse sentido, alguns temas serão priorizados na cons-trução dos argumentos cientes das possibilidades e limitações que essas escolhas implicarão, no entanto, tomamos um posi-cionamento acerca dos fatores que conduziram o processo de estruturação e reestruturação industrial no VPP, os quais serão expostos da seguinte forma: a) o planejamento estatal como condutor do redirecionamento das atividades econômicas no VPP; b) os setores industriais que iniciaram o processo de indus-trialização na região; c) o processo de desconcentração espacial da indústria no estado de São Paulo e seus desdobramentos para o VPP e; d) os principais setores de atividade industrial que atualmente aprofundaram os papéis da região na divisão do trabalho industrial.

A partir desse quadro acreditamos obter um conjunto de determinações que são parte constitutivas do processo histórico de formação de um importante eixo que concentra significativa monta do produto industrial nacional e da divisão do trabalho industrial brasileiro, a considerar, sobretudo, as especificidades produzidas pelo processo de industrialização de São Paulo na área que compreende o Vale do Paraíba paulista.

A região e a indústria: agentes e processosA Mesorregião do Vale do Paraíba (Mapa 1) está localizada

em uma área que abrange os estados de SP e RJ. Sua disposição guarda uma das suas principais características em termos econô-micos, a conexão, por meio da via Dutra (BR-116), rodovia com o

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maior fluxo de veículos do país (ANTT, 2012), das duas maiores regiões metropolitanas do país, eixo que compreende cidades de distintos portes, variada atividade econômica e responsável por movimentar parcela importante do produto interno nacional. Em sua porção paulista, o Vale do Paraíba compreende um conjunto de 39 municípios3, dentre os quais, destacam-se os centros urbanos que são cortados pelo traçado da rodovia, pois dispõem de significativa infraestrutura urbana, centros de qualificação para o trabalho, instituições públicas e particulares de ensino superior, variada gama de atividades dos setores comercial e de serviços e uma proximidade relativa que intensifica as interações espaciais entre as cidades do eixo, entre elas e as demais da região e, ainda, com cidades que extrapolam essa escala, facilitada pelas suas localizações.

3 A Mesorregião do Vale do Paraíba (IBGE) abrange 39 municípios. Esses estão inseridos na composição da Região Administrativa de São José dos Campos, criada pela Secretaria de Planejamento do Estado de São Paulo. Atualmente o estado de São Paulo é dividido em 15 Regiões Administrativas, 42 Regiões de Governo e 5 Regiões Metropolitanas. Essas foram constituídas com o objetivo de auxiliar a gestão e o planejamento pelo Governo do estado e são alvo de suces-sivas mudanças. Neste texto utilizamos a regionalização vigente até o ano de 2012, a qual colabora para sistematização dos dados acerca dos municípios e regiões do estado disponibilizados pela RAIS e pelo IBGE. Para conferir os municípios da RA de São José dos Campos, acesse: <http://produtos.seade.gov.br/produtos/divpolitica/index.php?page=tabela&action=load&nivel=10>.

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Dinâmica espacial da atividade industrial

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Mapa 01 ‒ Vale do Paraíba Paulista

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A tabela a seguir evidencia o caráter concentrador da dinâ-mica econômica regional. Mesmo diante da apresentação dos dados de 6 municípios que compõem o que chamamos de municípios do eixo do VPP, os quais, conjuntamente, aglutinam 65% da população e 78% do produto interno bruto da região, se considerarmos apenas os dois municípios com maior expressão nos dados, Taubaté e São José dos Campos, concentram 40% da população residente e 55% de toda a riqueza do VPP, o que evidencia um processo desigual na dinâmica econômica da região e dos municípios do eixo do VPP.

Tabela 01 ‒ População e PIB dos municípios do eixo do VPP, absoluto e percentual, 2010

MUNICÍPIOSPOPULAÇÃO PIB

ABSO-LUTA

RELATIVAABSO-LUTO

RELATIVO

Caçapava 85.398 3,7 2.512,40 4,0Guaratinguetá 112.684 4,9 2.221,38 3,5

Pindamonhangaba 148.593 6,5 3.781,68 6,0Jacareí 212.822 9,3 5.729,98 9,1Taubaté 281.393 12,3 9.756,82 15,5

São José dos Campos 637.565 27,9 25.212,47 39,9Demais Municípios

da RA (33)807.345 35,3 13.935,79 22,1

Total 2.285.800 100 63.150,52 100,0

FONTE: Fundação SEADE. Org: Ítalo Franco Ribeiro.

As cidades ao longo desse eixo dispõem de um de um conjunto artificial de estruturas espaciais que favoreceram, em diferentes momentos e contextos, o desenvolvimento de processos espaciais que estruturaram e consolidaram um arranjo espacial singular, portador de formas e conteúdos específicos e atualmente valorizadas por determinadas frações do capital produtivo.

A tabela 2 expõe quais são os principais ramos da indústria de transformação no VPP e como estão distribuídos entre os municípios, segundo uma subdivisão comparativa que elaboramos

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Dinâmica espacial da atividade industrial

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entre os municípios localizados no eixo do VPP e os demais municípios da região, esse procedimento tem como finalidade demonstrar o privilegiamento de algumas áreas da região para a localização de segmentos da indústria de transformação.

Tabela 02 ‒ Distribuição dos subsetores de atividades da indústria de transformação no VPP, 2012

SUBSETORES

DEMAIS MUNI-CÍPIOS DO VPP

MUNICÍPIOS DO EIXO DO VPP

TOTAL

VÍNCU-LOS

ESTA-BELE-CIM.

VÍNCU-LOS

ESTA-BELE-CIM.

VÍNCU-LOS

ESTA-BELE-CIM.

Material de Transporte

5.219 15 38.631 102 43.850 117

Indústria Metalúrgica

4.009 108 15.067 336 19.076 444

Indústria Mecânica

771 47 13.307 244 14.078 291

Indústria Química

3.601 79 10.975 208 14.576 287

Alimentos e Bebidas

2.836 190 10.683 441 13.519 601

Papel e Gráfica 1.078 58 5.126 156 6.204 214Elétrico e

comunicações526 8 4.897 75 5.423 83

Mineral não Metálico

1.066 95 4.665 130 5.731 225

Indústria Têxtil 650 115 4.479 185 5.129 300Borracha,

Fumo, Couros389 38 3.817 125 4.206 163

Madeira e Mobiliário

1.033 93 1.380 108 2.413 201

Indústria de Calçados

1 1 39 5 40 6

TOTAL 21.179 847 113.066 2.115 134.245 2.932

FONTE: MTE-RAIS (Ministério do Trabalho e Emprego - Relação anual de Informações sociais). Org: Ítalo Franco Ribeiro.

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Ítalo Franco Ribeiro

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Como é possível observar, há uma seletividade espacial nas decisões locacionais da indústria na região que concentra, nos seis municípios do eixo do VPP, 84% dos vínculos e 72% dos estabelecimentos do setor. Em números porcentuais, excluindo o ramo de madeira e mobiliário (57%), os segmentos da indústria de transformação concentram nesse eixo um total acima de 75% dos vínculos empregatícios. Para os estabelecimentos, excetuando-se os ramos de madeira e mobiliário (53%), têxtil (61%) e de minerais não metálicos (58%), os números ultrapassam os 72%.

Entretanto, salientamos que mesmo entre os municípios desse eixo São José dos Campos e Taubaté contam com maior parte desses números, ou seja, a primeira absorve 32% dos esta-belecimentos e 35% dos vínculos da região e Taubaté 13% e 20%, respectivamente. Em comparação aos municípios do eixo, São José dos Campos corresponde com cerca de 45% dos estabelecimentos e 41% dos vínculos, Taubaté com 18% e 24% dos mesmos.

Guardadas as especificidades, seja do processo de forma-ção ou em relação as densidades das atuais economias urbanas dos municípios do eixo, depreende-se que o privilegiamento desses espaços, em maior ou menor grau, para o recebimento de investimentos do setor industrial, em larga medida, de capi-tais multinacionais, deve-se, entre os outros fatores ligados aos próprios capitais particulares, sejam eles multilocalizados ou não, à complexidade dos papeis desempenhados por esses centros urbanos e pela capacidade de corresponderem às suas demandas, seja nas atividades fins ou complementares ao setor industrial. Nesse sentido, os fatores procedentes das economias de aglomeração e as externalidades que possibilitam vantagens às economias de localização ou de escala ao setor industrial (CAMAGNI, 2005) assumem um caráter importante para com-preendermos a concentração, nesse eixo, de significativa monta do trabalho industrial do país, com participação muito efetiva de capitais multinacionais, os quais promovem intensas interações regional-local e nacional-global.

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Dinâmica espacial da atividade industrial

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A grande participação do setor industrial para a economia da região se consolidou pela forte incidência de capitais extra-locais, sobretudo estatal, e multinacionais que se estabeleceram no VPP a partir da década de 1950, os quais fizeram emergir a importância regional de São José dos Campos para esses novos investimentos, substituindo o protagonismo das atividades industriais e da eco-nomia local de Taubaté, que se centrava na produção têxtil, a partir de capitais locais (LESSA, 2001; MÜLLER, 1969).

Nas três primeiras décadas do século XX, as principais ati-vidades industriais no Vale do Paraíba paulista foram constituídas como alternativa à decadência da produção do café. Dentre elas destacaram-se às têxteis e, em menor medida, aquelas ligadas ao beneficiamento de produtos agropecuários, principalmente laticínios, e de transformação de minerais não metálicos, prin-cipalmente, cerâmicos (MÜLLER, 1969).

Essa característica produtiva da indústria regional perma-neceu até meados da década de 1950, quando houve a instalação das primeiras empresas do setor mecânico, metalúrgico e de bens de consumo duráveis (MÜLLER, 1969). Embora o surgimento desses setores estivesse atrelado a um processo de modernização da indústria nacional, o direcionamento econômico e produtivo para as atividades industriais no VPP foi constituído, sobretudo, em função de diferentes projetos de planejamento estatal4, em escalas regional, estadual e nacional.

4 Em fins da década de 1930 e no decorrer da década de 1940 foram imple-mentados os primeiros planos para a região, dos quais se destacam: “Das providencias preliminares para um programa de reerguimento econômico do Vale do Paraíba no Estado de São Paulo”, em 1938, e o primeiro plano de cunho regional no Brasil, conhecido como “Aspectos do Vale do Paraíba e de seu reerguimento no Governo Adhemar de Barros”, concluído pelo IAC (Instituto Agronômico de Campinas), no início da década de 1940. Ambos os planos visavam o aprofundamento das atividades agrícolas na região. Para maior detalhamento das intervenções a partir do planejamento estatal no Vale do Paraíba paulista, ver Lessa (2001).

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A industrialização no VPP tomou corpo de maneira distinta de como ocorreu nas então regiões pioneiras do Oeste paulista e na capital, ou seja, se nestas áreas a industrialização se consolidou a partir do complexo econômico cafeeiro5 (MELLO, 1982; CANO, 1990), no VPP esse processo foi iniciado em função da estagnação da economia cafeeira na região, pois trata-se de uma região que se pautou amplamente no modelo “latifundiário-colonial” do cultivo do café (MAMIGONIAN, 1969; SOTO, 2000). Naquelas porções do estado foram estabelecidas as bases de um novo direcionamento das relações capitalistas em solo brasileiro capaz de garantir os meios necessários para a realização e o desenvol-vimento de diversas atividades rurais e urbanas. As cidades que se constituíram ou que reforçaram seu papel econômico nesse contexto de expansão econômica paulista estavam articuladas às novas redefinições da divisão territorial do trabalho produ-zidas pelo desenvolvimento da economia cafeeira com primazia econômica exercida pela capital (SPOSITO, 2004; NEGRI, 1996). Seguramente, a economia cafeeira foi responsável por produzir os elementos fundamentais para o processo de desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil. No entanto, o conjunto de determinações que ampliaram o espaço econômico paulista e consolidaram os elementos fundamentais para o processo de industrialização não se assemelha com o contexto econômico e de desenvolvimento das atividades industriais no VPP. Se nas áreas de expansão das atividades do complexo cafeeiro as articulações entre as economias urbanas e rurais produziram um cenário favorável à acumulação de capital e possibilidades de inversão em diferentes setores da economia, no VPP as atividades industriais criaram, em larga medida, um adensamento de atividades nas áreas urbanas, embora, sem favorecer o acúmulo e inversões de capital a partir dessas relações (SOTO, 2000).

5 Termo utilizado por Mello (1982) para designar o conjunto de atividades econômicas que se formou em torno da produção e comercialização do café.

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A industrialização na região do VPP foi impulsionada nos marcos dos grandes planos nacionais, a partir dos anos de 1950, principalmente com a inauguração da Rodovia Presidente Dutra (1951). O avanço acelerado da industrialização do pais, a partir do Plano de Metas, no governo Kubitschek (1956-1961), conso-lidando-se posteriormente com a efetivação do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) na década de 1970 (POCHMANN, 2008), ocorreu segundo uma maior concentração de atividades industriais em São Paulo, sobretudo, pela instalação de empresas com grande capacidade de geração de atividades subsidiárias, como, por exemplo, o polo petroquímico de Cubatão, que se seguiu à construção da refinaria da PETROBRÁS, e os setores metal-mecânico e de bens duráveis concentrados na Grande São Paulo (NEGRI, 1996).

Foi nesse contexto de industrialização pesada que as ativi-dades industriais do VPP passaram por uma maior diversificação apresentando setores industriais ligados ao núcleo central da industrialização brasileira, o setor automobilístico e metal-mecâ-nico e, paulatinamente, rompendo com o padrão de produção industrial centrado nas atividades têxteis e de beneficiamento de produtos agrários.

Na década de 1950 foram instaladas algumas das principais indústrias do VPP, as quais eram, principalmente, de capital multinacional ou estatal, e se concentraram em duas cidades da região: São José dos Campos e Taubaté (TRAJANO, 2009). Os principais investimentos de multinacionais em São José dos Campos foram: Johnson & Johnson (1953), setor químico; Ericsson (1954), telecomunicações; GM e a Eaton (1957), segmento automotivo, além da estatal AVIBRÁS (1957), aeronáutica, as quais, a exceção desta última, se tratava de ampliação do número de unidades produtivas dessas empresas, pois já havia em período anterior unidades industriais na capital paulista (MÜLLER, 1969; LESSA, 2001).

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Em Taubaté foram instaladas duas empresas, a IQT-Indústrias Químicas Taubaté (1955) e a Mecânica Pesada (1956), do setor metal-mecânico, empresa do grupo francês Schneider (MÜLLER, 1969), que foi adquirida pela também francesa Alstom em 1985.

Já na década de 1960 evidenciava-se uma concentração das atividades industriais em poucas cidades da região, principalmente nas cidades de Jacareí, São José dos Campos, Caçapava, Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Lorena e Cruzeiro6. Assim, pode-se inferir que esse padrão de localização está correlacionado às vantagens oriundas das vias de transporte que cortavam esses municípios, primeiro a ferrovia, em seguida, a implantação da estrada Rio - São Paulo, a qual passou pela reformulação do seu traçado e inaugurada a primeira via da rodovia Presidente Dutra, em 1951. Essa rodovia ainda passou por novas obras e teve sua duplicação finalizada no ano de 1967. Embora não seja o principal fator da concentração, certamente está inserida no

6 Nessas cidades destacam-se as empresas: em Caçapava, MAFERSA (1958), produtora de rodas e eixos ferroviários; AISA (1959), metal mecânica produtora de blocos de motores para indústria automobilística localizada na capital, CEBRACE (1963), produção de vidros automotivos e em geral; em Jacareí destacam-se, a SCHRADE do Brasil (1964), com produção de válvulas automotivas e a FABARAÇO (1964), com produção de molas e arames de aço, e pequenas empresas do segmento químico, que além de abastecer as indústrias da capital, tinha parcela da produção exportada. Em Cruzeiro, além da Cia. Nacional de Vagões (1943), composições ferroviárias, rodas para veículos automotores pesados e de passeio, chassis de caminhões, máquinas escavadeiras e tratores; Cia. Platt do Brasil (1956), produção de máquinas e equipamentos para o setor têxtil; Produtos Químicos Cruzeiro (1964), produtos para as indústrias de borracha, plástico e tintas; Indústria Brasileira de Lançadeiras (1961) máquinas e equipamentos industriais; Em Guaratinguetá, Idrogal (1955) produtos químicos; Em Lorena, Empresa de Alumíno Ltda (1957), cabos de alumínio e aço, e algumas pequenas empresas do setor químico, especificamente voltadas à produção de artefatos explosivos; Em São José dos Campos, nos anos seguintes se instalam: a estatal Embraer (1969), Kodak (1972) e Phillips (1973). (MÜLLER, 1969; Pesquisa organizada pelo autor junto a FIESP; CIESP e JUCESP).

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conjunto de determinações econômicas que contribuíram para uma maior concentração das atividades produtivas em parte desses municípios nas décadas que se seguiram.

A ascensão da produção industrial no VPP está ligada a um contexto mais geral que se refere ao processo de industriali-zação brasileira. Essa desenvolveu a economia do país e criou as condições necessárias para atender a demanda de um mercado consumidor em rápida expansão e as demandas do exterior, possibilitando a formação dos mercados de trabalho regionais e uma maior integração do país (SANTOS, 1993). No entanto, essa integração se realizou segundo uma concentração econô-mica e geográfica das atividades mais modernas e dinâmicas. O adensamento populacional e das atividades produtivas em alguns pontos do território, principalmente nas capitais e regiões metropolitanas, não se explica somente pelo movimento do capital privado, mas pela associação das diversas ações gover-namentais que incidiram, em grande parte, no direcionamento dos investimentos de frações do capital produtivo (CANO, 1990).

Diante desse contexto, foram gestadas políticas federais e estaduais que objetivaram estimular a produção industrial no país – principalmente nos setores de insumos e bens de capital – e a reorganização espacial dessas atividades utilizando os novos investimentos como instrumentos de desenvolvimento regional (TRAJANO, 2009; LENCIONI, 2006; NEGRI; 1998). Contudo, em que pese especificamente às diretrizes do II PND, a desconcentração industrial ocorrida na década de 1970 não foi capaz de modificar a divisão territorial do trabalho nacional, pois as decisões locacionais ligadas ao capital industrial privado corresponderam a um conjunto de estratégias, e mesmo incentivos estaduais, como no caso do estado de São Paulo, que produziram uma série de especializações produtivas atreladas à produção industrial localizada na Grande São Paulo (CANO, 1990).

A partir da década de 1960, o VPP passou a abrigar um grande número de empresas do setor industrial, sobretudo,

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multinacionais. Na década seguinte a indústria se consolidou como um importante setor de atividade econômica na escala da região e possibilitou a diversificação dos setores industriais mais tradicionais, como o têxtil, principalmente pela instalação de grandes plantas industriais dos segmentos metal-mecânico, aeronáutico, material de transporte, químico e de material elétrico e comunicações (MÜLLER, 1969).

Esses segmentos industriais proporcionaram, além de uma nova feição para as atividades produtivas regional, pois se tratavam de ramos industriais com processos mais dinâmicos, com maior incremento técnico nos processos produtivos e nos produtos e com diferentes intensidades na geração de cadeias produtivas, grandes transformações para as relações econômicas regionais, como a maior diversificação do mercado de trabalho, ampliação das contratações no setor industrial, diversificação das atividades ligadas ao comércio e serviços e a materialização de uma economia urbana favorável a absorver investimentos posteriores de outros setores industriais, atraindo tanto capitais locais e regionais, como, sobretudo, internacionais. Esse con-junto de determinações incidiu diretamente na dinamização das economias urbanas nos municípios do eixo do VPP, inclusive no ritmo de expansão e das infraestruturas urbanas, fortalecendo as condições locais para o estabelecimento das atividades industriais e promovendo maior extensão da divisão territorial do trabalho, claramente já direcionando para a concretização posterior de um perfil produtivo industrial centrado nas atividades produtivas de bens de consumo duráveis e de capital.

Assim, podemos apontar que essa dinâmica só pode ser apreendida se articulada ao amplo conjunto de mudanças na estru-tura produtiva do país ocorridas por meio dos grandes projetos e políticas de desenvolvimento industrial. Esses condicionaram os volumes de capitais investidos na região até meados fins da década de 1970 que, por sua vez, aglutinaram um somatório de elementos que atendem às demandas de produção do capital

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industrial. Evidentemente que a essas novas atividades e aos seus desdobramentos para as economias urbanas se associaram um novo conjunto de fatores que reposicionaram a situação geográfica dos municípios do eixo do Vale do Paraíba paulista frente às determinações gerais de desenvolvimento das forças produtivas capitalistas no Brasil. Assim, o paulatino acúmulo de infraestruturas e o desencadeamento de processos espaciais no bojo da diversificação das atividades industriais da região per-mitiram uma revalorização das atividades econômicas regionais e consolidaram os principais vetores de expansão da economia regional, que a partir daquele momento centraram-se nas ati-vidades industriais de produção de bens de consumo duráveis e de capital, em larga medida, por meio do estabelecimento do capital internacional e empresas estatais.

Os processos de (des)concentração e (des)centralização em SP: seus rebatimentos para a indústria no VPP

A partir de meados da década de 1980, as ações de suces-sivos governos para tentar corrigir as desigualdades regionais não são mais suficientes para entendermos como se desenvolveu a reorganização da atividade industrial no estado de São Paulo, pois ao conjunto dessas ações se atrelam mecanismos mais gerais que modificaram as características da produção industrial da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e de algumas áreas do interior paulista, inclusive o Vale do Paraíba paulista.

A diminuição das atividades industriais daquela região foi acompanhada do aumento no interior, estendendo as articula-ções produtivas num espaço econômico mais amplo através de ações complementares e segundo especializações funcionais que redefiniram e tornaram mais complexas a divisão territorial do trabalho na escala estadual. Esse processo é comumente chamado de desconcentração industrial.

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A mudança no padrão locacional das grandes unidades produtivas demonstra a capacidade de reorganização espacial do capital frente à queda dos rendimentos adicionais da indústria, impactados pelos efeitos das deseconomias de aglomeração na metrópole e pela maior competitividade capitalista.

As chamadas deseconomias de aglomeração, as quais conjugam diferentes fatores – problemas de infraestrutura e serviços urbanos, ambientais e sociais – que conduzem à dimi-nuição ou mesmo o estancamento dos ganhos de escala gerados pelos processos aglomerativos são ressaltadas como parte das determinantes que incidiram na redistribuição territorial dos processos produtivos industriais (NEGRI, 1996).

O tema da desconcentração industrial foi abordado nas análises geográficas de Sposito (2004) no esforço empreendido para compreender a urbanização no estado de São Paulo. Para a autora, as mudanças no padrão de localização das atividades industriais guardam estreitas relações com os movimentos de concentração-desconcentração e centralização-descentralização do capital, chama a atenção para a adjetivação desses movimentos para compreendermos as contradições internas desse processo, o qual pressupõe as dinâmicas econômica e espacial.

A autora expõe que até meados da década de 1960 havia na Grande São Paulo uma concentração e centralização espacial, situação que se modificou na década de 1980, quando verificou um movimento de “desconcentração espacial dos capitais fixos” do setor industrial (SPOSITO, 2004, p. 227). Assim, a autora esclarece que a evolução do número de estabelecimentos no interior, paralelamente à diminuição desses no aglomerado metro-politano, expressa um movimento de desconcentração espacial da atividade industrial, mas não somente, inclui que pelo padrão de localização dessas atividades, essa desconcentração espacial foi acompanhada pela reconcentração das atividades industriais nas áreas do entorno metropolitano.

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Por outro lado, ao comparar os dados acerca da quantidade dos estabelecimentos industriais com a localização das sedes das empresas ou grupos empresariais, constatou que mesmo diante da diminuição do número de unidades produtivas, o que denota a desconcentração espacial, houve a manutenção da dinâmica de centralização espacial do capital na RMSP, tanto em relação ao estado de São Paulo, quanto em relação ao país, mesmo verificando uma leve queda dessa centralização em escala nacional.

A partir da década de 1980 a concentração econômica do capital, que se fundamentou por meio de sua realização em grandes aglomerações no caso brasileiro, se efetivou estrategi-camente através da desconcentração espacial das atividades e não pela descentralização espacial. A esse contexto se soma um processo de centralização econômica do capital, que se refere ao controle de ramos e setores de atividade, mercados e mesmo um dado território por um número cada vez menor de capitalistas (SPOSITO, 2004), isso pode ocorrer por meio de fusões e absorções de capitais, de empresas ou grupos, reorganizando a distribuição da propriedade desses capitais (LENCIONI, 2008).

O desenvolvimento desses processos no país está cor-relacionado a um conjunto de mudanças econômicas e sociais gestadas nos países de capitalismo avançado desde a década de 1950, que asseguraram aos diferentes capitais um constante processo de acumulação e concentração por meio das amplas taxas de lucro que favoreceram, principalmente, as grandes corporações industriais.

Todavia, a partir de meados de década de 1970, a crise do padrão de desenvolvimento do pós-guerra freou o processo de reprodução ampliada do capital e impôs às empresas e grandes corporações um novo padrão concorrencial, que segundo Harvey (1992), conduziu a ampliação territorial da atuação dessas grandes corporações empresariais. Por outro lado, pelas próprias carac-terísticas internas ao desenvolvimento das forças capitalistas de produção, o constante acúmulo de estruturas apropriadas a

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sua dinâmica de acumulação produziu um conjunto de condições materiais e econômicas que possibilitaram às grandes corporações à ampliação de seus mercados.

Nesse sentido, destacam-se os ciclos de intensa mudança tecnológica, inovações e melhoria de processos produtivos e de produtos; a constante diminuição de custos e o tempo do trans-porte de mercadorias e pessoas; avanços tecnológicos nas áreas de informação e comunicação. Essas mudanças tiveram grande repercussão nas formas de organização da produção e determi-naram as lógicas locacionais das empresas do setor industrial, pois permitiram a separação das tarefas de gestão das tarefas de produção. Esse complexo conjunto de determinações reestru-turaram as dinâmicas das instâncias econômica e produtiva da sociedade, em escala global, por meio da flexibilização da organi-zação da produção industrial e do trabalho, que paulatinamente veio a substituir a rigidez do modelo organizacional de produção fordista (HARVEY, 1992) paralelamente ao crescente movimento de financeirização da economia, por meio da desregulamentação das atividades financeiras e do fortalecimento desses mercados no processo de valorização do capital (CHESNAIS, 2005). Em relação à organização espacial das atividades industriais, viu-se surgir novas estratégias locacionais das grandes corporações, principalmente àquelas que separam as funções produtivas de chão de fábrica das atividades de gestão.

Sposito (1999), ao se ater mais especificamente à expressão espacial do processo de desconcentração espacial da atividade industrial em São Paulo, demonstrou que esse movimento ocorreu segundo uma seletividade espacial da produção, pois que modifica as estruturas espaciais segundo as necessidades de produção das grandes empresas, condições que incidem nos novos padrões de localização industrial configurando uma estrutura que chamou de “eixos de desenvolvimento”. Para o autor, esta trata-se de uma estrutura espacial que aglutina elementos como infraestruturas de transportes, densa atividade industrial e núcleos urbanos com

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características industriais. Seletivos espaços interioranos, que apresentam tais características, foram responsáveis pela absorção da maioria dos investimentos industriais a partir da década de 1990, segundo o autor.

Alguns desses centros urbanos passaram por profundas transformações econômicas e tiveram uma redefinição dos papéis que exerciam na rede urbana, essa dinâmica decorre da alteração das relações entre as cidades no estado de São Paulo e dessas com tantas outras na escala do pais. Assim, tais centros urbanos assumiram uma nova condição que os tornaram capazes de realizar articulações de cooperação no circuito de produção industrial com diferentes espaços, em amplas escalas, redefinindo constantemente as dinâmicas da divisão territorial do trabalho e condicionando os direcionamentos dos novos investimentos industriais (SPOSITO, 2007).

Embora haja um movimento de reafirmação da centralidade e das novas funções da metrópole, em larga medida, coordenando a formação dos arranjos produtivos do interior do estado, um outro pode ser ressaltado por centros urbanos que se notabilizam pela capacidade de amalgamar novos investimentos de diferen-tes capitais e pelo grau de articulações e interações espaciais de diversas naturezas com cidades de diferentes portes e em diferentes escalas que prescindem da mediação hierárquica da metrópole. Nesse contexto tem destaque as cidades que passaram por alterações nos seus papéis urbanos ou intensificaram aqueles que já desempenhavam, ou seja, essas cidades ampliaram sua centralidade econômica em escala regional pelo fortalecimento de capitais regionais capazes de promover inversões ou estimular novos investimentos industriais, sobretudo, por meio da acumu-lação de capital oriunda das atividades agrárias, redefinem assim, as características econômicas e sociais presentes nessas cidades e paulatinamente acumulam papéis e funções que possibilitam cada vez mais corresponderam às exigências de diferentes capitais (SPOSITO, 2004; SPOSITO, 2007).

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Abrimos esse debate, mesmo que brevemente, para tentarmos demonstrar que o tema comumente chamado de desconcentração industrial está correlacionado a dinâmicas e processos que vão além das formulações econométricas ligadas aos custos de localização em espaços densamente aglomerados ou compreensões que privilegiam movimentos hierárquicos, ou seja, da metrópole para as demais áreas do estado. O tema pressupõe articulação e contraposição de dinâmicas que põem em relevo a simultaneidade dos pares concentração-desconcentração e centralização-descentralização com suas respectivas adjetivações econômica e espacial7, sobretudo, ao nos atermos às escalas da divisão do trabalho industrial no estado de São Paulo.

Conquanto nosso interesse seja compreender a expansão das atividades produtivas no estado de São Paulo e sua relação com região do VPP, vale ressaltar que o contexto delineado é importante para compreendermos como esse conjunto de deter-minações econômicas e espaciais alteraram a divisão regional do trabalho e possibilitaram uma série de mudanças nos perfis produtivos de diferentes centros urbanos, inclusive do VPP.

Desse modo, pudemos constatar que a industrialização nessa porção do estado esteve, até meados da década de 1970, em larga medida, condicionada às estratégias intervencionistas em âmbito governamental que condicionaram investimentos produtivos em setores chaves para a industrialização brasileira. Entretanto, no período que se seguiu, o aumento da atividade industrial na região correspondeu às demandas de maior ren-tabilidade do capital produtivo, fato que consubstanciou uma valorização desigual do espaço interiorano reconcentrando parte considerável da indústria paulista ao longo das rodovias que ligam a capital ao interior, principalmente nas Regiões Administrativas que circundam a RMSP.

7 Ver: Sposito (2004); Lencioni (1994; 2008); Sposito (2007).

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Na tabela 2 podemos observar o movimento no número de unidades industriais entre as diferentes áreas do estado, entre meados da década de 1980 e o início dos anos 2010.

Tabela 03 ‒ Evolução percentual dos estabelecimentos da indústria de transformação nas Regiões Administrativas de São Paulo e na RMSP, 1985 – 2012. 1985 = 100%; Demais anos, porcentual acumulado em relação ao ano de 1985

REGIÕES ADMINISTRATIVAS

1985 1995 2005 2012

RMSP 30.864 24 22 41Franca 924 84,3 236,3 288,3Central 1.185 68,3 110,4 176,3

Sorocaba 2.268 62,4 112,7 175,4São José dos

Campos (VPP)1.172 80,2 111,1 171,7

Araçatuba 815 53,7 109,4 169,2São José do

Rio Preto1.635 42,8 112,7 168,8

Campinas 7.737 60,2 111,8 165,7Bauru 1.119 72,2 122,3 160,9

Ribeirão Preto 1.190 57,0 101,5 160,1Marília 1.015 52,8 79,4 105,8

Barretos 339 27,7 61,4 88,8Presidente Prudente

872 35,9 51,9 75,9

Registro 182 6,0 3,8 29,1Santos 974 32,6 -0,5 24,2

Total das RA s (excluso RMSP)

21.427 58,3 106,3 157,5

FONTE: MTE-RAIS (Ministério do Trabalho e Emprego - Relação anual de Informações sociais). Org.: Ítalo Franco Ribeiro. *Inclusos os municípios que fazem parte das respectivas Regiões Metropolitanas.

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Os dados expõem a ampliação do número de estabeleci-mentos industriais nas áreas interioranas do estado, sobretudo, no entorno imediato da RMSP, enquanto essa apresenta uma elevação diminuta frente aos números das demais RA s do estado.

Outro dado importante destaca as RA s que tiveram impor-tante acréscimo nas atividades industriais e registraram um aumento acima da média do estado, se referem às RA s Central, Sorocaba, São José dos Campos; Araçatuba, São José do Rio Preto, Campinas Bauru e Ribeirão Preto.

Ao apresentarmos esses dados priorizamos efetuar um exercício metodológico que fosse capaz de nos indicar um movimento temporal e espacial das atividades industriais no estado de São Paulo. Com esse procedimento, embora muito limitado pelas características de sistematização dos dados que cobrem essa amplitude temporal, pois nos escapam uma maior desagregação para caracterizarmos com mais especificidades os ramos industriais localizados nas regiões e nas cidades, pudemos verificar que o crescimento das atividades industriais no interior do estado, acompanhado pela diminuição dessas na RMSP, não se restringiram às RA s do entorno imediato da RMSP.

Conquanto os números demonstrem uma grande concen-tração da atividade industrial na RMSP e nas RA s que a circundam – Santos, Sorocaba, Campinas, São José dos Campos, incluso nesse recorte a RA de Registro – as demais regiões do estado passaram a responder por 23,3% do número de estabelecimentos industriais, os quais no ano de 1985 representavam 17%. As RA s do entorno da metrópole passaram de 24% em 1985, para 30% em 2012, enquanto a RMSP declinou de 59% para 46% nesse mesmo intervalo.

A concentração de atividades industriais em poucas cidades do que classificamos arbitrariamente de Interior do estado sugere o fortalecimento das funções econômicas desses espaços e a maior capacidade para responder às demandas de reprodução do capital, principalmente de setores industriais mais tradicionais,

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como têxtil, calçadista, produção de couros, processamento e beneficiamento de alimentos e bebidas, além de alguns ramos mais dinâmicos com incidência de maior valor agregado, como o mecânico e metalúrgico, embora em menor medida que àqueles, e em um número reduzido de cidades.

A primazia de algumas dessas cidades em relação às regiões em que estão inseridas denotam a competência cada vez maior de articularem as atividades econômicas em diferentes escalas e polarizarem mercados regionais. As complexas interações espaciais estabelecidas correspondem às necessidades mais gerais de reprodução capitalista que se reforça a partir de um aprofundamento da divisão territorial do trabalho, que insere esses espaços no circuito de produção industrial por meio de uma simultaneidade de relações, principalmente complementares, produzindo diferentes arranjos produtivos e especializações.

Esse cenário complexo pode ser depreendido pela expres-siva concentração das atividades e ramos industriais em algumas poucas cidades em grande parte das RA s. Mesmo com as limi-tações impostas pela metodologia de exposição dos dados, que não permitem estabelecer a especificidade dos ramos industriais porque são agrupadas segundo atividades correlatas, podemos observar que as áreas que concentram as atividades industriais de maior valor agregado e atreladas a um circuito de produção com maior intensidade de capital são a RMSP e seu entorno, como pode ser visualizado na tabela a seguir.

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Tabela 04 ‒ Participação (%) das RA s e da RMSP no total dos subsetores da indústria de transformação em atividade no Estado de São Paulo, 2012

SUBSETORES INTERIOR 1 ENTORNO2 RMSP3

Mineral não Metálico 29,5 48,3 22,2

Indústria Metalúrgica 19,1 35,0 45,9

Indústria Mecânica 20,1 36,1 43,8Elétrico e Comunicações 14,5 25,2 60,4Material de Transporte 16,6 33,4 50,1

Madeira e Mobiliário 31,7 34,7 33,6Papel e Gráfica 17,9 24,1 58,0

Borracha, Fumo, Couros 23,5 24,7 51,8

Indústria Química 16,1 30,5 53,5

Indústria Têxtil 19,0 25,6 55,4Indústria de Calçados 93,7 2,1 4,2Alimentos e Bebidas 27,9 35,3 36,8

Total 23,5 30,7 45,8

FONTE: MTE-RAIS (Ministério do Trabalho e Emprego - Relação anual de Informações sociais).Org: Ítalo Franco Ribeiro. 1 Interior: RA s de Franca, Central, Araçatuba, Bauru, Registro, S. J. do Rio Preto, Ribeirão Preto, Marília, Presidente Prudente, Barretos. 2 Entornos: RA s de Sorocaba, S. J. dos Campos e Campinas. 3 RMSP. * Inclusos os municípios que fazem parte das respectivas Regiões Metropolitanas.

A partir da tabela 3, podemos observar que as regiões mais distantes da RMSP têm forte participação em setores industriais de produção com baixo valor agregado, como são os casos dos segmentos de alimentos e bebidas, calçadista, madeira e mobi-liário. Por outro lado, as regiões denominadas arbitrariamente como “Entorno” apresentam os ramos industriais com produção de maior valor agregado e com maior incremento tecnológico, influindo diretamente nos valores de transformação industrial.

Apesar dos altos índices de crescimento da atividade industrial no que chamamos de Interior, como observado para as regiões de

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Dinâmica espacial da atividade industrial

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Franca, Central, São José do Rio Preto, Ribeirão Preto, Araçatuba e Bauru, regiões que tiveram um crescimento acima da média estadual, o crescimento das atividades industriais nas regiões que classifi-camos como Entorno têm maior participação no valor adicionado da indústria. Evidentemente, isso não se refere somente aos ramos industriais, mas também à quantidade de estabelecimentos.

O gráfico a seguir demonstra como evoluiu a participação dessas diferentes regiões no valor adicionado industrial. O movi-mento revela ainda uma forte participação da RMSP no total estadual seguida pelas regiões do Entorno metropolitano. Por outro lado, o crescimento auferido pelas regiões do Interior do estado não refletem o mesmo movimento no valor da produção, revelando que a produção industrial paulista está fortemente concentrada na RMSP e nas RA s de Campinas, São José dos Campos, Sorocaba, e em menor medida, na RA de Santos.

Gráfico 01 ‒ Participação percentual das regiões do estado no valor adicionado da indústria. Total do VA do estado em 1985: 164.904.278,62 = 100%

FONTE: IPEADATA. Org: Ítalo Franco Ribeiro. Observação: Valores em R$, a preços do ano 2000; Deflator Implícito do PIB nacional (IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

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O gráfico demonstra um movimento semelhante para as RA s do Entorno e do Interior, com uma queda no valor da produção industrial entre os anos de 1985 e 1996, e recuperação nos anos que se seguiram, com um crescimento maior para as regiões do Entorno metropolitano. Já a RMSP demonstra signi-ficativa queda das atividades em todo o período, contudo, ainda o principal centro industrial do país.

A concentração das infraestruturas necessárias para as ati-vidades do maior polo industrial do país, na RMSP e seu entorno, permitiu à região do VPP acumular uma parte significativa dessas e ao mesmo tempo beneficiar-se da sua disposição na região. Ao associar a densidade dessas infraestruturas e o novo padrão de produção industrial às características dos centros urbanos localizados no VPP região, fica nítida a inserção dessa região à expansão territorial do circuito de produção da indústria. Junto à RA de Sorocaba, a RASJC (Região Administrativa de São José dos Campos) - localizada no entorno da RMSP -, é a que mais recebeu novos empreendimentos industriais ao longo dos últimos 25 anos. No entanto, as características intrarregionais guardam grandes diferenças quanto à distribuição territorial da indústria, o que rebate diretamente no aprofundamento da divisão territorial do trabalho na escala da rede urbana que se sobrepõe àquela escala regional.

Como já demonstrado no início do texto, a dinâmica eco-nômica regional é bastante concentrada nos municípios do eixo do VPP, principalmente em São José dos Campos e Taubaté. Na região, pode-se visualizar grande quantidade de empresas localizadas às margens da rodovia Dutra (BR-116), em seu trecho paulista, até a altura do município de Guaratinguetá, o qual dista aproximadamente 180 km da capital, tornando mais rarefeita a presença de empresas localizadas às margens dessa rodovia a par-tir desse trecho, no km 58, sentido SP-RJ, assim, há uma intensa atividade industrial ao longo de um trecho de aproximadamente 100 km no VPP, entre os municípios de Jacareí e Guaratinguetá.

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Dinâmica espacial da atividade industrial

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Considerações finaisA seletividade espacial da atividade industrial no estado

de São Paulo nos permite compreender parcela das estratégias locacionais do setor. Como observado, estruturas viárias que garantem maior fluidez aos deslocamentos e conectam cidades e regiões no circuito de produção de mercadorias são valorizadas e se constituem em vantagens competitivas para diferentes tipos de atividades industriais. Tais estruturas, em associação à densidade de relações econômicas que emergem em diferentes centros urbanos das redes de cidades paulistas, nos permitem inferir que essas vantagens de localização comportam, em diferentes graus, a diminuição dos custos de produção ou aumento das taxas de lucros desses agentes.

De tal modo, ao buscarem localizações privilegiadas em que possam conferir maior competitividade aos seus empreen-dimentos, esses agentes econômicos produzem uma série de diferenciações e desigualdades entre as regiões, cidades e as cidades de uma dada região. Essa produção de desigualdades conforma o movimento incessante de redefinição da divisão territorial e regional do trabalho paralelamente a criação de possibilidades distintas de reprodução do capital industrial no estado, seja em termos de fatores ou recursos. Essa dinâmica está no cerne da criação das diferenciações e especializações espaciais na medida em que elegem e constituem arranjos espaciais para o desenvolvimento de suas atividades.

A constante e mais acelerada redefinição da divisão terri-torial do trabalho e do reposicionamento de diferentes espaços no circuito de produção industrial só podem ser compreendidas à medida que lançamos nossos olhares a um contexto mais geral de transformações no ciclo de reprodução do capital, que pressupõe ampliação das escalas de atuação da produção.

Desse modo, dinâmicas que combinam a reestruturação dos processos industriais, a mundialização da economia com

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predomínio das atividades financeiras e um conjunto de inter-venções em seletivos espaços para garantir um ambiente favorável para a consecução das etapas do processo de produção – produção, distribuição, circulação e consumo – estabelecem os pressupostos fundamentais para compreendermos a dinâmica capitalista de produção da desigualdade espacial, salientadas, nesse caso, pela seletividade espacial dos investimentos de parcelas do capital industrial na região do VPP.

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Em busca de um território do desenvolvimento: análise

do estágio do PROCADAllain Wilham Silva de Oliveira

Introdução

No treinamento em nível de Doutorado, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Presidente Prudente, período de março de 2011 a março de 2015, que resultou na tese intitulada “Desenvolvimento Territorial, Políticas Públicas e Inovação Social no Alto Jequitinhonha – MG” (OLIVEIRA, 2015), foram realizadas análises referentes às políticas públicas e suas possibilidades de promover o desenvolvimento rural.

A pesquisa da tese e o estágio no PROCAD tinham como pontos confluentes a questão do desenvolvimento rural, que possibilitou realizar observações estabelecendo um contraditório na pesquisa, importante para sua ampliação e produção, ou seja, desenvolvimento territorial, políticas públicas e inovação social no Vale do Jequitinhonha. O estágio no PROCAD abriu a possibilidade de se conhecer uma realidade bastante diversa da existente no Vale do Jequitinhonha.

Foi-nos apresentada a possibilidade de participar do projeto desenvolvido em parceria com as equipes da Universidade Estadual

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Em busca de um território do desenvolvimento: análise do estágio do PROCAD

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Paulista (Campus de Presidente Prudente - SP) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por meio do Programa de Cooperação Acadêmica (Casadinho/PROCAD) dos Programas de Pós-Graduação em Geografia (Mestrado e Doutorado) das duas instituições. O objetivo do estágio no PROCAD seria auxiliar na análise da fruticultura irrigada e na sua inserção em uma nova economia globalizada do Rio Grande Norte, com os professores tutores na UFRN: Prof. Dr. Celso Donizete Locatel e Prof. Dr. Francisco Fransualdo de Azevedo (PPGe – UFRN) e orientação e co-orientação do Prof. Antonio Nivaldo Hespanhol e da Profa. Rosangela Aparecida. M. Hespanhol (FCT-UNESP). O período de estágio na UFRN teve início em 20 de agosto de 2014 e término em 23 de setembro de 2014.

O plano de trabalho elaborado consiste em levantamento bibliográfico e documental referente à fruticultura no Estado do Rio Grande do Norte e realização de trabalho de campo nos Vale do Apodi-Mossoró e Açu. Foram feitas observações sistemáticas e realizadas entrevistas com dirigentes de empresas processadoras de frutas, na Cooperativa de Fruticulturas dos Irrigantes, na Cooperativa de Beneficiamento de Frutas Tropicais do Estado do Rio Grande do Norte (COOPERFRUT), em Mossoró, e na Associação dos Produtores da Agricultura Familiar de Ipanguaçu, em Ipanguaçu (DIBA). Também foram realizadas entrevistas com produtores rurais irrigantes do Projeto de Irrigação Baixo Açu, irrigantes do polo produtor de melão de Baraúna e pro-dutores de castanha no município de Serra do Mel. Dados e informações de fonte secundária foram obtidos na Secretaria da Agricultura e Pecuária do Rio Grande do Norte, na Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte (EMPARN) e no Instituto de Defesa e Inspeção Agropecuária do Rio Grande do Norte (IDIARN), além de participarmos de atividades acadê-micas coordenadas pelos Professores Celso Donizete Locatel e Francisco Fransualdo de Azevedo, na UFRN, e Sistematização dos resultados obtidos por meio das pesquisas bibliográfica, documental e empírica.

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Allain Wilham Silva de Oliveira

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Esse artigo, que se constitui em um memorial da experiên-cia no PROCAD, contribuiu para aprofundar e fazer contrapontos importantes na pesquisa de doutorado, que se encontrava em fase final. Na primeira parte do artigo serão feitas considerações sobre a fruticultura irrigada do Rio Grande do Norte e na segunda, serão efetuadas as conexões com o tema e com os resultados da tese de doutorado e, por fim, serão apresentadas as considerações finais.

A fruticultura irrigadaA experiência no Rio Grande do Norte se inicia não pro-

priamente em uma inserção no processo de organização da fru-ticultura, mas em um trabalho de campo, com a finalidade de conhecer a gestão hídrica na região do Seridó, com encerramento no Vale do Açu, um território com forte presença da fruticul-tura irrigada. No trabalho de campo, coordenado pelo professor Francisco Fransualdo de Azevedo, foi observado que a questão da gestão da água se apresenta como fundamental na região e a governança desse recurso já se coloca como uma questão impor-tante para a vida do sertanejo, para o desenvolvimento regional, com especial destaque para a fruticultura irrigada e sua ligação com os processos socioespaciais regionais e extra- regionais.

A segunda inserção na realidade da fruticultura irrigada foi uma investigação sobre os órgãos do Estado do Rio Grande Norte, que poderiam ter uma vinculação com a fruticultura irrigada. Assim, procedeu-se a uma visita seguida de uma entrevista na Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte (EMPARN), que tem por objetivo gerar, adaptar e transferir conhecimentos e tecnologias para o agronegócio, visando o desen-volvimento sustentável, no Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), cujo objetivo é contribuir para a promoção do agronegócio e do bem-estar da sociedade, com foco na agricultura familiar através do serviço de extensão rural pública com qualidade, para o desenvolvimento sustentável, e também uma visita à cidade de Baraúna. Por fim, uma visita ao

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Instituto de Defesa e Inspeção Sanitária (IDIARN), cujo objetivo é realizar a defesa e inspeção agropecuária, assegurando a oferta de produtos de qualidade, contribuindo para a preservação da saúde pública e do meio ambiente e para o aumento da competitividade do Estado do Rio Grande do Norte.

Nos órgãos visitados, a EMPARN e a EMATER, a palavra citada nas entrevistas com os técnicos que resume as atuações atuais no Estado é “esvaziamento”. Houve ao longo do tempo um forte sucateamento das entidades em termos de recursos humanos e equipamentos. Na EMPARN, boa parte de seus ser-vidores é cedida pela EMBRAPA. A EMATER, municipalizando suas ações, se transforma em órgão expedidor de Declarações de Aptidão ao PRONAF (DAP), com predomínio de bolsistas entre os extensionistas.

Essa observação se complementa com a visita ao IDIARN que, diferentemente dos dois primeiros órgãos, tem seus pro-blemas, mas em menor proporção, pois a este sim se conjuga o pretenso papel do Estado no desenvolvimento regional, que é o de fiscalizar e auxiliar o mercado da fruticultura irrigada.

Nas visitas e na realização de entrevistas nesses órgãos, observou-se que a fruticultura irrigada absorve boa parte da atenção, esforço e recursos, buscando fortalecer um modelo ligado ao mercado, com forte apoio do poder público. Adota-se nesses órgãos uma visão neoliberal, por meio da qual se considera que o mercado é capaz de gerar o progresso e a integração do território. Portanto, o mercado regula e ao mesmo tempo provoca avanços econômicos. Uma primeira análise é a de que esse modelo minimiza o papel do Estado como condutor e estimulador do processo de desenvolvimento.

Esse discurso é atinente nas suas proposições no atual momento. Logo, esse modelo é uma visão de mercado que mostra a necessidade do crescimento, que corresponde, em uma última análise, às melhorias dos indicadores econômicos, em especial do Produto Interno Bruto (PIB) regional, com a inserção das frutas

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na pauta de exportação. Pode-se afirmar que se trata de uma análise ortodoxa, a partir da qual o desenvolvimento regional nada mais é que uma adequação do sistema à competição global, baseado no crescimento econômico.

A segunda parte do trabalho foi realizada por meio de uma visita a agricultores na região da fruticultura irrigada no município de Baraúna (RN) e no Vale do Açu (RN), onde foram realizadas entrevistas e feitas observações de campo com o obje-tivo de conhecer a forma de se produzir as frutas e, ao mesmo tempo, sua inserção no mercado.

As características da produção geral dos fruticultores são: elevado grau de dependência de produtos químicos na produção; utilização de mão de obra familiar, combinada com a utilização de força de trabalho assalariada; baixo nível de organização sindical; e não organização em associações ou cooperativas. Os principais destinos da produção dos grandes e médios produtores são as centrais de abastecimentos, redes de supermercados e atacadistas da região Centro-Sul do país.

Outro fato importante é a ausência do Estado no apoio à produção e na concessão de serviços públicos de assistência técnica e extensão rural. Os produtores rurais demandam essa assistência à iniciativa privada, com a prestação de serviços por parte de agrônomos e das casas de produtos agropecuários. Mas ao reafirmar a ausência do Estado, não se pode negar a existência do poder público na cadeia produtiva da fruta, pois esses agricultores têm em sua quase totalidade a garantia do binômio água-terra feita pelo Estado, que é a base do sistema de produção da agricultura irrigada.

Uma importante característica do primeiro grupo de agri-cultores originários de uma migração rural-rural, assentados da reforma agrária (irrigantes) ou, ainda, que adquiriram as propriedades via compra de assentados, é a forma de realizar o comércio de seus produtos por meio das centrais de abastecimento ou da integração com empresas. A venda pode ser efetuada tanto

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para as CEASAS como para exportação, como, por exemplo, para a empresa capixaba Interfruit1, que estabelece parceria com alguns produtores e repassa as frutas para o mercado interno ou para exportação. Pode-se observar, portanto, um grupo de produtores associados aos círculos produtivos da globalização.

Um segundo grupo são produtores não originados de assen-tamentos, mas que possuem terra e acesso à água para irrigação, com a utilização de poços artesianos. A diferenciação está na menor capitalização e na forma de se inserir no mercado, que se processa por meio de atravessadores que revendem os produtos ao mercado local ou regional, principalmente em supermerca-dos e pequenos comércios, com uma inserção em um círculo de produção regional.

Por fim, um tipo de agricultor altamente capitalizado, que tem sua produção direcionada para empresas, constituindo, de fato, uma média empresa agregada a outras maiores, em especial no fator comercialização. Deste, o quê e o como plantar é definido pela empresa integradora, um commodity típico agregado a um complexo agroindustrial da fruticultura. Um processo de inserção no mercado, no qual o produto final é da empresa, e esta também é responsável pela venda para o circuito de comercialização da fruta.

As empresas rurais, além da produção de frutas, também realizam a comercialização com elevada integração ao mercado

1 De acordo com as informações contidas no site da empresa, com sede em Linhares, no Espírito Santo, “a Interfruit distribui diariamente sua produção para diversos estados brasileiros, principais países da Europa, Estados Unidos e Argentina. Com vasta experiência em logística de produtos perecíveis, a equipe da Interfruit garante qualidade do produto, desde sua colheita até a distribuição aos clientes. A empresa atende ao mercado externo através de embarques aéreos e marítimos que saem dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Uma moderna frota de caminhões abastece o mercado interno e transporta encomendas e transporta encomendas do interior até os pontos de embarque”. Fonte: http://www.interfruit.com.br/.

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global e com uma área logística de produção e distribuição voltada para a exportação. Elas se associam ao Estado na pesquisa (no trabalho de campo encontram-se experimentos em conjunto com a EMBRAPA), na manutenção e implantação de infraestrutura de transportes (estradas e portos) e mesmo na fiscalização e liberações fitossanitárias. É um agronegócio associado à dispo-nibilidade da irrigação, providenciada pelo Estado e, ainda, com relações territoriais e locais importantes, como sua relação com os trabalhadores e governança do recurso água para sua atuação.

Esse modelo de inserção regional se associa a novas formas de acumulação do capital. O modelo, do ponto vista espacial, com condições de livre concorrência, sem interferência do Estado, tende a dispersar as atividades econômicas com relativa homo-geneidade onde houver a disponibilidade de irrigação. Percebe-se que o progresso técnico é um elemento importante para esse modelo de espaço.

O modelo fruticultura irrigada não resulta no desenvolvi-mento territorial, mas pode produzir uma ação que redundará no crescimento econômico em um território com fortes desigualdades sociais e espaciais. Pode-se mesmo afirmar que ele depende absolutamente da dinâmica do sistema econômico, assim não considera rupturas sob nenhum aspecto, seja tecnológico, quadro socioeconômico, institucional, influenciando no comportamento estratégico dos agentes sociais, econômicos e políticos. Na rea-lidade, ele depende do equilíbrio das leis do mercado e, no caso da agricultura irrigada, da disponibilidade hídrica.

Esse modelo acrescenta novas perspectivas ao semiárido, mas traz fragilidades ao desenvolvimento, dentre as quais se podem apontar a ausência de uma articulação socioespacial, além de ressaltar alguns aspectos e negligenciar outros, de acordo com interesses de grupos que se apropriam do capital natural (água-solo).

Assim, a força de análise permanece frágil e parcelada, o que torna as ações de âmbito político também frágeis e mesmo

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negligenciadas, repercutindo apenas em difusão de tecnologia exógena, e, como consequência, em profundas rupturas socio-espaciais, com ampliação da exclusão social e subordinação a economias externas. Ainda, acredita-se que os impactos resul-tantes desses projetos exógenos sobre organizações espaciais preexistentes afetam o todo social nas esferas econômica, política, social, cultural e ambiental.

O uso da irrigação associada ao trato com o solo, assim, uma inovação técnica na ação do sistema solo-água, é algo que produz o crescimento econômico associado à concentração de recursos naturais e tecnológicos, ou seja, constitui um reflexo da necessidade de expansão do sistema, afirmando a teoria do desenvolvimento desigual e combinado; o que permite concluir que a inovação tecnológica está onde ela pode permitir maior rentabilidade e uma maior reprodução ampliada do capital, e sua presença indica tanto a existência de condições especiais instaladas previamente para possibilitar seu uso eficiente.

Desse modo, ao observar as ideias Schuperterianas de inovação por tecnologia, o conceito de inovação estaria na base do capital, sendo a busca pelo lucro, principalmente, tempo de trabalho e de rotação dos capitais socialmente necessários. Assim, constitui-se um espaço a serviço do capital e de sua reprodução. Logo, a valorização capitalista está na base da inovação e os aspectos espaciais e tecnológicos são importantes, bem como a busca por uma competitividade.

Portanto, os comportamentos inovadores não são extrater-ritoriais, mas dependem de variáveis no plano local ou regional, associados a vantagens competitivas locacionais e retroalimen-tadas por articulação escalar, um local propício à difusão de inovação. A inovação possui seu vínculo com o desenvolvimento tecnológico, e quando analisada dentro de processos de competi-vidade regional, ela configuraria em modificações impostas nas relações entre os produtores de frutas, em um sentido amplo do recrutamento de um espaço para irrigação e divisão territorial

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do trabalho, objetivando mudanças organizacionais nos processo produtivos com o aumento da eficiência e eficácia, para a com-petição entre regiões. Dessa forma, intrinsicamente associado a características do lugar e do território.

Por uma inovação socioespacial - um contraditório manifesto

Na tese de doutorado, analisou-se a inovação social no Vale Jequitinhonha (MG), um espaço periférico, objeto de políticas públicas voltadas ao atendimento de agricultores excluídos do processo de modernização. É um paradoxo para a situação colo-cada pelo estágio do PROCAD, pois essa realidade é baseada na tecnologia, no capital e na globalização, centrado nas relações do capital. Para o entendimento desse paradoxo, deve-se anali-sar o que seria a inovação social desejada e a inovação técnica territorializada na agricultura irrigada para produção de frutas.

O conceito de inovação social rejeita o tradicional e a apli-cação de tecnologia focada do termo “inovação”, que tem sido fundamental para a política de desenvolvimento em favor de uma leitura mais sutil, pois valoriza os ativos de conhecimento e cultu-ras das comunidades e coloca em primeiro plano a reconfiguração criativa de relações sociais (MACCALLUN et al., 2008). Por outro lado, ele difere da mera participação em serviço público, pois é uma ação comunitária e não do Estado ou do mercado; por isso possui uma base territorial de inclusão social, empoderamento e atendimento de necessidades sociais.

Essa visão, na qual se originam os estudos realizados pelo CRISES2 (Centre de Recherche sur lês Innovations Sociales) - em um centro interuniversitário e interdisciplinar que reúne diversos pesquisadores, inclusive muitos geógrafos – aborda a inovação social através de três eixos complementares: território, condições de vida e trabalho e emprego. As pesquisas sobre inovação social e

2 <http://crises.uqam.ca/>.

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Em busca de um território do desenvolvimento: análise do estágio do PROCAD

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território buscam analisar o papel dos atores sociais e suas práticas inovadoras no âmbito local. Os estudos sobre inovação social e qualidade de vida se inclinam para a melhoria das condições de emprego, renda, saúde, educação, segurança e moradia. Nesse caso, os pesquisadores, sobre trabalho e emprego, atentam para as dimensões organizacionais e institucionais que se relacionam com a regulação, a governança, o emprego e a organização do trabalho (LÉVESQUE, 2008).

A principal análise do centro de estudos canadense é a confluência entre inovação e transformação, entendendo a ino-vação social como:

Um processo iniciado pelos atores sociais para responder a uma aspiração humana, suprir uma necessidade, trazer uma solução ou aproveitar uma oportunidade de ação na intenção de mudar as relações sociais, de transformar um quadro de ação ou de propor novas orientações culturais. (Tradução deste autor) (LÉVESQUE, 2008, p. 191).

Para Fontam (2008; 2010), a inovação social seria a ins-titucionalização de uma novidade, sendo que esse processo se desenvolve em três tempos precisos e articulados. Primeiro, o espaço da criação, invenção ou descoberta, que pode ser um novo conhecimento, uma nova forma de ação social ou de relações de poder. Posteriormente, a adoção dessa novidade e sua integração ao uso social e, finalmente, a territorialização, que será marcada por sua institucionalização, podendo significar um modelo ter-ritorial de desenvolvimento que passa a interferir na forma de produção e reprodução social. São três períodos distintos, nos quais um conjunto complexo e diversificado de mecanismos de seleção/disputas de uma novidade é efetivado por caraterísticas econômicas, culturais, ambientais e políticas, transformando o espaço e ao mesmo tempo demarcando a inovação de base social e territorial.

A partir dessa perspectiva, a inovação social não seria algo criado a partir do nada, mas sim a partir de subsequentes

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Allain Wilham Silva de Oliveira

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“novidades” nas relações sociais, no espaço-território, de modo que rompa suas inércias espaciais - nesse caso, a ausência de desenvolvimento ou seja, uma relação cuja concepção ideal pro-duz relações socioterritoriais. As ações que exibem um caráter individual sem a sua institucionalização podem ser classificadas como novidade, pois segundo Comeau (2004, p. 37), a inovação social “confronta o estabelecido, ou seja, ela derrota o habitual, ela ultrapassa a rotina e desafia as restrições”. Ela é, portanto, uma proposta desafiadora para os tempos atuais de mercado pleno. Logo, pode-se defini-la como um paradigma que ultrapassa o tecnológico e o econômico e tem seu uso a partir da década de 1990 (MOULAERT 2005), na busca por um desenvolvimento territorial crítico emancipatório.

Então, um paradoxo imposto pelo estágio do PROCAD, uma nova realidade dentro de um quadro teórico, pois a inovação da fruticultura irrigada é técnica e do capital, mas a adversidade pode ser um momento para confirmar a visão teórica. A irrigação para o agronegócio não gera superação dos atrasos estruturais do semiárido ou do quadro regional do nordeste, apenas é uma nova forma de se apropriar do espaço, originário nas capitanias hereditárias com as plantations de cana-de-açúcar.

Assim, o contrário pode significar busca de novas utopias e confirmar o paradigmático na busca da superação de atrasos estruturais, não via mercado ou na globalização, mas na base territorial, com inclusão social, empoderamento e atendimento de necessidades sociais com origem nas comunidades, no local, como no caso do estudo da tese defendida na UNESP. Um resultado positivo propiciado por um estágio, o PROCAD (casadinho da UFRN/ UNESP).

Considerações finais O estágio do PROCAD/CASADINHO/UFRN/UNESP pro-

piciou o desenvolvimento de atividades relevantes no processo de treinamento do doutorado, não apenas pelo fato de conhecer

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Em busca de um território do desenvolvimento: análise do estágio do PROCAD

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novos lugares e enfrentar novos desafios, como pelo conhecimento adquirido e mesmo no incremento da tese com novas ideias.

Então, vê-se no estágio do PROCAD uma realidade de sen-tido contrário de inovação técnica, com sua origem e repercussões territoriais associadas ao capital do agronegócio, ao mercado, na sua expressão atual marcada pela forte globalização. Esse modelo de fruticultura irrigada acrescenta novas perspectivas ao modelo do desenvolvimento regional, com crescimento econômico, porém não é uma realização exógena, ela se articula produzindo um novo território do agronegócio da fruticultura que pode ser considerado do ponto vista de suas relações externas, mas com fundamentais relações internas no lugar e no território, com a apropriação cultural e natural pelo capital, apoiados por políticas públicas.

Uma territorialidade sem significados de inclusão social ou de sustentabilidade, uma fronteira do agronegócio e uma expressão da desigualdade socioespacial em um contexto em que a adoção de inovações nas relações sociais poderia significar uma nova inserção na globalização, não apenas no mercado, mas no atendimento das necessidades, preservação ambiental, inclusão social, utopias para outros mundos possíveis.

ReferênciasCOMEAU, Y. Les contributions dês sociologies de l’innovation à l’étude Du changement social. Actes Du Colloque Innovations Sociales et Transformations dês Conditions de Vie. Montreal: Cahiersdu Crises, n. 29-41, 2004. FONTAN, J. M. Developpement territorial et Innovation Sociale. In: BELLEMARE, G.; KLEIN, J. L. (Dir.). Innovation sociale et territorie: convergences théoriques et pratiques. Québec: Presses de l’ univer-sité du Quebec, 2011. p. 25 52.FONTAN, J. M; KLEIN, J. L; TREMBLAY, D-G. Des districts indus-triels au développement par l’initiative locale. In: CARY, P.; JOYAL, A. (Dir.). Penser les Territoires: en Hommsge à Georges Benko. Quebec: Presss de l’Univerite du Quebec, 2010. p. 156-171.

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Allain Wilham Silva de Oliveira

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LÉVESQUE, B. Le potentiel d’innovation et de transformation de l’économie sociale: quelques éléments de problématique. Interações, Campo Grande, v. 9, n. 2, p. 191-216, jul./dez. 2008.MACCALLUN D.; HILLER, J.; MOULAERT, F.; VICARARI, S. (Org.). Social innovation and territorial development. Lile-Leuven: IFRESI-CNRS, 2008. 240 p.MOULAERT, F.; NUSSBAUMER, J.La región social. Más allá de ladinámica territorial de laeconomíadelaprendizaje. Ekonomiaz, Revista Vasca de Economia, v. 58, p. 96-127, 2005.OLIVEIRA, A. W. S. Desenvolvimento Territorial Políticas Públicas e Inovação social no Alto Jequitinhonha-MG. 2015. 295 f. Tese (Doutorado) - Curso de Geografia, Geografia, Unesp- FCT Presidente Prudente, Presidente Prudente, 2015.

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Reestruturação produtiva e mundo do trabalho:

uma análise das contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e

as relações de produção capitalistas

Nildo Aparecido de Melo“Se o proletariado derrocar o domínio

político da burguesia, sua vitória será apenas temporária, enquanto as

condições materiais ainda não tiverem sido criadas para tornar necessária a

abolição do modo burguês de produção”.

Karl Marx “O Capital: crítica da economia política”

Introdução

As transformações e a desestruturação do mundo do trabalho devem ser compreendidas no contexto da crise do fordismo/taylorismo do início da década de 1970 e do consequente processo de reestruturação do capitalismo desencadeado a partir daí, tendo como fundamento as contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas (reestruturação produtiva e revolução tecno-lógica) e as relações de produção subjacentes que determinam o estágio da luta de classes e os conflitos entre o capital e o trabalho no capitalismo contemporâneo.

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Reestruturação produtiva e mundo do trabalho

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Tal movimento de reestruturação produtiva envolveu elementos significativos do modelo de desenvolvimento e engen-drou a desestruturação/precarização das condições e relações de trabalho, bem como a rediscussão dos preceitos que permeavam o processo de desenvolvimento econômico diante do questiona-mento das medidas keynesianas de incentivo ao investimento e ao emprego formal dos “anos dourados” do capitalismo do pós-guerra.

O Brasil se inseriu de forma passiva e subordinada nesse conjunto de transformações reestruturantes, articuladas aos interesses dos organismos internacionais e dos países desenvol-vidos, através da adoção do receituário neoliberal na economia nacional, representada pela abertura comercial e financeira indiscriminada, pela estabilização monetária e pelas reformas estruturais, tendo como corolário a desestruturação do mercado de trabalho nacional, representada pela elevação das taxas de desemprego durante a década de 1990, a informalidade do mundo do trabalho e a deterioração/precarização das condições e relações de trabalho, durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello e nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Mesmo com o advento de um governo de base “popular”, representado pela chegada ao poder do Presidente Luís Inácio Lula da Silva e a ampliação do processo de formalização das relações de trabalho em todo o país, permaneceram problemas históricos do mercado de trabalho nacional, tais como a informalidade e a precarização das condições e relações de trabalho, expressa nas altas taxas de rotatividade da mão-de-obra empregada no setor produtivo.

Nos estertores da manutenção de uma reserva de mão-de-obra para ser explorada a qualquer tempo pelo capital e da precarização do trabalho, ressurgem alternativas de trabalho como forma de reinserção dos trabalhadores excluídos pelo movimento de reestruturação capitalista, tais como a economia

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solidária. No entanto, tal forma de empreendedorismo social tem a mesma função do exército de reserva e do trabalho precarizado, qual seja a contenção das contradições sociais configuradas pela aceleração do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas em tempos recentes.

As contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção sob o capitalismo

No famoso prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859, Marx (1982), caracterizou o decurso histórico como uma sucessão de modos de produção, ou seja, a história conformada a partir das relações dos homens com suas bases materiais de produção determinando todo o progresso social e as relações subjacentes, a saber: “na produção social de sua própria existência, os homens entram em relações determinadas, indispensáveis, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado do desen-volvimento de suas forças produtivas materiais (...)” (MARX, 1982, p. 82).

Ao analisar o funcionamento do modo de produção capita-lista, Marx (1982), afirmou que toda produção tem caráter social e que o trabalho é a única fonte criadora de valor, descrevendo as relações sociais contraditórias e constituintes do capitalismo: a produção é realizada coletivamente, através da venda da força de trabalho aos detentores dos meios de produção e do uso das técnicas disponíveis em determinado período histórico, mas contraditoriamente, a apropriação do produto é realizada de forma privada, fundando e configurando as relações sociais básicas da economia capitalista.

Contudo, a pressão da classe trabalhadora (como expressão dos antagonismos e da luta de classes) suscitam investimentos no ramo da ciência e da pesquisa científica, com a consequente

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Reestruturação produtiva e mundo do trabalho

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formação e difusão de inovações tecnológicas incorporadas ao processo produtivo, que tendem a reduzir a quantidade de tra-balho necessária por unidade de produto, mantendo-se, assim, por um lado, uma elevada oferta de mão-de-obra e um exército de reserva disponível a qualquer tempo ao capital. Por outro lado, os investimentos em ciência e tecnologia, levados a cabo pela classe capitalista, permitem a manutenção da posição de classe na estrutura social e a conservação de elevadas taxas de acumulação de capital.

Portanto, os antagonismos de classe estão inexoravelmente articulados à contradição imanente do capitalismo que determina os rumos da história e a própria posição das classes sociais no interior desse modo de produção, isto é, a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção subjacentes, determinantes do próprio estado da luta de classes, de acordo com o desenvolvimento material e produtivo no modo de produção capitalista.

Assim sendo, as forças produtivas são caracterizadas como a base material da sociedade, aonde se desenvolve a produção especificamente capitalista, permeada e determinada pela divisão da sociedade em duas classes sociais antagônicas. A propriedade econômica das forças produtivas corresponde, por sua vez, às relações de produção estabelecidas na sociedade e determinadas pela exploração da força de trabalho como fonte de formação e ampliação do capital posto em movimento no processo de produção de mercadorias sob o modo capitalista de produção (MARX, 1982).

A contradição assumida pelas forças produtivas e as relações de produção em determinado período histórico, explicitaria o poder de explicação dessas relações como motor da história, pois “em um certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes, dentro das quais até então funcionaram”

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(MARX, 1982, p. 83), passando a se caracterizar como entraves ao próprio processo de desenvolvimento econômico.

Nesse contexto, teria ocorrido á substituição do modo feudal de produção pelo capitalista, por meio do impedimento das restrições feudais ao pleno desenvolvimento e emprego das forças produtivas em seu interior, como no caso da manufatura, que exigia a concentração de um grande número de trabalhadores em um só lugar, entrando em contradição com os laços feudais ou semifeudais de ligação umbilical dos produtores a seus mestres e senhores em locais de produção isolados e dispersos (COHEN, 2010, p. 79).

Da mesma forma, nos primórdios do modo capitalista de produção, a burguesia na grande indústria (através da articulação da ciência com a tecnologia), passou a intensificar a jornada de trabalho, através do aumento constante da produtividade do trabalho em um mesmo período de tempo, como resposta capitalista a proibição do prolongamento ilimitado da jornada de trabalho e do uso extensivo de mão-de-obra infantil e feminina no processo produtivo.

Esse processo se deu através da aceleração das máquinas (desenvolvimento das forças produtivas) ou da supervisão de um número cada vez maior de máquinas por parte dos trabalhadores. O aperfeiçoamento das máquinas, por sua vez, aumentou a tensão do trabalho e a extração de mais-valia relativa em um período de tempo cada vez mais curto, determinando com isso, a posição das classes sociais no processo de produção, acumulação e ampliação do capital (MARX, 1988).

No atual estágio do capitalismo contemporâneo é esse movimento de desenvolvimento das forças produtivas (deter-minantes da posição da classe trabalhadora na luta política e ideológica de emancipação social) e as contradições daí resultantes no que diz respeito às relações de produção, que determinam a reestruturação capitalista advinda da crise do modelo de desen-volvimento fordista/taylorista nas últimas décadas do século XX.

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Reestruturação produtiva e mundo do trabalho

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O fordismo/taylorismo como modelo de desenvolvimento do capitalismo

Sob o modo capitalista de produção, o modelo de acumula-ção gestado durante a Segunda Revolução Industrial, tornou-se predominante até meados da década de 1970, sendo considerado como uma forma de extração de mais-valia através da produção de bens industriais em larga escala (fordista) e de controle científico e gerencial do trabalho inserido no processo produtivo (taylorista).

Fordista porque derivado da implantação de esteiras rolan-tes de montagem para a fabricação do Modelo “T” na indústria automobilística de Henry Ford em 1914, com a proposição da jornada de oito horas e o pagamento de cinco dólares por dia de trabalho, como forma de incentivar a demanda efetiva por produtos de consumo das indústrias da época (BRAVERMAN, 1987, p. 130).

O fordismo passou a ser considerado um modelo de acu-mulação baseado na intrínseca articulação entre produção em massa, através da estandardização e da padronização dos produtos e equipamentos de produção, dos ganhos de economia de escala e da configuração de um conjunto de medidas institucionais, eco-nômicas e sociais que possibilitaram a consolidação e ampliação desse modelo de acumulação no pós-guerra, intrinsecamente articulado às políticas keynesianas de incentivo à demanda efetiva, no sentido de manutenção da acumulação de mais-valia relativa naquele período histórico do capitalismo.

Já o taylorismo deriva de seu inventor, o engenheiro Taylor (1865-1915), no decorrer do modo de produção capitalista em sua fase industrial e baseia-se no radical aumento da “produtividade do trabalho através da decomposição de cada processo de trabalho em movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento” (HARVEY, 1996, p. 121).

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Dito de outra forma, o taylorismo caracteriza-se pelo rigo-roso controle social do trabalho no processo produtivo, como forma de extrair o máximo de mais-valia e produtividade do trabalhador sob as condições e relações capitalistas de produ-ção e consumo, configurando-se como “a mais decisiva medida simples na divisão do trabalho tomada pelo modo capitalista de produção. Inerente a esse modo de produção desde os inícios, e se desenvolve, sob a gerência capitalista, por toda a história do capitalismo”. (BRAVERMAN, 1987, p. 112).

Assim, o taylorismo é compreendido como um método de organização do trabalho permeado pela estrita separação entre as atividades de concepção e execução de tarefas, engendrando a parcelização do trabalho. Cabe ao trabalhador realizar ape-nas alguns gestos simples e rotineiros no processo produtivo, comandados pela gerência científica do trabalho, isto é, todo o processo de trabalho passou a ser controlado pela administração capitalista através da elaboração científica de um conjunto de normas, regras e fórmulas a serem seguidas pelo trabalhador no processo produtivo (BRAVERMAN, 1987).

Contudo, como bem destacou Braverman (1987), o taylo-rismo representa muito mais que o controle dos movimentos dos trabalhadores no processo de extração de mais-valia relativa, constituindo-se em uma teoria representativa da configuração e consubstanciação do próprio modo capitalista de produção ou da natureza do processo de trabalho capitalista. Da mesma forma, o taylorismo é a realização ampliada das características descritas por Marx (1988) sobre a natureza do trabalho no capitalismo, representadas pela parcelização de tarefas, especialização de funções, incorporação do saber técnico no maquinismo, o homem tornado apêndice da máquina, o caráter despótico da direção, entre outras formas de controle do trabalho e de extração ampliada e permanente de mais-valia relativa no processo produtivo.

Ao contrário do postulado e tido como verdade absoluta, derivada da interpretação equivocada da literatura sobre a

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Reestruturação produtiva e mundo do trabalho

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produção industrial e a incorporação da maquinaria na grande indústria, o taylorismo não pode ser considerado estritamente como uma forma de organização e de gerência do trabalho dentro das fábricas, em detrimento do fordismo que é associado com a ideia da construção de uma nova sociedade, conformando-se mesmo como o modelo de acumulação hegemônico no pós-guerra.

Ambos são complementares e funcionais ao processo de extração de mais-relativa, através da intensificação do trabalho no interior do processo produtivo. Segundo Braverman (1987), o fordismo representa o aprofundamento e a aplicação privilegiada dos princípios tayloristas, tratando-se de um desenvolvimento historicamente crucial dos métodos formulados por Taylor, levados a cabo na produção em massa e na estandardização da produção fordista para o consumo em massa.

Assim sendo, os princípios complementares e articulados do taylorismo e do fordismo (tido como modelo de acumulação do pós-guerra) representaram a intensificação do trabalho no interior do processo produtivo, através do emprego de inúmeros trabalhadores, possibilitando a acumulação ampliada de capital, articulada a aplicação das políticas keynesianas de regulação da demanda efetiva, sem a necessidade do aprofundamento do desenvolvimento das forças produtivas, no período do pós-guerra com a “aliança” de classes que engendrou “os anos dourados do capitalismo”.

Crise do modelo fordista/taylorista, reestruturação produtiva e mundo do trabalho

Tal modelo de desenvolvimento entrou em crise no início da década de 1970, desencadeando um movimento de reestruturação capitalista, colocando em xeque o “pacto” e a “aliança de classes sociais” forjados durante os “os anos dourados” no pós-guerra, que proporcionaram taxas de crescimento econômico sem precedentes na história do capitalismo. Além disso, passou a ser amplamente

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questionada a orientação, o controle e o planejamento do mercado pelo Estado, as políticas de Bem Estar Social e o pesado ônus das leis trabalhistas e garantias de emprego sobre a acumulação de capital, nos países capitalistas avançados.

Do mesmo modo, foi posto em questão o modelo de incen-tivo a demanda efetiva por bens e serviços, baseado nos princípios keynesianos de funcionamento da economia capitalista e do amplo papel do Estado no processo de desenvolvimento econômico e social (DILLARD, 1989).

Noutros termos, o desenvolvimento das forças produtivas entrou em contradição com as relações de produção, engendrando transformações profundas nas formas de regulação social, cujo pilar era o assalariamento e as proteções sociais aos mais vulnerá-veis economicamente, nas formas de produção (de base fordistas/tayloristas) e nas relações estabelecidas entre o capital e o trabalho na sociedade e na economia, mediadas pelo Estado keynesiano, cuja aliança de classes possibilitava a extração de mais-valia sem a necessidade de transformações profundas no modo de produção, isto é, no desenvolvimento das forças produtivas capitalistas.

Essa contradição do capitalismo teve como expressão intrínseca um movimento político e ideológico direcionado contra o trabalho organizado, contra a rigidez das leis trabalhistas de proteção e “pleno-emprego” e contra a representação sindical, (todos esses fatores considerados como obstáculos à acumulação de capital e ao crescimento econômico), engendrando a crise do mundo do trabalho, expressa no aumento do desemprego, na diminuição do poder de compra dos assalariados (que era um dos pilares do antigo modelo de regulação das relações capital/trabalho sob o fordismo) no (re)surgimento de formas atípicas de trabalho (trabalho parcial, temporário e por tempo determinado) e na desestruturação/precarização das condições e relações de trabalho.

A crise do modelo fordista/taylorista apontou para um movimento de reestruturação capitalista no início da década de

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Reestruturação produtiva e mundo do trabalho

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1970, envolvendo elementos significativos do modo de produção, tais como a globalização/mundialização do capital, o neolibera-lismo econômico e financeiro e a Terceira Revolução Industrial e Tecnológica de base microeletrônica, determinando a crise do mundo do trabalho, expressa no aumento do desemprego e na precarização das condições e relações de trabalho.

Nessa perspectiva, nos estertores da constituição de uma economia global/mundial como articulação da unicidade técnica do capital, da convergência dos momentos, da formação do motor único e da cognoscibilidade do planeta, explicitando esse processo como uma globalização perversa (SANTOS, 2001) e da mundia-lização do capital, como uma fase específica do movimento de internacionalização do capital e de sua valorização (CHESNAIS, 1996), as pesquisas e análises apontaram para o crescimento significativo do desemprego, para o aumento da pobreza, da fome e do desabrigo e para o alinhamento nas condições mais desfavoráveis aos assalariados, como resultado da flexibilização e da desregulamentação das relações de trabalho sob a globaliza-ção/mundialização do capital e do neoliberalismo como modelo político/ideológico desse processo.

Nas mesmas condições, segundo o neoliberalismo, a deses-truturação do mundo do trabalho seria expressão do questio-namento dos sistemas de proteção social baseados em políticas keynesianas e da reorientação das políticas econômicas para a livre concorrência como regra básica das relações sociais e para a efetivação das condições favoráveis para o aumento da lucratividade e da acumulação de mais-valia, representando a desregulamentação e a flexibilização das relações e condições de trabalho, colocando como premissa a ideia de que o crescimento do desemprego seria necessário para a eficiência de qualquer sistema baseado na economia de mercado (ANDERSON, 1995) e na neutralidade econômica do Estado que deveria apenas “limi-tar-se a fazer respeitar regras muito gerais do jogo, garantindo

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a ordem social e a segurança da propriedade, pano de fundo do livre funcionamento dos mercados” (BRUNHOFF, 1991, p. 40).

No que tange a Terceira Revolução Industrial e Tecnológica (configurada por um novo paradigma tecnológico determinado pelo complexo eletrônico e pelas tecnologias da informação), as transformações no mundo do trabalho caracterizam-se pela substituição crescente do trabalho humano pelo uso intensivo do computador e pela ruptura com os padrões rígidos da produ-ção fordista através da adoção do just in time (gestão de fluxos) em contraposição ao just in case do modelo fordista/taylorista, configurando a formação de uma economia flexível, baseada no toyotismo.

Essas transformações na base técnica produtiva por sua vez apontaram para a determinação de um paradoxo no mundo do trabalho, representado pela deterioração das condições e relações de trabalho, através do aumento do trabalho parcial (part time) em detrimento do emprego em tempo integral (full time), de um lado e, por outro lado, pela exigência cada vez maior de trabalhadores polivalentes, poliativos, criativos e flexíveis às mudanças do processo produtivo tornado dinâmico e instável (COUTINHO, 1992).

Por conseguinte, a Terceira Revolução Industrial e Tecnológica, representa a retomada do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, caracterizando-se pela constituição de um novo paradigma tecnológico permeado pelo complexo eletrônico e por tecnologias da informação, tendo na forma-ção de um amplo complexo eletrônico em diversos segmentos econômicos e produtivos nas principais economias avançadas durante a década de 1980, destacadas por Coutinho (1992), a gênese desse processo.

Esse complexo eletrônico estava configurado fundamental-mente pela aplicação de processos contínuos de produção, nos pro-cessos de automação discreto-interrompíveis, na substituição de operações manuais por robôs dedicados, através da incorporação

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de equipamentos digitais e controles computadorizados, nos processos de automação fragmentada e a introdução de comandos numéricos (CN) e comandos numéricos computadorizados (CNC), nos processos de produção do tipo manufatureiro-artesanal, para a produção de bens de capital sob encomenda.

Logo, as transformações estruturais do capitalismo, conco-mitantes e complementares, estão em consonância com a retomada do processo de acumulação de capital, através da intensificação da exploração da parte variável do capital ocupada na produção e da repulsão de grande parcela dos trabalhadores do próprio processo produtivo, possibilitada pela substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto incorporado às máquinas, através do amplo desenvolvimento das forças produtivas das últimas décadas e da articulação crescente entre ciência e tecnologia aplicadas ao circuito produtivo, com vistas ao aprofundamento da extração de mais-valia sob os desígnios do capitalismo contemporâneo.

Reestruturação produtiva no Brasil e desestruturação do mundo do trabalho

No Brasil, o contexto econômico dos anos de 1980 foi marcado pela deterioração das condições históricas de acumulação de capital, engendrando um cenário marcado por hiperinflação, recessão econômica, crise da dívida externa e deterioração do setor público, além do agravamento dos problemas sociais ao longo da década.

Nesse ínterim, o país se encontrava distante das transfor-mações produtivas, organizacionais e tecnológicas em curso nos países capitalistas centrais, caracterizadas como uma reestru-turação produtiva do capitalismo mundial. Entretanto, segundo Antunes (2006), já eram evidentes os primeiros sinais das alte-rações na base técnica produtiva nacional, em consonância com a nova divisão internacional do trabalho configurada a partir da década de 1970.

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Dessa forma, de um lado, observou-se ao longo dos anos de 1980 a adoção de novos métodos produtivos e estratégias de sobrevivência por parte das empresas nacionais diante da crise econômica e como forma de assegurar a continuidade do processo de acumulação/reprodução de capital. Assim, “iniciou-se a utilização da informatização produtiva e do sistema de just in time; germinou a produção baseada em team work, alicerçada nos programas de qualidade total, ampliando também o processo de difusão da microeletrônica [...]” (ANTUNES, 2006, p. 17).

Por outro lado, a reestruturação produtiva foi caracterizada também pela redução dos custos, enfaticamente pela eliminação de postos de trabalho nos setores automobilísticos, de autopeças e nos ramos têxtil e bancário, sendo que “a necessidade de elevação da produtividade ocorreu por meio da reorganização da produção, redução do número de trabalhadores, intensificação da jornada de trabalho dos empregados, surgimentos dos CCQS (Círculos de Controle de Qualidade) e dos sistemas de produção just in time e kan ban1, entre os principais elementos (ANTUNES, 2006, p. 18).

Com relação à estrutura ocupacional brasileira, durante a década de 1980 observaram-se mudanças nos níveis de ocupação por grandes setores: redução da queda de ocupações no setor primário, perda de participação relativa do setor secundário no total das ocupações e um crescimento significativo do setor terciário da economia. Vale ressaltar também o aprofundamento da desigualdade na distribuição de renda, através do ajuste macro-econômico pelo viés da modificação do nível de remuneração do trabalhador, como característica histórica da evolução do mercado de trabalho brasileiro. Esse “ajuste na estrutura de renda fez com que o rendimento médio de 1% dos indivíduos mais ricos do país

1 No sistema de acumulação flexível o kan ban se caracteriza como um método de reposição de peças invertido: é após a venda que se inicia a reposição de estoques, por isso é associado com o modelo de funcionamento dos supermercados, onde a reposição dos produtos nas prateleiras ocorre depois da venda. Ver Gounanet, 1992, p. 40 e Coriat, 1992b, p. 43-45.

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crescesse de 96 vezes para 108 vezes em relação ao rendimento dos 20% mais pobres” (DEDECCA; BRANDÃO, 1993, p. 326).

Essas transformações estruturais da economia nacional e do mercado de trabalho foram exacerbadas nos anos de 1990, num contexto de redemocratização política e da realização de eleições para a presidência da república. Com a eleição de Fernando de Collor de Mello, foi posto em marcha um conjunto de medidas liberalizantes para dar conta da crise econômica dos anos de 1980, subjacente ao discurso direcionado para a necessidade da modernização da economia brasileira como forma de inserção no grupo dos países desenvolvidos, optando-se por um ajuste macroeconômico pelo viés do mercado, através da redução da participação estatal na economia e pelo estabelecimento da livre-concorrência como princípio norteador das relações sociais e econômicas.

Nos estertores da crise econômica e das transformações iniciais desencadeadas na década precedente, Collor promoveu a adoção dos princípios neoliberais de funcionamento da eco-nomia capitalista, tendo como base um conjunto de medidas elaboradas pelo Banco Mundial em Washington e direcionadas aos países periféricos do capitalismo mundial (o Consenso de Washington). Tais medidas macroeconômicas, determinantes de transformações estruturais do capitalismo no país e de mudan-ças significativas no processo de desenvolvimento econômico nacional, foram direcionadas para um processo de:

• abertura comercial e financeira indiscriminada da economia;

• eliminação de barreiras não-tarifárias;

• abolição das restrições à importação de determinados bens;

• rápida redução de tarifas.

No bojo da aplicação do receituário neoliberal, aprofundou-se o comportamento negativo da economia, representado por

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forte recessão e pela redução do PIB (Produto Interno Bruto), bem como observou-se um processo de desindustrialização e desmonte do parque industrial nacional, com redução significativa dos estoques de empregos formais e aumento do setor terciário (DEDECCA; BRANDÃO, 1994). Além disso, a implementação do neoliberalismo no país representou também a redução da intervenção estatal na economia e a privatização ou concessão de empresas estatais ao capital privado, tais como a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Usiminas, entre outras), com o fechamento de empresas, a demissão de funcionários públicos e a adoção de políticas públicas de ajuste fiscal (BIONDI, 1999).

Por conseguinte, foi a partir do governo Collor que a res-truturação capitalista se intensificou no Brasil, através da adoção e implantação de modelos relacionados à acumulação flexível de capital do ideário japonês, através da aplicação de métodos organi-zacionais e produtivos tais como a “lean production, dos sistemas de just in time e kan ban, do processo de qualidade total, das formas de subcontratação e de terceirização da força de trabalho, da transfe-rência de plantas e unidades produtivas” (ANTUNES, 2006, p. 18), com uma mescla de elementos produtivos associados ao fordismo2

(preservado em diferentes ramos e setores produtivos) com as formas de organização da produção e gestão da mão-de-obra articuladas ao modelo toyotista de produção e acumulação de capital.

Tal movimento de transformação da base produtiva nacional foi acompanhado de um relativo processo de “descon-centração geográfica” e produtiva de indústrias tradicionais em território nacional, sob o pretexto da concorrência internacional, em busca de mão-de-obra mais barata e de incentivos fiscais

2 Vários autores denominam o capitalismo brasileiro como uma variação do modelo de desenvolvimento fordista, apresentando-o como um fordismo periférico e subordinado. Ver Lipietz; Leborgne (1995), Antunes (2006), Pochmann (1999), Mattoso (2000) e Harvey (1996).

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oferecidos pelos estados da federação, num cenário caracterizado pela intensa guerra fiscal entre estados e municípios para atrair investimentos diante da ausência de políticas governamentais de desenvolvimento econômico e regional sustentado. Têm-se, como exemplo, as indústrias do setor calçadista de Franca, no interior do estado de São Paulo, que se transferiram para estados do Nordeste, como Ceará e Bahia, ou também a transferência de indústrias do setor metal-mecânico e eletrônico da Grande São Paulo para áreas do interior do Estado (São Carlos e Campinas) ou para outros estados, tais como Rio de Janeiro (Resende), Minas Gerais (Juiz de Fora), Paraná, Bahia e Rio Grande do Sul (ANTUNES, 2006).

O movimento político e ideológico direcionado pela implementação e aprofundamento do neoliberalismo no Brasil representou a exacerbação da contradição fundamental do capita-lismo no país: a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas (representadas pela adoção dos princípios tecnológicos em voga nos países desenvolvidos e da flexibilidade do trabalho como forma de extração de trabalho excedente em maior grau de intensidade ainda) e as relações de produção (desemprego, informalidade e precarização do trabalho), sendo a crise do mundo do trabalho resultante desse processo.

desenvolvimento das forças produtivas ≠ relações de produção = intensifi-cação do trabalho na produção (extração de mais-valia relativa ampliada), repulsão dos trabalhadores do processo produtivo (pressão sobre a parte ocupada do trabalho), crise do mundo do trabalho (exasperação da con-tradição histórica fundamental)

O processo de reestruturação capitalista no Brasil sofreu um relativo refluxo com a crise política que se abateu sobre o governo do presidente Collor, sendo retomado e revigorado com a aplicação do Plano Real, em 1994, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, através da aplicação das seguintes medidas macroeconômicas:

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• intensificação da abertura comercial e financeira;

• sobrevalorização cambial;

• ancoragem do real ao dólar (como forma de financiar a economia brasileira, diante da liquidez financeira internacional);

• juros elevados (para atrair o capital financeiro interna-cional, altamente volátil e especulativo, diante da finan-ceirização da economia mundial, destacada por Chesnais (1996).

Promoveu-se o atrelamento da economia nacional ao capi-tal financeiro internacional, através da “hegemonia do capital financeiro no conjunto da economia e uma financeirização do Estado brasileiro, que vive em função do pagamento dos juros de suas dívidas” (SADER, 2003, p. 138).

No que reporta a intensificação da reforma do Estado, Fernando Henrique Cardoso continuou o processo de privatização do aparato estatal, a concessão de empresas estatais ao capital privado e as reformas institucionais, com destaque para a reforma da Previdência Social e a Reforma Administrativa, representando a reorientação da intervenção estatal, no sentido de dar suporte a livre-iniciativa do mercado, consubstanciando um distanciamento do Estado na promoção dos direitos fundamentais propostos na Constituição de 1988, quais sejam: educação, saúde, moradia, segurança pública, entre outras.

Todas essas transformações da economia nacional e o desmantelamento do nacional-desenvolvimentismo (1930-1980) representaram a intensificação do processo de desestruturação do mercado de trabalho nacional, através da “explosão” das taxas de desemprego (sem precedentes na história do país, segundo POCHMANN (2006), a precarização das condições e relações de trabalho, mudanças na estrutura do emprego formal, aumento da informalidade (como estratégia de sobrevivência

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dos trabalhadores desempregados) e o desassalariamento nos setores estratégicos da economia.

Em suma, perante o movimento de reorientação do processo de desenvolvimento econômico rumo à determinação das forças do mercado como estruturantes da evolução do capitalismo no país e do processo de desestruturação/precarização do mercado de trabalho ao longo da década de 1990 e parte da década de 1980, o neoliberalismo deixou marcas profundas na estrutura social nacional, aprofundando os problemas sociais históricos: bastou pouco mais de uma década para se destruir toda uma história de industrialização, conformação de um modelo de desenvolvimento econômico nacional, de estruturação e de for-malização das relações de trabalho no Brasil, constituindo-se um cenário caracterizado pelo baixo crescimento econômico, pela explosão do desemprego em massa, pela informalização das relações de trabalho, pelo surgimento de formas precárias de ocupação e pela ampliação das desigualdades de rendimento entre os trabalhadores.

Governo Lula, mundo do trabalho e alternativas sociais

Com a posse do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, no início de 2003, configurou-se um conjunto de medidas de cunho social (sob a perspectiva da formação de um governo supostamente de base “popular”), representadas pela aplicação de políticas de combate à pobreza (o Programa Fome Zero) e pela ampliação do Programa Bolsa Família em todo o território nacional, como parte de um conjunto de políticas públicas de erradicação da fome e da miséria no país (SOARES, 2004).

Todavia, as medidas de política macroeconômica do governo Lula também foram caracterizadas pelas metas anuais de inflação, pelas políticas de controle das taxas de juros para inibir a alta de preços, pela necessidade de geração de superávits primários anuais,

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pela manutenção da abertura das contas comercial e financeira, pelo estímulo às exportações para gerar divisas, pela política de responsabilidade fiscal e de câmbio flexível (SOARES, 2004), representando a manutenção de algumas políticas neoliberais no Estado brasileiro, apesar da promoção de políticas sociais de combate à miséria e às desigualdades sociais ao longo da década na economia nacional.

Nesse contexto, não obstante a recuperação dos estoques de empregos formais e da ampliação do movimento de formali-zação das relações de trabalho nos dois mandatos de Lula, como expressão da expansão do crédito e do mercado interno, (através de políticas de incentivo a propensão ao consumo como multiplica-doras do investimento, do crédito e do rendimento, consideradas políticas pós-keynesianas de aceleração da demanda efetiva e do crescimento econômico (BELLUZO; CARNEIRO, 2004), permaneceram problemas históricos do mercado de trabalho brasileiro, tais como a informalidade do trabalho e a precarização das condições e relações de trabalho.

A continuidade do processo de precarização do trabalho pôde ser observada através da manutenção de altas taxas de rotatividade da mão-de-obra empregada, representando 29% da força de trabalho empregada na última década, com alguns setores de atividade econômica apresentando taxas acima desses números, como o comércio, a construção civil e a agropecuária, com taxas de 31%, 64% e 74% respectivamente (Brasil/Ministério do Trabalho e Emprego/CAGED 2006).

Portanto, o emprego com carteira assinada manteve a característica contingente (permeado pela baixa permanência no trabalho), historicamente determinada pelo capital como uma forma de pressão sobre a parte ocupada do trabalho e associado à manutenção de reserva de mão-de-obra para a utilização como fonte de mais-valia a qualquer tempo pelo capital, consubstan-ciando e possibilitando a continuidade da exploração capitalista do trabalho, colocada em novos termos econômicos, financeiros e

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tecnológicos em tempos de reestruturação produtiva e econômica do capitalismo contemporâneo.

Dito em outros termos, a manutenção de um exército de reserva e a precarização das condições e relações de trabalho são funcionais à lógica de acumulação ampliada de mais-valia, tornadas mais excludentes ainda em tempos de aceleração do desenvolvimento das forças produtivas e permeadas pela neces-sidade de reordenar as relações estabelecidas entre o capital e o trabalho, radicalmente desfavoráveis aos trabalhadores em tempos de globalização/mundialização do capital e desregula-mentação das normas fordistas que regulavam o trabalho sob o modo capitalista de produção.

Se de um lado observou-se a manutenção de uma reserva de mão-de-obra e a precarização das condições e relações de trabalho, por outro lado, ressalte-se o surgimento de formas alternativas de inserção de trabalhadores no mundo produtivo, entre elas a economia solidária, que tem por base o associativismo e o cooperativismo fundamentados nos socialistas utópicos do século XIX, além do desenvolvimento local e sustentável que permeiam as práticas solidárias.

Contudo, essas práticas de empreendedorismo social tam-bém são funcionais à mesma lógica de extração de mais-valia e à reprodução ampliada do capital, ao possibilitar a contenção das contradições sociais engendradas pelo movimento de exploração do trabalho como fonte única de produção e reprodução do capital em tempos de acelerado desenvolvimento das forças produtivas. Assim, a economia solidária possibilita a contenção das massas excluídas do processo de reestruturação capitalista e, ao mesmo tempo e seguindo a mesma lógica, torna os trabalhadores associa-dos ou cooperados uma reserva de trabalho para uso a qualquer tempo pelo capital, de acordo com o avanço das forças produtivas capitalistas em tempos recentes.

Em suma, os trabalhadores associados ou cooperados passam a compor o exército industrial de reserva, representando

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materialmente a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas (reestruturação e revolução tecnológica) e as relações de produção (trabalhadores excluídos, precarização e informalidade do trabalho), funcionando como um instrumento de recondução dos trabalhadores ao circuito de reprodução do capital via o associativismo e o cooperativismo dos excluídos do processo de reestruturação capitalista atual.

Esse movimento resulta também num processo de estag-nação da luta de classes, ao impulsionar a união contraditória dos trabalhadores em empreendimentos em que eles próprios são, ao mesmo tempo e paradoxalmente, “empregados” e “donos” da força de trabalho e dos meios de produção, expressão da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção no capitalismo neste início de século XXI.

desenvolvimento das forças produtivas (novo paradigma tecnológico e reestruturação capitalista)aumento do exército de reservamovimento político e sindical na defensivapressão social economia solidária para amenizardesmobilização da luta de classes

Considerações finaisO acelerado desenvolvimento das forças produtivas capi-

talistas dos tempos recentes (reestruturação produtiva e terceira revolução tecnológica) tem provocado a desestruturação do mundo do trabalho, como expressão das contradições resultantes desse movimento dialético e historicamente determinado pelos con-flitos entre o capital e o trabalho e pela luta de classes, sendo o desemprego, a informalidade e a precarização do trabalho produtos das relações de produção conflitantes sob o capita-lismo contemporâneo e do seu embate com as forças produtivas reestruturadas para a continuidade do processo de extração de mais-valia e de reprodução ampliada do capital.

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Nesse ínterim, no Brasil ressurgiram alternativas asso-ciativas e cooperativas de trabalho, tais como a economia soli-dária, considerada um instrumento de superação dos problemas sociais gerados pela implementação do neoliberalismo a partir da década de 1990. No entanto, tal forma de empreendedorismo social exerce o mesmo papel do exército de reserva e do traba-lho precarizado, qual seja: a contenção das contradições sociais geradas pelo desenvolvimento das forças produtivas capitalistas das últimas décadas e as relações de produção subjacentes que não atendem mais aos requisitos de inserção massiva da força de trabalho, como demandavam as velhas formas de produção fordistas/tayloristas em articulação com os preceitos keynesianos de incentivo a demanda efetiva e ao emprego formal nos “anos dourados” do capitalismo.

Em suma, as práticas solidárias obstaculizam a luta de classes e cumprem bem o papel de reequilibrar as forças e conter as massas para possibilitar a exploração da força de trabalho sob novos paradigmas, além da continuidade do processo de acumula-ção ampliada de capital em tempos recentes de desenvolvimento das forças produtivas e do aprofundamento das contradições com as relações de produção sob a égide do capitalismo reestruturado contemporâneo.

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Rafael Pereira da Silva Flávio de Arruda Saron Antonio Nivaldo Hespanhol Leandro de Castro Lima Celso Donizete Locatel Fernanda Laize Silva de Lima Raquel Silva dos Anjos Igor Rasec Batista de AzevedoThiago Augusto Nogueira de Queiroz Thiago Belo de MedeirosCamila da Silva Pereira Alessandro Dozena Francisca Elizonete de Souza LimaÍtalo Franco Ribeiro Allain Wilham Silva de Oliveira Nildo Aparecido de Melo

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