ministÉrio pÚblico manual de atuaÇÃo funcional gregÓrio assagra

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O MINISTRIO PBLICO NO NEOCONSTITUCIONALISMO: perfil constitucional e alguns fatores de ampliao de sua legitimao social

Gregrio Assagra de AlmeidaPromotor de Justia do Ministrio Pblico do Estado de Minas. Diretor do Centro de Estudos e Aperfeioamento Funcional do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual Civil e Doutor em Direito Difusos e Coletivos pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Membro da Comisso de Juristas do Ministrio da Justia encarregada de elaborar o Anteprojeto da nova Lei da Ao Civil Pblica. Professor e Coordenador do Curso de Mestrado da Universidade de Itana. Coordenador Editorial do MPMG Jurdico. Presidente do Conselho Editorial da Revista Jurdica do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais DE JURE. Autor de vrios livros.

O Ministrio Pblico, por conseguinte, nem governo, nem oposio. O Ministrio Pblico constitucional; a Constituio em ao, em nome da sociedade, do interesse pblico, da defesa do regime, da eficcia e salvaguarda das instituies. Paulo Bonavides 1 Sumrio. 1. Introduo. 2. Neoconstitucionalismo algumas reflexes; 2.1 Ps-positivismo jurdico e o neoconstitucionalismo; 2.2 Neoconstitucionalismo brasileiro e a nova summa divisio adotada na CF/88. 3. Algumas diretrizes do neoconstitucionalismo no novo perfil constitucional do Ministrio Pblico brasileiro: 3.1 O Ministrio Pblico brasileiro na Constituio Federal de 1988 e a sua natureza institucional; 3.2 Os dois modelos constitucionais do Ministrio Pblico brasileiro: o demandista e o resolutivo; 3.3 Do Ministrio Pblico como custos legis para o Ministrio Pblico como custos societatis e guardio da ordem jurdica (custos juris); 3.4 Algumas diretrizes interpretativas das atribuies e garantias constitucionais do Ministrio Pblico; 3.5 O Ministrio Pblico e as suas atribuies e garantias constitucionais como clusulas ptreas (superconstitucionais): 3.5.1 O papel constitucional das clusulas ptreas; 3.5.2 O Ministrio Pblico como clusula ptrea; 3.5.3 Os princpios, as atribuies e as garantias constitucionais do Ministrio Pblico como clusulas ptreas (superconstitucionais): a impossibilidade de sua eliminao ou restrio e a possibilidade de sua ampliao. 4. Alguns fatores constitucionais de ampliao da legitimao social do Ministrio Pblico; 4.1 A importncia da preocupao com a legitimidade social do Ministrio Pblico; 4.2 Priorizao da atuao preventiva; 4.3 Exerccio da funo pedaggica da cidadania: um compromisso constitucional social do Ministrio Pblico (arts. 1, pargrafo nico, 3, 6, 127, caput, e 205 da CF/88); 4.4 Realizao peridica de audincias pblicas; 4.5 Combate articulado e sistematizado das causas geradoras de desigualdades sociais (art. 3 e art. 127, caput, da CF): da percia para as estatsticas e indicadores sociais necessidade de planejamento institucional e fiscalizao

oramentria; 4.6 Provocao articulada e sistematizada do controle jurisdicional (abstrato/concentrado edifuso/incidental) e extrajurisdicional da constitucionalidade; 4.7 Ampliao e estruturao do modelo do1

Os dois Ministrios Pblicos do Brasil: o da Constituio e o do Governo. In MOURA JNIOR, Flvio Paixo et al (coords.), Ministrio Pblico e a ordem social justa. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 350.

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Ministrio Pblico resolutivo: necessidade de sistematizao e maior investimento na atuao extrajurisdicional; 4.8 Atuao vinculada especificao funcional da Instituio; 4.9 Acompanhamento da tramitao processual e fiscalizao da execuo dos provimentos jurisdicionais; 4.10 Adequao da independncia funcional do rgo do Ministrio Pblico ao planejamento funcional estratgico da Instituio; 4.11 Formao humanista, multidisciplinar e interdisciplinar dos membros e servidores do Ministrio Pblico; 4.12 Revisitao da atuao como rgo interveniente no processo civil com base na teoria dos direitos e garantias constitucionais fundamentais; 4.13 Utilizao dos projetos sociais como novos mecanismos de atuao da Instituio. 5. Concluses finais; 6. Referncias bibliogrficas.

Resumo. A Constituio do Brasil, de 1988, consagrou um novo perfil ao Ministrio Pblico brasileiro, atrelado defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis (art. 127, caput). O Ministrio Pblico, assim, passou a ser Instituio constitucional de promoo social, de forma que a sua atuao est diretamente ligada aos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil, arrolados no art. 3 da CF/88, entre eles, a criao de uma sociedade justa, livre solidria, a erradicao da pobreza, das desigualdades sociais etc. Considerando que no neoconstitucionalismo a Constituio adquire fora normativa irradiante e vinculante sobre todo o sistema jurdico, o novo perfil constitucional do Ministrio Pblico deve ser considerado em todos os planos de sua atuao, extrajudicial e judicial. Merecem especial ateno, nesse contexto, os fatores constitucionais de ampliao de sua legitimao social. Palavras-chave. Ministrio Pblico. Neoconstitucionalismo. Ps-positivismo jurdico. Nova summa divisio constitucionalizada. Fatores de legitimao social. Atuao preventiva. Audincia pblica. Funo pedaggica da cidadania. Controle da constitucionalidade. Planejamento institucional funcional estratgico. 1. INTRODUO O presente texto pretende apresentar algumas questes importantes sobre o Ministrio Pblico a partir do novo constitucionalismo. Em tempos atuais, est sedimentado o entendimento de que a Constituio possui fora normativa irradiante sobre toda ordem jurdica a ela vinculada. Na condio de uma das grandes diretrizes do ps-positivismo, o neoconstitucionalismo aponta a Constituio como Lei Fundamental, superando a viso de mera Carta Poltica. A Constituio deixa de ser mero captulo da Poltica, mas, sim, esta que passa a ser um instrumento de realizao daquela. A Constituio Federal brasileira de 1988 est inserida no que denominado neoconstitucionalismo. Nela foi consagrado um novo perfil do Ministrio Pblico brasileiro, atrelado defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis (art. 127, caput). Com isso, no Brasil, o Ministrio Pblico tornou-se umas das grandes instituies constitucionais de promoo social, de forma que a sua atuao funcional est atrelada aos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil, estabelecidos expressamente no art. 3 da CF/88, 2

tais como a criao de uma sociedade justa, livre e solidria; a erradicao da pobreza, a diminuio das desigualdades sociais etc. Da a importncia do estudo desse novo perfil constitucional do Ministrio Pblico, tanto no plano da sua atuao jurisdicional quanto no da sua atuao extrajurisdicional. Neste artigo, alm da anlise na ptica do neoconstitucionalismo de algumas diretrizes do novo modelo constitucional implantado no Ministrio Pblico brasileiro pela CF/88, mereceram ateno particular, em razo da sua importncia no novo constitucionalismo, a identificao e o apontamento de alguns fatores de ampliao da legitimao social da Instituio. Tambm receberam especial destaque a priorizao da atuao preventiva; o exerccio da funo pedaggica da cidadania; a realizao peridica de audincias pblicas; o combate articulado e sistematizado das causas geradoras de desigualdades sociais; a provocao articulada e sistematizada do controle jurisdicional (abstrato/concentrado e difuso/incidental) e extrajurisdicional da constitucionalidade; e a ampliao e a estruturao do modelo do Ministrio Pblico resolutivo. 2. NEOCONSTITUCIONALISMO algumas reflexes 2.1 Ps-positivismo jurdico e o neoconstitucionalismo 1. Ps-positivismo. Afirma Lus Roberto Barroso que a abertura do caminho para um amplo conjunto, ainda inacabado, de reflexes sobre o Direito, sua interpretao e sua funo social, decorreu da superao histrica do jusnaturalismo e do fracasso poltico do positivismo. O pspositivismo jurdico pretende superar a legalidade estrita, mas no despreza o direito posto. Sem recorrer a categorias metafsicas, a nova concepo terica procura estabelecer uma leitura moral do Direito. A teoria da justia que inspiraria a interpretao e a aplicao do ordenamento Jurdico, excluindo, contudo, voluntarismos e personalismos, especialmente os judiciais. Nesse conjunto de concepes ricas e heterogneas, ainda em construo, esto a atribuio de normatividade aos princpios e a fixao de suas relaes com os valores e as regras. H uma necessria reaproximao entre o Direito e a Filosofia, impondo-se tambm, entre as vrias diretrizes de mudana paradigmtica, a reabilitao da razo prtica e da argumentao jurdica, a implementao de uma nova hermenutica constitucional e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais a partir da dignidade humana 2. A expresso ps-positivismo, porm, equvoca e poder guardar vrios significados, tendo em vista a sua ampla abertura conceitual. Contudo, a doutrina que tem enfrentado o tema faz a2

BARROSO, Lus Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In Revista de Direito Constitucional e Internacional. So Paulo: Revista dos Tribunais, v. 58, p. 133

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anlise do assunto a partir da guinada do direito constitucional e da insero dos seus princpios como diretrizes fundamentais da ordem jurdico-democrtica. O ps-positivismo abrangeria todas as concepes de pensamento que procuram valorizar os princpios como mandamentos de otimizao de uma ordem jurdica, democrtica, pluralista e aberta de valores. As concepes mais atuais em torno do neoconstitucionalismo esto inseridas dentro do gnero ps-positivismo3 e 4. Antonio Carlos Diniz e Antnio Cavalcanti esclarecem que o ps-positivismo jurdico constitui, em linhas gerais, um novo paradigma no plano da teoria jurdica, que objetiva contestar as insuficincias, aporias e limitaes do juspositivismo formalista tradicional. Afirmam que o prprio termo ps-positivismo, que tambm conhecido como no-positivismo ou no-positivismo principiolgico, detentor de um status provisrio e genrico, na sua categoria terminolgica, e a sua utilizao no pacfica, inclusive entre os autores que partilham de suas teses axiais. Esclarecem, ainda, que as suas bases filosficas so eclticas e compem uma constelao de autores, os quais mantm ponto de contato com concepes de um tardio Gustav Radbruch e passam pelas influncias da teoria da justia de John Raws, alm de incorporarem elementos da filosofia hermenutica e as bases da teoria do discurso de Habermas. No quadro da concepo pspositivista, afirmam que seriam destacveis cinco aspectos: 1) o deslocamento da agenda, com nfase na importncia dos princpios gerais do Direito e na dimenso argumentativa na compreenso da funcionalidade do direito no mbito das sociedades democrticas atuais, bem como o aprofundamento no papel que deve ser desempenhado pela hermenutica jurdica; 2) a importncia dos casos difceis; 3) o abrandamento da dicotomia descrio/prescrio; 4) a busca de um lugar terico para alm do jusnaturalismo e do positivismo jurdico; 5) o papel dos princpios na resoluo dos casos difceis 5. Diz a doutrina, ao estudar o tema, que o ps-positivismo no visa desconstruo da ordem jurdica, mas superao do conhecimento convencional com base nas idias de justia e de legitimidade, inserindo, para tanto, os princpios constitucionais, expressos ou implcitos, como a3

A respeito, formulando crtica ao positivismo e demonstrando sua incompatibilidade com o neoconstitucionalismo, escreveu STRECK, Lenio Luiz: Da a possibilidade de afirmar a existncia de uma srie de oposies/incompatibilidades entre o neoconstitucionalismo (ou, se assim se quiser, o constitucionalismo social e democrtico que exsurge a partir do segundo ps-guerra) e o positivismo jurdico. Assim: a) o neoconstitucionalismo incompatvel com o positivismo ideolgico, porque este sustenta que o direito positivo, pelo simples fato de ser positivo, justo e deve ser obedecido, em virtude de um dever moral. Como contraponto, o neoconstitucionalismo seria uma ideologia poltica menos complacente com o poder; b) o neoconstitucionalismo no se coaduna com o positivismo enquanto teoria, estando a incompatibilidade, neste caso, na posio soberana que possui a lei ordinria na concepo positivista. No Estado constitucional, pelo contrrio, a funo e a hierarquia da lei tm um papel subordinado Constituio, que no apenas formal, e, sim, material; c) tambm h uma incompatibilidade entre neoconstitucionalismo com o positivismo visto como metodologia, porque esta separou o direito e a moral, expulsando esta do horizonte jurdico (...). A hermenutica filosfica e as possibilidades de superao do positivismo pelo (neo)constitucionalismo, in ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lenio Luiz (orgs.), Constituio, sistemas sociais e hermenutica, p. 155.4 5

No mesmo sentido, ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Codificao do direito processual coletivo brasileiro, p. 35-40. Ps-positivismo, in BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.), Dicionrio de filosofia do direito, p. 650-4.

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sntese dos valores consagrados na ordem jurdica6. A nova concepo tem influenciado decisivamente na criao de uma hermenutica constitucional inovadora. A prpria concepo de sistema jurdico sofre transformaes: de sistema jurdico fechado e auto-suficiente para sistema jurdico aberto, mvel e composto de valores 7. O ps-positivismo coloca o constitucionalismo em substituio ao positivismo legalista, com profundas mudanas em alguns parmetros, entre elas convm destacar: valores constitucionais no lugar da concepo meramente formal em torno da norma jurdica; ponderao no lugar de mera subsuno e fortalecimento do Judicirio e dos Tribunais Constitucionais quanto interpretao e aplicao da Constituio, em substituio autonomia inquebrantvel do legislador ordinrio 8. A metodologia do ps-positivismo inseriu a hermenutica como o captulo mais relevante para o novo direito constitucional, iniciando-se a superao da metodologia clssica, que pregava a interpretao-subsuno, por uma nova interpretao constitucional criativa: a interpretaoconcretizao9. Paulo Bonavides arrola as principais conquistas resultantes da nova hermenutica do constitucionalismo da segunda metade do sculo XX: a) elaborao cientfica de um novo Direito Constitucional; b) criao de uma teoria material da Constituio diversa da sustentada pelo jusnaturalismo ou pelo positivismo formalista; c) superao da viso meramente jusprivatista e juscivilista para uma concepo em torno do direito pblico; d) uma nova interpretao, mais ampla, da Constituio e uma nova interpretao, mais restrita, dos direitos fundamentais, ambas autnomas e em recproca sintonia; e) insero do princpio da proporcionalidade no direito constitucional, com a ampliao da incidncia do direito constitucional para todas as reas do direito; f) converso dos princpios gerais do direito em princpios constitucionais com eficcia normativa; g) elaborao de uma concepo de pluridimensionalidade dos direitos fundamentais, antes concebidos somente no plano da subjetividade; h) expanso normativa do direito constitucional para todas as reas do Direito; i) consagrao da tese mais importante, (...) de que a6

Nesse sentido, BARROSO, Lus Roberto: (...) o ps-positivismo no surge com o mpeto da desconstruo, mas como uma superao do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetria guardando deferncia relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idias de justia e legitimidade. Fundamentos tericos e filosficos do novo direito constitucional brasileiro: ps-modernidade, teoria crtica e ps-positivismo, in BARROSO, Lus Roberto (org.), A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas, p. 28.7

BARROSO, Lus Roberto, Fundamentos tericos e filosficos do novo direito constitucional brasileiro: psmodernidade, teoria crtica e ps-positivismo, in BARROSO, Lus Roberto (org.), A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas, p. 34-5.8

Nesse sentido, ALEXY, Robert, que acrescenta: A la polmica entre constitucionalistas y legalistas subyacen profundas diferencias sobre la estructura del sistema jurdico. Por ello, una respuesta bien fundamentada a la cuestin acerca de quin tiene razn puede ser respondida slo sobre la base de una teora del sistema jurdico (...). A polmica entre constitucionalistas e legalistas subjazem profundas diferenas sobre a estrutura do sistema jurdico. Por isso, uma resposta bem fundamentada a essa questo acerca de quem tem razo pode ser respondida somente com fundamento em uma teoria do sistema jurdico (traduo livre pelo autor). El concepto y la validez del derecho, p. 15961.9

BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, 18 ed., p. 592.

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Constituio direito, e no idia ou mero captulo da Cincia Poltica, como inculcava a tese falsa de Burdeau e de outros constitucionalistas francesas filiados linha da reflexo constitucional que se vinculava ideologia j ultrapassada do liberalismo clssico10. 2. Neoconstitucionalismo. J o novo constitucionalismo a denominao atribuda a uma nova forma de estudar, interpretar e aplicar a Constituio de modo emancipado e desmistificado. A finalidade superar as barreiras impostas ao Estado Constitucional Democrtico de Direito pelo positivismo meramente legalista, gerador de bloqueios ilegtimos ao projeto constitucional de transformao, com justia, da realidade social 11. O neoconstitucionalismo objetiva superar justamente essas barreiras interpretativas impostas pelo positivismo legalista 12. Lenio Luiz Streck entende que a superao de tais obstculos poder ser viabilizada em trs frentes: a) por intermdio da teoria das fontes, haja vista que a lei j no mais a nica fonte a Constituio passa a ser fonte auto-aplicativa; b) por uma substancial alterao na teoria da norma, imposta pela nova concepo dos princpios, cuja problemtica tambm tem relao com a prpria fonte dos direitos; c) por uma radical mudana no plano hermenutico-interpretativo, para passar do paradigma da interpretao para compreenso para a compreenso para a interpretao 13.10 11

Curso de direito constitucional, 18 ed., p. 583-4.

SARMENTO, Daniel: A palavra neoconstitucionalismo no empregada no debate constitucional norte-americano, tampouco no que travado na Alemanha. Trata-se de um conceito formulado sobretudo na Espanha e na Itlia, mas que tem reverberado bastante na doutrina brasileira nos ltimos anos, principalmente depois da ampla divulgao que teve aqui a importante coletnea intitulada Neoconstitucionalismo (s), organizada pelo jurista mexicano Miguel Carbonell e publicada na Espanha e 2003. Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades, in LEITE, George Salomo e SARLET, Ingo Wolfgang, Direitos fundamentais e Estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho, p. 11.12

Adverte SARMENTO, Daniel que os adeptos do neoconstitucionalismo embasam suas concepes em ramificaes tericas bem heterogneas, abrangendo, assim, entre outros, os pensamentos de Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Hberle, Gustavo Zagrebelshy, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino: (...) nenhum destes se define hoje, ou j se definiu, no passado, como neoconstitucionalista. Por outro lado, tanto entre os referidos autores com entre aqueles que se apresentam como neoconstitucionalistas constata-se uma ampla diversidade de posies jusfilosficas e de filosofia poltica: h positivistas e no-positivistas, defensores da necessidade de uso do mtodo na aplicao do direito e ferrenhos opositires do emprego de qualquer metodologia na hermenutica jurdica, adeptos do liberalismo poltico, comunitaristas e procedimentalistas. Neste quando, no tarefa singela definir neoconstitucionalismo, talvez porque, como j revela o bem escolhido ttulo da obra organizada por Carbonell, no exista um nico neconstitucionalismo, que corresponda a uma concepo terica clara e coesa, mas diversas vises sobre o fenmeno jurdico na contemporaneidade, que guardam entre si alguns denominadores comuns relevantes, o que talvez justifique sejam agrupadas sob um mesmo rtulo, mas compromete a possibilidade de uma conceituao mais precisa.

Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades, in LEITE, George Salomo e SARLET, Ingo Wolfgang, Direitos fundamentais e Estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho, p. 11-2.13

Escreve STRECK, Lenio Luiz: (...) Da incindibilidade entre vigncia e validade e entre texto e norma, caractersticas do positivismo, um novo paradigma hermenutico-interpretativo aparece sob os auspcios daquilo que se convencionou chamar de giro lingstico-hermenutico. Esse linquistic turn, denominado tambm de giro lingistico-ontolgico, proporcionou um novo olhar sobre a interpretao e as condies sob as quais ocorre o processo compreensivo. No mais interpretamos para compreender e, sim, compreendemos para interpretar, rompendose, assim, as perspectivas epistemolgicas que coloca (va)m o mtodo como supremo momento da subjetividade e

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Lus Roberto Barroso esclarece que o neoconstitucionalismo pode ser estudado em trs aspectos. Primeiro, pelo aspecto histrico, com a anlise das transformaes do direito constitucional depois da 2 Grande Guerra Mundial, especialmente por fora da Lei Fundamental de Bonn (1949) e das Constituies da Itlia (1947), de Portugal (1976) e da Espanha (1978). Tambm merece ser citada a Constituio Federal do Brasil de 1988. Segundo, pelo aspecto filosfico, o que deve ser realizado pelo estudo das vertentes tericas que compem o ps-positivismo jurdico. Terceiro, pelo aspecto terico, o qual engloba o estudo da fora normativa da Constituio, da expanso da jurisdio constitucional e do desenvolvimento de uma nova dogmtica da interpretao constitucional14

. No mesmo sentido, tambm so os ensinamentos de Eduardo

Cambi, o qual aponta o neoprocessualismo como decorrncia do neoconstitucionalismo 15. O neoconstitucionalimo prope, assim, a superao do paradigma do direito meramente reprodutor da realidade para um direito capaz de transformar a sociedade, nos termos do modelo constitucional previsto na Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 (arts. 1, 3, 5, 6 etc.). Essa superao deve ser realizada a partir do Estado Democrtico de Direito, de forma a proporcionar o surgimento e a implementao de ordenamentos jurdicos constitucionalizados 16. Prope-se tambm a concepo da Constituio como sistema aberto de valores, dinmico em suas estruturas e transformador da realidade social. O plano da efetivao concreta dos direitos constitucionais, individuais e coletivos o ponto central para o neoconstitucionalismo. A implementao material desses direitos, especialmente no plano coletivo, que potencializado, transformar a realidade social, diminuindo as desigualdades quanto ao acesso aos bens e valores inerentes vida e dignidade da pessoa humana. Para isso, garantia da segurana (positivista) da interpretao. A hermenutica filosfica e as possibilidades de superao do positivismo pelo (neo)constitucionalismo, in ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lenio Luiz (orgs.), Constituio, sistemas sociais e hermenutica, p. 159.14

Acrescenta BARROSO, Lus Roberto: Fruto desse processo, a constitucionalizao do Direito importa na irradiao dos valores abrigados nos princpios e regras da Constituio por todo o ordenamento jurdico, notadamente por via da jurisdio constitucional, em seus diferentes nveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituio a diversas situaes, a inconstitucionalidade das normas incompatveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretao das normas infraconstitucionais conforme a Constituio, o aumento da demanda por justia por parte da sociedade brasileira e a ascenso institucional do Poder Judicirio provocaram, no Brasil, uma intensa judicializao das relaes polticas e sociais. Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), p. 129-73.15

Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, in FUX, Luiz, NERY JUNIOR, Nelson, WAMBIER, Teresa Arruda (coordenadores), processo e Constituio: estudos em homenagem ao Professor Jos Carlos Barbosa Moreira, p. 66472.16

Nesse sentido, Escreve STRECK, Lenio Luiz: (...) Em sntese, o fenmeno do neoconstitucionalismo proporciona o surgimento de ordenamentos jurdicos constitucionalizados, a partir de uma caracterstica especial: a existncia de uma Constituio extremamente embebedoura (persuasiva), invasora, capaz de condicionar tanto a legislao como a jurisprudncia e o estilo doutrinrio, a ao dos agentes pblicos e ainda influenciar diretamente nas relaes sociais. A hermenutica filosfica e as possibilidades de superao do positivismo pelo (neo)constitucionalismo, in ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lenio Luiz (orgs.), Constituio, sistemas sociais e hermenutica, p. 160. Com abordagem sobre o neoconstitucionalismo, com inclusive inmeros artigos e texto de capa nesse sentido, cf. (Neo)constitucionalismo: ontem, os cdigos, hoje as constituies, in Revista do Instituto de hermenutica Jurdica, v. 1, n. 2, 2004; tambm CARBONEL, Miguel (org.), Neoconstitucionalismo (s).

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imprescindvel a construo de novos modelos explicativos que superem as amarras construdas em um passado de represso e at mesmo de indiferena do Estado em relao aos reais problemas sociais. A prpria interpretao do texto constitucional no plano do neoconstitucionalismo deve ser compreendida a partir da sua aplicao (efetivao). Como disse Lenio Luiz Streck, a Constituio ser o resultado de sua interpretao, que tem o seu conhecimento no plano do ato aplicativo como produto da intersubjetividade dos juristas que emerge da complexidade das relaes sociais 17. No neoconstitucionalismo, a interpretao da Constituio tambm aberta e pluralista e a idia que gira em torno da construo de uma sociedade aberta dos intrpretes da Constituio, conforme fundamenta Peter Hberle18

, corresponde s novas posturas constitucionalistas, o que mantm

perfeita sintonia com a principiologia do Estado Democrtico de Direito, implantada na Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 (arts. 1, 2, 3, 4, 5 etc.). Convm destacar que deve ser considerada a advertncia feita por determinado setor da doutrina, no sentido da necessidade de uma viso mais equilibrada em torno do neconstitucionalismo, de sorte a evitar posturas radicais que possam colocar em risco a democracia, a segurana jurdica e outros valores inerentes ao Estado Democrtico de Direito 19.

2.2 Neoconstitucionalismo e a nova summa divisio adotada na CF/8817

Diz ainda STRECK, Lenio Luiz: Ora, a construo das condies para a concretizao da Constituio implica o entendimento da Constituio como uma dimenso que banha todo o universo dos textos jurdicos, transformando-os em normas, isto porque a norma sempre produto da atribuio de sentido do intrprete, o que ocorre sempre a partir de um ato aplicativo, que envolve toda a historicidade e a faticidade, enfim, a situao hermenutica em que se encontra o jurista/intrprete. Por isto, Gadamer vai dizer que o entender contm sempre um fator de applicatio. Entender sem aplicao no um entender. Ontem, os Cdigos; hoje, as Constituies: o papel da hermenutica na superao do positivismo pelo neoconstitucionalismo, in ROCHA, Fernando Luiz Ximenes e MORAES, Filomeno (coords.), Direito constitucional contemporneo: estudos em homenagem ao professor Paulo Bonavides, p. 541.18

Escreveu HBERLE, Peter: Interpretao constitucional tem sido, at agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tornam parte apenas os intrpretes jurdicos vinculados s corporaes (znftmssige Interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretao constitucional , em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potncias pblicas, participantes materiais do processo social, esto nela envolvidas, sendo ela, a um s tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade (...weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neunem mitkonstituiert und Von ihr Konstituiert wird). Os critrios de interpretao constitucional ho de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. Hermenutica constitucional: a sociedade aberta dos intrpretes da Constituio: contribuio para a interpretao pluralista e procedimental da Constituio, p. 13.19

Nesse sentido, optando por uma concepo mais moderada em torno do neoconstitucionalismo, manifestou SARMENTO, Daniel: Contudo, eu assumo o rtulo, sem constrangimentos, se o neconstitucionalismo for pensado como uma teoria constitucional que, sem descartar a importncia das regras e da subsuno, abra tambm espao para os princpios e para a ponderao, tentando racionalizar o seu uso. Se for visto como uma concepo que, sem desprezar o papel protagonista das instncias democrticas na definio do direito, reconhea e valorize a irradiao dos valores constitucionais pelo ordenamento, bem como a atuao firme e construtiva do Judicirio para proteo e promoo dos direitos fundamentais e dos pressupostos da democracia. E, acima de tudo, se for concebido como uma viso que conecte o direito com exigncias de justia e moralidae crtica, sem enveredar pelas categorias metafsicas do jusnaturalismo. Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades, in LEITE, George Salomo e SARLET, Ingo Wolfgang, Direitos fundamentais e Estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho, p. 49.

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A summa divisio Direito Pblico e Direito Privado no foi recepcionada pela Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 1988. A summa divisio constitucionalizada no Pas Direito Coletivo e Direito Individual. O texto constitucional de 1988 rompeu com a summa divisio clssica ao dispor, no Captulo I do Ttulo II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, sobre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos 20. Para o novo constitucionalismo democrtico, os direitos e as garantias constitucionais fundamentais contm valores que devem irradiar todo o sistema jurdico, de forma a constiturem a sua essncia e a base que vincula e orienta a atuao do legislador constitucional, do legislador infraconstitucional, do administrador, da funo jurisdicional e at mesmo do particular. A partir dessas premissas, no contexto do sistema jurdico brasileiro, a dicotomia Direito Pblico e Direito Privado no mais se sustenta. Outros argumentos de fundamentao tanto no vis constitucional quanto no aspecto terico do embasamento a essa assertiva. Apesar da autonomia metodolgica e principiolgica do Direito Coletivo brasileiro, no sustentamos a sua interpretao na condio de novo ramo do Direito; como no entendemos que o Direito Individual, que compe a outra dimenso da summa divisio constitucionalizada no Pas, seja outro ramo do Direito. Na verdade, o Direito Coletivo e o Direito Individual formam a summa divisio consagrada na Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. No Direito Coletivo existem ramos do Direito, tais como o Direito do Ambiente, o Direito Coletivo do Trabalho, o Direito Processual Coletivo e o prprio conjunto, em regra, do que denominado de Direito Pblico, que estaria dentro do Direito Coletivo, existindo, contudo, excees. Da mesma forma, no Direito Individual h vrios ramos do Direito como o Direito Civil, o Direito Processual Civil, o Direito Individual do Trabalho, o Direito Comercial etc. O Estado Democrtico de Direito, na hiptese, especialmente o brasileiro (art. 1 da CF/88), est inserido na sociedade 21, regido pela Constituio, com a funo de proteo e de efetivao tanto do Direito Coletivo quanto do Direito Individual. um Estado, portanto, da coletividade e do indivduo ao mesmo tempo 22. Com isso, conclui-se que existem dimenses do que denominado, pela concepo clssica, de Direito Pblico tambm no Direito Individual, como o caso do20

ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Direito material coletivo superao da summa divisio direito pblico e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.21

No mesmo sentido, sustentando que o dualismo clssico (Estado e sociedade) no subsiste no Estado Democrtico de Direito, ZIPPELIUS, Reinhold: A distino entre Estado e sociedade provm de uma poca histrica durante a qual a centralizao do poder poltico na mo de um soberano absoluto e respectiva burocracia dava origem novao de que o Estado constitua uma realidade autnoma em face sociedade. Teoria geral do Estado, p. 158.22

ZIPPELEUS, Reinhold: (...) no processo de formao da vontade estadual cada indivduo surge, perante os outros, na posio de igual e livre. Mas a orientao do Estado no tem de ser marcada pelo egosmo dos interesses particulares que domina a vida social, mas em vez disso deve-se concluir pelo justo equilbrio daqueles interesses. Teoria geral do Estado, p. 159.

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Direito Processual Civil, de concepo individualista23. O Direito Coletivo e o Direito Individual formam dois grandes blocos do sistema jurdico brasileiro, integrados por vrios ramos do Direito. Entretanto, o Direito Constitucional est acima, no topo da nova summa divisio constitucionalizada. O Direito Constitucional representa o ponto de unio e de disciplina da relao de interao entre esses dois grandes blocos. A Constituio, que estrutura o objeto formal do Direito Constitucional, composta tanto de normas, garantias e princpios de Direito Coletivo quanto de normas, garantias e princpios de Direito Individual. Ademais, a viso atual em torno do acesso justia e da efetividade dos direitos, atrelada ao plano da titularidade, confirma a nova summa divisio adotada na CF/88. A titularidade e a proteo estaro sempre relacionadas a direito individual ou a direito coletivo amplamente considerado24. O Ministrio Pblico atua na defesa da Constituio e dos dois planos da nova summa divisio. Alm de guardio da Constituio, na sua condio de Lei Fundamental da ordem jurdica, a Instituio ministerial atua na defesa de todos os direitos coletivos em geral, bem como na defesa dos direitos individuais indisponveis (art. 127, caput, e art. 129, III, da CF/88). A partir da nova summa divisio constitucionalizada no Brasil, especialmente em razo da insero dos direitos coletivos no plano dos direitos fundamentais (Ttulo II, Captulo I, da CF/88), que poderemos desenvolver e sedimentar um constitucionalismo brasileiro que sirva de modelo para outros pases25. 3. ALGUMAS DIRETRIZES DO NEOCONSTITUCIONALISMO NO NOVO PERFIL CONSTITUCIONAL DO MINISTRIO PBLICO BRASILEIRO 3.1 O Ministrio Pblico brasileiro na Constituio Federal de 1988 e a sua natureza institucional O Ministrio Pblico est inserido na Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 no Ttulo IV Da Organizao dos Poderes ; mas, em seo prpria (artigos 127/130 da CF), no captulo Das Funes Essenciais Justia. Est, portanto, separado dos demais Poderes do Estado. O perfil constitucional do Ministrio Pblico est estabelecido pelo art. 127, caput, da23

inquestionvel que a Constituio contm tanto normas de Direito Pblico quanto de Direito Privado e, assim, no tecnicamente, nem metodologicamente adequado, o enquadramento do Direito Constitucional como um dos captulos do Direito Pblico, conforme assim o faz a summa divisio clssica.24

ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Direito material coletivo superao da summa divisio direito pblico e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.25

ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Direito material coletivo superao da summa divisio direito pblico e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

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Constituio, que o define como instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis". , portanto, Instituio permanente e, em assim sendo, clusula ptrea. No Direito Comparado, diferentemente do que acontece no Brasil atualmente, a melhor doutrina no v no Ministrio Pblico de outros pases um legtimo e seguro defensor dos interesses e direitos massificados e aponta como bices a falta de independncia e de especializao desta Instituio e, como conseqncia, as ingerncias polticas esprias. Todavia, o prprio Mauro Cappelletti, como crtico da outorga dessa espcie de atribuio ao Ministrio Pblico, j ressaltou que esses obstculos no se apresentam ao Ministrio Pblico brasileiro, sobretudo depois que a sua independncia foi assegurada pela Constituio de 198826. Aps o advento da Constituio de 1988, que representa a maior conquista do Ministrio Pblico brasileiro, outras leis vieram no sentido de possibilitar a efetividade das tarefas constitucionais da Instituio, explicitando suas atribuies e legitimando-a expressamente para a atuao na tutela, especialmente, das pessoas portadoras de necessidades especiais (Lei 7.853/89), dos investidores no mercado de valores mobilirios (Lei 7.913/89), da criana e do adolescente (Lei 8.069/90), do consumidor (Lei 8.078/90), do patrimnio pblico (Lei 8.429/92 e Lei 8.625/93), da ordem econmica e da livre concorrncia (Lei 8.884/94), do Idoso (Lei 10.741/03) etc. Como escreve Antnio Alberto Machado, a evoluo histrica permite observar a vocao democrtica do Ministrio Pblico27

, o qual hoje, com as novas atribuies que lhe foram

reservadas pela Constituio, instituio de fundamental importncia para a transformao da realidade social e efetivao do Estado Democrtico de Direito. H quem sustente que o Ministrio Pblico estaria atado ao Poder Legislativo, a este incumbindo a elaborao da lei e quele a fiscalizao do seu fiel cumprimento. H quem defenda que a atividade do Ministrio Pblico eminentemente jurisdicional, razo pela qual estaria ele atrelado ao Poder Judicirio. E h quem afirme que a funo do Ministrio Pblico administrativa, pois ele atuaria para promover a execuo das leis e estaria atrelado ao Poder Executivo28. Nenhuma dessas concepes encontra respaldo perante o Texto Constitucional de 1988 que, alm de ampliar muito o campo de atribuio do Ministrio Pblico, conferiu-lhe autonomia26

CAPPELLETTI, Mauro. O acesso dos consumidores justia. In As garantias do cidado na justia (obra conjunta, coord. Slvio de Figueiredo Teixeira). So Paulo: Saraiva, 1989, p. 313.27

Escreve ainda MACHADO, Antnio Alberto: "[...] a instituio do Ministrio Pblico parece ter uma espcie de vocao democrtica, talvez inerente sua ratio; ou at mesmo concluir-se que a existncia dela s faz sentido numa democracia, sendo certo que a sua ausncia ou tibieza, de outra parte, sempre indcio de regime autoritrio". Ministrio pblico: democracia e ensino jurdico. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 140.28

Sobre a polmica, consultar MAZZILLI, Hugo Nigro. Introduo ao ministrio pblico. So Paulo: Saraiva, 1997, p. 19-20.

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administrativa, oramentria e funcional (art. 127, 2, da CF), colocou-o em captulo separado dos outros Poderes do Estado, traou os seus princpios institucionais (art. 127, 1, da CF) e, ainda, conferiu garantias funcionais aos seus rgos de execuo para o exerccio independente do mister constitucional (art. 128, 5, inciso I, alneas "a", "b" e "c"). Assim, entendemos que, das concepes sobre a natureza institucional do Ministrio Pblico, a que melhor explica a sua postura institucional a que o desloca da sociedade poltica, como rgo repressivo do Estado, para a sociedade civil, como legtimo e autntico defensor da sociedade29. Esse deslocamento se justificaria por trs razes fundamentais. A primeira seria a social, que originou com a vocao do Ministrio Pblico para a defesa da sociedade: ele assumiu paulatinamente um compromisso com a sociedade no transcorrer de sua evoluo histrica. A segunda seria a poltica, que foi surgindo com a vocao da instituio para a defesa da democracia e das instituies democrticas. A terceira seria a jurdica, que se efetivou com a Constituio de 1988, que lhe concedeu autogesto administrativa, oramentria e funcional e lhe conferiu vrias atribuies para a defesa dos interesses primaciais da sociedade. Em verdade, o deslocamento do Ministrio Pblico da sociedade poltica para a sociedade civil muito mais funcional que administrativo, pois administrativamente o Ministrio Pblico ainda permanece com estrutura de instituio estatal, com quadro de carreira, lei orgnica prpria e vencimentos advindos do Estado, o que fundamental para que ele tenha condies de exercer o seu papel constitucional em situao de igualdade com os Poderes estatais por ele fiscalizados. Escreve Marcelo Pedroso Goulart: Integrando a sociedade civil, o Ministrio Pblico, nos limites de suas atribuies, deve participar efetivamente do 'processo democrtico', alinhando-se com os demais rgos do movimento social comprometidos com a concretizao dos direitos j previstos e a positivao de situaes novas que permitam o resgate da cidadania para a maioria excluda desse processo, numa prtica transformadora orientada no sentido da construo da nova ordem, da nova hegemonia, do 'projeto democrtico' 30.

3.2 Os dois modelos constitucionais do Ministrio Pblico brasileiro: o demandista e o resolutivo Dentro do novo perfil constitucional do Ministrio Pblico, Marcelo Pedroso Goulart sustenta que existem dois modelos de Ministrio Pblico: o demandista e o resolutivo. O Ministrio29

o entendimento de GOULART, Marcelo Pedroso. Ministrio pblico e democracia teoria e prxis, p. 96; esse tambm o pensamento de MACHADO, Antnio Alberto. Ministrio pblico: democracia e ensino jurdico, p. 141-2.30

Ministrio pblico e democracia - teoria e prxis, p. 96. No mesmo sentido, MACHADO, Antnio Alberto, Ministrio pblico: democracia e ensino jurdico, p. 141-142.

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Pblico demandista, que ainda prevalece, o que atua perante o Poder Judicirio como agente processual, transferindo a esse rgo a resoluo de problemas sociais, o que de certa forma, afirma o autor, desastroso, j que o Judicirio ainda responde muito mal s demandas que envolvam os direitos massificados 31. O Ministrio Pblico resolutivo o que atua no plano extrajurisdicional, como um grande intermediador e pacificador da conflituosidade social. Marcelo Goulart ainda ressalta que imprescindvel que se efetive o Ministrio Pblico resolutivo, levando-se s ltimas conseqncias o princpio da autonomia funcional com a atuao efetiva na tutela dos interesses ou direitos massificados32. Para tanto, imprescindvel que o rgo de execuo do Ministrio Pblico tenha conscincia dos instrumentos de atuao que esto sua disposio, tais como o inqurito civil, o termo de ajustamento de conduta, as recomendaes, audincias pblicas, de sorte a fazer o seu uso efetivo e legtimo. Portanto, nesse contexto, a atuao extrajurisdicional da Instituio fundamental para a proteo e efetivao dos direitos ou interesses sociais. A transferncia para o Poder Judicirio, por intermdio das aes coletivas previstas, da soluo dos conflitos coletivos no tem sido to eficaz, pois, em muitos casos, o Poder Judicirio no tem atuado na forma e rigor esperados pela sociedade. Muitas vezes os juzes extinguem os processos coletivos sem o necessrio e imprescindvel enfrentamento do mrito. Essa situao tem mudado, mas de forma muito lenta e no retilnea. No se nega aqui a importncia do Poder Judicirio no Estado Democrtico de Direito, ao contrrio, o que se constata e deve ser ressaltado o seu despreparo para a apreciao das questes sociais fundamentais. Um Judicirio preparado e consciente de seu papel das instncias mais legtimas e democrticas para conferir proteo e efetividade aos direitos e interesses primaciais da sociedade. Novamente, Marcelo Goulart prope que o Ministrio Pblico deve: [...] transformar-se em efetivo agente poltico, superando a perspectiva meramente processual da sua atuao; atuar integradamente e em rede, nos mais diversos nveis local, regional, estatal, comunitrio e global , ocupando novos espaos e habilitando-se como negociador e formulador de polticas pblicas; transnacionalizar sua atuao, buscando parceiros no mundo globalizado, pois a luta pela hegemonia (a guerra de posio) est sendo travada no mbito da 'sociedade civil planetria'; buscar a soluo judicial depois de esgotadas todas as possibilidades polticas e administrativas de resoluo das questes que lhe so postas (ter o judicirio como espao excepcional de atuao)33. O Ministrio Pblico resolutivo, portanto, um canal fundamental para o acesso da31 32 33

Op. cit. nota anterior, p. 119-123. Op. cit. notas anteriores, p. 120-121. Op. cit. notas anteriores, p. 121-122.

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sociedade, especialmente das suas partes mais carentes e dispersas, a uma ordem jurdica realmente mais legtima e justa. Os membros da Instituio devem encarar suas atribuies como verdadeiros trabalhadores sociais, cuja misso principal o resgate da cidadania e a efetivao dos valores democrticos fundamentais 34.

3.3 Do Ministrio Pblico como custos legis para o Ministrio Pblico como custos societatis (custos juris) e guardio da ordem jurdica Na defesa dos interesses primaciais da sociedade, o Ministrio Pblico deixou de ser o simples guardio da lei (custos legis). Assume agora, pelas razes j expostas, o papel de guardio da sociedade (custos societatis) e, fundamentalmente, o papel de guardio do prprio direito (custos juris), conforme ensinamento de Cludio Souto35. A respeito j assinalou Antnio Alberto Machado: [...] Esse desafio de ruptura com o modelo tradicional da cincia e da praxis do direito, reproduzido pelo ensino jurdico brasileiro, essencialmente normativista e com evidentes traos ainda do modelo coimbro, assume uma clara importncia histrica que vali alm da mera ampliao dos limites e possibilidades de atuao de um dos operadores jurdicos tradicionais. A existncia de um custos juris com possibilidade de empreender a defesa jurdico-prtica da democracia e de um custos societatis destinado a defender os direitos fundamentais da sociedade, representam no apenas uma conquista efetivamente democrtica da sociedade brasileira, mas tambm uma autntica possibilidade de ruptura com o positivismo do direito liberal que desde o sculo passado sustentou, nos termos da lei, as bases oligrquicas do poder social, econmico e poltico no Pas 36. nessa concepo de custos societatis e custos juris que o Ministrio Pblico, no seu papel demandista, tornou-se o mais atuante legitimado para a defesa dos direitos e interesses difusos e coletivos no Brasil. Essa hegemonia da Instituio, na defesa dos interesses massificados, decorre certamente de dois fatores bsicos. O primeiro est fundamentado no seu prprio novo perfil constitucional como Instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado e defensora da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais (art. 127, caput, da CF). O outro fator decorre do34

Mais uma vez colhem-se as lies de GOULART, Marcelo Pedroso: "Do ngulo poltico, s poderemos entender o promotor de justia como trabalhador social, vinculado defesa da qualidade de vida das parcelas marginalizadas da sociedade, a partir do momento em que rompa as barreiras que historicamente o isolaram dos movimentos sociais, passando a articular sua ao com esses movimentos. Deve assumir o seu compromisso poltico, no apenas nos aspectos da retrica e das elaboraes doutrinrias, mas, sobretudo, na atuao prtica, como intelectual orgnico". Op. cit. notas anteriores, p. 98.35

O tempo do direito alternativo uma fundamentao substantiva. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1997, p. 84-7.36

Ministrio Pblico: democracia e ensino jurdico, p. 197-8.

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prprio exerccio prtico de suas atribuies constitucionais, o qual tem amparo nas garantias constitucionais e nos mecanismos de atuao funcional que so inerentes ao Ministrio Pblico. Gustavo Tepedino ressalta esse novo papel outorgado pelo Constituinte de 1988 ao Ministrio Pblico, alado como o principal agente de promoo dos valores e direitos indisponveis, o que lhe conferiu, nas palavras do autor mencionado, funo promocional, especificada no art. 129 da CF 37. Assim, hoje pblico e notrio que o Ministrio Pblico a Instituio que mais tem atuado para a defesa dos interesses e direitos massificados, seja no campo extrajurisdicional, seja no jurisdicional, especialmente por intermdio do inqurito civil e do ajuizamento de aes civis pblicas. Antnio Augusto de Camargo Ferraz faz essa observao ao afirmar que mais de 90% (noventa por cento) dos casos de atuao jurisdicional na defesa dos interesses massificados no Pas decorrem da iniciativa do Ministrio Pblico, o que para o autor motivo de preocupao com essa tmida atuao dos demais legitimados ativos, j que tal situao seria efeito da fragilidade de nossa democracia38. Na condio de guardio da ordem jurdica, assume papel de destaque a atuao do Ministrio Pblico no controle da constitucionalidade tanto no controle concentrado e abstrato quanto no controle difuso e incidental. Convm destacar, tambm, a importncia da atuao do Ministrio Pblico para o controle extrajurisdicional da constitucionalidade, que poder se dar quando a Instituio expede recomendao para provocar perante o Poder Legiferante o autocontrole da constitucionalidade39. A tomada de Termo de Ajustamento de Conduta tambm um excelente mecanismo para viabilizar o controle extrajurisdicional da constitucionalidade das leis ou dos atos normativos pelo Ministrio Pblico.

3.4 Algumas diretrizes interpretativas das atribuies e garantias constitucionais do Ministrio Pblico A CF/88 valorizou o Ministrio Pblico, seus princpios, atribuies e garantias constitucionais, da mesma forma que valorizou os direitos constitucionais fundamentais arrolados no seu Ttulo II. Ela consignou expressamente, em rol exemplificativo, vrias atribuies ao37 38

Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 300.

Inqurito civil: dez anos de um instrumento de cidadania. In Ao civil pblica. Lei 7.347/85 15 anos. Obra conjunta, coord. dis Milar. So Paulo: RT, 2001, p. 64.39

ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Manual das aes constitucionais, p. 770-3.

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Ministrio Pblico no art. 129. A leitura do art. 129 deve estar unida do art. 127, que a clusulame do Ministrio Pblico, sendo que a leitura do art. 127, por sua vez, est associada do art. 1 da CF, que estatui o Estado Democrtico de Direito. A vedao representao judicial e consultoria jurdica de entidades pblicas pelo Ministrio Pblico, prevista no art. 129, IX, da CF, so limitaes s atribuies da Instituio que, indireta e reflexamente, fortalecem a dimenso do Ministrio Pblico como legtimo defensor da sociedade e da ordem jurdica democrtica. de se consignar que a norma de encerramento prevista no art. 129, IX, da CF/88, que permite que sejam conferidas ao Ministrio Pblico novas atribuies compatveis com sua finalidade, norma constitucional que mantm perfeita sintonia com o art. 127, caput, e, especialmente, com a clusula aberta dos direitos e garantias constitucionais, prevista no art. 5, 2, da CF/88. Da mesma forma, a CF/88 conferiu ao Ministrio Pblico inmeras garantias, com especial destaque para os arts. 127 e 128. Logo no 1 do art. 127, a Constituio consagra a unidade, a indivisibilidade e a independncia funcional do Ministrio Pblico como princpios institucionais. O 2 do mesmo artigo assegura ao Ministrio Pblico a sua autonomia funcional e administrativa. Adiante, no art. 128, 5, esto previstas as principais garantias do Ministrio Pblico, sendo elas: vitaliciedade aps dois anos de exerccio; inamovibilidade, salvo por motivo de interesse pblico; irredutibilidade de subsdios. As vedaes, que em verdade so garantias indiretas e reflexas da prpria Instituio, esto no 5 do art. 128 da CF/88, a saber: no receber, a qualquer ttulo e sob qualquer pretexto, honorrios, percentagens ou custas processuais; no exercer a advocacia, salvo exceo constitucionalmente prevista no ADCT; no participar de sociedade comercial, salvo na forma da lei; no exercer, ainda que em indisponibilidade, qualquer outra funo pblica, salvo uma de magistrio; no exercer atividade poltico-partidria; no receber, a qualquer ttulo ou pretexto, auxlios ou contribuies de pessoas fsicas, entidades pblicas ou privadas, ressalvadas as excees previstas em lei. O estudo, a interpretao/concretizao das atribuies e garantias constitucionais do Ministrio Pblico dependem, fundamentalmente, da anlise das respectivas normas constitucionais no plano das clusulas ptreas ou superconstitucionais.

3.5 O Ministrio Pblico e as suas atribuies e garantias constitucionais como clusulas ptreas (superconstitucionais) 3.5.1 O papel constitucional das clusulas ptreas 16

As clusulas ptreas exercem papel de suma importncia em uma Constituio democrtica e cidad como a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Nelas esto assentadas todas as garantias mximas da sociedade, as quais so protegidas contra o poder reformador. A Constituio Federal de 1988 arrola as clusulas ptreas ou superconstitucionais no 4 do art. 60, onde consta: No ser objeto de deliberao a proposta de emenda tendente a abolir: I a forma federativa de Estado; II o voto direto, secreto, universal e peridico; III a separao dos Poderes; IV os direitos e garantias individuais. A respeito do assunto, escreveu Oscar Vilhena Vieira: No Brasil um amplo grupo de clusulas superconstitucionais foi estabelecido como cerne inaltervel do texto de 1988. O enrijecimento desses dispositivos por fora do art. 60, 4 e incisos, da Constituio constitui uma resposta s diversas experincias autoritrias de nossa histria, nas quais os princpios e direitos, agora entrincheirados como clusulas superconstitucionais, foram sistemtica e institucionalmente violados. A adoo dessas clusulas limitadoras do poder de reforma tambm parece corresponder a uma alterao do prprio modelo constitucional adotado em 1988. A Constituio de 1988 uma das representantes mais tpicas do constitucionalismo de carter social ou dirigista (...) 40. A interpretao das clusulas ptreas no pode ser conduzida por mtodos interpretativos fechados, de forma que a interpretao meramente gramatical rechaada. A interpretao constitucional adequada, consoante melhor entendimento doutrinrio, aquela que possa retirar do rol das clusulas ptreas a sua melhor e mais legtima eficcia social. Assim, a interpretao dessas clusulas superconstitucionais aberta e flexvel no sentido ampliativo. Por exemplo, na leitura do inciso IV do 4 do art. 60 devem estar includos os direitos coletivos, tendo em vista que esses direitos esto, ao lado dos direitos individuais, inseridos no plano da teoria dos direitos e garantias constitucionais fundamentais (Ttulo II, Captulo I, da CF/88). Nesse sentido, j sustentamos: Assim, apesar das concepes em sentido contrrio, o melhor entendimento tem sustentado que o art. 60, 4, da CF/88, no deve ser interpretado restritivamente. O Direito Coletivo, como direito constitucional fundamental, beneficia-se do sistema constitucional das clusulas ptreas e est protegido contra as reformas constitucionais. Ademais, no Estado Democrtico de Direito (art. 1, da CF/88), a tutela jurdica integral, a Direito Coletivo e a Direito Individual, no havendo razo para qualquer discriminao que represente restrio a um ou a outro41.40 41

A Constituio e sua reserva de justia: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, p. 26.

ALMEIDA, Gregrio Assagra de, Direito material coletivo: superao da summa divisio direito pblico e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada, p. 492. Nesse sentido, afirmou SARLET, Ingo Wolfgang: Todas estas consideraes revelam que apenas por meio de uma interpretao sistemtica se poder encontrar uma resposta satisfatria no que concerne ao problema da abrangncia do art. 60, 4, inc. IV, da CF. Que uma exegese cingida expresso literal do referido dispositivo constitucional no pode prevalecer parece ser evidente (...) no h como negligenciar o fato de que a nossa Constituio consagra a idia de que constitumos um Estado democrtico social de Direito, o que transparece claramente em boa parte dos princpios fundamentais, especialmente no art. 1,

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Oscar Vilhena Vieira, ao apresentar estudo sobre a Constituio e sua Reserva de Justia, afirma que no deve prevalecer a interpretao literal do art. 60, 4, IV, da CF/88, pois para a compreenso dos direitos fundamentais deve levar-se em conta os elementos indispensveis realizao da dignidade humana e (...) no como um conjunto finito de direitos positivados com uma ou com outra denominao, ou, ainda, numa ou outra posio dentro do texto constitucional (...). Conclui o autor que a supremacia dos direitos como clusulas superconstitucionais no decorre de classificaes arbitrrias, mas da sua exigibilidade para a realizao da dignidade42. Escreve Uadi Lammgo Bulos sobre as clusulas ptreas: (...) so aquelas que possuem uma supereficcia, ou seja, uma eficcia total, como o caso dos incisos I a IV, infra. Da no poderem usurpar os limites expressos e implcitos do poder constituinte secundrio. Logram eficcia total, pois contm uma fora paralisante de toda a legislao que vier a contrari-las, de modo direto ou indireto. (...)43. As clusulas superconstitucionais no neoconstitucionalismo devem ser protegidas contra o poder reformador e, ao mesmo tempo, elas assumem uma funo ativa, no sentido de que devem ser efetivadas e concretizadas materialmente. Constituem, assim, ao mesmo tempo, funo de proteo e funo de efetivao/concretizao da Constituio. Novamente, ensina Oscar Vilhena Vieira: O Estado democrtico-constitucional tem historicamente articulado a convivncia de um Direito com pretenso de legitimidade e um poder coercitivo que garante respaldo a esse Direito e, ao mesmo tempo, por ele domesticado. A finalidade de uma teoria das clusulas superconstitucionais que o processo de emancipao humana, que o constitucionalismo democrtico vem realizando, possa ser preservado e expandido ao longo do tempo (...) 44. 3.5.2 O Ministrio Pblico como clusula ptrea

incs. I, III, e art. 3, incs. I, III e V. Com base nestas breves consideraes, verifica-se, desde j, a ntima vinculao dos direitos fundamentais sociais com a concepo de Estado na nossa Constituio. No resta qualquer dvida de que o princpio do Estado Social, bem como os direitos fundamentais sociais, integram os elementos essenciais, isto , a identidade de nossa Constituio, razo pela qual j se sustentou que os direitos sociais (assim como os princpios fundamentais) poderiam ser considerados mesmo no estando expressamente previstos no rol das clusulas ptreas autnticos limites materiais implcitos reforma constitucional (...). A eficcia dos direitos fundamentais, p. 403-4.42

E acrescenta: Assim, aqueles direitos que possam ser moralmente reivindicados e racionalmente justificados, enquanto elementos essenciais proteo da dignidade humana e que habilitem a democracia, como procedimento para a tomada de deciso entre seres racionais, iguais e livres, devem ser protegidos como superconstitucionais estejam eles positivados por intermdio de normas constitucionais ou decorram dos princpios adotados pela Constituio ou, ainda, de tratados de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, o que expressamente admitido pelo 2 do art. 5 da Constituio. A Constituio e sua reserva de justia: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, p. 245-6.43 44

Constituio Federal anotada, p. 775. A Constituio e sua reserva de justia, p. 227.

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O art. 127, caput, da CF/88, diz expressamente que o Ministrio Pblico Instituio permanente. Com base na interpretao lgica e na sua correta e perfeita relao com a interpretao teleolgica, verifica-se que a Constituio, ao estabelecer que o Ministrio Pblico instituio permanente, est demonstrando que a Instituio clusula ptrea, que recebe proteo total contra o poder reformador, ao mesmo tempo em que impe a sua concretizao social como funo constitucional fundamental. Nesse sentido, aduziu Cludio Fonteles: Se o Ministrio Pblico instituio permanente, enquanto existir a concepo constitucional do Estado brasileiro, como posta na chamada Carta-cidad a Constituio Federal de 1988 ele jamais poder ser extinto 45. No bastasse isso, observa-se que o Ministrio Pblico tem o dever de defender o regime democrtico, conforme est expresso no prprio art. 127, caput, da CF. O regime democrtico, na sua condio de regime do Estado da cidadania brasileira, clusula ptrea, com previso, inclusive, no art. 60, 4, incisos II e IV, da CF/88. Ora, se a Instituio ministerial defensora do regime democrtico, torna-se inquestionvel a sua insero no plano das clusulas ptreas. Nesse sentido, manifestou Emerson Garcia: Alm da necessria adequao material que deve existir entre referido preceito e a legislao infraconstitucional, o fato de o Constituinte originrio ter considerado o Ministrio Pblico uma Instituio permanente e essencial funo jurisdicional do Estado traz reflexos outros, limitando, igualmente, o prprio poder de reforma da Constituio. Com efeito, partindo-se da prpria natureza da atividade desenvolvida pelo Ministrio Pblico, toda ela voltada ao bem-estar da coletividade, protegendo-a, em especial, contra os prprios poderes constitudos, a sua existncia pode ser considerada como nsita no rol dos direitos e garantias individuais, sendo vedada a apresentao de qualquer proposta de emenda tendente a aboli-la (art. 61, 4, IV, da CF/1988)46 Ademais, o Ministrio Pblico tambm Instituio essencial Justia, outra clusula superconstitucional. Se o Ministrio Pblico essencial Justia e se a Justia clusula ptrea, ele tambm clusula ptrea.

3.5.3 Os princpios, as atribuies e as garantias constitucionais do Ministrio Pblico como clusulas ptreas (superconstitucionais): a impossibilidade de sua eliminao ou restrio e a possibilidade de sua ampliao

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O artigo 127 da Constituio Federal: reflexes, in MOURA JNIOR, Flvio Paixo et al (coords.), Ministrio Pblico e a ordem social justa, p. 1.46

Ministrio Pblico: organizao, atribuies e regime jurdico, p. 47.

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Os princpios, as atribuies e garantias constitucionais do Ministrio Pblico conferem a prpria dimenso constitucional da Instituio, alm de revelarem o seu verdadeiro e legtimo papel social. A supresso ou restrio desses princpios e atribuies representam a supresso e a restrio do prprio Ministrio Pblico em sua dimenso substancial. O Ministrio Pblico, como Instituio constitucional, clusula ptrea. Como conseqncia, os seus princpios, as suas atribuies e garantias constitucionais, as quais lhe do dimenso constitucional e revelam o seu legtimo valor social, tambm esto inseridas como clusulas ptreas ou superconstitucionais. Essas clusulas compem o ncleo de uma Constituio no Estado Democrtico de Direito. Por isso, elas no podem ser eliminadas nem restringidas. Todavia, elas podem ser ampliadas. As atribuies e garantias constitucionais do Ministrio Pblico, situando-se no mbito das clusulas superconstitucionais, podem ser ampliadas, mas no restringidas ou eliminadas da Constituio. Da mesma forma, o carter nacional do Ministrio Pblico, a sua indivisibilidade, unidade, independncia funcional, oramentria e administrativa, tambm so clusulas superconstitucionais. Tais diretrizes interpretativas vinculam o legislador constitucional, o infraconstitucional, o administrador, o particular e todos os operadores do direito, bem como as instituies de fiscalizao do Ministrio Pblico. No fosse isso, ainda impem, pela intensa carga de concretizao normativa que carregam, a efetivao concreta da Constituio e das suas Instituies democrticas, dentro das quais se insere o Ministrio Pblico. Essas assertivas so reforadas com os ensinamentos de Emerson Garcia: Por ser incua a previso de direitos sem a correspondente disponibilizao de mecanismos aptos sua efetivao, parece-nos que a preservao da atividade finalstica do Ministrio Pblico est associada prpria preservao dos direitos fundamentais, o que refora a sua caracterstica de clusula ptrea e preserva a unidade do texto constitucional. Conclui o autor: Alm disso, a limitao material ao poder de reforma alcanar, com muito maior razo, qualquer iniciativa que, indiretamente, busque alcanar idntico efeito prtico (v.g.: reduo das garantias e prerrogativas de seus membros e supresso da autonomia da Instituio, tornando-a financeiramente dependente do Executivo e, com isto, inviabilizando a sua atuao, que o elemento indicativo de sua prpria existncia)47. Esse mesmo posicionamento reforado pelas substanciosas consideraes do jurista Eduardo Ritt: (...) considerando que a Constituio Federal de 1988, no seu artigo 60, 4, inciso I, erigiu, como clusula ptrea, a forma federativa, cujo contexto engloba, constitucionalmente, o regime democrtico, tanto em relao s regras constitucionais para sua consecuo, quanto s regras constitucionais para a sua fiscalizao, e considerando, ainda, que o Ministrio Pblico foi47

Ministrio Pblico: organizao, atribuies e regime jurdico, p. 48.

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colocado como fiscal do regime democrtico e da ordem jurdica, tambm neste sentido o Ministrio Pblico torna-se clusula ptrea, assim como as prerrogativas e garantias dos seus membros48. Todavia, no razovel interpretar as garantias e princpios constitucionais do Ministrio Pblico para servirem de barreira que impea a eficcia social da atuao da Instituio. Com isso, as prerrogativas do rgo da Instituio no podem ser utilizadas para o benefcio particular do seu prprio titular. Nesses casos, princpios como a independncia funcional e a inamovibilidade se destinam a proteger o cargo contra investidas arbitrrias, quaisquer que sejam elas. O membro da Instituio no poderia, por exemplo, utilizar-se da independncia funcional para deixar de cumprir atribuio constitucionalmente estabelecida; da mesma forma, a inamovibilidade no pode servir de bice que impea a redistribuio de atribuies em determinada comarca ou unidade de servio quando patentemente injusta e desproporcional. A interpretao, portanto, das garantias e atribuies do Ministrio Pblico como clusulas superconstitucionais deve ser direcionada para proteger a Instituio, de modo a fortalecer os seus compromissos constitucionais com a sociedade e com os valores que compem o regime democrtico.

4. ALGUNS FATORES CONSTITUCIONAIS DE AMPLIAO DA LEGITIMAO SOCIAL DO MINISTRIO PBLICO 4.1 A importncia da preocupao com a legitimao social do Ministrio Pblico Afirmamos em tpicos anteriores que o Ministrio Pblico brasileiro passou a ser, a partir da CF/88, uma grande instituio de promoo social, com atribuies constitucionais para atuar em todas as reas relacionadas com a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis. Essas diretrizes constitucionais demonstram a importncia da preocupao com a legitimao social do Ministrio Pblico como instituio. O fato de os membros do Ministrio Pblico no serem, nos termos do modelo constitucional brasileiro, escolhidos diretamente pelo povo, no impede, porm, que a Instituio tenha legitimao social. Primeiro, porque o acesso Instituio se d aps um disputado concurso de provas e ttulos, exigido constitucionalmente; depois, porque a verdadeira legitimao social do Ministrio Pblico dever advir da sua efetiva e eficiente atuao na defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis (art. 127, caput, da CF/88).48

O Ministrio Pblico como instrumento de democracia e garantia constitucional, p. 184.

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No , contudo, qualquer tipo de atuao que ir constituir-se em fator de ampliao da legitimao social do Ministrio Pblico; da a importncia em se compreender o verdadeiro perfil constitucional da Instituio e suas dimenses no novo constitucionalismo. Partindo dessa nova leitura constitucional dos compromissos e desafios do Ministrio Pblico brasileiro, apresentaremos, na seqncia, alguns fatores constitucionais importantes para a ampliao da sua legitimidade social; outros existem, mas fizemos a escolha em apresentar aqueles que entendemos que sejam os mais relevantes nesta etapa de maturao e de construo do Ministrio Pblico como instituio constitucional. 4.2 Priorizao da atuao preventiva49 O Ministrio Pblico brasileiro j passou por alguns grandes momentos histricos. O primeiro deles pode ser apontado o seu reconhecimento como Instituio, o que aconteceu com o advento da Repblica, durante o Governo Provisrio, por fora do trabalho do ento Ministro Campos Salles. O segundo pode ser indicado como sendo o decorrente da Lei Complementar Federal n 40/81, que foi a primeira Lei Orgnica Nacional do Ministrio Pblico, assim considerada porque definiu um estatuto bsico e uniforme para o Ministrio Pblico nacional e disps sobre as suas principais atribuies, garantias e vedaes. Um terceiro grande momento ocorreu com o advento da Lei n 7.347/85 (Lei da Ao Civil Pblica), que conferiu legitimidade ao Ministrio Pblico para a defesa jurisdicional e administrativa dos interesses e direitos difusos e coletivos, alm de ter criado o inqurito civil. O Ministrio Pblico comea a ter aqui funo promocional de transformao da realidade social. Um quarto momento pode ser apontado com o advento da CF/88, o mais significativo e transformador de todos, conforme motivos j aduzidos acima. Agora entendemos que resta a construo de um quinto grande momento histrico. Mas ele no ocorrer do dia para a noite, nem se dar com simples alterao da lei ou da Constituio. Ele se dar com a mudana cultural no seio da Instituio e com a elaborao de tcnicas e estudos que possam fazer com que o Ministrio Pblico possa priorizar a mais significativa e importante tutela jurdica do Estado Democrtico de Direito: a tutela preventiva. A tutela jurdica preventiva a mais genuna forma de proteo jurdica no contexto do Estado Democrtico de Direito. Ela decorre do princpio da preveno geral como diretriz, inserida no princpio democrtico (art. 1 da CF/88).49

Sobre o tema, ALMEIDA, Gregrio Assagra de; PARISE, Elaine Martins, Ministrio Pblico e a priorizao da atuao preventiva: uma necessidade de mudana de paradigma como exigncia do Estado Democrtico de Direito. In MPMG Jurdico, Publicao da Procuradoria de Justia do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais, ano I, n. 1, setembro 2005, p. 13-6. Tambm, ALMEIDA, Gregrio Assagra de, Manual das aes constitucionais, p. 151-4.

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Por intermdio da tutela jurdica preventiva poder ser atacado, em uma das suas dimenses, diretamente o ilcito, evitando-se a sua prtica, continuidade ou repetio. Com isso, evita-se o dano, que objeto da tutela jurdica repressiva, mais precisamente a ressarcitria. Ocorre que muitos danos, especialmente os de dimenso social (aqueles que afetam o ambiente; a sade do consumidor; a criana e o adolescente; o idoso; a sade pblica etc.), no so possveis de reparao in natura. Portanto, s restaria nesses casos uma tutela repressiva do tipo compensatria ou do tipo punitiva, que espcie de tutela jurdica apequenada, j que no responde ao direito, a uma tutela jurdica genuinamente adequada, na sua condio de garantia fundamental do Estado Democrtico de Direito (1, 3 e art. 5, XXXV, da CF/88). Ora, se ao Ministrio Pblico como Instituio incumbe a defesa do regime democrtico, a ele incumbe prioritariamente a defesa preventiva da sociedade, pois essa, repita-se, a mais genuna forma de tutela jurdica no Estado Democrtico de Direito. Contudo, como cedio, a atuao da Instituio no Pas predominantemente repressiva, que se d em grande parte nos momentos patolgicos da conflituosidade social. A prova disso a atuao criminal, que por natureza repressiva. O que adianta punir criminalmente sem compreender, por intermdio de estudos e de dados estatsticos, as causas dessa criminalidade? So justamente essas causas que devem ser atacadas com prioridade. A exigncia de polticas pblicas especficas nesses casos fundamental. Alm de combater repressivamente os atos de improbidade, razovel priorizar a atuao para evitar que ocorram atos dessa natureza, especialmente os que geram dano ao Errio. Muitas vezes torna-se impossvel a recuperao dos ativos desviados, o que resulta em enormes prejuzos para a sociedade. A priorizao da atuao preventiva pelos Promotores de Justia, Procuradores de Justia e Procuradores da Repblica ser um caminho legtimo e eficaz para proteger o patrimnio pblico. Em vez de esperar a aplicao de lei inconstitucional com danos sociais, mais recomendvel que se priorize o controle da constitucionalidade para que seja evitada a aplicao da lei ou do ato normativo inconstitucional. Essa mudana de paradigma uma exigncia do Estado Democrtico de Direito brasileiro, na sua condio de Estado da Justia material, de Estado da transformao da realidade social. O Estado Democrtico de Direito, diferentemente das outras formas de Estado, tem um compromisso nuclear: transformar a realidade social na busca da igualdade material quanto ao acesso efetivo a bens e outros valores. Essa transformao da realidade social com justia tambm compromisso do Ministrio Pblico como defensor do regime democrtico (art. 1 e art. 127, caput, ambos da CF/88). Portanto, o papel do Ministrio Pblico resolutivo, na defesa dos interesses sociais, deve ser 23

exercido de forma efetiva em todas as suas esferas de atuao. Na rea criminal, imprescindvel a sua insero no seio social, para que venha a se inteirar das verdadeiras causas da criminalidade e exija polticas pblicas especficas do Poder Pblico, alm de atuar diretamente nas investigaes das condutas criminosas que mais abalam a sociedade, de forma a combater com rigor e eficincia o crime organizado e permitir que o Direito Penal tenha eficcia social. Na rea coletiva, o Ministrio Pblico dever priorizar a atuao preventiva para evitar a violao dos direitos sociais, alm de combater de modo articulado e eficiente as condutas danosas aos direitos massificados50. Na sua atuao extrajurisdicional, como grande intermediador e pacificador da conflituosidade social, o Ministrio Pblico assume funo social pedaggica: com a educao da coletividade para o exerccio da cidadania e das organizaes sociais. E isso a Instituio poder fazer pelas recomendaes, pelas audincias pblicas e tambm pelo termo de ajustamento de conduta. de se destacar que a forma mais legtima de realizao do direito no vem da capacidade de decidir e de fazer imperar decises, mas do dilogo, da interpretao negociada da norma jurdica. Mesmo para o Ministrio Pblico demandista, a priorizao da atuao preventiva fundamental, principalmente quanto ao ajuizamento de aes civis pblicas de tutela inibitria, evitando-se assim a prtica do ilcito, sua continuidade ou repetio. 4.3 Exerccio da funo pedaggica da cidadania: um compromisso constitucional social do Ministrio Pblico (arts. 1, pargrafo nico, 3, 6, 127, caput, e 205 da CF/88) Um dos grandes problemas educacionais no Brasil, talvez um dos mais graves, decorre do fato de nosso ensino ser muito formal e distante dos direitos da cidadania. O aluno, no ensino primrio e secundrio, obrigado a estudar e aprender matemtica, qumica e fsica, mas no aprende o mais importante para a sua convivncia social: os direitos e deveres para o exerccio da cidadania e convivncia democrtica. Ele sai do ensino mdio sem saber quais so os seus direitos polticos, os seus principais direitos fundamentais, os seus direitos como trabalhador, como assegurado da previdncia social, como consumidor etc. Ele nem sabe quais so as vias legtimas de acesso a esses direitos. Grande parte dos cidados brasileiros ainda pensa que o Promotor de Justia est subordinado ao Juiz. Essa grande massa popular no conhece o Ministrio Pblico, no50

A respeito desse novo perfil constitucional do Ministrio Pblico, escreve TEPEDINO, Gustavo: [...] o Ministrio Pblico deixa de atuar simplesmente nos momentos patolgicos, em que ocorre leso a interesse pblico, sendo convocado a intervir de modo permanente, promovendo o projeto constitucional e a efetividade dos valores consagrados pelo ordenamento. Temas de direito civil, p. 300.

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conhece o Poder Judicirio e nem tem noo dos seus compromissos constitucionais e, assim, no consegue exercer a fiscalizao legtima e necessria desses e de outras instituies constitucionais. O ensino no Pas contribui para a excluso de um grande contingente popular do processo democrtico e no cumpre os objetivos e princpios informadores da educao, estabelecidos no art. 205 da CF, especialmente o pleno desenvolvimento da pessoa e o seu preparo para o exerccio da cidadania51. At que haja a reestruturao do ensino mdio no Brasil, a Imprensa e as instituies de defesa social, como o Ministrio Pblico, tm um compromisso, imposto constitucionalmente, de contriburem para a divulgao dos direitos e deveres inerentes cidadania, possibilitando que um maior nmero de cidados participem efetivamente do processo de democratizao da sociedade brasileiro e, com isso, no fiquem dispersos e sujeitos a manobras imorais e esprias do poder poltico e econmico 52. Esse compromisso com a funo pedaggica da cidadania, alm de fundamentar-se no pargrafo nico do art. 1 a CF/88, onde est estabelecido que todo o poder emana do povo, que o exerce pelos seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituio, tambm desmembramento do princpio da solidariedade coletiva, presente no art. 3, I, da CF/88, constituindo-se, tambm, em direito social fundamental (arts. 6 e 205, ambos da CF/88), fundado na prpria dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da CF/88). Assim, o exerccio da funo pedaggica da cidadania est enquadrado no mbito do rol das matrias de interesse social, inserindo-se como um dos deveres constitucionais do Ministrio Pblico, presente no art. 127, caput, da CF/88. Alm das cartilhas cidads, da divulgao e da transparncia em relao s medidas e aes da Instituio, o mecanismo da audincia pblica um legtimo canal para que o Ministrio Pblico, em pleno dilogo com a sociedade, possa exercer, efetivamente, essa funo pedaggica da cidadania, ampliando a sua legitimao social.51

Estabelece o art. 205 da CF: A educao, direito de todos e dever do Estado e da famlia, ser promovida e incentivada com a colaborao da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho. Ao comentar o dispositivo, escreveu SILVA, Jos Afonso da: (...) O art. 205 prev trs objetivos bsicos da educao: (a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo da pessoa para o exerccio da cidadania; (c) qualificao da pessoa para o trabalho. Integram-se, nestes objetivos, valores antropolgico-culturais, polticos e profissionais. Comentrio contextual Constituio. So Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 784-5.52

Ao sustentarem a necessidade de um pensamento complexo, escreveu MORIN, Edgar: O conhecimento deve certamente utilizar a abstrao, mas procurando construir por referncia do contexto. A compreenso dos dados particulares necessita da ativao da inteligncia geral e a mobilizao dos conhecimentos de conjunto. Marcel Mauss dizia: preciso recompor o todo. Acrescentemos: preciso mobilizar o todo. Certamente, impossvel conhecer tudo do mundo, bem como apreender suas transformaes multiformes Mas, por mais aleatria que seja, o conhecimento dos problemas-chave do mundo deve ser perseguido, sob pena da imbecibilidade cognitiva. Tanto mais que hoje o contexto de todo conhecimento poltico, econmico, antropolgico, ecolgico constitui o prprio mundo. o problema universal para todo cidado: como adquirir a possibilidade de articular e organizar as informaes sobre o mundo. Mas para articul-las e organiz-las preciso uma reforma do pensamento. O pensamento complexo, um pensamento que pensa. In A inteligncia da complexidade, MORIN, Edgar; MOIGNE, Jean-Louis L. Traduo de Nirimar Maria Falci. So Paulo: Editora Peirpolis, 3 edio, 2000, p. 207-8.

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4.4 Realizao peridica de Audincias Pblicas 53

O mecanismo da audincia pblica um forte canal de ampliao e de fortalecimento da legitimao social do Ministrio Pblico, seja por permitir um dilogo mais direto com a sociedade, seja por permitir que a Instituio estabelea seu programa de atuao funcional a partir das propostas e reclamaes da prpria sociedade. A audincia pblica encontra-se fundamentada no princpio constitucional do exerccio direto da soberania popular, estabelecido no art. 1, pargrafo nico, da CF/88. Prev o referido dispositivo constitucional que todo o poder emana do povo, que o exerce pelos seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituio. Constitui-se, assim, mecanismo de exerccio direito da soberania popular, pois o cidado, por si, ou por seus entes sociais representativos, convidado a apresentar propostas, reivindicar direitos, exigir a observncia de deveres constitucionais e infraconstitucionais, bem como a tomar cincia de fatos ou medidas adotadas ou a serem adotadas pelas autoridades pblicas 54. Com efeito, a audincia pblica desmembramento direto do princpio democrtico, estatudo no art. 1, caput, da CF/88, que tem a cidadania como um dos seus fundamentos (art. 1, I, da CF/88) 55. Faz-se importante ressaltar que o direito democracia apontado por Paulo Bonavides, ao lado dos direitos informao e ao pluralismo, como direito fundamental de quarta dimenso (gerao), configurando-se como forma de democracia direta que marca o futuro da cidadania e a prpria liberdade de todos os povos 56.53

Nesse sentido, ALMEIDA, Gregrio Assagra de; SOARES JNIOR, Jarbas; GONALVES, Samuel Alvarenga. Audincia pblica: um mecanismo constitucional de fortalecimento da legitimao social do Ministrio Pblico. In MPMG Jurdico, Publicao da Procuradoria-Geral de Justia do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais, ano 1, abril/maio/junho 2006, n. 5, p. 9-15.54

Sobre o exerccio do poder diretamente pelo povo, aduz SILVA, Jos Afonso: O poder que o povo exerce diretamente. O princpio participativo caracteriza-se pela participao direta e pessoal da cidadania na formao dos atos do governo. As primeiras manifestaes da democracia participativa consistiram nos institutos democracia semidireta, que combinam instituies de participao direta com instituies de participao indireta, tais como: a iniciativa popular, pela qual se admite que o povo apresente projetos de lei ao legislativo de lei ao Legislativo; o referendo popular, que se caracteriza no fato de que projetos de lei aprovados pelo Legislativo devem ser subjetivos vontade popular; o plebiscito tambm uma consulta popular, semelhante ao referendo; difere porque este ratifica (confirma) ou rejeita o projeto aprovado; o plebiscito autoriza a formulao da medida requerida (...). Comentrio contextual Constituio. So Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 40-1.55

Sustenta RODRIGUES, Geisa de Assis: A audincia pblica um importante instrumento do Estado democrtico de Direito construdo a partir da extenso do princpio da audincia individual (...). Ao civil pblica e termo de ajustamento de conduta: teoria e prtica. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 94.56

Afirma BONAVIDES, Paulo: A democracia positivada enquanto direito de quarta gerao h de ser, de necessidade, uma democracia direta. Materialmente possvel graas aos avanos da tecnologia de comunicao, e legitimamente sustentvel graas informao correta e s aberturas pluralistas do sistema (...). Curso de direito constitucional. So Paulo: Malheiros Editores, 11 edio, 2001, p. 525-6.

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Assim, audincia pblica o mecanismo constitucional por intermdio do qual as autoridades pblicas e agentes pblicos em geral abrem as portas do poder pblico sociedade para facilitar o exerccio direto e legtimo da cidadania popular, em suas vrias dimenses, permitindo-se a apresentao de propostas, a apresentao de reclamaes, a eliminao de dvidas, a solicitao de providncias, a fiscalizao da atuao das instituies de Defesa Social, de forma a possibilitar e viabilizar a discusso em torno de temas socialmente relevantes. O Ministrio Pblico no s pode como deve realizar audincias pblicas com periodicidade necessria. Na condio de Instituio de defesa social e de promoo da transformao, com justia, da realidade social (arts. 1, 3, 127 e 129, todos da CF/88), o Ministrio Pblico deve permitir a participao direta da sociedade na elaborao dos seus Programas de Atuao Funcional, bem como esclarecer os cidados e seus entes representativos sobre as medidas adotadas pela Instituio, conduzindo o princpio participativo, desmembramento natural do principio democrtico, ao seu grau mximo de efetivao e concretizao. No h um dispositivo expresso na Constituio que exija a realizao de audincias pblicas pelo Ministrio Pblico57; contudo, h um conjunto de direitos, garantias e princpios constitucionais, expressos e implcitos, que impem a ampliao e a facilitao do exerccio direto da democracia pela participao popular, o que deve ser fomentado pelas instituies democrticas de defesa social, como o caso do Ministrio Pblico. Entretanto, o fato de a audincia pblica estar fundamentada no direito poltico de participao no significa que ela somente se dirige ao cidado em seu sentido restrito. Os seus entes representativos, bem como outras pessoas jurdicas dela tambm podem participar. o que esclarece Hugo Nigro Mazzilli: Alm do membro do Ministrio Pblico, que a presidir, dos funcionrios desta instituio, que daro suporte e apoio ao primeiro, e das pessoas que forem nominalmente convidadas para o evento, ainda podero participar da audincia, sem carter taxativo: a) representantes de associaes civis interessadas; b) as autoridades pblicas interessadas ou que tenham competncia para analisar a questo em exame; c) as entidades sindicais relacionadas com o objeto da audincia; d) as universidades ou faculdades, bem como entidades acadmicas que tenham conhecimento tcnicos sobre o tema em questo; e) especialistas, peritos e tcnicos, que compaream sob convite ou espontaneamente; f) qualquer pessoa que tenha interesse geral na questo objeto da audincia58. o que tambm dispe a Resoluo PGJ n 43/2006, do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais: Art. 3 A audincia aberta a todos os interessados, pessoas fsicas, pessoas jurdicas e demais entidades, que devero assinar lista de presena, sendo que a participao dar57 58

O art. 58, 2, da CF/88, prev a realizao de audincias pblicas pelas comisses do Congresso Nacional. Inqurito civil. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 330.

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se- na condio de expositor ou de colaborador, os quais podero apresentar informaes ou propostas orais ou por escrito quanto aos temas a serem abordados. No plano infraconstitucional, a realizao de audincia pblica pelo Ministrio Pblico tem amparo em texto expresso de lei. o que prev o art. 27, pargrafo nico, IV, da Lei 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgnica Nacional do Ministrio Pblico): Art. 27 Cabe ao Ministrio Pblico exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituies Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito: [...] Pargrafo nico. No exerccio das atribuies a que se refere este artigo, cabe ao Ministrio Pblico, entre outras providncias: IV promover audincias pblicas e emitir relatrios, anual ou especiais, e recomendaes dirigidas aos rgos e entidades mencionadas no caput deste artigo, requisitando ao destinatrio sua divulgao adequada e imediata, assim como resposta por escrito. A Lei Complementar Federal n. 75, de 20 de maio de 1993, que dispe sobre a organizao, as atribuies e o estatuto do Ministrio Pblico da Unio, no tem previso expressa sobre a realizao de audincia pblica pelo Ministrio Pblico da Unio; porm, isso no impede que os Ministrios Pblicos da Unio a realizem, conforme muito bem ponderou o Procurador da Repblica, Alexandre Amaral Gavronski: Verdadeiro mecanismo de participao [democracia participativa] do cidado na tomada de decises de interesse coletivo, decorrncia natural do Estado Democrtico de Direito em que se constitui a Repblica Federativa do Brasil (art. 1 da CF), a audincia pblica no depende de lei ou regulamento para ter cabimento; esta s necessria para faz-la obrigatria. Por tal razo, assume pouca relevncia a omisso da Lei Complementar n. 75/93 sobre o assunto, diferentemente da Lei Orgnica Nacional do Ministrio Pblico, que inclui explicitamente dentre as funes da Instituio promover audincias pblicas para, no exerccio da defesa dos direitos assegurados na Constituio, garantir-lhes o respeito por parte dos poderes pblicos, concessionrios e permissionrios de servio pblico e entidades que exeram funo delegada (art. 27, pargrafo nico, IV, da Lei 8625/903). Assim, tratando-se de colaborao da cidadania ao Ministrio Pblico, cabe ao membro com atribuio para a matria decidir se cabe ou no sua realizao59. A audincia pblica mecanismo constitucional fundamental de participao democrtica, decorrente do exerccio direto da soberania pelo povo (art. 1, pargrafo nico, da CF/88) e que se sujeita a vrios princpios orientadores. Alguns desses princpios merecem especial destaque. 1. Princpio democrtico (art. 1 da CF/88). O princpio democrtico o mais importante de todos os princpios; a clusula me das audincias pblicas, por fora do qual se impe a fomentao da participao popular e, ao mesmo tempo, probem-se atitudes restritivas do acesso 59

GAVRONSKI, Alexandre Amaral. Tutela coletiva: viso geral e atuao extrajudicial. Braslia: ESMPU Manual de atuao, p. 90-1, 2006.

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audincia pblica. 2. Princpio da publicidade ampla, irrestrita e popular (art. 5, LX e 37, caput, da CF/88). audincia pblica deve ser conferida a mxima publicidade, com sua divulgao por todos os meios legtimos, tais como editais, convites, com a utilizao inclusive de todos os veculos de comunicao. 3. Princpio do retorno ou da resposta sociedade ou ao cidado ou da prestao de contas das medidas e resultados (art. 5, XXXIV, a, da CF). Por fora desse princpio, as autoridades pblicas devem prestar contas