gregório - vida de são bento

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    So Gregrio Magno

    Segundo Livro dos Dilogos: Vida de So BentoSegundo Livro dos Dilogos: Vida de So BentoSegundo Livro dos Dilogos: Vida de So BentoSegundo Livro dos Dilogos: Vida de So BentoNNNNrsia (480)rsia (480)rsia (480)rsia (480) Monte Cassino (543)Monte Cassino (543)Monte Cassino (543)Monte Cassino (543)

    Fonte: http://cristianismo.org.br

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    PREFCIO DE S. GREGRIO MAGNPREFCIO DE S. GREGRIO MAGNPREFCIO DE S. GREGRIO MAGNPREFCIO DE S. GREGRIO MAGNO AOS QUATROO AOS QUATROO AOS QUATROO AOS QUATRO

    LIVROS DOS DILOGOSLIVROS DOS DILOGOSLIVROS DOS DILOGOSLIVROS DOS DILOGOS

    Abatido, um dia, por causa da excessiva afluncia dealguns seculares - aos quais, em suas dificuldades, somosmuitas vezes obrigados a pagar at o que sem dvida nodevemos -, procurei um lugar retirado, amigo de minhasmgoas, onde pudesse ver com clareza tudo que medesagradava em minhas ocupaes e ter livremente sobos olhos tudo quanto me costumava afligir. Enquanto ali

    me achava, amargurado e em silncio por muito tempo,esteve comigo meu amado filho, o dicono Pedro, quedesde a mais tenra idade me familiarmente ligado porgrande amizade, e tambm companheiro no estudo daPalavra Sagrada. Vendo-me o corao devorado demgoa, disse-me:Ter acontecido algo de novo, pois ests mais triste quede costume?Pedro, respondi-lhe, a tristeza que sofro cada dia, paramim sempre velha, porque contnua, e,simultaneamente, sempre nova, porque sempreaumenta. Meu pobre esprito, atacado do mal das suasocupaes, recorda o que foi outrora no mosteiro, comoas coisas instveis lhe estavam por baixo, e quanto eletranscendia tudo que passa, acostumado que era a nopensar seno nas coisas celestes; recorda que, emboraretido no corpo, j ultrapassava pela contemplao oslimites da carne; e a morte, que para quase todos punio, ele j a desejava como a entrada na vida e oprmio dos seus trabalhos. Agora, porm, sofre com asdificuldades dos seculares, por ocasio da cura pastoral.Depois de tanta formosura do tempo da sua paz, esthoje enfeiado do p da atividade terrena. E como, porcondescendncia com muitos, ele se dissipa pelas coisasde fora, mesmo quando retoma o curso da vida interior,, sem dvida, debilitado que a ela volta. Estou, pois,avaliando o que sofro, avaliando o que perdi; e, enquantoconsidero o que perdi, pesa-me ainda mais o quesuporto.

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    Eis, com efeito, sou agora batido pelas vagas de alto mar,e os ventos de forte tempestade despedaam a nau deminha mente; quando me lembro da vida anterior,

    suspiro como se estivesse vendo atrs de mim o litoral. E,o que ainda mais triste, enquanto sou levado notumulto de imensas ondas, mal posso ver o porto quedeixei; pois esta a lei das quedas do esprito: primeiro,ele perde o bem que possui, mas ao menos se lembra deo ter perdido; depois, quando avana mais longe, acabaesquecendo o prprio bem que perdeu, e, finalmente,no v mais, nem de memria, o que antes possua porexperincia. Da se segue o que antes eu disse: senavegarmos mais adiante, j nem o porto de

    tranqilidade que deixamos, podemos ver.s vezes, tambm, para aumento de minha dor, volta-me lembrana a vida de alguns homens que de toda amente deixaram este sculo. Vendo as alturas a quechegaram, fico sabendo quanto me encontro por baixo. Amaioria deles agradou ao Criador numa vida retirada;para que o seu esprito novo no envelhecesse porocupaes humanas, Deus onipotente no quis que seocupassem com trabalho deste mundo.Mas poderei relatar melhor o dilogo (travado entre mime Pedro), se distinguir perguntas e respostas pelaindicao dos nomes dos interlocutores.Pedro: No sabia que na Itlia alguns homens brilharamnotavelmente pelas virtudes de sua vida. Ignoro, pois,quem so estes cuja comparao te inflama. No duvido, verdade de que houve neste pas homens bons, maspenso que ou no operaram absolutamente sinais emilagres, ou, se os operaram, foram at hoje de tal modopas- sados em silncio que no sabemos que ospraticaram.Gregrio: Pedro, se eu referir o que desses homensperfeitos e aprovados eu s, pobre homenzinho, vim asaber do testemunho de gente boa e fidedigna, ouaprendi por mim mesmo, penso que o dia acabar antesda narrativa.Pedro: Gostaria de que em resposta a perguntas minhascontasses alguma coisa desses homens. No deve parecercondenvel interromper com isto a exposio daEscritura, porque no menos edificao provm da

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    lembrana dos milagres. Na exposio da Escrituraconhece-se o modo de encontrar e conservar a virtude;na narrao dos milagres, conhecemos como se

    manifesta a virtude encontrada e conservada. E h muitagente que mais pelo exemplo do que pela palavra seinflama de amor pela ptria celeste. Muitas vezes mesmoos exemplos dos Pais trazem alma do ouvinte umadupla ajuda, pois, se, de um lado, ele se afervora no amorda vida futura pela comparao com os que oprecederam, de outro lado, tambm se humilha, se julgaser alguma coisa, ao conhecer que outros forammelhores.Gregrio: O que fiquei sabendo pela narrao ouvida de

    homens venerveis, tambm eu o narrarei sem hesitao,seguindo um exemplo de santa autoridade; pois me mais claro do que a luz que Marcos e Lucas aprenderam,no por ver, mas por ouvir, o Evangelho que escreveram.Todavia, para tirar aos leitores qualquer ocasio dedvida, referirei em cada caso que descrever, os autorespor quem fui informado. Quero, porm, chamar a tuaateno para o seguinte: em alguns casos guardareiapenas o sentido, enquanto, em outros, tanto o sentidocomo as palavras dos relatores. A razo que, se detodas as pessoas eu quisesse conservar textualmente aspalavras, a linguagem de escritor no poderia reproduzirdignamente as que foram proferidas em linguagemrstica.Foi de ancios muito venerveis que ouvi o que passo acontar.

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    PRLOGO DE S. GREGRIO MAGNO AO SEGUNDOPRLOGO DE S. GREGRIO MAGNO AO SEGUNDOPRLOGO DE S. GREGRIO MAGNO AO SEGUNDOPRLOGO DE S. GREGRIO MAGNO AO SEGUNDOLLLLIVRO DOS DILOGOSIVRO DOS DILOGOSIVRO DOS DILOGOSIVRO DOS DILOGOS

    Houve um varo de vida venervel, Bento tanto pelagraa quanto pelo nome, que desde a infncia possuaum corao maduro. Superior, pelo seu modo deproceder, ao verdor da idade a nenhuma volpiaentregou seu corao, e assim, enquanto se achava nestaterra, da qual por algum tempo pudera gozar livremente,desprezou, como j murchas, as flores do mundo.Oriundo de nobre estirpe da provncia de Nrsia, foraencaminhado a Roma para o estudo das belas letras.

    Vendo, porm, muitos nesses estudos rolarem pelodespenhadeiro do vcio, recolheu logo o p que quasepusera no limiar do mundo, no temor de que, tocandoalgo da sua cincia, viesse tambm ele a despenhar-sepor inteiro no tremendo abismo.Desprezando, pois, tais estudos, deixou a casa e os benspaternos, e, no desejo de agradar somente a Deus,procurou o santo hbito do monaquismo. Retrocedeu,assim, doutamente ignorante e sabiamente insensato.No conheo todos os feitos desse varo, mas o poucoque contarei, sei-o pela narrao de quatro discpulosseus: Constantino, homem respeitabilssimo, que lhesucedeu na direo do mosteiro; Valentiniano, que regeupor muitos anos o mosteiro do Latro; Simplcio, que foio seu segundo sucessor na direo da comunidade;Honorato, que at hoje dirige o mosteiro onde Bentoantes viveu.

    CAPTULO I. REPARAO DO CRIVO QUEBRADO.

    Deixando, pois, as humanidades, resolveu procurar umlugar ermo, seguido apenas pela aia, que o amava comternura. Chegaram, assim, a certa localidade chamadaEnfide, onde, entretidos pela caridade de muitos homensde virtude, ficaram morando junto igreja de S. PedroApstolo. Um dia, a ama pediu s vizinhas que lhe

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    emprestassem um crivo para limpar o trigo; tendo-o,porm, deixado descuidadamente sobre a mesa, o crivocaiu e se quebrou, ficando partido em dois pedaos. Logo

    que voltou e o encontrou nesse estado, a mulhercomeou a chorar muito, aflita por ver quebrada a vasilha que tomara de emprstimo. Quando, porm, opiedoso e bondoso jovem Bento encontrou a ,amachorando, compadecido da sua dor, pegou os dois cacosdo vaso, e, levando-os consigo, entregou-se orao comlgrimas. Quando se ergueu da orao, viu junto de si ocrivo de tal forma ntegro que nenhum vestgio se podiadescobrir da fratura. Ento, pronta e carinhosamenteconsolou a ama, devolvendo-lhe so o vaso que levara

    em cacos.Este fato passou ao conhecimento de todos os habitantesdo lugar, e foi tido em tanta admirao que penduraram porta da igreja o crivo restaurado, a fim de que oscontemporneos e os psteros todos ficassem sabendoem que grau de perfeio o jovem Bento principiara agraa da vida monstica. A vasilha ficou por muitos anosexposta aos olhares de todos, pendendo parta da igrejaat estes tempos dos Lombardos.Bento, porm, mais apetecendo os maus tratos que oslouvores do mundo, e preferindo fatigar-se de trabalhospor Deus a ser alado pelos favores desta vida, fugiuocultamente da ama e foi dar a um retiro deserto nolugar denominado , distante de Roma cerca de quarentamilhas. A brota uma gua fresca e transparente, que,correndo com abundncia, primeiro forma um grandelago, do qual deriva, afinal, um rio.Quando para ali se encaminhava em fuga, encontroucerto monge de nome Romano, que lhe perguntou aondeia. Ciente do seu desejo, no s guardou segredo masainda lhe prestou ajuda e deu o hbito do monacato,servindo-o no que podia.Chegado a tal lugar, o homem de Deus recolheu-se apertadssima gruta, onde morou trs anos ignorado detodos, excetuado o monge Romano. Este ltimo vivianum mosteiro prximo, sob a regra do abade, a cujoolhar piedosamente furtava algumas horas para levar aBento, em determinados dias, a parte de po queconseguira subtrair ao prprio consumo. No havia

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    caminho do mosteiro de Romano gruta, por causa dealto rochedo que em cima da gruta fazia salincia ; masRomano, do alto dessa pedra, costumava fazer descer o

    po pendurado a uma corda comprida a que prenderauma campainha para que o homem de Deus, ao ouvir-lheo toque, soubesse que era a hora de baixar o alimento, esasse a tom-lo.Um dia, porm, o antigo inimigo, invejando a caridade deum e a refeio do outro, quando viu descer o po, jogouuma pedra e quebrou a campainha. Romano, noobstante, no desistiu de prestar por meios aptos o seuservio.No entanto, Deus todo-poderoso queria, de um lado,

    descansar Romano do trabalho, e, doutro lado, exibir aoshomens, para exemplo, a vida de Bento, a fim de quebrilhasse como lmpada sobre o candelabro, iluminandotodos os que esto na casa. Por isto, o Senhor dignou-sede aparecer a certo presbtero que morava longe eacabava de preparar, no dia de Pscoa, a prpriarefeio; disse-lhe: Preparas delcias para o teu prpriogozo, enquanto o meu servo em tal lugar atormentadopela fome'. O sacerdote levantou-se imediatamente e noprprio dia da solenidade de Pscoa, com os alimentosque para si preparara, saiu na direo indicada,procurando o homem de Deus atravs dos montesescarpados, pelos vales e fossas do terreno, at que oachou escondido na gruta. Depois de rezarem,assentaram-se bendizendo a Deus todo-poderoso; apssuaves colquios sobre a vida eterna, o recm-vindodisse estas palavras: Eia, tomemos alimento, porquehoje Pscoa. Respondeu-lhe o homem de Deus: Seique Pscoa, pois mereci a graa de te ver. Morandolonge dos homens, Bento ignorava que a solenidadepascal era naquele dia; ms o venervel presbtero denovo lho asseverou: Em verdade hoje Pscoa, o dia daRessurreio do Senhor. De modo nenhum te fica bemjejuar, pois aqui fui mandado justamente para que juntospartilhemos as ddivas de Deus todo-poderoso .Louvando, pois, o Senhor, tomaram alimento; e, finda arefeio e o colquio, voltou o padre para a sua igreja.Por esse mesmo tempo tambm alguns pastores oencontraram escondido na caverna. Vendo-o entre

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    arbustos, vestido de peles, julgaram a principio que fosseum animal selvagem; mas, quando ficaram conhecendo oservo de Deus, muitos se converteram da sua mente

    animal para a graa de uma vida piedosa. Assim o nomede Bento tornou-se conhecido pelos arredores; j desdeento Bento comeou a ser visitado por muitos que,trazendo-lhe a refeio para o corpo, levavam, em troca,nos coraes, o alimento de vida que procedia dos lbiosdo santo.

    CAPTULO II. VITRIA SOBRE A TENTAO DACARNE.

    Certa vez, quando estava s, apareceu-lhe o tentador:uma dessas avezinhas pretas, conhecidas vulgarmentepelo nome de melro, comeou a esvoaar em torno doseu rosto e a chegar importunamente to perto que osanto homem, se o quisesse, a poderia apanhar com amo. Em vez disto, fez o sinal da cruz, e o pssaroafastou-se. Desaparecida, porm, a ave, seguiu-se-lhegrande tentao carnal, qual nunca o santoexperimentara. Conhecera outrora certa mulher, que oesprito maligno lhe fazia por essa ocasio voltar aosolhos do esprito, inflamando de tal modo o corao doservo de Deus a lembrana de sua formosura, que seupeito mal podia conter as chamas do amor, e que quasepensava em abandonar o deserto, vencido pela paixo.Mas eis que de repente foi contemplado pela graaceleste, e voltou a si; vendo, ento, ao lado de sicrescerem densas moitas de urtigas e espinhos, atirou-se, despido, a essas pontas e a essas chamas, onde serevolveu por tanto tempo, que, ao sair, estava ferido portodo o corpo. Assim expulsou do corpo, pelas feridas dacarne, a chaga do esprito: convertera em dor a volpia.Ardendo por fora em justa punio, apagou o que pordentro ilicitamente queimava. Venceu, pois, o pecado,porque transformou a natureza do incndio. E a partirdessa poca, como ele mesmo dizia aos discpulos, foi

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    nele a tal ponto subjugada a tentao da volpia quenunca mais a sentiu. Muitos, ento, comearam a deixaro mundo e a acorrer ao seu magistrio: livre que estava

    do mal da tentao, mereceu tornar-se mestre devirtudes. Por isso que Moiss determina que os Levitassirvam a partir dos vinte e cinco anos, e que, depois doscinqenta, se tornem guardas dos vasos sagrados (Num8,24-26).Pedro: Entendo em parte o sentido do testemunho(bblico) que aduzes, mas peo que o expliques maisplenamente.Gregrio: evidente, Pedro, que na juventude ferve atentao da carne, mas, depois dos cinqenta anos,

    arrefece o calor do corpo; quanto aos vasos sagrados, soas mentes dos fiis. preciso, pois, que, enquanto estosujeitos tentao, os eleitos sejam submissos e sirvam,fatigando-se em obedincia e trabalhos. Quando, porm,na idade tranqila da mente, tenha passado o calor datentao, tornam-se guardas dos vasos, isto , doutoresdas almas.Pedro: Confesso que a explicao me satisfaz. E, agoraque j desvendaste o sentido da passagem trazida emtestemunho, peo-te que continues a descrever o que foicomeado da vida desse justo.

    CAPTULO III. O COPO DE VIDRO QUEBRADO COM OSINAL DA CRUZ.

    Gregrio: Vencida a tentao, o homem de Deus, comoterra bem cultivada e expurgada de espinhos, produziucom maior abundncia o fruto da seara das virtudes. E,com a divulgao da fama de sua exmia vida monacal,ia-lhe o nome ficando clebre.Ora, havia a no grande distncia um mosteiro cujoabade falecera. Toda a comunidade foi ter ento com o venervel Bento, e instantemente pediu-lhe quisesseficar sua frente. O santo recusou por muito tempo,predizendo que no poderia harmonizar os seus

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    costumes com os daqueles irmos. Mas, afinal, vencidopelos rogos, cedeu.J porm, que vigiava naquele mosteiro pela observncia

    da vida regular e a ningum permitia que por aesilcitas se desviasse, como antes, do caminho monstico,os irmos que ele aceitara, encheram-se de fria epuseram-se primeiro a acusar a si mesmos por terempedido a Bento que os regesse; sua vida tortuosa ia emoposio reta norma do abade.Como viam que, sob tal abade, o ilcito j no lhes erapermitido, e como lhes doa abandonar os antigoshbitos, achando eles dura a obrigao de meditar coisasnovas na sua mente velha, alguns deles - j que aos maus

    sempre pesada a vida dos bons - tramaram a morte doabade, e, tomado o alvitre em conselho, deitaram-lheveneno ao vinho. Quando apresentaram ao Pai, sentado mesa, o copo da bebida pestfera para ser abenoadosegundo o costume da casa, Bento estendeu a mo e fez osinal da cruz. A este gesto, o vaso, que estava distante,estalou e fez-se em pedaos, como se naquela taa demorte tivesse dado, em vez da cruz, uma pedrada.Compreendeu logo o homem de Deus que o copocontivera uma bebida mortal, pois no pudera suportar osinal da vida. Levantou-se no mesmo instante, e, com orosto plcido, a mente tranqila, convocou os irmos, aosquais assim falou: Deus tenha compaixo de vs,irmos. Porque me quisestes fazer isto? No vos disse eupreviamente que no se harmonizariam os vossos e osmeus costumes? Ide, e procurai para vs um Paiconsoante vossa vida; depois disto j no me podereisreter.Voltou, ento, ao recanto da dileta solido, e s, sob osolhares do Contemplador Superno, ps-se a viverconsigo mesmo.Pedro: No entendo bem o que significa isto: viverconsigo mesmo.Gregrio: Se o santo varo pretendesse ter por muitotempo sob seu poder e coao irmos que conspiravamunanimemente contra ele e eram de vida to diferente dasua, talvez excedesse o limite das prprias foras,perdesse a tranqilidade, e. assim, baixasse da luz dacontemplao, os olhos da mente. Cansando-se em lidar

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    cada dia com a incorreo de outros, cuidaria menos de siprprio, e, desta forma, talvez viesse a perder-se a si,sem achar os outros. Pois, quando somos arrastados

    muito fora de ns pela agitao do pensamento,continuamos a ser ns mesmos, mas no estamos em nsmesmos, porque deixamos de olhar para dentro de ns e vagamos pelas outras coisas. Acaso diremos que viviaconsigo aquele que partiu para longe, consumiu oquinho recebido e se empregou na casa de um habitantedo lugar, deu de comer a porcos, que via fartarem-se defavas, enquanto ele mesmo tinha fome? Depois, porm,comeou a pensar nos bens que perdera, e ento foiescrito dele: Voltando a si, disse: Quantos mercenrios

    tm po em abundncia na casa de meu pai! (Lc 15,17).Ora, se estava em si mesmo, como que voltou a si?Disse eu, pois, que esse venervel homem viveu sconsigo, porque, sempre prudente na guarda de simesmo, vendo-se continuamente ante os olhos doCriador e examinando-se sem cessar, nunca deixou quelhe divagasse fora o olhar da mente. Pedro: Comoentender o que est escrito do Apstolo Pedro, quandofoi tirado do crcere pelo anjo? Ele, voltando a si, disse:Agora sei, na verdade, que o Senhor enviou o seu anjo eme livrou do poder de Herodes e de toda a expectativa dopovo dos Judeus (Atos 12,11).Gregrio: De dois modos, Pedro, somos levados parafora de ns: ou camos abaixo de ns mesmos pela quedado pensamento, ou somos transportados acima, pelagrafa da contemplao.Aquele, pois, que guardou porcos, caiu, por pensamentosdivagantes e imundos, abaixo de si, enquanto aquele queo anjo libertou e arrebatou no xtase do esprito, estevetambm fora, mas acima, de si. Cada um deles, portanto, voltou a si: um, deixando as obras erradas, recolheu-sea prpria alma; o outro, descendo das alturas dacontemplao, voltou ao modo comum de inteligncia,como dantes. Por conseguinte, o venervel Bento,naquela solido, viveu s consigo, enquanto se mantevedentro da clausura do pensamento; pois todas s vezesque o ardor da contemplao o raptou para as alturas, elese deixou, sem dvida, abaixo de si mesmo.

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    Pedro: Apraz-me o que dizes; mas queria saber se elepodia deixar os irmos que tinha tomado a si parasempre.

    Gregrio: Em minha opinio, Pedro, julgo que ondeexistem alguns bons que possam ser ajudados, devem osmaus ser suportados com pacincia. Mas onde falta, porcompleto, o fruto dos bons, torna-se, finalmente, intil otrabalho gasto com os maus, mormente se perto houtras condies capazes de produzir fruto para Deus.Por causa de quem ficaria santo homem ali, pendotodos em peso contra si? Muitas vezes, tambm, noesprito dos perfeitos se d uma coisa que no devemospassar em silncio: vendo sem resultado o seu esforo,

    passam a outro lugar, onde trabalhem com fruto. Por estemotivo, aquele grande pregador, que ardia por dissolver-se e para quem Cristo constitua o viver, e amorte, lucro (Fil 1,21-23) que no s apeteceu ossofrimentos para si, mas ainda inflamou os outros paratoler-los, esse grande pregador, quando foi alvo deperseguio em Damasco, procurou, para evadir-se, amuralha, cordas e um cesto, e quis ser baixado s ocultas(2 Cor 11,32-33). Diremos, por ventura, que Paulo temeua morte, que ele prprio afirma ter cobiado por amor deJesus?A verdade que, vendo esper-lo ali menos fruto e maiortrabalho, se reservou para trabalhar em outra parte commaior proveito; pois o robusto combatente de Deus noquis ficar encerrado no acampamento, mas buscou ocampo de batalha. Donde tambm em breve vers, seprestares ateno, que o mesmo venervel Bento nodeixou de lado tantos rebeldes quantos ressuscitou,alhures, da morte da alma.Pedro: como dizes; mostra-o tanto a razo evidentecomo o adequado testemunho da Escritura. Peo-teagora que voltes narrao da vida de to grande Pai.Gregrio: Como o santo homem, vivendo muito temponaquela solido, crescesse em virtude e milagres, foireunindo muitos no lugar para o servio de Deus todo-poderoso. Pde, assim, construir, com a ajuda de JesusCristo Senhor onipotente, doze mosteiros, em cada umdos quais colocou doze monges sob um abade institudo;consigo, porm, conservou alguns poucos, que julgou

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    conveniente se formassem ulteriormente em suapresena.Por esse tempo, tambm, comearam a afluir de Roma

    pessoas nobres e piedosas, que lhe davam os filhos a fimde que os criasse para Deus todo-poderoso. Foi entoque Equcio fez a entrega de Mauro, e o nobre Tertulo, ade Plcido, flores das esperanas paternas. Mauro,adolescente que se distinguia pelos bons costumes,comeou a prestar auxlio ao Mestre, enquanto Plcidoainda se achava em idade infantil.

    CAPTULO IV. O MONGE DIVAGANTE RECONDUZIDO SALVAO.

    Em um dos mosteiros que construra ao redor, haviacerto monge que no conseguia ficar em orao. Logoque os irmos se inclinavam nesse exerccio, saa epunha-se a revolver na mente vadia coisas mundanas etransitrias. Admoestado vrias vezes por seu abade, foipor fim conduzido ao homem de Deus, que lhe increpoucom veemncia a insensatez; de volta, porm, ao seumosteiro, mal conseguiu observar por dois dias aadmoestao do homem de Deus; j ao terceiro, recaindono velho hbito, entrou de novo a vaguear na hora daorao. Quando isto foi contado ao servo de Deus pelopai do mosteiro, respondeu aquele: Irei eu mesmo, epessoalmente o emendarei.O homem de Deus foi, com efeito, ao dito mosteiro, e nahora marcada, quando os irmos depois da salmdia seentregavam orao, observou que o monge que nopodia ficar rezando, era arrastado por um negrinho, queo puxava pela orla do hbito. vista disso, Bentoperguntou secretamente ao abade do mosteiro,Pompeiano, e ao servo de Deus, Mauro: No vedes,ento, quem que puxa esse monge? Responderam queno. Ao que retorquiu : Oremos para que vejais tambmvs a quem que esse monge segue. Depois de dois dias

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    de orao., Mauro monge o viu, ao passo que Pompeiano,pai do mosteiro, no o conseguiu.Ora, no dia seguinte, saindo do oratrio depois do ofcio,

    o homem de Deus topou com o dito monge em p do ladode fora, e a com uma vara bateu-lhe de rijo, por causa dacegueira de seu corao. Desde esse dia o monge nuncamais se deixou induzir pelo pretinho, permanecendosossegado na prtica da orao, e o antigo inimigo nomais se atreveu a dominar-lhe o pensamento, como sefora ele mesmo que levara as pancadas.

    CAPTULO V. GUA QUE BROTOU DE UMA PEDRA NOALTO DO MONTE.

    Dos mosteiros que Bento edificara na mesma regio,trs ficavam em cima de rochedos da montanha. Era, poristo, muito penoso aos irmos descer sempre ao lago parabuscar gua, tanto mais que o declive do monteconstitua grave perigo para todos aqueles que, cheios demedo, por ele desciam.Reuniram-se, ento, os irmos desses trs mosteiros, eforam ter com o servo de Deus, Bento, dizendo: -nospenoso ir todos os dias ao lago buscar gua, e por isto necessrio mudar de lugar os nossos mosteiros. Bentoos consolou com brandura e despediu.Na mesma noite, porm, com o menino Plcido, de queacima falei, subiu ao rochedo do monte, e ali orou pormuito tempo. Acabada a orao, colocou no dito lugartrs pedras como sinal e, sem que os outros percebessemqualquer coisa, voltou ao seu mosteiro.

    No dia seguinte, tendo os irmos voltado sua presenapara tratar das dificuldades da gua, assim lhes falou:Ide, e cavai um pouco o rochedo no stio em queachardes trs pedras sobrepostas; Deus Todo-Poderoso capaz de fazer brotar gua at naquele cume demontanha, para poupar-vos o cansao de to grandecaminhada. Ora, indo eles pedra do monte indicada

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    a acompanhou. A correnteza logo o colheu e levou para omeio do lago, distncia da margem de quase umaflexada.

    O homem de Deus, embora na cela, no mesmo instanteteve notcia do acidente e chamou Mauro depressa,dizendo: Irmo Mauro, corre, pois o menino que foibuscar gua, caiu no lago e j est longe, levado pelacorrente.Coisa admirvel e no vista depois do apstolo Pedro!Tendo pedido e recebido a bno, Mauro saiu ligeiromovido pela ordem do Pai, e nisto correu sobre as guas,pensando que ia por terra, at o ponto aonde chegara omenino arrastado pela onda; agarrou-o pelos cabelos e

    voltou tambm a curso rpido.Logo que pisou terra, voltando a si, olhou para trs e viuque correra em cima das guas. E, como no podiapresumir que isto deveras tivesse acontecido, cheio deadmirao temeu o fato. Voltando ao Pai, contou-lhe osucedido. O venervel Bento comeou, ento, a atribuir ocaso no aos prprios mritos, mas obedincia deMauro. Este, porm, replicando, dizia que era devidosomente ao mandado do Pai, e que no tinha conscinciadaquele prodgio, que sem saber praticara. Nessaamistosa contenda de humildade sobreveio como rbitroo menino que fora salvo; o qual assim falou: Quando euera arrebatado das guas, via sobre minha cabea amelota do abade, e contemplava-o a tirar-me das guas.Pedro: Muito grandes so as coisas que narras, eproveitosas para a edificao de muitos. De minha parte,quanto mais bebo dos milagres desse santo varo, maissede tenho.

    CAPTULO VIII. O PO ENVENENADO QUE O CORVOLEVOU PARA LONGE.

    Gregrio: J aqueles lugares estavam em grandeextenso abrasados do amor de Jesus Cristo, Deus NossoSenhor, e muitos cristos tinham abandonado a vida

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    secular para ali domar o orgulho do corao sob o suavejugo do Redentor. Como costume dos maus invejar aosoutros o bem da virtude que eles mesmos no procuram

    praticar, eis que o padre de uma igreja prxima,chamado Florncio (av do nosso subdicono Florncio),tocado da maldade do antigo inimigo, comeou a tercime do santo homem, e ps-se a denegrir sua vida demonge e a impedir quantos podia, de irem visit-lo.Vendo, afinal, que no conseguia opor-se aos progressosde Bento, vendo que crescia a fama de sua santidade, eque muitos, pelo simples prego dessa fama, eramcontinuamente chamados a um estado de vida melhor,FIorncio, mais e mais abrasado pela inveja, ia-se

    tornando cada vez pior: os louvores merecidos pela vidade Bento, ele os apetecia; vida to louvvel, porm, no aqueria levar.A tal ponto Boi obcecado pelas trevas da inveja, quechegou a enviar de presente ao servo de Deus todo-poderoso um po envenenado. O homem de Deus orecebeu agradecido, mas no lhe ficou oculta a peste queno po se ocultava.Ora, acontecia que hora da refeio, costumava vir dafloresta prxima um corvo, que recebia po das mos deBento. Quando ento chegou como de costume, o homemde Deus lanou diante do corvo o po envenenado dopresbtero, e deu-lhe esta ordem: Em nome de NossoSenhor Jesus Cristo, toma este po e atira-o num lugartal que no possa ser achado por ningum. O corvo,ento, de bico e asas abertos, comeou a esvoaar e acrocitar em redor do po como se dissesse claramenteque queria obedecer, mas no podia. No entanto, ohomem de Deus ordenava repetidas vezes: Leva, levasem medo, e vai jog-lo onde no possa ser encontrado.Finalmente, depois de hesitar por muito tempo, o corvotomou o po no bico e, levando-o, partiu. Ao cabo de trshoras voltou sem o po , que lanara fora, e recebeu dasmos do homem de Deus a rao costumeira.Vendo o venervel Pai que o corao daquele sacerdotese inflamava de dio contra sua vida, mais se condoadele que de si mesmo.

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    Ora, o citado Florncio, j que no lograra matar o corpodo mestre, tomou a peito acabar com as almas dosdiscpulos.

    Por conseguinte, vista destes introduziu no quintal domosteiro em que estava Bento, sete moas nuas, que, demos dadas, danaram diante deles por muito tempo, afim de inflamar-lhes o esprito para as depravaes daluxria. Vendo isto da cela, e temendo a queda dosdiscpulos mais jovens, o santo homem, que bem se davaconta de ser o nico motivo da perseguio, acabou porceder inveja: nomeou os superiores, e distribuiu osirmos pelos mosteiros que edificara; e, levando consigoalguns poucos monges, mudou de domiclio.

    To logo, porm, o servo de Deus se esquivavahumildemente aos dios de Florncio, e j Deusonipotente castigava a este de terrvel forma. Pois,estando no terrao, donde com prazer contemplava apartida de Bento, o mesmo ruiu, enquanto permaneciaileso o resto da casa, e, esmagando o inimigo de Bento,acabou com ele.O discpulo do homem de Deus chamado Mauro julgouque devia imediatamente anunciar o fato ao venervelPai Bento, que apenas caminhara umas dez milhas, edisse-lhe: Volta, pois o presbtero que te perseguia,morreu. Ao ouvi-lo, prorrompeu Bento em forteslamentos, tanto pela morte do inimigo como pela alegriaque com ela teve o discpulo. Do fato seguiu-se queBento imps uma penitncia ao discpulo, pois este, aocontar o ocorrido, ousara regozijar-se pelo fim doinimigo.Pedro: So admirveis e estupendas as coisas que dizes.Com efeito, na gua que brotou da pedra, vejo Moiss(Num 20,11) ; no ferro que voltou do fundo dgua, Eliseu(4 Reis 6,7) ; no caminhar sobre as guas, Pedro (Mt14,29) ; na obedincia do corvo, Elias (3 Reis 17,6) ; noluto pela morte do inimigo, Davi (2 Reis 1,11; 18,13).Como posso avaliar, este varo foi cheio do esprito detodos os justos.Gregrio: O homem de Deus, Pedro, possuiu o espritodo Deus nico, que pela graa da Redeno encheu ocorao de todos os eleitos, e de quem diz , Joo: Era a

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    verdadeira luz que ilumina todo homem que vem a estemundo (Jo 1,9).E ainda: Da sua plenitude ns todos recebemos (ibd.

    1,16) .De fato, os santos homens de Deus puderam obter doSenhor milagres, mas no os puderam transmitir aoutrem. O Senhor, porm, deu os sinais da virtude aosseus sditos, Ele que prometeu dar o sinal de Jonas aosseus inimigos, de modo que se dignou de morrer ante ossoberbos e ressuscitar ante os humildes, para queaqueles vissem o que iam desprezar, e estescontemplassem o que com venerao deveriam amar.Deste mistrio se seguiu que, enquanto os soberbos s

    viram o aspecto ignominioso da morte, os humildesreceberam a glria de poder contra ela.Pedro: Peo-te agora que digas para que lugar se dirigiuo santo homem, e se l praticou novos milagres.Gregrio: Saindo o santo homem para outras paragens,mudou de lugar, mas no de inimigo. Pois os combatesque depois sustentou, foram tanto mais duros, quando foidesde ento o prprio mestre da maldade que teveabertamente contra si.O lugar fortificado chamado Cassino est situado noflanco de elevada montanha, a qual o abriga dentro deextensa garganta, e depois, alteando-se ainda por trsmilhas, como que prolonga at as nuvens o seu cume. Aem cima tinham os antigos um templo onde, segundo ocostume dos primitivos gentios, Apolo era venerado porinsensata multido de camponeses. Cresciam por toda aparte em torno bosques consagrados ao culto dosdemnios, onde a turba insana dos infiis ainda naqueletempo oferecia sacrifcios sacrlegos.Chegado a tal lugar, o homem de Deus despedaou odolo, derrubou a ara, incendiou os bosques eestabeleceu no prprio templo de Apoio a capela de S.Martinho, enquanto no lugar da ara do mesmo Apoioconstruiu a capela de S. Joo. Alm disto, chamava f,por contnuas pregaes, a multido que morava nasredondezas.No podendo suportar tudo isso em silncio, o antigoinimigo oferecia-se aos olhos do Pai, no maisocultamente ou em sonhos, mas em viso manifesta, e

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    queixava-se, com tais clamores, de sofrer violncia, quetambm os irmos lhe podiam escutar os gritos, sem,todavia, lhe discernir a figura. Conforme referia o

    venervel Pai aos discpulos, o antigo inimigo apareciadiante dos seus olhos corporais, hediondo e envolto emchamas; com a boca e os olhos chamejantes pareciainvestir contra ele.O que dizia, porm, todos o ouviam. Primeiro, chamavaBento pelo nome. J que este no respondia, logodisparava em doestos. Assim que, ao cham-lo Bento,Bento, vendo que no obtinha resposta alguma,imediatamente acrescentava: Maldito e no Bento, quetens tu comigo? Porque me persegues?

    Consideremos agora os novos combates do antigoinimigo contra o servo de Deus, ao qual aquele quis fazerguerra, mas acabou por proporcionar, sem querer,ocasies de vitria.

    CAPTULO IX. A ENORME PEDRA LEVANTADA PORORAO.

    Certo dia, quando os irmos trabalhavam na construodo mosteiro, achava-se uma pedra que resolveram levarpara a obra. E, j que dois ou trs no a conseguiamremover, outros se lhes juntaram. A pedra, porm,continuava imvel como se tivesse razes no cho. Acoisa era tal que dava claramente a entender que emcima da pedra estava sentado o prprio antigo inimigo, jque as mos de tantos homens no a podiam mover.Mandaram, ento, comunicar a dificuldade ao homem deDeus, pedindo-lhe que viesse e, rezando, expulsasse oinimigo, a fim de que pudessem levantar a pedra. Aquele veio sem demora, orou, deu a bno, e com tantapresteza foi a pedra erguida, que se diria que nuncativera peso algum.

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    CAPTULO X. O INCNDIO IMAGINRIO DACOZINHA.

    Ento ao homem de Deus pareceu oportuno cavarem aterra naquele mesmo stio. Ora, sucedeu que, cavandomuito fundo, os irmos encontraram um dolo de bronze.Atiraram-no logo para longe, indo o mesmo cair poracaso na cozinha; em conseqncia, viu-se de repentesair fogo do lugar, e pareceu aos olhos de todos que oprdio da cozinha era devorado pelas chamas. Como, jogando gua para apagar o fogo, fizessem grande

    vozerio, o homem de Deus, atrado pelo rudo,aproximou-se. Considerando, ento, que o fogo estavasomente nos olhos dos irmos e no nos seus, baixoulogo a cabea em orao, e, chamando a si os irmos que via iludidos pelo incndio fantstico, admoestou-os apersignarem os olhos para que percebessem estar ileso oedifcio da cozinha, e deixassem de ver as chamasimaginrias que o antigo inimigo lhes sugeria.

    CAPTULO XI. O MONGE ESMAGADO RESTABELECIDO PELA ORAO DE BENTO.

    Doutra feita, quando os irmos, obedecendo a umaexigncia da construo, levantavam um pouco maiscerta parede, o homem de Deus conservava-se na cela,aplicado orao. Apareceu-lhe ento o antigo inimigoinsultando-o, e deu-lhe a saber que ia ter com os irmosno trabalho. Informado, o homem de Deus mandou-lhesa toda pressa um mensageiro, dizendo: Irmos, agi comcautela, pois a vai agora o esprito maligno. Mal acabarade falar o que levava a mensagem, e j o mau espritoderrubara a parede em obras e sob os seus escombrosesmagara um jovem monge, filho de certo oficial dacorte. Consternados todos e cheios de aflio, no pelodano da parede mas pelo esmagamento do irmo,

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    correram a contar com profunda dor o desastre ao venervel Pai Bento. Este ordenou que lhe levassem ocorpo dilacerado do rapaz. S puderam lev-lo num

    manto, pois as pedras da parede lhe tinham triturado nos os membros mas tambm os ossos.O homem de Deus mandou no mesmo instante que opusessem em sua cela sobre a esteira onde costumavarezar. A seguir, despediu os irmos, fechou a cela edebruou-se em orao mais instante do que de costume.Coisa admirvel! Na mesma hora, o abade mandavanovamente o jovem ao trabalho, so e forte como dantes,para que terminasse a parede com os irmos aquele decuja morte se queria aproveitar o antigo inimigo para

    zombar de Bento.

    CAPTULO XII. OS MONGES QUE COMERAM FORA DOMOSTEIRO.

    Nesses entrementes, comeou o homem de Deus apossuir tambm o esprito de profecia, predizendo ofuturo e anunciando aos presentes as coisas distantes.Era costume do mosteiro, todas as vezes que os mongessaiam para qualquer misso, que se abstivessem decomer e beber fora do mosteiro.Observava-se com toda a solicitude esse uso da Regra.Certo dia, porm, saram alguns irmos a mandado, e viram-se obrigados a ficar fora at hora mais tardia.Sabendo que perto donde estavam residia uma religiosamulher, entraram em sua casa e tomaram alimento.Quando tarde voltaram ao mosteiro, pediram, como decostume, a bno ao Pai; o qual logo os interrogou:Onde comestes? - Em parte alguma, responderam. Aoque retorquiu: Porque mentis desse modo? Acaso noentrastes na casa de tal mulher? No tomastes tais taiscomidas, no bebestes tantos copos? Como o venervelPai lhes descrevesse no s a hospedagem da mulher,mas tambm o gnero dos pratos e o nmero dos coposque haviam tomado, reconheceram tudo que haviam

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    tardinha chegou ao mosteiro. Levado presena do venervel Pai Bento, pediu-lhe que o abenoasse. Masno mesmo instante o santo homem exprobrou-lhe o que

    fizera em viagem, dizendo: Como , irmo, que omaligno inimigo, que te falou pela boca do companheiro,no conseguiu induzir-te nem da primeira vez, nem dasegunda, mas da terceira convenceu-te e alcanou sobreti a vitria que planejava? Reconhecendo ento, a culpado seu fraco esprito, o visitante prosternou-se aos ps dosanto, e tanto mais chorava e se envergonhava, quanto via que, apesar da distncia, a sua falta fora cometidaante os olhos do Pai Bento.Pedro: Bem vejo que no corao desse santo homem

    habitava o esprito de Eliseu, que esteve presente aodiscpulo distante (4 Reis 5,26).

    CAPTULO XIV. BENTO DESCOBRE O DISFARCE DOREI TTILA.

    Gregrio: Convm, Pedro, que por enquanto temantenhas em silncio, para que aprendas coisas aindamaiores.No tempo dos Godos, como seu rei Ttila {/} tivesseouvido que o santo varo possua o esprito de profecia,dirigiu-se ao mosteiro e, parando a certa distncia,mandou anunciar a sua vida. Como logo lhe viesse domosteiro a resposta que fosse, Ttila, que sempre tiveraum esprito traioeiro, cuidou de explorar se realmente ohomem de Deus possua o esprito de profecia. A um dosguardas de espada, chamado Rigo, depois de dar osprprios calados e fazer vestir as vestes reais, mandouque se apresentasse ao homem de Deus, como se fosse orei em pessoa. Para seu squito destacou os trs condesmais chegados ao rei: Vulterico, Ruderico e Blidino, paraque, caminhando a seu lado, fingissem diante do homemde Deus acompanhar o prprio rei Ttila. Deu-lhetambm outros pagens e guardas, para que, vista de talcomitiva e das vestes de prpura, fosse tido pelo rei.

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    Roma no ser destruda pelos gentios, mas, devastadapor tempestades, raios, tormentos e terremotos,definhar por si mesma. Os mistrios desta profecia j

    nos so mais claros do que a luz, pois vemos nesta cidadedesmoronadas as muralhas, derribadas as casas,destrudas as igrejas pelo furaco, e contemplamos comoem fre- qentes desabamentos vm abaixa os edifcios,esfalfados de adiantada velhice. O discpulo Honorato dequem tenho o relato, no o assevera ter ouvido doprprio santo, mas afirma que pelos outros irmos lhe foicontado que Bento o disse.

    CAPTULO XVI. O CLRIGO LIBERTADO DODEMNIO.

    Pela mesma poca certo clrigo da igreja de Aquinoestava sendo atormentado pelo demnio. J Constncio,bispo dessa igreja, o fizera percorrer muitos sepulcros demrtires para alcanar a cura. Alas os santos mrtires deDeus no lhe quiseram conceder o dom da sade, paraassim demonstrar quanta graa havia em Bento.Foi, pois, o clrigo levado ao servo de Deus onipotente,Bento, o qual, orando ao Senhor Jesus Cristo, logoexpulsou do possesso o antigo inimigo. Depois de cur-lo, o santo preceituou-lhe: Vai, e de agora em diante nocomas carne, nem te atrevas a receber uma ordem sacra;no dia em que ousares profanar uma ordem sacra,recairs imediatamente sob o poder do demnio. Foi-seembora o clrigo curado e, como o castigo recentecostuma amedrontar, guardou por algum tempo tudo queo homem de Deus mandara. Quando, porm, depois demuitos anos, mortos todos os seus superiores, viu queoutros mais jovens lhe passavam frente nas ordenssacras, negligenciou, como que esquecido pelo longotempo, as palavras do homem de Deus, e apresentou-se ordenao. No mesmo instante apoderou-se dele o diabo,que j o deixara, e no cessou de o atormentar at quelhe arrancou a alma.

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    Pedro: Esse homem de Deus, a meu ver, chegou apenetrar at nos segredos da Divindade, pois viuclaramente que o clrigo estava entregue ao demnio

    para que no ousasse apresentar-se ordenao.Gregrio: Porque no havia de conhecer os segredos daDivindade aquele que da Divindade guardou osmandamentos? Pois est escrito: O que adere ao Senhor, um s esprito (1 Cor 6,17).Pedro: Se aquele que adere ao Senhor, se torna um sesprito com o Senhor, porque que o mesmo grandepregador diz : Quem conheceu a mente do Senhor, ouquem foi seu conselheiro? (Rom 11,34). Parece muitoincongruente que algum ignore o pensamento daquele

    com o qual se tornou um s.Gregrio: Os santos vares, enquanto so com Deus umas coisa, no ignoram o pensamento do Senhor. omesmo Apstolo quem diz: Que homem sabe aquilo que do homem, seno o esprito do homem que est nele?Assim tambm o que de Deus, ningum conhece senoo Esprito de Deus (1 Cor 2,11). Mas, para mostrar quesabia as coisas de Deus, Paulo acrescentou: Ns norecebemos o espirito deste mundo, mas o esprito que de Deus (ibd. 2,12). E de novo diz: O que olho no viu,nem ouvido escutou, nem subiu ao corao do homem, o que Deus preparou para os que o amam; a nos, porm,Ele o revelou pelo seu Esprito (ibd. 2,9-10).Pedro: Se, portanto, ao mesmo Apstolo foramreveladas pelo Esprito divino as coisas de Deus, como,ento, nos preveniu com as seguintes palavras sobre aquesto que eu propus: O abismo das riquezas dasabedoria e da cincia de Deus! Como soincompreensveis os seus juzos e imperscrutveis osseus caminhos! (Rom 11,33).Eis, porm, que, ao dizer estas coisas, me aparece outraquesto. Com efeito, o profeta Davi, falando ao Senhor,diz: Nos meus lbios pronunciei todos os juzos da tuaboca (Salm 118,13). E, visto que conhecer menos quepronunciar, porque declara Paulo incompreensveis os juzos de Deus, quando Davi atesta que no s osconheceu todos, mas at os pronunciou em seus lbios?Gregrio: Em poucas palavras respondi s duasperguntas, quando h pouco disse que os santos vares,

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    enquanto so com o Senhor uma s coisa, no ignoram opensamento do Senhor. Pois todos os que seguemdevotamente o Senhor, por essa devoo esto com Deus;

    mas, como ainda se acham sob o peso da carnecorruptvel, ao mesmo tempo no esto. Assim, enquanto juntos com Deus, conhecem-lhe os ocultos juzos;enquanto separados, ignoram-nos. Como, de um lado,ainda no penetram perfeitamente os mistrios de Deus,declaram incompreensveis os seus juzos; mas como, deoutro lado, esto unidos de esprito com o Senhor e nessaadeso percebem alguma coisa na medida do que lhes dado nas palavras sagradas da Escritura ou em secretasrevelaes, conhecem isso e o proferem. Ignoram,

    portanto, os juzos que Deus cala, e conhecem os que Elemanifesta. Por isto, o profeta Davi, depois de dizer: Emmeus lbios pronunciei todos os juzos, logo acrescenta:da tua boca, como se dissesse abertamente: Pudeconhecer e proferir aqueles juzos dos quais soube que tuos proferiste. Aqueles, porm, que tu mesmo nodisseste, os escondes sem dvida ao nossoconhecimento. Assim que concordam entre si as duassentenas, a do Profeta e a do Apstolo, segundo as quaisso, de um lado, incompreensveis os juzos de Deus, eso, de outro lado, proferidos por lbios humanos osjuzos anteriormente pronunciados pela boca do Senhor;pois os juzos de Deus podem ser conhecidos peloshomens quando revelados por Deus, e no o podemquando no revelados.Pedro: Vejo que, por ocasio da minha pergunta, seesclareceu o sentido da coisa. Mas, se ainda h maissobre os milagres deste homem, peo-te que o contes.

    CAPTULO XVII. BENTO PREDIZ A DESTRUIO DOPRPRIO MOSTEIRO.

    Gregrio Certo nobre chamado Teprobo foraconvertido pelos conselhos do mesmo Pai Bento, egozava, por seus merecimentos, de grande confiana e

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    familiaridade junto ao Santo. Entrando certa vez na celadeste, encontrou-o a chorar muito amargamente; alideteve-se parado por muito tempo; notando, porm, que

    as lgrimas no cessavam, e que o homem de Deus, em vez de chorar rezando, como costumava, chorava detristeza, perguntou-lhe finalmente qual a causa de togrande amargura.Todo este mosteiro que constru e tudo que prepareipara os irmos, respondeu-lhe o homem de Deus, serentregue aos gentios, a juzo de Deus todo-poderoso; acusto pude alcanar que deste lugar me fossem poupadasas vidas dos habitantes. O que Teprobo ento ouviu empalavras, ns agora estamos vendo com os olhos, pois

    sabemos que o mosteiro foi recentemente destrudopelos Lombardos: durante a noite enquanto dormiam osirmos, entraram ali, faz pouco tempo, e saquearam tudo,mas no conseguiram apoderar-se de um s homem.Assim Deus cumpriu o que prometera ao fiel servoBento: embora entregasse os bens aos gentios, protegeriaas vidas. Nisto se v que Bento teve a sorte de S. Pauloque viu seu navio alijado de tudo, mas recebeu porconsolao a vida de quantos o acompanhavam (Atos27).

    CAPTULO XVIII. O BARRIL OCULTO.

    Um dia o nosso Exilarato, que conheceste j feitomonge, foi por seu senhor encarregado de levar aohomem de Deus no mosteiro dois desses recipientes demadeira, vulgarmente conhecidos pelo nome de barris,cheios de vinho. O servo levou um e escondeu o outro nocaminho. O homem de Deus, porm, a quem no ficavamocultos os fatos distantes, recebeu o barril com palavrasde agradecimento, acrescentando ao moo que sedespedia: Cuidado, filho, no bebas do barril queescondeste, mas inclina-o com cautela e vers o que hdentro: Muito envergonhado, o jovem afastou-se dohomem de Deus; e, uma vez de volta, querendo submeter

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    pelo esprito de soberba comeou a revolver, calado, emsua mente, e a dizer de si para si, estas palavras: Quem este a quem eu assisto enquanto come, seguro o

    candeeiro e presto servio? Quem sou seu para que lhedeva servir? Voltando-se no mesmo instante, o homemde Deus entrou a repreend-lo com veemncia, dizendo:Persigna o teu corao, irmo; que dizes? Persigna o teucorao! E, tendo chamado sem mais demora os outrosirmos, ordenou-lhes que lhe tomassem o candeeiro dasmos, e a ele, que deixasse o servio e fosse na mesmahora sentar-se sossegado. Perguntaram-lhe, ento, osirmos o que tivera no corao, e ele por ordem contoude quo grande esprito de soberba se enchera, e as

    palavras que em pensamento dizia, calado, contra ohomem de Deus.Tornou-se assim bem manifesto a todos que nada podiaficar oculto ao venervel Bento, em cujos ouvidos haviamressoado at as palavras de um pensamento mudo.

    CAPTULO XXI. A FARINHA QUE APARECEU EMPOCA DE FOME.

    Em outra ocasio, a fome devastava toda a regio daCampanha, e grande escassez de gneros angustiava atodos. J faltava trigo no mosteiro de Bento: quase todosos pes haviam sido consumidos, de modo que no seachavam mais de cinco para os irmos hora de comer.Vendo-os contristados, o venervel Pai procurou corrigircom repreenso moderada a sua pusilanimidade, ereanim-los com uma promessa: Porque, dizia, seentristece o vosso esprito pela falta de po? Hoje, na verdade, h muito pouco, mas amanh t-lo-eis emabundncia. De fato, no dia seguinte, encontraramduzentos mdios de farinha em sacos diante da porta domosteiro, sem que algum at hoje saiba por quem Deustodo-poderoso os mandou levar. Vendo isto, os irmosderam graas ao Senhor, e aprenderam a no duvidar daabundncia, mesmo em tempo de carncia.

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    Pedro: Peo-te que me digas se devemos crer que oesprito de profecia estava sempre neste servo de Deus,ou se lhe enchia a mente apenas de tempos em tempos.

    Gregrio: Nem sempre, Pedro, o esprito de profeciailumina a mente dos profetas, pois, como est escrito doEsprito Santo que sopra onde quer (Jo 3,8), tambm sedeve entender que sopra quando quer. Vem da queNat, interrogado pelo rei se podia construir o templo,primeiro consentiu e depois proibiu (2 Reis 7). Pelamesma razo, Eliseu, ao ver a mulher chorando, semsaber a causa da sua dor, disse ao servo que a queriarepelir: Deixa-a, porque a sua alma est amargurada, eo Senhor mo encobriu e no manifestou (4 Reis 4,27).

    por disposio de grande bondade que Deus onipotenteassim ordena as coisas; pois, ora dando, ora retirando oesprito de profecia, de um lado eleva s alturas a mentedos profetas, e, de outro lado, a conserva na humildade,para que os mesmos, quando recebem esse esprito,saibam o que so por merc de Deus, e, quando no otm, conheam o que so por si mesmos.Pedro: Eis que forte argumento clama que as coisas socomo dizes. Peo-te, porm, que continues a expor tudoque te acode memria sobre o venervel Pai Bento.

    CAPTULO XXII. O PIANO DO MOSTEIRO DETERRACINA TRAADO POR BENTO EM UMA VISO.

    Gregrio: Outra vez, um homem religioso pediu a Bentoque mandasse alguns discpulos a uma propriedade quetinha perto de Terracina, para construir um mosteiro.Anuindo aos rogos, Bento escolheu alguns irmos,instituiu-lhes o abade e o que devia ser o seu prior. despedida, prometeu-lhes o seguinte: Ide, em tal dia ireitambm eu, e mostrar-vos-ei em que lugar havereis deedificar o oratrio, o refeitrio dos irmos, os aposentosdos hspedes e tudo que for preciso. Recebida a bno,puseram-se logo a caminho; nos dias seguintes, esperaansiosa do dia marcado, prepararam tudo que parecia

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    necessrio para receber os que podiam chegar com ogrande Pai.Eis, porm, que na noite em que comeava a raiar o dia

    prometido, o homem de Deus apareceu em sonhos aomonge que ele constitura abade, e ao prior deste, e lhesfoi designando minuciosamente cada um dos lugaresonde deviam edificar alguma coisa. Quando despertaramdo sono, contaram um ao outro o que tinham visto; mas,por no darem pleno crdito viso, aguardaram ohomem de Deus na prometida visita. Este, porm, nochegou no dia determinado, pelo que foram ter com ele,muito magoados, e lhe disseram: Esperamos, Pai, quefosses como prometeras, e nos mostrasses onde

    devamos edificar; mas no foste. Ao que lhes disse:Porque, irmos, porque falais assim? Acaso no fui,conforme prometi? E quando lhe retorquiram: Quandofoste?, respondeu: No vos apareci a um e outroquando dormeis, e no vos mostrei ento cada local domosteiro? Ide, e, como ouvistes na viso, construi todasas dependncias do mosteiro. Ao ouvirem estaspalavras, ficaram profundamente admirados, e voltaramao referido terreno, onde construram todos oscompartimentos do mosteiro como lhes fora revelado.Pedro: Gostaria de saber de que modo pode Bentoausentar-se para longe e dar aos irmos que dormiam,instrues que eles em sonho ouviram ecompreenderam.Gregrio: Pedro, porque que perscrutas o modo comose deram os fatos, e te pes a duvidar dos mesmos? coisa evidente que o esprito de natureza mais gil queo corpo. Ora, sabemos com certeza, pelo testemunho daEscritura, que o profeta, levantado aos ares na Judia, foide repente baixado na Caldia com o seu almoo, queserviu a alimentar outro profeta, e no mesmo instante voltou Judia (Dan 14). Se, pois, Habacuc pde nummomento ir corporalmente to longe e entregar umalmoo, que de admirar se o Pai Bento obteve afastar-se em esprito e anunciar aos irmos adormecidos onecessrio, de modo que, assim como o profeta selocomoveu corporalmente para alimentar o corpo, assimBento se transportou em esprito para instituir a vidaespiritual?

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    Pedro: A fora da tua palavra, confesso, dissipou emmim as dvidas do esprito. Agora queria saber queefeito tinham as palavras desse homem no trato da vida

    quotidiana.

    CAPTULO XXIII. AS MONJAS MORTAS RESTITUDAS COMUNHO DA IGREJA.

    Gregrio: Dificilmente, Pedro, era a sua palavra, mesmo

    no trato quotidiano, desprovida de eficcia; pois, tendoalado aos cus o corao, no lhe podiam as palavrasbaixar vazias dos lbios. Se, pois, alguma vez dizia algo,no j decidindo, mas somente ameaando, sua palavratinha tanta eficcia como se no a tivesse dito apenasduvidosa e condicionalmente, mas j em sentenairrevogvel.Assim que, no longe do mosteiro de Bento, viviamnum stio prprio duas monjas, senhoras de nobrelinhagem a quem certo homem religioso prestava servionas necessidades da vida exterior. Em alguns, porm, anobreza da raa produz a vileza do esprito, de modo queessas pessoas, recordando que foram um pouco mais doque outras, so menos dispostas a desprezar-se nestemundo; assim eram as duas monjas, as quais no tinhamreprimido perfeitamente a lngua sob o freio do hbito, efreqentemente provocavam ira, com palavrasimprudentes, o homem que lhes prestava servio nasindigncias exteriores. Este, depois de tolerar por muitotempo tais coisas, dirigiu-se finalmente ao homem deDeus e contou-lhe quantas afrontas sofria. Bento, tendoouvido como procediam as monjas, logo mandou dizer-lhes: Corrigi vossas lnguas porque, seno vosemendardes, eu vos excomungarei. Por conseguinte,no proferiu a sentena de excomunho, mas apenasameaou.As monjas, porm, sem nada mudar dos antigoscostumes, morreram dentro de poucos dias e foramsepultadas na igreja. Ora, quando ali se celebrava a

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    solenidade da Missa, e o dicono clamava como decostume: Se h algum excomungado, retire-se do lugar,a ama que as criara e costumava oferecer ao Senhor a

    oblao por elas, via-as erguerem-se da sepultura esarem da igreja. Havendo observado muitas vezes que voz do dicono elas saiam e no podiam ficar no templo,lembrou-se do que o homem de Deus lhes mandara dizerquando ainda viviam, isto , que as privaria dacomunho eclesistica, se no emendassem os costumese palavras.Com grande dor, ento, foi referido o caso ao servo deDeus, que na mesma hora deu com sua prpria mo umaoblao, dizendo: Ide, e fazei que esta oferenda seja

    apresentada ao Senhor em favor delas, e a seguir j noestaro excomungadas. De fato, a oferta foi imolada emsufrgio das duas defuntas, e, quando o dicono clamou,segundo o costume, que sassem os excomungados, noforam mais vistas sair da igreja.Com isto ficou indubitavelmente claro que as ditasmonjas, no mais saindo com aqueles que estavamprivados da comunho eclesistica, a tinham recuperadodo Senhor por intermdio do seu servo.Pedro: muito para admirar que esse homem, emboravenervel e muito santo, mas ainda vivendo nesta carnecorruptvel, tenha podido libertar almas j colocadasdiante do invisvel juzo.Gregrio: Acaso, Pedro, no estava ainda nesta carneaquele que ouviu: Tudo que ligares sobre a terra, serligado no cu, e tudo que desligares sobre a terra, serdesligado no cu (Mt 16,19) ? O poder dos Apstolos deligar e desligar, obtm-no hoje aqueles que, cheios de fe santos costumes, ocupam um posto de governosagrado. Contudo, para que o homem, feito do p daterra, goze de tamanho poder, veio do cu terra oCriador do cu e da terra; e, para que a carne julguetambm os espritos, Deus feito carne pelos homens deu-lhe o respectivo poder em sua liberalidade, pois a nossafraqueza se elevou acima de si prpria pelo fato mesmode se ter enfraquecido sob si mesma a fora de Deus.Pedro: Em verdade, com o poder dos milagres concordaa eficcia das palavras do santo.

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    CAPTULO XXIV. O MONGE SEPULTADO QUE ATERRA REJEITOU.

    Gregrio: Certa vez um jovem monge, que amava os paismais do que devia, tendo sado do mosteiro sem bno,para ir casa dos pais, morreu no mesmo dia em que achegou. Sepultado, seu corpo, no dia seguinte apareceufora da sepultura. Trataram de enterr-lo novamente,mas no dia seguinte encontraram o corpo mais uma vez

    de fora, insepulto como na vspera. Correndo, ento, semdemora, aos ps do Pai Bento, pediram com muitaslgrimas que se dignasse de conceder ao filho a suagraa. O homem de Deus deu-lhes imediatamente com aprpria mo a comunho do corpo do Senhor, dizendo:Ide, com grande reverncia pondo-lhe sobre o peito estecorpo do Senhor, e colocai-o assim na sepultura. Feitoisto, a terra guardou o corpo e no mais o rejeitou.Avalias, Pedro, quanto merecimento tinha esse homem junto ao Senhor Jesus Cristo, para que a prpria terralanasse fora os despojos daquele que no possua ofavor de Bento.Pedro: Avalio bem, e estou muito admirado.

    CAPTULO XXV. O MONGE QUE ENCONTROU UMDRAGO NO CAMINHO.

    Gregrio: Um dos monges de Bento se rendera inconstncia, e no queria mais ficar no mosteiro. Apesarde assiduamente repreendido e admoestado pelo homemde Deus, de modo nenhum consentia em permanecer nacomunidade, e ainda insistia com importunas splicaspara que fosse despedido. Certo dia, ento, o venervelPai, j entediado pela importunao, ordenou-lhe iradoque se fosse embora. Logo que saiu, porm, o monge

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    encontrou na estrada um drago sua espreita, de goelaaberta. Como o monstro o quisesse devorar, comeou agritar, todo trmulo e alvoroado: Socorro! Socorro!

    Pois este drago me quer devorar. Acorreram os irmos,os quais no viram drago algum, mas reconduziram aomosteiro o monge todo trmulo e agitado. Este logoprometeu nunca mais abandonar o mosteiro, e desdeessa hora permaneceu fiel promessa, porquanto pelasoraes do santo varo pudera ver diante de si o dragoque ele antes seguia sem ver.

    CAPTULO XXVI. O MOO CURADO DA LEPRA.

    Tambm no quero passar em silncio o que ouvi doilustre varo Antnio. Este contava que um servo de seupai fora atacado de lepra, a ponto de j se lhe entumecera pele, carem os plos, e no poder ele esconder o puscada vez mais abundante. Mandado ao homem de Deuspelo pai de Antnio, o enfermo foi com prestezarestitudo sade anterior.

    CAPTULO XXVII. O DINHEIRO ENTREGUE PORMILAGRE AO DEVEDOR.

    Tampouco calarei aquilo que o discpulo de Bentochamado Peregrino costumava narrar.Uma vez, certo homem fiel, impelido pelo aperto de umadvida, acreditou ser seu nico remdio ir ter com ohomem de Deus e expor-lhe a urgente necessidade. Foi,pois, ao mosteiro, onde encontrou o servo de Deusonipotente, e contou-lhe a grave aflio que sofria porparte de um credor a quem devia doze soldos.Respondeu-lhe o venervel Pai que no possua os doze

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    soldos, mas, para no deixar de consolar com umabranda palavra a pobreza do homem, acrescentou: Vai, e volta daqui a dois dias, pois hoje no tenho o que te

    deveria dar. Nesses dois dias, conforme o seu costume,ficou entregue orao. Quando no terceiro dia voltou odevedor aflito, apareceram de repente treze soldos sobreuma arca do mosteiro, que estava cheia de trigo. Ohomem de Deus mandou apanh-los e entreg-los aopedinte angustiado, dizendo-lhe que pagasse doze eguardasse um para os prprios gastos.Eis que agora volto a contar o que ouvi dos discpulosreferidos no incio deste livro.Certo homem vivia sofrendo da gravssima inveja de um

    inimigo, cujo dio o impeliu mesmo a pr venenoocultamente na bebida daquele. No pde o veneno tirara vida, mas a pele do homem perseguido mudou de cor,espalhando-se pelo corpo umas manchas que pareciamde lepra. O doente, porm, levado presena do homemde Deus, depressa recuperou a sade, pois, logo que esteo tocou, lhe afugentou as manchas da pele.

    CAPTULO XXVIII. A GARRAFA QUE NO SEQUEBROU.

    Na ocasio em que a falta de alimentos afligia togravemente a Campanha, o homem de Deus distriburatudo que havia no mosteiro, a diversos indigentes, aponto de quase nada mais restar na despensa, fora umpouco de azeite numa garrafa de vidro. Apareceu, ento,certo subdicono de nome Agapito, pedindo com muitainstncia que lhe dessem um pouco de azeite. O homemde Deus, que tinha resolvido dar tudo na terra para quetudo lhe fosse guardado no cu, mandou queentregassem ao subdicono o pouco de azeite querestava. Todavia, o monge encarregado da despensa,apesar de ter ouvido a ordem, retardou-lhe a execuo.Um pouco mais tarde, perguntando-lhe Bento se foradado o que mandara, respondeu que no, porque, se o

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    fizesse, nada sobraria para os irmos. Indignado comisto, Bento ordenou a outros que atirassem pela janela agarrafa com o resto de azeite, para que nada ficasse no

    mosteiro por desobedincia. Assim foi feito. Ora, sob a janela abria-se um grande precipcio eriado de pontasde rochedo. A garrafa arremessada foi dar naturalmentenas pedras, mas ficou inclume como se no tivesse sidojogada, de modo que nem ela se quebrou nem o leo sederramou. vista disto, o homem de Deus mandou que abuscassem e entregassem, ntegra como estava, aosubdicono. Reunidos depois os irmos, repreendeu empresena de todos o monge desobediente pela sua faltade f e soberba.

    CAPTULO XXIX. O TONEL QUE APARECEU CHEIO DEAZEITE.

    Depois desta repreenso, Bento entregou-se oraocom os irmos. No recinto em que rezavam, havia umtonel de leo, vazio e tapado. Ora, enquanto o santohomem persistia em orao, a tampa do tonel comeou aerguer-se com o azeite que dentro crescia. Deslocada esuspensa a tampa, o azeite que subia, passou as bordasdo tonel e acabou alagando o pavimento do lugar em quese achava. Ao notar isto, o servo de Deus Bento logoterminou a orao, e o azeite cessou de escorrer pelocho. Ento, mais uma vez admoestou o irmopusilnime e desobediente a ter confiana e humildade.O monge, argido, corou de vergonha, porquanto ovenervel Pai acabava de comprovar com um milagre omesmo poder de Deus onipotente que em suaadmoestao lhe recordara. A partir de ento, no haviamais quem pudesse duvidar de suas promessas, j queno mesmo instante tinha restitudo, por uma garrafaquase vazia, um tonel cheio de azeite.

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    CAPTULO XXX. O MONGE LIBERTADO DO DEMNIO.

    Um dia, quando se encaminhava para a capela de S. Joo,sita no prprio cume da montanha, encontrou-se Bentocom o antigo inimigo que, sob a figura de um veterinrio,ia levando um vaso de chifre e trs cordas. Tendo-lheBento perguntado: Aonde vais?, respondeu: Eis que vou ter com os irmos para dar-lhes uma bebida. Ovenervel Pai, ento, continuou seu caminho para rezare, logo que terminou a orao, voltou s pressas. Nesteentrementes o esprito maligno, encontrando a tirar gua

    um velho monge, neste entrou sem demora, e,prostrando-o por terra, o atormentou com a maior raiva.Quando o homem de Deus, de volta da orao, viu omonge assim cruelmente maltratado, deu-lhe umabofetada apenas e com isco logo expulsou o esprito mau,que no ousou voltar a agredir o velho.Pedro: Gostaria de saber se, to grandes milagres, Bentoos obtinha sempre em virtude da orao, ou se, s vezes,tambm os realizava por um mero ato de vontade.Gregrio: Os que de mente devota esto unidos a Deus,costumam fazer milagres, quando a necessidade o exige,de um e outro modo, isto , ora pela prece, ora peloprprio poder. Pais que S. Joo diz: A todos os que oreceberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos deDeus (Jo 1,12), que de admirar se os que so filhos deDeus por poder, operam tambm prodgios por poder?Que de duas maneiras faziam milagres, atesta-o Pedro, oqual, pela orao, ressuscitou Tabita defunta (Atos 9), aopasso que, com uma repreenso, entregou morteAnanias e Safira, que mentiam (Atos 2); no se l quetenha orado para que estes morressem, mas somente querepreendeu o crime que haviam perpetrado. certo,portanto, que os filhos de Deus realizam prodgios orapor poder, ora pela orao, visto que a estes Pedro,increpando, tirou a vida, enquanto quela, orando, arestituiu.Narrarei agora dois feitos do fiel servo de Deus, Bento,nos quais se v claramente que um, ele o pde operarpelo poder recebido de Deus, e o outro, pela orao.

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    CAPTULO XXXI. O CAMPONS SOLTO PELO SIMPLESOLHAR DE BENTO.

    No tempo de Ttila rei dos Godos, um destes, chamadoZala, partidrio da heresia ariana, a tal ponto decrueldade ardia contra os que eram fiis Igreja catlica,que no houve um s clrigo ou monge que, tendo-oencontrado, escapasse vivo das suas mos. Inflamado,

    certo dia, pela avareza e a avidez da rapina, ps-se aafligir com cruis tormentos um campons; ora, quandolhe rasgava as carnes em diversos suplcios, este, vencidopelos sofrimentos, declarou-lhe que havia depositadotodos os bens em mos do servo de Deus. Bento: o pobrecampons esperava que, acreditando o carrasco nas suaspalavras, suspendesse a crueldade, e a vtima pudesseganhar no intervalo algumas horas de vida.Zala, com efeito, cessou de maltratar o campons, mas,atando-lhe os braos com fortes correias, obrigou-o acaminhar diante do cavalo para mostrar-lhe quem eraesse Bento que recebera os seus haveres. Indo frente,de braos amarrados, o campons conduziu Zala aomosteiro do santo varo, que encontraram sozinho a ler,sentado porta do mosteiro. Disse, ento, o campons aZala, que cheio de raiva o seguia: Eis a o Pai Bento, dequem te falei.Na excitao em que ia, com toda a fria do seu perversocorao, Zala ps os olhos no homem de Deus e,pensando poder agir com o terror costumeiro, comeou agritar-lhe: Levanta-te, levanta-te, e devolve os bens querecebeste deste campons! A sua voz, o homem de Deusergueu os olhos da leitura e, tendo encarado Zala, olhouem seguida para o campons, que continuava amarrado.Apenas, porm, posou os olhos nos braos deste, ascorreias que os ligavam, comearam a desamarrar-se demodo maravilhoso e com tanta rapidez que teria sidoimpossvel ao mais presto dos homens desata-las todepressa. Quando aquele que viera manietado, de

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    repente apareceu solto, Zala, tremendo diante de tantopoder, caiu no cho, e, inclinando aos ps de Bento acabea cruel, recomendou-se s suas oraes. Nem por

    isto o santo homem se levantou da leitura, mas, tendochamado os irmos, mandou que o introduzissem nomosteiro para dar-lhe um pouco de po bento. QuandoZala voltou presena do santo, este admoestou-o asuspender tanta crueldade e insensatez; depois do que, otirano se foi, comovido, e nada mais ousou reclamar docampons que o homem de Deus, no pelo tato, masapenas pelo olhar, soltara.Eis a, Pedro, o que eu disse: os que servemfamiliarmente a Deus todo-poderoso, podem de vez em

    quando operar milagres tambm por prprio poder. Esseque, sentado, reprimiu a ferocidade do terrvel godo ecom o simples olhar desatou correias e ns que prendiamo inocente, est a indicar, pela rapidez mesma domilagre, que recebera o poder de fazer o que fez.Agora ainda descreverei quo grande milagre Bento,orando, pde obter.

    CAPTULO XXXII. O MORTO RESSUSCITADO.

    Certo dia havia Bento sado com os irmos para ostrabalhos do campo, quando um campons, trazendo nosbraos o corpo de um filho morto, veio ao mosteiro, todoaflito pela perda e perguntou pelo Pai Bento. Quando lhedisseram que o Pai estava no campo com os irmos, semdelongas deps o corpo em frente porta do mosteiro e,transtornado pela dor, lanou-se a correr em busca dovenervel Pai.Naquela hora o homem de Deus j voltava do campo comos irmos. Apenas o campons o viu, comeou a gritar:Devolve meu filho, devolve meu filho! O homem deDeus parou ao ouvir estes clamores, e disse: Acaso tetirei o filho? - Ele morreu, vem, ressuscita-o ,respondeu o campons. Ouvindo isto, o servo de Deusficou muito triste e disse: Retirai-vos, irmos, retirai-

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    vos; tal poder no compete a ns, mas aos santosApstolos. Porque queres impor-nos um peso que nopodemos suportar? O infeliz, porm, impelido por uma

    dor profunda, persistia no pedido, jurando que no seretiraria sem que Bento lhe ressuscitasse o filho. Ondeest?, interrogou ento o servo de Deus. Ao que aquelerespondeu: O corpo jaz porta do mosteiro. Quando alichegou o homem de Deus com os irmos, dobrou os joelhos e debruou-se sobre o corpinho da criana.Erguendo-se depois, estendeu para o cu as mos, edisse: Senhor, no consideres os meus pecados, mas a fdeste homem que roga lhe seja ressuscitado o filho; erestitui a este corpinho a alma que tiraste. Mal

    terminara as palavras da orao, quando o corpinhointeiro da criana estremeceu por a voltar a alma, etodos os presentes viram que no maravilhoso abalo ocorpinho palpitava a tremer. Bento, ento, agarrou-lhe asmos, e devolveu-o vivo e inclume ao pai. evidente, Pedro, que no estava em seu poder talmilagre, pois que, para conseguir faz-lo, teve deprostrar-se e orar.Pedro: certo que as coisas so como dizes, pois provascom fatos as sentenas que propes. Peo-te agora queds a conhecer se os santos homens podem tudo quequerem, e obtm tudo que desejam.

    CAPTULO XXXIII. O MILAGRE DE ESCOLSTICA,IRM DE BENTO.

    Gregrio: Pedro, quem ser nesta vida mais sublime doque Paulo, o qual trs vezes rogou ao Senhor que olivrasse do aguilho da carne, e, contudo, no pde obtero que queria (2 Cor 12,7-9) ; devo, por isto, contar-te quehouve coisa que o venervel Pai Bento no pdealcanar.A irm de Bento, de nome Escolstica, consagrada desdea infncia a Deus onipotente, tinha o costume de visitar oirmo uma vez por ano; o homem de Deus descia a

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    receb-la numa propriedade do mosteiro, no longe daportaria. Foi ela, pois, um dia, como de costume, e seu venervel irmo, acompanhado de alguns discpulos,

    desceu a v-Ia. Passaram o dia todo em louvores de Deuse em santos colquios, e, ao carem as trevas da noite,juntos tomaram alimento. Quando ainda estavam mesa,enquanto o tempo entre santas conversaes avanava auma hora tardia, a monja irm de Bento rogou-lhe oseguinte: Peo-te, irmo, que no me deixes esta noite,para podermos falar at a manh das alegrias da vidaceleste. Ao que ele respondeu: Que que dizes, irm?Ficar fora do mosteiro, de modo nenhum o posso! Atesse momento a serenidade do cu era tal que nenhuma

    nuvem aparecia nos ares; quando, porm, a monja ouviua recusa do irmo, cruzou as mos sobre a mesa e nelasdeclinou a cabea para rogar a Deus todo-poderoso. Ora,logo que levantou da mesa a cabea, to violentosrelmpagos e troves e to copiosa chuva explodira quenem o venervel Bento nem os irmos que com ele seachavam, puderam mover o p do limiar do recinto emque estavam. A monja, com efeito, ao reclinar a cabeanas mos, derramara sobre a mesa rios de lgrimas,mediante as quais conseguiu transformar em tempestadea serenidade do tempo. E no tardou o aguaceiro aseguir-se orao; mas, ao contrrio, to perfeita foi asimultaneidade da prece e da tempestade, queEscolstica ergueu a cabea j ao irromper da trovoada,de modo que num s instante se deram o levantar dacabea e o desabar da chuva. Vendo, ento o homem deDeus que no podia voltar ao mosteiro no meio dos raiose troves e da grande enxurrada, comeou a lastimar-seentristecido, dizendo: Que Deus todo-poderoso teperdoe, irm! Que fizeste? E ela: Eis que te roguei, eno me quiseste ouvir; roguei, ento, ao meu Senhor eEle ouviu-me. Agora, pois, se podes, sai, deixa-me e voltapara o mosteiro. De fato, no podendo sair, aquele queespontaneamente no quis ficar, teve de permanecercontra a vontade. Assim aconteceu que passaram toda anoite em viglia, e se saciaram mutuamente em santasconversas sobre a vida espiritual.Por isto disse eu que Bento quis alguma coisa, mas no apde; pois, se consideramos a mente do venervel

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    homem, fora de dvida que ele queria continuasse obom tempo que fazia quando desceu, mas, contra seudesejo, o que encontrou foi esse milagre de Deus

    onipotente consoante a um corao de mulher. E no de admirar que a mulher, cujo desejo era ver o irmo pormais tempo, mais tenha podido do que este, pois, j quesegundo a palavra de Joo Deus caridade (1 Jo 4,16), justo dizer-se que mais pde aquela que mais amou.Pedro: Confesso que me agrada muito o que dizes.

    CAPTULO XXXIV. BENTO V A ALMA DA IRM SAIRDO CORPO.

    Gregrio: No dia seguinte a venervel mulher voltou aoprprio mosteiro, e o homem de Deus ao seu. Eis, porm,que trs dias depois, Bento na cela, elevando os olhos salturas, viu a alma da irm, desprendida do corpo, apenetrar sob forma de pomba nas profundezas do cu.Enchendo-se, ento, de alegria pela grande glria dairm, com hinos e louvores rendeu graas a Deus todo-poderoso, e anunciou aos irmos a morte da mesma.Mandou-os tambm sem demora a buscar para omosteiro o corpo, a fim de que o enterrassem nasepultura que tinha preparado para si. Assim aconteceuque daqueles cujo esprito sempre fora um s em Deus,tambm os corpos no foram separados pela sepultura.

    CAPTULO XXXV. O MUNDO DIANTE DOS OLHOS DEBENTO E A ALMA DE GERMANO.

    De outra vez, o dicono Servando, abade do mosteirooutrora construdo em terras da Campanha pelo patrcioLibrio, veio de visita a Bento, como costumava. Comoera tambm ele homem cheio da erudio da graa

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    celeste, freqentava o mosteiro de Bento, para que secomunicassem mutuamente doces palavras de vida, e aomenos em suspiros provassem o suave alimento da ptria

    celeste, j que ainda no o podiam em gozo perfeito.Chegada a hora do descanso noturno, o venervel Bentoacomodou-se no alto da torre, enquanto o diconoServando ficou em baixo; rima escada de acesso faziacomunicar os dois aposentos. Em frente dessa mesmatorre existia Lima grande morada, onde descansavam osdiscpulos de um e outro.Enquanto os monges dormiam, o homem de Deus, Bento,antecipava em viglia a hora da orao noturna. Ora, eisque, estando janela em prece a Deus onipotente, de

    sbito, na calada da noite, olhou para cima e viu uma luzque se difundia do alto e dissipava as trevas da noite,brilhando com tal esplendor que, apesar de raiar nastrevas, superava o dia em claridade. Nesta viso, seguiu-se uma coisa admirvel, pois, como depois ele mesmocontou, tambm o mundo inteiro lhe apareceu ante osolhos, como que concentrado num s raio de sol. Aindaenquanto o venervel Pai fixava atentamente a vista noesplendor da cintilante luz, viu a alma de Germano,bispo de Cpua, levada ao cu pelos anjos numa esferade foto.Querendo, ento, que algum lhe servisse de testemunhade to grande viso, chamou repetidamente, duas ou trs vezes, em alta voz, o dicono Servando pelo prprionome Este, perturbado pelo inslito clamor de to grandehomem, subiu, olhou para o alto e ainda viu um rastroexguo de luz.A Servando, estupefato por to grande maravilha, ohomem de Deus narrou por ordem tudo que acontecera,e imediatamente encarregou o virtuoso Teprobo, deCassino, que na mesma noite mandasse algum a Cpuapara saber o que havia com o bispo Germano, e ocomunicasse a Bento.De fato, aconteceu que o enviado encontrou j defunto oreverendssimo bispo Germano; o mesmo, indagandominuciosamente, apurou que ele morrera no mesmoinstante em que o homem de Deus tomou conhecimentode sua ascenso.

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    Pedro: Coisa, de fato, muito admirvel e estupenda! Oque disseste, porm, - a saber, que o mundo inteiro,como que concentrado num nico raio de sol, foi trazido

    ante os olhos de Bento, j que nunca o experimentei,tambm no posso conjeturar de que modo possaacontecer que o universo todo seja visto por um shomem.Gregrio: Tem por certo, Pedro, o que vou dizer: para aalma que v o Criador, toda criatura pequena. Porpouco que ela chegue a ver a luz do Criador, exguo selhe torna tudo que criado, porque, luz dessa visoprofunda, o ntimo da mente se dilata e de tal modo seexpande em Deus, que fica acima do mundo. A prpria

    alma do vidente coloca-se, ento, acima de si mesma. Aoser raptada acima de si na luz de Deus, amplia-seinteriormente, e, quando, nesse estado de exaltao, olhaabaixo de si, compreende quo pequeno tudo aquiloque, no seu estado de humilhao, no podiacompreender. O homem de Deus, que, contemplando oglobo de fogo, tambm via os anjos de volta ao cu,certamente no podia ver essas coisas seno na luz deDeus. Que , pois, de admirar, se viu o mundoconcentrado diante de si, aquele que, elevado na luz doesprito, esteve fora do mundo? Se, porm, se diz que omundo todo foi concentrado diante dos seus olhos, no que o cu e a terra tenham sido contrados, mas oesprito do vidente que foi dilatado, e, raptado emDeus, pde sem dificuldade ver tudo que est abaixo deDeus. Portanto, enquanto aquela luz lhe resplandecia aosolhos de fora, houve uma luz interior na mente, quearroubando ao alto o esprito do vidente, lhe mostrouquo estreito tudo que se acha aqui em baixo.Pedro: Vejo que me foi til no ter entendido o quedisseras, j que, por minha rudeza, tanto se desenvolveua explicao. Mas agora que expuseste essas coisas comclareza, peo que voltes ao curso da narrao.

    CAPTULO XXXVI. BENTO ESCREVEU A REGRA DOSMONGES.

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    Gregrio: Apraz-me, Pedro, narrar ainda muitas coisas

    deste venervel Pai; algumas, porm, de propsito asomito, pois devo apressar-me a relatar os efeitos deoutros. Todavia, uma coisa no quero que ignores, isto ,que o homem de Deus, entre tantas coisas maravilhosascom que luziu no mundo, tambm no pouco brilhoupelo verbo da doutrina. Escreveu, com efeito, uma Regrade Monges, notvel pelo esprito de discernimento eclara pela linguagem. Se, pois, algum quiser conhecermais exatamente os costumes e a vida do santo Pai,poder encontrar nos preceitos dessa Regra todas as

    aes que ele praticou como Mestre, pois o santo varode modo nenhum pde ensinar outra coisa que o que elemesmo viveu.

    CAPTULO XXXVII. BENTO ANUNCIA AOS IRMOS ASUA MORTE.

    No mesmo ano em que devia partir desta vida, anunciouo dia de sua santssima morte a alguns discpulos quecom ele viviam e a outros que moravam longe. Aospresentes acrescentou que guardassem em silncio o queouviram, e aos ausentes ainda deu a saber o sinal que seproduziria para eles quando a alma se lhe apartasse docorpo.Seis dias antes da sua morte, mandou abrir a sepultura.Pouco depois atacado de febres, comeou a seratormentado pela violenta temperatura. Como dia a diase agravasse o mal, no sexto dia fez-se levar ao oratriopelos discpulos; a muniu-se para a partida, com acomunho do corpo e do sangue do Senhor; a seguir,apoiando nos braos dos discpulos os membrosenfraquecidos, ficou de p com as mos elevadas para ocu, e entre palavras de orao exalou o ltimo suspiro.No mesmo dia, foi comunicada a dois irmos, dos quaisum estava no mosteiro e o outro distante, igual viso:

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    ambos viram um caminho forrado de tapearias ecoruscante inumerveis luzes, estendido desde a cela deBento at o cu, em direo do oriente; no alto, estava

    um homem de venerando e resplandecente aspecto, quelhes perguntou de quem era a estrada que viam; elesconfessaram que ignoravam; ento lhes disse: Este ocaminho pelo qual Bento, o amado do Senhor, subiu aocu. Assim aconteceu que, como os discpulos presentesviram a morte do santo varo, tambm os ausentes delativeram conhecimento, pelo sinal que lhes foraprenunciado.Foi sepultado na capela de S. Joo Batista, que eleprprio construra depois de ter posto abaixo o altar de

    Apolo. E na mesma gruta de Subloca em que primeirohabitou, ainda hoje, quando a f dos suplicantes o exige,ele refulge em milagres.

    CAPTULO XXXVIII. A MULHER LOUCA CURADA NAGRUTA DO SANTO.

    Deu-se recentemente o fato que vou narrar.Certa mulher mentecapta, tendo perdido completamenteo juzo, vagava dia e noite por montes e vales, florestas eplancies, s parando para repousar onde o cansao a talobrigava.Um dia, depois de muito errar pelas solides, deu com agruta do santo varo Bento, onde entrou embora no aconhecesse, e a se deixou ficar. Ora, na manh seguinte,dali saiu to s de juzo como se nunca o tivesse perdido,e conservou pelo resto da vida a sade que recebera.Pedro: Que dizer do que freqenternenteexperimentamos no patrocnio dos mrtires, que noprestaras tantos benefcios por meio de seus corposquantos por outras relquias, fazendo mesmo maioresprodgios nos lugares onde no esto sepultados?Gregrio: Pedro, est fora de dvida que, onde jazem osseus corpos, os santos mrtires podem fazer muitosmilagres, como, alis, os fazem e manifestam inmeras

  • 8/14/2019 Gregrio - Vida de So bento

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    vezes aos que pedem com pura inteno. Todavia, j queos fracos podem duvidar de que eles estejam presentespara atender nos lugares onde no se acham os seus

    corpos, preciso que realizem maiores prodgios noslugares em que a alma dbil pode duvidar da suapresena. Para aqueles, porm, cuja mente est fixa emDeus, tanto maior o mrito da f quanto mais convictosesto de que os mrtires, apesar de no jazerem ali nosseus corpos, nem por isto os deixam de escutar. Por estemotivo a prpria Verdade, a fim de aumentar a f dosdiscpulos, disse: Se eu no for embora, o Consoladorno vir a vs (Jo 16,7). Ora, como certo que o EspritoConsolador sempre procede do Pai e do Filho, porque

    que o Filho diz que se deve retirar para que venhaaquele que do Filho nunca se separa? O motivo que osdiscpulos, vendo o Senhor na carne, tinham sede de Over para sempre com os olhos do corpo; por isto o Senhorlhes disse com razo: Se eu no me for, o Parclito novir; como se dissesse claramente: Se no retiro o corpo,no mostro o que o amor do Esprito, e se nodeixardes de me ver corporalmente, jamais aprendereis aamar-me espiritualmente.Pedro: Satisfaz-me o que dizes.Gregrio: Temos agora de interromper por um pouco aconversa, para que, j que pretendemos narrar milagresde outros, no entretempo reparemos as foras pelosilncio.