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Universidade de Brasília Instituto de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Área de Concentração: História Cultural Linha de Pesquisa: Identidades, Tradições, Processos Tese de Doutorado Orientadora: Eleonora Zicari Costa de Brito Milton Nascimento: Num canto do mundo, o conto do Brasil Mateus de Andrade Pacheco Brasília, Dezembro de 2014.

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Universidade de Brasília Instituto de Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em História Área de Concentração: História Cultural

Linha de Pesquisa: Identidades, Tradições, Processos Tese de Doutorado

Orientadora: Eleonora Zicari Costa de Brito

Milton Nascimento:

Num canto do mundo, o conto do Brasil

Mateus de Andrade Pacheco

Brasília, Dezembro de 2014.

Universidade de Brasília

Milton Nascimento:

Num canto do mundo, o conto do Brasil

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, na área de Concentração de História Cultural, como requisito à obtenção do título de Doutor em História.

Mateus de Andrade Pacheco

Brasília, Dezembro de 2014.

Banca Examinadora Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito (UnB – Orientadora) Profa. Dra. Maria Thereza Ferraz Negrão de Mello (UnB) Profa. Dra. Maria Amélia Garcia de Alencar (UFG) Prof. Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco (UFPI) Prof. Dr. Ivan Vilela Pinto (USP) Profa. Dra. Marcia de Melo Martins Kuyumjian – Suplente – (UnB)

À dona Maria,

minha eterna Paixão.

E ao Bituca, menino-passarinho,

que de sons fez ramagens

para trançar seu ninho

Ouvir um

pássaro

é agora ou

nunca

é infância ou

puro

momento?

ouvir um pássaro

é

sempre

(dói fundo no

pensamento).

Orides Fontela, Cantiga

Agradecimentos

Essa pesquisa foi tecida na coletividade de vozes que apanhei pelos caminhos.

Pessoas que fizeram essa empreitada valer a pena, dando força e incentivo,

impulsionando o voo. Agradeço à minha irmã Maria Abília, a Bia, interlocutora

provocativa, sempre me instigando a me entregar mais, a correr atrás de fontes e

apanhar sensibilidades para arquitetar histórias. Nossos bate-papos diários, ambientados

na atmosfera percussiva da cozinha, criam espaço para maturar o pensamento musical,

cavar nossos percursos para pesquisa e para a vida. Acompanhar a feitura de seu

mestrado Taiguara: a volta do pássaro ameríndio foi um enorme aprendizado.

Obrigado ainda por seguir de perto essa lida, dividir alegrias (mais uma vez!!) e tolerar

lamúrias. Mayara, minha sobrinha-afilhada, afinada sintonia que enriqueceu esse

trabalho com dicas, ideias, traduções e disposição invejável para me acompanhar em

entrevistas (registrando tudo), viagens e shows que compõem as trilhas dessa pesquisa.

Agradeço ao Carlos Roberto, meu cunhado, pelas brincadeiras que alegram o dia, pelo

apoio espiritual e pela agilidade em resolver todas as coisas práticas da vida! Ao

Douglas, meu sobrinho, pela calma que emana e me contamina, pela cumplicidade

tecida às gargalhadas, “haja o que houver...”. Ao Sr Capucho, sempre rei da casa, pelos

passeios cobrados e pelas rosnadas propagadas. Seu jeito ranzinza é seu maior charme!

Agradeço à professora Eleonora, orientadora de sensibilidade apurada, sempre

disposta a embarcar junto nessa louca aventura, transbordando alegria e coragem.

Eleonora me atura como orientando desde a graduação, o que a especializou em arranjar

soluções para as mais variadas demandas do meu processo de produção – Haja

paciência para tanta frescura! Ao longo do percurso se transformou em amiga que

levarei para vida. Obrigado pelos empurrões sempre bem-vindos, por orquestrar

ambiente irreverente quando incorporo a angústia mineira. Obrigado pelas dicas, pelos

incentivos e por ajuntar tanta gente no nosso grupo de pesquisa “História e Música:

tecendo identidades, fazendo histórias”, lugar de inquietação pelas variações de olhares.

Thereza Negrão, fonte de eterna inspiração – até rimou. Bordadeira de palavras,

seus textos sempre me espantaram pela sensibilidade e ainda armaram meu primeiro

contato com estudos sobre música. O encantamento diante daqueles bordados

atravessou as aulas e chegou à pessoa, grande pessoa que espero ter constantemente ao

lado. Obrigado ainda pelas recomendações feitas à época do exame de qualificação

dessa pesquisa. E pelo curso – oferecido em dueto com a professora Márcia Kuyumjian

– sobre Certeau e Maffesoli, referências que enriqueceram o olhar que jogo pra cá.

Agradeço à professora Márcia pela amizade e por experiências como a do curso

que ofereceu sobre Roger Chartier, referência de grande valor para quem se arrisca no

solo da História Cultural. Coragem para se debruçar num autor é para poucos. Saúdo a

coragem de Márcia!

Obrigado à professora Nancy (in memoriam) por me incentivar a botar minha

voz no texto. Lembro-me ainda hoje quando recebi um trabalho corrigido por Nancy.

Em dada página circulou um instante em que me pronunciei em primeira pessoa. Ao

lado, escreveu: “Finalmente você no seu trabalho!!”. É preciso coragem para se colocar

na pesquisa. Isso Nancy teve de sobra e propagou com grande entusiasmo em suas aulas

e textos. Obrigado pelos debates sobre memória e oralidade, pela paixão por uma

narrativa desdobrável, fora dos eixos da exatidão. Estendo o agradecimento ao professor

José Walter, que fez grandes duetos com Nancy nas pesquisas da vida.

Ao professor Adalberto Paranhos, da UFU. O contato com Adalberto e suas

reflexões sobre performances foram fundamentais em meu mestrado e reverberam na

pesquisa de agora. Meu muito obrigado!

Agradeço à Maria Amélia, professora da UFG que reforça a crença de que

simpósios ainda são lugares de encontros verdadeiros! Do primeiro contato para cá,

foram muitas as contribuições. Maria Amélia foi quem me incentivou a arriscar na

realização de entrevistas, possibilitando inclusive que uma delas acontecesse. Ela e seu

irmão, Chico Alencar, proporcionaram meu encontro com Milton Nascimento. Aos

dois, sou eternamente grato. Agradeço ainda pelas dicas generosas na ocasião do exame

de qualificação. Espero que essa interlocução se apure cada vez mais!

Ao professor Edwar, da UFPI, pelo tanto que aprendi em seus textos e em suas

passagens por Brasília. Seu entusiasmo diante da diversidade de caminhos para

narrativas revigora a vontade de me aventurar em minha própria trilha. Obrigado por ser

uma presença afetuosa e inquietante!

Ao professor Ivan Vilela, da USP, com quem compartilho o encantamento com

o Clube da Esquina. Suas análises e reflexões sobre o Clube enriqueceram minha

pesquisa. O contato com Ivan me encorajou ainda mais à aventura de leituras musicais

através da sensibilidade. Obrigado pela abertura ao diálogo e pelo incentivo à escuta

apurada, aquela que se realiza quando desaceleramos pelo menos um pouquinho. Seja

bem-vindo às bandas de cá.

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em História da UnB. Meu muito

obrigado ao CNPq pela bolsa de pesquisa, ingrediente fundamental para realização

dessa tese.

Ao João Carlos Neves, que me deu acesso a vídeos fundamentais.

Agradeço aos artistas, arquitetos sonoros da música que ramifica por esse

trabalho. Alguns deles foram meus interlocutores através de entrevistas. Meu eterno

obrigado ao Novelli, grande baixista, compositor e narrador que, com seu espírito

desarmado, muito me ensinou sobre a música brasileira. Agradeço também ao Cayê

Milfont, cantor de voz emocionante que conheci nos bastidores da pesquisa da Bia e que

viabilizou o encontro com Novelli. Agradeço ao Fernando Brant, que tão bem me

recebeu para uma entrevista onde aprendi mais um tanto! Na fala de Fernando captei

que a beleza floresce no gesto mais simples, basta ter olhos para ver e ele tem! À

Simone Guimarães, que agitou minhas percepções sobre o Clube da Esquina numa

entrevista que se desdobrou em tantos outros bate-papos espontâneos, fazendo brotar a

amizade que sempre levarei comigo. Agradeço ao Milton Nascimento pela maneira tão

acolhedora com que me recebeu. Pela emoção desconcertante daquele dia. Em sua casa

me senti em casa. Em sua música encontrei meu norte. Obrigado ainda ao Keller,

Eduardo e Pedro, pessoas que conheci naquele dia e que fizeram o ambiente ser ainda

mais espontâneo. Estendo o agradecimento ao Danilo, assessor de imprensa de Milton

que viabilizou tudo e ainda me deu importantes dicas sobre acervo.

Nessa levada ainda agradeço ao Márcio Borges. Sem seus livros de memórias

sobre o Clube da Esquina esse trabalho não teria alçado certos voos. O mesmo digo em

relação à Maria Dolores, jornalista que encarou o desafio de escrever a biografia de

Milton Nascimento. E à Andréa dos Reis Estanislau, autora de Coração americano: 35

anos do Clube da Esquina. Obrigado também ao Kiko Continentino, pianista de

primeira que tão prontamente respondeu aos meus e-mails e me passou ótimos artigos

de sua autoria.

Os caminhos dessa pesquisa ainda me fizeram realizar entrevista com um dos

personagens mais importantes da cultura popular de minha cidade, o Zim da Sá Ana,

“caboclim” dos bons! Agradeço a ele pelo tanto que aprendi naquela manhã elevada

pela pulsação da caixa de folia e por tantas histórias que enredam reconhecimentos e

pertenças. Salve Zim! Pela sua voz saltam encantos!

Aproveito para agradecer aos grandes amigos que fiz nas perambulações pela

UnB. As reuniões espontâneas, quase sempre levadas por muita música, fortificaram

laços de amizade e criaram lugar para compartilharmos impressões, reflexões e

vivências que muito contribuíram para o recheio dessa tese: Valeska, Kênia, Leidiane,

Rafael Rosa, Marcelo Brito, Débora, Anderson, Eduardo Bay, Cris Pereira, Jorge

Alexandre. Agradeço especialmente ao Leandro Mendanha, grande amigo e interlocutor

que acompanhou de perto a feitura dessa tese, sempre dando força quando não havia

mais forças. Pelas suas mãos chegaram Deleuze e Guattari, Agamben, Cecília Meireles,

Foucault e tantos outros. Contribuiu ainda com seu pensamento inquieto, partilhando o

nascimento de sua pesquisa, Foucault em erupção e a decifração do magma nos

trópicos. Ter o Leandro ao lado me fez entender a repeito daqueles diálogos criativos

que brotam das verdadeiras amizades.

Aos outros momentos de descontração, onde a turma ganha o reforço de Sílvio,

Dênis, Teca, Karine, Larissa, Eleonora (novamente) e de mais um monte de gente que

compõe a galera do “solto a voz nas estradas”, sempre pronta à diversão nas noites de

“cantoquê”. Agradeço também a Andréia Lins, instrutora-amiga que ganhei na

academia. Naquele ambiente, os exercícios recomendados e as gargalhadas

compartilhadas logo pela manhã dissipam as angústias que rondam a escrita. Valeu!

Aos conterrâneos queridos, à Virgolândia, Minas Gerais, onde aprendi que

mergulho abissal se faz para dentro. À minha mãe, Dona Maria da Paixão, pelo esmero

e dedicação com que realiza as mínimas coisas do cotidiano. Observá-la me ensinou a

apurar a atenção, perspectiva que atravessa essa pesquisa. Vê-la cantar enquanto realiza

as tarefas do dia a dia ainda me faz acreditar que o cotidiano é pura poesia. Ao meu pai,

seu Éder, que mesmo do céu está ao meu lado, pelas recordações de sua leveza, do olhar

tranquilo e das sonoridades compartilhadas na escuta do rádio – “Cruzeiro, Cruzeiro

querido, tão combatido, jamais vencido...”. A minha irmã Marta, parceira entusiasmada

que com sua trupe animada – Thiago, Caio e Mariana – entoa canto de garra. Sempre

pronta ao aplauso e a ajudar, como fez na entrevista com o Zim. Valeu Marta!!! À

minha irmã Sandra e sua turma – Carlos Alberto e João Pedro – pelo apoio, pelos shows

da vida, pelo afeto rendado nos longos e bons papos madrugada adentro. Salve Tandão!

À minha madrinha e tia, Dona Lúcia, sempre atenciosa e bem-humorada é também

professora da dura arte do perfeccionismo, um horizonte a ser perseguido. Agradeço ao

meu tio João Leite – grande saudade –, que sempre me encantou com sua memória,

exercitada na sabedoria de que “é preciso ler estudando”. Ao Gracinha, tio que fez de

seu apelido um modo de vida. Obrigado pelo lado moleque! Ao Jota, tio e narrador nato

de grandes histórias! Ao meu padrinho e tio Neném, sempre disposto a ajudar e dono de

olhar certeiro! E à tia Bicota, Gracinha 2, que lá de cima, certamente, ri de tudo que rola

por aqui. À Dezinha, um presente que traz alegria à nossa casa em Virgô. À Mimi, com

quem sempre dividi paixões e impressões artísticas que reverberam no que faço hoje! À

Lu, pelos nossas risadas e momentos de coração apertado!! Esses agradecimentos se

estendem a tantos outros que não foram citados (meu Deus, já são 5 páginas!), mas que

estão guardados no coração. Estendem-se também a quem agora passa os olhos nessas

páginas e se aventura a adentrar nas dobras dessa narrativa. Que a viagem seja boa!

Agradeço também à Nossa Senhora, mãe acolhedora, voz diariamente invocada

para amansar meu coração.

Resumo

Essa pesquisa se envereda por uma pluralidade de experimentos do cantor-compositor

Milton Nascimento com linguagens artísticas, abrindo espaço para se vislumbrar sua

inquietude. Essa perspectiva possibilita reflexões sobre a própria mobilidade da música

de Milton, aqui entendida como plano aberto à interação com sonoridades e artistas

vindos de diversas paragens do Brasil e do exterior. O olhar atento à música de Milton

Nascimento cria oportunidade de lidar com uma expressiva diversidade de gêneros

musicais, reelaborados e amalgamados numa fusão plural e movente onde se deixa

entrever sonoridades e temáticas buscadas no passado e no presente, de forma a se

construir uma memória musical alicerçada em várias temporalidades. Essa tendência

musical constrói-se sobre solos culturais diversos, de onde são buscados aqueles

elementos dialogais que traduzem uma marca do artista: a avidez por compreender e ser

compreendido não exatamente a partir de uma mensagem inscrita na canção, mas,

sobretudo, pela inquietação que uma certa familiaridade possa despertar na

(in)consciência de quem o escuta e retraduz. A partir desse manejo, portanto, a cultura,

a música brasileira e o Brasil são postos em discussão, numa espécie de metalinguagem

musical que historiciza o próprio fenômeno musical.

Palavras-chave: Milton Nascimento, Travessia, Clube da Esquina, Memória, História

Cultural.

Abstract

This research leads to plural experiments from the singer-composer Milton Nascimento,

using artistic expressions in order for us to catch a glimpse of his questions. This

perspective enables reflections about the very mobility of Milton’s music, here

understood as an opened plan which interacts with sounds and artists from various

stoppages in Brazil and abroad. The watchful eye on the Milton Nascimento’s music

creates an opportunity to deal with a significant diversity of musical genres, reworked

and amalgamated into a plural moving fusion where he conjectured sounds and themes

pursued in the past and present, in order to build a musical memory grounded in

multiple temporalities. This musical trend is built on many cultural soils from which we

sought dialogic elements that reflect one of the artist’s brands: the hunger to understand

and to be understood not just as a message engraved on a song, but especially for the

disturbance brought by a certain familiarity that awakes the (un)consciousness of those

who hear and retranslates him. From this movement, therefore, the culture, Brazilian

music and Brazil are discussed in a musical metalanguage which historicizes musical

phenomenon itself.

Keywords: Milton Nascimento, Bridges, Clube da Esquina, Memory, Cultural History.

Índice

Introdução .................................................................................................................................... 1

Capítulo 1 – “Solto a voz nas estradas...” ............................................................................... 11

Dos palcos dos festivais a voz ecoa 12

Cantar, dançar, simplesmente ser Crooner 35

“Minha voz vem da mulher” 58

Milagre dos Peixes, multiplicação de sons 80

Ser Minas Tão Gerais: um canto para o grande mito 106

Capítulo 2 – “Faz amigo em cada rua ou bar” ................................................................... 129

Relato de Simone Guimarães: uma experiência musical com a matriz miltoniana 149

“Cavar o impensado do próprio pensamento, fazendo-o deslocar”:

o jeito de ser clube-esquinista 155

Capítulo 3 – Pelo ar ou pelo chão, os caminhos levam ao coração ..................................... 204

Angelus: rastro mágico de um voo libertário 209

Tambores de Minas: canto para avivar as asas e tocar a vida 250

Capítulo 4 – “Se já conheço, eu quero é mais...” .................................................................. 290

Tem sotaque francês na música brasileira 291

Novo canto no território da bossa 311

Rotas de som para seguir sonhando 326

Considerações finais 351

Corpus Documental 362

Bibliografia 371

INTRODUÇÃO

Passear as mãos por discos enfileirados na prateleira da estante e abri-los como

se fossem páginas de um grande livro que canta nossa própria história. A cada

“capágina”, memórias se ouriçam. Algumas delas reclamam maior atenção, instigando o

reencontro realizado no simples gesto do disco crepitando na vitrola. Além de canções,

aquele artefato guarda fissuras e ruídos que noticiam rastros de nossas escutas. Quantas

vezes ao reouvir um álbum, agora em límpido som de CD ou de arquivos digitais,

esbarramos em recordações de chiados e arranhões que não estão mais lá, mas sim nos

discos de nossas estantes familiares? Essas “inclusões sonoras”, normalmente frutos de

mãos desastradas, quando não de exaustivos exercícios rotativos, rearranjam a obra de

arte em detalhes que martelam na memória. Aqueles discos são também nossos.

Revisitá-los, permite-nos recobrar lembranças e descortinar caminhos para novas

viagens.

Foi num desses discos guardados na casa de minha mãe que tropecei em notícia

dos meus começos com a música de Milton Nascimento. O letreiro da capa anuncia:

Brazil Night: Alceu Valença, Milton Nascimento e Wagner Tiso. Trata-se do registro de

fragmentos dos shows dos três artistas na Noite Brasileira do festival de jazz de

Montreux, Suíça, lançado em 1983. Além das fotos e letreiros que compõem a arte da

capa, outros itens foram nela acrescentados ao longo do tempo, tais como inscrições e

marcas pessoais. Espalhado por todo espaço livre, meu nome rabiscado por letra

engarranchada traduz a inabilidade infantil com a escrita, mas também a imensa vontade

de tomar posse daquele objeto que arremessava sonoridades impactantes. Não tenho

primeira recordação do instante em que me dei conta da existência de Milton

Nascimento, guardo apenas pistas como esta, salpicadas como farelos em meu baú de

memórias e espantos. A voz de Milton me acompanharia vida afora. Às vezes, como

pano de fundo, apanhada em eco da escuta de terceiros, familiares e vizinhos que

ambientavam o dia no canto miltoniano. Mais tarde, como voz de centro, que me

proporcionou momento de pura contemplação. Voz de beira, quando recordada no coro

improvisado na igreja: “Ó Deus salve o oratório...”. Tornou-se substância que

fortaleceu e criou laços, afetos rendados por linhas bituquianas. Uma voz que mina

paragens, compondo e inspirando visões sobre o cotidiano.

2

Anos mais tarde, quando já finalizava meu curso de História na Universidade de

Brasília (UnB), dei meus primeiros passos em estudos focados numa perspectiva que

privilegiava os diálogos da História com a Música. Naquela ocasião realizei pesquisa

sobre a cantora Elis Regina, voz em eterno dueto com Milton Nascimento no topo de

minhas listas de predileção musical. Com o título Brasis de Elis, o trabalho orientado

pela professora Eleonora Zicari Costa de Brito, se desdobraria em nova pesquisa sobre a

cantora no meu mestrado. Neste, refletia sobre a maneira como variados temas que

enredavam o cotidiano brasileiro eram tramados e apresentados em espetáculos

temáticos levados aos palcos por Elis e sua trupe nos anos 70. São eles: Falso Brilhante,

Transversal do tempo, Saudade do Brasil e Trem Azul.

A dissertação que foi batizada com o nome de Elis de todos os palcos:

embriaguez equilibrista que se fez canção – defendida em 2009 no PPGHIS-UnB,

também sob orientação da professora Eleonora Zicari – era costurada por análises sobre

como a intérprete fazia de sua performance, vocal e corporal, um instrumento de co-

autoria das canções de seu repertório. Na condução desse trabalho, a voz de Elis Regina

evocava outras para o diálogo. Assim, foram muitas as vezes que convocamos Milton

para que as reflexões daquela narrativa se encorpassem, ganhassem nuances que

desvelavam imaginários compartilhados naquelas temporalidades. O que atravessava

Elis de todos os palcos receberia atenção especial em seu último capítulo, o Trem Azul,

onde o diálogo estético-afetivo de Elis e Milton ainda inspiraria a percepção da relação

da intérprete com o Clube da Esquina, fazendo dela mais uma integrante daquela

agremiação de artistas.

O fim de uma pesquisa reverte-se em explosão de novos começos. A dúvida que

turvava o pensamento na hora de escolher um tema para desenvolver pesquisa de

doutorado, hoje parece nunca ter existido quando refazemos os passos desse trajeto. O

olhar retrospecto cria a impressão de que a decisão já estava tomada, bastava coragem

para realizá-la: estudaria agora a obra de Milton Nascimento. De repente, parecia que,

mesmo sem saber, eu já pesquisava aquele artista há tanto tempo... ou, pelo menos, já

conhecia muito do seu universo. Jogar-me nessa empreitada exigiria o sabor de aventura

deflagrado por olhar desarmado, aquele que possibilita sermos interpelados por detalhes

surpreendentes, arranjando portais para descobertas de instigantes tonalidades no

horizonte de territórios onde já nos sentimos ambientados. Uma pesquisa compensaria

se não exercitasse uma transformação, uma nova forma de olhar para o que já

3

conhecemos? Esparrama-se pela tese essa questão que vem da interlocução com os

experimentos artísticos de Milton Nascimento.

Os primeiros caminhos dessa pesquisa foram conduzidos pela atenção aos

diálogos de Milton com uma variedade de gêneros e estilos musicais num exercício em

que o cantor-compositor se atualiza e se reinventa, transpondo barreiras espaço-

temporais. Mas logo se desdobrou numa escuta apurada, que apreendesse variadas

camadas que compõem a linguagem musical desse artista que me afetou ao longo dos

anos. Na ambiência sonora de seus álbuns, referências de suas primeiras escutas, como

as cantoras do rádio, a música de cinema, além de sua experiência como crooner, nos

tempos de descoberta de seu talento, são combinadas com temas mais atuais numa

urdidura que compõe bloco sonoro movente e fluído. As memórias que nos espreitam

na discografia de Milton Nascimento criam esse espaço onde o passado também é

movediço, tomado como matriz para realizar uma obra plantada no agora. É o que

veremos, por exemplo, na trama dos discos Crooner (1999) e Pietà (2002), trabalhados

no Capítulo 1. Nessa levada, a música de Milton assume caráter provisório, pois está

sempre aberta a acréscimos sonoros advindos de diálogos. Vertentes como jazz, rock,

pop, música sacra, clássica, música latina, expressões da cultura popular, convertem-se

em veios que o artista desloca e entrelaça numa constante remodelagem que arquiteta

essa linguagem enigmática, o estilo Milton.

Desde que apareceu para o grande público no II Festival da Canção, em 1967, o

nome Milton Nascimento chamou atenção no cenário musical nacional e também

internacional. De suas interações com artistas dos dois planos surgiriam amizades

musicais que enriqueceriam sua obra e fariam seu nome ser sinônimo de polo

agregador. Foi assim, por exemplo, na experiência de Clube da Esquina, (1972), mas

também noutras posteriores, como Angelus (1993), Pietà, (2002), e ...E a gente

sonhando, (2010). Tais questões situam nossas reflexões na maneira que o artista

rearranjou linhas sonoras apanhadas em variados campos para compor sua linguagem. A

contemplação das malhas miltonianas possibilita perceber que seu bloco sonoro guarda

relatos e histórias em seus interiores, como se compusesse textos dentro de textos à

espera de antenas atentas aos mínimos detalhes. A cada disco, Milton compartilha

memórias e códigos, criando familiaridades e arranjando narrativa cujas linhas nos

convocam a interação, a participar da trama montando quebra-cabeças. Ali, despejam-se

mares de sons e sensibilidades que enredam o cotidiano em linguagem poético-musical.

4

Em suas curvas, compartilham-se rastros da própria história de Milton e de seus

encontros nutridos por laços de amizade. A vida aqui é fonte para se adensar a

criatividade artística. Numa ampliação, as dobras das canções do cantor-compositor

noticiam sobre a história da música brasileira, esboçam uma pintura multiforme de

Brasil e demarcam posição no seu diálogo com o mundo. Afinal, cantar é também

embaraçar seus caminhos com os tempos e lugares onde vive. Assim, abre-se espaço

para apanhar e reconstituir memórias alicerçadas em variadas temporalidades que

abrigam e dão vida às personagens que passeiam em suas canções.

A música de Milton brinca com jogos de revelações e ocultações. Ela apenas

deixa entrever os contornos das referências que lhe servem para composição de sua

linguagem. Nesse manejo, multiplicam-se caminhos de sua linguagem bailarina. A

nesga de espaço entre a luz e a sombra desvela magias para inventar outra que se

assenta em solos diversos. A dança de véus institui comunicação por insinuações que

reforçam a mobilidade do discurso poético-musical. Esse é um dado que se faz

instigante inclusive quando focamos em reflexões sobre articulações memoriais na obra

de Milton Nascimento. Muitas vezes, tais memórias são ingredientes que arranjam

ambientes e climas provocadores de inquietação por uma familiaridade que desperta

através do que não se identifica por inteiro. São memórias que capitaneiam emoções e

pulsações num terreno onde prevalece a nebulosidade do discurso subjetivo. Um

exemplo disso são os sons que remetem à cultura popular, ao sabor de ancestralidade.

Nessa interação, nossas próprias memórias são provocadas e vêm aos solavancos.

Percepções como essas convidam a atentarmos para a importância de nos determos na

própria sensibilidade artística e de desenvolvermos a nossa para acessá-la e entendê-la.

Isso me faz relembrar os caminhos narrativos da professora Thereza Negrão de Mello

que, num belo texto sobre o cantor-compositor Xangai, alerta:

Andei lendo que o historiador “é e deve ser um artista”. Maffesoli ao corroborar

tal entendimento, pensa nas escolhas dos objetos de estudo para além da pura

racionalidade, posto que impregnada também de um estetismo que o autor

identifica e resume com a expressão “senso artístico”. Do mesmo modo entendo

que há ainda artistas de cujo trabalho exala um “senso histórico”. Xangai não

seria um deles?1

1Maria Thereza Ferraz Negrão de Mello. “Qué qui tu tem, canário: cultura e representação no repertório

de Xangai.” In: Cléria Botêlho da Costa, Maria Salete Kern Machado (orgs.). Imaginário e História.

Brasília: Paralelo 15, 1999, p. 170.

5

A questão formulada por Negrão de Mello nos incentiva a variação: não seria

também o caso de Milton Nascimento? Visualiza-se nessa argumentação a necessidade

de nos posicionarmos numa área de troca, na perspectiva de uma pesquisa “feita com”,

ou seja, através da interação. O discurso artístico que “exala um ‘senso histórico’” se

engendra numa linguagem que carecemos compreender melhor. É preciso que o

historiador ladeie o artista, faça dele um interlocutor. No caso desse trabalho, essa

interação se deu em variados níveis, como o da escuta apurada, mas também o do

diálogo promovido por entrevistas realizadas por mim mesmo e pelo grupo de pesquisa

do qual faço parte – História e música: tecendo identidades, compondo histórias. Desde

cedo, chamou-me a atenção os intertextos e climas criados nos álbuns de Milton

Nascimento. Aqueles discos que convocam ao diálogo me fariam percorrer páginas e

páginas de jornais, livros de memórias, fontes literárias que lhes serviram de inspiração

e tantos outros materiais que dariam acesso a veios de histórias e sensibilidades que

nutriram o pensamento artístico de Milton e de sua trupe.

Logo viria a possibilidade de realizar entrevistas com Milton Nascimento e

alguns de seus parceiros musicais. São eles, Novelli, Fernando Brant e Simone

Guimarães. Foi através dessas entrevistas que em muitos instantes pude acessar os

bastidores de confecção de álbuns e canções. E, assim, espreitar a provocação criativa

que marca o tom das parcerias miltonianas. Esse veio surgiu, por exemplo, a partir da

entrevista realizada com Fernando Brant. Dos depoimentos desses artistas ainda saltam

memórias sobre cenários musicais pouco lembrados pela historiografia sobre a música.

Exemplos disso estão nas passagens em que Milton Nascimento discorre sobre a

importância da cena de Belo Horizonte para sua formação musical – princípio dos anos

60. Ou quando Novelli fala das parcerias e movimentações musicais realizadas no

cenário do Rio de Janeiro, também nos anos 60. Simone Guimarães nos ajuda a

compreender a importância de Milton como polo agregador e ainda a refletir sobre a

linguagem clube-esquinista como matriz musical.

Essas entrevistas criaram espaço para falarmos de assuntos diversos,

possibilitando um tipo de diálogo que enriquece minhas percepções sobre esses artistas

e suas maneiras de narrar. Inclusive por me instigar em relação a determinados assuntos

e canções que me levaram a tomar rumos antes impensados para elaboração das

reflexões dessa tese. Ou seja, me incentivaram a me deslocar, sair do roteiro previsto

para encontrar fontes onde apreendo novas nuanças da trajetória artística de Milton

6

Nascimento. Foi através do meu contato com o cantor-compositor, por exemplo, que

decidi me embrenhar em análise demorada do disco Angelus (1993). A importância

alcançada por esse álbum nas memórias de Milton, motiva-o a considerá-lo como uma

espécie de Clube da Esquina 3. Ao relembrar experiências como essa, Milton

Nascimento sinaliza para aqueles projetos artísticos que permanecem submersos nas

narrativas elaboradas a seu respeito. Apanhar o caminho de Angelus nos permite assim

captar a fluidez da música e do perfil de Milton, artista sempre disposto a reinvenções.

Desse prisma, contemplamos a própria inquietação miltoniana, que nos inspirou à

caçada de outras de suas experimentações em diversas temporalidades e linguagens

artísticas.

Assim, fomos levados a espetáculos como Tambores de Minas (1997), e Ser

Minas tão Gerais (2002), experimentos em que Milton entrega-se à linguagem cênica,

desvelando seu lado ator em performances emocionadas que removem a máscara de

figura introspectiva que normalmente colam à sua face. Através de vivências como

essas, Milton se transforma, recompondo sua imagem artística. Esse foi um dado que

me incentivou a pinçar álbuns e shows de variados momentos de sua trajetória para

realizar essa tese. Se Milton colhe vários tempos para fazer sua música, também

arrisquei no entrelaçamento de experiências artísticas de distintas temporalidades para

compor essa pesquisa. Essa escolha dá visibilidade à fervura miltoniana e aos seus

deslocamentos. O artista inquieto dribla acomodações, mostrando-se disposto a se

enveredar por descobertas sonoras e novas interações a cada projeto. Essa postura

singulariza cada uma de suas experiências. Milton não se agarra a um momento de sua

carreira elegendo-o como fase gloriosa. Prefere investir em novos começos e aguardar

pelo que ainda vem. Assim, sua voz puxa tons do presente. As experiências miltonianas

suscitam a lembrança do divertido jogo de palavras da professora Eleonora nos

bastidores da orientação: “preferiu ser vanguarda do que velha guarda.”

A perspectiva de uma pesquisa “feita com” convoca o historiador a se colocar na

trama, arquitetando texto em tom pessoal, dicção que acentua um posicionamento e

demarca uma afinidade com o objeto pesquisado. Essa escolha se traduz na convicção

de que todo texto é um posicionamento, mesmo quando se recobre da fictícia

neutralidade conclamada pelo tom impessoal, aqui entendido como mero artifício

retórico utilizado para fortalecer ou mesmo dar feição científica a uma argumentação.

7

Tal percepção ganha consistência quando tomamos de empréstimo as palavras de Janet

Malcolm, jornalista norte-americana que em seu livro sobre a poeta Sylvia Plath afirma:

O ato de escrever não pode ocorrer num estado de ausência do desejo. A pose

de equanimidade, a farsa do equilíbrio, a adoção de uma postura de

distanciamento nunca pode ser mais que um ardil retórico, se fossem genuínas,

se o escritor realmente não se importasse com a maneira como as coisas acabam

acontecendo, não se incomodaria em representá-las. 2

Essa impressão que me acompanha se fortaleceria no diálogo com professores e

colegas acolhidos na História Cultural, vertente que abriu caminhos para novos objetos

e abordagens no campo da História. Desse lugar tomei noções e categorias importantes

para realização dessa pesquisa, tais como representação, apropriação, memória,

identidade e fronteira. E fui incentivado a buscar interlocução com outras áreas. Ainda

mais sendo essa uma pesquisa que se faz no diálogo com a música. Em texto que busca

dar conta de um levantamento da produção historiográfica que trata a música como

fonte de pesquisa, Eleonora Zicari Costa de Brito chama atenção para a necessidade de

se travar diálogo com outras áreas como alternativa a “ainda incipiente produção

historiográfica”:

...considerando que a grande massa de trabalhos acadêmicos que se debruçam

sobre a música como objeto de estudo encontra-se localizadas em outras áreas

de conhecimento, notadamente a sociologia, a antropologia, a filosofia, a

musicologia, a literatura e a comunicação. Como se vê, estamos frente a áreas

intersolidárias à história e, por isso mesmo, pontes que tão bem têm servido ao

historiador que se decide aventurar nessa nova seara.3

Essa postura me levou a diálogos polifônicos, buscados inclusive com autores

que não estão diretamente relacionados à música ou ao campo acadêmico. Assim, foram

surgindo variadas contribuições, algumas advindas da própria literatura, caso de

Guimarães Rosa e Adélia Prado, que aqui ladeiam os nomes acadêmicos na composição

de minhas reflexões. E não é que os acadêmicos me ajudaram a compor sensibilidades

poéticas! Isso faz recordar os textos de Thereza Negrão, Ecléa Bosi, Michel de Certeau,

Giorgio Agamben, a dupla Deleuze e Guattari e tantos outros. Reforça-se aqui a ideia

de um trabalho advindo de uma área de troca.

As questões aqui levantadas se alastraram na confecção dos quatro capítulos que

enredam essa tese. O primeiro nasceu da necessidade de se refletir sobre a importância

2 Janet Malcolm. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. São Paulo:

Companhia das letras, 2012, p.193. 3Eleonora Zicari Costa de Brito. “História e música: tecendo memórias, compondo identidades”. In:

Textos de História, vol. 15, no 1/2, 2007, p.209.

8

da voz na composição da linguagem miltoniana. Para isso, voltei à agitação musical dos

anos 60, ao cenário dos festivais, através de uma pluralidade de materiais, dentre eles as

entrevistas realizadas com o próprio Milton, Novelli e Fernando Brant. E apostei num

cruzamento dessas memórias com álbuns recentes onde Milton Nascimento faz de seus

primeiros começos matéria-prima para novos voos artísticos. Refiro-me aos álbuns

Crooner (1999), onde relembra os tempos de cantor da noite em Três Pontas e Belo

Horizonte, e Pietà (2002), onde presta homenagem às mulheres, vozes que incorpora à

sensibilidade de seu canto. Tais álbuns são tomados como discos-relatos cuja narrativa

fala desses passados, mas numa transposição para a atualidade. Lembranças aqui se

integram aos tantos temas que engendram o cotidiano no presente. Tudo monta o chão

onde a arte de Milton se nutre e alça voo. Isso me motivou a brincar com fronteiras

temporais, pular lá para falar sobre cá, criando outro lugar para nos comunicar. Nessa

levada, forja-se espaço para contemplarmos os caminhos da voz de Milton.

Reconhecido pela beleza de seu timbre, o cantor-compositor sempre caçou novas

formas para explorar sua voz, aventurando-se num constante processo de lapidação.

Certos recursos, com o tempo, se transformaram em assinaturas vocais que

acompanharemos ao longo desse capítulo. Essas escolhas ainda motivariam investir em

momentos marcantes de experimentações vocais miltonianas, caso do disco Milagre dos

peixes (1973). E nos conduziriam ao espetáculo Ser Minas tão Gerais (2002), que faz

dos “causos” e histórias propagadas sobre a voz e a arte de Milton Nascimento fios de

uma teia para celebrar o grande mito.

O capítulo 2 se detém nas parcerias que Milton Nascimento estabeleceu com

outros artistas. Ao visitarmos seu repertório, percebemos que Milton não é afeito à

produção solitária. Ele agrega ao seu nome os de tantos outros artistas talentosos. Nas

canções de seu repertório a amizade é um tema importante e também um sentimento que

permitiu o estabelecimento de alguns diálogos sonoros. Uma das primeiras lembranças

que vem à cabeça é a de seus parceiros mais constantes em letras de canções: Márcio

Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos. No entanto, não podemos nos limitar ao

patamar da composição. Os músicos que o acompanham são também seus parceiros e

ajudam a dar consistência às sonoridades de seus discos.

Aqui nos concentramos na ideia de produção coletiva advinda de experiências

como a da gravação do álbum Clube da Esquina (1972). Submergir nessas águas

permitiu que nos deslocássemos rumo a outras obras onde sentimos ressonâncias,

9

variações e desenvolvimento de linhas traçadas nesse álbum que toma feição de

palimpsesto. Assim, visitamos rapidamente as trilhas de balé compostas especialmente

para a companhia de dança Grupo Corpo: Maria Maria (1976) e Último Trem (1980).

Enveredamos por canções que integraram outros discos de Milton à época e teceram a

estética e o universo simbólico clube-esquinista. Para isso foi fundamental a entrevista

com Fernando Brant, que compartilhou lembranças sobre sua atividade de compositor,

temáticas, olhares e interações que motivaram canções. A de Novelli, que noticia o

clima de gravação de álbuns célebres, como o Clube da Esquina nº2, de 1978. E a de

Simone Guimarães, tomada como artista que fez da linguagem clube-esquinista alicerce

para florescer sua música na atualidade. Entremeando esse capítulo, enveredamos por

reflexões sobre as apropriações e combinações sonoras exercitadas por Milton

Nascimento e sua trupe no contato com sonoridades vindas de fora. Nesse ponto,

enquadramos ainda seu diálogo com o saxofonista norte-americano Wayne Shorter, com

quem gravou o disco Native dancer (1974), recordado aqui através das memórias de

Milton sobre os bastidores de sua gravação.

No capítulo 3, detive-me demoradamente em dois projetos levados ao público na

década de 90, o disco Angelus, de 1993, e o espetáculo Tambores de Minas, de 1997.

De uma perspectiva onde prevalece a reflexão contemplativa pude capturar no ambiente

desses projetos sensibilidades que foram colhidas na vida diária, recriando magias e

insinuando familiaridades. Embora sejam bem diferentes, os dois experimentos se

comunicam pelas travessias que insinuam, levando-nos aos recantos do país, mas numa

viagem que o localiza como lugar do mundo. Desse plano, o humano é a paisagem

tecida pelos laços das subjetividades que aninham o planeta. Motivou essa escolha a

possibilidade de lidar com duas maneiras distintas de enredar narrativas. Em Angelus,

um disco, prevalece o som composto num sotaque universal – diálogo com o cenário

internacional. Tambores de Minas parte da pesquisa de sonoridades da cultura popular

mineira, sendo a música mais um componente de uma narrativa que ainda se nutre de

cenários, coreografias, iluminação, figurino, etc. Nas atmosferas dessas experiências

artísticas cavamos espaço para refletir sobre temáticas da época, como os discursos

ecológico e cultural. Além de questões relacionadas aos meios de divulgação musical,

caso, por exemplo, da tentativa de apreender a música de Milton a partir da categoria

World music.

10

O capítulo 4 surgiu da necessidade de abarcarmos experiências mais recentes de

Milton Nascimento, momentos que ainda não se assentaram nos terrenos da memória.

Colocarmos-nos assim numa área de nebulosidade, a contemporaneidade, campo onde

deflagramos a ebulição miltoniana. Os álbuns aqui visitados são: Milton Nascimento &

Belmondo, gravado em 2007, numa parceria com os irmãos Belmondo, representantes

da música instrumental francesa; o Novas Bossas, de 2008, em que, juntamente com o

Jobim Trio, rende homenagens a Tom Jobim; e o ...E a gente sonhando (2010), onde

apresenta talentos da cena musical de sua cidade, Três Pontas. Aqui somos regidos pelas

variações que movimentam o território miltoniano num plano onde prevalecem sinais de

novas aberturas.

Tantas outras questões serviram de linhas para tramarmos o tecido dessa tese.

Todas elas apanhadas na movência, deslocamentos, desterritorializações e

reterritorializações da paisagem miltoniana, ponto onde se recriam lugares, urdem-se

tempos e acolhem-se preciosidades apanhadas nas malhas do cotidiano. A música de

Milton Nascimento brota da vida, contemplada em suas sucessivas camadas. É como na

imagem captada nas palavras do poeta que aqui tomamos para embarcarmos juntos

nessa viagem:

(...)

Paisagem, país

feito de pensamento da paisagem,

na criativa distância espacitempo,

à margem de gravuras, documentos,

quando as coisas existem com violência

mais do que existimos: nos povoam

e nos olham, nos fixam. Contemplados,

submissos, delas somos pasto

somos a paisagem da paisagem.4

4 Carlos Drummond de Andrade. “Paisagem”. In: Nova Reunião: 23 livros de poesia. Volume 2 – 5ª

edição – Rio de Janeiro: BestBolso, 2013, p. 174.

11

CAPÍTULO 1

“Solto a voz nas estradas...”

“Minhas músicas são filhas, são crias do meu coração.

A música corre na minha vida como o sangue das minhas veias.’

Milton Nascimento

Num princípio de tarde do dia 17 de julho de 2012, céu nublado no Rio Janeiro,

era possível escutar pelo portão entreaberto algumas notas vindas de dentro da casa. À

medida que se adentrava naquele espaço, a melodia tornava-se mais nítida e os versos

da canção já podiam ser identificados: “Anda, novo dia já está nascendo/ Liberdade já

está chegando”1. Finalmente, a expectativa do encontro marcado para aquela ocasião se

concretizava: do alto da escada que dava para a sala, avistei Milton Nascimento. No

aparelho de som, ouvia-se o primeiro disco de sua carreira, lançado em 1967 pela

gravadora Codil. O cantor-compositor explicou que aquele era o primeiro exemplar de

uma coleção de 20 CDs que seria lançada em bancas de revista. Na verdade, o que ele

fazia era conferir os resultados desse primeiro número. Pensei então no quanto eu tinha

aguardado aquele momento, fosse como um pesquisador que realizaria uma entrevista

com Milton Nascimento, cuja obra é aqui o meu objeto de análise, fosse como um

admirador que tinha a oportunidade única de interagir com seu ídolo. Minhas antenas

captadoras de gestos, emoções e não-ditos estavam atentas ao que escapasse às tomadas

da câmera. Meus sentidos tentavam guardar cada instante daquela tarde.

Comecei por explicar o roteiro da pesquisa, descrevendo brevemente o percurso

feito até ali. Bom anfitrião, Milton sugeriu que eu conhecesse alguns espaços da casa,

tendo como guias dois de seus incontáveis afilhados. Assim, eu e minha sobrinha,

responsável por registrar a entrevista em todos os suportes possíveis, conhecemos um

pouco da casa habitada pelo artista, como seu estúdio e um anfiteatro. Aqui, Milton fez

questão de mostrar a homenagem expressa no nome dado ao espaço: “Anfiteatro Wayne

Shorter”, destacava a placa artesanal. Shorter é o grande nome do jazz com quem Milton

vivenciou experiências memoráveis como a gravação do álbum Native dancer, uma das

1 Irmãos de fé (Milton Nascimento /Márcio Borges)

12

portas para que a música do artista brasileiro ganhasse outros cantos do mundo. A

ocasião também criou oportunidade para que ouvíssemos, juntos, parte daquele disco

que tocava. Descontraído, Milton ia apontando detalhes nas canções, como a flauta da

canção Catavento, executada por Danilo Caymmi, e a ambiência sonora, sob

responsabilidade do Tamba Trio. Informalmente, conversávamos sobre o disco e, desta

forma, estabelecia-se uma atmosfera de intimidade para a entrevista que se realizaria em

seguida.

A entrevista revelou em Milton Nascimento um narrador instigante. Ao contrário

da timidez sempre alardeada aos quatro ventos pela imprensa, estive diante de um

Milton disposto a enveredar por memórias que coleciona e conta calmamente,

prendendo a atenção de seu interlocutor. Como ele mesmo destaca: “Eu quando começo

a contar minhas coisas é um problema, porque uma coisa puxa a outra e vai”. Ou seja,

um poeta bom de prosa. E os fios dessa narrativa memorial são entremeados de

surpreendentes doses de humor. Por vezes o artista reproduz diálogos do passado e

acaba se transmudando um pouco em Wayne Shorter, Agostinho dos Santos, Elis

Regina e tantos outros personagens de sua vida. Sua voz busca o tom certo para essa

empreitada e reboa, enchendo a sala, mesmo quando fala baixo. A isso se soma todo um

gestual, suas mãos desenham sentidos e a expressão facial reapresenta sensações que

aquelas memórias guardam. Emoções, brincadeiras, astúcia musical, tudo se percebe no

menor gesto que compõe as narrativas miltonianas. Assistir a essas cenas faz lembrar o

que Ecléa Bosi bem demarcou ao falar sobre o sujeito mnêmico: “Ele evoca, dá voz, faz

falar, diz de novo o conteúdo de suas vivências. Enquanto evoca ele está vivendo

atualmente e com uma intensidade nova sua experiência.”2

Dos palcos dos festivais a voz ecoa

Milton Nascimento teve seu nome revelado ao grande público na segunda

edição do FIC – Festival Internacional da Canção –, que a partir daquele ano de 1967

seria transmitido pela Rede Globo. O talento do artista chamou a atenção logo que saiu

a lista das canções selecionadas para esta edição do festival, pois três eram de sua

autoria: Travessia, Morro velho e Maria, Minha fé. Mas a chegada de Milton ao II FIC

2 Ecléa Bosi. O tempo vivo da memória: ensaio de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p.

44.

13

se deu de forma inusitada. O cantor-compositor já havia participado de um festival, o II

Festival Nacional de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior, defendendo Cidade

Vazia, canção de Baden Powell e Lula Freire, que acabou em quarto lugar na

classificação final. A experiência deste festival não foi das melhores, pois nele

prevalecia um espírito de disputa que fazia Milton acreditar que os artistas “queriam se

derrubar”3. Muito diferente, portanto, da solidariedade que encontrou em outros

cenários musicais. O festival da Excelsior provocou no artista a decisão de não mais se

apresentar naquele tipo de evento. No entanto, viria o II FIC e com ele uma artimanha

do cantor Agostinho dos Santos.

Eu tava em São Paulo e fiquei amigo do Agostinho dos Santos. Teve uma vez

que eu tava tocando num bar e de repente eu senti uma sombra aqui do lado e

sentou. Continuei tocando. Quando eu acabei, alguém botou a mão aqui [no

ombro] e falou: “bicho quem é você?”. Foi a primeira vez que eu ouvi alguém

me chamar de bicho. Era o Agostinho. Eu falei “Ah, meu nome é Milton, sou do

sul de Minas e tal...” Ele falou: “ de agora em diante aonde eu for você vai”. E

assim foi. Todos os lugares que ele ia, ele me levava, lá em São Paulo. Aí teve

um dia que ele foi lá na pensão onde eu morava e falou: “Milton, o negócio é o

seguinte, vai acontecer um festival internacional, com gente do mundo inteiro e

você vai ter que tá lá.” Eu falei: “Agostinho, eu não vou, depois daquele outro

festival que eu participei, eu não vou participar de festival nenhum”. (...)

Passados uns tempos, ele chegou na pensão e falou: “Arrumei um produtor pra

eu gravar um disco e falei de você e ele disse pra você gravar umas três

músicas, que a gente vai escolher uma pra sair no meu disco”. Fiquei todo

feliz. Tive vontade de falar: “Pô, vou gravar três e você só vai gravar uma?”

Mas não falei. (...) O tempo passou. Até um dia que... eu sempre ia ver o

programa da Elis, que era minha melhor amiga lá, apesar de eu não ser

conhecido. E a gente conversava muito. Um dia ela chegou e saiu da Record,

deu um pulo assim e falou: “Eu sabia!!”. Eu falei: “Sabia do que?”. “Ué, você

tá no festival do Rio”. Eu falei: “Mas eu não botei música no festival do Rio.”

Ela falou: “Ih, então tem outro Milton Nascimento”. Eu falei: “Não, mas assim

também já é demais!”. Saí de lá meio preocupado. Ela foi pra um lado e eu pro

outro. Eu desci a rua da Record. Aí eu ouvi uma risada, aí que a ficha caiu, né?

E [o Agostinho] falou assim: “E não adianta, tá tudo lá, as três músicas

passaram, isso só aconteceu com Vinicius de Moraes, o dono do festival tá

vindo aqui em São Paulo, porque todo mundo quer saber quem é esse

“paulista” que botou essas três músicas lá, e você vai!”.4

Tal como se passava com outros festivais de música popular, que se

multiplicavam por canais de televisão, o FIC se vertia numa espécie de passarela por

onde desfilavam propostas musicais inovadoras, gêneros musicais diversos, talentos

prontos para ser descobertos, sob aplausos ou vaias de plateias acaloradas. Na percepção

3“Milton Nascimento” (entrevista) In: Violeta Weinschelbaum. Estação Brasil: conversa com músicos

brasileiros. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 213. 4 Milton Nascimento em entrevista a mim concedida no Rio de Janeiro, em 17/07/2012. A entrevista foi

registrada por Mayara Andrade de Carvalho Pacheco.

14

dos músicos, a divisão em duas etapas, uma nacional e outra internacional5, era o

diferencial desse evento idealizado e dirigido por Augusto Marzagão. Justamente por

ser de âmbito internacional, o FIC possibilitava uma troca de experiências entre artistas

brasileiros e de outras paragens.

O próprio Milton recorda um dos artistas internacionais que participou daquele

festival, Quincy Jones: “Tem uma filmagem que o Quincy Jones fez aqui durante o

festival que eu cantei e ele fala umas coisas muito legais a meu respeito”6. E salienta a

importância de o FIC ser um festival internacional: “Eu tinha acabado de aparecer aqui

no Brasil. Era um festival internacional, meu nome tava correndo pra vários países. E

aí um produtor me chamou para fazer um disco, Courage, com arranjos do Eumir

Deodato.”7 O produtor era Creed Taylor

e o disco foi gravado nos Estados Unidos em

1968. Novelli, compositor e baixista pernambucano, que teve forte presença em alguns

discos consagrados de Milton Nascimento na década de 70, também frequentou os

espaços do FIC e a cena carioca daquele momento. A propósito, foi nos tempos do II

FIC que ele foi apresentado ao Milton através do arranjador e maestro Wagner Tiso, que

naquela época já residia no Rio de Janeiro. Em seu depoimento, Novelli dá a dimensão

dos encontros proporcionados pelo festival:

Eu tive oportunidade de conhecer através do festival internacional, aqui, Henry

Mancini, vários artistas famosos, músicos. Eu vi o Henry Mancini ficar

babando com o Toninho Horta tocando no violão, as músicas próprias. Henry

Mancini era um músico respeitadíssimo.8

Toninho Horta, que mais tarde ficou conhecido como um dos nomes vinculados

ao Clube da Esquina, teve duas músicas selecionadas para a mesma edição do FIC em

que Milton Nascimento se apresentou. Foram elas: Nem é carnaval, feita em parceria

com Márcio Borges, e Maria Madrugada, em parceria com Junia Horta. Esta última foi

defendida pelo grupo O Quarteto.9 Toninho Horta conhecia Milton desde Belo

Horizonte. Márcio Borges era, naquele momento, o parceiro mais constante de Milton

Nascimento. No palco do FIC se antevia, portanto, o que na década de 70 se

convencionou chamar de Clube da Esquina. 5 Zuza Homem de Mello. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed 34, 2003.

6 Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

7 Idem, ibidem.

8 Entrevista de Novelli concedida ao grupo “História e música: compondo identidades, fazendo histórias”,

no Rio de Janeiro, em 10/12/2010. Participaram dessa entrevista os integrantes Maria Abília de Andrade

Pacheco, Mateus de Andrade Pacheco e Valeska Barreto Gama, além da coordenadora do grupo, Profª

Dra Eleonora Zicari Costa de Brito. Também esteve presente o cantor e compositor Cayê Milfont. 9 Zuza Homem de Mello. A Era dos Festivais..., Op. cit.

15

O documentário A música audaz de Toninho Horta10

traz a informação de que

Paulo Tapajós havia ido a Belo Horizonte divulgar o festival, incentivando os artistas

locais a se inscreverem na competição. A projeção do nome de Milton Nascimento no

FIC, somada à presença de nomes como Toninho Horta, acabou colaborando para abrir

as portas do meio musical carioca para os artistas da cena da capital mineira. A partir

daí, muitos migraram para o Rio de Janeiro em busca de projeção para suas carreiras. A

concentração de artistas de todo o País na cidade, fez dela, na visão de Wagner Tiso11

,

um polo cultural de grande magnitude.

É bom lembrar que muitos artistas que passavam pelos palcos dos festivais

ganhavam projeção em múltiplos espaços. Entre esses, alguns assinaram contratos com

redes de televisão e chegaram a comandar programas que tinham a música como carro-

chefe, como foi o caso de Elis Regina. Revelada quando defendia a canção Arrastão de

Edu Lobo e Vinicius de Moraes, vencedora do I Festival Nacional de Música Popular da

TV Excelsior, em 1965, a cantora assinou contrato com a TV Record para apresentar o

programa O fino da bossa ao lado de Jair Rodrigues.12

Taiguara, assíduo frequentador

de festivais, apresentava o Fahrenheit 2000 na companhia de Eliana Pittman na TV

Tupi13

. Na verdade, naquela segunda metade da década de 60, o telespectador brasileiro

assistiu à invasão de uma variedade de programas musicais nas redes de televisão14

.

Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléia ganhariam o público com o programa Jovem

Guarda na Record. Eliseth Cardoso e Ciro Monteiro comandavam o Bossaudade,

também pela Record. E não nos esqueçamos de que os festivais eram,

fundamentalmente, programas de televisão e, dos canais de tevê, a música saltava para

as páginas de revistas especializadas, como a Intervalo.

Outros importantes festivais e casas de shows também se concentravam nas

cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, o que consolidou a intensa migração de artistas

de vários recantos do País para essas capitais. Nesse clima de efervescência cultural,

10

Documentário de Fernando Libânio, lançado em 2011. 11

A música audaz de Toninho Horta. Documentário de Fernando Libânio. 12

Cf. Mateus de Andrade Pacheco. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção.

Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em História da

Universidade de Brasília, 2009. 13

Cf. Maria Abília de Andrade Pacheco. Taiguara: a volta do pássaro ameríndio (1980-1996). Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em História da

Universidade de Brasília, 2012. 14

Cf. Marcos Napolitano. Cultura Brasileira: utopia e massificação (1950 / 1980). 2ª ed. São Paulo:

Contexto, 2004.

16

estreitavam-se laços entre artistas em meio a contingências que transcendiam as

contendas alimentadas pelos festivais. Novelli recorda que, logo que conheceu Milton

Nascimento, convidou o novo amigo para dividir um quarto na pensão onde morava15

.

Iniciava-se ali uma grande amizade. Com o convívio, as afinidades musicais seriam

descobertas e mais tarde a dupla presentearia o público com os frutos sonoros colhidos

de um árduo trabalho num cenário adverso e pouco glamouroso.

Nos relatos aqui transmitidos vimos, portanto, que em São Paulo Milton firmou

amizade com Agostinho dos Santos e Elis Regina. No Rio de Janeiro, com Novelli. Ao

longo do tempo, vários outros personagens se juntariam a esses em diversos espaços

frequentados pelos artistas nessas cidades. Novelli recorda a importância das reuniões

do movimento Musicanossa na cena musical carioca já naquele ano de 1967. Ali

aconteciam debates sobre os rumos da música brasileira e nasciam parcerias, como as

dele com Wagner Tiso e com os irmãos Paulo Sérgio e Marcos Valle. Milton

Nascimento também chegou a frequentar essas reuniões. Em seu depoimento, Novelli

lembra outros participantes e nos dá pistas da dimensão do Musicanossa:

... Luiz Cláudio, um cantor mineiro com uma voz linda, Mário Telles, que é

irmão da Sylvinha Telles, Alaíde Costa (...). Nós começamos a sair do

apartamento do Paulo Sérgio Valle e da casa dos pais do Marcos Valle para

um teatro em Ipanema, que se chamava Teatro Ipanema. Então era um lugar

para trezentas e cinquenta, quatrocentas pessoas. A gente podia reunir muito

mais gente. Não só músicos, como críticos de música, jornalista para divulgar.

E o Taiguara era um dos cabeças. Taiguara, Paulo Sérgio Valle, Mário Telles.

Eram da diretoria. Ronaldo Bastos. Eram tipo diretoria.16

Uma questão é clara: nos bastidores da vida de artista ou na corrida por um

lugar ao sol, relações profissionais e de amizade se estabeleciam. Vislumbra-se, daí,

uma socialidade (musical), “essa espécie de empatia comunalizada”17

. E, mesmo, uma

rede de solidariedade entre artistas que fizeram suas travessias rumo ao eixo Rio-São

Paulo.

Elis Regina foi o primeiro nome conhecido a gravar uma das composições de

Milton Nascimento, a Canção do Sal, no álbum Elis, de 1966. A cantora chegou a abrir

as portas do Fino da bossa para o amigo se apresentar. Milton conta que quando esteve

no Fino, vários colegas da pensão de estudantes onde ele morava foram ao programa

15

Entrevista realizada com Novelli. Op. cit. 16

Idem, ibidem. 17

Michel Mafesolli. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre:

Sulina, 2007, p. 198.

17

para prestigiá-lo. Na ocasião, ele ainda era desconhecido. Ao final de sua apresentação,

os aplausos foram esfuziantes – ao me relatar esse episódio, o artista desenha no rosto

uma expressão de apreensão para representar uma Elis assustada, que indagaria: “que

que é isso, Milton?”; ao que ele, com ar blasé, como se todo aquele barulho fosse muito

natural, responderia: “Não, Elis, são meus fãs!”. Antes de narrar esta história bem-

humorada, Milton destacaria: “Um dia ela me convidou para cantar no programa dela

na Record e o pessoal não quis. Ela falou: se ele não for cantar no meu programa, eu

também não vou.”18

Novamente, os laços de solidariedade e amizade entre artistas,

detalhe que, por vezes, apenas os relatos orais podem nos informar. Esta fala ainda nos

permite perceber que a arte de Milton Nascimento enfrentou certa resistência no circuito

artístico paulistano.

Nesse período, a capital paulista assistia a uma efervescência musical

fomentada tanto por canais de televisão, como a Record, quanto por uma movimentação

universitária. Esse circuito foi de grande importância para a imagem de artistas como

Elis Regina. Mesmo antes de se tornar conhecida, ela frequentava shows promovidos

pelo meio universitário no Teatro Paramount, que funcionava como aglutinador de

novos talentos que em breve se consagrariam definitivamente nos festivais da televisão,

como Chico Buarque, Toquinho, Edu Lobo e Taiguara. Entretanto, apesar de Milton ter

construído importantes amizades em São Paulo, a sua carreira não engrenou por lá. Isto

se deu até mesmo no cenário dos festivais. Em seu livro de memórias, Márcio Borges

conta sobre a decepção provocada pela desclassificação de uma composição sua em

parceria com Milton num festival em terras paulistanas:

O saldo daqueles tempos de São Paulo não foi muito bom nem para mim nem

para Bituca. “Irmão de Fé” foi desclassificada do festival logo na primeira

eliminatória. Foi uma grande decepção. Chorei de frustração e raiva, como

choraria um torcedor fanático que visse seu time perder uma partida decisiva,

justamente quando era favorito...19

A fala de Márcio Borges reverbera nas lembranças de Milton Nascimento. Para

ele, o período em que viveu em São Paulo foi marcado por dificuldades. Quando

conheceu Augusto Marzagão, por exemplo, o cantor-compositor passava por problemas

financeiros:

18

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit. 19

Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. 4ª edição – São Paulo:

Geração Editorial, 2002, p. 151 e 152.

18

Aí veio o cara do festival, o Augusto Marzagão, que era o nome dele. Aí

conversamos bastante e ele falou: “Bom, o negócio é o seguinte, você tem que

ir pro Rio, pega um ônibus, qualquer coisa, e fica num hotel perto do stand do

festival”. Eu falei: “Mas Seu Marzagão, o negócio é o seguinte, eu não tenho

dinheiro nem pra andar aqui em São Paulo”. Ele falou: “Não, eu te empresto.

Depois cê me paga”. Aí emprestou a grana, eu peguei o ônibus. E é uma coisa

que eu me lembro muito: a gente saindo de São Paulo, as luzes passando, São

Paulo ficando menor um pouco. Mas apesar de eu ter sofrido bastante em São

Paulo, eu não tinha raiva, nem tenho, de lá.20

De fato, foi a partir das experiências vivenciadas no circuito carioca que a

carreira de Milton Nascimento ganhou impulso e finalmente deslanchou. Abordar a

trajetória do cantor e de personagens como Novelli nos abre a via de compreensão do

fenômeno musical brasileiro dos anos 60 a partir do estudo das condições peculiares do

Rio de Janeiro que favoreceram a ambientação de determinados artistas naquela cidade.

E, para tanto, o FIC teve importante papel.

Mas voltemos ao depoimento de Milton Nascimento sobre sua proximidade com

Elis Regina. Segundo o artista, eles se conheceram no início dos anos 60, quando os

dois ainda não eram famosos. O encontro se deu numa festa na casa de uma cantora

chamada Luíza, no Rio de Janeiro. Naquela época, Milton ainda morava em Belo

Horizonte, mas tinha sido levado ao Rio, juntamente com Wagner Tiso, pelo compositor

mineiro Pacífico Mascarenhas, de quem Luíza gravaria uma canção.21

Chegaram,

inclusive, a participar da gravação do disco de Luíza fazendo coro numa faixa. Na festa,

Milton se impressionou: “Eu tive vontade de sair correndo, pois tava a nata, não toda,

mas tava uma nata lá.”22

Na ocasião, ele identificou Elis por conhecer um disco que ela havia gravado,

provavelmente o Viva a Brotolândia. Mas a cantora não tinha boas lembranças desse

LP, pois era um trabalho concebido como ressonância do estilo Celly Campelo,

estratégia habitualmente empregada pelas gravadoras para projetar os artistas iniciantes.

Ou seja, Elis Regina teria sua imagem trabalhada nos moldes Celly Campelo, tornando-

se a Celly da gravadora Continental. E, em que pese o êxito da gravação do primeiro

disco, o fato de o trabalho soar como cópia não agradava à artista.23

Isso explicaria o

episódio à saída da casa de Luíza, quando, cantarolando uma canção do repertório

daquele disco, Milton é prontamente censurado pela cantora: “Cala a boca, para com

20

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit. 21

Cf. Beatriz Coelho da Silva. Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação. São Paulo: Imprensaoficial, 2009. 22

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit. 23

Cf. Mateus de Andrade Pacheco. Elis de todos os palcos. Op. cit.

19

isso, esquece essa música, isso não existe!”24

O segundo encontro entre os dois se daria

tempos depois nos bastidores do II Festival Nacional de Música Popular Brasileira

(1966), quando Milton defendia a canção Cidade vazia e Elis já estava consagrada pela

vitória de Arrastão na edição anterior desse mesmo festival:

Eu ensaiei e saí por um corredor. E quando eu olhei assim, eu vi que era ela

que tava vindo. Aí eu peguei e abaixei a cabeça. Só sei que tinha aquele

barulho de tamanco, quando passou por mim. Aí de repente o tamanco deu uma

tamancada: pá! [Elis:]“Mineiro não tem educação não?”. [Milton:] “Não,

Elis, o negócio é o seguinte, é que todo mundo fica te enchendo a paciência, eu

não queria ser mais um”. Ela falou: “Não senhor, de manhã a gente diz ‘bom

dia’, de tarde ‘boa tarde’ e de noite diz ‘boa noite’. Isso é educação! E eu

quero que você vá a minha casa para cantar aquela música tua e do Wagner

que vocês cantaram lá na casa da Luíza”. Ela pega e começa a cantar a

música! Meu olho ficou desse tamanho! Ela virou pra mim, olhou e falou:

“Memória, meu caro”. E foi [risos]. E daí, quando eu fui pra casa dela, eu

resolvi mostrar as minhas músicas. E foi quando eu conheci o Gil, que tinha

chegado uma semana antes lá em São Paulo. E ela chamou ele pra ajudar a

escolher uma música e cantei umas vinte e tantas músicas e eles não chegavam

a nenhuma conclusão. O Gil jura que eu cantei três músicas, mas é mentira

dele. Aí uma hora ela falou assim: “Mas não tem mais nenhuma?”. E tinha,

não era das minhas preferidas não, mas tinha. Que depois virou das minhas

preferidas, Canção do sal. Cantei a Canção do sal pra ela, ela falou: “É

essa!”. (...) Aí aconteceu o seguinte: a gente sempre se encontrava na porta da

Record. Um dia ela chegou e perguntou pra mim: “Onde você vai passar o

Natal?”. Eu falei: Eu vou em Três Pontas, com a minha família”. Ela falou:

“Não, você vai passar no Rio de Janeiro com a minha família!”. (...) Descemos

no Rio Janeiro, fomos lá na casa dela, festa de Natal e troca de presentes...aí

uma hora ela pegou uma cadeira, botou na frente da minha, e começou a

contar umas coisas pelas quais ela tinha passado e começou a chorar. E nessa

hora eu tive a certeza que ali tava nascendo uma tremenda duma amizade. E foi

o que aconteceu, a vida inteira. Nós nunca brigamos. Ela, com apelido de

Pimentinha... mas comigo, sempre foi tudo maravilhoso. E então é aquele

negócio: todas as músicas que eu fiz e faço têm Elis no meio. E não tem jeito

de não ser. E nem eu quero que não seja.25

A narrativa de Milton Nascimento nos dá o tom de sua amizade com Elis

Regina. E os afetos não se limitariam à esfera pessoal. No arremate de sua fala

entrevemos ainda sua afinidade musical com a cantora. A voz e a maneira de cantar de

Elis Regina inspirariam Milton em suas composições. E as músicas de Milton

inquietariam a cantora, que declarou:

Eu gosto de cantar qualquer coisa dele. Porque tem gente que diz que, por

exemplo, as músicas do Gil combinam mais comigo. Quer dizer, parece que

foram feitas para eu cantar, entende? O Caetano fala isso: “você é a intérprete

ideal do Gil”. Agora, afinidade é um negócio incrível. Afinidade, eu tenho

afinidade com o Gil, mas eu tenho muito mais com o Milton. Quer dizer, eu

24

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit. 25

Idem, ibidem.

20

entendo tudo, o Milton não precisa nem botar letra numa música que eu já sei o

que ele quis dizer, entende? Eu tenho loucura pelo Milton.26

Mas poderia ser diferente? A identificação que tanto impressionava Elis

coincidia com o fato de que muitas das canções de Milton Nascimento tinham sido

feitas exatamente para ela cantar. Sua admiração por Milton não se limitaria ao patamar

da composição. É da intérprete a autoria da frase que ressoa em coro de admiradores do

cantor-compositor: “Se Deus cantasse, seria com a voz do Milton.”27

Os encontros

musicais entre os dois artistas se deram ao longo da carreira de ambos, mesmo quando

se aventuraram em novos voos. Sob esse prisma, as inquietações musicais que um

provocava no outro permitem pensá-los como parceiros musicais.

A identificação entre Elis e Milton passava ainda por vivências e referências

comuns. Por exemplo, os dois artistas tinham descoberto o gosto pelo canto ainda na

infância por meio de uma paixão comum: a voz de Ângela Maria. Mais tarde, ambos

trariam essa referência em variadas entrevistas, num encantamento que reverberaria na

maneira de interpretar. O canto emocionado da Sapoti serviu, pois, de escola para esses

artistas que já intuíam que era preciso cantar com o coração. Milton e Elis ainda

apurariam seus instrumentos vocais através da experiência de baile. Foram crooners e,

como tal, desenvolveram todo um jogo de cintura para agradar as plateias que

embalavam em pistas de qualquer salão.

Naquela edição do II FIC, Milton desejava reverenciar a amiga e musa,

entregando a ela o palco para que defendesse uma de suas canções. Sua vontade,

entretanto, não pôde se realizar, pois a Record não liberou Elis para cantar no evento.

Foi na época do FIC que outros importantes encontros aconteceriam na vida

artística de Milton Nascimento. O cantor estava no Rio de Janeiro quando teve seu

primeiro contato com um importante nome do jazz, o pianista Herbie Hancock, que

integrava o quinteto de Miles Davis, este último uma das paixões musicais de Milton.

Tá uma sala com vários músicos brasileiros, inclusive eu, e o Herbie com a

esposa, ouvindo todo mundo. Mas eu fiquei num cantinho assim. Aí alguém

falou alguma coisa no ouvido do Herbie, que ele fez um sinal para eu ir pra

perto dele. Eu fui e ele falou: “Toca aí pra mim”. Aí eu comecei a tocar e ele

26

Elis Regina. MPB Especial – Programa Ensaio. Produzido pela TV Cultura em 1973 e lançado em

DVD em 2004. 27

Cf. http://www.miltonnascimento.com.br/

21

pegou e falou assim: “Espera só um pouquinho”. Saiu, foi na rua, trouxe um

gravador e falou: “Agora você pode tocar”.28

Nos bastidores do festival Milton Nascimento ainda se tornou amigo de Eumir

Deodato, maestro brasileiro que já tinha uma carreira nos Estados Unidos naquele

momento, e da musicóloga Geni Marcondes. Pelas mãos de Eumir, Milton foi

apresentado a alguns nomes conhecidos da música. O primeiro deles foi Tom Jobim,

que o cantor-compositor define como “a glória de sua vida.” Eumir Deodato também

assinaria os arranjos para as músicas que Milton cantaria no festival, Travessia e Morro

Velho. Maria, minha fé seria defendida por Agostinho dos Santos, o responsável pela

presença de Milton naquela edição do FIC. Não por acaso, tanto Herbie Hancock quanto

Eumir Deodato participariam posteriormente do disco Courage, o primeiro de Milton

lançado nos Estados Unidos. Isso mais uma vez nos alerta para o quanto eram frutíferos

alguns encontros proporcionados no Rio de Janeiro naquele momento.

A participação do cantor-compositor no II FIC foi coroada com a presença de

duas de suas canções entre as finalistas: Travessia, que terminou o festival em segundo

lugar, e Morro velho, que ficou em sétimo. O primeiro lugar ficou com Margarida, de

Gutemberg Guarabira. Milton ainda recebeu o título de melhor intérprete dessa etapa

nacional do festival. Agora era um artista conhecido. Aquela edição do FIC assumiu o

status de marco nas memórias sobre a carreira do cantor. Mas é interessante notarmos

algumas singularidades sobre sua presença nessa tal “Era dos Festivais”, expressão

cunhada por Zuza Homem de Mello. Milton Nascimento figurava como uma revelação

nesse festival, mas não foi uma figura constante nesse tipo de evento. Pelo menos se o

compararmos a nomes como Chico Buarque, Taiguara, Elis Regina, Caetano Veloso e

Geraldo Vandré. Também foram sutis as suas participações em programas de televisão,

quando alguns de seus colegas de profissão chegariam não apenas a visitar os palcos

desse tipo de programa, mas também a comandá-los, como pudemos verificar

anteriormente. Porém, de maneira admirável, já nessa etapa inicial da carreira, Milton

deu passos lestos rumo a uma carreira internacional, considerando esse convite

surpreendente para gravar o disco Courage. Vale salientar que esse foi seu primeiro

contrato com uma gravadora, antes mesmo de assinar com a pequena Codil, por onde

sairia seu primeiro disco aqui no Brasil. Esses dados nos estimulam a pensar sobre as

trajetórias de artistas. Se não podemos ter reposta pronta para os motivos que fazem

28

Idem, ibidem.

22

com que um ou outro ganhe projeção através desse ou daquele espaço, seus percursos

evidenciam possibilidades de diferentes travessias.

***

Capturar um pouco da ambiência de um festival, mesmo que uma centelha. Eis o

que o registro em disco, espécie de guardião da memória, permite. Alguns LPs

dedicados aos festivais trazem parte dos repertórios que ganharam seus palcos. É o caso

do disco intitulado II Festival Internacional da Canção, gravado ao vivo e lançado pela

Codil. Ao ouvi-lo, somos envolvidos, por um instante, naquela atmosfera e então

intensifica-se nossa experiência de audição de canções como a Travessia, que marcou a

presença de Milton Nascimento no II FIC e o início de sua parceria com o letrista

Fernando Brant.

Primeiro, o silêncio, quebrado pelos acordes do violão. A presença solitária do

instrumento instala uma atmosfera de intimismo e insinua uma sutil melancolia àquela

canção. Logo viria a voz, que em tom grave emitiria o primeiro verso: “Quando você foi

embora”. Desenha-se, então, um lamento, quebrado pelos aplausos entusiasmados que

acolhem a voz de Milton Nascimento. Ao fundo, a orquestra acomoda a melodia,

lançando seus primeiros sons. Ativam-se memórias de outros festivais: juntos, a voz do

artista, os aplausos do público e a orquestra compunham uma performance de festival.

Aquele som orquestral se fazia como uma espécie de assinatura desse tipo de evento. Os

aplausos davam o tom de uma torcida pronta para defender, junto com o intérprete, sua

canção predileta.

Numa escuta apurada de Travessia, nota-se um caminho melódico e poético

instigante. O drama anunciado nos primeiros versos da canção é personificado pelos

tons mais graves da voz de Milton Nascimento, como sugere a melodia da primeira

parte da canção:

Quando você foi embora

Fez-se noite em meu viver

Forte eu sou mas não tem jeito

Hoje eu tenho que chorar

Minha casa não é minha

E nem é meu este lugar

Estou só e não resisto

Muito tenho pra falar

23

Mas então o caminho melódico muda de rumo e busca notas ascendentes, que

levam consigo os versos no refrão:

Solto a voz nas estradas

Já não quero parar

Meu caminho é de pedra

Como posso sonhar

Sonho feito de brisa

Vento vem terminar

Vou fechar o meu pranto

Vou querer me matar

Aparentemente, as sensações provocadas pelo drama de uma separação se

adensam nessa parte de Travessia. Mas na performance de Milton Nascimento

vislumbra-se uma superação prestes a vir. A melodia exige do cantor-compositor os

tons mais agudos de sua voz. E ele não se faz de rogado. Seu canto se avoluma,

presenteando o público com a beleza de seu timbre, agora em evidência. Interessante é o

efeito produzido por uma nota presente numa frase melódica que se repete nesse refrão

e que coincide com as primeiras sílabas das palavras “pedra” e “pranto”. São os ápices

da melodia. É justamente essa nota que a voz de Milton segura por instantes num

prolongamento. E quando a voz sobe, o público é arrebatado. Numa imagem sonora, a

voz superava a “pedra” interposta naquele caminho melódico e, assim, o que poderia se

erguer como paredão para intérpretes menos tarimbados, esmigalha-se em mero

pedregulho. Lançando mão de uma imagem mais dramática, podemos vislumbrar um

mergulho no precipício, onde, ao invés da queda, o artista se erguesse em surpreendente

voo. Em suma, o esforço vocal compensado pela beleza das notas atingidas metaforiza a

superação do drama comunicado, que se desfaz na sequência:

Vou seguindo pela vida

Me esquecendo de você

Eu não quero mais a morte

Tenho muito que viver

Vou querer amar de novo

E se não der não vou sofrer.

Já não sonho

Hoje faço com meu braço meu viver.

A canção cumpria o que já trazia em seu título: Travessia, palavra colhida da

obra de Guimarães Rosa, cuja carga semântica informa, como em Grande Sertão:

Veredas, esse cruzar, esse atravessar, associado ao campo sentimental, melódico,

24

semântico, territorial ou cultural. Nessa gravação registrada no LP do FIC, a canção é

arrematada com o artista cantando repetidas vezes e em prolongamentos: “Solto a voz,

solto a voz, solto a voz”. Desvelava-se, assim, a beleza de uma voz que se tornaria o

enigma de um canto do Brasil.

Fig. 1 – Milton e Fernando Brant no II FIC

E Travessia guardaria ainda algumas curiosidades. Excitados com a novidade, os

meios de comunicação da época buscaram se informar sobre seus autores. A surpresa

viria de um dado sobre Fernando Brant: aquela era sua primeira e única composição. O

letrista lembra que, de início, resistiu à convocação de Milton Nascimento para debutar,

naquele momento, como compositor, embora já carregasse consigo uma bagagem de

referências musicais e literárias. Acabou aceitando o desafio. Porém, à provocação

artística que sofreu de Milton, respondeu com outra, quando recusou a sugestão de tema

indicada, conforme explica:

Porque na verdade ela tinha uma introdução [cantarola aquela parte feita

apenas ao violão], aí ele cantava logo depois disso: “Quem quer comprar meu

sonho”. Aí que entrava a melodia. Porque ele tinha uma ideia de um vendedor

de sonhos, uma espécie de caixeiro viajante, que passava pelas cidades

vendendo suas coisas, ficava ali um período, aí arrumava uma namorada,

25

aquela paixão, depois ia embora para outro lugar. Quer dizer, era um cara que

ia deixando amores a cada cidade. Mas na hora de fazer, eu não senti isso. Aí

eu fiz o que no momento, há quarenta e tantos anos atrás, eu achei que era.

[risos] Tanto que aí mudou...29

O sucesso de Travessia no Festival Internacional da Canção credenciou

Fernando Brant como compositor. Entretanto, algumas inquietações se levantavam:

quais seriam suas próximas letras? Teriam elas a mesma força de Travessia? Esta

canção, feita numa parceria entre amigos, poderia ter-se restrito aos círculos mais

íntimos, sem repercussões maiores que as das confraternizações particulares, caso não

alçasse os voos que alcançou no FIC ou não fosse gravada. A experiência de Travessia

foi lembrada pelo compositor em crônica que homenageia os quarenta anos da canção:

(...) Não consigo descrever minha reação, à noite, depois da orquestra e do

aplauso, dos cumprimentos e abraços, da vitória gloriosa. Tenho certeza que,

mesmo nas comemorações noturnas, no despertar do dia seguinte e na volta

para casa alguns dias depois, eu não tinha consciência plena da transformação

que me atingiria, do rumo que se abria para mim e meus parceiros, da travessia

que eu e Milton Nascimento estávamos iniciando. No dia 22 de outubro de 1967

eu encontrei minha profissão.30

A curiosidade sobre o novo compositor, com relação ao que viria depois de

Travessia, seria saciada rapidamente, pois o primeiro disco de Milton, intitulado Milton

Nascimento, aquele lançado pela Codil ainda no ano de 1967, traria a canção Outubro,

nova parceria com Brant: “Ele me mandou essa segunda música. Aí eu já tinha uma

responsabilidade. Na época eu achava o seguinte: vou caprichar nesse negócio porque

agora não [é apenas] para meu amigo, agora vai ser gravada e tal.”31

A fala do

compositor explica o seu próprio trânsito até a profissionalização: antes, tinha feito a

letra para uma canção de seu amigo Bituca. Com Outubro, fazia uma letra para o artista

Milton Nascimento. Não era mais o compositor “amador” de Travessia. Havia se

transformado num compositor profissional. Fernando Brant instiga minha atenção em

relação a Outubro ao dizer: “... é que na época eu achava, não sei se é, que era uma

outra visão de Travessia. Era outra maneira de viver.”32

29

Fernando Brant em entrevista a mim concedida no dia 13 de março de 2013 em Belo Horizonte. Contei

ainda com a presença de minha orientadora Dra Eleonora Zicari Costa de Brito. E com Mayara Andrade

de Carvalho Pacheco, responsável pelo registro dessa entrevista. 30

“Uma noite, há quarenta anos atrás” In: Fernando Brant. Casa Aberta. Sabará: Ed. Dubolsinho, 2012, p.

206. Casa aberta é um livro onde selecionaram crônicas escritas por Fernando Brant para o jornal Estado

de Minas. 31

Fernando Brant em entrevista a mim concedida. Op. cit. 32

Idem, ibidem.

26

Tanta gente no meu rumo

Mas eu sempre vou só

Nessa terra desse jeito, já não sei viver

Deixo tudo, deixo nada, só do tempo

Eu não posso me livrar

E ele corre para ter meu dia de morrer

Mas se eu tiro do lamento um novo canto

Outra vida vai nascer

Vou achar um novo amor

Vou morrer só quando for

Ah! Jogar o meu braço no mundo

Fazer meu outubro de homem

Matar com amor essa dor

Vou fazer desse chão minha vida

Meu peito que era deserto

O mundo já era assim

Tanta gente no meu rumo

Já não sei viver só

Foi um dia, é sem jeito que eu vou contar

Certa moça me falando, alegria

De repente ressurgiu

Minha história está contada

Vou me despedir.

Nos primeiros versos, esboça-se um novo drama, o da solidão. Mas o lamento se

converte em canto, anunciando a superação do passado, e finalmente o eu lírico se

liberta, pronto para viver novas histórias. Da situação anterior, portanto, o que restou

foram memórias, buriladas pelo poeta num mergulho interior que o converteu em

senhor de sua própria história. Tal visão confere uma dimensão revolucionária ao spleen

romântico. Neste processo de interpretação, verifica-se a produtividade da palavra

“revolução” na letra, como revela o verso “fazer meu outubro de homem” e o próprio

título da canção, Outubro, mês de nascimento dos dois parceiros musicais e também o

mês da Revolução Russa, que tanto inspirou as esquerdas políticas mundo afora.

Lembremos que vivíamos uma ditadura militar naquele ano de 1967. Outubro pode,

então, ser lida como hino revolucionário, numa construção estilística bastante

sofisticada, considerando que, numa primeira leitura, a revolução parecia se dar apenas

no plano pessoal. E, mesmo neste patamar, é notável a complexidade da letra, pois o

aprisionamento dos sentidos da canção num discurso amoroso não simplificaria o

processo interpretativo. A propósito, não é possível aprisionar os sentidos de uma

canção, pois estes se moldam às sensibilidades e leituras de seus ouvintes e intérpretes.

27

Volta à minha cabeça a ideia de Fernando Brant de que Outubro veicula uma

nova leitura de Travessia. E de fato é isso mesmo. Travessia conta sobre a superação de

um drama, possivelmente uma separação amorosa. Outubro conta sobre um sujeito que,

reterritorializado, está pronto para amar novamente. Ambas trazem uma ideia de

superação, relacionada a planos que, embora diferentes, na verdade se completam. Se

experimentarmos juntar as duas, mais que apresentarem percepções diferentes, parecem

se complementar. É como se a personagem de Outubro fosse a mesma de Travessia,

tempos depois. Celebra-se assim a esperança em novos começos.

Visto dessa forma, torna-se reveladora a localização dessas duas faixas no disco

de Milton Nascimento. Travessia abre o disco, provavelmente para apaziguar a

ansiedade do público em ouvir o grande sucesso de seu novo ídolo. Contudo, esta seria

uma hipótese redutora, construída numa ótica um tanto quanto mercadológica. Ora, se

Travessia abre o disco, Outubro o fecha; e que dizer da distância entre as duas canções,

pavimentada de um repertório de belas composições e parcerias de Milton

Nascimento?33

Numa leitura mais comprometida, temos que o tempo compreendido

entre a audição de uma canção e outra converte-se em metáfora do processo de

reconfiguração das sensibilidades do sujeito. Desta forma, o público pode partilhar

desse amadurecimento do eu lírico numa dimensão mais realista, com a escuta do disco

por inteiro, tomado como obra coesa e una.

No aniversário de vinte anos de Travessia, Fernando Brant “aprontou” um

presente para Milton Nascimento e seu público: na maioria das vezes, o letrista coloca

versos em melodias já prontas; naquela ocasião, inverteria essa ordem, com uma letra

entregue ao parceiro para musicar. O título escolhido foi Vendedor de sonhos,

reativação da memória do tema que Milton concebera inicialmente para Travessia. A

canção, gravada por Milton com a participação de Paul Simon, integrou o disco

Yauaretê, de 1987. Forçoso é retomarmos o dado de que Travessia é uma expressão

trazida do universo de Guimarães Rosa para mostrarmos outra homenagem que ocorre

neste novo trabalho de Milton Nascimento: Yauaretê, nome que intitula o disco que

33

Esse disco ainda tem as seguintes canções: Três Pontas (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), Crença

(Milton Nascimento/Márcio Borges), Irmãos de fé (Milton Nascimento/Márcio Borges), Canção do Sal

(Milton Nascimento), Catavento (Milton Nascimento), Morro Velho (Milton Nascimento), Gira, girou

(Milton Nascimento/Márcio Borges), Maria, minha fé (Milton Nascimento). Interessante é que já nesse

primeiro disco, temos uma série de canções que ficaram como clássicos do repertório de Milton. Na

verdade, nenhuma dessas canções passa despercebida quando se lembra do repertório do artista. Algumas

delas foram interpretadas também por outros artistas, caso de Três Pontas, que foi gravada por Taiguara e

Morro Velho e Canção do sal, gravadas por Elis Regina.

28

abriga Vendedor de Sonhos, remete a um conto do mesmo Guimarães Rosa. Pensar no

diálogo entre essas canções nos guia à própria relação entre parceiros, às provocações-

estímulos, à metalinguagem. Um universo se descortina. Canções que guardam

memórias de outras, remetendo a uma intimidade e contando histórias. Tudo isso

compartilhado com o público não apenas por meio dos discursos das próprias canções,

mas também através de informações pinçadas de matérias de jornais, entrevistas,

biografias, especiais de televisão e até teses.

Voltemos a Outubro e nos deixemos ser levados pelo violão que introduz a

canção. Em seguida, o tom dramático da voz grave. Novos ingredientes se integram à

ambiência sonora: o som orquestral, a presença do Tamba trio, que naquele momento já

era Tamba 4. Os recursos musicais empregados lembram os de Travessia, embora sejam

distintos. A orquestra comenta a melodia, por vezes acentuando uma atmosfera

dramática, num tom de apreensão, noutras vezes destacando a voz de Milton

Nascimento, que aguça as emoções ao ascender em prolongamentos. E a voz que se

eleva também se recolhe, em intimismo, como se encarnasse a autorreflexão esboçada

na letra. De repente, aquela ambiência sonora muda de cor. A densidade composta se

desfaz por novo tratamento da orquestra, que imprime ares mais leves, como no

momento que segue ao verso “certa moça me falando, alegria/ de repente ressurgiu”.

Soa como um despertar. Um céu cinzento cortado pelos primeiros raios solares.

A orquestra se assemelha a uma onda. Nos momentos em que se recolhe, deixa

a voz em primeiro plano, acompanhada somente pela base rítmica. Mas esse novo

ambiente é quebrado por uma frase do piano ou pelo retorno, ora suave, ora vigoroso, da

orquestra. Há instantes em que o som do Tamba se avulta, trazendo um sopro de jazz

para aquele cenário. Essas idas e vindas de uma onda musical criam a impressão de que

a orquestra comenta a voz de Milton, estabelecendo com ela um diálogo. Nestes

instantes, a voz do intérprete se revela um instrumento musical portentoso capaz de

verbalizar palavras.

Os arranjos desse primeiro disco de Milton foram assinados por Luiz Eça, do

Tamba Trio. A presença do Tamba foi comemorada pelo cantor-compositor, que tinha

grande admiração pelo grupo. Esses arranjos conferiam ao LP Milton Nascimento a

sonoridade dos discos identificados com a emergente “Moderna MPB”. Tal vertente

acenava para a linguagem da bossa nova, símbolo de música moderna naqueles anos 60,

29

quando a avidez pela inserção na modernidade povoava os debates políticos,

econômicos, culturais, estéticos34

. Refletindo sobre as novidades musicais posteriores à

bossa nova, Santuza Naves destaca: “Não se tratava, entretanto, da criação de estilos

que a suplantassem, e sim, mais propriamente da utilização de novos temas a partir de

derivações do ritmo e da harmonia bossa novista”35

. Um depoimento esclarecedor a esse

respeito é o de Edu Lobo. Pertencente a uma geração de artistas afetos da bossa nova, o

compositor declara:

Então, quando eu comecei a trabalhar em música, aprender com o pessoal da

bossa nova, acho que uma saída que eu devo ter encontrado, sem muita

programação – porque foi uma coisa mais intuitiva do que racional –, uma

maneira de eu fazer alguma coisa que não fosse repetir o que estava sendo feito,

foi misturar essa informação que eu tinha de música nordestina com toda a

escola harmônica que tinha aprendido na bossa nova. E a minha música

começou a se desenvolver dessa maneira. Acho que foi uma saída para ter uma

assinatura, para ter uma característica própria (...) Eu acho que concorreu então

toda essa lembrança das músicas, das canções, dos frevos...Eu comecei a fazer

frevos e baiões, o que não era comum na época.36

Algumas dessas novas vertentes musicais ficaram conhecidas pela referência ao

jazz e receberam um novo rótulo, de samba-jazz. Exemplo dessa tendência é o grupo

instrumental/vocal Tamba trio, cujo primeiro disco, lançado em 1962, “fez a cabeça” de

muitos nomes que viriam posteriormente, como o próprio Milton Nascimento e Novelli.

Além do Tamba, outros trios e grupos instrumentais se espalharam por espaços musicais

como o Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, e o Juão Sebastião Bar, em São Paulo.

Somem-se a esses espaços circuitos menos conhecidos e menos pesquisados pela

historiografia, como o de Belo Horizonte, que assistiu a experiências como a do

Berimbau Club. Este templo do jazz e da bossa nova tinha como uma de suas atrações o

Berimbau trio, grupo formado por Paulinho Braga na bateria, Wagner Tiso ao piano e

Milton Nascimento no contrabaixo.

34

“A partir desses acontecimentos, novos agenciamentos foram sendo condicionados entre os humanos,

todos apontando para o sentido de uma “descoberta do planeta”. Maravilhas tecnológicas como a

invenção do vídeo-cassete e a conquista da lua, portanto, cada qual a seu modo e com sua extensão

própria, contribuíram para transformar fortemente a vida dos homens e mulheres que viveram aquele

período. Em busca de conexão, muitos corpos redefiniriam valores em vastos campos da vida social. Esta

redefinição, por sua vez, se faria presente graças a um conjunto de esforços voltados para o prospecção de

novas linguagens.”(Edwar de Alencar Castelo Branco. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a

invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005, p. 53 e 54.) Ou seja, um novo mundo que se

descortinava exigia linguagens capazes de representá-lo. Castelo Branco toma experiências da arte de

vanguarda de meados dos 1960 para perceber tal fenômeno. 35

Santuza Cambraia Naves. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 25 a 26. 36

Edu Lobo. “Morando com Villa-Lobos” In: Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho e

Tatiana Bacal. (Org.). A MPB em Discussão: Entrevistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 224.

30

Ao comentar o primeiro disco de Milton em depoimento dado na época do

lançamento, Edu Lobo destaca:

E hoje Milton com seu disco pronto, com os arranjos de Luizinho Eça, tudo

igualzinho ao seu sonho em Três Pontas. Hoje, Milton, dono de seu som, do seu

violão, da sua voz, sem pressa de grandes sucessos, continua ouvindo e

admirando Tom Jobim, João, Luizinho, Dori Caymmi e Marcos Valle e

achando que o estudo é seu único caminho, o caminho de sua música. Sua

música bonita, séria, tranquila, como ele – a música de Milton Nascimento.37

Em sua fala, Edu Lobo apresenta o disco de Milton Nascimento, procurando

situá-lo numa corrente de prestígio na música brasileira por onde transitam alguns

nomes apreciados por Milton. Não obstante, deixa entrever a preocupação do cantor em

burilar o talento rumo a uma personalidade própria. Vale destacar: “Milton, dono de seu

som, do seu violão, da sua voz”.

A sonoridade do álbum do cantor-compositor, somada à performance de

Travessia no FIC, dá pistas disso. A versão de estúdio de Travessia se inicia com uma

sonoridade próxima à da bossa nova. O uso moderado dos recursos vocais compõe o

ambiente intimista com um canto que, não sendo impostado, dispensa ornamentos

vocais como vibratos. A propósito, o vibrato é praticamente ausente em toda a carreira

do artista. O que não significa que a voz de Milton Nascimento se aprisione em

interpretações intimistas, pois, quando necessário, ela atinge notas altíssimas e então é

expressão de força, exposição de sensibilidades, paixões, angústias etc.

Nessa versão de Travessia, é empregado um recurso interessante no refrão: o

eco. Quando o artista solta a voz nas estradas, seu canto vem de longe e ressoa

ocupando espaços. Algumas vezes, parece vir do alto de uma montanha, outras vezes,

do interior de uma igreja colonial – imagens distintas, portanto, da paisagem praieira

bossa-novista. Identificam-se no uso da voz, as conquistas musicais de Milton, e seus

recursos vocais são imprescindíveis para a execução de seu projeto. Desta forma, pode-

se afirmar que a voz é um elemento constituinte da linguagem musical miltoniana. Por

essa via, é perceptível a paixão por grandes vozes, como Ângela Maria, por música de

cinema, orquestras, música religiosa e pelo jazz. A desenvoltura com que o cantor

interpreta múltiplos estilos musicais em muito se deve à tarimba de crooner. Todos

esses elementos combinados, retirados de seu baú musical recepcionam, finalmente, o

37

In “Milton Nascimento por Edu Lobo. Texto da edição original reproduzido no encarte de seu

relançamento em 2002 pela Dubas. Nessa versão o álbum recebeu o nome de Travessia.

31

novo e o traduzem. “Os poucos fragmentos escritos de uma história das hibridações

puseram em evidência a produtividade e o poder inovador de muitas misturas

interculturais.”38

, já lembraria Néstor Canclini.

Ao entrar no palco do II FIC e interpretar Travessia, Milton Nascimento

atualizava a tradição das grandes vozes, imprimindo à canção uma dicção

surpreendente. Naquele instante, o canto despojado de ornamentos conferia destaque à

voz, mostrando um apurado domínio da respiração que possibilitava trabalhar o volume

e fazer uso de prolongamentos. Desta forma, a voz de Milton Nascimento aglutinava

numa só interpretação as grandes vozes que o cantor escutou, numa leitura informada

por parâmetros estéticos atuais. Noutras palavras, aquele canto reconvertia uma tradição

a um novo cenário sonoro.39

Era uma música que inquietava, e inquieta, justamente por

ativar no ouvinte memórias musicais não prontamente identificáveis, mas pressentidas.

Em suma, é um canto que não pode ser enquadrado numa ou noutra vertente das quais o

cantor se nutriu e, neste caso, o amálgama musical insinuaria, antes, uma linha de fuga.

Se consultarmos os livros de memórias sobre o período dos festivais e os

trabalhos acadêmicos a respeito, deles saltarão algumas nomenclaturas para designar

experiências sonoras que tiveram lugar naquela época: música de protesto, bossa nova,

o nascente tropicalismo – que marcou o festival da Record no mesmo ano de 1967 com

as premiações de Domingo no parque, de Gilberto Gil, em segundo lugar e Alegria

Alegria, de Caetano Veloso, em quarto. Chegou-se mesmo a se falar em “músicas para

festivais”. No entanto, se atentarmos não para os movimentos musicais, mas para o

variado painel de práticas vigentes, depararemos com vertentes não tão nítidas a ponto

de fazer jus a algum rótulo, mas, ainda assim, fundamentais para a compreensão do

período, porque reveladoras de traços comuns entre vários artistas que fizeram

experimentações semelhantes. Nesse exercício, chegaremos a uma vertente em especial,

38

Néstor García Canclini. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª ed., São

Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008, p. 22. Creio que para clarearmos a presença do

fragmento de texto de Canclini seja interessante evocarmos a forma que elabora sua noção de hibridação:

“entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam

de forma separa, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (idem, ibidem, p. 19.)

Deve-se destacar que Canclini afirma que essas práticas discretas não são puras, pois passaram por

processos anteriores de hibridação. 39

A ideia de reconversão também vem do processo de hibridação proposto por Canclini: “Mas

frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na

vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio (uma fábrica, uma

capacitação profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri-las em novas condições de

produção e mercado”. (idem, ibidem, p.22)

32

pavimentada no legado das grandes vozes, e aí encontraremos os nomes de: Milton

Nascimento, Elis Regina, Clara Nunes, Nana Caymmi e Taiguara, esses crooners que

ganharam os palcos dos festivais dispostos a cruzar temporalidades com suas maneiras

peculiares de cantar. Como se vê, a sigla MPB, composta apenas de três letrinhas,

parece insuficiente para abarcar vasto e diversificado universo sonoro da música

brasileira, por isso deve ser problematizada.

A remissão à imagem de um crooner ajuda a entender o perfil desses artistas.

Alguns deles fizeram dos bares e bailes da vida a escola onde desenvolveram habilidade

e versatilidade vocais, passeando por repertórios de gêneros diversos para manter o

público aceso. Desenvolvida essa versatilidade, não se filiariam exclusivamente a uma

ou outra corrente musical em experiências posteriores, porque sabiam manipular

diferentes especiarias em seus caldeirões musicais. Transgrediriam, assim, qualquer

tentativa de organização da experiência musical em escaninhos ou linhas evolutivas. Era

preciso, sobretudo, cantar e, mais que isso, manter vivo o legado musical dos grandes

nomes do passado. Vale dizer, para quem tinha amplos recursos vocais era previsto

explorar as diferentes possibilidades do canto, com estudos técnicos aprofundados e

exercício de versatilidade que alçariam o intérprete à condição de co-autor dos arranjos.

Desta forma, a voz passaria a compor a harmonia, em franco diálogo com os

instrumentos.

A configuração aqui enquadrada põe em relevo a figura do intérprete.

Interessante notar que tanto Taiguara quanto Milton Nascimento eram também

compositores. No tocante a Milton, é notável o lado intérprete como dado importante a

interferir na sua maneira de compor. Diz o artista:

Eu gosto de compor, gosto muito do violão, piano. Agora, aquilo que eu sinto,

que é do fundo mesmo, é cantar. E aí, tem coisas que me tocam e que não são

minhas. Quando eu comecei a compor foi por necessidade de cantar uma

música que não estava sendo feita.40

Milton assume o lugar de intérprete-compositor e esse é um traço interessante no

cenário dos festivais. Não era apenas um compositor defendendo uma canção de sua

própria autoria, era também o intérprete, que tinha domínio de sua ferramenta, a voz.

Muitos dos compositores que ali se revelaram seriam conhecidos mais pelo talento para

compor do que propriamente para cantar. Se pensarmos em intérpretes que se

40

Milton Nascimento em entrevista a Regina Echeverria e Tárik de Souza. “É preciso gritar”. Revista

Veja (01/11/1978)

33

destacaram por alguma inovação na forma de cantar, perceberemos que as memórias

sobre os festivais guardaram uma constelação de vozes femininas. Esse fenômeno não

ocorre com tamanha força no caso masculino. Cantar seria coisa de mulher? Fica aí uma

questão para se pensar.

Ao longo dos anos, fortaleceu-se na MPB a figura do compositor que canta.

Observa-se, porém, que em certos casos esta categoria de compositor nem sofre

cobranças do público e da crítica em relação a sua maneira de cantar. A prática de anos

naturalizava a sua presença em nosso cenário musical. Se bem pensarmos, a partir do

final da década de 60 há um enfraquecimento da figura do intérprete masculino, aquele

que vive do canto e não compõe. Na década de 60 temos figuras como Jair Rodrigues.

Já a de 70 seria presenteada com nomes como Ney Matogrosso e Emílio Santiago. Mas

se observarmos o panteão da MPB, os exemplos não se estendem muito para além

desses. Já os compositores que também cantam se espalham por aí. É esclarecedor o

trecho de uma entrevista de Clodo Ferreira ao Correio Braziliense em que o compositor

é questionado: “... Acredita que tem futuro como intérprete?”

Sem querer me comparar, mas se você for ao show do Bob Dylan para ouvir um

cantor, não vale. Mas ele criou uma magia com o público. Dificilmente, vou

melhorar a minha voz para competir com outros cantores muito melhores. No

entanto, gosto de ouvir Nelson Cavaquinho, Tom Jobim ou Chico Buarque.

Nunca vi ninguém cantar com a emoção que Chico interpreta algumas

composições dele. Se eu tiver futuro cantando, será nessa linha.41

No caso de Milton Nascimento seria diferente. Já nos primeiros registros em

disco a beleza de seu timbre e forma de cantar chamaram a atenção. O seu lugar de

intérprete-compositor colocam em foco também a sua voz. É o que se evidencia, por

exemplo, no texto de autoria do crítico Ralph J. Gleason – fundador da revista Rolling

Stone. Presente na contracapa do disco Courage, o texto funciona como um release,

informando ao público e à crítica sobre aquela nova voz:

(...) Sua voz tem aquele calor que imediatamente a gente associa ao sentimento

latino e a algo mais, desde há muito ausente do panorama musical norte-

americano. Possui um leve toque do romance sofisticado dos cantores populares

franceses, bem como dos cantores românticos italianos da década de 30, nos

Estados Unidos. É um toque indefinível – mais um sentimento que algo

específico – mas que está igualmente presente. É comumente observado em

“slows”, gênero dos mais românticos, onde a voz tem chance de deixar crescer

um timbre, uma vez segurado. Nas variações mais brilhantes de um tempo

41

Clodo Ferreira em entrevista a Irlam Rocha Lima e Severino Francisco. “Cantador de Brasília”.

Correio Braziliense (13/05/2012)

34

musical, Nascimento entra com uma leve influência do “jazz”, que tempera a

seu gosto.42

E Ralph Gleason já visualiza a vocação internacional da música de Milton

Nascimento:

Um dos aspectos mais agradáveis no cenário da música norte-americana é sua

diversificação. Há música para todos os gostos e há sempre oportunidade para

algo que seja bom em matéria de música. Por muito que se admire os Beatles ou

Jefferson Airplane, por exemplo, a música que atrai e que comunica algo não

tem, necessariamente, que estar ligada a guitarras elétricas. O que se espera que

ela possua é seriedade de concepção e de execução – de que é exemplo notável

a música que Milton compôs e interpreta neste álbum. Neste mundo de tão

variados povos, há agora mais um cuja música é capaz de “falar” todos os

idiomas. E isso só traz grande alegria!43

A cada lançamento de disco de Milton Nascimento, percebe-se, com relação à

crítica, ao lado do interesse pelas novidades do repertório, uma atenção recorrente ao

desempenho do intérprete, com aquela maneira de cantar que ganhou o mundo.

Acrescenta-se a esse ingrediente o arranjo, figura chave na música do artista.

Frequentemente, quando o cantor-compositor interpreta em shows ou gravações um

clássico de seu repertório, não se experimenta apenas a ansiedade pela escuta daquela

canção, mas pela forma que o intérprete irá manejá-la. E por vezes Milton Nascimento

surpreende o público, trilhando percursos inesperados para antigas canções. Desta

forma, mantém intacto o estado de inquietude. É impressionante como o seu canto até

hoje passa por um processo de lapidação e descobertas, num permanente renovar-se e

inovar-se. A cada disco, inovações que, com o passar dos anos, tornaram-se assinaturas

vocais, como as maneiras com que faz uso dos falsetes e o emprego do recurso que

apelidou de “primos” (desdobramentos da própria voz gravados em coro). Mesmo com

esses recursos, que passam a compor uma “gramática do canto miltoniano”, o artista,

volta e meia, se arrisca, trazendo alguma variação para os recursos já apresentados em

sua caminhada discográfica. Surpreende, assim, até mesmo os mais habituados a sua

linguagem musical. Fenômeno semelhante acontece em suas apresentações ao vivo.

Como revela a “cantautora” Simone Guimarães, ao recordar-se de uma performance de

seu padrinho musical: “... teve um dia que eu tava na coxia. Falei, esse cara hoje está

encapetado, ele vai cantar muito! Aí ele deu uma nota que foi aquela martelada no céu!

42

Texto da contracapa do LP Courage. 1969. 43

Idem, ibidem.

35

Sabe quando ele dá aquela coisa que vai lá e ressoa... Não tem pra onde mais ressoar

aquilo. É uma explosão!”44

.

Cantar, dançar, simplesmente ser Crooner

A fotografia congela um instante: o artista, portando um smoking, ajeita a

gravata borboleta. No rosto, emoldurado pelos dread locks, esboça um leve sorriso. A

imagem se assemelha a um reflexo em espelho, que capta o momento que antecede a

entrada do artista no palco. Trata-se da fotografia de capa do álbum Crooner, lançado

em 1999. Nada de créditos na capa, apenas a fotografia de Milton Nascimento, selo

suficiente para autenticar o trabalho. A imagem de um rosto já bem conhecido

funcionaria como assinatura. A indumentária escolhida viria ajudar a compor a figura de

crooner, trazendo lembrança de

outras fotografias que retratavam

os tempos em que o desconhecido

Milton andava com seu smoking

sempre impecável, pronto para

atender à convocação para animar

quaisquer bailes da vida. Voltar a

vesti-lo, nesse contexto, significa

despir-se da imagem de glória para

encarnar simplesmente o crooner.

Ou, de outro modo, significa

coroar de glórias o antigo crooner,

numa homenagem a todos esses

profissionais.

44

Simone Guimarães em entrevista a mim concedida em Brasília (15/02/ 2013). Contei ainda com a

participação de Eleonora Zicari Costa de Brito, que registrou essa entrevista.

Fig. 2 – Capa do álbum Crooner

36

Num texto escrito a convite da revista Palavra, Márcio Borges tece relato

emocionado, preparando nosso espírito para audição do novo disco de seu amigo

Bituca. Recortemos aqui certa passagem:

Um discão de baile. Disco e baile de ouro. Quando escutei, ainda dentro do

estúdio, ainda sem mixagem definitiva, fiquei lhe dando uns cutucões, cada vez

que entendia uma entrelinha (ou não entendia outra) No final, desisti dos

cutucões e compreendi tudo. Neste final de milênio, nesta troca de datas tão

simbólicas, Milton Nascimento deixou-se subjugar completamente pelo antigo

crooner Bituca, o garotão magricela dos anos sessenta, tocador de contrabaixo e

cantor de músicas das paradas, nos velhos bailes da vida. E resolveu, numa

singular volta ao passado, nos brindar desde já com esse disco que é o Bailão de

Réveillon do Ano 2000. Nada de grandes ou sequer pequenas considerações

político-ideológicas. Nem sutis ou mesmo grosseiros matizes sócio-ecológicos.

Muito menos revelações místico-religiosas de qualquer tipo ou tamanho.

Apenas boa e velha música de dançar juntinho, Waldir Calmon, Ferranti &

Teicher e Ray Coniff revisitados por olhos de quimeras bituquianas.45

Ouvir um disco e se deixar embalar numa contradança, eis a proposta do álbum

Crooner, que reverberaria no show homônimo. Os arranjos das canções, assinados por

Wagner Tiso, criam uma atmosfera de orquestra de baile e, enriquecidos dos corais e

backing vocals, estimulam a imaginar casais em rodopios num salão imaginário. A voz

aveludada emite os versos da primeira canção, “Aqueles olhos verdes, translúcidos,

serenos...”. Combinada com a leveza dos arranjos, a interpretação de Milton sugestiona

a aproximação dos corpos em uma dança a passos lentos. Nessa mesma levada, somos

conduzidos a Certas coisas, de Lulu Santos, e Only you – sucesso do grupo The Platters

e presença confirmada em qualquer cena de filme ou de festa nostálgica que busque

recriar a atmosfera de bailes dos anos 50 e 60. De repente, uma quebra. O suingue de

Mas que nada, de Jorge Ben, estimula o balanço dos quadris em um “samba que é misto

de maracatu/ É samba de Preto Velho/ Samba de Preto Tu”. Frenesi, de Alberto

Dominguez, traz um toque latino e esquenta o salão através de uma interpretação

contagiante de Milton Nascimento. Brincando, a voz se torna severa nos versos

seguintes: “Quiero que vivas solo para mi/ Y que tu vayas por donde yo voy/ para que

mi alma sea nomás de ti,/ besame com frenesi.” Assim cantados, os versos soam como

um ultimato à entrega num beijo ou aos passos daquela dança. Nova quebra de percurso.

Milton canta Não sei dançar, composta por Alvin L. e sucesso de Marina Lima de 1991.

A voz embargada e em baixo volume entoa os versos: “às vezes eu quero chorar/ mas o

dia nasce e eu esqueço”. O ambiente agora é de intimidade, propício para acolher a

cabeça da parceira junto ao peito e, num descompasso, não propriamente dançar, mas

45

Márcio Borges. “Bituca no bailão de réveillon 2000”. Revista Palavra. Nº2 (maio de 1999), p. 107.

37

apenas se deixar arrastar, lentamente, nas vagas daquele instante: “Eu não sei dançar/

Tão devagar/ Pra te acompanhar”. Os caminhos de Crooner continuam a provocar

surpresas, trazendo canções lentas e dançantes, hits frescos, como Resposta, do grupo

Skank (álbum Siderado, 1998), e outros sucessos nem tão recentes, mas que estão

cravados em nossas memórias musicais, como Beat It, de Michel Jackson (álbum

Triller, de 1983), além de canções não tão lembradas, como Ooh Child, de S. Vicent,

sucesso dos anos 70 do grupo vocal The fire Stairstelps.

Num sobrevoo pelo repertório de Crooner, evidencia-se a versatilidade de

Milton Nascimento ante um baú de canções de diversos estilos, algumas das quais

surpreendentes. Percebe-se que, mesmo as canções compostas em temporalidades

distantes, comunicam-se entre si, pela forma com que são conduzidas, pelos arranjos

onde são emolduradas. Assim, os versos que se elaboram em vocabulários tão distintos,

como os de João de Barro para a canção Aqueles olhos verdes – “Aqueles olhos tristes/

Pegaram-me tristeza,/ Deixando a crueza/ de tão infeliz amor” – e os de Lulu Santos

em Certas Coisas – “Eu te amo calado/ como quem ouve uma sinfonia/ de silêncio e de

luz” –, são postos em diálogo. Em relevo o fato de as duas canções tratarem de

sensibilidades abarcadas no universo romântico. O efeito produzido pelos arranjos de

Wagner Tiso e pela interpretação de Milton Nascimento desfaz as fronteiras temporais

estabelecidas entre Aqueles olhos verdes e Certas coisas. Estamos diante de outro

tempo, que não é lá, nem cá. É o tempo de uma dança, em tênue suspensão da

cotidianidade.

Crooner saiu pela Warner, fruto de uma concepção do próprio Milton, que

também assinou a direção artística ao lado de Tom Capone. Produzido por Guto Graça

Mello, o disco teve Marilene Gondim, empresária de Milton à época, na produção

executiva. Para rememorar os tempos de crooner, o cantor-compositor contou com seu

parceiro de bailes desde a adolescência em Três Pontas: Wagner Tiso, responsável pelos

arranjos, orquestrações e direção musical. O álbum foi gravado e mixado no Blue

Studios (Rio de Janeiro). A orquestra contou com arranjos e regência de Graham

Preskett e a gravação foi realizada em Londres no lendário Air Lyndhurst Studio,

famoso pelas gravações dos Beatles. Essa é uma informação interessante, já que Milton

é um declarado admirador da banda inglesa.

38

O repertório tem como marca principal a diversidade: Aqueles olhos verdes

(Nilo Manendez/Adolfo Utrera; versão: João de Barro), Certas coisas (Lulu Santos),

Only you (Buck Ram/Ande Rand), Mas que nada (Jorge Ben), Frenesi (Alberto

Dominguez), Não sei dançar (Alvim L.), Resposta (Samuel Rosa/Nando Reis), Beat it

(Michel Jackson), Se alguém telefonar (Jair Amorim/Alcyr Pires Vermelho), Rosa

Maria (Anibal Silva/Eden Silva), Castigo (Dolores Duran), Ooh Child (S. Vicent),

Lágrima flor ( Billy Blanco), Barulho de trem (Milton Nascimento), Lamento no morro

(Antônio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes) e a faixa-bônus com o pot-pourri composto

pelas canções O gato da Madame (Armando Nunes/Carim Mussi), Edmundo (versão:

Aloísio de Oliveira) e Cumanã (Versão Aloísio de Oliveira).

O álbum Crooner permitia a Milton Nascimento rememorar os tempos de

cantor da noite e a um só tempo transpor essa experiência para o cenário atual com a

inclusão no repertório de algumas canções mais recentes, como Resposta, Certas coisas,

Não sei dançar. Tal diversidade consolida a imagem do crooner como intérprete com

habilidade para transitar por diferentes territórios da canção:

Os crooners são verdadeiros “diplomatas da canção”: circulando com

desenvoltura por vários gêneros musicais, demolem as barreiras que opõem o

antigo ao novo, o tradicional ao moderno, o sofisticado ao popular. Sua marca é

a versatilidade e sua função é fazer dançar, cantando e emocionando casais num

espaço muito propício ao romantismo.46

Os bailes e boates conduzidos pelos crooners e músicos funcionaram como sua

escola de formação. Foi ali, na informalidade, que alguns dos grandes nomes de nossa

música tiveram seus aprendizados musicais. É o que percebemos, por exemplo, no

depoimento de Novelli sobre a descoberta de seu talento para tocar o instrumento que

lhe rendeu fama, o contrabaixo. Na época, início dos anos 60, o artista era crooner da

banda Nouvelle Vague em Pernambuco e o grupo tinha contratado um baixista para a

primeira apresentação que fariam na televisão em Recife. Na hora da apresentação, uma

surpresa: a ausência do baixista. A solução adotada revelaria algo singular:

Então, ao invés de eu cantar, pra não ficar aquele buraco, a gente fez a música

instrumental, e eu peguei o baixo pra fazer figuração. Só que eu descobri qual

era o mistério. Ele é afinado em quartas e quintas. Então, eu não sei por que

motivo, eu descobri que a corda solta, sol, quando você prende na terceira

corda, quando você dá a nota, ela é o dó. Sol, dó, fá, si bemol, mi bemol, lá

bemol[demonstrando no braço]. Aí eu descobri a mecânica da coisa. [risos]

Naquele dia eu fiz uma bolha de sangue nesses dedos aqui. E principalmente

46

Maria Abília de Andrade Pacheco. Taiguara: a volta do pássaro ameríndio. Op. cit., p. 24.

39

nesses três aqui. Bolha de calo, bolha de sangue! Aí você vai tocando, vai

sofrendo e vai endurecendo, vai calejando. A partir do calejar, você começa a

tirar som do instrumento. É por isso que você ouve esses baixistas de jazz,

aqueles negões americanos, “ferindo a nota”.47

O depoimento de Novelli comunica-se com os de outros artistas, como o

próprio Milton Nascimento, que também teve que aprender a tocar o contrabaixo às

pressas para integrar o grupo instrumental Berimbau Trio em Belo Horizonte48

. Os

aprendizados dessa vida de artista inspirariam os versos da canção: “Foi nos bailes da

vida ou num bar em troca de pão/ que muita gente boa pôs o pé na profissão/ de tocar

um instrumento e de cantar.”49

Foi por essa via que vários artistas visitaram gêneros

diversos, como bolero, samba-canção, mambo, música romântica internacional em seus

“bailes-escola” e assim puderam trazer para sua arte a versatilidade adquirida nessa

experiência, mostrando-se abertos a recentes descobertas musicais. Assim, ao ouvir o

álbum Crooner, percebemos que às antigas referências musicais de Milton Nascimento

juntam-se informações sonoras dos anos 80 e 90, advindas do universo do pop e do

rock, por exemplo. Na entrevista que realizei com o cantor-compositor, conversamos

sobre uma possível conexão entre o seu interesse por gêneros musicais diversos e as

vivências como crooner. Em depoimento, o artista destaca a versatilidade que se espera

de um cantor da noite:

Eu comecei a ser crooner com 14 anos de idade. Eu com o violão e a voz. O

Wagner com acordeom e um pessoal legal de música, que tinha lá em Três

Pontas. Agora, tinha tudo quanto é espécie de música de tudo quanto é país. E

as pessoas gostavam, e o crooner tem que cantar o que as pessoas gostam.

Então, tem muito a ver.50

Tocar de tudo seria o qualificativo do crooner que o ajudaria a compor sua

identidade artística. Ao manusearmos o encarte do álbum Crooner, deparamos com algo

curioso: a cada página virada, letras de canções cravadas sobre fotografias que retratam

Milton Nascimento. Cada fotografia foca Milton de um ângulo: numa, aparecem os

lábios, noutra, os olhos escondidos entre cabelos, as mãos, um pé calçado. Ao final, a

mesma foto da capa revela o rosto inteiro e traz os créditos do disco. Vale lembrar que

as fotografias são de autoria de Cafi, o mesmo que fez a capa do álbum Clube da

Esquina, de 1972, e de outros discos ao longo da carreira de Milton. O trabalho de capa

de Crooner foi assinado por Rico Lins. O recurso utilizado no encarte funciona como

47

Entrevista com Novelli. Op. cit. 48

Cf. Beatriz Coelho da Silva. Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação. Op. cit. 49

Nos bailes da vida. (Milton Nascimento/Fernando Brant) 50

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

40

um mosaico em que as peças são dadas aos poucos. Cada uma traz consigo canções, que

representam as partes daquele todo. Juntas, em sua diversidade, compõem o artista

Milton Nascimento. Insinua-se por meio desse jogo de fotos a própria multiplicidade de

referências presentes na música de Milton, tanto em âmbito nacional quanto

internacional. Esse perfil multifacetado se comunica com os de outros artistas

brasileiros e de nossa música, também composta a partir de variadas referências

sonoras.

Fig.3 – pelas mãos escorrem músicas.

Nesse mesmo encarte, cada detalhe informa a respeito das memórias de Milton

durante sua época de crooner. Ao ouvirmos esse disco, ecos da memória vêm à tona,

tanto pela presença de canções de tempos atrás, quanto por alguns sons e participações

especiais que compõem a ambiência dos bailes de sempre. Crooner faz das lembranças

mais remotas matéria-prima para uma criação artística contemporânea. O tratamento

dado às canções evidencia o rompimento da tessitura do passado pelas notas do

presente. Lágrima Flor, composição de Billy Blanco, é um bom exemplo disso. Na

ambiência sonora temos a orquestra, a bateria de Lincoln Cheib, o teclado de Wagner

Tiso e os metais de Walmir Gil, François, Vittor Santos e Nahor Oliveira. Um

ingrediente especial é a programação de teclados (Marcio Lomiranda), que por frestas

lança um ou outro som marcadamente eletrônico, moderno, efeito que dá um ar

contemporâneo à canção, como se fosse uma assinatura atual para o clássico de Billy

Blanco. Intervenções como essa dão a entender que o passado é dinâmico, dependendo

do olhar de quem o mira. “O retorno do passado nem sempre é um momento libertador

41

da lembrança, mas um advento, uma captura do presente.” 51

Voltemos ao encarte do

CD e miremos os agradecimentos e dedicatórias. Teremos aí outros elementos das

memórias que aos poucos se configuram nesse álbum, espécie de “disco-relato”:

Dedico ao TAMBA TRIO e também a Duilio Cougo e seu conjunto. W’s Boys

de Alfenas, Luar de Prata, Conjunto Holiday, Berimbau Trio, Pacífico

Mascarenhas e conjunto SAMBACANA. Sue Saphira e todos que a cercam.

Carlos e Lúcia. E todos os músicos da noite.

Agradecimento especial a Fausto Silva (Fautão) e Cynara (Quarteto em Cy) e

também a Paulinho Braga, Hevius Villela, Nivaldo Ornelas, Célio Balona,

Aécio Flávio, os Borges, os Brant, os Bastos, os Tiso Veiga, Doctor

Penetration, Joan Alvise, Eduarrrrdinho (in english), Hermínio Bello de

Carvalho, Elza Soares, MIS, Maria Graça Teixeira, Marlene D. Macarinha,

Tavinho Bretas, Zizigalinha, Remo Brandalise, Cláudia Zettel, Iracema Gomes

e a turma do Blue ( numtointeindeindo...)

Temos aí marcos memoriais de Milton Nascimento sobre os tempos em que

atuou como crooner, personagens desse período e referências musicais que o

inspiraram. A ideia do disco teria vindo de uma participação no programa de televisão

Domingão do Faustão, daí a remissão ao apresentador nos agradecimentos.52

Na

dedicatória aparecem grupos que se tornaram referência para Milton Nascimento, como

o Tamba Trio, e outros em que o cantor atuou como crooner e músico na sua

adolescência em Três Pontas – Luar de Prata, Duilio Cougo e seu conjunto – e

posteriormente noutras cidades: em Alfenas – W’s Boys –, em Belo Horizonte -

Conjunto Holiday, Berimbau Trio e Sambacana.

Em participação no programa Ensaio, da TV Cultura, Milton Nascimento e

Wagner Tiso recordam os tempos de Luar de Prata, o primeiro conjunto que integraram.

Era um grupo “mais vocal”, como destaca Milton, que tocava boleros, sambas-canção,

rock e The Platters.53

Também participavam do grupo os amigos Paulo, Carlinhos, Vera

e Dida. Este último foi homenageado por Milton no álbum ...E a gente sonhando, de

2010, conforme se lê na dedicatória: “Este CD é uma homenagem a Sebastião

Gonçalves Salles (Dida) que sempre esteve à frente de seu tempo”.54

A presença de

Only you no disco Crooner remete à época do primeiro conjunto, Luar de Prata, nome

retirado da marca do violão que Milton havia “roubado” de sua mãe: 51

Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das

Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 9. 52

Cf. Maria Dolores Pires do Rio Duarte. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Rio de Janeiro:

Record, 2006. 53

Milton Nascimento &Wagner Tiso. Programa Ensaio. TV Cultura (1995). Lançado em 2011 pela

Warner. 54

Neste disco, Milton revela talentos contemporâneos de sua cidade, Três Pontas.

42

Percebi que o carteiro trazia algo embrulhado e tive a sensação de que tinha a

ver com música. Não lembro se assinei ou não o papel, mas levei o pacote pro

meu quarto. Era um violão, mas não era pra mim, era pra minha mãe. Foi o

primeiro e único roubo de minha vida [risos].55

Atiçado por aquela novidade, o menino seguiu com o violão para seu quarto e lá

foi descobrindo os mistérios daquele instrumento. Quando se sentiu pronto, tocou e

cantou para mãe. É com muita emoção e carinho que o artista normalmente se refere à

mãe, inclusive quando o assunto é música. Suas primeiras apresentações foram ao lado

de Lília, que cantava em festas populares acompanhada do filho na sanfona, presente da

madrinha de Milton. Na época do Luar de Prata, Milton Nascimento cantava e tocava o

mesmo violão, agora incrementado por um sistema elétrico desenvolvido pelo pai Zino,

que trabalhava com eletrônica.56

Algumas das preferências de Milton Nascimento e

Wagner Tiso compunham as escutas de outros nomes contemporâneos a eles e que mais

tarde se revelariam como artistas a exemplo de Chico Buarque:

...E muita música, todo tipo de música, não só porque viajei, mas porque eu

ouvia muito rádio. E tocava na época música francesa, muita música latino-

americana, muita música americana. E brasileira, especialmente na época de

Carnaval, em que tocavam aqueles sambas, aquelas marchas. Sambas e marchas

eram feitas para o Carnaval, depois do Carnaval não tocavam quase. Aí tocavam

os samba-canções, os boleros, Nelson Gonçalves, Ângela Maria. Mas eu

gostava mais da música de Carnaval, de sambas e marchinhas. Mas eu ouvia

muito rádio e tinha essa variedade enorme de músicas na cabeça. Pelo fato de

também ter morado na Itália e pelo fato da cultura francesa ser muito presente

na formação da geração dos meus pais, ouvia bastante a música francesa, muito

Edith Piaf e, mais tarde, Jacques Brel, Charles Aznavour. Eu ouvia isso. E

depois a primeira safra do rock, com Elvis Presley, Little Richard e aquela gente

toda. E eu cantava aquilo tudo, imitava The Platters, Only you, The great

pretender...Até o surgimento da bossa nova. Aquilo para mim foi uma ruptura

com tudo. 57

No depoimento de Chico Buarque, além de percebermos escutas compartilhadas

com Milton e Wagner, temos indício da importância do rádio no acesso a tal repertório.

Na casa de Milton Nascimento, o rádio também tinha lugar cativo. Foi através desse

eletrodoméstico que conheceu algumas vozes que o afetaram para sempre, como Ângela

Maria. O artista chegou a ser locutor da ZYV36, Rádio Clube de Três Pontas. A locução

em rádio virou até mesmo tema de uma de suas canções: “Caríssimos ouvintes,

obrigado/ Pela atenção a mim tão dispensada/ Nossa programação se encerra agora/

55

“Milton Nascimento” (entrevista) In Violeta Weinschelbaum. Estação Brasil... Op. cit., p. 205. 56

Cf. idem, ibidem. 57

Chico Buarque. “Eu já quis ser João Gilberto e Guimarães Rosa.” In: Entrevistas. Santuza Cambraia

Naves, Frederico Oliveira Coelho e Tatiana Bacal. (Org.). A MPB em Discussão: Entrevistas. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 165.

43

Mas de teimosa volta amanhã”58

. Em texto que reflete sobre a música na “era do

rádio”, Negrão de Mello nos informa sobre a variedade de sons que aquela “caixinha de

música” espalhava aos quatro ventos:

De fato, é neste período que as paisagens sonoras do nordeste, “... se a gente

lembra só por lembrar...” coexistem, por exemplo, com a mensagem passional

que vem do sul, “...eu gostei tanto, tanto quando me contaram ...”. Entrementes,

convivem também na “caixinha de música”, os boleros, as guarânias, outros

tantos sambas abolerados, versões de hits norte-americanos e, claro, as

marchinhas carnavalescas, várias impulsionadas pelas chanchadas de ocasião,

“... todo mundo leva a vida no arame...”, outras eternas, “...Taí eu fiz tudo pra

você gostar de mim...”(...) Impossível a todos nomear, Dalva, Marlene,

Emilinha, Ângela, as irmãs Batista, Orlando Silva, Francisco Alves, Jorge

Goulart, Cauby, a lista é imensa “nós somos os cantores do rádio...”59

Uma das figuras dos anos 50 lembrada em Crooner é Dolores Duran, de quem

Milton gravou a canção Castigo. Com tratamento semelhante ao de Lágrima Flor, a

mensagem romântica de Dolores é comunicada em interpretação comovente de Milton

Nascimento: “A gente briga/ Diz tanta coisa que não quer dizer/ Briga pensando que

não vai sofrer/ Que não faz mal se tudo terminar.” Interpretar Dolores reforça o desejo

de conservar o lugar da artista nas memórias da música brasileira.60

Cantar sua obra é

uma das maneiras de mantê-la presente. A audição de Castigo na interpretação de

Milton Nascimento pode instigar parte do público a partir em busca de outras canções

compostas e interpretadas por Dolores. Alguns ouvintes, por terem reativadas suas

afeições pela artista; outros, por terem sido apresentadas a ela naquele instante e se

surpreenderem. Essa se torna, então, mais uma das funções do intérprete: apresentar ao

público variados compositores e nele instigar a procura por tesouros musicais

referendados na temática do disco. Em Crooner, Milton toma posse de seu lugar de

intérprete. Os curiosos que desejarem aprofundar a experiência de escuta e se

debruçarem na discografia de Dolores Duran se surpreenderão com a intérprete versátil

que visita gêneros diversos e canta em variados idiomas, ou seja, bem diferente da

imagem de compositora que soube se expressar tão bem sobre as angústias amorosas,

como frequentemente vem representada nos diferentes meios de comunicação. Na

58

Rádio experiência (Tunai/Milton Nascimento) Gravada no disco Encontros e Despedidas, de 1985. 59

Maria Thereza Ferraz Negrão de Mello. “Canta que a vida é um dia”. Memórias, paisagens sonoras e

cotidiano na era do rádio. In: Eleonora Zicari Costa de Brito, Mateus de Andrade Pacheco, Rafael Rosa

(orgs). Sinfonia em prosa: diálogos da história com a música. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 91. 60

Como afirma Catroga, a memória é seletiva. Sendo assim,“ela nunca poderá ser um mero registro, pois

é uma representação afectiva, ou melhor, uma re-presentificação, feita a partir do presente e dentro da

tensão tridimensional do tempo. E, nesta, o futuro é ligado ao passado por um fio totalizador e

teleológico”. (Fernando Catroga. “Memória e História” In: Sandra Jatahy Pesavento. (org.). Fronteiras do

Milênio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p 46).

44

verdade, Dolores gravou poucas canções de sua autoria, embora, curiosamente, sejam

essas as composições que mais marcaram sua carreira. Sua discografia vem corrigir essa

injustiça, mostrando uma artista inquieta, difícil de ser rotulada. Os projetos musicais de

Dolores assemelham-se aos do crooner. A artista chegou a gravar dois discos com essa

proposta: Dolores Duran canta para você dançar... , de 1957, e o Dolores Duran canta

para você dançar nº2, de 1958. Projetos como estes nos informam sobre a circulação

musical da cena dos anos 50.61

A variedade de gêneros serviria de referência para

artistas como Dolores, mas também para os ouvintes da época, alguns que ainda nem

sabiam que seriam as futuras estrelas de nossa música, caso do próprio Milton

Nascimento, Elis Regina, Clara Nunes.

Apesar de difundir música para todos os cantos do País no cenário dos anos 50,

o rádio também impunha alguns limites aos seus ouvintes, até mesmo por questões

tecnológicas, que impossibilitavam a boa transmissão de algumas estações. Lembremos

do chiado apavorador, sinal de que a frequência de uma estação estava pronta a

escapulir, “sair do ar”. Nessas horas, alguns malabarismos com a antena do aparelho

acendiam a esperança de se manter a rádio sintonizada. E isso não apenas naquelas

décadas, mas nas seguintes. É uma vivência que ainda pode ser experimentada e que

certamente marcou os apaixonados pelo rádio. E as limitações de acesso à programação

das rádios não parariam por aí. Canções que atiçavam os ouvidos demoravam a ser

tocadas novamente. De outras não era fornecido o nome do intérprete, dos

compositores, nem o título. Mas alguns ouvintes, futuros artistas das décadas seguintes,

encontrariam soluções bastante engenhosas para usufruírem ao máximo as músicas que

61

O repertório dos dois discos é composto por variados hits. Além das letras das canções, o CDs que

reeditam a obra de Dolores, lançados pela EMI na caixa Os anos dourados de Dolores Duran – 50 anos

depois, ainda trazem o gênero musical de cada canção. No primeiro CD temos: Scapricciatiello (F.

Albano/P. Vento), baião; Por causa de você (Tom Jobim/Dolores Duran), samba-canção; Oho Aha (Heinz

Gieltz/Kurt Feltz), fox; Quem foi (Nestor de Hollanda/Jorge Tavares), samba-canção; Feiura não é nada

(Billy Blanco), samba; Que murmuren (Rafael Cárdenas/Ruben Fuentes), bolero; Coisas de mulher

(Chico/Baiano), samba; Viens (Gilbert Bécaud/Charles Aznavour), rumba; Conceição (Donga/Jair

Amorim), samba-canção; Se papai fosse eleito (Billy Blanco), samba; Mi último fracaso (Alfredo Gil),

bolero; Camelô (Billy Blanco), samba; Only you (A. Rand/ B. Ram), blue; Estatuto de boite (Billy

Blanco), samba. No segundo CD o repertório é composto por: Onde estará o meu amor (Lina Pesce),

samba-canção; Sabrá Dios (Álvaro Carrillo), bolero; An affair to remember (Harry Warren/Harold

Adamson/Leo McCarey/ T. Chandler), fox; Não me culpe (Dolores Duran), samba-canção; Love me

forever (Gary Lynes/Beverly Guthrie), calypso; Conversa de botequim (Vadico/Noel Rosa), samba;

Estranho amor (Garoto/David Nasser), samba-canção; Nel blu dipinto di blu, Volare

(Modugno/Migiliacci), fox; Esquecimento (Nazareno de Brito/Fernando César), bolero; Escurinho

(Geraldo Pereira), samba-choro; Sur ma vie (Charles Aznavour), fox; Solidão (Dolores Duran), samba-

canção; Viva meu samba (Billy Blanco), samba; Mes mains (Gilbert Bécaud), bolero-mambo.

45

jorravam sem parar de seus aparelhos de rádio. É o que percebemos no relato de Milton

Nascimento sobre a forma que ele e Wagner Tiso registravam de ouvido as canções que

mais gostavam e a que tinham acesso somente através do rádio:

O som do rádio não era lá essas coisas. Aí, quando a gente ouvia uma música

que a gente gostava, a gente copiava a letra, outro escrevia a melodia, mas era

difícil pegar a harmonia. Ou a gente esperava um dia tocar de novo, mas

mesmo tocando de novo não era muito fácil. Então a gente criava as

harmonias. E isso pra nós, tanto pra mim quanto pra ele, foi tão forte quanto a

amizade, quanto isso, quanto aquilo e tal, porque a gente aprendeu a tocar as

coisas de dentro da gente mesmo, numa música que a gente às vezes nem sabia

de quem era.62

A avidez pelas canções que tocavam no rádio acentuava a sensação de

deficiência do aparelho e forjava nos ouvintes soluções criativas que permitissem uma

interação com a música de acordo com as suas expectativas, prolongando-se, desta

forma, a experiência musical. Entre as práticas voltadas para a consolidação de uma

memória produtiva da canção, isto é, de uma apropriação da canção mediante a sua

reprodução musical, estão a fixação da letra e da melodia, de forma a ser possível cantá-

la em público numa roda de violão e, indo mais além, de apresentá-la em bailes com

acompanhamento de conjunto – e, neste caso, noções de harmonia eram fundamentais.

Some-se a tudo isso o aporte de informações sobre o compositor e as lendas que cercam

a origem de determinada canção para se ter uma ideia do esforço do intérprete e seu

grupo ao assumirem o ofício de animar os salões. No tocante a Milton Nascimento e

seus parceiros, observa-se que, por via transversa, foram provocados a fazer diferente

algo a que não tinham o devido acesso, o que, ao longo do tempo, constituiu-se numa

marca autoral reconhecida na eloquência criativa, capaz de produzir improvisos, arriscar

nos arranjos e ousar na harmonia. Essas são características que os acompanhariam vida

afora. Atualmente, quando se fala em Clube da Esquina, uma das coisas que chamam

atenção é justamente o apuro orquestral a um tempo erudito, popular, original,

folclórico, personificado, comunitário, local, do mundo.

Talvez esse relato de Milton Nascimento nos ajude a aproximar da compreensão

de suas buscas pelo inusitado, inclusive quando visita canções de outros autores. Nessas

releituras, o artista procura um caminho próprio. A caça pelo lugar diferente se dá

também na relação com a maneira de cantar. O canto precisa ser lapidado e Milton

encontrou na vida de crooner a sua melhor escola. É o que se evidencia em seu

62

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op.cit.

46

depoimento a Violeta Weinschelbaum, quando menciona a experiência do conjunto W’s

Boys: “Nunca fui a favor de professora de canto, tinha a impressão de que todo mundo

que fazia aula de canto saía com a mesma voz. Então esses bailes, em que a gente

tocava das dez da noite às cinco da manhã, foram minha grande escola, não só de voz,

mas de música.”63

Na verdade, sua experiência formal com música se limitou a poucas

aulas de piano com a mãe de Wagner Tiso. O gosto pelo inusitado era compartilhado

com Wagner. Assim, referências como Tamba Trio chamaram a atenção justamente por

isso:

Ainda nesse início dos anos 60, em Alfenas, ganhei o primeiro disco de Bossa

Nova. Minha mãe chegou de uma visita a meu irmão, em Belo Horizonte, com

um embrulho. “Vou fazer uma surpresa para vocês”, disse. E botou um disco

com um som maravilhoso, novo, que nunca tínhamos ouvido. Era o elepê do

Tamba Trio, Avanço, com Luiz Eça no piano, Bebeto no baixo e Hélcio Milito

na bateria. (...) Minha mãe havia ouvido, achado diferente, pensou que íamos

gostar, já que éramos metidos a diferentes. Com esse disco conhecemos um

pouco mais de bossa nova e a possibilidade de juntar o clássico com o samba,

que o Luizinho fazia muito bem porque havia estudado em Viena.64

Visualizamos na dedicatória do álbum Crooner a menção ao Tamba Trio. Mas a

homenagem não se ateria a isso. Algumas lembranças a encorpariam, como a presença

de Mas que nada, canção que também compõe o repertório do disco Avanço do Tamba.

Na gravação de Crooner, Mas que nada conta com a participação especial de outra voz,

a de Bebeto – que também toca flauta. A performance do integrante do Tamba Trio

surge como eco de memórias sonoras do grupo. A ambiência dessa faixa dialoga com a

bossa nova. Ao final da canção o trombone de Victtor Santos lança uma frase de A

felicidade. Pela fresta vem Jobim, outra das referências de Milton Nascimento.

E os ecos da memória não cessam, provocados por outras participações

especiais, como a do grupo vocal Os cariocas, presente nas canções Rosa Maria e

Lamento no morro. Os Cariocas se configuram como mais uma referência, aquela que

63

“Milton Nascimento” (entrevista) In: Violeta Weinschelbaum. Estação Brasil... Op. cit., p. 208 64

Beatriz Coelho da Silva. Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação. Op. cit., p. 34. Em texto que apresenta a

Coleção Aplauso, da qual o livro de Beatriz Silva faz parte, Hubert Alquéres explica que é um projeto de

memória com nomes de importantes artistas. Para esse fim selecionaram jornalistas que fariam entrevistas

com os biografados para depois escreverem seus livros. Alquéres explica a opção por uma narrativa em

primeira pessoa nos livros dessa coleção: “A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa

mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse

diretamente ao leitor.” (Hubert Alquéres. Coleção Aplauso. In Beatriz Coelho da Silva. Wagner Tiso.

Som, Imagem, Ação. Op. cit.) Beatriz Silva, também em texto de apresentação, conta que gravou mais de

30 horas de conversa com Wagner Tiso. Esse é um dado importante sobre a coleção, pois revela em sua

escrita a interação entre biógrafo e biografado. Apesar de o texto estar próximo da fala de Wagner Tiso,

temos também a ação da biógrafa, que formula as questões, seleciona, ordena, edita essa narrativa.

47

provocaria a busca por diferentes lugares para a voz. Lembremos que alguns dos grupos

que Milton Nascimento integrou eram conjuntos vocais, caso do Evolussamba, que

formou com Marcelo Ferrari, Wagner Tiso e o primeiro dos Borges com quem teve

contato, Marilton, que também era crooner. Curioso é que a experiência de estúdio

permitiu a Milton Nascimento multiplicar em muitos de seus discos a sua voz, criando

um coro de Miltons numa mesma canção. Volta e meia aparecem essas variações, com o

cantor executando sozinho a primeira, segunda, terceira, várias vozes. Juntas no

Crooner, as vozes de Milton e de Os Cariocas celebram o encontro entre os mestres e o

antigo aprendiz. Chama atenção a performance de Lamento no Morro. Nos arranjos,

avulta-se a base percussiva, constituída pela bateria de Lincoln Cheib e percussão de

Marco Lobo. O resultado é uma batucada, como forma de lembrar que lamento no

morro dá samba. E se essa batucada constitui a base, as vozes de Milton Nascimento e

dos Cariocas parecem voar. Nesse voo, Milton produz ecos e traz outras modulações

vocais, num vórtice de cantos sem direção, arautos da surpresa – ou do espanto – a cada

nova curva.

Lamento do Morro compõe o repertório da trilha Orfeu da Conceição, lançada

em vinil no ano de 1956. A canção foi gravada por Roberto Paiva numa interpretação

distante do que posteriormente ficaria conhecido como bossa nova. Novamente, Tom

Jobim é lembrado no disco de Milton. E não apenas em seu perfil bossanovista. Trazer

essa canção demarca justamente isso, há variadas facetas de um dos nomes mais

conhecidos da bossa nova, basta ter curiosidade e revirar seu vasto acervo musical. E

Milton revirou. Não apenas desta vez, mas também em seu CD Novas Bossas, lançado

em 2008 e gravado com o Jobim Trio – Paulo Jobim, Daniel Jobim e Paulinho Braga.

Voltando às memórias de Crooner, Belo Horizonte significou uma possibilidade

de ampliação do universo sonoro de Milton Nascimento, descoberta de referências

musicais e oportunidade de trânsito por diferentes conjuntos, tais como o grupo vocal

Evolussamba e outros mencionados na dedicatória de Crooner: Sambacana, Holiday e

Berimbau trio. Alguns dos nomes lembrados nos agradecimentos do álbum de 1999

fizeram parte da cena musical da capital mineira. A menção deles e de conjuntos instiga

a procura por outros suportes da memória que ajudam a compreender melhor essa cena

e seus personagens. Alguns desses suportes resultaram de iniciativas do Museu Clube

da Esquina, como o livro Clube da Esquina 40 anos e o Guia Belo Horizonte: roteiro

Clube da Esquina. Além de informar, eles dão sentido, estabelecem relações e

48

identificam a cidade e sua cena musical. São visões do passado e, como demarca Beatriz

Sarlo, “sua irrupção [do passado] no presente é compreensível na medida em que seja

organizado por procedimentos da narrativa, e, através deles, por uma ideologia que

evidencie um continuum significativo e interpretável do tempo”65

.

Pacífico Mascarenhas, que aparece na dedicatória juntamente com seu conjunto

Sambacana, foi um dos primeiros artistas a acolher Milton Nascimento recém-chegado a

Belo Horizonte. Conhecido por ser um representante mineiro da bossa nova, Pacífico

virou uma espécie de padrinho musical do trio trespontano que foi procurá-lo para

mostrar sua arte: Milton, Wagner e seu irmão Gileno Tiso. Já conhecido no circuito

musical mineiro, e até noutras regiões do país, o compositor os apresentou a Célio

Balona. Milton já era crooner do Conjunto Holiday, do qual também participava Gileno

Tiso. Seria através desse grupo que faria sua primeira gravação em disco, um compacto

que tinha sua primeira canção registrada, Barulho de Trem, a única de sua autoria que

aparece no disco Crooner. Nela, o artista já visitava um tema constante em canções

posteriores de seu repertório, os trens, suas viagens, encontros e despedidas: “Banco de

estação/ Lugar de despedida e emoção/ Comigo é diferente, apenas vim/ Pra ver o

movimento que tem/ Barulho de Trem”.

A proximidade com Pacífico Mascarenhas ainda levou Milton e Wagner Tiso a

tocarem em seu grupo, o Quarteto Sambacana, e a circularem por outras cenas musicais,

como a do Rio de Janeiro, o que já observamos em relatos, como o do episódio da

gravação do disco da cantora Luíza.

Naquela época Célio Balona tinha um grupo que reuniu um time de grandes

músicos de Belo Horizonte. Tocaram em seu conjunto nomes como Nivaldo Ornelas

(saxofone), Helvius Vilela (piano) e Ildeu Soares (baixo). Além de se apresentar em

importantes casas da capital mineira, o conjunto comparecia no programa que Célio

Balona comandava na TV Itacolomi, emissora da capital mineira. Milton Nascimento, e

mais tarde Wagner Tiso, chegaram a integrar esse grupo. Ao recordar esse período,

Balona destaca: “Foi um tempo muito bom porque todos nós estávamos interessados em

65

Beatriz Sarlo. Tempo Passado. Op. cit., p. 12.

49

fazer música e com a bossa nova nós achamos o caminho, que eram os grupos

pequenos, não tinha grandes orquestras.”66

No roteiro do Clube da Esquina, são lembrados importantes lugares da cena

musical de Belo Horizonte por onde Milton Nascimento e seus parceiros passaram.67

É

o caso do Ponto dos Músicos, uma calçada da avenida principal da cidade, a Afonso

Pena, onde instrumentistas e crooners ficavam à espera de contratos, mas também

aproveitavam para compartilhar muitas ideias e experiências sonoras.

No mesmo guia é lembrado o Edifício ArcAngelo Maletta, que reunia bares

frequentados por intelectuais, jornalistas, estudantes. Foi no Maletta que se instalou o

Berimbau Club, reduto da bossa nova e do jazz, criado por Helvius Vilela, Pascoal

Meireles, Paulinho Horta e Nivaldo Ornelas. No artigo em que se dedica a refletir sobre

a música de Milton Nascimento, Kiko Continentino, pianista que vem acompanhando o

cantor-compositor desde a década de 90, destaca sobre o Berimbau Club: “Todas as

noites, após tocarem nos bailes, os músicos iam para lá se deliciar e expressar o que

vinha em suas jovens e criativas cabeças. Paulinho [Braga] e Wagner Tiso contam que o

Berimbau representou um importante laboratório de idéias e tendências musicais como

o jazz mineiro e o free samba.”68

As lembranças de Milton Nascimento sobre a cena musical de Belo Horizonte

são temperadas pelos laços de amizade e também pelas descobertas musicais. Além dos

encontros diários no Ponto dos Músicos, as amizades se fortaleciam nos almoços nas

casas dos novos parceiros e se comprovavam pelo respeito que tinham uns pelos outros.

Milton recorda o susto que levou ao ouvir os músicos de Belo Horizonte tocarem:

Aí eu cheguei lá em Belo Horizonte, fui conhecer os músicos profissionais lá. E

quando eles tocavam as músicas assim, principalmente Tom Jobim e jazz

também, qualquer coisa assim, aí eu comecei a falar: “caramba, tudo que eu e

o Wagner fazemos, tá tudo errado! A gente vai ter que estudar, ouvir muito...”

Mas o pessoal de lá era um pessoal, assim, tipo nota dez. Então eu sempre

ouvia uma coisa assim : “Não, não mexe nas coisas que você faz não.Isso aí

ninguém faz e se você copiar alguma coisa já não vai ser tão forte assim.”69

Em cena a lembrança das maneiras com que Milton Nascimento e Wagner Tiso

(re)arranjavam as canções colhidas do rádio. Mas manter a originalidade não

66

Célio Balona (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Belo Horizonte: Associação

dos Amigos do Museu Clube da Esquina e Impressa Oficial de Minas Gerais, 2012, p 47. 67

Guia de Belo Horizonte: roteiro Clube da Esquina. Belo Horizonte: Museu Clube da Esquina, 2005. 68

Kiko Continentino. Milton Avant Garde. [artigo fornecido via email] 69

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

50

significaria acomodar-se a um estilo. No contato com os músicos de Belo Horizonte,

Milton encontrou outros ingredientes que agregaria à sua bagagem musical. O artista

conta que antes de chegar a Belo Horizonte conhecia discos de cantores e cantoras

acompanhados por orquestras americanas, mas não personagens do jazz. Para ele, a

capital mineira significaria o momento de seu “encontro verdadeiro com o jazz”. Foi lá

que teve seu primeiro contato com a obra de um dos nomes que o impactou:

Uma vez nós estávamos na casa do Pascoal Meireles, que é um baterista de

Belo Horizonte, e ele botou Miles Davis pra tocar. Eu nunca tinha ouvido. Aí eu

não sei o que me deu, que eu levantei e gritei lá: “isso aí não é trompete não!

Isso aí é a minha voz!” Eu nem sei por que é que eu fiz isso. Mas eles eram tão

respeitadores que todos aceitaram eu falar isso. E realmente tem muito a ver,

as divisões, os arranjos, os negócios assim, tem muita coisa a ver com a gente.

E aí eu comecei a ouvir, comprar discos do Miles e dos outros que eu ia

conhecendo. Aí que eu fui conhecer realmente o jazz e ouvir as outras coisas,

porque tinha música de tudo quanto é lugar do mundo. E a gente sempre tava

aberto para ouvir o que viesse. 70

A inquietação de Milton Nascimento com a obra de Miles Davis se dera por uma

via curiosa, a do reconhecimento, da identificação. O intimismo presente na obra de

Davis dialogava com a profundidade do universo miltoniano. Às audições de jazz

mencionadas pelo cantor-compositor, unem-se as experiências com grupos que

integrou, como o Berimbau Trio, conjunto da casa Berimbau Club. Como naquele

espaço se ouvia basicamente música instrumental, Milton foi intimado por Wagner Tiso

a aprender a tocar contrabaixo. O grupo ainda contaria com o baterista Paulinho Braga,

que, no início da década de 70, acompanharia Elis Regina e posteriormente Tom Jobim.

É justamente ao depoimento de Paulinho Braga, reproduzido no artigo de Kiko

Continentino, que recorreremos para nos aproximarmos de memórias sonoras do

Berimbau Trio e da ambiência do Berimbau Club:

Este trio era totalmente diferente dos trios da época. Fazíamos vocais, eu,

Wagner e Bituca. Não havia muita improvisação, era tudo diferente e já

tínhamos personalidade. Usávamos muitos rifes e tocávamos com a dinâmica

totalmente solta. Também não apelávamos com desdobramento dos andamentos

e mudanças de tons. Em BH, era o Berimbau e mais o Tempo Trio, do Pascoal,

Helvius Vilela e Paulinho Horta. Acho que eles agradavam mais, porém nós

éramos divinos. Quando tocávamos, todos os músicos paravam de falar para

escutar a gente (pretensão à parte). Bituca, sempre com sua maneira peculiar de

falar, dizia: “Outros trios jamais trilharão os trilhos que trilha o Berimbau Trio”,

numa alusão marota ao Tempo Trio, nossos “arquiinimigos”...”71

70

Idem, ibidem. 71

Paulinho Braga Apud Kiko Continentino. Op. cit.

51

Como pudemos perceber, vários músicos frequentavam o Berimbau. Outro nome

que circulava por aquele espaço e que aparece nos agradecimentos de Crooner é Aécio

Flávio, vibrafonista e chefe de orquestra. Participou com seu grupo do I Festival de

Música Popular de Minas Gerais, ocorrido no Rio de Janeiro. Esse festival contou com a

presença de vários grupos, inclusive do Berimbau trio. No relato de Aécio Flávio ao

livro Clube da Esquina 40 anos há um dado curioso: naquela época, Ismael Correia

resolveu fazer um disco reunindo vários desses grupos. Segundo Aécio, nesse disco seu

grupo gravou pela primeira vez a Canção do Sal, com participação de Milton

Nascimento no contrabaixo.72

Belo Horizonte aparece nessas memórias como um lugar de ebulição cultural

que atraía mineiros de variadas localidades, como Milton e Wagner Tiso. A respeito da

ambiência musical da cidade, Nivaldo Ornelas recorda: “Era uma cidade do interior,

bem interiorana, mas efervescente, sabe? As coisas aconteciam.”73

Márcio Borges,

apaixonado por cinema, frequentava espaços dedicados à exibição e ao debate de filmes

de escolas cinematográficas como o Cinema Novo, a Nouvelle Vague e o neo-realismo

italiano. “(...) tínhamos aquela perspectiva provinciana de Belo Horizonte nos anos 60,

mas víamos exatamente os mesmos filmes que se via no IDEC em Paris ou no Centro

Experimentale de Roma porque estávamos sintonizados no mundo, apesar de não existir

esse negócio de network de hoje.”74

Aos nomes aqui mencionados, da cena musical de Belo Horizonte, agregam-se

outros, nos agradecimentos do álbum Crooner, que tiveram presença tanto nesse

momento quanto em outros da trajetória de Milton Nascimento. Assim, vemos a

presença dos Borges, dos Brant, os Bastos (Rio de Janeiro), os Tiso Veiga e tantos

outros. Alguns desses sobrenomes nem necessitam de maiores explicações. As

memórias das parcerias estabelecidas por Milton já deixam bem claro de quem se

tratam. Interessante que foi no contato com um dos membros da família Borges que

Milton deixou aflorar seu lado compositor. Até então, queria apenas cantar, mas a

amizade com Márcio Borges lhe trouxe uma provocação: precisava começar a compor.

No livro Os sonhos não envelhecem, Márcio Borges recorda esses tempos e as

paixões divididas com o novo amigo de Três Pontas. Milton morava numa pensão

localizada no mesmo edifício em que vivia a família Borges, o Levy. Era frequentador

72

Cf. Aécio Flávio. (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit. 73

Depoimento presente no filme A música audaz de Toninho Horta. 74

Márcio Borges. “O Clube da Esquina.” In: Paulo Sergio Duarte e Santuza Cambraia Naves. Do Samba-

canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2003, p. 169 e 170.

52

assíduo do lar dos Borges, sendo lembrado em entrevistas e relatos como o filho número

12. Uma das paixões compartilhadas pela dupla de amigos era o cinema. Essa expressão

artística seria agregada ao caldeirão de referências de Milton Nascimento. Foi depois de

assistirem a três sessões seguidas de Jules et Jim, de François Truffaut, que Milton

Nascimento cedeu ao apelo insistente de Márcio Borges e começou a compor. Naquela

noite estabeleceram sua parceria musical, compondo três músicas no apartamento dos

Borges: Paz do amor que vem (Novena), Girou-Girou e Crença. 75

... Bituca deixou-se levar – e me levou consigo – para muito, muito longe, para

uma região de melodias intrincadas e misteriosas, entoadas em puro improviso

de cristalinos falsetes, coisas que eu, nem ninguém, nem ele próprio, jamais

escutáramos antes. Era como se estivéssemos na Floresta Negra, juntos a Jules,

Jim, Catherine, e todos nos achássemos instalados ali, no “quarto dos homens”,

como ectoplasmas feitos de som. Tudo continuava naqueles acordes, François

Truffaut, o Amor e Amizade, Raoul Coutard, o mago do nublado e do noturno,

Jeanne Moreau, o Levy, tudo encadeado como átomos na cadeia dos cristais de

pura música; tanto, que nos deu certeza de que uma nova história começava a se

escrever ali mesmo para nós, naquele instante, e que as eras poderiam se dividir,

a partir desse fato consumado, em A.J.J. e D.J.J.; isto é, Antes de Jules e Jim e

Depois de Jules e Jim.76

O comovente relato de Márcio Borges nos dá a dimensão do filme de Truffaut

entre suas referências. Além de trazer temas afinados com o universo clube-esquinista,

como a amizade, o filme serviu como catalisador de uma música que vinha se

configurando nas emoções que já circulavam no convívio de Milton Nascimento e

Márcio Borges. E a força dessa referência permaneceu na obra de Milton. Em seu disco

...E a gente sonhando, de 2010, o cantor-compositor recorre expressamente à obra de

François Truffaut para expressar o sentimento deflagrado por um sorriso: “Sim, o seu

sorriso/ Penetrou minha alma, como um filme de Truffaut”. Na mesma época em que

Milton era apresentado a Truffaut por Márcio Borges, Novelli, em Pernambuco,

formava o grupo Nouvelle Vague, expressão tomada de empréstimo do movimento

cinematográfico do qual Truffaut era integrante. Novelli ainda vivia em Garanhuns:

Eu tinha um irmão que estudava em Recife e ele morava numa pensão do lado

de um cinema, que era o mais importante do Recife. Era um negócio meio

ridículo, às vezes, porque tinha umas sessões lá que você só podia entrar de

paletó. E tinha no domingo uma, eles chamavam matinal. Matinê, de tarde.

Matinal, às dez da manhã. E passavam filmes, na época, em 1963, 62, 63,

passavam aqueles filmes do Godard, do Truffault, do pessoal, René Clément. E

eu saquei que o nome era interessante, né? Eu ia visitar meu irmão, ficava o

domingo lá e ia ver essa matinal, sempre via esses filmes. Aí eu descobri que o

75

Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. Op. cit. 76

Idem, ibidem, p. 60.

53

nome do movimento, aqueles filmes estranhos, modernos, romances ou

policiais... tinha um movimento na França chamado Nouvelle Vague fundado

por esses caras.77

Na verdade, o nome artístico “Novelli” é uma corruptela do nome do movimento

francês. Na época, o baixista Osvaldo Guedes questionou o nome do conjunto, o

Nouvelle Vague. Depois de receber a explicação, concordou e fez o batizado,

acentuando na pronúncia o sotaque pernambucano: “... pra mim você vai ser o cantor

Nóóvelli”78

. Osvaldo Guedes foi o baixista faltoso na apresentação do Nouvelle Vague

na tevê pernambucana, conforme relato de Novelli páginas atrás. Ou seja, batizou

Novelli e, acidentalmente, ainda colocou o baixo em suas mãos! Interessante a

produtividade verificada nessa circulação de referências culturais no período. No

diálogo com Novelli falamos dessa relação da música com o cinema e ele destacou:

“Mas você lembrou muito bem, tem uma coisa em comum entre eu e o Milton, que, fora

a música, é uma ascendência francesa de Nouvelle Vague”79

.

Os Borges também seriam representados no álbum Crooner por Lô, em

participação especial. Sua presença trazia a memória de experiências como as do álbum

Clube da Esquina. Lô fez um dueto com Milton na canção Resposta, do grupo Skank.

Interpretada pelos dois amigos, a canção, que pode ser lida como um recado

endereçado a alguém por quem se nutre uma paixão, adquire novo sentido, aparentando-

se agora com uma conversa de dois amigos, parceiros antigos de composições

consagradas: “... Ainda lembro/ Que eu estava lendo/ Só pra saber o que você achou/

Dos versos que eu fiz/ E ainda espero resposta.” O encontro dos dois cantores mostra,

portanto, na prática a possibilidade de várias leituras de uma canção. Curioso é que o

Clube da Esquina seria uma das referências do Skank, justamente pela ligação com a

música pop e rock, em sintonia com os Beatles. Tais reverberações sonoras foram

definitivamente incorporadas ao universo miltoniano no contato com os adolescentes Lô

Borges e Beto Guedes, amantes da música do grupo inglês.

Tinha no Clube da Esquina uma referência pop, né? Ou seja, onde transcende a

música mineira pro pop, e que flertava com o rock. Era uma coisa super viável.

Pra nós, de Belo Horizonte, era a comprovação de que você, pra fazer boa

música, ser conhecido no Brasil, não precisava ter nascido em Liverpool.80

77

Entrevista com Novelli. Op. cit. 78

Idem, ibidem. 79

Idem, ibidem. 80

Depoimento de Samuel Rosa, vocalista do Skank, no filme A sede do Peixe. Dirigido por Carolina

Jabor e Lula Buarque de Hollanda. Conspirações filmes/Tribo Produções/Nascimento Música/ HBO

Brasil, 1997. Lançado em DVD em 2003.

54

O breve passeio pela cena musical de Belo Horizonte dos anos 60 nos coloca

diante de nomes locais importantes em projetos posteriores da carreira de Milton

Nascimento. Que admirador sincero de Milton não se lembraria das performances de

Nivaldo Ornelas em seus discos? Nem da bateria de Paulinho Braga? Aos nomes

citados agregamos tantos outros trazidos pelos fios da memória. Fios estes que cingem o

passado ao presente e nos permitem pensar como foram essenciais esses músicos,

instrumentistas, letristas para a elaboração da linguagem miltoniana. Fazem imaginar

ainda que, naquela cena onde o jazz e a bossa nova desenhavam um horizonte possível,

era gestada uma música nova. Noutros momentos, esses fios memoriais se enlaçam em

citações musicais, como acontece no arranjo de Ooh child, canção em cujo arremate

surge um coro infantil. Aos mais familiarizados com a discografia de Milton o

reconhecimento é imediato: trata-se de uma citação do disco Minas, de 1975. Aquele

coro que abre Minas e reaparece em outras faixas do disco, foi recolhido e transposto

para a receita de Cooner.

Neste álbum, nada está tachado ou determinado. As memórias se insinuam,

misturam-se, convidam o ouvinte a interagir com elas, contemplá-las e igualmente

interpretá-las: “A fonte oral sugere mais que afirma, caminha em curvas e desvios

obrigando a uma interpretação sutil e rigorosa.”81

A afirmação de Ecléa Bosi sobre o

testemunho oral me parece útil para expressar minhas próprias impressões ao ouvir

Crooner, esse “disco-relato”.

O projeto Crooner revelou-se um espaço propício para Milton Nascimento

surpreender o público e mostrar outras faces, pela inclusão de algumas canções

inusitadas em seu repertório de intérprete. O próprio Milton me diz: “Tem música ali

que ninguém nunca ia pensar que eu fosse cantar na vida, né?” Eu logo menciono a

canção Beat it, de Michael Jackson. E Milton me responde: “Também, mas o Cumanã,

por exemplo, o Edmundo”. De fato, são as maiores surpresas do repertório do CD.

Aparecem na faixa-bônus junto com O gato da madame, presente de tirar o fôlego já

quase no derradeiro momento de adeus do álbum. Mas a resposta de Milton me

surpreendeu pelo “também”. Fica no ar que, para ele, cantar Michael Jackson não é algo

tão surpreendente assim.

A surpresa da faixa-bônus não se dá somente pela presença dessas canções no

pot-pourri ali apresentado, mas pela interpretação dada por Milton Nascimento. Temos

81

Ecléa Bosi. O tempo vivo da memória: ensaio de psicologia social. Op. cit., p. 20.

55

aí um Milton brincalhão, que usa a voz para provocar risada. O gato da madame,

foxtrote, conhecido pela versão de Zilá Fonseca, é recheada de bom-humor:

O gato da madame

Anda perfumado

Laço no pescoço

Todo alinhado

Bebe uísque

Nem parece um gato

Foge arrepiado, apavorado

Quando vê um rato

Anda sempre

De unhas pintadas

Não anda na rua

Pelas madrugadas

Não come sardinhas

Porque têm espinhas

Carne tem que ser filé mignon

E não faz miau só faz miôn ...

Um gato chique e fresco, eis o que a letra da canção retrata. Milton não se faz de

rogado ao insuflar vida a essa criatura. Usa e abusa de “erres” vibrantes numa alusão ao

ronronar do gato. Encarnando o gato metido à besta, o artista usa e abusa de firulas

vocais. A entonação é debochadamente esnobe, chacota propositadamente dirigida

àquele gato de ares tão superiores. Recheada de humor, vem a ser a continuação do pot-

pourri, que seguiria com a canção Edmundo, sucesso de Elza Soares, artista lembrada

nos agradecimentos de Crooner; e Cumanã. Também aí as firulas vocais estão

presentes. Funcionam como cacoetes prontos para arrancar uma gargalhada. O falsete

emitido ao final do pot-pourri surge como uma risada estridente que escapuliu,

malgrado os esforços de ser contida.

A interpretação que Milton Nascimento dá a esse pot-pourri surpreende

justamente por quebrar uma imagem difundida a seu respeito. Milton, para muitos, é

artista de música séria. É comum em algumas matérias de jornal e programas de

televisão Milton ser enquadrado como artista tímido e até mesmo triste. Em texto que

veicula uma bela entrevista com o artista na década de 70, e agora presente no livro

Nada será como antes, Ana Maria Bahiana nos informa sobre um desses

enquadramentos:

Milton Nascimento, diziam-me, era impossível de ser entrevistado. Uma

timidez ao cubo tornava o processo todo extremamente penoso tanto para ele

quanto para quem tinha a árdua tarefa. Imaginei algo ousado: tornar a

experiência o mais descontraída possível, sumindo com o aparato de costume –

56

gravador, bloco de notas, caneta – e me comprometendo a guardar toda a

conversa na memória. A juventude tem desses privilégios. Deu certo – e aprendi

um modo de trabalhar que não apenas ajudava o contato e preservava a

integridade material como desafiava a manter a atenção sempre ligada e a

memória, ativa. 82

Essas imagens construídas ao longo de sua carreira ainda reverberam em textos

recentes sobre o artista. Acabam por desenhar um perfil, uma representação83

que

informa sobre a figura de Milton Nascimento. Tomemos um exemplo. Em entrevista ao

jornal Correio Braziliense, Fernando Brant é confrontado com a seguinte afirmação:

“Caetano Veloso escreveu que Milton é um grande cantor e compositor, mas que

expressa uma tristeza da alma mineira.” A resposta desfaz qualquer tentativa de

aprisionamento da obra do parceiro no estigma de triste: “Pode ser, mas o Milton

também tem muita alegria. Você já recebe coisas de herança, mas vai adquirindo outras

na vida. A música dele é diferente da maioria porque é muito profunda, vem de dentro

com toda a harmonia.”84

Em entrevista dada à revista Imprensa, Milton Nascimento

recorda as dificuldades no contato com a imprensa, inclusive os boatos relacionados ao

seu estado de saúde nos anos 90, quando foi diagnosticado com diabetes. O artista

comenta sobre sua relação com a imprensa atualmente e toca no assunto de sua timidez

tão divulgada:

Eu tenho tido sorte. As pessoas com quem eu tenho falado têm honestidade, elas

só publicam o que realmente falei. E isso começou a acontecer depois desse

tempo [episódio do diabetes]. Inclusive, as pessoas falam que sou tímido, que é

a pior coisa do mundo fazer uma entrevista comigo, mas eu não falo é por causa

da imprensa, não que eu seja tímido.85

Essas considerações nos fazem pensar que, mesmo identificando algum

sentimento de tristeza em canções do repertório de Milton Nascimento ou certa timidez

na sua imagem artística, é redutor desenhar um perfil nesses parâmetros. Fazê-lo seria

investir no esboço de uma caricatura. Essas breves considerações acerca do

reducionismo na construção das imagens do artista nos dão o tom da surpresa que a

82

Ana Maria Bahiana. Nada será como antes: MPB anos 70 – 30 anos depois. Rio de Janeiro: Editora

Senac Rio, 2006, p. 68. O texto do qual foi tirado o trecho citado apresenta a matéria “Querem que Milton

seja herói. Ele não. Prefere a margem, a sombra, a música”, publicado originalmente no jornal O Globo

(26/12/1975) 83

Cf. Roger Chartier. História Cultural. Entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro/Lisboa: Difel /

Bertrand. Brasil, 1990. 84

Fernando Brant à seção “O que eles pensam”. In: Correio Braziliense. Caderno Diversão & Arte, p.3.

(20/05/2012) Entrevista realizada por Irlam da Rocha Lima, José Carlos Vieira e Severino Francisco.

85 “O desabafo de Bituca”. Entrevista de Milton Nascimento à Thaís Naldoni. Revista Imprensa. Ano 20 –

nº 220 (janeiro/fevereiro de 2007), p. 29.

57

interpretação daquele pot-pourri provocaria. Milton brincava com a própria imagem e

escancarava algo que alguns desavisados não captaram em seu próprio repertório, a

alegria. E não pararia por aí. No show Crooner, buscava-se um clima semelhante ao do

disco. Milton Nascimento levou uma pequena orquestra, com presença de metais e de

backing vocals. A ideia era fazer um show em que as pessoas pudessem dançar, mesmo

ao embalo de um artista “tão sério”:

E foi muito difícil porque o pessoal não acreditava que podia dançar num show

do Nascimento, né? Aí o primeiro foi no Canecão e eu falei: “olha, a alegria do

crooner é ver o pessoal dançando!” Aí tinha um lugar redondo assim, o pessoal

veio, começou a dançar. Aí não precisava falar mais nada em lugar nenhum. E

eu adorei, adorei, porque a gente cantava tudo que gostava.86

E a experiência se repetiria em palcos de distantes lugares do mundo, como é

lembrado na Seção K/Skrobo, do Jornal da Tarde: “Empolgado com o frisson de

Crooner em sua turnê européia, Milton Nascimento desembarca em Turim a fim de

ferver o Palace, dia 3. Num remember dos anos 80, pediu para quebrar o gelo com a

plateia transformando tudo em pista”87

.

O artista brasileiro, que havia conquistado o Grammy na categoria World Music

pelo disco anterior, o Nascimento, de 1998, desta vez queria por o público para dançar.

Era um crooner no ápice, ávido por se lançar

a inusitadas travessias. No palco, as

lembranças de tantos tempos e uma vontade

imensa de simplesmente cantar. Tais

lembranças, acionadas pela linguagem

musical, permitem pensar que, através do

fazer de músico, Milton Nascimento

elaborava uma narrativa, contando sua própria

história. O projeto não se encerraria ali, mas

inspiraria outros, vida afora. Sem dizer que a

obra do compositor passaria a integrar o

repertório de tantos outros cantores da noite,

em homenagens memoráveis, como no álbum

A voz rouca da Crooner (2004), em que Áurea

86

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit. 87

Jornal da Tarde. (14/07/1999)

Fig. 4 – O crooner

58

Martins grava duas de suas canções, Tarde e Morro velho.

“Minha voz vem da mulher”

Eu que nasci no Rio de Janeiro, em Laranjeiras, fui levado de volta à Minas,

terra natal de minha mãe de sangue, quando ela se foi. Era um garoto de pouco

mais de um ano e fui recebido com muito carinho pela minha família, mas

alguma coisa dentro de mim havia se partido, e sangrava. Pietá, pra mim, é a

minha mãe de criação Lília que, mesmo sem nenhum contato ou notícia minha

durante muito tempo, pressentiu que algo de errado se passava comigo e veio

me socorrer. Me trouxe de volta ao Rio e daqui para Três Pontas. Foi ela quem

cuidou de mim e continuou a cuidar por toda a vida, junto com meu pai, Josino.

Além de muito amor, dos dois eu recebi todas as forças de que precisei. Foi dela

a primeira voz feminina que eu me lembro ter ouvido. Ela que já havia cantado

no Rio em um coral regido por Villa-Lobos, cantava para mim e com o tempo

eu passei a acompanhá-la, com minha sanfoninha. Foi através dela que eu

conheci no rádio Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Yma Sumac,

Doris Day, Julie London e principalmente Ângela Maria, minha querida Sapoti.

Esse disco é um beijo em todas essas cantoras, que me ensinaram a cantar e

principalmente à Lília, minha mãe, a quem eu devo tudo que sou e para quem

dedico esse trabalho. Como não podia deixar de ser.

O encarte do álbum Pietá, de 2002, traz a declaração de amor feita por Milton

Nascimento a sua mãe, Lília. Milton nasceu de Maria do Carmo do Nascimento,

empregada doméstica da família de Lília. Os dois, mãe e filho, foram acolhidos como

membros daquele lar. Os vínculos construídos fizeram brotar saudades quando o

pequeno Milton teve que partir para viver com a família de sua mãe de sangue recém-

falecida. O mesmo sentimento de saudade fez aquele menino adoecer e motivou Lília a

ir ao seu encontro em Juiz de Fora. A cena é tocante: ao avistá-la, o pequeno Milton

desmaiou e caiu em seus braços. Tal imagem é reapropriada anos depois, em Pietá, com

a representação de Nossa Senhora amparando Cristo já morto. É à força dessa imagem

que Milton recorre ao significar o gesto de sua nova mãe.88

Seguiria com Lília para Três

Pontas, quando ela se casou com o trespontano Josino. Nascido de ventre mineiro no

Rio de Janeiro, o pequeno Milton partiria em colo carioca para Minas Gerais.

Na capa do álbum Pietá, um fio de sangue nasce da chaga plantada na palma da

mão e escorre pelo braço que repousa em mão firme de mulher. Chaga de Cristo, signo

de dor e salvação. Ao retirar o CD da capa, deparamos-nos com uma foto da mesma

imagem, agora inteira. Nela, Maria recebe em seu colo o Cristo morto. Trata-se da

imagem de Nossa Senhora da Piedade, atribuída a Aleijadinho e pertencente ao

88

“Milton Nascimento” (entrevista) In: Violeta Weinschelbaum. Estação Brasil. Op. cit.

59

santuário que carrega o mesmo nome da santa, localizado na cidade de Felixlândia,

Minas Gerais. Naquela primeira foto, o foco no gesto, no amparo, na força da mulher

que acolhe o filho morto. No disco Pietá, Milton buscava a força e sensibilidade

feminina em figuras como esta e em outras que marcaram sua vida, como Lília. Sua

busca também partiria rumo ao canto de vozes femininas, aquelas que vêm do coração.

Era um CD em homenagem às mulheres. Além de celebrar figuras importantes de sua

vida, aproveitava para lançar três cantoras que participaram ativamente desse álbum:

Simone Guimarães, Marina Machado e Maria Rita.

Fig. 5 – Capa do álbum Pietá Fig. 6 – Nossa Senhora da Piedade

No vídeo de divulgação, intitulado “Pietá por Milton Nascimento”89

, temos

acesso aos bastidores de gravação do CD. Ali, mesclam-se depoimentos do artista com

os de integrantes da banda e trechos de gravação do álbum. Fala-se na descoberta de

novos talentos e na retomada de antigas parcerias. Na condução da narrativa surgem

percepções sobre o novo trabalho, erguido na ideia de coletividade e no entusiasmo do

cantor-compositor, disposto a enveredar por novos rumos.

Para gravar Pietá e levar o show homônimo para os palcos do País e do mundo,

Milton Nascimento contou com músicos que já o acompanhavam, como Lincoln Cheib,

Wilson Lopes, Kiko Continentino, Marco Lobo e outros que passaram a compor a sua

banda, como Gastão Villeroy, Telo Borges e João Vitor. Este último é sobrinho do

cantor-compositor. A banda tem papel fundamental na obra atual de Milton e boa parte

89

Dirigido por Bernardo Palmeiro e realizado pela Fuzo Produções. É um produto da Warner Music,

Tribo Produções e Nascimento. O vídeo pode ser encontrado na internet através do sítio

www.youtube.com.

60

dos integrantes segue com ele até hoje. A convivência em ensaios e shows trouxe à tona

identificações e estabeleceu intimidade favorável à construção de uma ambiência onde

músicos se reconhecem e fazem de sua linguagem um diálogo onde podem se arriscar

em criações sonoras. É o que se percebe nas performances de shows e nos depoimentos

do vídeo de divulgação:

Existe um amor na banda que é uma coisa maluca, né? Pelas minhas músicas,

por mim, eu por eles, eles por eles. [Milton Nascimento]

Tô realizando esse sonho, que é tocar com o Milton, que é um cara que dá uma

puta liberdade, assim, pra gente tocar. É incrível, nunca tive essa liberdade

tocando com nenhum outro artista. Talvez seja por causa da influência que o

jazz tem sobre ele também. A música dele é muito livre. [Gastão Villeroy]

O Milton tem um carinho muito grande pelos músicos, pelas pessoas que estão

com ele, ele tem isso como uma coisa muito especial. Ele divide isso muito

sinceramente, sabe, no palco, no trabalho. E nesse disco, ele parece que passou

a bola pra gente, sabe? Uma coisa de a pré-produção foi com ensaio. As

músicas, chamou a mim e ao Wilsinho pra ver junto o repertório. [Lincoln

Cheib]

Esse disco eu tenho uma outra composição com o Milton, que chama A lágrima

e o Rio. É uma composição minha, a música minha, e a letra de Milton

Nascimento e Ricardo Nazar, um compositor mineiro. [Wilson Lopes]90

As falas dos músicos nos dão a dimensão de sua participação na obra de Milton

Nascimento. A eles não cabia apenas acompanhar aquele grande nome, mas tornarem-se

seus parceiros musicais, fosse pela performance ou pela composição de canções.

Lincoln Cheib, por exemplo, assumiu a direção da percussão; Kiko Continentino

compôs com Milton as canções Vozes do vento e Imagem e semelhança (essa última

também assinada por Bena Lobo). Nesse disco, Milton ainda comporia em parceria com

Chico Amaral – Pietá e Boa noite –, que ficou conhecido em composições feitas com o

grupo Skank. Traria canções com Telo Borges (Tristesse e Meninos de Araçuaí), com

Fernando Brant (A feminina voz do cantor e Beleza e Canção) e seria intérprete de

composições dos irmãos Borges: Quem sabe isso quer dizer amor (Lô Borges/Márcio

Borges) e Voa bicho (Telo Borges/Márcio Borges). Ainda daria espaço a novos

compositores, como Elder Costa (Outro Lugar), Bruno Nunes (As vezes Deus exagera)

e Flávio Henrique (Casa Aberta, em parceria com Chico Amaral). Traria canção do

folclore do Jequitinhonha, Beira-Mar Novo (adaptação de Frei Chico e Lira Marques), e

do jazz, Cantaloupe Island, de Herbie Hancock, artista que participou da gravação dessa

faixa juntamente com Milton e Pat Metheny.

90

Pietá por Milton Nascimento. Op. cit.

61

Milton transporia ainda para Pietá experiências recentes noutros campos da arte,

como o espetáculo Ser Minas tão Gerais, feito em parceria com o grupo de teatro Ponto

de Partida (Barbacena, MG) e com os Meninos de Araçuaí. Trata-se de um musical

construído a partir de sua obra e de textos de Carlos Drummond de Andrade. Nele, além

de cantar, o artista atua como ator, encarnando a si próprio. No palco desenham-se

paisagens: o Norte de Minas, ou Jequitinhonha, a cor morena das terras Gerais. Essa

experiência foi tema da canção Meninos de Araçuaí, com atuação do grupo homônimo,

que retorna em Beira-Mar Novo, canção que vem do espetáculo Ser Minas tão Gerais.

Os arranjos dessa canção foram assinados por Gilvan de Oliveira, integrante do grupo

Ponto de Partida, que também participou dessa gravação. As canções e histórias que

integram o disco Pietá, somadas aos depoimentos citados, revelam um Milton

agregador e um álbum construído na coletividade de vozes prontas a homenagear as

mulheres. E ainda teríamos três cantoras reveladas e tantas outras participações e

referências nesse mesmo disco. O perfil agregador aqui desenhado vem acompanhando

Milton ao longo da carreira desde os tempos do Clube da Esquina.

O vídeo de divulgação do disco traria outras presenças importantes. Pietá foi

produzido pelo próprio Milton, Guto Graça Mello e Tom Capone. Nesse vídeo, Milton

comenta que Guto Graça Mello foi o responsável pela direção de vozes e Tom Capone

pela parte instrumental. Assim os dois personagens descreveriam a experiência de Pietá:

Pô, o cara tá com uma puta vitalidade. O cara chega de show, foi pro Uruguai,

sai do avião, passa em casa, escova o dente e vem pra cá, indo pro estúdio. Pô,

o cara tava amarradão, sabe? Fazendo o que gosta. (...) Acho que a voz dele é

algo assim, é incomparável, tipo única! É um puta sonho fazer e eu quero fazer

outros. [Tom Capone]

E foi emocionante o que aconteceu dentro de estúdio porque o Milton, aquele

Milton de dezoito anos de idade, tava ali, voltou. É como se ele tivesse voltado.

A voz do Milton recuperou todo o seu frescor. [Guto Graça Mello]91

Nas falas de ambos, a imagem de um artista que manteve a inquietude e se

lançou na aventura daquele disco carregando toda uma trupe, da qual os dois

convidados passavam a fazer parte. Tom Capone daria seu toque pessoal não somente

pela direção da banda, mas participando diretamente das gravações. Na faixa Às vezes

Deus exagera, por exemplo, ele assume o baixo synth e programação. A experiência de

trabalho com Guto e Tom levaria Milton a declarar: “E foi o maior barato, né? Porque

91

Idem, ibidem.

62

conseguimos duas pessoas que eu até pretendo continuar, né?”92

Mas um velho

conhecido chegaria naquele estúdio e passaria a integrar a trupe bituquiana: Eumir

Deodato, responsável pelos arranjos e regência de cordas, metais e instrumentinos.

Sobre este artista, Milton afirmaria:

Que o Eumir é um tipo de um maestro assim pra gente, eu adoro. Que, por

exemplo, eu tô tocando violão, ele começa a escrever e escreve tudo que eu faço

no violão. E a voz. Então ele vem e completa as coisas assim. Não é aquele

negócio da orquestra aparecer, aquele negócio... É um trabalho bem

conjunto.93

Novamente a ideia de um trabalho conjunto, construído em parcerias que se

fazem diálogos. Mas esses diálogos têm uma paisagem no horizonte: a matriz musical

miltoniana. É sob essa motivação que Eumir, e mesmo os músicos, sacam de suas

bagagens ideias sonoras que conversam com a obra de Milton. Ao falar sobre a

experiência de trabalhar com Milton Nascimento, o maestro destaca:

Quando é uma situação assim como o Milton, uma pessoa de um respeito

incrível dos músicos, do público, a coisa que eu mais me preocupo é a voz. A

voz é a coisa principal do disco e a mensagem que ele tá tentando dar, não só

da maneira dele, da interpretação, como, em muitos casos, as letras, que ele

que escreve as letras.94

A voz, a mensagem. As considerações de Eumir Deodato comunicam-se com as

de Guto Graça Mello e Tom Capone. Nos discursos dos três, a voz de Milton

Nascimento surge como um tesouro precioso do disco Pietá. E se uma voz guarda tantas

outras, a de Milton evocaria algumas de sua predileção nessa experiência sonora. Todo

aquele vídeo de divulgação, espécie de tease, apresenta Pietá como um grande projeto,

um álbum revigorante e ousado. Quem ouvir o disco verá um Milton disposto a misturas

sonoras, num trabalho repleto de informações da cultura popular, como o candombe da

Serra do Cipó, em diálogo com o rock, o pop e o jazz, como, aliás, é habitual em outros

projetos ao longo da carreira do cantor. Mas agora com uma lembrança a soprar nos

ouvidos: sua voz, vinha da mulher.

***

Um quarto fechado. Pelas gretas da porta e da janela escapam os sons delicados

emitidos por uma caixinha de música. As frases sonoras seduzem os ouvidos atentos e

92

Idem, ibidem. 93

Idem, ibidem. 94

Idem, ibidem.

63

levam ao encontro da canção, que a cada passo ganha maior nitidez. Colocar Pietá para

tocar e deparar com a introdução da primeira canção me causa essa impressão. O som

tirado do harmônio por Kiko Continentino parece vir de longe. Aos poucos se encorpa e

convida as vozes dos outros instrumentos – guitarrinha, viola, violão, baixo –,

envolvidos pela percussão; esta, por sua vez, imprime mistérios e força à ambiência

sonora. Mansamente, como brisa, entra a voz de Milton Nascimento. Tudo ali inspira

delicadeza, no aguardo da força pulsante que vem à tona tão logo aquela voz se liberta e

voa em caça de sua face visceral. A mesma voz se multiplicaria em tons e se enfeitaria

de céu ao emitir falsetes emocionados.

Minha mãe quem me falou

Minha voz vem da mulher

Minha voz veio de lá, de quem me gerou

Quem explica o cantor

Quem entende essa voz

Sem as vozes que ele traz no interior?

Sem as vozes que ele ouviu

Quando era aprendiz

Como pode sua voz ser uma Elis?

Sem o anjo que escutou,

A Maria Sapoti,

Quando é que seu cantar iria se abrir?

Feminino é o dom

Que o leva a entoar

A canção que sua alma sente no ar

Feminina é a paixão

O seu amor musical

Feminino é o som do seu coração

Sua voz de trovador

Com seu povo se casou

E as ruas do país são seu altar

Feminina é a paixão

No seu amor musical

Feminino é o som de seu coração

Sua voz de trovador

Com seu povo se casou

E as ruas do país são seu altar

A cidade é feliz

Com a voz de seu cantor

A cidade quer cantar com seu cantor

Ele vai sempre lembrar

Da lenha de um fogão

E das melodias vindo lá do quintal

As vozes que ele guardou

As vozes que ele amou

As vozes que ensinaram: bom é cantar.

Na canção A feminina voz do cantor, sensibilidade e emoção vêm pelo canto de

mulher. Nos versos, misturam-se as vozes do cotidiano de Milton Nascimento,

64

incorporadas na figura de Lília – “Ele vai sempre lembrar/ da lenha de um fogão/ das

melodias vindas lá do quintal” –, com aquelas em que ele se reconhece – “sem as vozes

que ele ouviu/ quando era aprendiz/ como pode sua voz ser uma Elis?” – e com as que o

inspiraram a cantar – “Sem o anjo que escutou, a Maria Sapoti, quando é que seu

cantar iria se abrir?”. Lília, Elis Regina e Ângela Maria. A mãe, a musa e a primeira

referência musical. A homenagem a sua mãe fica ainda mais explícita ao folhearmos o

encarte de Pietá. A letra da canção vem impressa sobre foto em preto e branco de Lília,

que assina a seguinte dedicatória escrita à mão: “Ao meu querido Bituca, com um beijo

de sua mãe, Lília”. A lembrança de Lília viria também pelos sons daquela canção. No

arremate de A feminina voz do cantor, Milton toca sua sanfoninha, a mesma que usava

para acompanhar a mãe quando criança. O instrumento tangenciava a lembrança da voz

de Lília. Evocava a memória da mãe. Interessante é que a letra da canção foi composta

por Fernando Brant. E por que nada soaria estranho nessa escolha? Amigos e parceiros

musicais, os dois partilhavam afetos, memórias e “causos”, ou seja, de certa forma, a

história de Milton era também a de Fernando. Estava explicado.

Ele nem sabia que eu ia fazer daquele jeito. Mas é porque ele sempre falou o

negócio da Ângela Maria, que foi importante pra ele, que a mãe dele, a dona

Lília, mostrava pra ele. Que ele gostava muito de voz de mulher. E ele conta

muito isso, né? Que quando ele começou a engrossar a voz ele ficou com muita

raiva. [risos] Mas aí ele ouviu Ray Charles e viu que homem podia cantar

bonito também, né? Na realidade, ali eu conto, eu me transfiro pra lá, porque

também eu conheci o lugar, a dona Lília, a cozinha, os cafés, o quintal... isso aí

é uma história que eu participei desde muito tempo. Quer dizer, não participei

naquele momento da infância dele, né? Mas foi natural.95

O depoimento de Fernando Brant comunica-se com o de Milton Nascimento: na

entrevista que me concede, o cantor e eu conversamos sobre a presença dos falsetes em

sua obra. Milton logo traz as memórias de sua infância em Três Pontas. Recorda-se das

audições musicais em casa, da preferência do pai por música de cinema e clássica; e de

sua mãe, que compartilhava das preferências do pai, mas também gostava de música

brasileira, samba-canção. Vale a pena sentir um pouco da emoção dessas lembranças

numa narrativa conduzida por Milton:

E eu gostava de tudo, tudo mesmo, né? Só que eu tinha um pequeno problema,

eu não gostava de voz de homem. Porque as vozes femininas, para mim, quando

eu ouvia eu sentia um negócio apertando aqui, o coração. E eu achava que as

mulheres cantavam com o coração e os homens, quando cantavam, queriam

mostrar força. Então era aquele troço, sempre que eu botava um disco lá na

vitrola era uma mulher cantando. E eu gostava muito de imitar as mulheres. E

95

Fernando Brant em entrevista a mim concedida. Op. cit.

65

foi durante muito tempo. Até um dia que, eu não sei o que eu tava fazendo lá em

casa e fui cantar um negócio e eu senti que minha voz tava engrossando ou ia

engrossar. Aí eu fiquei maluco, bicho. Não sei como é que meus pais me

aguentaram a partir dessa hora, que eu saí correndo pela casa, entrava num

quarto, saía pela sala, não sei que, e gritando e tal. E falando: “não quero, não

quero!” Aí meus pais falavam assim: “ah deixa, deixa, isso passa”. E foi assim.

Na realidade, eu imitei muito as mulheres. Tanto brasileiras, tinha a Ângela

Maria, por exemplo, que pra mim é uma das coisas mais... sabe, que mexiam

mais comigo. E eu acho que eu levo muita coisa dela aqui no cérebro, no

coração, essas coisas. E muitas estrangeiras também.

Milton traz as memórias desse episódio também nos gestos. Na entonação de sua

fala ecoa o desespero da criança que se tornava adulta e se assustava com as mudanças

na voz: “não quero, não quero!”, esbravejava aqui em lembranças de lá. Tinha receio de

que a transformação comprometesse também sua sensibilidade. Perderia a voz que vem

do coração? Em sua desolação, sequer imaginaria que seria afetado por uma nova voz,

uma voz redentora:

Aí quando veio esse negócio de eu achar que a voz ia engrossar, teve uma hora

que eu entrei correndo pela oficina do meu pai, fiquei na janela, lá de casa, e

sem saber o que fazer da vida. Aí de repente começaram a aparecer uns

violinos. Mas uns violinos lindíssimos, coisa que me deixava até com vontade

de chorar, de tão bonito. Aí eu fiquei na janela assim, meio pra dentro, meio

pra fora, sem quase respirar. E foi indo, foi indo, até que de repente entrou uma

voz, masculina. E eu ouvi aquela interpretação todinha, maravilhado! Era nada

mais, nada menos que o Ray Charles cantando Stella by Starlight. E quando

apareceu essa voz do Ray Charles, eu entrei numas assim: “caramba, homem

também pode ter coração!” E aí eu ouvia muita coisa do Ray Charles e por

causa dele eu fui também começando a compreender os outros cantores, que

não eram bem assim o que eu pensava. E eu acho que foi um aprendizado muito

bom, muito violento. E eu acho que eu devo isso muito a minha mãe,

principalmente, que ela me acompanhava nessas coisas que eu falava pra ela,

“olha que coisa linda e tal!” Ela tinha sido cantora num coro do Villa-Lobos,

aqui no Rio, né? Mais de cinco mil pessoas. E ela cantava lindo! Então lá em

casa a gente vivia música.

A interpretação de Ray Charles mostraria ao pequeno Milton que o canto

masculino poderia ir além dos simples exibicionismos vocais desprovidos de qualquer

emoção. Evidentemente a voz poderia ser explorada em seus limites, mas desde que se

buscasse acionar alguma sensibilidade – o canto visceral é um exemplo disso. Mas

através da audição de Stella by Starlight ficaria claro que o homem também poderia

jogar sentimentos numa canção através de sua voz. Poderia se avizinhar da voz feminina

na maneira de se expressar. No relato de Milton ainda temos Lília como interlocutora na

apreciação e na prática musical. A forma que acolheu e partilhou gostos musicais com

Milton permitiu que ele visse naquela forma de arte um caminho possível para sua vida.

66

Com Lília aprendeu também sobre as pequenas e importantes coisas da vida, como a

amizade.

Aí tem umas outras coisas que eu tenho pra falar da minha família. É que,

geralmente em cidade do interior – não sei na sua, né – as mães não gostam

que os filhos tragam os amigos para dentro de casa, que suja chão, é uma

confusão danada. A minha mãe, ela era carioca, foi pra lá, e o negócio é que a

cabeça dela era completamente diferente de todo mundo de Três Pontas. Então

ela queria que a casa ficasse cheia de crianças. E ajudava a gente a fazer pipa,

a fazer isso, a mexer. E na hora do lanche, ela fazia sempre um chocolate

quente pra rapaziada toda, né? Então ela fazia muita questão de que a gente

levasse muito a sério a amizade. Meu pai também, não tanto, mas também.

Porque teve várias vezes que eu tava num lugar, assim, que eles não tavam me

vendo, e eles estavam conversando a respeito de uns amigos deles, assim, que

tavam precisando de algumas coisas, que às vezes a gente nem tinha, mas eles

faziam de tudo para ajudar essa pessoa. Então, a coisa mais importante pra

mim, de todas as coisas, é a amizade.

Um sabor de chocolate, memórias de gostos e vivências da infância. Lília

estimulou em Milton o valor à amizade. A casa cheia na infância conservaria as portas

escancaradas em experiências agregadoras em discos. A obra de Milton tem um caráter

coletivo, como percebemos em Pietá. O cantor-compositor é reconhecido por esse traço.

Esse breve percurso pelas memórias de Milton Nascimento nos informa sobre a

proximidade de suas lembranças com os versos de A feminina voz do cantor. Tudo aqui

se comunica, vida e arte se misturam e se enriquecem. Talvez aí esteja o segredo de uma

canção que emociona: um caminho pavimentado de sentimentos de verdade e

sinceridade.

Em sua interpretação para A feminina voz do cantor, Milton Nascimento se

arrisca em improvisos vocais. A voz, num crescendo, emite as palavras: “Lília, lírio”,

“Ângela, anjo”. Voz solta, disposta a surpreender pelos rumos que toma, como ventania

em chuva de verão. Explorada em sua potência, ganha brilho, ecoa e desperta sensações:

lamento, dor, celebração. Uma atmosfera erguida na comoção. Milton se joga em

vocalises, emite falsetes, mergulha numa caça à força de sentimentos emitidos por

outras vozes que o impactaram, aquelas vozes femininas, que, naquele instante,

enfeixavam-se na sua própria voz. A referência ao canto feminino não se faz a partir de

imitação, mas da busca por uma sensibilidade atribuída à mulher, à voz primeira do

coração. A postura assumida nos versos da canção, e também na performance de Milton

Nascimento, conversa com as reflexões de Deleuze e Guattari sobre os devires96

, nesse

96

Cf. Gilles Deleuze, Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34,

1997.

67

caso o devir-mulher: “nem imitar, nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas

que entrem na relação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma

microfeminilidade, isto é, produzir em nós mesmo uma mulher molecular, criar a

mulher molecular.”97

Movimento e transgressão, eis o que captamos na reflexão desses

pensadores. Para eles, os devires têm essa característica molecular que permite o

trânsito: soltar e captar partículas, avizinhar-se, agregar-se a outra partícula e tornar-se

indistinto dela. Daí a voz que rompe fronteiras e nega o aprisionamento a um gênero,

para somar-se à sensibilidade de outras vozes.

Quando retoma os versos da canção, Milton se vale dos “primos”, um de seus

recursos vocais preferidos. O cantor-compositor me explica que seus “primos”

nasceram de experiências tecnológico-musicais em estúdio de gravação:

Isso é obra do Cristovão Bastos. Porque quando estava fazendo aqueles livros

de cada compositor, aqueles troços todos, aí tinha um disquinho também, né?

Aí cada compositor chamava quem ele queria que cantasse alguma música. E

eu fiz bastante gravações. E na maioria era o Cristovão que estava mexendo lá.

Aí eu chegava: “então vamos gravar”. Gravava uma voz, “vamos fazer outra”,

em cima né? Acho que a primeira vez foram três vozes. Ele ficava me olhando

assim...Teve uma vez que foram dezesseis primos. Mas não eram primos ainda.

Aí ele falou assim: “Quantos primos vêm hoje?”. Aí eu falei, “ah, dezesseis”!

[risos]. E assim vai indo. Eu adoro.

A voz de Milton, gravada em sobreposições, variados tons e alturas, num coro

uníssono, que brota da mesma garganta. Os “primos” se tornaram uma espécie de

assinatura vocal. Por vezes, Milton nos surpreende com gravações em que graves de

trovão se combinam com límpidos falsetes. Ao fundo, outras tantas nuances de sua voz

decompõem e recompõem uma densa camada fônica em movimentos harmoniosos e

fluidos, num jogo de sedução que convida ao mistério. Na gravação de A feminina voz

do cantor, aquele emaranhado de vozes do artista traz a impressão de que cada som

emitido se dá em tributo das muitas vozes que o afetaram vida afora. O canto verte-se

em oração, adorna-se de magia, como bem dizem os versos: “Sua voz de trovador/com

seu povo se casou/E as ruas do país são seu altar”.

Lembro-me novamente do que detonou a narrativa de Milton sobre suas

memórias da infância: minha pergunta sobre o falsete. Ele responderia: “Tem várias

coisas. Uma é quando eu era bem menininho...” – e relatou a história atrás transcrita.

“Tem várias coisas”: essa frase cutuca minha memória. Em sua obra, e na de outros

97

Idem, ibidem, p. 68.

68

membros do Clube da Esquina, o falsete funciona como mais uma assinatura vocal.

Longe de ser um recurso para se atingir uma nota aguda, é um caminho para se acionar

sensibilidades. E mais: “(...) a inovação veio em se utilizar o falsete como uma nova

alternativa tímbrica e não como o último recurso quando não mais se alcança as notas

com uma emissão vocal natural.”98

Esta afirmação de Ivan Vilela se dá a partir de sua

reflexão sobre o Clube da Esquina. Outros nomes vinculados ao Clube fariam suas

experiências com esse recurso vocal, como Beto Guedes e, posteriormente, a rapaziada

do 14 Bis. Aquele som, aquela assinatura, permitiria a Milton acionar sentimentos como

angústia, dor, alegrias. “Tem muitas coisas”. Através do falsete, Milton aglutinaria

moléculas de seu sentir, constituídas de partículas femininas, mas também de partículas

da própria infância, numa invocação da criança que um dia se angustiou com as

mudanças da voz. Por meio do falsete, reviveria a pureza infantil, a invadir-lhe o canto e

divinizá-lo.

Ao recordar os episódios que envolveram as gravações do disco Native Dancer,

com o saxofonista Wayne Shorter, Milton Nascimento menciona uma festa que

participou logo que chegou aos Estados Unidos: o aniversário do compositor e pianista

Chick Corea. Lá, Milton provocaria Wayne Shorter:

“’Wayne, o negócio é o seguinte, vou tocar uma música aqui, vai ter que ser o

lado A, faixa 1, senão não vai ter disco!’”, rindo né? Aí sentei no piano, toquei,

aí os músicos todos, cada um pegou um instrumento, ninguém conseguiu tocar.

E o Wayne ficou encostado no piano rindo. Chegou pra mim e falou: “mas você

é fogo, hem? Começa uma música que é uma música que criança fez, e de

repente... [risos]”99

Pergunto que música “intocável” era essa e Milton responde: Ponta de Areia. E

acrescenta: “Ninguém conseguiu tocar, cê acredita?” A brincadeira de Milton entre os

músicos era das bem sérias, pois Ponta de Areia de fato abriria aquele disco. A canção é

introduzida com variações de sua voz em falsete. O piano goteja notas agudas como as

de uma caixinha de música, e uma atmosfera infantil é constituída. Com aqueles

falsetes, Milton se avizinhava do universo infantil mais uma vez, atraía e emitia

partículas de seu ser moleque. Esse Milton criança pode ser percebido também no relato

acima transcrito. A cena faz lembrar aquela astúcia infantil, arte de criança que se

diverte surpreendendo os adultos. E isso se comunica com os versos de outra canção

98

Ivan Vilela. “Nada ficou como antes” In: Revista USP. São Paulo, n.87, p. 14-27, setembro/novembro

2010, p. 24. 99

Entrevista a mim concedida. Op. cit.

69

que não entrou no disco Pietá, mas fez parte do repertório do show homônimo, Bola de

meia, bola de gude: “Há um menino/ há um moleque/ Morando sempre no meu

coração/ toda vez que o adulto balança/ ele vem pra me dar a mão”100

. O falsete seria,

sem dúvida, um dos canais de aproximação com esse lado infantil que tanto fascina o

artista. Novamente a desterritorialização, a busca pela emoção de outras vozes:

(...) não se trata de imitar a mulher ou de imitar a criança, mesmo se é uma

criança que canta. É a própria voz musical que se torna criança, mas, ao mesmo

tempo, a criança se torna sonora, puramente sonora. Jamais criança alguma teria

podido fazê-lo ou, se o faz, é tornando-se também outra coisa que não criança,

criança de um outro mundo estranhamente celeste e sensual.101

As palavras de Deleuze e Guattari ressoam imprescindíveis à ideia que tentamos

esboçar, da voz cigana de Milton, elaborada num amálgama com outras vozes, sob o

mote de traduzir sentimentos pela música. Milton prefere uma comunhão de identidades

plurais a reinvenções a partir de um centro masculino: é a voz da mulher, da criança, de

uma coletividade que dança em festa.

No show Pietá, a mãe de Milton é lembrada através da canção Lília, gravada

originalmente no disco Clube da Esquina. Aquela gravação sempre chamou a atenção

pela força e comoção provocada pelos vocalises de Milton em falsete, numa ambiência

de negritude pressentida no violão em belo diálogo sonoro com a percussão. Tem sido

comum a presença dessa canção em shows recentes de Milton Nascimento. Em tais

ocasiões, o cantor sempre conta que Lília não tem letra por não haver palavras capazes

de traduzir tudo o que sua mãe representa. Prefere, então, se expressar usando seus bens

mais preciosos: a voz, o som. Em Pietá, Lília abre oportunidade aos músicos de darem

asas ao talento em firulas melódicas e improvisos desafiadores. Os arranjos trazem

memórias de versões anteriores – a canção foi gravada no Clube da Esquina e no Native

Dancer –, melhor dizendo, tem nelas pontos de localização, mas os instrumentos se

lançam em linhas de fuga, em percursos que escapam da melodia principal, para depois

retomá-la: a surpresa na curva, a caminho de um destino. Em diálogo, os instrumentos,

buscando a voz um do outro, como se perscrutassem a si próprios para fazer emergir

uma linguagem possível. Diferente das outras versões, Milton emite vocalises num tom

de voz normal; apenas ao final lança falsetes, lembrando os percursos já trilhados para

aquela canção. O ambiente tem um quê impressionista. Com o violão, Milton flerta com

100

(Milton Nascimento/Fernando Brant) 101

Cf. Giles Deleuze, Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Op. cit., p. 105.

70

cada instrumento, de pé, passeando entre os músicos, convocando ao diálogo e

permitindo solos. As individualidades são ressaltadas, mas em harmonia com a

coletividade, ou seja, é em nome de um todo comum que os talentos individuais são

valorizados. Arma-se um ambiente denso, ressaltado por partículas de mistério, emitidas

pelo som de harmônio e por correntes. O sax de Widor Santiago vai às alturas, voz

humana em desespero. Por frinchas sonoras decompõem-se memórias de outra versão, a

do disco Native Dancer. A versão do show Pietá traz centelhas daquela história e de

tantas outras. Pelas mãos do percussionista Marco Lobo são emitidos sons metálicos

que invocam a sonoplastia sessentista de um disco voador. Trata-se de frases de uma

canção de Milton, Ponta de Areia, em performance com citações de outras canções do

artista. Recurso semelhante é usado em outras apresentações. No show em

comemoração aos cinquenta anos de carreira, outra canção é citada na emblemática

Lilia: Maria Três Filhos. Através de sons instrumentais, Milton conta sua própria

história, os passos de sua vida e de sua carreira. Pergunto ao artista sobre essa

“brincadeira” sonora que promove com a própria obra. Em seu depoimento sobressaem

as sensibilidades provocadas pela arte: “Explicar direito eu não sei. Mas é que a gente

sempre tem uma coisa que mexe, do passado, ou do presente, talvez do futuro, sei lá o

quê. Fica fácil e bonito a gente utilizar uma coisa com a outra.”

Milton Nascimento acaba construindo uma memória sobre sua trajetória, a

partir de uma leitura reclamada pelo presente, num vislumbre de um lugar no futuro.

Este procedimento faz do próprio sujeito histórico o protagonista de sua obra. A partir

dessa espécie de depoimento (depoimento, bem entendido, construído num limiar

artístico-pessoal), soergue-se uma representação trabalhada musicalmente, de que

resulta mais uma história a ser contada. Desta feita, o cantor se ladeia ao historiador,

elaborando suas memórias pela linguagem da música e acrescentando novos itens para

reflexão de sua obra no tempo em que ela se inscreve.

Após A feminina voz do cantor, o disco Pietá segue com três canções – Casa

aberta, Beleza e Canção e Tristesse – que apresentam as vozes das cantoras escolhidas

para participar desse projeto: Marina Machado, Simone Guimarães e Maria Rita. Vozes

trazidas por Milton em belos duetos. Junto dessas cantoras vêm informações de seus

universos, integrados agora à arte de Milton Nascimento.

71

Casa aberta é uma canção que também compõe o repertório de Baile de Pulgas,

álbum independente de Marina Machado lançado em 1999, e integra o disco Aos olhos

de Guignard, de Flávio Henrique, Marina Machado e Amaranto, de 2000. A canção de

Flávio Henrique e Chico Amaral tem por tema o grupo de candombe vindo da

comunidade quilombola Povo do Açude, localizada na Serra do Cipó. Nos extras do

DVD do show Pietá há um espaço reservado ao grupo, que participou da apresentação

de gravação desse DVD. Nele, Dona Mercês, uma das guardiãs dessa tradição, explica

que o candombe é manifestação em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, feita

através de música e dança. Sua sonoridade é marcada por forte base rítmica, composta

pelos três tambus – afinados em diferentes tonalidades – e pela caixa batuqueira. No

relato de Dona Mercês, os fios da memória ligam essa tradição aos tempos de

escravidão. As canções foram passadas de geração a geração num esforço de

sobrevivência daquela cultura e da identidade do Povo do Açude. Os tambus, espécie de

tambores, foram herdados, carregam marcas de outras mãos, como os cânticos entoados

por aquelas gargantas trazem memórias de outros tempos:

Esses instrumentos que nós tem, foi os escravos de nós que fez. Esse ritual de

nós, essa cultura de nós, é da Serra do Cipó mesmo. Os velhos de nós, tudo que

foi escravizado lá, a senzala é lá mesmo, até hoje lá ainda tem a senzala. Então

eles passaram tudo pra nós. Esses daqui oh, é os segundo tambus que os

escravos fez. Os primeiros, os senhores dos escravos mandou queimar. A única

distração que os escravos tinha era tocar, dançar e cantar o candombe. Os

velhos de nós ensinou a ter muito respeito por esses instrumentos, sabe?

Respeitar muito, adorar eles como uma imagem. (...) Porque os guias de luz,

que é os escravos que já morreu, que é os velhos de nós que já foi, diz que fica

sempre perto deles. Portanto que onde é que nós leve o candombe e os escravos

não agrada do lugar, o candombe não fica bom de jeito nenhum.102

Entre aquelas montanhas, uma tradição da cultura popular sobrevivia, soltava

seu grito, na espera de que alguém lhe captasse um fiapo de eco. Os sons que

fortaleciam os laços daquela comunidade agregariam outras pessoas, que, apreendendo

o eco no ar, chegariam para participar daquela festa, como a cantora Marina Machado.

No disco Baile das Pulgas, a cantora traz algumas faixas com cânticos da comunidade

da Serra do Cipó e com eles constrói uma proximidade que reverberará em projetos

como o CD Candombe da Serra do Cipó.103

Mais tarde, Marina Machado levará Milton

102

DVD Pietá, lançado pela Som Livre em 2006. 103

Para saber mais sobre o candombe, conferir a matéria “As donas da história”, de Afonso Capelas Jr.

Revista Raiz. Cultura do Brasil. (disponível em

http://revistaraiz.uol.com.br/portal/index.php?Itemid=96&id=82&option=com_content&task=view)

72

Nascimento até o lugar e então o grupo da Serra do Cipó ganhará visibilidade em

distantes paragens.

Lua luou

Vento ventou

Rio correu pro mar

Foi beijar

As areias de lá

Mato queimou

Fogo apagou

O céu escureceu

Vem de lá

Tambuzada no breu

Na casa aberta

É noite de festa

Dançam Geralda, Helena, Flor

Na beira do rio

Escuto Ramiro

Dona Mercês toca tambor

Lua azul, lua azul turquesa

Já que a casa está vazia

Vem me fazer companhia

Na janela da cozinha.

Em Casa Aberta contemplamos a ambiência festiva daquela comunidade. É

quase possível visualizar a casa por onde escapam luz, batuques e vozes. Os

personagens do candombe da Serra do Cipó saltam em passos de dança diretamente

para os versos da canção: as guardiãs daquela tradição – aqui representadas por Geralda,

Helena e Dona Mercês –, e também a nova geração de representantes do candombe –

Flor, filha de Dona Mercês, todas citadas nos versos. Mesmo não conhecendo aquela

manifestação, o ouvinte se intriga com a presença desses nomes, em meio à descrição de

uma cena que certamente se refere a alguma festividade. Na gravação do show Pietá o

público assiste à entrada do grupo de candombe guiada por Dona Mercês, que entoa: “O

senhor me dá licença, me dá licença/ de tocar nessa baixada”. De repente, os tambus

soltam suas vozes pelas mãos de membros daquela comunidade. Flor se põe a dançar e,

no embalo, toda a trupe de Milton. Nesse instante, o palco verte-se num altar em honra e

glória à Senhora do Rosário.

A ambiência sonora de Casa Aberta realça os ares festivos sugeridos nos versos.

Instrumentos como piano e violão debulham notas altas numa conversa que acrescenta

exuberância e entusiasmo à cena. E as vozes de Marina Machado e Milton Nascimento

73

despontam num vórtice sonoro, entrando na festa. Por vezes se revezam, por vezes se

deixam conduzir para uma área de fundo, de onde surgem como eco uma da outra.

Milton entoa a segunda voz e emite vocalises, enchendo aquele ambiente, como se as

vozes dele e de Marina, reunidas, buscassem capturar aquele sentimento coletivo das

festas populares, do candombe. Ao final, o som rouco dos tambores. Pela fresta, mais

uma referência ao candombe, que ainda seria acessado pela voz de Marina Machado, a

entoar um cântico popular no arremate da canção: “vou descendo rio a nado/ Para uma

de mergulho/ pra salvar aquele moreno/ Oh meu Deus/ Beiço de caju maduro”.

O mesmo Chico Amaral, que assina a letra de Casa Aberta, comporia com

Milton Nascimento outra canção com referências nas manifestações da cultura popular,

tanto na letra quando na melodia. Na gravação de Boa Noite, a ambiência sonora ganha

forma numa vigorosa percussão que acomoda as vozes de Milton Nascimento e Simone

Guimarães. A batida sincopada abre clareiras memoriais para libertar o canto dos

antepassados e repercuti-lo às gerações futuras. Nos versos, os toques de tambores e

tambus narram memórias de povos afro-brasileiros. Contam a história de uma

resistência que também se sente no terreno da cultura, pela permanência dos sons

daqueles instrumentos que gestam identidades. Resistência que se deu no passado e

ainda hoje é necessária. Em belas metáforas, a festa de um povo inaugura um território

de igualdade onde se tecem esperanças de que a comunhão experimentada naquele

instante impregne outros espaços do cotidiano e a própria vida. A África ecoa em

cânticos recolhidos no solo de Minas e se projeta em identificações sonoras com outros

recantos do país:

Vim pra te dar boa noite

Vim participar da festa

Quebrei as regras da corte

Pus a coroa na testa

Moças que trazem licores

Moços que tocam tambus

Quero esta vida, quero os amores

Tudo me leva em sua luz

Veja que o tempo não para

Mesmo que a noite perdure

Olha a alegria na cara

Querendo nos conduzir

Deixa ela correr os becos pobres da nação

E de repente unir a gente

Num surpreendente não

Vim pra dançar toda noite

Danço até amanhã

74

Tambores sofrendo açoite

Da minha gente, meu clã

Tudo ressoa

Cada pessoa

Responde ao som do trovão

Quero as estrelas

Preciso vê-las

Trago perguntas nas mãos

Veja que o tempo não para

Mesmo que a noite perdure

Olha a alegria na cara

Feito manhã a subir

Vem criança vem dançar

Ninguém é senhor nesse mar

Se o batuque é de escravo

Toda esperança é de rei

Sou capitão da noite

Sou lua agora em surdina

Voz da minha sina

Soando aquilo que sou

Vim pra deixar na madrugada

Uma pegada de calor

Vim pra saber o que restará

Quando calar-se o tambor

Aquele canto sincopado por vezes procura sua face tambor. Os graves da voz-

tambor de Milton buscam o chão, de onde germina a identidade daquele terreno arado

em sons que a memória guarda. Sons estes que, emitidos, inquietam pelo

reconhecimento que produzem, sementes lançadas ao solo da música numa espécie de

canto de trabalho que grita dor. Os vocalises dão asas ao sonho louco de Milton e

Simone e os transportam para um lugar, onde as temporalidades finalmente se cruzam.

A cantora realça os metais da voz em um canto estridente, propositadamente aguerrido.

“Seu canto é selvagem”, lhe diria Milton.104

Naquela ambiência, o canto da artista é uma

metáfora da resistência. Ao fundo, Milton entoa seu grave-tambor e ainda aciona

falsetes celestes. As vozes da dupla voam em distintas direções, tocam-se levemente,

quase se esbarram, como pássaros a brincar em revoada. “Mas ele sabe que eu dou

conta é dessas coisas mesmo, da voz selvagem, bater o pé no chão. Se precisar imitar

um tambor, essas coisas mais selvagens, tribais. Ele gosta de botar um negócio tribal e

uma música que tenha força, porque ele sabe que eu tenho força.”105

A fala de Simone

Guimarães foi estimulada pela lembrança de sua participação no show em comemoração

aos cinquenta anos de carreira de Milton, em sua passagem por Brasília. Simone cantou

104

Simone Guimarães em entrevista a mim concedida. Op. cit. 105

Idem, ibidem.

75

Morro Velho e Promessas de sol. Suas considerações caem bem à análise da canção

aqui apresentada. A cantora ainda reflete:

O cantor, quando ele tem o Brasil dentro do peito, ele canta com esses matos,

tudo dentro. Acho que quando o Bituca canta, parece que ele canta com bambu

dentro, a cachoeira passando dentro. Sabe, é isso. É um Brasil que eu queria

tanto que as pessoas tivessem esse Brasil dentro do coração. Que você tem

[aponta para mim], que você tem [aponta para a professora Eleonora], que eu

tenho. Toda vez que eu canto dentro do meu país eu fico tão feliz! Mas é tão

rara a oportunidade, sabe? Eu tenho que ir lá, produzir, e não sei se vai dar

certo.

O canto aguerrido que entoou em Boa Noite reverbera em sua fala sobre as

dificuldades enfrentadas por artistas que produzem músicas associadas a MPB. Simone

aponta problemas nos meios de difusão da música: falta de espaço, tanto em termos de

apresentação em casas de show quanto em suportes midiáticos. Essa é uma questão

interessante, pois vai de encontro àquele jargão: “Já não se produz música como

antigamente”. A impressão de um vazio de talentos é quebrada pelo discurso do artista

que se aventura a buscar um lugar ao sol por uma rota de caminhos nem tão certeiros,

como gravadoras independentes e sítios na internet. Justamente nesses espaços, percebe-

se que os talentos se multiplicam. Ao público incumbe agora a garimpagem do tipo de

música que o afeta, não a opção, por vezes difícil, ante uma oferta sedutora de produtos

musicais bem-acabados e diversificados. Simone Guimarães, ao adotar esse percurso,

estaria, na verdade, seguindo um conselho de sua mãe, muito válido para os novos

talentos da MPB: “Minha mãe falava assim: já que você tá fazendo essa música, que

não agrada ninguém, faz o seguinte, pega seu burrinho, monta nele e vai embora,

porque se você estiver na estrada, quando as pessoas quiserem te encontrar, elas vão

saber onde você está.”106

Na entrevista com a artista, vemos que seu esforço é por fazer

uma música condizente com aquilo em que acredita, com suas preferências musicais.

Seu empenho é por fugir do óbvio. Os que comungam com sua arte são presenteados

com discos impecáveis e shows personalizados, porque produzidos em pequenos

espaços. Seu depoimento dialoga com os versos de uma canção que divide com Milton

Nascimento no disco Pietá:

Nada de novo no meu mundo

Eu vivo um segundo

Meu tempo é meu lugar

Nada me tira do meu rumo

Eu sigo o meu prumo

106

Idem, ibidem.

76

O meu jeito de ser

Nada espero que não tenha

O que vier que venha

Sem me atropelar

Tudo que quero é o mar aberto

E ter você bem perto

Olhar no seu olhar

(...)

O burrinho montado por Simone Guimarães a conduziria até os caminhos de

Milton Nascimento. A artista lembra que o conheceu quando ainda era criança e vivia

em sua cidade natal, Santa Rosa de Viterbo, interior de São Paulo. Milton teria papel

fundamental em sua formação musical e em sua carreira:

Eu tive muita sorte de ter conhecido o Milton bem pequenininha. Estudei na

escola dele lá em Belo Horizonte. Falou: “tenho uma escola, você vai estudar

lá”. Então tá, mas minha mãe não deixava, só quando eu fiz dezoito anos que

ela deixou. (...) Eu conheci o Juarez Moreira lá. O Juarez Moreira é um

parceiro que eu tenho, um dos maiores guitarristas do mundo, violonistas do

mundo, que mora em Belo Horizonte, e era professor nessa escola, que se

chamava Escola Livre de Música.107

A experiência na Escola Livre de Música remete ao princípio da década de 80.

Simone conta que nessa escola estudou voz, violão e passou a integrar um grupo de

choro. E também a frequentar outros espaços de música, como o bar do Lulu. Foi nesse

circuito belo-horizontino que conheceu Flávio Henrique e Marina Machado, outros

artistas que participaram de Pietá. Se bem pensarmos, este disco de Milton Nascimento

dava voz a novos nomes daquele circuito, promovia o encontro de sua geração com a

mais recente. Alguns desses artistas tiveram na sonoridade do Clube da Esquina sua

principal referência, como os três aqui citados e sempre lembrados como continuadores

da obra clube-esquinista.

Milton Nascimento chegou a participar de alguns discos de sua afilhada musical.

A canção Imagem e Semelhança, gravada em dueto com Marina Machado em Pietá,

teve sua primeira versão no álbum de Simone Guimarães Virada pra lua, de 2001.

Simone recorda um de seus duetos preferidos com Milton Nascimento, o da canção

Milagre dos peixes, gravada em seu disco Casa de Oceano. Foi Milton quem dirigiu

esse dueto. Segundo a artista, sua participação no álbum Pietá reconfigurou sua carreira:

107

Idem, ibidem.

77

Ele me ajudou tanto, cê não tem noção. Eu cheguei em Paris, fui fazer um

concerto na embaixada com um violonista clássico e tal, cheguei pra cantar

minha música popular, o cara ficava doido com minhas harmonias, eu falava:

“essa aqui não é minha não, é do Bituca”. [risos] Ele falou: “Eu conheço você,

você não é aquela menina que cantou no disco do Milton Nascimento?” Ele me

deu uma dimensão, uma redimensionada na minha carreira. E ele fez isso com

várias pessoas.108

No relato de Simone, Milton Nascimento surge como a Pietá de seu disco. Ele é

colo para os artistas em quem pressente talento. Diante da falta de visibilidade no meio

musical atual, Milton faz do palco a vitrine para os novos artistas. Num encontro de

admiração mútua, o padrinho se encanta com as sonoridades dos jovens pupilos. Como

vimos, seus músicos e convidados não são meros coadjuvantes, pois atuam ativamente

na construção daquela sonoridade, trazem informações que, inclusive, ajudam a

atualizar a obra de Milton Nascimento. As fronteiras do território musical miltoniano

têm como marca a fluidez, a troca de informações.

Outros sons emitidos em Pietá trazem novas informações da cena musical de

Belo Horizonte. Uma das canções que ficaram como sucesso de Pietá, a balada Quem

sabe isso quer dizer amor, traz um solo de guitarra de Samuel Rosa, vocalista do Skank.

Isso poderia passar despercebido se no show Pietá a referência ao grupo não ficasse tão

explícita na performance dessa canção com uma citação melódica de um sucesso do

Skank: Balada do amor inabalável.

A terceira voz trazida à luz pelo disco de Milton Nascimento seria uma surpresa

aguardada por muitos dos admiradores de Elis Regina. Maria Rita ainda não tinha

aparecido para a grande mídia, nem gravado seu primeiro CD, quando participou de

Pietá. No vídeo de divulgação de seu álbum, Milton conta sobre seu encontro com

Maria Rita nos ensaios do show Gil & Milton:

De repente na minha vida apareceu a Maria Rita, que é a filha da Elis Regina,

que eu só tinha visto uma vez na minha vida. E apareceu com um

compactozinho que ela gravou, um só! Vamos dizer que, assim, que eu não sei

por que cargas d’água ela foi lá onde a gente tava ensaiando, eu e o Gil, e

chegou e me deu o compacto, o CD, e falou assim: “olha, ouve aí e vê o que eu

vou fazer da minha vida”.

Milton torna-se, assim, o padrinho musical da filha de quem um dia acolheu sua

música, Elis, sua musa inspiradora. Aqui um parêntese: como boa parte dos admiradores

de Elis Regina, o anúncio de que Maria Rita cantaria naquele disco me trouxe uma

108

Idem, ibidem.

78

inquietação: sua voz teria alguma semelhança com a da mãe? A voz da filha aliviaria as

saudades de Elis? Tristesse, a primeira canção que Maria Rita canta no CD, começa

com ares de suspense, instalado pelos sopros e cellos. Os violinos acrescentam drama.

Logo viria o canto emocionado de Milton a pronunciar os primeiros versos da canção:

Como você pode pedir

Pra eu falar do nosso amor

Que foi tão forte e ainda é

Mas cada um se foi

Quanta saudade brilha em mim

Se cada sonho é seu

Virou história em minha vida

Mas pra mim não morreu

A atmosfera alçada pela sonoridade da canção comunica-se com a força

dramática dos versos. A ansiedade provocada pelos sentimentos ali inscritos se

confunde com a da espera da voz que virá nos versos seguintes:

Lembra, lembra, lembra

Cada instante que passou

De cada perigo, da audácia, do temor,

Que sobrevivemos, que cobrimos de emoção

Volta a pensar então

“Lembra, lembra, lembra...”. De fato, a voz era distinta da voz de Elis, mas

algumas partículas sonoras em certas inflexões e a maneira de emitir o canto evocavam

a cantora de outrora. Maria Rita trazia a lembrança, embora com personalidade para

impor a própria marca. Elis vinha pelas frestas, mas suficientemente nítida para os

admiradores que a procuravam incansavelmente na escuta da canção. E o emocionante

encontro da voz de Maria Rita com a de Milton se daria nos versos finais da canção:

Sinto, penso, espero, fico tenso toda vez

Que nos encontramos, nos olhamos sem viver

Para de fingir que não sou parte do seu mundo

Volta a pensar então

Logo após a participação em Pietá, Maria Rita gravaria o primeiro CD pela

mesma gravadora de seu padrinho musical, a Warner Music. Dois sucessos do disco

viriam do repertório de Milton: A festa e Encontros e Despedidas. Ao final de Pietá,

todos os braços confluem para o grande rio: as vozes que participaram desse disco

seriam reunidas na canção que o fechava, Vozes do vento, parceria entre Kiko

Continentino e Milton Nascimento. Simone Guimarães, Marina Machado, Maria Rita e

Milton Nascimento revezam nos vocais. Ao fundo, o coro de vozes masculinas, que

79

também aparece em outras faixas do disco, dá volume e força à atmosfera que vai se

configurando. O arranjo de introdução faz citação do que abre a canção Raça no filme A

sede do Peixe e no show atual de Milton, Milton Nascimento: uma travessia. Nos

versos, a imagem da descoberta do talento artístico e a música como o lugar onde se

manejam sensibilidades, beleza e poesia. Quase bruxaria. Ali as vozes que se

descobriam eram abrigadas pela voz madrinha. Gestantes que um dia foram daquele

encanto, agora se mostravam prontas para seguir suas jornadas. Letra e música inspiram

a celebração desses encontros proporcionados pelo território da canção.

Pouco a pouco vou cativando

Dou o meu colo

Vou encantando

Sopro umas notas

No teu ouvido

Muito suave

Enfeitiçando

Se estás dormindo

Ou acordado

Sempre contigo

Estou cantando

Como o vento

Emocionante

Vou pela vida

Te enfeitiçando

Por ti meus braços

Sou puro afeto

Sou mãe da lua

E sol nascente

O azul do dia

Banhou tua alma

Te enternecendo

E segurando

Essa garganta

Se descobrindo

Vai se encontrando por um caminho

Que não tem volta

Que abre as portas

De todo amor

Desse nosso mundo

Mãe do amor

Que me ensinou

Como se canta

Poesia

Mãe do amor

Que me ensinou

Para viver

80

Poesia

Quero chegar

Quero partir

Quero soltar

Alegria

Sempre te amar

Quero valer

Todos os momentos

Dessa voz madrinha

Beleza, brisa leve, certeza

Brisa leve

Rainha

Preciosa

Amada

Linda rosa

No apogeu

Me deu tudo

No show Pietá, mesclam-se algumas canções do novo disco com antigos

sucessos de Milton Nascimento e de outros nomes da música. Marina Machado foi a

voz feminina que integrou a trupe do artista durante as apresentações de Pietá. Naquele

palco, costuravam-se emoções que atingiriam o público por onde a caravana miltoniana

passava. Pietá ficou por anos em turnê pelo Brasil e pelo mundo, tornando-se um dos

projetos bem-sucedidos de Milton, tanto pelas considerações da crítica quanto pela

presença do público.

Milagre dos Peixes, multiplicação de sons

Um som de festas de rua com arrebatadora pulsação percussiva traz à memória

marujadas e cabocladas. Um toque de suspense conduz a uma floresta onde criaturas

misteriosas rondam um corpo em fuga. Em meio à neblina cortada por galhos de árvores

e por uma respiração ofegante, avista-se o campo onde acontece a festa cigana em

celebração ao que já nasceu, o menino Pablo. Do alto, vem uma voz que entoa um canto

gregoriano. Não se saberia dizer qual era aquele lugar, nem seu tempo, ou como se tinha

81

chegado ali. Identificar o canto no meio do mato pelos sons que o abraçavam, eis a

tarefa. Aquela festa lembrava um canto latino. Aquela percussão, um toque de África. A

voz sublime trazia uma fagulha do divino. Palavras soltas, frases cortadas no ar

impediam de precisar o lugar. Seria sonho, realidade, ou aquele estágio em que a

consciência ainda não se entregou à profundidade do sono? Fronteiras. “Algumas vezes,

abrindo os olhos na escuridão, escutava restos de frases, pedaços de conversas que não

se ligavam, suspiros, ruídos que a distância tornava singularmente estranhos. Depois

adormecia de novo e sentia a tranquilidade derramar-se no seu corpo como um

bálsamo.”109

Na atmosfera projetavam-se faíscas de angústia, tristeza, lamento, alegria e

esperança. Tudo misturado num redemoinho onde essas sensações eram estranhamente

harmônicas. Estamos em Milagre dos peixes, o disco de onde escapam os sons de

Milton Nascimento e sua trupe. Esse álbum veio no tempo em que a censura da ditadura

militar se asseverou. Os meios por onde artistas circulavam passaram a ser vigiados.

Muitos nomes de nossa música tiveram suas obras mutiladas ou inteiramente proibidas.

Alguns deixaram o País, outros permaneceram por aqui, mesmo diante do clima de

sufoco.

Isso começou na época da ditadura militar. Eu fui um dos poucos artistas que

ficaram no Brasil, porque jurei que ninguém me arrancaria da minha terra, que

podiam me matar mas eu não ia. Por isso eu era muito visado pela política, que

censurava tudo que eu fazia. Eu ia gravar o disco Milagre dos peixes e, quando

estava tudo pronto, a censura proibiu as letras. O pessoal da Odeon me disse

para gravar outro disco, mas eu quis arrumar um jeito. Então comecei a usar a

voz no disco como instrumento. O que aconteceu foi muito interessante porque

não sabíamos se ia funcionar, se as pessoas iam entender, mas todo mundo

entendeu o motivo de não ter letra, eu tinha cantado com o instrumento da

minha voz e as músicas continuavam passando as mensagens. A partir daí

passei a usar esse recurso. Eu gosto, adoro esse instrumento.110

Diante de um limite imposto a sua música, veio a descoberta de caminhos que

podiam ser percorridos por sua voz para alcançar as percepções que as letras vetadas

ajudavam a construir. Se o artista não dispunha de palavras para comunicar sua

mensagem, contava com a linguagem musical, capaz de inquietar o público pelas

sensações que provocava. Indignação, acuo, nó na garganta, lamento, ira. Tudo vinha

pela voz e pela densidade do ambiente daquele disco, lançado em 1973. O público, já

acostumado a caçar nas entrelinhas as mensagens que ansiava encontrar, certamente

entendeu aquele grito como uma resistência ao cenário político daquele instante. Em

109

“Mãos vazias”. In: Lúcio Cardoso. Novelas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 207. 110

“Milton Nascimento” (entrevista) In: Violeta Weinschelbaum. Estação Brasil. Op. cit., p.216.

82

matéria da época, Tárik de Souza informa que as letras de Hoje é dia de El Rey, Cadê e

Os Escravos de Jó foram cortadas pela censura.111

De uma, restaram poucos versos, a

canção Os Escravos de Jó. De Hoje é dia de El Rey só temos um pedaço de verso em

sua gravação: “Filho meu”. Em discos anteriores, Milton Nascimento já havia

experimentado gravar faixas sem letra. Em Milagre dos peixes, a experiência se

repetiria em 5 faixas. Mas com a ação da censura, esse número subiria para 8. O projeto

contava com 11 canções, distribuídas em um LP – onde havia 8 – e em um disco

compacto com outras 3: Sacramento, Cadê e Pablo. O LP e o compacto vinham juntos

numa sofisticada embalagem.112

Sem pretender recuar à gravação de Milagre dos

peixes, Milton Nascimento, por motivações outras, acabaria por realizar o sonho de

tantos artistas de gravar um álbum conceitual onde salientava o caráter instrumental de

sua obra. E isso logo após ter lançado o ousado Clube da Esquina. Colaborou para esse

feito o seu prestígio junto a Milton Miranda, diretor de produção da gravadora que

apostou no projeto.113

Milton Nascimento era artista de catálogo da Odeon, o que

significa que fazia parte do elenco que compunha a fisionomia da gravadora.

O primeiro indício do silenciamento nas canções pressentia-se na apresentação

do próprio disco, onde a ficha técnica detalhada era mais eloquente que mil palavras,

como ainda não havia acontecido em discos brasileiros.114

Nos créditos das canções

vinham também os nomes dos parceiros censurados, o que podia ser entendido como

tributo aos que tiveram sua participação vetada autoritariamente, e ainda, como

denúncia da censura imposta ao disco: nomes como o de Márcio Borges e Ruy Guerra,

figurando em créditos de canções sem letra, acenderiam no ouvinte o pisca-pisca de um

equívoco, ante a ausência, no conteúdo do disco, do que prometia a ficha técnica.115

111

Cf. Tárik de Souza.“Sem palavras. Milagre dos Peixes, com Milton Nascimento; LP Odeon (12370)”.

Revista Veja. (11/07/1973). 112

No relançamento em CD, as canções foram distribuídas na seguinte ordem: Os escravos de Jó (Milton

Nascimento/ Fernando Brant); Carlos, Lúcia, Chico e Tiago (Milton Nascimento); Milagre dos peixes

(Milton Nascimento/Fernando Brant); A chamada (Milton Nascimento); Pablo Nº2 (Milton

Nascimento/Ronaldo Bastos); Tema dos deuses (Milton Nascimento); Hoje é dia de El Rey (Milton

Nascimento/Márcio Borges); A última Sessão da música (Milton Nascimento); Cadê (Milton Nascimento

e Ruy Guerra); Sacramento (Nelson Ângelo/Milton Nascimento); Pablo (Milton Nascimento/Ronaldo

Bastos). 113

Cf. Luiz Maciel Filho. Milagre dos Peixes -1974/ Abril Coleções. São Paulo: Abril. 2012. (texto que

acompanha o disco relançado) 114

Cf. Maria Dolores Pires do Rio Duarte. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Op.cit. 115

Os cerceamentos não se davam apenas no plano da composição. Naquele cenário de ditadura, o artista

foi ameaçado. Em dado momento, outros espaços de divulgação de sua obra, além dos discos, sofreram

restrições. Como vários nomes de nossa música, Milton Nascimento teve que se valer de palcos

alternativos, como os do circuito universitário. O artista rememora esse ambiente de acuo quando

83

O disco de Milton Nascimento reunia um time de grandes músicos. Contava com

a direção musical do maestro Lindolpho Gaya e com a participação de nomes que

tiveram grande importância na carreira de Milton, como Wagner Tiso, Novelli, Paulinho

Braga, Naná Vasconcelos, Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas, Paulo Moura, Nelson

Ângelo. Alguns deles vinham do Som Imaginário, como Wagner Tiso e Robertinho

Silva. O grupo reunido para acompanhar Milton no show Milton Nascimento, ah! E o

Som imaginário, de 1970, acabou se consolidando, e se firmou, chegando a desenvolver

uma carreira e a gravar discos próprios.116

Milagre dos peixes ainda contou com a

presença de uma orquestra e com os arranjos e regência de Radamés Gnatalli numa de

suas faixas: Tema dos deuses. Os nomes aqui elencados dão a dimensão do quanto o

plano instrumental era e é importante na obra de Milton Nascimento. Em Milagre dos

peixes sua voz era um instrumento a mais naquela ambiência. Milton ainda convocaria

outras vozes para se juntarem a sua nessa experiência: Clementina de Jesus, Sirlan, Nico

Borges. Formaria também um coro que produz aquele sentimento de coletividade

presente em sua obra.

Hoje é dia de El Rey foi inspirada na Suíte dos pescadores, de Dorival Caymmi,

composta por quatro partes distintas. Retrata um conflito de gerações num diálogo entre

pai e filho. O conflito é pautado pela indignação do filho diante dos mandos e

desmandos de El Rey, governante de um lugar sem localização exata. Pela forma que é

nomeado, “El Rey”, faz recordar governos e revoltas que atravessariam diferentes

temporalidades. O que vem descrito na música podia muito bem se passar ontem, hoje

ou mesmo amanhã. Memórias de acontecimentos como a Conjuração Mineira sopram

rebelião (associações como esta mais se insinuam do que se afirmam; dependem dos

ouvidos de quem escuta). Temos, na verdade, uma alegoria que servia muito bem ao

Brasil ou outros lugares que viviam sob o jugo de ditaduras, como alguns de nossos

vizinhos da América Latina. Talvez por evocar esse espírito contestador, a canção teve

questionado em entrevista da revista Brasileiros, “Mas você sofreu ingerências que foram além da

questão artística?”. A resposta: “Sim, houve muitos episódios. Coisas terríveis, que prefiro nem falar. Não

podia conversar com ninguém sobre o que estava acontecendo, pois, para o meu próprio bem, fui

recomendado a não contar nada. Para poder continuar cantando, eu tive que me juntar aos estudantes da

UNE e sair pelo Brasil afora fazendo o circuito universitário. Tive que sair de cena um tempo, uns dois

anos, nos quais eu não podia tocar no Rio nem em São Paulo. Foi terrível.” (Milton Nascimento em

entrevista a Marcelo Pinheiro. “Nos bailes da vida”. Revista Brasileiros. Nº 75 – outubro de 2013, p. 58.) 116

A primeira formação do Som Imaginário tinha Wagner Tiso no piano, Luiz Alves no baixo,

Robertinho Silva na bateria, Tavito na viola de 12 cordas, o Fredera na guitarra, Zé Rodrix na voz e órgão

e Laudir Oliveira na percussão. Mas outros nomes passariam pelo grupo em formações posteriores, como

Naná Vasconcelos, Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Jamil Joanes e Paulinho Braga. (Cf. Beatriz Coelho

da Silva. Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação. Op. cit.)

84

seus versos totalmente proibidos, restando apenas a expressão “Filho meu”. Ao espírito

inquieto do filho, viria a força apaziguadora do pai.

Filho: Não pode o noivo mais ser feliz

Não pode viver em paz com seu amor

Não pode o justo sobreviver

Se hoje esqueceu o que é bem-querer

Rufai os tambores saudando El Rey

Nosso amo senhor e dono da lei

Soai os clarins, pois o dia do ódio

E o dia do não são por El Rey

Pai: Filho meu, ódio você tem,

Mas El Rey quer viver só de amor

Sem clarins e sem mais tambor

Vá dizer: nosso dia é de amor

Filho: Juntai as muitas mentiras

Jogai os soldados na rua

Nada sabeis dessa terra

Hoje é o dia da lua

Pai: Filho meu cadê teu amor

Nosso Rey está sofrendo a sua dor

Filho: Leva daqui tuas armas

Então cantar poderia

Mas nos teus campos de guerra

Hoje morreu poesia

Ambos: El Rey virá salvar...

Pai: Meu filho você tem razão

Mas acho que não é em tudo

Se o mundo fosse o que pensa

Estava no mesmo lugar

Pai você não tinha agora

E hoje pior ia estar

Filho: Matai o amor, pouco importa

Mas outro haverá de surgir

O mundo é pra frente que anda

Mas tudo está como está

Hoje então e agora

Pior não podia ficar

Ambos: Largue seu dono

E procure nova alegria

Se hoje é triste e saudade pode matar

Vem, amizade não pode

Ser com maldade

Se hoje é triste a verdade

Procure nova poesia

Procure nova alegria

85

Para amanhã...117

“Para amanhã...”: na negação do hoje, esboçam-se crenças em futuras

liberdades, gestadas, inclusive, como posturas diante da vida. Nesse fio de esperança,

enlaçam-se as gerações. Os compositores Milton Nascimento e Márcio Borges

sonhavam com um dueto em que Milton encarnaria o filho e Dorival Caymmi, o pai.

Diante do veto da letra, desistiram da ideia. Sirlan, cantor e compositor mineiro, que foi

revelado no VII FIC (1972) com a canção Viva Zapátria, em parceria com Murilo

Antunes, foi convocado para substituir Caymmi nesse dueto sem palavras. A mera

citação de Sirlan, cantor tão precocemente silenciado pela censura, é pretexto para

levantar informações sobre ele, ante o vazio sobre a curta, mas impactante carreira. Por

isso, na entrevista a Fernando Brant, que ficou responsável pela produção do disco

Milagre dos peixes, colhi a oportunidade de indagar sobre a participação de Sirlan

naquele projeto:

...ele tinha um contrato com a gravadora e toda música que ele mandava, eles

censuravam, né? Aquela participação dele no Milagre dos Peixes, quem ia

cantar aquela música era o Dorival Caymmi, mas como tirou, proibiu a letra,

não podia... Aí o Sirlan só falava assim: “filho meu” [com voz impostada]. Só

pra falar que, “ó, tinha uma coisa aqui”. E depois ele foi mexer com outras

coisas. Ele ainda tentou um tempo. Mas perde a hora, né? Quer dizer, ele não

perdeu, eles tiraram dele.118

O relato de Fernando Brant nos remete ao silenciamento de uma voz clube-

esquinista. Sirlan entraria para uma categoria de artistas que tiveram sua carreira

encerrada definitivamente pela censura: não interessaria a gravadora alguma investir

num nome com tantos problemas com a censura tão logo revelado ao público. O

primeiro e único disco de Sirlan, Profissão de fé, foi lançado somente em 1979, pela

gravadora Continental, ou seja, sete anos depois de sua participação no FIC. Não teve o

cantor, assim, oportunidade de aproveitar a projeção que aquele festival daria ao seu

nome. O silêncio de sua voz marcante ecoa e alerta sobre silêncios de tantas outras das

quais não tivemos nem notícias.

A ambiência sonora de Hoje é dia de El Rey ergue-se de maneira surpreendente,

com os sons dos instrumentos escapulindo em distintas direções. O arranjo ora deixa

transparecer ares mais densos, ora mira numa suavidade, descrevendo muito bem o

117

A letra da canção encontra-se disponível nas reedições do disco, embora nunca tenha sido gravada

uma versão com os versos. 118

Fernando Brant em entrevista a mim concedida. Op.cit.

86

diálogo entre pai e filho. No início, os clarins enfeixados no sax de Paulo Moura

anunciam a canção. A voz de Milton é emitida como se estivesse contando uma história.

Um canto melismático, que evoca em cada dobra as emoções de palavras proibidas.

Predominam a percussão e o violão naquela ambiência armada aos solavancos. De

repente, ares de sufoco no encontro sonoro do órgão com aquela voz. Noutras partes do

“discurso” do filho, as baquetas de Paulinho Braga correm pela bateria lembrando

bandas militares. O estado é de apreensão. O sax de Nivaldo Ornelas solta um brado de

dor em direção à voz de Milton, que emite ira em falsetes.

Os trechos do discurso do pai são encarnados pelo canto impostado de Sirlan,

acolhido num ambiente em baixo volume, que busca a calma. Sua voz é firme e doce,

como a do pai que quer apaziguar os ânimos daquele filho. Em certo momento emite a

voz com a boca fechada, como quem entoa cantiga de ninar para acalmar uma criança

teimosa, no caso para apaziguar o espírito juvenil. A cada entrada, o reconhecimento da

voz do pai na emissão do verso quebrado: “filho meu...”.

A alternância de emoções das vozes de Milton Nascimento e Sirlan, bem como o

ambiente sonoro, dão consistência ao diálogo que ali se cria. Na última parte, as duas

vozes se encontram num ambiente de paz, reforçado pela sonoridade – constituída por

oito violinos, dois celos e duas violas – que dá seguimento à canção. Tal ambiente abre

caminho para o emocionante solo de sax de Nivaldo Ornelas em inspirado improviso.

Num crescendo, o som emite curvas como se fossem palavras. Ao fundo, as vozes de

Milton, Sirlan, Novelli e Gonzaguinha aparecem em coro, que cede lugar para a fala

daquele instrumento que lança fagulhas de sentimentos. O som sai arranhado, sofrido,

toma feição de desespero, como garganta fechada que solta o berro enfurecido. Som

capaz de apanhar palavras em forma de sensações, como nos versos do poema de

Quintana sobre o instrumento: “... sou, talvez, dessas máscaras ocas/ num arruinado

monumento: empresto palavras loucas à voz dispersa do vento...”119

Em Milagre dos peixes teríamos o ambiente onde a voz busca a emoção do

instrumento e os instrumentos tornam-se voz. Na canção Carlos, Lúcia, Chico e Tiago,

além dos belos vocalises de Milton Nascimento em variadas modulações, temos a forte

pulsação em notas longas e vibrantes que vêm do choque firme dos dedos de Novelli

119

“Instrumento”. In: Mário Quintana. Apontamento de história sobrenatural. Rio de Janeiro: Objetiva,

2012, p. 51.

87

contra as cordas do baixo. No início, destacam-se o baixo e o piano, que insiste nas

mesmas notas. A voz grave do baixo constrói o terreno movediço por onde a percussão

de Naná Vasconcelos e a voz de Milton tomam impulso para alçar voos. As frases do

baixo de Novelli soam como assinatura desse importante nome na carreira de Milton

Nascimento. É a sua voz na obra do amigo. Em A chamada, a percussão de Naná

Vasconcelos cria a atmosfera de uma floresta. Ao chamado dos seus assovios, vêm

pássaros. Sons produzidos pela voz emitem sensações de perigo do ataque de aves. De

instrumentos percussivos vêm barulhos como de asas ou folhas em rápido movimento.

Esses efeitos compõem um clima de apreensão, como se algo estivesse prestes a

acontecer. Ao escutar essa faixa em um aparelho de som, somos surpreendidos pela

forma como são distribuídas as vozes e os instrumentos percussivos de Naná

Vasconcelos. O som nítido que aparece numa das caixas diminui, voltando a ganhar

volume na outra. Esse efeito cria a impressão de que as criaturas nascidas da garganta e

das mãos de Naná estão se movimentando, correndo de um lado para o outro, rondando

nossos corpos.

Temos a valorização da parte instrumental na obra de Milton Nascimento em

exemplos como os das atuações desses músicos em Milagre dos peixes. Não estavam

eles ali meramente para acompanhar aquela voz, com o som de seus instrumentos

atuando como moldura chapada. Se fosse moldura, seria, então, daquelas criativas, que

compõem a tela pelos traços inusitados, prontos a surpreender, com elementos que se

integram à pintura. São como raízes que, tortamente, se arrastam pelo chão, mostrando-

se fortes quando quebram o cimento ou quase invisíveis quando buscam nutrientes na

profundidade do solo. Por sua vez, performances como a desse disco mostram que a voz

de Milton não se acomodaria a uma zona de conforto, pelo contrário, era estimulada a

competir com o instrumento, a explorar nuances para provocar sentimentos. Aqui, uma

informação compartilhada com os músicos que participaram de Milagre dos peixes

ajuda a explicar esse som criativo: a já citada paixão pelo jazz, que, digerido e

misturado a outras informações sonoras, ajudou esses artistas a criarem suas linguagens

musicais próprias. Ou seja, não imitavam esse gênero, mas buscavam dialogar com ele,

ou melhor, tinham nele uma inspiração e mesmo interlocução, já que esses músicos

também participaram de discos e projetos de nomes do jazz, como aconteceu com

Milton, Wagner Tiso e Robertinho Silva, que logo gravariam o Native Dancer com

Wayne Shorter. Ao mencionar o tratamento dado à voz no jazz, Joachim Berendt faz

88

consideração que também serve ao que já observamos em análises musicais, feitas até

aqui, de Milagre dos peixes:

Todo o jazz vem da música cantada e todo canto vem da música instrumental.

Não é à toa que grande parte dos cantores de jazz sejam instrumentistas – acima

de tudo Louis Armstrong. É muito comum, na literatura que existe sobre jazz, se

afirmar que o toque de determinado instrumento – como Johny Hodges por

exemplo – se assemelha a voz humana. Por outro lado, não existe melhor elogio

para uma cantora do que dizer: “ela trata a voz como um instrumento”.120

Junte-se a isso a dita liberdade de expressão atribuída ao jazz, característica que

convoca o músico a uma performance criativa. Sobre a música de Milton Nascimento,

Wagner Tiso afirmaria em entrevista a Ana Maria Bahiana naquela década setenta: “A

música de Milton é ótima para o músico. Dá espaço para a gente trabalhar. Mas eu sei

que ela enriqueceu muito com o meu trabalho. Ficou com mais nuances, mais

climas...”121

Em tempos de ditadura, onde a palavra foi amordaçada, nada mais natural que

buscar se expressar e contestar através de sons – contestar, inclusive esteticamente. O

amálgama musical de Milagre dos peixes trazia pitadas de religiosidade católica, jazz,

rock, manifestações populares, música latina. Ou seja, formava-se uma liga com

elementos que muitos viam como incongruentes, num arranjo revolucionário. Mas,

como visualizamos em momentos anteriores, a valorização dos arranjos e de músicos

tarimbados na obra de Milton não brota tão somente de uma necessidade de expressão

ante os rigores impostos pela ditadura; é traço marcante de diferentes períodos de sua

carreira, inerente em sua trajetória como músico, compositor e cantor.

Em texto produzido na década de setenta, em que se debruça em reflexão sobre a

música instrumental desse período, Ana Maria Bahiana comenta sobre as dificuldades

enfrentadas por esse segmento no cenário brasileiro, como a falta de um público

formado em audições desse tipo de música e o desinteresse de gravadoras. Em

consequência desses problemas, muitos músicos se limitariam a atuar em bandas que

acompanhavam os cantores – abrindo mão de participar da autoria das canções pelo

exercício criativo-instrumental, tão constitutivo do ofício do músico – ou, muitas vezes,

migrariam para o exterior em busca de melhores condições para a sua música.

120

Joachim E. Berendt. O jazz. Do rag ao rock. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975, p. 270. 121

Wagner Tiso Apud Ana Maria Bahiana. “Wagner Tiso: o maestro sai da sombra.” In: Ana Maria

Bahiana. Nada será como antes... Op. cit., p. 165.

89

Ao ouvirmos discos como Milagre dos peixes, percebemos que a arte de Milton

Nascimento se mostra como refúgio de nomes vindos da música instrumental. É um

lugar de fronteira, onde a palavra tem importância e a sonoridade é imprescindível.

Espera-se dos músicos criatividade e não acomodações. Alguns representantes da

música instrumental listados no artigo de Ana Maria Bahiana atuaram com Milton,

como Nivaldo Ornelas e Wagner Tiso. No depoimento de ambos, pressente-se a

importância de estilos como o jazz e a junção dele com outras informações que dão

identidade a suas obras:

No começo eu fazia as duas coisas (atuar como instrumentista e compor) bem

juntas. Era muito influenciado pelo jazz, né, como todo músico, e as duas coisas

eram parecidas, jazz e bossa. Eu compunha umas imitaçõezinhas de bossa nova,

sabe? Mas não mostrava a ninguém, achava bem ruinzinho. Foi aí por 72/73 que

composição e trabalho instrumental começaram a ficar bem diferentes. Eu

tocava uma coisa e compunha outra inteiramente diferente, saía assim, não tinha

jeito. Era toda uma volta a Minas, àquela coisa de música religiosa, essas coisas.

[Nivaldo Ornelas]

Acho que essas coisas (jazz e música erudita) mais os sons de Minas mesmo,

das igrejas, das fazendas, são os principais elementos do meu som. Ah, e tem o

rock, é claro. Os Beatles, jazz e Beatles, estão no mesmo plano. [Wagner

Tiso]122

O órgão que dá densidade ao som de Milagre dos peixes evoca a identidade

mineira pela música sacra. Mas não se pode negar o vínculo do instrumento também

com o rock, cuja sonoridade se multiplica pelos órgãos elétricos naqueles anos 70. Das

igrejas coloniais às mais simples de um interior desconhecido, o órgão se tornou uma

forte presença na atmosfera religiosa. Isso me faz retomar minhas próprias memórias

dos tempos em que ainda morava em Virgolândia, interior de Minas Gerais. Lá o som

do harmônio, espécie de órgão – mas sem os tubos que normalmente temos nestes –,

enchia a igreja, juntamente com ladainhas e cânticos, durante o Setenário das Dores de

Maria, celebração em homenagem a Nossa Senhora das Dores, que antecede em sete

dias a Semana Santa. O harmônio só emitia suas notas durante essa celebração. Depois

se calava pelo resto do ano. O instrumento era um dos símbolos, portanto, daquela

ocasião solene. Quem de longe ouvisse seus sons, nem precisava consultar o calendário,

pois já identificava: estávamos no Setenário das Dores.

122

Apud Ana Maria Bahiana. “Música instrumental – o caminho do improviso à brasileira.” In: Adauto

Novaes (Org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano: Editora Senac: Rio de

Janeiro, 2005, p. 64 e 65. Os textos reunidos nesse livro foram originalmente laçados em 1979 em cinco

volumes.

90

Conheci o harmônio tocado pelas mãos já cansadas de Seu Zé Padre. O toque

suave contagiava o ambiente de uma emoção indescritível, que fazia acreditar que

aquele instrumento e seu condutor eram, por um instante, o mesmo ser. E eram. Quando

a vida de Seu Zé Padre chegou ao fim, o harmônio também se calou. Hoje está

abandonado num canto à espera de mãos curiosas – e talentosas – que o redescubram.

Quando estive na casa de Milton Nascimento, uma peça que compunha a

decoração da sala logo me chamou a atenção: um harmônio muito parecido com o que

conheci em Virgolândia. Isso me fez pensar como aquele instrumento, que encheu os

sons de tantas igrejas, depois provocou uma inquietante familiaridade naqueles que o

identificaram entre os sons amalgamados a tantos outros na sonoridade dos discos do

artista.

Na mesma sala onde estava o harmônio, encontrava-se numa mesa de centro um

livro sobre a banda de rock americana The Doors. Foi esta a chave que detonou em

minha memória a importância do órgão na constituição da sonoridade desse grupo

norte-americano e de tantos outros nas décadas de 60 e 70. Curioso pensar que,

dependendo do receptor, alguns ingredientes sonoros nos discos de Milton Nascimento

podem ser identificados de uma perspectiva local ou global. Creio que o foco deve ser

posto no diálogo estabelecido entre um e outro. E isso vale para o restante do Clube da

Esquina. Através de suas músicas, o Clube da Esquina navegava por águas diversas,

mas sem se esquecer de dar “notícias do mundo de cá”. Não se sentia isolado, mas

pertencente ao mundo.

Minas também vem pela referência a manifestações da cultura popular em

arranjos como o de Os Escravos de Jó. Ali, a forte marcação da percussão referencia as

Minas negras em práticas culturais como congadas, marujadas, cabocladas. E um

elemento seria essencial para colorir essa paisagem afro, a voz de Clementina de Jesus.

Aquela voz primitiva do samba traz a emoção e a impostação de vozes que se espalham

em folias e congadas pelo interior do país. São as vozes negras brasileiras, que, embora

tomem feições próprias conforme as regiões em que se instalaram, também guardam

proximidade com as dores que enfrentaram e as resistências que seu canto impôs.

O texto de Ana Maria Bahiana sobre a música instrumental nos leva a refletir

sobre as dificuldades do músico naquele cenário. Uma música do repertório de Milagre

dos peixes estimula a pensar sobre o músico da noite, esse operário da canção. Em A

91

última sessão da música, o ambiente é composto pelo som do piano tocado por Milton

Nascimento e pelo burburinho ao fundo. Poderia ser um bar qualquer, onde vozes, em

argumentações acaloradas de papos não identificáveis, misturam-se a barulhos de

talheres, pratos e copos. Talvez uma ou outra pessoa dê atenção ao som de um piano

sufocado pela algazarra. Sozinho, mesmo rodeado de pessoas, o músico se delicia no

manejo do instrumento, tocado por e para ele, simplesmente. Encontra-se fora daquelas

socialidades produzidas num bar. Em texto sobre o disco, Marcus Vinicius vê nessa

performance uma crítica contundente:

Ciente de que na crônica dos tempos atuais a música está deixando de ser mero

“divertimento” para os ouvidos para ser, cada vez mais, uma linguagem de

significação própria e grande carga de expressividade, Milton registra em sua

composição, os últimos momentos do artista como bufão da sociedade. E fique

claro que quando ele fala em “última sessão de música” está querendo dizer

“última sessão da música digestiva”.123

A consciência de música feita não para agradar padrões de gosto e escuta é

evidente em discos como esse. Com Milagre dos peixes, floresceu em Milton

Nascimento e sua trupe a consciência de algumas questões relativas aos direitos dos

compositores. Na companhia de Márcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos,

lançou a Três Pontas Edições Musicais, administrada pela própria Odeon.124

Seus

direitos já não eram inteiramente cedidos à gravadora, agora tinham maior liberdade em

relação às edições de suas canções.

No texto de Tárik de Souza, o próprio Milton fala sobre A última sessão de

música: “é o clima da grande guerra, dos anos 40, o piano solitário num bar, alheio aos

ruídos.”125

Os tempos se comunicavam. As memórias de sensações daqueles

acontecimentos do passado pareciam cair bem ao presente ditatorial brasileiro, não

apenas no que tange à questão política, mas também ao lado sociocultural. O piano, os

percursos desse disco elaboravam através da dissonância, questionamentos à estética, à

política, ao modelo de vida daquele cenário. O poder de contestação desses sons coloca

a música de Milton Nascimento, novamente, em diálogo com o jazz. Em matéria em que

se posiciona sobre a força política do jazz, o saxofonista Sonny Rollins afirma:

123

Marcus Vinicius. “Milton, milagre de peixes e de música”. Folha de S. Paulo. (19/09/1973) 124

C.f. Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem. Op. cit. 125

Milton Nascimento Apud Tárik de Souza. “Sem palavras. Milagre dos Peixes, com Milton

Nascimento” . Op. cit.

92

Sobre a questão da força política do jazz, eu a entendo de forma um pouco mais

ampla do que ajudar a eleger um candidato. O jazz é político mesmo sem tentar

ser. Jazz é a música da liberdade. As pessoas que controlam o mundo muitas

vezes não querem liberdade. Preferem dizer o que as pessoas têm de fazer. O

conceito de jazz é o oposto disso. Jazz é improvisação. Eu toco o que chega até

mim. Fecho os olhos e liberto o que está na minha mente.126

As palavras de Sonny Rollins refinam o entendimento de gesto político, ao

ampliá-lo para variados atos do cotidiano – como tocar um instrumento –, onde há

quebra de padrões estabelecidos. O jazz seria, assim, além de um gênero musical, uma

expressão política. Na canção de Milton acima citada, a suspensão do cotidiano através

da música funcionava como a negação daquela realidade. Outras canções do repertório

de Milagre dos peixes buscavam refletir sobre a situação vivenciada naquele período.

Algumas, como vimos, foram censuradas.

A letra de Cadê, parceria com Ruy Guerra, integralmente proibida, usava de

imagens de contos infantis para construir alegorias onde predominavam indagações.

Diante da dúvida se, na letra, não seria o Brasil o país escondido em vestes de país de

fantasias, veio o veto da censura.

Meu príncipe encantado

Meu príncipe cansado

Cadê tuas botas de sete léguas?

E a Tilim de Peter Pan?

E tua esperança Branca de Neve?

Cadê, quem levou?

Quem levou?

Meu príncipe esperado

Meu príncipe suado

Que é do beijo da Bela Adormecida?

E a espada de condão

E o País Maravilhoso de Alice?

Cadê, quem levou?

Meu príncipe assustado

Meu príncipe queimado

Corta a noite escura desta floresta

Mata o fogo do dragão

Traz da lenda os jogos de nossa festa

Pra eu poder brincar e sorrir.

Na gravação da canção, as vozes dos meninos Nico Borges e Telo Borges

acionam o universo infantil que inspirou a letra; os arranjos somam-se às vozes,

conferindo ares lúdicos à canção. Ao ouvir essa faixa do disco, tenho a impressão de

126

Entrevista de Sonny Rollins a José Flávio Júnior. “É bem difícil ser uma lenda viva”. Revista Bravo!.

(Edição de outubro de 2008), p.84.

93

que Milton Nascimento brinca com o violão. Aquela atmosfera estimula nos músicos a

emissão de suas partículas infantis. Liberá-las significa se deixar levar por solos e

improvisos, brincar no território da canção. E brincadeira nesse campo é coisa muito

séria, permitida apenas para quem tem traquejo, como podemos constatar nos

surpreendentes solos da guitarra de Nelson Ângelo e do piano elétrico de Wagner Tiso.

Porém, nessa ciranda, as vozes das crianças em notas longas trazem um quê de

melancolia. Num agudo e cortante falsete, surge a voz de Milton Nascimento, um grito

em memória da palavra calada. Cadê ainda seria interpretada pelo artista em versão em

inglês no disco Milton, gravado nos Estados Unidos em 1976.

Tomando outras canções que dialogam com Cadê, constata-se a dificuldade em

desvendar os critérios de avaliação da censura. Engana-se quem acredita que

obedecessem a algum manual com determinações rígidas e expressas. Um exemplo que

ajuda a ilustrar essa reflexão é Jardim da infância, parceria de João Bosco e Aldir

Blanc, que compõe o repertório de Falso Brilhante, disco de Elis Regina lançado em

1976. Em sua letra temos imagens próximas à de Cadê, pois a contestação ao regime

autoritário se elabora através de alegorias que remetem a histórias e brincadeiras

infantis, como no trecho abaixo:

É como um conto de fadas

Tem sempre uma bruxa pra apavorar

Um dragão comendo gente

A bela adormecida sem acordar

Tudo o que o mestre mandar

E a cabra-cega roda sem enxergar

E você, se escondeu

(...)

A letra de Jardim da infância foi liberada. É também num clima de contestação

que se elabora a letra da canção que dá nome ao disco de Milton Nascimento, Milagre

dos peixes, parceria dele com Fernando Brant.

Eu vejo esses peixes e vou de coração

Eu vejo essas matas e vou de coração

À natureza

Telas falam colorido

De crianças coloridas

De um gênio, televisor

E no andor de nossos novos santos

O sinal de velhos tempos:

Morte, morte, morte ao amor

94

Eles não falam do mar e dos peixes

Nem deixam ver a moça, pura canção

Nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol

E eu apenas sou, um a mais, um a mais

A falar dessa dor, a nossa dor

Desenhando nessas pedras

Tenho em mim todas as cores

Quando falo coisas reais

E num silêncio dessa natureza

Eu que amo meus amigos

Livre, quero poder dizer:

Eu tenho esses peixes e dou de coração

Eu tenho essas matas e dou de coração.

Alguns versos dessa canção poderiam causar desconfiança na censura. Já

acostumados a certas expressões de canções de protesto, os censores poderiam ler, em

algumas imagens e metáforas, denúncias contra o governo ditatorial. Naquela época,

certos compositores usavam imagens de oposição entre noite (ditadura) e dia (tempos de

liberdade) para expressar sua indignação diante daqueles tempos pintados de escuridão.

Ao final da canção, uma expressão deveras perigosa: “livre, quero poder dizer”. Dizer o

que bem entende num período em que as produções artísticas e jornalísticas passavam

pelo olhar atento da censura podia ser considerado uma afronta. Tudo indicava o veto

como destino para Milagre dos peixes. Mas a canção foi liberada. Diante da ação da

censura em relação a essas canções somos estimulados a perguntar: por que Milagre dos

peixes e Jardim da infância não foram censuradas como Cadê? Mais do que uma

resposta, a questão põe em relevo a complexidade do funcionamento da censura. Os

vetos e liberações das letras, embora amparados em algum dispositivo legal, conforme

se pode verificar nos documentos, caracterizavam-se justamente pela falta de critérios

claros de julgamento. Isso dificultaria ainda mais o trabalho dos compositores. Alguns

deles, considerados perigosos, tinham suas canções censuradas caso despertassem no

censor a menor desconfiança. Assim, o veto não era endereçado apenas à letra, mas ao

nome do próprio artista. Por isso mesmo, alguns deles se valeram do uso de

pseudônimos, como o já célebre Julinho da Adelaide (Chico Buarque). Outros já não

tiveram muita sorte com artimanhas para driblar a censura, como Sirlan, já citado.

A liberação de canções como Milagre dos peixes poderia, inclusive, suscitar a

ilusão de que a censura tolerasse alguma margem de denúncia. Entretanto, na lida com

este órgão, era grande a ansiedade dos compositores em imaginar qual o parecer de

95

letras a ele submetidas. Na entrevista com Fernando Brant tive a curiosidade de

perguntar-lhe sobre como elaborava suas letras nesse período, como conciliava o seu

fazer de artista com a dúvida sobre se passariam ou não pela censura. A resposta: “Isso

não me atrapalhou não. Eu fazia... porque aí fazer a autocensura? Eu vou saber o que

passa na cabeça deles? Não tem jeito.” Em sua fala, a falta de clareza nos critérios da

censura e a coragem de um artista que tentava ignorar os fantasmas de censores no

momento de inspiração de suas composições, cavando assim um espaço interno de

liberdade de expressão. Ao conversarmos sobre outras parcerias suas com Milton

Nascimento, como Ponta de Areia e Saudades dos aviões da Panair, do disco Minas

(1975), sugiro que se tratavam de canções comprometidas, noção que Fernando logo

amplia: “Comprometidas com a vida. Na realidade você não fica só na política; é tudo.

É a vida da gente e tal. É o que tá acontecendo. É lógico que a política entra no meio

também.” O compositor toma, assim, a feição de um cronista, interessado nas demandas

de seu tempo e cuja arte não se restringe a uma etiqueta, como a de “música de

protesto”. Isto nos direciona igualmente para os aspectos formais da letra de uma

canção. Por vezes, metáforas, entendidas por críticos e estudiosos como maneiras de

driblar a censura, não eram criadas exclusivamente com esse intuito. Eram também

formas de imprimir modos de enxergar e sentir o mundo, de derramar beleza sobre o

cotidiano. Através da metáfora, os versos se colocariam em solo de sentidos movediços.

Deste modo, uma canção poderia se adaptar às experiências de quem a escutasse,

moldar-se aos momentos de sua história pessoal, transitando no espaço e no tempo.

Talvez na metáfora tenhamos um dos ingredientes que expliquem a longevidade de uma

canção.

Em relação à censura, Fernando Brant ainda cita exemplos como o do título da

canção Saudades dos aviões da Panair, gravada primeiramente por Elis Regina em seu

disco de 1974.

O Saudade dos aviões da Panair tem um subtítulo, Conversando no bar.

Porque na verdade é uma conversa de bar, cada um falando as coisas, né? A

Elis quando foi gravar, ela não mandou como Saudade dos aviões da Panair,

mandou só como Conversando no bar. Aí passou, aí ela até me ligou: “olha, só

mandei Conversando no bar que senão eles iam censurar”. [risos] Porque

Saudade dos aviões da Panair é saudade do tempo... porque a Panair é outro

problema, né? Foi em 65, eles eram uma empresa mundial, brasileira,

maravilhosa, de repente, de um dia pro outro, eles faliram ela assim, sem

nenhum motivo, porque ela era completamente ...economicamente, tudo,

saudável, completamente. (...) Mas aí Saudade dos aviões da Panair era

saudade de antes deles chegarem, né?

96

Uma canção que usava da memória de um tempo para mostrar o

descontentamento com a atualidade, onde o governo era ditatorial. Eis o que trazia a

letra de Saudade dos aviões da Panair. A cautela de Elis Regina funcionava como

tentativa de evitar que os censores tivessem suas antenas atiçadas já no título da canção.

Se bem pensarmos, o título Conversando no bar chama bem menos a atenção. No

entanto, certezas de que essas artimanhas dariam certo só viriam após a submissão da

canção aos olhos da censura. Antes, apenas a expectativa.

Voltemos à canção Milagre dos peixes. Na letra, em que se engendra a crítica à

ditadura, temos ainda a reflexão sobre o “novo santo” posto em altares nos centros das

salas das famílias brasileiras: a televisão, agora em cores, um dos símbolos de

modernidade e progresso. Esse aparelho, janela para o mundo que dava a sensação de

informar sobre tudo, na verdade transmitia o que era permitido e, em muitos casos,

pelos filtros das lentes do governo. Aquela era uma época em que os meios de

comunicação estavam submetidos ao regime militar. A letra da canção, ao dar notícias

do que não se diz, por meio do “gênio televisor”, esse multiplicador de notícias pelo

país, coloca-se como linha de fuga em relação a uma visão de mundo compartilhada por

aquele governo e alguns setores da sociedade brasileira.

Em tempos em que se buscava inserir o Brasil na modernidade a qualquer custo,

questionava-se o lugar das subjetividades, da natureza, da humanidade. Não se trata de

uma negação da tecnologia, ou da modernidade, mas dos caminhos escolhidos para

ambientar essa realidade no Brasil. Que preço se pagaria pelo desenvolvimento

anunciado naquele princípio da década de 70? Se o progresso se fazia necessário,

também era preciso preservar a subjetividade e, num plano mais amplo, os traços de

nossas tradições, como forma de atentar para as identidades. Assim, a sonoridade de

Milagre dos peixes trazia à tona outras faces do Brasil, um país interior, coberto por

florestas, por manifestações da cultura popular, misticismo. Essa postura não significava

isolamento, pois, como já vimos, até mesmo musicalmente falando, o disco de Milton

estava em diálogo com informações do mundo. Isso sugere atenção a outros modos de

encarar as demandas da modernidade. Em texto em que se debruça na análise do disco A

Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben, o historiador Marcelo Brito reflete sobre a

contestação ao projeto moderno naquela década de 70:

97

Ao lado da certeza de que o progresso técnico e a soberania da razão nos

conduziam para o “melhor dos mundos possíveis” – representação vitoriosa nos

países de tradição ocidental desde a “maioridade iluminista” (a expressão é de

Kant), havia também uma grande desconfiança quanto ao futuro que o

engajamento nos valores modernos estava sinalizando.127

Para o pesquisador, ao abordarem temáticas místicas, discos como o de Jorge

Ben se apresentavam como “uma contranarrativa ao modelo vitorioso, qual seja, a

representação moderna do mundo”128

. Exemplos como este e do disco de Milton

Nascimento nos chamam atenção para os discursos de uma época. O debate proposto

em plano nacional dialogava com o plano global, onde as artes, através de

manifestações ligadas à contracultura, à ideologia hippie, questionavam o modelo de

vida capitalista, o que é sinalizado na letra da canção Milagre dos peixes.

No início da canção, a voz de Milton Nascimento espalha em falsete: “Eu tenho

esses peixes e vou de coração/ eu tenho essas matas e vou de coração/ À natureza”.

Esse último verso, “À natureza”, é emitido num prolongamento em que Milton

demonstra grande fôlego, como a própria natureza, que mesmo submetida a tantos

desgastes em nome de projetos de progresso, sobrevivia. Reduzida a fios, bastava nova

tomada de fôlego para que sua voz pudesse florescer e seguir em frente. No entanto,

conseguiria resistir sofrendo tamanha violência? Isso cabe muito bem em discursos

sobre os recursos naturais, mas igualmente aos de resistência à ditadura militar.

Enquanto a voz de Milton ressoa em prolongamento, o baixo de Novelli, numa

dinâmica de volume de som, emite correntezas de rios ameaçados. Ou seriam passos

amedrontados? A pegada agressiva do violão de Milton traz um quê de latinidade à

atmosfera sonora, sugerindo que essa era uma realidade que comungávamos com nossos

irmãos do continente sul-americano. Aproximação na dor de viver sob vigilância, num

clima de angústia, sentimento trazido em tom severo pela voz de Milton nos versos

indignados da terceira estrofe: “Eles não falam do mar e dos peixes/ Nem deixam ver a

moça, pura canção/Nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol/ E eu apenas sou um a

mais, um a mais...” Enquanto esse canto se verte em berro de denúncia no arremate da

estrofe, “A falar dessa dor, a nossa dor”, o baixo de Novelli passeia rapidamente por

notas graves, como coração em taquicardia, alerta do perigo sofrido pela voz que dava

notícias que queriam calar. Ao fundo, outras modulações da voz do cantor comentam o

127

Marcelo Gustavo Costa de Brito. “Do chumbo ao ouro: Jorge Ben e o místico como resistência à

modernidade.” In: Eleonora Zicari Costa de Brito, Mateus de Andrade Pacheco, Rafael Rosa (orgs).

Sinfonia em prosa. Op. cit., p. 225. 128

Idem, ibidem, p. 226.

98

eco daquele berro, sinal de que não estava só naquela angústia, nem na luta por superar

aquela realidade. Essa performance demonstra como a presença daquele governo se

espalhava em variadas esferas e assuntos do cotidiano, causando sentimento de dor e

indignação. A voz de Milton Nascimento, naquele instante era um pedido de socorro e,

ao mesmo tempo, o próprio socorro, refúgio para aqueles que foram sufocados e

identificavam nela, as suas próprias falas. Faz lembrar os versos eloquentemente

entoados por sua voz em outra canção de seu repertório: “De minha garganta as

canções explodem/ Em pontas de faca rasgando o espaço/ Vem minha luta ajudar,

eh”129

E a voz de socorro às vezes busca sua face mística num mergulho em

religiosidades onde descobre o caminho para reconstituir sua força. Composta

originalmente para o filme Os deuses e os mortos, de Ruy Guerra, a canção Tema dos

deuses, traz porções desse misticismo para o álbum Milagre dos peixes. Sem letra, a

melodia foi construída por notas alongadas que convidam à contemplação, trazem à

memória cânticos religiosos arrastados em procissões ou ecoados do alto dos coros de

igrejas. Na gravação para o álbum Milagre dos peixes, a percussão, em sintonia com um

coral de vozes, imprime ares sublimes à atmosfera que, por vezes, revela suas feições

épicas e sombrias através da orquestra regida por Radamés Gnatalli e de novo

tratamento dado às vozes desse coral. Aquele parecia um canto gregoriano. De repente,

reboa do alto, como anunciação, a voz forte de Milton Nascimento, erguida e nutrida

por aquele ambiente de sons e emoções encorpadas. Milton caça seus tons mais altos

num canto que inspira lamento. Ativa a lembrança de Verônica, figura da Semana

Santa, que durante a Procissão do Enterro empunha o lenço que desenha em sangue o

rosto daquele que seu canto fúnebre evoca: Jesus Cristo. A voz de Milton se atira num

vórtice de sensações onde plana, entre faíscas de crença, dor, paixão, contemplação,

religião. Um canto que persegue e emite subjetividades, fonte que alimenta o humano.

O universo festivo de manifestações da cultura popular é convocado na

performance da canção Os Escravos de Jó, que contou com a voz de Clementina de

Jesus nos versos do refrão.

129

Rio Vermelho (Milton Nascimento/Danilo Caymmi/Ronaldo Bastos). Gravada no disco Courage, de

1969.

99

Saio do trabalh-ei

Volto para cas-ei

Não lembro de canseira maior

Em tudo é o mesmo suor

O restante da letra de Os Escravos de Jó foi censurada. Mesmo assim sua

melodia foi entoada pelas vozes de Milton Nascimento, Naná Vasconcelos, Sirlan, Telo

Borges e Nico Borges. Reunidas, evocam aquela atmosfera dos cortejos e folias que se

espalham pelas ruas das cidades do interior. Tomando aspecto de brincadeira, uma ou

outra voz se desgarra daquele coro, busca a dissonância estridente de um riso solto,

como nos ambientes onde festas e orações tecem a reverência a santos e divindades. E

Clementina puxa aquele animado cordão/procissão. Quem de longe assiste à cena

imaginada, vislumbra, o formigueiro humano e o volumoso som do encontro dessas

vozes. q

A canção de letra censurada teve visita fugaz de muitas palavras em sua

melodia. Fernando Brant recorda que a primeira gravação foi para o filme Tostão, a fera

de ouro. Naquela ocasião, Os Escravos de Jó recebeu o nome de O homem da sucursal.

Essa versão foi inserida como uma das faixas-bônus do relançamento do disco Milton

Nascimento, de 1970.

Chamava O homem da sucursal. Porque foi o dia que eu tentei morar no Rio.

Quando eu arrumei emprego lá no O Cruzeiro [a revista]. Lá, eu vi: ou eu

trabalhava e estudava, ou eu mexia com música. As três coisas no Rio de

Janeiro não dava. Então eu voltei e consegui transferir para a sucursal. Então

eu atravessei o túnel do Rio e falei, “eu vou fazer uma música e essa música vai

chamar O homem da sucursal”. [risos] Mas aí eu fiz pro filme, né? Então,

aquela parte “saio do trabalh-ei”, porque eu saio do trabalho, eu trabalhei,

“volto para cas-ei”. Essa parte então ficou lá. Mas depois, quando foram

gravar, tinha uma coisa que era meio específica do filme. Então eu fiz uma

outra, mas a que eu fiz... aí já não ia passar nunca, porque eu fiz um “general

alemão”, “dizem que está bom, dizem que está bom” [risos]. Bom, aí essa

cortaram. Aí eu fiz o Caxangá.130

Três letras, portanto, para a mesma canção. Nos títulos da letra da versão

censurada e da que vem em seguida, temos os fios que ligam essas histórias. Os

Escravos de Jó jogavam Caxangá. A letra de Caxangá foi gravada pela primeira vez

por Elis Regina em seu disco de 1977. Nessa versão, a canção toma ares de rock, com

forte presença de viradas de bateria e destaque para os comentários da melodia feitos

pelas frases da guitarra de Natan Marques. As batidas do violão ajudam a compor a

marcação e dão volume ao ambiente. Na letra temos a comunicação com a primeira

130

Fernando Brant em entrevista a mim concedida. Op. cit.

100

versão, O homem da sucursal, através do tema que a inspirou, pois Caxangá aborda o

universo do trabalho. Seus versos engendram uma crítica bem-humorada a certas

condições e visões de trabalho, voltadas exclusivamente para a produtividade. Através

do deboche e da ironia, argumenta: “Veja bem, meu patrão/ Como pode ser bom/ Você

trabalharia no sol/ E eu tomando banho de mar”. Na negação de um modelo imposto,

cria-se a imagem de uma vida sonhada. Essas representações comunicam-se com tantas

outras apresentadas em sambas, que, ao longo dos tempos, evocaram a malandragem,

uma das formas de recusar a ideologia trabalhista. Por vezes, o discurso da canção toma

planos mais amplos, podendo ser lido como uma crítica ao cenário político: “Enquanto

minha morte não vem/ Eu vivo de brigar contra o rei”. A imagem de um tirano para o

qual não se curvava caberia bem ao patrão ali desenhado, mas também ao próprio

governo ditatorial. Em dado momento, Caxangá toma ares sombrios, sublinhados pelo

som do órgão: “Em volta do fogo/ Todo mundo abrindo o jogo/ Conta o que tem pra

contar/ Casos e desejos/ Coisas dessa vida e da outra/ Mas nada de assustar/ Quem

não é sincero/ Sai da brincadeira correndo”. É o momento em que Elis se prepara para

soltar o berro de fera, buscar sua face visceral, como acontece no prolongamento que

emite no arremate do verso: “Pois pode se queimar, queimaaaaaar”. Abaixo, a letra, na

íntegra:

Sempre no coração

Haja o que houver A fome de um dia poder

Morder a carne dessa mulher

Veja bem, meu patrão

Como pode ser bom

Você trabalharia no sol

E eu tomando banho de mar

Luto para viver

Vivo para morrer

Enquanto minha morte não vem

Eu vivo de brigar contra o rei

Em volta do fogo

Todo mundo abrindo o jogo

Conto o que tem pra contar

Casos e desejos

Coisas dessa vida e da outra

Mas nada de assustar

Quem não é sincero

Sai da brincadeira, correndo

Pois pode se queimar, queimar

Saio do trabalho, hei

Volto para casa, hei

Não lembro de canseira maior

Em tudo é o mesmo suor.

101

Em Caxangá o canto de Elis Regina é emoldurado por vocalises de voz

masculina. Ao final, um casamento. Por um momento, somente vozes. Improvisos em

“lá-rá-lá-rá-lás”. Elis Regina e Milton Nascimento usam do recurso de multiplicação de

suas vozes, como se fossem um coro prolongado ao infinito. Domínio de uma arte.

Apurando a escuta dessa faixa, constata-se uma segunda voz masculina, que o encarte

do disco trata de informar: Sirlan. Somando à ambiência de “coro de vozes” o fato de

Sirlan não ser tão conhecido pelo público, nada mais natural que sua voz passasse

despercebida nas primeiras audições, talvez tomada como mais uma modulação da voz

de Milton Nascimento. Mas ela se tornaria ingrediente especial para contar histórias que

as memórias dessa canção guardam. A presença sutil e ao mesmo tempo marcante da

voz de Sirlan nessa gravação, juntamente com a memória acionada pelo disco Milagre

dos peixes, transformam a performance dos três cantores num discurso que,

subjetivamente, refazia a trajetória de silêncios impostos no território das artes naqueles

anos de ditadura. Um canto que detona memórias:

Ao ouvirem uma canção, aquela velha canção que já tinham escutado em outros

tempos, em outras situações, todos se transportavam a um outro lugar, a um

outro tempo, a uma outra história. E essa canção os levava a voltar,

violentamente, a própria face para o seu próprio passado. Um passado que todos

pensavam morto e que, na verdade, estava vivo, bem em cada um deles. Assim,

o passado vivia em cada um, enquanto eles mesmos estavam mortos. Mortos

para aquelas emoções que a canção lembrava a cada um. 131

Uma das poucas canções com letra em Milagre dos peixes permite pensar sobre

as outras que compõem o repertório, consideradas em algumas de nossas reflexões

como uma linha de fuga, e mesmo denúncia, de visões de país difundidas pelo governo

militar e partilhadas por alguns segmentos de nossa sociedade. Refiro-me a Sacramento,

com melodia de Nelson Ângelo e letra de Milton Nascimento. No início, os arranjos

põem em primeiro plano a palavra entoada pela voz do artista. Numa melodia de notas

longas, cada frase toma uma clareza tal que convida o interlocutor a atentar para o

conteúdo:

Três pessoas vieram me pedir

Não morra que o mundo quer saber

As coisas que a vida não te impôs

A morte que sempre a ti perdeu

O amor que teus olhos sabem dar

131

Francisco Carlos Teixeira da Silva. “Da Bossa Nova à Tropicália: as canções utópicas.” In Paulo

Sérgio Duarte e Santuza Cambraia Naves (Orgs). Do Samba Canção à Tropicália. Rio de Janeiro:

Relume Dumará: FAPERJ, 2003, p. 139.

102

Com o pranto calado me casei

De noivo do pobre me tornei

Num crisma de busca assumi

O quarto fechado que afastei

Que um banho de cinzas batizou

E o mais que consigo é dizer

Com o pranto calado me casei

Um banho de cinzas batizou

O quarto fechado que afastei

Num crisma de busca assumi

Dois olhos que ainda não achei

“Não morra que o mundo quer saber/ As coisas que o mundo não te impôs”. O

verso, além de incentivar a arriscada vivência numa linha de fuga, fora de imposições,

fossem elas num plano político ou artístico, dá à arte o caráter de relato de memória, de

crônica, onde resistem histórias alternativas às versões oficiais. Teria a canção esse

papel de difundir fatos e sentimentos sufocados, dar notícias do que não se podia falar,

mesmo quando tinha sua palavra calada.

Os sons em Milagre dos peixes recriam lugares, acionam memórias, narram

histórias e evocam identidades. Observamos em nossas audições o diálogo da música de

Milton Nascimento com outros países da América Latina. Uma dessas viagens à

sonoridade latina é conduzida pela percussão de Naná Vasconcelos e pelo cavaquinho

de Daudeth de Azevedo na faixa Pablo nº2 (A festa). Em texto crítico sobre o disco,

Marcus Vinicius observa:

Nesta música intervém, além de um afinado coro de vozes masculinas, o

cavaquinho de Daudeth de Azevedo, que toca como se fosse um “charango”

instrumento Latino que é formado por um casco de tartaruga ou tatu ao qual se

adicionam cordas ou uma pequena harpa portátil, daquelas que se vêem na

Argentina, Uruguai e Paraguai.132

A paisagem que parecia distante torna-se próxima a partir do som emitido por

aquele instrumento. Somos todos latino-americanos e temos mais em comum do que

imaginamos, parecia dizer aquele cavaquinho que já emitiu tanto samba, agora

buscando outras pulsações.

O andamento acelerado e a marcação da canção convidam à dança. Pablo nº2

não tem letra, apenas os instrumentos e coro de vozes, numa farra sonora. Dá para

imaginar os corpos saltando ao redor de uma fogueira naquela noite. Noite, pois o clima

de Milagre dos peixes é denso e de crítica, sendo a festa um suspiro, naquela atmosfera

132

Marcus Vinicius. “Milton, milagre de peixes e de música”. Op. cit.

103

pesada, e uma aposta em dias melhores.

Crenças num futuro para as crianças,

como o pequeno Pablo, filho de Milton

Nascimento, que nasceu em 1972 e era

homenageado no disco. A foto que

estampa a matéria de Tárik de Souza

sobre o disco traz Milton segurando o

filho no colo. Interessante é o efeito

produzido pela fotografia da capa do

disco: num primeiro olhar, apenas a mão

negra. A embalagem que guarda o disco

em papel duro traz a mesma imagem.

Quando desdobrada, transforma-se em pôster que apresenta a imagem numa

perspectiva ampliada, que revela novos elementos da cena: aquela mão acariciava um

bebê. Parecia um alerta aos detalhes antes de aventurar-se em conclusões precipitadas.

Ao virar aquele pôster, outra fotografia: Milton Nascimento, ainda criança, trajando

roupa de marinheiro. Passado e presente se encontram e esboçam futuros desenhados

em tinta de esperança.

Fig. 8 Pôster do álbum

Fig.7 Capa do álbum Milagre dos peixes

104

Fig. 9 No outro lado do pôster, Milton na infância

É com esse espírito que se enreda a letra da canção Pablo, a nº 1, em seu

conteúdo e forma. Ao invés da linearidade narrativa, a preferência do compositor por se

jogar na aleatoriedade de imagens metafóricas que remetem à fluidez e assim evocam a

liberdade: “pó de nuvem no sapato”, “meu nome é rio”, “meu corpo é vento”. Estética e

sensibilidade se juntam para construir um ser fortalecido nessa ideia de liberdade, a

partir de elementos telúricos: “meu nome é pedra/ E pedra é meu corpo”.

Meu nome é Pablo

Pablo, Pablo

Como um trator é vermelho

Incêndio nos cabelos

Pó de nuvem no sapatos

Pablo, Pablo

105

Nasci num rio qualquer

Meu nome é rio

E rio é meu corpo

Meu Nome é vento

E vento é meu corpo

Pó de nuvem nos sapatos

Como trator é vermelho

Pablo é meu nome

Pablo, Pablo

Meu nome é pedra

E pedra é meu corpo.

A voz infantil de Nico Borges dá face à criança que ali é apresentada. Em dado

ponto, a melodia impõe desafios à voz da criança, que não teme os obstáculos e segue

em frente: toma fôlego e se entrega a um canto tangido a notas altas. E, afinal, o mundo

que se sonhava para Pablo era mesmo aquele idealizado para as futuras gerações de

brasileiros. E se não fosse possível atingir aquele horizonte de liberdade, esperava-se no

mínimo que se mantivesse viva a chama de um sentimento que impulsionasse o sujeito

nessa direção, internamente, como postura diante da vida, dos padrões e modelos

impostos naquele cotidiano. Dessa maneira, a própria performance vocal de Nico

Borges encarna a força pulsante desse ser livre. E é a partir dessa postura otimista que,

no arremate da canção, volta-se à ambiência festiva de Pablo nº 2, para celebrar, numa

atmosfera de folguedo, a vida. Aquela mesma festa que aparecia no meio do disco,

retornava agora, dando a ideia de movimento, como se Milagre dos peixes fosse uma

caravana de sons a transmitir incentivos de resistência e liberdade. Mesmo com seu

ambiente nebuloso, em que somos confrontados com uma variedade de sensações, o

relato ali inscrito inspira a constatação de que “a intuição estética levanta o véu espesso

que a rotina interpõe entre nós e as coisas; véu que impede os homens de entrar em

comunicação imediata com os seres, como o fazem espontaneamente os artistas”133

133

Ecléa Bosi. O tempo vivo da memória... Op. cit., p. 44.

106

Ser Minas Tão Gerais: um canto para o grande mito

Dizem, as más línguas, que mineiro não fica doido, piora! E é meio verdade que

toda cidade mineira tem pelo menos um “doido” oficial e cada família, um

sistemático, do qual contam histórias em voz baixa na cozinha. A partir desse

mote os atores do Ponto de Partida pesquisaram os personagens. Uma gente que

habita uma pequena cidade e que passa a vida a esperar por Ele – o mito que

canaliza nossas fantasias, nossa necessidade de transcendência e que um dia

voltará, com certeza, para resgatar todos os nossos sonhos. Com os personagens

soltos por aí, a povoar todas as estações de trem com sua esperança, era preciso

selecionar as músicas que contassem essa história e que costurassem essa Minas

estampada com beleza e unidade. Claro que a primeira marca do repertório é a

sua mineiridade. A outra, a negritude tatuada na música de Milton Nascimento

que se mistura à do Vale do Jequitinhonha e dos meninos, portadores de outra

herança, diversa, mas não menos negra, mineira e universal. Os arranjos de

Gilvan de Oliveira desnudam essa parecença. Por isso os tambores batem forte

marcando congadas, batuques, beira-mares e a obra sofisticada de Milton,

atados na mesma harmonia, e provando que, para além de toda diversidade da

música brasileira, nos reconhecemos, nas origens, filhos do mesmo clã. No

entanto, como também estamos permanentemente a espreitar o mundo, tomou-

se emprestada a técnica do sapateado americano. Mas aqui ele pronuncia

congadas, catiras e até vira samba nos pés dos meninos. A banda, que é toda

formada por mestres da Bituca: Universidade de Música Popular, se mistura ao

canto, para que a música ocupe no palco o papel principal. Esse palco nu se

veste de folhas de jornais que são igrejas, rios, casas, estandartes.

Transfiguradas pelo toque dos atores, a cumplicidade da plateia e o abraço

quente da luz. O figurino rouba do ouro as suas cores, da loucura o seu traço e,

definitivamente, transforma os atores em seus personagens. Os atores convocam

as palavras de Drummond para suas falas e Bituca foi incisivo: se todos cantam,

também ele iria atuar. Ser Minas tão Gerais acolhe todas as transgressões e se

configura como uma brincadeira cheia de graça – um musical mineiro,

brasileiro, mestiço, universal! Aqui esse espetáculo se torna uma celebração,

pois se apresenta para comemorar os 50 anos de carreira de Milton Nascimento,

os 10 anos da estreia do musical e lançar a Edição Especial do seu DVD.

O texto que pinta de sensibilidades o programa de Ser Minas tão Gerais,

distribuído no Teatro Alfa, em São Paulo, apresenta o espetáculo ao seu público na

ocasião em que foi remontado para duas exibições. Na trama de Ser Minas tão Gerais

fundiam “causos” e boatos sobre aquela voz redentora com elementos da trajetória do

próprio Milton Nascimento, que dá vida ao mito ali evocado. Representando, fazendo

gracejos, rindo, cantando e dançando, Milton se emociona junto com o público e brinca

com sua própria imagem e história.134

134

Roteiro do espetáculo: Cais – versão instrumental (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), Notícias do

Brasil – Os pássaros trazem (Milton Nascimento/Fernando Brant), Ainda bem não cheguei (Domínio

público da região do Vale – Recolhido por Lira Marques e Frei Chico. Adaptado por Ponto de Partida e

Gilvan de Oliveira), Circo Marimbondo (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), Cidadezinha Qualquer

107

Fig.10 – Divulgação de estreia (2002) Fig.11 – Programa do espetáculo

distribuído no momento em que

foi remontado (2012)

Com concepção do grupo Ponto de Partida, o roteiro e direção geral do

espetáculo foram assinados por Regina Bertola. Sua primeira montagem aconteceu no

ano de 2002 e o DVD foi registrado em 2005. Vamos nos valer dessas imagens para nos

aproximarmos da trama e da ambiência do espetáculo. A provocação inicial para sua

(Carlos Drummond de Andrade), Roupa Nova (Milton Nascimento/Fernando Brant), No meio do

caminho (Carlos Drummond de Andrade), Itamarandiba (Milton Nascimento/Fernando Brant), Beira-

mar novo (Domínio público da região do Vale – Recolhido por Lira Marques e Frei Chico. Adaptado por

Ponto de Partida e Gilvan de Oliveira), Lanterna mágica/ Mas viveremos – fragmentos (Carlos

Drummond de Andrade), Encontros e despedidas (Milton Nascimento/Fernando Brant), Concerto –

fragmento (Carlos Drummond de Andrade), O cio da Terra (Milton Nascimento/Chico Buarque), O voo

sobre as igrejas – fragmento (Carlos Drummond de Andrade), Boi Janeiro (Domínio público da região

do Vale – Recolhido por Lira Marques e Frei Chico. Adaptado por Ponto de Partida e Gilvan de Oliveira),

Coisas de Minas (Milton Nascimento/Wilson Lopes), Maria Solidária (Milton Nascimento/Fernando

Brant), Quero me casar (Carlos Drummond de Andrade), O amor bate na aorta – fragmento (Carlos

Drummond de Andrade), Paula e Bebeto (Milton Nascimento/Caetano Veloso), Brincadeiras de roda

(Domínio público da região do Vale – Recolhido por Lira Marques e Frei Chico. Adaptado por Ponto de

Partida e Gilvan de Oliveira), Canção para ninar mulher (Carlos Drummond de Andrade), Sentinela

(Milton Nascimento/Fernando Brant), Congadas/Festa do Rosário (Domínio público da região do Vale –

Recolhido por Lira Marques e Frei Chico. Adaptado por Ponto de Partida e Gilvan de Oliveira), Maria

Maria – vinheta (Milton Nascimento/Fernando Brant), Veveco, Panelas e Canelas (Milton

Nascimento/Fernando Brant), Bola de meia, bola de gude (Milton Nascimento/Fernando Brant), Consolo

na praia/ Nosso tempo/O medo – fragmentos (Carlos Drummond de Andrade), O Rouxinol (Milton

Nascimento), Canção Amiga (Milton Nascimento sobre poema de Carlos Drummond de Andrade), O

vendedor de Sonhos (Milton Nascimento/Fernando Brant), Ponta de Areia (Milton Nascimento/Fernando

Brant), Canto ao homem do povo Charles Chaplin – fragmentos (Carlos Drummond de Andrade), A

primeira estrela ( Milton Nascimento/Tavinho Moura/Túlio Mourão), Fé cega, faca amolada – vinheta

(Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), Os tambores de Minas (Milton Nascimento/Márcio Borges), Raça

(Milton Nascimento/Fernando Brant), Visões – fragmentos (Carlos Drummond de Andrade), Clube da

Esquina nº2 – vinheta (Milton Nascimento/Lô Borges/Márcio Borges), Coração Civil (Milton

Nascimento/Fernando Brant)

108

concepção foi da Telemig Celular, empresa que apoiava o grupo de teatro Ponto de

Partida e também o coral Meninos de Araçuaí. A ideia era juntar num mesmo projeto os

grupos apoiados pela instituição, mais um convidado especial, Milton Nascimento. A

parceria entre o Ponto de Partida e os Meninos de Araçuaí já tinha se estabelecido

anteriormente, quando o primeiro foi convidado para ensaiar um coral do Projeto Ser

Criança, da ONG CPCD em Araçuaí. Esta experiência deu tão certo que aquele coral

firmou parceria com o Ponto de Partida e foi acolhido em outros trabalhos artísticos

promovidos pelo grupo. Instalado em Barbacena, o Ponto de Partida se propôs a agitar a

cena local como um movimento cultural que abarcava atividades diversas. Acabaram

ganhando a cena brasileira e até mesmo visitando países estrangeiros. Com mais de 30

anos de atividade, seus espetáculos teatrais forjam uma linguagem cênica brasileira.

Para esse fim, valem-se de narrativas em que adaptam textos de nossos grandes

escritores, como é o caso dos espetáculos Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa), O

gato malhado e a andorinha Sinhá (Jorge Amado), A roca – histórias de mulheres

(Adélia Prado), O tear – histórias de amor (Manoel de Barros e Chico Buarque). Por

vezes se inspiram em temáticas que compõem o imaginário interiorano, como Ciganos

(de autoria de Bartolomeu Campos Queirós), Travessia (concebido pelo próprio Ponto

de Partida), Roda que Rola (concebido pelo Ponto de Partida e com participação dos

Meninos de Araçuaí). O grupo ainda se dedica atualmente a projetos como a Bituca:

Universidade de Música Popular, instituição que forma artistas e pesquisa sobre os sons

que constituem nossas identidades. O nome homenageia Milton por meio do apelido do

cantor, Bituca.

“Ele tá aí, ele tá aí? Não tá não, né?”. A pergunta pronunciada por Veveco –

personagem que mescla loucura a uma ingenuidade geradora de profunda esperança –,

ecoa pela trama do espetáculo e traduz a atmosfera do cotidiano ali inventado por

canções e poesias, risos e lágrimas, loucura e lucidez, tudo inspirando a expectativa pela

chegada daquela voz que pintaria com nova cor aquele cotidiano. Veveco (Lido Laschi),

Marianita (Ana Alice Souza), Belinha (Carolina Damasceno), Maria Doida (Eloísa

Mendes), Homem de Sapato (João Melo), Maria do Socorro (Beth Carvalho), Mariinha

(Lourdes Araújo), Zeca Bilim (Pablo Bertola), Maria (Regina Bertola), Pinduca (Felipe

Saleme), Maria do Véu (Soraia Moraes), são os personagens que tomam conta da cena.

Seus nomes aludem a figuras do repertório de Milton – Veveco, Pinduca, Maria –, a

109

cidadãos comuns e também a loucos que por aí circulam – Maria Doida, Homem do

Sapato, Maria do Véu.

Em Ser Minas tão Gerais, o palco se enche com os personagens do Ponto de

Partida – 11 atores – e com as 40 crianças do coral Meninos de Araçuaí. Já no início, a

canção Notícias do Brasil135

, entoada por aquele coro em performance festiva, dá o

recado sobre os destinos da viagem em que o público embarcará:

(...)

Uma notícia tá chegando lá do interior

Não deu no rádio, no jornal ou na televisão

Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil

Não vai fazer desse lugar um bom país

A novidade é que o Brasil não é só litoral

É muito mais, é muito mais que qualquer Zona Sul

Tem gente boa espalhada por esse Brasil

Que vai fazer desse lugar um bom país

Aqui vive um povo que merece mais respeito

Sábio e belo é o povo, como é belo todo amor

Aqui vive um povo que é mar e que é rio

E seu destino é um dia se juntar.

No espetáculo, busca-se um outro Brasil em seus tipos humanos, lembrados

pelos personagens da trama, mas também na própria sonoridade constituída pelos

arranjos de Gilvan de Oliveira, que se apresenta ao violão na banda constituída ainda

por Lincoln Cheib na bateria, Serginho Silva na percussão, Enéias Xavier no baixo e

Guido Campos no clarinete e flauta. Quando o palco é tomado pelo coro de 40 vozes

infantis, somadas às do elenco de atores e ao som forte da percussão, somos conduzidos

ao ambiente de festas populares que ganham as cidades e pequenos povoados do interior

do país em forma de brincadeira e devoção. Neste caso, devoção pela gente simples, que

não estampa as grandes revistas e jornais das capitais, mas que têm em sua cultura e na

sua arte as formas de mostrar outras fisionomias desse imenso país. Assim, a canção

trazida do repertório de Milton Nascimento ajuda a cumprir o desejo expresso no

espetáculo, de trazer para a luz do palco o que está na sombra, escondido nos rincões do

país. Esse povo é figurado na trama pelos Meninos de Araçuaí,

Que, com a coragem e a tenacidade que arrancaram do Vale do Jequitinhonha,

percorreriam os caminhos que ligam o sertão a São Paulo, não como retirantes,

mas plenos de dons, portadores de uma herança peculiar que faz de todos nós

mais ricos e muito mais brasileiros.

135

(Milton Nascimento/Fernando Brant)

110

O trecho do texto que apresenta os meninos no programa do espetáculo constrói

a arte como possibilidade de nova rota de vida. Aqueles cujo destino provável seria o

subemprego nos grandes centros são arautos da riqueza cultural do País. Seu exemplo

subverte a lógica e reivindica um lugar para tantos outros que não tiveram a mesma

sorte, cidadãos anônimos que também compõem esse mosaico Brasil.

Aquele palco em festa também ganha vida com os adereços confeccionados em

papéis de jornal, que viram asa de anjo barroco, quando Aleijadinho é homenageado,

transformam-se em rios, quando em coro entoam: “... Vou levando minha canoa,/ lá pro

poço do pesqueiro/ Ô beira-mar, adeus dona/ Adeus riacho de areia.”136

; e estandartes

da grande cerimônia que preparam para seu mito. Os versos de Drummond, amarrados

à música de Milton Nascimento e às cantorias da cultura popular do Vale do

Jequitinhonha, pontuam e dão densidade ao espetáculo e seus personagens. Esses

elementos estão ali para servir à trama. Ao serem postos em contato, revelam afinidades

muitas vezes sequer imaginadas pelo público, como no momento em que recitam No

meio do caminho, poesia de Drummond com versos já célebres: “No meio do caminho

tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho”. Em seguida, o coro composto

pelas vozes dos atores entoa os versos de Milton Nascimento e Fernando Brant:

No meio do meu caminho

Sempre haverá uma pedra

Plantarei a minha casa

Numa cidade de pedra

Itamarandiba, pedra corrida

Pedra miúda rolando sem vida

Como é miúda e quase sem brilho

A vida do povo que mora no vale.

“... do povo que mora no vale”. Neste ponto, dá volume à massa vocal o coro

dos Meninos de Araçuaí. Ao entrarem no palco e cantarem esse verso, dão fisionomia à

gente ali retratada, ao povo de pele morena, que estampa em seus traços, em sua cultura,

a mistura étnica que os gerou. Assim, a pedra de Drummond vira mote para

enveredarem pela paisagem do Vale do Jequitinhonha, desenhada na canção:

No caminho dessa cidade

Passarás por Turmalina

Sonharás com Pedra Azul

Viverás em Diamantina

136

Beira-mar novo (Folclore do Jequitinhonha – recolhido por Frei Chico e Lira Marques e adaptado por

Ponto de Partida e Gilvan de Oliveira)

111

No caminho dessa cidade

As mulheres são morenas

Os homens serão felizes

Como se fossem meninos

Após a execução dessa canção, Itamarandiba –, presente no álbum Sentinela,

de 1980 –, um rio feito de jornais toma conta do palco, acompanhado pelos versos de

Beira-mar novo. A canção do Jequitinhonha se amarra, então, à música de Milton

Nascimento, clareando as

proximidades entre a obra do artista

e aquela região que lhe serviu de

inspiração. Noutros instantes, a base

percussiva faz a liga entre a música

de Milton e o repertório colhido no

Vale do Jequitinhonha, e o resultado

é surpreendente, sobretudo quando a

canção do artista não é das mais

conhecidas. Tomemos o exemplo da

cena em que se misturam Boi de

Janeiro137

, do folclore do

Jequitinhonha, com Coisas de

Minas138

. Na mesma levada animada

do batuque dos tambores, se festeja,

entoando os versos das canções que

se comunicam em suas sonoridades

e também em suas temáticas: “Pisa

na linha, levanta o boi! Levanta meu

boi do chão/ Pisa na linha, levanta o

boi, levanta meu coração”; “Ê, boi,

Ê boi!/ Fez a fogueira caiu dentro

dela/ E o povo sorriu/ No outro dia

as beatas de língua de fora/ Que o

padre serviu”.

137

Recolhida por Lira Marques e Frei Chico e adaptada por Ponto de Partida e Gilvan de Oliveira. 138

(Milton Nascimento,Wilson Lopes/Milton Nascimento) Angelus, 1993.

Fig. 12 – momentos do espetáculo

112

Canções como estas insinuam o Vale do Jequitinhonha como localização do

espetáculo, mas apenas insinuam, pois outras histórias e cantos se juntam no enredo

dessa trama para fazer Minas ser tão Gerais. Desloquemos as palavras que compõem o

título do espetáculo: Ser Minas tão Gerais. Poderíamos ter Ser tão Minas Gerais. Mas

para ser tão mineiro o que seria preciso? Façamos nova modificação: Sertão, Minas

Gerais. Sertão, palavra que aciona outras paisagens do estado e mesmo do Brasil, e nos

convida a nos embrenharmos pelo interior, a nos entranharmos no coração do Brasil,

para descobrirmos o que temos em comum, como na obra de Guimarães Rosa, autor que

ensina: “O sertão está em toda parte”139

. Assim, o estado não é representado apenas no

que tem de específico, mas no que lhe permite comunicar-se com os outros, no que faz

dele parte do Brasil e um lugar do mundo. Dessa maneira, o espírito do espetáculo se

aproxima do universo miltoniano, traduzido nos versos que o cantor-compositor entoa

com a força de um hino: “Eu sou da América do Sul/ Eu sei, vocês não vão saber/ Mas

agora sou cowboy/ sou do ouro, eu sou você/ sou do mundo, sou Minas Gerais.”140

Voltemos à loucura expressa nos gestos e nos nomes dos personagens do

espetáculo. O louco, figura emblemática das cidadezinhas nessa narrativa, serve

também para brincar com a própria fama de Barbarcena, cidade do Ponto de Partida que

durante muito tempo foi destino de loucos de variadas localidades que eram internados

em seu Hospital Psiquiátrico, inaugurado em 1903, e hoje lembrado por seus

tratamentos questionáveis e até mesmo por torturas.141

As histórias desse manicômio

acabaram por fazer de Barbacena a cidade dos loucos no imaginário popular. Em minha

cidade, Virgolândia, um interior distante de Barbacena, a fama do lugar chegou e ajudou

a inspirar expressões que se tornaram bem comuns: “Fica fazendo isso, bobo, na hora

que te mandarem pra Barbacena...”. Barbacena hoje abriga, na mesma localidade de seu

Hospital Psiquiátrico, o Museu da Loucura.

Quem desse Brasil interior nunca esbarrou num desses doidos celebrados em

Ser Minas tão Gerais? Em minha memória vêm personalidades como Maria da Mala,

andarilha que provocava curiosidade e medo quando batia nas portas das casas. O que

139

Guimarães Rosa. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.1. 140

Para Lennon e McCartney. (Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant) 141

Cf. “Manicômio em Barbacena foi palco de maus-tratos, torturas e mortes.” Globo News. (Disponível

em http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/10/manicomio-de-barbacena-foi-palco-de-maus-tratos-

torturas-e-mortes.html)

113

carregaria Maria naquela mala? – mães e tias, numa pedagogia favorável ao medo,

juravam: “Crianças!” Mas na infância, às vezes, o medo se mistura ao espírito

aventureiro, e alguns desses “loucos” se transformam em alvo de crianças prontas a

insultá-los e sair em disparada, como reconheço na cena protagonizada por Maria do

Socorro, personagem do espetáculo que atende à provocação da criançada encarnada

pelos Meninos de Araçuaí: “Maria do Socorro, você não me pega!” Crianças que antes

se punham a entoar cânticos de roda: “Abóbora faz melão, melão faz melancia/ Faz

doce, Sinhá/ Faz doce, Sinhá/ Faz doce sinhá Maria”, “Bate palma, já bateu/ Bate com

pezinho no chão/ Pra dançar balé francês não precisa luxo, não.”142

– e agora tinham

aquela rotina de brincadeira quebrada pelo sufoco de correr de Maria do Socorro, que

também se divertia com aquela algazarra. Essas mesmas crianças, que tiveram sua

curiosidade atiçada pelo que lhes era estranho, são alvo do medo provocado pela velha

embaraçada em terços e santos. Em tom imperativo, quase profético, ela anuncia: “...

dorme que o capeta tá perguntando: cadê a moça acordada pra eu dormir com ela?”.

Noutra cena, as luzes do palco se esmaecem para ceder lugar às chamas das

velas trazidas em procissão: “Bendito louvado seja, o Rosário de Maria/ Se ela não

viesse ao mundo, ai de nós o que seria”143

. As cenas aqui escolhidas tramam um

cotidiano que dialoga com os versos de Drummond recitados por aquele bando de

loucos logo no início do desenrolar do espetáculo:

Casas entre bananeiras

Mulheres entre laranjeiras

Pomar amor cantar

Um homem vai devagar

Um cachorro vai devagar

Um burro vai devagar

Devagar ... as janelas olham

Eta vida besta, meu Deus.144

Loucos, procissões, brincadeiras de roda, canções. Naquele palco montavam um

lugar que recorria às memórias de seu público para existir. Ser Minas tão Gerais parecia

Diomira, cidade imaginada por Ítalo Calvino, onde “todas essas belezas o viajante já

142

Brincadeiras de roda. Domínio público da região do Vale do Jequitinhonha. Recolhido por Lira

Marques e Frei Chico. Adaptado por Ponto de Partida e Gilvan de Oliveira. 143

Congadas/Festa do Rosário. Domínio público da região do Vale do Jequitinhonha. Recolhido por Lira

Marques e Frei Chico. Adaptado por Ponto de Partida e Gilvan de Oliveira. 144

Carlos Drummond de Andrade. “Cidadezinha Qualquer” In: Antologia Poética. São Paulo: Companhia

das Letras, 2012, p. 57.

114

conhece por tê-las visto em outras cidades.”145

O cotidiano de calmaria, que inspirava o

olhar contemplativo, era quebrado por um ingrediente: o trem de ferro. Pelos pratos da

bateria, volta meia simula-se o ritmo do trem, pronto a transformar aquele ambiente em

algazarra. Por meio dele vinha a esperança transfigurada em euforia pela provável

chegada de novidades. Quem sabe aquele mito viria no trem? A cada dia uma esperança

brotava e uma frustração era colhida na chegada e partida daquele meio de transporte. A

primeira entrada de Milton Nascimento em cena acontece justamente numa canção que

tem a ambiência de uma estação de trem como tema, Roupa Nova146

. Os personagens

cantam em coro os versos que encarnam em performance cênica:

Todos os dias, toda manhã

Sorriso aberto e roupa nova

Passarim preto de terno branco

Pinduca vai esperar o trem

Todos os dias, toda manhã

Ele sozinho na plataforma

Ouve o apito, sente a fumaça

E vê chegar o amigo trem

Que acontece que nunca parou

Nesta cidade de fim de mundo

E quem viaja pra capital

Não tem olhar para o braço que acenou

O gesto humano fica no ar

O abandono fica maior

E lá na curva desaparece a sua fé

As sensações do personagem da canção tomam forma na fisionomia e no gesto

parado de nossos loucos. Breve silêncio. Eis que se ouvem vocalises de Milton numa

variação da melodia, emitida em falsete. Localizado no fundo do palco, a luz jogada

sobre suas vestes brancas destaca a sua figura. Os personagens permanecem no centro.

A luz sobre eles põe em relevo os tons amarelados de suas vestimentas. Esse jogo de

iluminação produz a distância entre o mito e aqueles personagens. É como se ele não

estivesse ali, ou sua presença não fosse percebida por eles. Sua voz paira em cena para

em seguida se juntar em coro às demais vozes nos versos seguintes:

Homem que é homem não perde a esperança, não

Ele vai parar

Quem é teimoso não sonha outro sonho, não

Qualquer dia ele para

Assim Pinduca toda manhã

Sorriso aberto e roupa nova

145

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003,

p.11. 146

(Milton Nascimento/Fernando Brant)

115

Passarim preto de terno branco

Vem renovar a sua fé

E é assim que a voz daquele mito aparece em cena em variados momentos. Por

vezes vêm apenas o seu canto em falsete. Sem a presença física em cena, a voz encarna

uma feição mágica e promove no público a sensação vivida por aqueles personagens.

Intuíam a presença da força sensível daquela voz, mas não são capazes de enxergar o

mito. Talvez por não estar ali ou por estar tão entranhado naquele cotidiano, que já não

podem enxergá-lo. A voz surge como se viesse de um lugar distante. Ao mesmo tempo,

produz a sensação de vir de cada um que aguarda a sua chegada, pois atinge os

sentimentos profundos que preservam no íntimo. Restava esperar por sua vinda ou pela

descoberta de uma forma de olhar capaz de revelar o que sob o véu da rotina se

escondia: “Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não

de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um

pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente...

E então?”147

A bela passagem do conto de Guimarães Rosa desafia o olhar sobre a

rotina, artifício nosso para domesticar o acaso. Mesmo não aparecendo diretamente no

roteiro do espetáculo, o escritor permeia sua trama ao ser acionado na maneira de

enquadrar Minas Gerais. Enxergá-la, divulgar os contornos do mito, sua voz, exigia, na

verdade, desarmar o olhar, descobrir beleza no “corriqueiro” que seduziu Rosa e

inspirou outros escritores, como Adélia Prado:

Uma ocasião,

Meu pai pintou a casa toda

De alaranjado brilhante,

Por muito tempo moramos numa casa,

Como ele dizia,

Constantemente amanhecendo148

É esse cotidiano – com suas personagens simples, suas Marias, Solidárias,

solitárias, humildes, sem sobrenome, apenas Maria, Maria e mais nada, Maria, maria –

que salta da música de Milton Nascimento para dentro de Ser Minas tão Gerais. De

repente, a narrativa ganha novo personagem, que desperta a curiosidade e desconfiança

dos outros que zanzam por aquela estação. Seria algum passageiro, ou mais alguém à

espera de um encontro com o mito? Medindo a figura com olhos de desprezo, Pinduca,

147

Guimarães Rosa. “O espelho” In: Primeiras Estórias. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2005, p. 114. 148

Adélia Prado. “Impressionista” In: Poesia Reunida/Adélia Prado. São Paulo: Siciliano, 1991, p.36.

116

sempre agarrado ao seu chapéu, lança um áspero “oi”. O olhar desconfiado é devolvido,

juntamente com o cumprimento. Belinha, criança espevitada, cumprimenta o provável

forasteiro com um “oi” sorridente. Ela traz a caixinha onde guarda sua coleção de notas

musicais. O novo personagem assiste à cena: Belinha catando notas imaginárias.

Pinduca se rende à brincadeira. Não demora e Veveco se aproxima juntando outras

notas. A cena é conduzida pelo riso da plateia. Veveco cata uma nota/piolho da cabeça

do novo personagem – ele, o mito, agora entre eles, mas sem que ainda se dessem conta

disso. Em rápido movimento, Belinha gira a caixa misturando as notas colhidas naquele

cotidiano. Ao abri-la, revela o tesouro criado na manipulação daqueles ingredientes tão

simples, pois escapole, em forma de vinheta, a melodia de Maria Maria, executada pela

banda e pelo coro infantil. A imagem serve de metáfora para pensarmos nos

ingredientes que compõem as obras dos grandes nomes ali lembrados, Milton e

Drummond. Quando o silêncio toma conta do palco, Pinduca, sentado ao lado de

Milton, conta histórias sobre aquele mito. Um diálogo bem-humorado, costurado pela

implicância e teimosia que se estabelece:

- Café preto, broa de milho e goiaba.

- Goiaba não! Eu odeio goiaba!

- Mas...

- Detesto Goiaba.

- É goiaba.

- Tenho pavor de árvore de goiaba, de doce de goiaba, qualquer coisa a ver

com goiaba! Eu não gosto de goiaba!

- Tá bom! Sem goiaba! Ele também não gostava de goiaba, não.

- Claro que não.

- Não tinha goiaba.

- Não...

- Sem goiaba.

- Sem goiaba.

- É assim que tava a mesa de café dele no dia em que ele foi embora. Ele pegou

a mala, igual essa aí, foi pra estação, olhou pra mim e falou: “Não me esqueça

amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho, a Deus dará”[cantando os versos

de Morro Velho]. Ele me deu esse chapéu. (...)

A divertida divergência tomaria conta da continuação da conversa, interrompida

apenas pela convocação de Pinduca para que Milton se aproximasse ainda mais. Diante

dos ouvidos atentos do novo amigo, Pinduca cochicha em tom de fuxico: “Dizem que,

quando ele era pequeno, ele engoliu um ovo de curió. E o passarinho fez um ninho na

garganta dele. E é por isso que, quando ele canta, ele desperta todos os tons da

manhã”.

117

Fig. 13 – “causos” sobre a voz

A cena de humor se verte em emoção. As tantas modulações da voz daquele

mito só podiam ser explicadas por uma metáfora criada por um louco: um ninho de

pássaros povoando aquela garganta. Ressoa nesse diálogo a memória de tantos “primos”

produzidos por Milton em sua obra, vocalises como os de Milagre dos peixes, falsetes

como os do álbum Pietá. Com o retorno de Belinha à cena, surge novo “causo” sobre

aquele mito: “Sabia que, quando ele era pequenininho, assim mesmo, ele pegava uma

gaitinha e colocava assim, no meio da perninha, e uma sanfoninha embaixo, e tocava

tudo assim, juntinho?”. Embora com vocação para o devaneio, a história narrada por

Belinha é uma das muitas da infância de Milton, que acabaria por impressionar seu

vizinho em Três Pontas, Wagner Tiso:

O Milton eu conheci na época que eu ia pro colégio; eu passava sempre em

frente ao alpendre dele. Isso diariamente. E, imediatamente, tinha um som: era o

Bituca sentadinho no alpendre, nos degraus da escadinha, com as perninhas

compridas... Ele botava uma gaita entre os joelhos, ali ele tocava a melodia,

com a sanfoninha embaixo do braço ele se acompanhava. Eu achava aquilo

fantástico.“Mas que jeito diferente, que cara estranho. Como é que ele consegue

isso?” Tocava umas coisas bonitas, tocando gaita e se acompanhando ao mesmo

118

tempo. Ele inventou essa história. E eu tive muita curiosidade. “Eu preciso

conhecer esse cara.”149

A história narrada por Belinha não precisa ser conhecida pelo público para ser

apreciada. Os fãs mais curiosos certamente já tinham ouvido histórias sobre a

“sanfongaita”. Naquele roteiro do espetáculo temos esse jogo, que localiza o espectador

num interlugar, entre fantasia e realidade. Para os mais desavisados, façanhas como as

da “sanfongaita” certamente cairiam no campo da fantasia. Em Ser Minas tão Gerais

temos um roteiro pronto a mobilizar a plateia em seus múltiplos olhares. Aquele enredo

também se constrói na recepção do público, nos reconhecimentos e estranhamentos.

A passagem do espetáculo aqui exposta e outros trechos de diálogos que

seguirão convidam o público ao riso justamente por termos Milton Nascimento em

cena. Encarnando o mito, a presença de Milton motiva diálogos que jogam com sua

fama de cantor. Alguns trechos arrancam risadas pelo inusitado de certas questões

postas para ele, um artista reconhecido, dentre tantos talentos, pela beleza de sua voz e

maneira de cantar. Como na conversa entre ele e Veveco:

- Ele canta. Ele, ele tá aí?

- Não sei.

- Ele chegou?

- Não sei

- Ele vai vir? Ele canta bonito. Você sabe cantar?

- Mais ou menos.

- Cê canta é nada!

A expressão de susto de Milton pelas perguntas e afirmação de Veveco é seguida

pelo riso do público. Se aqueles personagens ainda não sabiam que estavam diante do

próprio mito, o público bem sabia que ali estava Milton Nascimento. De repente, o

Homem do Sapato – personagem que tem mais zelo por seu par de sapatos do que por si

próprio – e Zeca Bilim – sempre agarrado ao seu pente – juntam-se a Belinha, Veveco e

Pinduca. Estão ali para, mais uma vez, esperar o trem. Veveco convida o “estrangeiro”

para integrar o grupo, que se prepara para cantar para o seu mito. Ao aceitar o convite,

Milton recebe uma série de recomendações, que, novamente, leva a platéia às

gargalhadas. Belinha avisa: “Já que você não sabe a letra, pode cantar laiá-laiá”. Zeca

Bilim é enfático: “Mas não desafina não!” E Veveco adverte: “Se desafinar, ele

[apontando para o Homem de Sapato] dá tapa na cabeça da gente.” Aquele quinteto,

agora sexteto, faz seu aquecimento vocal para depois entoar os versos de Veveco,

149

Wagner Tiso (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Belo Horizonte: Associação

dos Amigos do Museu Clube da Esquina e Impressa Oficial de Minas Gerais, 2012, p. 145.

119

Panelas e Canelas: “Queria fazer agora uma canção alegre...” Milton improvisa em

scats vocais. Seus colegas estranham aquilo e se calam atarantados. Ele ainda insiste em

algumas notas, mas o silêncio cortante indica que o melhor mesmo é se calar. Veveco

logo reprova: “Ele errou. Dá tapa na cabeça dele!”. Belinha rebate: “Não errou não,

viu?”. E o Homem do Sapato, regente daquela loucura, conclui espantado: “O errado

dele é certo!”. E prosseguem na performance musical, abalados por um canto

estranhamente belo.

Imaginem Milton Nascimento receber tais recomendações! O texto, que poderia

soar natural caso se dirigisse a alguém desconhecido, ganha forte conotação humorística

quando direcionado para o cantor-compositor. Naquele palco, artista e personagem se

misturavam num arranjo em que já não se podia identificar se a cena era uma invenção

ou um fato efetivamente vivido. Milton surpreendia as imagens produzidas a seu

respeito pelos espelhos das percepções do público e da crítica. Neles, como no espelho

de Guimarães Rosa, “o que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo

subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de

ilusão”.150

Mas teríamos acesso ao artista ou às coisas do cotidiano sem nossas imagens

preestabelecidas, sem o que Guimarães Rosa chamaria de “preconceito afetivo”?

Certamente não. A reflexão de Rosa, embora se realize em campo diferente, aproxima-

se da noção de representação, trabalhada e debatida por pesquisadores da História

Cultural. Como lembraria Chartier, “(...) não há prática ou estrutura que não seja

produzida pelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais os indivíduos e

os grupos dão sentido ao mundo.”151

Se as representações ou “preconceitos afetivos” são nossos guias pela vida, as

imagens formuladas sobre Milton Nascimento seriam surpreendidas pelo artista

justamente por ele mostrar uma nova faceta, a de ator. Acostumado a vê-lo no palco

cantando e tocando violão, o público agora assistia à uma performance cênica. Era um

artista disposto a desafiar limites. Quando estive com Milton, perguntei-lhe como lidava

com situações em que tinha que dialogar com a linguagem teatral, atuar como ator. A

resposta revelou interesse e intimidade com esse campo da arte: “Eu, antes de aparecer

como compositor, trabalhei em teatro em São Paulo, com o Plínio Marcos. E eu adoro!

Cinema, então, se me chamarem para fazer um filme, eu vou, antes de me chamarem.”

150

Guimarães Rosa. “O espelho.” Op. cit., p. 116. 151

Roger Chartier. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.

Universidade/UFRGS, 2002, p. 66.

120

O entusiasmo na fala de Milton nos desperta para suas outras experiências como ator e

para sua relação com o cinema, paixão que cultiva desde os tempos de Belo Horizonte.

Chegou a compor trilhas sonoras para filmes, mas seu apreço pela sétima arte o levou a

fazer pequenas participações como ator em filmes como Os deuses e os mortos (1970),

de Ruy Guerra, Noites do Sertão (1983), de Carlos Alberto Prates Correia, Fitzcarraldo

(1982), do cineasta alemão Werner Herzog e O viajante (1999), de Paulo César

Saraceni. Em entrevista feita no programa Bar Academia, da TV Manchete, Milton

afirmaria: “Eu acho que o cinema completa a música, a música completa o cinema. E

quando eu faço uma música, tá sempre passando um cinema na minha cabeça, no meu

violão, no meu piano, nas minhas coisas. Sempre tem o cinema presente”152

. Se aqueles

campos das artes dialogavam, interagiam, seria natural para o artista uma ou outra visita

à tela e ao palco como ator. Foi com essa naturalidade que Milton resolveu pisar no

palco de Ser Minas tão Gerais:

Eles resolveram fazer uma homenagem pra mim lá em Barbacena. Aí eu fui,

cheguei... aí começaram uns lances, assim, que eu falei: “Eu não vou ficar

sentado aqui, eu vou entrar e vou atuar”. Então tinha o cara com quem eu

converso, principalmente o que eu brigo, né, ele falou um negócio, falou: “Ele

deixou um boné pra mim, deixou isso pra mim, e tal, deixou goiaba...”. Aí eu:

“Goiaba não! Eu odeio goiaba!” Isso eles tão me procurando, eu que tô ali.

Não acham de jeito nenhum. Aí foi aquele negócio, acabou que virei ator do

lance.153

Envolvido em falas e cantos, expressões gestuais e passos coreografados, Milton

Nascimento atualizava as representações de sua imagem de artista naquele palco que

celebrava sua obra.

Voltemos ao diálogo promovido pela apresentação de Veveco, Panelas e

Canelas. “O errado dele é certo!”. A frase, elaborada para a compreensão daquela

performance vocal, desdobra-se em lembranças provocadas por experiências sonoras

de quem não se acomodou ao longo da carreira, pelo contrário, mostrou-se sempre

inquieto, disposto a experimentar novas nuances para despertar remotas sensibilidades.

O mesmo observamos no campo da composição e dos arranjos. Milton fez das

harmonias de suas canções tapeçarias de arabescos e cores inusitados. As percepções

sobre tais características de sua obra também foram captadas por parte da crítica e dos

estudiosos ao longo dos anos, acabando por consolidar a imagem da música de Milton

152

Programa Bar academia, TV Manchete, 1984. Apresentado por Walmor Chagas, a entrevista foi

realizada por Sérgio Cabral, Renato Sérgio e Geraldo Carneiro. 153

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

121

como diferenciada. Naquele mesmo texto em que escreve sobre o disco Milagre dos

peixes, Marcus Vinicius avalia o fenômeno Milton na MPB dos anos 60:

A experiência e o talento de Milton, no entanto, já o capacitava para vôos mais

altos, e compará-lo com outros autores ou correntes vigentes seria simplesmente

uma tolice: gauche no tempo e no espaço da MPB daquela época, Milton viera

mesmo para fazer escola. Seu trabalho era realmente um trabalho novo e

justamente por isso fugia a toda comparação, já que exigia novos cânones de

julgamento e apreciação.154

No palco de Ser Minas tão Gerais esse quê inusitado, torto, gauche, alimenta a

imaginação sobre o mito. O espetáculo aciona memórias sobre o artista, sempre envoltas

em névoa misteriosa, sugerindo, mais que revelando, esse Milton e sua linha de fuga:

um errado certo.

Mesmo com o mito presente entre os personagens da trama, ele ainda não é

percebido como tal. Mais uma vez, o trem chegaria e partiria sem trazer alguém tão

aguardado. E exatamente quando os personagens se desarmam em sentimento de

abatimento, a voz se faz presente. A cena agora traz Belinha entristecida e agarrada a

sua caixa de notas musicais. Diante dela, apenas Milton. O novo amigo convence

Belinha a lhe entregar seu tesouro por alguns instantes. Ao abrir aquela caixinha, ele

admira: “Caramba, cheio de notas musicais! Posso botar mais uma?”. Acrescenta a

nota, gira levemente a caixa e a devolve à sua dona. Quando reabre sua caixinha,

Belinha se surpreende com a melodia arranjada pela manipulação de suas notas de

estimação. Logo nos primeiros acordes vindos do som de violão, percebe que aquela

música foi manejada por uma espécie de mago. Fita Milton com expressão de quem

pressente o que tanto esperou. E ele emite em falsete a melodia da canção que desperta

o sorriso de Belinha. Aquele canto mágico traz à cena outras crianças por ele

encantadas. Aquela voz chama a de Belinha, que entoa os versos:

Rouxinol tomou conta do meu viver

Chegou quando procurei

Razão para poder seguir

Quando a música ia e quase eu fiquei

Quando a vida chorava

Mais que eu gritei

Pássaro deu a volta ao mundo

E brincava

Rouxinol me ensinou que só não temer

Cantou

Se hospedou em mim

154

Marcus Vinicius. “Milton, milagre de peixes e de música”. Op. cit.

122

A voz de Milton em falsete, canto de passarinho que se hospedou em Belinha,

agora convida o coral de crianças a entoar os versos do refrão:

Todos os pássaros, anjos

Dentro de nós,

Uma harmonia

Trazida dos rouxinóis

Nessa cena, o recado de que, para enxergar o mito, era preciso recuperar aquela

pureza infantil, enunciada pela voz em falsete e pelo coro de crianças. Ao final, a boca

que emite voz mágica solta assovios como de pássaros. Diante desses sons, a certeza

para aquelas crianças: “É ele!”. Agora precisava que os outros soubessem de sua

chegada. Para que acreditassem, Belinha pede que cante mais uma canção. Aquela voz

entoa com toda a força vocalises comoventes, que antecipam em beleza a introdução

dos versos da canção. A música de Milton Nascimento e a poesia de Carlos Drummond

de Andrade, que se acompanharam ao longo do enredo dessa trama, agora se casavam

para celebrar um momento ápice de Ser Minas tão Gerais. Para revelar-se a todos,

Milton cantaria um poema de Carlos Drummond de Andrade, embalado por melodia de

sua autoria. Acompanhada apenas pelo toque suave do violão de Gilvan de Oliveira, a

voz de Milton ganha a cena daquele palco. Um canto solto e firme, que de repente se

recolhe em delicadeza, atira-se em notas graves e ascende em falsetes. Tudo numa

dinâmica que provoca emoção e cria a magia de um canto que se coloca no limiar entre

técnica apurada e sensibilidade. O canto, a música, a arte, como ferramenta que espalha

beleza sobre as coisas desse nosso cotidiano. A arte que encanta e desperta, como nos

versos de Drummond cantados por essa voz:

Eu preparo uma canção

Em que minha mãe se reconheça

Todas as mães se reconheçam

E que fale como dois olhos

Caminho por uma rua

Que passa em muitos países

Se não me veem, eu vejo

E saúdo velhos amigos

Eu distribuo um segredo

Como quem ama ou sorri

No jeito mais natural

Dois carinhos se procuram

Minha vida, nossas vidas

Formam um só diamante

Aprendi novas palavras

E tornei outras mais belas

123

Eu preparo uma canção

Que faça acordar os homens

E adormecer as crianças

Uma voz que, no espetáculo, acorda os homens para a presença do mito; que

desperta o público para o Brasil interior, enredado em Ser Minas tão Gerais. Nesse

cenário, os versos de Drummond sugerem uma arte comprometida, “comprometida com

a vida”, como diria Fernando Brant, mas engendrada no encantamento, na beleza, na

capacidade de olhar com sensibilidade para o gesto simples de embalar crianças, pois

ainda é arte, maneira de se expressar, onde o conteúdo é importante, mas a forma é

imprescindível.

“Caminho por uma rua/ Que passa em muitos países”. O verso de Drummond

dialoga com a canção que dá seguimento ao espetáculo. Agora, todos aqueles

personagens estão reunidos para cantar para e com o mito. E a voz do cantor busca a de

cada personagem, às vezes emitindo o silêncio, chamando apenas com os olhos, outras

vezes como segunda voz num dueto. Há momentos em que é integrada ao coral, outros,

em que ganha o centro, num solo. Vozes que buscam o que é seu nas outras e

promovem viagens como as dos versos da canção que entoam, Vendedor de Sonhos,

introduzida pelo som delicado do clarinete de Guido Campos, que alerta e convoca

aquelas vozes a cantar. Há passagens que a canção toma pulsação de fanfarra. Plantados

no palco, os personagens são transportados para muitos outros lugares através do

reconhecimento de seus gestos e olhares noutras pessoas que lhes vêm à memória e que

também insistem em manter a esperança nutrida em sonhos teimosos.

Vendedor de sonhos

Tenho a profissão viajante

De caixeiro que traz na bagagem

Repertório de vida e canções

E de esperança

Mais teimoso que uma criança

Eu invado os quartos, as salas

As janelas e os corações

Frases eu invento

Elas voam sem rumo no vento

Procurando lugar e momento

Onde alguém também queira cantá-las

Vendo os meus sonhos

E em troca da fé ambulante

Quero ter no final da viagem

Um caminho de pedra feliz

124

Tantos anos contando a história

De amor ao lugar que nasci

Tantos anos cantando meu tempo

Minha gente de fé me sorri

Tantos anos de voz nas estradas

Tantos sonhos que eu já vivi

Vendedor de sonhos ativa lembranças da composição Travessia no título e em na

primeira ideia de tema daquela canção, como vimos no princípio de nossa narrativa.

Fernando Brant se inspirou na ideia de um caixeiro-viajante a semear amores por onde

passava, mas aqui a figura é vertida na de um cantor-compositor, cuja música ganha o

mundo ao repercutir na voz do público. Um caixeiro-cantor-viajante, como o próprio

Milton Nascimento, que dos tempos dos festivais até aquela década de 80 (a canção foi

composta 20 anos depois de Travessia), enveredou por travessias, levando notícias de

seu país para distantes paragens através da música. Viagem, estado que promove

encontros. Mergulhando em imagens dos versos de Drummond e da música de Milton

Nascimento, a trama do espetáculo desenha Minas com os traços das obras desses dois

artistas, salientando aquelas características tão mineiras, mas ao mesmo tempo

compartilhadas com outros cantos do país e do mundo. Não é, pois, no isolamento que

colhem suas características, mas nos reconhecimentos, que fazem Minas ser tão Gerais,

tão Brasil.

Reconhecida a voz, precisam os personagens celebrá-la. Em cena, eles prestam

reverência ao mito, cobrindo-lhe com adereços e montando a grande festa. Para lhe

renderem homenagem, valem-se dos versos de Carlos Drummond de Andrade, colhidos

do poema Canto ao homem do povo Charlie Chaplin, publicado no livro A rosa do

povo. Naquelas linhas, Drummond enaltecia o reconhecimento provocado pelo artista de

cinema nas pessoas simples do povo, nos brasileiros, “vagabundos que o mundo repeliu,

mas zombam e vivem nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro,

Polícia, e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor como um segredo

dito no ouvido de um povo caído na rua”. O trecho aqui transcrito nos ambienta na

atmosfera do poema. A parte oferecida a Milton Nascimento no espetáculo seria outra.

Recortados e adaptados, acrescidos de novas palavras, os versos de Drummond são

tomados para homenagear o mito:

Não é saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço, mas a de

homens comuns, numa cidade comum.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e ao ouvir a sua música se

salvaram.

125

Falam por mim, os abandonados de justiça, os simples de coração, os párias, os

falidos, os solitários, os líricos, os pueris, os loucos e os patéticos.

E já não sentimos a noite,

É como se, ao contato com sua voz mágica, voltássemos ao país secreto onde

dormem meninos.

Feitas as homenagens em versos e canções, era hora de celebrar em festa. Eis

que os tambores mineiros sobem ao palco pelas mãos de Lincoln Cheib, Serginho Silva,

Cléia Celestino, Clésio Celestino, Ednan Pereira, Maxwel Rodrigues, Renato Pereira,

Rogério da Silva, Yuri Hunas e Leandro Aguiar. Instrumentos artesanais, trabalhados

em madeira, corda e couro. Com os adereços e cores que recebem, ganham

personalidade, lembrando as caixas que se espalham em folias de reis, folias do divino e

recebem fitas dos santos homenageados. Adentram as igrejas em euforia quando

convidadas. São como os tambus da festa de Nossa Senhora do Rosário de dona

Mercês. Seus sons convocam a oração nas horas de devoção, mas também conduzem as

farras que varam as noites nessas ocasiões. Naquele palco, o couro esticado recebe o

carinho das baquetas empunhadas por mãos firmes de crianças e adultos, demonstração

de que aquela tradição sobrevivia, seguindo percursos e atravessando gerações.

Algumas das músicas dessa parte festiva vêm do repertório de Nascimento, álbum de

1997: Tambores de Minas e Louva-a-Deus, compostas por Milton a partir de pesquisa

de batidas de tambores mineiros realizada por Lincoln e seu irmão Ricardo Cheib. Tal

pesquisa foi encomendada por Milton num momento em que recebeu, por meio de Naná

Vasconcelos, a notícia de que corria um boato de que Minas não tinha mais tambor.155

Provocado, Milton puxou da memória tantas festas populares levadas pelas batidas de

caixas e tambores. Resolveu contrariar a boataria. Se os tambores de Minas estavam na

sombra, fora da grande cena, seriam levados para o centro do palco no espetáculo

Tambores de Minas, de 1997.

Ser Minas tão Gerais retomava essa rota, trazendo novamente aquela tradição

para o palco, mais uma forma de celebrar o mito. Estamos diante de um dos momentos

em que a música de Milton se mescla com sonoridades advindas da cultura popular,

agora lhe servindo como tema e inspiração. Outras canções se enredam nessa

ambiência, como Raça: “Lá vem a força, lá vem a magia/ Que me incendeia o corpo de

alegria/ Lá vem a santa maldita euforia/ Que me alucina, me joga e me rodopia”156

. As

Minas morenas, negras, miscigenadas, davam sua cara naquele palco de onde ressoava a

155

Cf. Maria Dolores Pires Duarte. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Op. cit. 156

(Milton Nascimento/Fernando Brant)

126

voz grave e rouca do tambor e as vozes de todos os integrantes daquela trama em coro

para lembrar:

Bate forte até sangrar a mão

E batendo pelos que se foram

Ou batendo pelos que voltaram

Os tambores de Minas soarão

Seu tambores nunca se calaram157

De repente, aos batuques dos

tambores acrescenta-se novo ingrediente

percussivo: o som dos passos de dança

emitidos pelos sapatos de sapateado. Regidos

pelo Homem do Sapato – nada mais

apropriado –, o elenco de atores e os meninos

brincam e conversam com os tambores

através de danças que lembram catiras,

curraleiras, dentre outras presentes em

festividades populares ali evocadas. Naquele

ambiente vertido em pura descontração, se

aventuram em desafios, convocados pelo

Homem do Sapato. Nesse instante, mostram

toda a habilidade com os pés, apropriando-se

da técnica de sapateado norte-americano para

imprimir som a sua ginga e balanço, essas

características atribuídas aos brasileiros. Não

tentam imitar os passos divulgados em

musicais norte-americanos, antes se limitam a

aplicar linguagens corporais próprias àquele

utensílio por eles absorvidos. Há momentos

em que caem no samba, riscando o tablado

com identidades plantadas nos pés. Milton

assiste a tudo, passeando pelo palco,

misturando-se ao grupo, entrando na farra.

157

Tambores de Minas (Milton Nascimento/Márcio Borges)

Fig. 14 – A grande festa

127

Ao final, estandartes confeccionados em papéis de jornais repicados tomam

conta do palco. Não trazem símbolos, nem dizeres, antes carregam memórias das

festividades e celebrações em que se fazem presentes, deixando para o público o gosto e

a vontade de imaginar estampas e inscrições, guardadas como lembranças afetivas. No

centro, Milton Nascimento é rodeado por todos que participaram dessa trama. O grupo

ganha a dimensão de uma multidão naquele palco. Parece um retrato, uma imagem de

Brasil costurada em esperança e ternura. Um Brasil utópico, mas que se pretende real,

ou, mesmo, se faz real para os que têm coragem de viver sob outros signos, como nos

versos da canção que encerra o espetáculo em coro de vozes seguido pelos aplausos da

plateia:

Quero a utopia, quero tudo e mais

Quero a felicidade nos olhos de um pai

Quero a alegria, muita gente feliz

Quero que a justiça reine em meu país

Quero a liberdade, quero o vinho e o pão

Quero ser amizade, quero amor, prazer

Quero nossa cidade sempre ensolarada

Os meninos e o povo no poder eu quero ver

São José da Costa Rica, coração civil

Me inspire no meu sonho de amor, Brasil

Se o poeta é o que sonha o que vai ser real

Vou sonhar coisas boas que um homem faz

E esperar pelos frutos no quintal

Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?

Viva a preguiça, viva a malícia que só a gente é que sabe ter

Assim dizendo a minha utopia

Eu vou levando a vida, eu vou viver bem melhor

Doido pra ver o meu sonho teimoso um dia se realizar.

Os aplausos entusiasmados testemunham que a trama e a sintonia entre os

artistas em cena atingiram em cheio o público. A interação entre os artistas não se

limitaria ao palco do espetáculo ou aos momentos de ensaio. Como já dito, os atores do

Ponto de Partida e o grupo Meninos de Araçuaí participariam do álbum Pietá, lançado

por Milton Nascimento naquele mesmo ano de 2002. O convívio de bastidores renderia

gratas surpresas às crianças. Quando o espetáculo foi ao Rio de Janeiro, Milton fez

questão de levá-las para passear:

Eu trouxe eles aqui pra praia, porque tinha uns que nem sabiam o que era

praia. E depois eu trouxe aqui pra casa. Aí a gente estava sentado assim,

olhando pra lá, a meninada toda assim. Então começou a aparecer um negócio

de piano, uns acordes assim... demais! Aí eu olhei pra trás e vi um dos garotos

tocando o piano, mas não falei nada. Mas aí a chefa chegou e falou:

“Pitágoras, quem te ensinou isso aí?”. Ele falou: “Ninguém, eu nunca cheguei

perto de um piano”. Fantástico o piano do garoto. Aí aconteceu que tinha um

128

pessoal da Amil, que tava pra vender um piano, eu falei: “Não vende não, me

dá que eu vou mandar para um garoto.” Mandei o piano pra ele e falei: “o

piano é teu, mas deixa os outros tocarem também”. (...) Ele hoje é um dos

principais professores da faculdade que o Ponto de Partida fez em Barbacena,

que se chama Bituca.158

Este e outros relatos de Milton sobre os Meninos de Araçuaí são pontuados pela

admiração e pela atenção do artista. A convivência com as crianças desvelou afinidades

e produziu vínculos. As experiências com o grupo Ponto de Partida mostram a arte

como canal de divulgação de facetas de um Brasil interior, mas também como percurso

possível para ascender socialmente. A arte daquele palco se conjugava, portanto, com a

ação social.

Pude assistir ao espetáculo Ser Minas tão Gerais numa das apresentações

promovidas no Teatro Alfa, em São Paulo, em setembro de 2012. Daquele palco

saltavam emoções que se amarravam ao público por um sentimento de comunhão, num

encantamento por aquela voz, aquelas crianças e toda aquela trama. Ao final, a plateia

aplaudia euforicamente a apresentação. As luzes do teatro, agora acesas, revelavam

olhos lacrimejados, comunicado sensível de que nos reconhecíamos e nos

sensibilizávamos com as histórias enredadas naquela narrativa e com memórias por ela

provocadas.

Erguia-se naquele palco uma espécie de monumento à obra e a voz do artista

Milton Nascimento. Para isso, juntavam-se aos grandes sucessos do artista composições

menos conhecidas, ligavam-se aos clássicos do passado temas mais atuais de sua obra.

Aravam-se, assim, as memórias construídas sobre Milton Nascimento. Ao se trazerem

canções de seu álbum Nascimento (de 1997), por exemplo, mostrava-se que sua

criatividade estava permanentemente se reconstruindo, traçando novas linhas,

recomeçando.

Os percursos pelos quais passamos até este ponto de nossa narrativa nos dão

pistas de que a mágica daquela voz foi se enredando ao longo de sua trajetória, de seus

experimentos sonoros, provocadores de identificações e estranhamentos inquietantes: a

voz de partículas femininas e infantis, a voz de denúncia e socorro, a voz instrumento, a

voz da palavra, a voz que dá voz aos que se deixam acolher pelo apelo. Todos os ecos

provinham de uma voz única, a assobiar travessias e alicerçar o mito numa base tão

sólida quanto volátil: o Ser Minas tão Gerais.

158

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

129

CAPÍTULO 2

“Faz amigo em cada rua ou bar”

Desde o capítulo anterior, destacou-se a importância da presença dos amigos no

processo de composição e nos rumos da carreira de Milton Nascimento: “A coisa mais

importante, para mim, de todas as coisas, é a amizade.” Valorizar a amizade foi um dos

muitos ensinamentos de Lília. Uma das canções mais conhecidas de Milton e Fernando

Brant, Canção da América, eterniza o tema em sua obra. Os laços de amizade

conduziram a construção de parcerias musicais ao longo de sua carreira. Na entrevista

que realizei com Milton, tivemos breve diálogo sobre suas parcerias, sobre a relação

entre a amizade e o seu fazer artístico.

- E parece que isso [a amizade] na sua obra é muito importante tanto como

tema, como também por ser ela construída em cima de parcerias.

- É!

- O Clube da Esquina reúne alguns parceiros que você levou para a vida afora.

- Uhum. [balançando a cabeça afirmativamente]

- É muito forte. Eu queria que você comentasse um pouco essa coisa sua com a

parceria. Eu não te vejo como um artista que produz isolado.

- Realmente eu sempre quis, e continuo querendo, pessoas junto comigo... tem

uma coisa que acontece... eu sou meio diferente de meus colegas assim, porque

se eu for fazer uma música, compor, essas coisas todas, eu não gosto de

silêncio. Então, se tem crianças na casa, os afilhados maiores, ou qualquer

coisa, eu sinto que a casa está viva! Aí eu consigo fazer as coisas mais bonitas

e levadas do jeito que eu quero. Então, realmente, tudo é a partir da amizade.

Por meio do contato com outros músicos e letristas, muitos deles seus amigos,

Milton Nascimento enriquece sua obra, adensa seu som, renova seu talento e revela

novos nomes. Foi assim, por exemplo, com Lô Borges, que ainda adolescente foi

convidado pelo artista para assinar com ele o emblemático álbum de 1972, Clube da

Esquina. A personalidade dos talentos e as inovações resultantes dessa experiência

acabaram produzindo uma identidade musical, de modo que o Clube da Esquina passou

a ser, além de título de disco, a expressão que identificava a música do grupamento de

artistas que se envolveu na feitura desse e de outros álbuns de Milton Nascimento.

Espontaneamente, portanto, nascia uma corrente musical. Experiências como esta

renderam a Milton adjetivos como: agregador, aglutinador, catalisador. Volta e meia, o

130

artista reúne novos talentos ao seu redor, retoma parcerias, estabelece laços. No diálogo

acima transcrito, Milton ainda menciona como a coletividade de vozes o inspira a

compor, como o artista precisa de vida para produzir arte. Nesse ponto, não são apenas

os artistas, músicos e letristas que o inspiram, mas, principalmente, os amigos.

Na década de 70, e também nas que seguiriam, as experiências de gravação de

disco de Milton chamavam a atenção pela quantidade de pessoas reunidas no estúdio.

Por vezes, grandes coros eram constituídos na mescla de personalidades da música e

amigos que se ajuntavam especialmente para aquela ocasião. Colaborador ativo de

discos desse período, Novelli recorda o clima das gravações quando Milton Nascimento

entrava em estúdio:

A gente, às vezes, colocava 150 pessoas no estúdio e organizava. Aqueles coros,

“Reis e rainhas do maracatu”, aquilo ali tinha 80, 100 pessoas fazendo coro.

Suzana Moraes, as filhas do Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Marieta... É

um Butantã, muita gente!! O couro comendo, loucura! Só que a música

prevaleceu, tá afinado, tem aquele volume, aquela presença. Às vezes

apareciam músicos não sei de onde e já aderiam, já chegavam lá... Aparecia

Cauby Peixoto de repente, que estava gravando numa outra sala, não sei que

lá: “O que que tá acontecendo, aqui?”. “Ah, é uma gravação de um disco do

Milton Nascimento.” “Que que tá rolando?” “É um coro aí, que tem umas 70,

80 pessoas”. Ele falou: “Ah, eu também vou”. [risos].1

A atmosfera que inspirava a composição das canções de Milton Nascimento era

transposta para os discos, onde se buscava reproduzir o calor e espontaneidade das

reuniões entre amigos. Interessante é que em discos como o Clube da Esquina nº 2,

onde está presente a canção Reis e rainhas do maracatu, citada por Novelli, alguns dos

coros de múltiplas vozes, improvisados com grande número de artistas, aparecem

nomeados nos encartes pela expressão “Falta de Couro”. Brincadeiras à parte, o

trocadilho favorece o paradoxo de uma reunião anárquica e uníssona de vozes

a romper limites e enquadramentos vocais dos coros tradicionais, porque, na verdade, o

que se busca mesmo é traduzir a presença de uma multidão. Vozes dissonantes, vozes

que excedem, transbordam, faltam em coro por pura falta de couro, num gracejo,

mesmo com “o couro comendo”. O Falta de Couro ganha volume ainda maior no disco

posterior de Milton, Sentinela, de 1980. Ao consultar o encarte do disco, a surpresa com

a lista onde nomes de amigos pessoais se misturam a músicos reconhecidos, atores,

1 Entrevista de Novelli concedida ao grupo “História e música: compondo identidades, fazendo histórias”,

no Rio de Janeiro, em 10/12/2010.

131

pessoas da família. Gente de todo canto, de Belo Horizonte, do Rio, de Três Pontas.2

Um estúdio em festa a cantar: “Quem me ensinou a nadar/ quem me ensinou a nadar/

Foi, foi, marinheiro/ Foi os peixinhos do mar”3. Tais versos vêm abrigados naquela

aura mágica arquitetada pelo som do grupo instrumental Uakti, reconhecido pela

personalidade e criatividade musical reverberadas de instrumentos inventados na oficina

de seu maestro, Marco Antônio Guimarães. O grupo levaria seu som enigmático a

outras obras de Milton Nascimento, arranjando bela parceria ao longo dos anos.

O clima de produção coletiva permeia os relatos dos participantes do disco

Clube da Esquina, o primeiro destes no livro que celebra seus 40 anos.4 No estúdio,

todos participavam da elaboração dos arranjos de base. Antes de começar as gravações,

Milton se mudou com seu primo Jacaré, Lô Borges e Beto Guedes para uma casa em

Mar azul, na praia de Piratininga, Niterói, em busca de inspirações para o disco. Durante

a estada, muitas foram as visitas dos outros membros daquele futuro Clube da Esquina.

Os encontros também se deram em Belo Horizonte, onde moravam Márcio Borges e

Fernando Brant. Pelo convívio na casa de Mar Azul e no estúdio, aqueles artistas

fortaleciam laços sonoros e de amizade. Maturavam ideias, criavam caminhos musicais

e poéticos inovadores que resultariam num disco espontâneo e com unidade, de tal

forma que as canções parecem se enlaçar como peças de uma mesma narrativa. Na

atmosfera de Clube da Esquina pairam nuvens enigmáticas. Detrás daquelas canções,

outras histórias se insinuam, conversas internas ganham contornos poéticos e

transbordam em letras que só poderiam ser gestadas numa experiência costurada pela

intimidade profunda entre os participantes: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto

Guedes, Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Wagner Tiso, Toninho Horta,

Tavito, Robertinho Silva, Nelson Ângelo, Luiz Alves, Rubinho Batera, Eumir Deodato,

Alaíde Costa, Paulo Moura e tantos outros que deram um pulinho por lá. Cada

participante desembarcava com sua bagagem musical direto para o universo daquele

2 Assim estão listados os participantes do Falta de Couro em Sentinela: Celso, Silvana, Luiz Couto,

Arnold, Marisa, Wilma Nascimento, Marilene, Hildebrando, Márcia, Cássio Tiso, Carlos Diniz, Ana,

Totó, Lulu, Ernesto, Jorge, George, João Anginha, Chico Alencar, Samarone, Rick, Cacá, Tavinho

Bretas, Canela, Vivaldi, Rosina, Celso, Fred, Marden, Ike Popó, Sinara, Tunai, Ronaldo, Pedro Brant,

Léo, Fernando Brant, Vina Brant, Ana Brant, Guiga, Murilo Antunes, Bel, Veveco, Biza, Zezé, Dedédela,

Tonho da Diva, Russo, Haroldo, Beto, Rodrigo, Cabral, Da Laura, Wandinho, Jacarezinho, Marilena,

Marcinho, Maria Eugênia, Jorge Tiso, Paulo Souza, Dudu, Regina, Marquinho, Carlinho Tiso, Sérgio,

Déco, Fernando Tiso, Fran, Fernando Eiras, Maria Padilha, Paulinho, Pato Astaire, Ronaldo Bastos,

Roma, Regina, Keller, Ingrid, Leinho, Naca, Léo II. 3 Peixinhos do mar. Cantiga de marujada. Arranjo e adaptação de Tavinho Moura.

4 Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Belo Horizonte: Associação dos Amigos do Museu Clube da

Esquina e Impressa Oficial de Minas Gerais, 2012.

132

disco, onde Milton Nascimento promovia uma fusão de gêneros e estilos – jazz, Bossa

Nova, rock, rock progressivo, música regional, música clássica, música sacra –, de que

resultava um som provocador de distinta sonoridade, percebido como um novo estilo.

“... as pessoas vestiram muito a camisa. Parecia que o disco era meu, do Wagner, de nós

todos. Não parecia que era um disco do Lô e do Milton. A gente tomava aquilo como

nosso. Acho que isso faz a diferença.”5 As palavras de Beto Guedes expressam um

sentimento compartilhado pelos participantes daquela obra e pelos inúmeros

admiradores.

Clube da Esquina é um álbum duplo, o segundo nesse formato no mercado

fonográfico brasileiro. Ao abrirmos a capa que acomoda os dois LPs, deparamos com

variadas fotografias de músicos que participaram do projeto e de outros personagens

que interagiram com o grupo, amigos, parentes. No meio daquele quadro de fotos, a

imagem de uma nuvem. A ideia era de que ela viesse num pôster colorido, mas por falta

de verba acabou como mais um quadrinho preto-e-branco num monte de fotos.6 A

imagem da nuvem harmoniza-se com o conceito do álbum, elaborado em arranjos e

orquestrações que dão o tom abstrato. O movimento das nuvens desperta sensibilidades

latentes e dá pistas da temática das canções, sublinhando nelas a fluidez entre o leve e o

denso, o claro e o escuro, realidades perpassadas por nuances pouco decifráveis. Nuvens

que transcendem a ideia de mera contemplação, num convite ao público a interagir na

(re)criação de desenhos e formas etéreas. Sonoridades e letras musicais se envolvem

nessa elaboração poética, carregada de tons impressionistas.

Fig. 1 – parte interna do álbum Clube da Esquina

5 Beto Guedes (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit., 2012, p. 87.

6 Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. 4ª edição – São Paulo:

Geração Editorial, 2002.

133

No céu do Clube da Esquina, o horizonte se espraia em tonalidades cinzentas,

como se pode perceber na canção Cais (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos): “Para

quem quer se soltar/ Invento o cais.” Aí, o som constante e pungente do órgão

manejado por Wagner Tiso ganha todos os espaços da música, imprimindo

profundidade e angústia à melodia. Combinada com a voz de Milton Nascimento, a

canção lembra um ambiente sacro, como se as ondas daquele mar imenso fossem eco do

som que se propaga pelo interior de uma igreja e escapa para o exterior, planando entre

as baixas nuvens cortadas por montanhas. O céu se abre em alguns momentos do disco,

como no da execução da balada O trem azul (Lô Borges/Ronaldo Bastos), “Você pega o

trem azul/ o sol na cabeça”. A voz de Lô Borges e o solo de guitarra de Toninho Horta

ajudam a compor a ambiência, onde prevalece a leveza na condução de viagens que

evocam sensibilidades. Tomar um trem azul é se jogar em sensações, num franco

diálogo com a linguagem psicodélica. É como se o trem de ferro, objeto, se

transformasse em sensação e nos atravessasse – esta seria a sua viagem. Da mesma

dupla de compositores de O trem azul, a canção Nuvem cigana, interpretada por Milton

Nascimento, evidencia essa movimentação da nuvem sonora, já pelo título, já pelos

arranjos de orquestra assinados por Wagner Tiso. Regida por Paulo Moura, a orquestra

ora surge volumosa, ora se recolhe, reaparece, movimenta-se, aplicando cor ao ambiente

sonoro, perfurado pela voz de Milton, que, desse vórtice de sons, emite os versos da

canção: “Se você quiser eu danço com você/ No pó da estrada/ Pó, poeira, ventania,/ Se

você soltar o pé na estrada.”

Márcio Borges recorda em seu livro sobre o Clube da Esquina que o álbum de

1972 “tinha sido um disco estradeiro, cheio de motivos e citações de viagens, como

“Cais”, “O Trem Azul”, “Nada será como antes”, “Saídas e Bandeiras””.7 Isto é

perceptível, inclusive pela ambiência sonora, onde por vezes se acentua um ar de

psicodelia. As letras das canções ajudam a compor o ambiente com o uso de expressões

e imagens abstratas, metáforas que mais inquietam do que constroem sentidos: “Se você

deixar o sol bater/ nos seus cabelos verdes/ sol, sereno, ouro e prata, sai e vem

comigo”8, “Sol, girassol, verde, vento solar/ você ainda quer morar comigo”

9.

7 Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. Op. cit., p.315.

8 Nuvem cigana (Lô Borges/Ronaldo Bastos)

9 Um girassol da cor de seu cabelo (Lô Borges/Márcio Borges)

134

Outras imagens são apresentadas em corte vertical, por onde os sentidos se

aprofundam na releitura de temas que circulam no cotidiano: “Alguém que vi de

passagem/ Numa cidade estrangeira/ Lembrou os sonhos que eu tinha/ E esqueci sobre

uma mesa/ Como uma pera se esquece dormindo numa fruteira”. A canção Um gosto de

Sol (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), cuja inspiração foi provocada pelo contato de

Milton Nascimento com a juventude da Venezuela durante passagem por um festival de

música por lá, tem ambiente intimista, composto pela voz e o piano do cantor-

compositor. Deslizando as mãos pelas teclas do piano, o toque suave ganha ar de

urgência quando os dedos pesam com maior intensidade, arrancando um tom dramático.

Delicadeza se converte em força. A voz sobe em falsete, imprimindo agora tom

contemplativo – contemplação da tela onde se pinta a natureza morta: uma pera

dormindo numa fruteira. Imagem que salta do quadro e interage com aquela voz,

metaforizando um estado de espírito. A identificação com aquele estrangeiro convidava

ao despertar, ao revigoramento da inquietude que um dia fora sua: “Lembrou o riso que

eu tinha/E esqueci entre os dentes”. No arremate da canção, retorna o tema instrumental

apresentado anteriormente em Cais, mas agora, ao invés de apenas ao piano, ele é

executado pela orquestra. O arranjo de Eumir Deodato dá ênfase aos ares de urgência e

dramaticidade. A citação de um mesmo tema em duas canções salienta o sentimento de

que aquele disco tinha uma unidade tal que favorecia o trânsito de melodias e arranjos

por contextos diferenciados, numa espécie de diálogo intermusical em que a parte

instrumental ganharia status de voz, a desafiar os limites formais da canção no disco.

Inaugura-se aí um sofisticado mecanismo de construção de memória, a partir de

emoções fluidas, inacabadas e dispersas, irmanadas pela música e abertas ao porvir. As

canções se comunicariam entre si, afinal, para tecer uma trama, embora o resultado não

guardasse compromisso com o decifrável, mas antes com o sensível. Ao atentarmos

para outra composição, Tudo que você podia ser (Lô Borges/Márcio Borges), temos

mais indícios dessas intercomunicações entre canções, pois nela se exorta ao

revigoramento da inquietude diante da vida, em lugar de se ceder à acomodação: “Sei

um segredo/ Você tem medo, só pensa agora em voltar/ Não fala mais na bota e no anel

de Zapata/ Tudo que você podia ser, sem medo.” A inspiração de Márcio Borges para

escrever a letra foi o filme Viva Zapata, de Elia Kazan.10

Ao mencionar Zapata, o líder

da Revolução Mexicana de 1910, a canção assume um tom de contestação. O

10

Cf. Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. Op. cit.

135

compositor recorre, portanto, à memória de outro acontecimento para sacudir as

oposições ao regime político brasileiro da época. Mas essa citação não aprisiona os

sentidos desses versos. O discurso era aberto a várias leituras e, portanto, adequado a

situações diversas, sempre que houvesse necessidade de se libertar de comodismos,

fossem eles vinculados à vida política ou à intimidade: “Você ainda pensa e é melhor do

que nada/ Tudo que você consegue ser, ou nada”. Como se vê, o trecho citado caberia

muito bem em variados questionamentos que nos impomos cotidianamente.

Em relato a Chico Amaral, Milton Nascimento conta sobre o clima político na

Venezuela naquele momento do festival e a respeito de seu contato com a juventude

daquele país:

E quando a gente chegou, eu vi um canhão meio escondido numa rua. Vi que o

clima tava esquisito. Fomos para o hotel, eu e Káritas, que era minha mulher

naquela época. Aí teve entrevista para todos os jornais e eu falei tudo o que eu

pensava. Como sempre acontece, um pessoal mais novo me procurou. Então

apareceram uns estudantes no hotel.11

O convívio com a juventude venezuelana foi intenso. Na sequência do relato,

Milton menciona que frequentou a casa de estudantes que moravam em favela. Da

convivência com eles, acionou a memória de mais uma canção que comporia o álbum

Clube da Esquina, Dos Cruces: “Foi nessa casa que eu ouvi a mãe deles cantando Dos

Cruces, de um jeito muito bonito. Eu conheci a música ainda em Três Pontas, eu e

Wagner.”12

A canção que foi apresentada no festival venezuelano, Os Povos, parceria

de Milton com Márcio Borges, também integraria o disco Clube da Esquina. Seu

ambiente sonoro, eivado de lamentação e angústia, abriga metáforas que expressam os

sentimentos produzidos num cenário político adverso: “Ah, um dia, qualquer dia de

calor/ É sempre mais um dia de lembrar/A cordilheira de sonhos que a noite apagou”.

Desde a dedicatória da canção: “dedicado à juventude consciente da Venezuela”,

percebe-se a sintonia entre as sensações que mobilizavam a dupla de compositores em

relação ao cenário brasileiro e a atmosfera que Milton captou do clima venezuelano a

partir do encontro com a juventude daquele país. O clima político daqui se assemelhava

ao de lá, então os reconhecimentos entre os dois lugares se davam pela via do

descontentamento e do questionamento da ordem estabelecida. Mas não era apenas isso,

pois também as formas de sentir se engendravam de maneira semelhante. Em entrevista

11

Milton em entrevista a Chico Amaral In: Chico Amaral. A música de Milton Nascimento. Belo

Horizonte: Editora e consultoria Gomes, 2013, p. 121. 12

Idem, ibidem, p. 122.

136

a Eric Nepomuceno, no mesmo ano em que foi lançado o disco Clube da Esquina,

Milton é indagado sobre “a Espanha das Gerais”.

Essa coisa espanhola de que tanto falo? Isso vem de Três Pontas, Minas Gerais.

Lá, paira sempre um som de Espanha sobre as casas, sobre as pessoas. Um som

espanhol em cada lugar. De lá vem a vontade de gravar “Dos Cruces”. Como o

som espanhol de Miles Davis e Gil Evans em Sketches of Spain – isso também

tem muito a ver com Minas Gerais.13

Na fala de Milton, a percepção de uma circulação cultural que permite trocas e

identificações. Três Pontas, sua cidade, foi o lugar onde teve contato com informações

de outras paragens. Aquele canto de Minas Gerais estava em sintonia com outros cantos

do mundo através da cultura que consumia. E algumas dessas ‘mercadorias culturais’

reativavam identificações entre povos distantes que, não obstante, guardavam alguns

índices de formação cultural próximos. Ecos da Espanha vinham de tempos imemoriais,

por meio de festividades religiosas tão presentes na cultura mineira e brasileira. Na

mesma entrevista, o artista é incentivado a explanar sobre a tristeza espanhola e

reconhece aí uma possibilidade de se criar uma ponte com toda a América Latina:

A tristeza espanhola? É como a tristeza das Gerais. Ela existe do jeito dela. Um

jeito diferente das outras tristezas, que são talvez mais novas, e além disso a

gente sabe tão pouco dessas coisas... não sei se a sede de Espanha acaba

levando para um som hispano-americano. Mas deve ter algo em comum.14

No álbum Clube da Esquina, Milton Nascimento envereda rumo ao que a “gente

sabe tão pouco”, mas pressente. Nesse disco aparecem seus laços com o restante do

continente latino-americano em exemplos como o da canção San Vicente, parceria com

Fernando Brant. Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, o próprio Brant comenta

sobre San Vicente:

Essa canção expressa o que estava vivendo e o que estava acontecendo na

década de 1970 em toda a América Latina. O Bituca tinha feito a música para a

peça Os cavaleiros, de José Vicente, interpretada por Norma Bengell. A cidade

da peça era San Vicente. Mas acabou que não teve letra e resolvi usar o nome.

San Vicente serve para todos os países da América Latina que viviam em

situação de sufoco político provocado pelas ditaduras militares bravas. Por isso,

falo no sabor de vidro e corte. 15

13

Milton Nascimento em entrevista a Eric Nepomuceno. “Solitário, inquieto, angustiado. Milton

Nascimento.” Jornal da Tarde (17/11/1972) 14

Idem, ibidem. 15

Fernando Brant à seção “O que eles pensam”. In: Correio Braziliense. Caderno Diversão & Arte, p.3.

(20/05/2012) Entrevista realizada por Irlam da Rocha Lima, José Carlos Vieira e Severino Francisco.

137

Ao ouvirmos a canção, constatamos que a ponte com a América Latina se

estabelece também por uma sonoridade familiar entre os países. A viagem a San

Vicente, um lugar imaginado, é guiada por violão numa levada que carrega em seu

acento um quê hispânico, sublinhado pela percussão, que, pelas mãos de Robertinho

Silva, Luiz Alves, Nelson Ângelo e Paulinho Braga, lembram palmas e castanholas. A

voz de Milton passeia entre tons agudos, visita falsetes, aplicando comoção e

dramaticidade à peça. Por vezes, traz na emissão curvas onde se insinua a sombra do

idioma espanhol, num canto latino. Ao fundo, um sino badala insistentemente, trazendo

memórias de paisagens interioranas, onde, do alto de torres de igreja, os sinos

convocam à oração, informam horas e eventos, derramam alegria e tristeza, apreensão e

saudosismo, compondo a atmosfera lúgubre que sombreia as tardes. Sinos que despejam

melodias pela América Latina afora, por onde o catolicismo se alastrou.

A aproximação com a música latino-americana se realizaria e se aprofundaria

em outros discos de Milton Nascimento. Milagre dos Peixes é um exemplo já lembrado

no primeiro capítulo. Num disco posterior, Geraes, essa relação ficaria ainda mais

evidente, tanto pela presença de canções com sonoridades próximas à de países latino-

americanos, quanto pela atuação de novos amigos de países vizinhos, como a cantora

argentina Mercedes Sosa e o Grupo Água, do Chile.

Se, já no título, o disco referencia Minas Gerais, ao mesmo tempo faz lembrar

que aquele estado não era um torrão desmembrado de um país uno chamado Brasil.

Pode-se ler, tanto em letras quanto em melodias das canções que compõem o repertório

do disco, imagens atribuídas a Minas, mas que bem caberiam a outras paisagens

nacionais ou mesmo internacionais. Algumas estariam vinculadas a vários países latino-

americanos, o que se percebe através da presença do Grupo Água na constituição da

ambiência sonora, e da voz de Mercedes Sosa, a imprimir o sotaque latino às letras. Ao

longo da carreira, Milton recolheu várias canções da América Latina para seus discos,

chegando a gravar juntamente com Mercedes Sosa e Léon Giecco o álbum ao vivo

Corazón Americano em 1986. Na época em que gravou o Clube da Esquina nº 2, onde

há canções como Canción por la unidad latino-americana (Pablo Milanés e Chico

Buarque) e Casamiento de Negros, recolhida do folclore chileno por Violeta Parra,

Milton falou sobre sua identificação com o restante da América Latina:

Minas Gerais tem muita coisa a ver com a América Latina. Você vai a

Diamantina, Ouro Preto e mesmo Três Pontas e percebe. Nos primeiros discos

138

eu cantava muito por intuição. Mas, quando fui ao México e andei de ônibus

pela Venezuela, senti que Minas tem mesmo a ver com latinidade, nas

paisagens, tipos humanos e tudo. Para você ter uma idéia, eu conhecia desde

criancinha a música “Casamiento de Negros” que eu gravei agora. Eu ouvi essa

música na Rádio Clube Três Pontas quando eu tinha um programa e resolvi

tocar ritmos latinos. Na gravação do “Geraes” toquei o “Casamiento” e o

pessoal do Grupo Água, que é chileno, perguntou como é que eu conhecia

aquela canção do folclore deles. Eu só sabia a música e eles me mostraram a

letra.16

A questão é complexa, mas bem clara: sob uma representação individualizada,

resultante de naturalizações elaboradas historicamente, o estado de Minas Gerais

personificava-se, apoiado em distinções que o faziam diferente de todos os outros.

Alinhada com os demais estados naquilo que com eles partilhava em termos culturais,

por exemplo, Minas era um pouco Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo... Quando o

leque se abria para outras paragens fora das fronteiras nacionais, outros pontos em

comum se faziam sentir, por vezes até mais contundentes. Agora, Minas já não seria um

estado, mas um lugar do mundo. Na capa de Geraes, uma imagem já metaforizava o que

se perceberia no repertório. Nela, reproduz-se um desenho de autoria do próprio Milton,

onde um trem de ferro atravessa a paisagem montanhosa.

Fig. 2 – O trem de Milton

16

Milton Nascimento em entrevista a Regina Echeverria e Tárik de Souza. “É preciso gritar”. Revista

Veja (01/11/1978)

139

Uma imagem que faz lembrar encontros e despedidas, contatos, viagens: estado

de alargamento de fronteiras, de descoberta de proximidades encobertas por discursos

de distanciamentos. A locomotiva miltoniana guarda proximidade com outro meio de

transporte, aquele que inspira o pensamento de Michel de Certeau:

Na Atenas contemporânea, os transportes coletivos se chamam metaphorai.

Para ir para o trabalho ou voltar para casa, toma-se uma “metáfora” – um ônibus

ou um trem. Os relatos poderiam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles

atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só

conjunto; deles fazem frases e itinerários.17

Se as distâncias entre os países latino-americanos se erguiam física e

simbolicamente, já que por aqui pouco se sabia do que se passava do lado de lá, a

música, espécie de relato, tratava de minar a fronteira, como nos versos de Violeta

Parra, entoados em dueto de Milton e Mercedes Sosa:

Se va enredando, enredando

Como en el muro la hiedra.

Y va brotando, brotando

Como el musguito en la piedra18

Os relatos musicais brotavam como “el musguito”, se alastrando e varando

divisas, num convite à comunhão de bens culturais ou de sentimentos de sufoco com a

situação política que motivariam artistas de todo o continente a produzir discursos de

contestação. Elaborava-se, desta forma, por meio musical, uma grande América Latina.

Milton, um dos primeiros artistas brasileiros a atentar para essa proximidade com os

hermanos no cenário dos 70, virou uma espécie de símbolo de latinidade, procurado e

gravado por artistas de todo o continente. Num especial para a Rede Globo, apresentado

na década de 80, Milton voltaria a falar de sua relação com a América Latina:

Um negócio, assim, interessante, a respeito de Minas, a respeito de mim, a

respeito da gente assim, é que o pessoal pergunta muito a respeito desse

envolvimento com o restante da América Latina... se você pegar assim, desde as

montanhas, a maneira que o pessoal vive, como se transa as coisas, cada

região do Brasil tem uma coisa, um jeito diferente de ser, mesmo a comida,

tudo, e assim como Minas. Minas eu acho que é o negócio mais latino-

americano que tem dentro do Brasil. Por exemplo, a maioria das coisas feitas

em Minas, em termos de música, assim, de teoria musical mesmo, são feitas no

compasso que é usado em toda a América Latina, todos os países da América

Latina, que é o 3 por 4 ou 6 por 8. Então a gente sente uma coisa que vem lá

17

Michel de Certeau. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 182. 18

Volver a los 17 (Violeta Parra)

140

dos Andes ou sei lá de onde, desde a harmonia, do compasso, de tudo ...a coisa

cai aqui dentro [aponta para o peito], então chega, bate, fica, filtra e sai.19

Neste argumento, suas Minas são parte integrante da América Latina, pelas

maneiras de sentir, elaborar e transmitir música. O reconhecimento inicial convida à

aventura de seguir em frente e traduzir sons e informações à luz do que se produz

localmente; mas, tão logo as culturas se mesclam, o que se vê é uma profusão de leituras

emergirem e nesse nível se dá o enlace cultural. Vem daí o surpreendente resultado de

nos sentirmos em casa e nos transportarmos para outro canto ao mesmo tempo. Diálogo,

linguagem em via dupla que permite ladear as referências musicais em lugar de fazer

caricaturas dos solos que nutriram novas canções.

Esses breves passeios permitem interpretar a “viagem” no disco Clube da

Esquina, e na obra de Milton, como uma caminhada por fronteiras espaciais onde se

partilham experiências sensoriais e temporais. Os exemplos das canções anteriormente

citadas nesta pesquisa trazem imagens em movimento, coreografias de nuvens que

inspirariam metáforas para as sensibilidades humanas. Viajar para dentro de si,

descobrir caminhos para se (re)constituir como ser livre, eis uma mensagem figurada e

representada através daquele ambiente sonoro, construído na liberdade e improvisação.

No caso desse disco em especial, a liberdade se daria também na aventura dos músicos

de experimentar instrumentos que não fossem os de sua maior habilidade. Assim, o

mesmo Toninho Horta que faz o belo solo de guitarra em Trem azul também se arrisca

no baixo em Nuvem Cigana, assim como toca percussão em outras faixas. Beto Guedes

também assume variados instrumentos nesse disco. Tal experiência se repetiria em

outros álbuns de Milton Nascimento e produziria um som singular, como na canção

Leila (Venha ser feliz), homenagem de Milton à amiga Leila Diniz, no disco Minas, de

1975. Construída a partir de variações da melodia que aparece incidentalmente em

Sinherê, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, Leila tem sua ambiência constituída

por belos vocalises de Milton, combinados ao coro e harmonizados com o piano de

Novelli e o baixo acústico de Toninho Horta – Novelli e Toninho Horta, portanto, em

lugares diferentes dos habituais. A canção ainda contaria com Wagner Tiso no piano

elétrico e na orquestração e regência; e com a participação especial de Edilson Machado

na bateria. O pesquisador Ivan Vilela, criativamente, nomeia essa prática como uma

19

“Milton Nascimento Especial”. Rede Globo, apresentado em 1981. (Programa de Augusto Cesar

Vannucci.)

141

“promiscuidade musical” e reflete: “O que antes era tratado como um som ríspido,

tosco, sujo, hoje é privilegiado pela originalidade de ser um som diverso, de difícil

reprodução.”20

Mais do que na técnica, focava-se na sensibilidade arrancada por mãos

destras em experimentos.

Exercícios como esses, tanto quanto as peculiaridades das condições de gravação

daquela época, são hoje saboreados como índices da inventividade artística em discos

como Clube da Esquina. Significa que as limitações técnicas das gravações foram

apropriadas pelos músicos e traduzidas numa linguagem própria e criativa. Clube da

Esquina foi gravado em apenas dois canais, sem muitos dos recursos de mixagem ou

masterização. Felizmente, junto a essas “limitações”, vinham compensações, como o

tempo cedido para permanecer em estúdio naquele momento, segundo explica Wagner

Tiso:

Dava um tempo enorme para se fazer um disco, não tinha esse problema que

existe hoje, de hora de estúdio (...) Eu lembro que ficávamos ali, o Bituca já

trazia as coisas dele praticamente prontas, aquelas coisas que o Bituca tinha nas

vozes e no violão. Eu distribuía para o pessoal do grupo: “O baixo vai fazer

isso”. A mesma coisa com o “Trem Azul”: “Quem vai solar? O Toninho sola

aqui, o órgão entra aqui”. A gente distribuía aquilo lá dentro do estúdio, porque

não tinha orquestra. Os arranjos de base eram feitos em conjunto, isso que era

uma maravilha! Você via que aqueles discos tinham um calor. Além do som ser

analógico, um som gostoso de ouvir, não tem aquela mixagem perfeita e

agudinha de hoje, tem aquele calor humano de todo mundo estar junto fazendo

música, porque estão fazendo dentro do estúdio.21

A fala de Wagner Tiso nos coloca diante de padrões de escuta de uma época e da

importância da interação dos músicos para a concepção do som de Clube da Esquina.

Como se percebe nos nomes já citados, boa parte dos integrantes do Som Imaginário

participou da gravação desse disco. O grupo instrumental já havia participado do LP

anterior de Milton, gravado em 1970 e com sucessos como Para Lennon e McCartney

(Lô Borges/Márcio Borges/Fernando Brant), além de ter atuado no show Milton

Nascimento e Ah! O som imaginário. Na experiência do Clube da Esquina somavam-se

outros nomes que adensariam o diálogo do disco com uma sonoridade rock, o que se

percebe em canções como Trem de Doido (Lô Borges/Márcio Borges), cantada por Lô

Borges. A ambiência sonora é temperada pelo som rasgado da guitarra de Beto Guedes.

Lô Borges e Beto Guedes também levariam suas informações sonoras para aquele disco. 20

Ivan Vilela. “Nada ficou como antes” In Revista USP. São Paulo, n.87, p. 14-27, setembro/novembro

2010, p. 23. 21

Wagner Tiso (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit., 2012, p. 146 e 147.

142

Em depoimento, Lô Borges recorda uma de suas reivindicações ao topar gravar o Clube

da Esquina:

“Bituca, acontece o seguinte, se eu for para o Rio de Janeiro com você, esse

disco vai ser o maior prazer da minha vida, vai ser a coisa mais importante, mas

é o seguinte, tenho que levar o Beto Guedes comigo, porque, cara, eu vou

chegar lá no Rio, seus amigos todos vão estar tocando jazz, bossa nova, essas

coisas, e eu vou ficar sem um interlocutor das músicas dos Beatles, o cara que

eu toco violão quase todo dia com ele. Essas pessoas, esse universo que te

acompanha são pessoas talentosas, muito legais, mas são pessoas que não são

ligadas às músicas dos Beatles, não são.”22

Lô precisava de um beatlemaníaco com quem dialogar naquela aventura. Beto

Guedes ainda não compunha, mas, como já mencionado, tocou vários instrumentos e

ainda cantou em faixas como Nada será como antes.

A importância da sonoridade desse disco, com uma refinada base instrumental,

se faz sentir em todo o percurso das canções, especialmente em faixas instrumentais,

como Lília e Clube da Esquina nº 2. E não foi apenas nos estúdios e na casa de Mar

Azul que as interações entre os nomes que figuram no disco Clube da Esquina se

realizaram. Ela foi se constituindo também em vivências paralelas, no cotidiano dos

músicos, nos bailes e festivais da vida, quando alguns daqueles nomes ainda eram

operários da canção, caso de Wagner Tiso, que conheceu e aprofundou a amizade com

nomes como Luiz Alves e Paulo Moura no período em que tocava em casas noturnas no

Rio de Janeiro. Nessa época, meados dos anos 60, chegou a atuar no Quarteto Paulo

Moura, músico a quem atribui a descoberta de seu talento como orquestrador.23

Ao verificarmos nomes que atuaram em discos de Milton Nascimento nos anos

70, percebemos a presença de músicos com quem o artista teve convívio em épocas

anteriores, como a do Berimbau Club. Nivaldo Ornelas e Paulo Braga são alguns

exemplos. Mais que mera curiosidade, a presença deles demonstra maturação de

diálogos sonoros, plenitude de ideias que permitiriam aquele som diferente, como ficou

conhecida a linguagem miltoniana e, por consequência, a dicção clube-esquinista.

Juntam-se às experiências dos tempos do Berimbau Club outras, posteriores, como as da

esquina que deu nome ao disco. Naquele lugar, Lô Borges brincava e tocava violão com

os amigos, e ainda recebia, juntamente com Beto Guedes, aulas de harmonia de Toninho

22

Lô Borges (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit., 2012, p. 75. 23

Cf. Beatriz Coelho da Silva. Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação. São Paulo: Imprensaoficial, 2009.

143

Horta.24

Em entrevista da época de lançamento do Clube da Esquina, Milton

Nascimento refletiu sobre a sintonia com os músicos para realizar uma obra espontânea

e densa, características que poderiam ser transmitidas também no palco caso houvesse

intimidade entre os músicos reunidos.

Eu não quero grandes músicos, eu não quero os melhores músicos do mundo.

Eu quero gente que sinta o mesmo que eu, ou o mais próximo possível do que

eu sinto, entende? Eu não posso escrever minhas músicas e entregar uma

partitura com o que cada músico deve fazer. Por que isso varia de dia para dia, é

preciso gente que toque sentindo as coisas comigo.25

Alguns experimentos sonoros vivenciados por nomes do agrupamento de artistas

que ficou associado à expressão Clube da Esquina, são menos conhecidos, mas nos

ajudam a pensar sobre o entrosamento desses artistas. Um deles é o grupo instrumental

Tribo, composto por alguns músicos que migraram para o Rio de Janeiro na virada dos

anos 60 para os 70. Em texto sobre Toninho Horta, produzido ainda nos anos 70, Tárik

de Souza narra os percursos do artista e destaca a potencialidade do grupo:

Em 1971, definitivamente estabelecido no Rio e na música, morando na casa de

Ronaldo Bastos, depois de um período de viver de bailes em Belo Horizonte,

ele ingressaria num conjunto de curta, mas marcante atuação, a Tribo. Com ele,

Nélson Ângelo, Joyce, Novelli e Naná, um elepê gravado e a admiração

imediata do flautista americano Paul Horn, em rápida visita pelo Brasil na

época. “Ele convidou a gente logo para gravar, mas sabe como é esse meio.

Havia outros conjuntos mais famosos e antigos, todo mundo ficou falando no

ouvido do cara, aquele boicote mesmo; ele se espantou e foi embora sem gravar

com ninguém. Há alguns meses ele gravou com Egberto Gismonti nos EUA,

mas não se esqueceu: e a Tribo, como vai? – perguntou, Mr. Horn. Por certo

desconhece a selva inglória da música instrumental no Brasil. A tribo, em pouco

mais de seis meses, foi tragada por ela como tantos conjuntos de esplêndido

nível.26

As informações sobre a Tribo nos colocam diante de nomes que dialogaram com

Milton Nascimento no período. A interação e entrosamento entre os músicos fizeram

com que aquele grupo se esmerasse em obras como o disco Clube da Esquina. E isso se

presencia também na elaboração das letras, no contato entre letristas, músicos,

compositores, etc. Um disco-obra-de-arte convidava a uma escuta contemplativa, a ser

colocado na vitrola várias vezes, conforme a motivação e sensibilidade do momento.

Sensibilidade capaz de captar mais um detalhe, uma nota inquietante que tivesse

24

Cf. Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit. 25

Milton Nascimento em entrevista a Eric Nepomuceno. “Solitário, inquieto, angustiado. Milton

Nascimento.” Op. cit. 26

Tárik de Souza. “Toninho Horta” In: Tárik de Souza e Elifas Andreato. Rostos e Gostos da Música

Popular Brasileira. Porto Alegre: L& PM Editores, 1979, p.203 [artigo originalmente publicado no

Jornal do Brasil, 11/06/1976]

144

escapulido nas primeiras audições. Tratava-se de um disco sem data de validade, um

disco, portanto, com pretensão de longevidade.

Nesse álbum de 1972, Ronaldo Bastos assumiu pela primeira vez o lugar de

produtor, buscando uma concepção artística que permeasse o disco desde a ordem das

canções à elaboração da capa. Ou seja, um álbum conceitual e com unidade. “Ali eu me

coloquei nesse papel de organizar, na medida do possível, a bagunça – fazendo bagunça

também.”27

Márcio Borges menciona que Ronaldo organizava, inclusive, os temas das

canções. “... foi ajeitando de modo que as letras nunca se superpusessem, mas que

fossem se somando uma à outra.”28

Como as letras das canções de Clube da Esquina,

construídas a partir de imagens metafóricas, a narrativa do disco não seguia os

parâmetros de “princípio, meio e fim”. Na verdade, realizava-se numa combinação entre

o aleatório e a unidade. É como um quadro abstrato, que nos convida à interação, ao

apuro da percepção, e estabelece a liberdade, inclusive nas maneiras de interpretar. Uma

“organização bagunçada”, imagem em palimpsesto, de cuja superfície aparentemente

uniforme escapam informações – sons, se preferirmos – em camadas sobrepostas. Sinais

que revelam que, para além da superfície –, e não são poucas as canções, pois o disco

tem um repertório de 21 no total29

– há todo um manancial de produções artísticas,

outros nomes de artistas envolvidos e muitas histórias. Um recurso que nos chama a

atenção para esses sinais é o do uso de algumas canções no formato de vinheta, tanto

nesse disco quanto em outros de Milton Nascimento. Assim, o bloco sonoro de Clube

da Esquina é cortado por canções curtas, breves sinais, como Saídas e Bandeiras Nº1 e

Saídas e Bandeiras Nº 2, ambas de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant.

Sobre a mesma melodia, os versos das duas surgem como um suspiro entre as canções

de duração mais longa do repertório do disco. Eis Saídas e Bandeiras nº1:

27

Ronaldo Bastos (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit., p. 125. 28

Márcio Borges (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit., p. 108. 29

Repertório do álbum Clube da Esquina. Disco 1. Lado A: Tudo que você podia ser (Lô Borges/Márcio

Borges), Cais (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), O trem azul (Lô Borges/Ronaldo Bastos), Saídas e

Bandeiras nº1 (Milton Nascimento/Fernando Brant), Nuvem cigana (Lô Borges/Ronaldo Bastos), Cravo e

canela (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos). Lado B: Dos cruces (Carmelo Larrea), Um girassol da cor

de seus cabelos (Lô Borges/Márcio Borges), San Vicente (Milton Nascimento/Fernando Brant), Estrelas

(Lô Borges/Márcio Borges). Clube da Esquina nº2 (Milton Nascimento/Lô Borges). Disco 2. Lado A:

Paisagem na janela (Lô Borges/Fernando Brant), Me deixa em paz (Monsueto/Ayrton Amorim), Os

povos (Milton Nascimento/ Márcio Borges), Saídas e bandeiras nº2 (Milton Nascimento/Fernando

Brant), Um gosto de sol (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos). Lado B: Pelo amor de Deus (Milton

Nascimento/Fernando Brant). Lilia (Milton Nascimento), Trem de doido (Lô Borges/Márcio Borges),

Nada será como antes (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), Ao que vai nascer (Milton

Nascimento/Fernando Brant).

145

O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé?

O que vocês fariam pra sair dessa maré?

O que era sonho virou terra

Quem vai ser o primeiro a me responder?

Sair pela cidade, ter a vida onde ela é

Subir novas montanhas, diamantes procurar

No fim da estrada e da poeira

Um rio com seus frutos me alimentar

Separando um bloco de 11 canções, surge Saídas e Bandeiras nº 2:

O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé?

O que vocês fariam pra sair dessa maré?

O que era pedra virou corpo

Quem vai ser o segundo a me responder?

Andar por avenidas enfrentando o que não dá mais pé

Juntar todas as forças pra vencer essa maré

O que era pedra vira homem

E o homem é mais sólido que a maré

O olhar retrospectivo nos permite contemplar toda a obra produzida por esses

artistas até agora e nos depararmos com informações que nos possibilitam novo

enquadramento para discos de tempos atrás. Ao ouvirmos o álbum Milton, de 1976,

gravado para atender ao mercado norte-americano, nos deparamos novamente com a

canção Saídas e Bandeiras. Aqui, diferentemente do disco Clube da Esquina, a Nº1 e

Nº2 integram a mesma canção, onde ainda temos uma terceira parte adicionada. Na

verdade, o trecho que aparece como segunda parte em Clube da Esquina vem como

terceira parte nessa outra versão. A parte que não aparece no Clube da Esquina é:

O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé?

O que vocês fariam pra sair dessa maré?

O que era terra vira pedra

Quem vai ser o segundo a me responder

Beber minha cerveja numa ilha com minha mulher

Tirar todas as roupas e esperar o sol nascer

Respirar as formas da pureza

Aos ventos e às águas quero me entregar

As três partes reunidas numa mesma canção evidenciam que se trata de

diferentes vias em relação a um cenário. Num dos livros que traz memórias e

informações sobre o Clube da Esquina, destaca-se a fala de Fernando Brant sobre

Saídas e Bandeiras. Nessa passagem, o próprio autor nos ajuda na leitura de sua canção.

Fernando associa a canção a respostas ao cenário ditatorial:

146

(...) Saídas e Bandeiras – eram três as hipóteses para sairmos da barra pesada

em que vivíamos. (...) A primeira hipótese seria largar tudo e fugir para o mato,

a segunda seria fugir para uma ilha com uma mulher e a terceira seria ficar aqui

e assumir as dificuldades de ser homem urbano.30

A opção do grupo, ou pelo menos da dupla de compositores, foi justamente a

terceira. A primeira traz um eco da ideologia hippie. A segunda, que num primeiro

momento se assemelha à primeira, se pensarmos no sonho de ilha deserta que povoa

nosso imaginário, seria uma via um tanto perigosa, pelo menos quando apresentada à

censura. Qualquer espécie de ilha citada em canções brasileiras daquele momento já

detonava o botão de alerta dos censores. Ilha, para eles, rimava com Cuba. Em 1971,

por exemplo, a canção A Ilha, de autoria do cantor-compositor Taiguara, teve sua

execução proibida por ser considerada uma alusão a Cuba, embora o processo de

construção poética fosse muito mais complexo e a conotação imediata com a realidade

do país fosse apenas uma possibilidade, não a única.31

As três saídas apresentadas na canção negam a ordem estabelecida, numa

resposta ao regime autoritário, tanto no que se refere à questão política quanto a hábitos

e costumes. A música, nesse e noutros discos da carreira de Milton Nascimento, se

coloca, então, como lugar propício a visões alternativas sobre aquele cenário, sobre o

país, sua cultura e sua gente. Uma canção em especial nos chama atenção para esse

papel do disco, espécie de relato capaz de arar as notícias e juízos oficiais e fazer

florescer novas esperanças: Ao que vai nascer, inspirada na ideia de relatar aos futuros

filhos as memórias sobre aquele cotidiano dessa “terra com praias no norte e vinhos no

sul”. Ambientada pelo som denso do órgão, talhado pelo violão de Milton Nascimento,

a canção apresenta o caráter de relato, demarcado pela melodia e pelos caminhos da

interpretação que o artista assume na voz. Por meio do canto, as palavras ganham

ênfase. Há passagens em que a voz se solta em tom de lamento. Noutras, se assevera,

tomando feição de denúncia, ou abaixa-se, em tonalidade de conversa grave, que tem

que ser dita ao pé do ouvido. A melodia envereda, pois, num percurso próximo ao da

fala. Essa dinâmica recupera a presença do narrador naquela voz, do contador de

histórias que nos surpreende para a sua fala cantada. Na terceira estrofe, por trás dessa

fala cantada, surge a voz instrumento. Milton, em improviso, emite vocalises, enquanto

30

Fernando Brant In: Andréa dos Reis Estanislau. Coração americano: 35 anos do Clube da Esquina.

Belo Horizonte: Prax, 2008, p. 64. 31

Cf. Maria Abília de Andrade Pacheco. Taiguara: a volta do pássaro ameríndio (1980-1996).

Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em História da

Universidade de Brasília, 2012.

147

se acompanha ao violão. Em dados momentos, voz e violão buscam os mesmos

percursos, casando-se de tal maneira, que já não se sabe qual é um e qual é outro.

Compõem um terceiro ser que ronda a fala cantada, dando maior densidade à mensagem

que ali se anuncia:

Memória de tanta espera

Teu corpo crescendo salta do chão

E eu já vejo meu corpo descer

Um dia te encontro no meio

Da sala ou da rua

Não sei o que vou contar

Respostas virão do tempo

Um rosto claro e sereno me diz

E eu caminho com pedras na mão

Na franja dos dias esqueço o que é velho,

O que é manco

E é como te encontrar

Corro a te encontrar

Um espelho feria meu olho e na beira da tarde

Uma moça me vê

Queria falar de uma terra com praias no norte

E vinhos no sul

A praia era suja e o vinho vermelho

Vermelho, secou

Acabo a festa, guarda voz e o violão

Ou saio por aí

Raspando as cores para o mofo aparecer

Responde por mim o corpo

De rugas que um dia a dor indicou

E eu caminho com pedras na mão

Na franja dos dias esqueço o que é velho,

O que é manco

E é como te encontrar

Corro a te encontrar

“Raspando as cores para o mofo aparecer”. Na imagem captada pelo verso da

canção, recuperamos a ideia de palimpsesto, quando buscamos, entre as camadas

sobrepostas, as memórias escondidas, as tristezas engolidas ou até mesmo os soluços de

uma liberdade sempre aguardada e adiada. A canção que fecha o álbum alerta para uma

escuta atenta. Era preciso apreciar a obra não somente nas mensagens que nos espreitam

nas dobras de cada verso, mas nos sons que nos conduzem nessa viagem e revelam

laços inopinados entre o Brasil e a tão perto, tão distante, América Latina.

Outra canção sintonizada com o discurso de memória nesse mesmo álbum é

Pelo amor de Deus, também assinada por Milton Nascimento e Fernando Brant. Diante

148

de indignações, constatações e contemplações, a voz de Milton sobe numa súplica

colhida no cotidiano: “Pelo amor de Deus!” No arranjo, a marcação percussiva indica

tratar-se de uma marcha-rancho. Num ambiente sonoro denso, instrumentos como

piano, órgão, guitarra, atiram frases em direções diversas. Sons distorcidos avolumam-

se e recolhem-se, formando nuvens pesadas que de repente se desfazem numa

movimentação que insinua imagens/mensagens: aquelas que a letra da canção guarda

como notícias subterrâneas, prontas a desafiar uma oficialidade. Há momentos, como o

que coincide com os versos “No meio das fotos vai roendo o rato/Corre um rato, pega,

pelo amor de Deus”, que a percussão aciona a memória de uma marcha militar.

Combinada com a voz de Milton, que sobe e alonga as frases enfatizando a urgência que

engendra os versos, temos um aprofundamento das sensações desse ambiente já pesado.

Fotos de uma velha festa

Ossos tão antigos, fatos tão passados

No meio das fotos vai roendo um rato

Corre um rato, pega, pelo amor de Deus

Ontem li num almanaque

Aventuras de pastores e cordeiros

Quando eu terminava, uma voz de rua

Disse coisas certas, pelo amor de Deus.

Recusando a sobremesa

Um prato de ouro e um copo de vinho

Como o velho Chaplin eu jogo na cara

Tanta coisa pobre, pelo amor de Deus

Beira-mar de uma janela

Panoramizando nua companheira

Corpo contra corpo, pele contra pele

E seu corpo é belo, pelo amor de Deus.

A canção, assim, constrói um discurso alternativo, aquele que se manifesta por

frestas, contracorrente de silêncios, cerceamentos e apagamentos promovidos por

roedores de memórias. Seriam os ratos alusão ao regime autoritário? Possivelmente,

mas não só. O discurso da canção traz à tona tudo o que se quer apagar, como notícias

sobre as desigualdades sociais, encarnadas em versos que contrapõem ouro e prata à

pobreza escancarada por Chaplin, figura a evocar o poema de Drummond feito em sua

homenagem: “Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome/ dos que não foram

chamados à ceia celeste/ ou industrial/ Há ossos, há pudins/ de gelatina e cereja e

chocolate e nuvens nas dobras de teu casaco/ Estão guardadas para uma criança ou

149

cão.”32

Já havíamos nos deparado com esse poema no capítulo anterior, quando

tratávamos do espetáculo Ser Minas tão Gerais. O trecho aqui destacado escancara em

poesia os abismos sociais que perduram no tempo do compositor.

O disco Clube da Esquina pretendia ser mais que um mero produto fonográfico;

espécie de arca de tesouros, compõe-se de canções que falam de sentimentos inscritos

numa temporalidade, notícias de lá, de cá, num jogo dialógico entre passado e futuro.

Num relato atual, Márcio Borges revela que Clube da Esquina teria um subtítulo:

Documento secreto nº 533

. Parecia, assim, assumir a função de arar os terrenos da

memória por meio de músicas e palavras, sombreadas por nuvens de sons que,

sobrepostas por um instante fugaz, povoavam-se de sentidos. Enigma e

questionamentos davam a liga daquele álbum e não se dirigiam apenas ao plano

político, mas também em relação aos padrões de escuta musical da época, às

experimentações sonoras, poéticas, como já pudemos vislumbrar no decorrer de nossas

apreciações.

Relato de Simone Guimarães: uma experiência musical com a matriz miltoniana

Referindo-se ao Clube da Esquina como movimento, Simone Guimarães, uma

das artistas atuais que dialoga com a concepção clube-esquinista, chama a atenção para

a importância de Milton Nascimento em sua carreira. Relata que o seu despertar para a

música popular ocorreu pelas mãos do cantor-compositor, quando ela tinha ainda 15

anos:

Foi quando eu abri a cabeça para a história do Bituca, porque eu conheci o

Bituca mais cedo, mas quando eu comecei a conversar mesmo com ele, fui

estudar aquela coisa, eu falei: “isso aí é que é o impressionismo que eu gosto.”

O Bituca, eu chamo ele de pai, ele me chama de trem, “esse trem aí, eu conheci

esse trem aí...”, mas é o seguinte, ele apontou o meu caminho. Porque ele é o

cara que foi o aglutinador de toda essa gente do Clube da Esquina. Foi ele que

juntou todo mundo, Beto Guedes, juntou a ponta impressionista da Bahia,

Danilo Caymmi, Dori Caymmi, juntou o Paulinho Jobim, o Boca Livre da vida,

32

Trecho do poema “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”. In: Carlos Drummond de Andrade. A

rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 160. 33

Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit.

150

Novelli... foi pegando. O Novelli é de Garanhuns... Mas ele aglutinou uma

turma que tava interessada naquele negócio dele. E ele era o porta-voz, né?34

A identificação da sonoridade de Milton Nascimento e outros membros do Clube

da Esquina com o impressionismo, cujas matrizes musicais podemos localizar na obra

de Claude Debussy e Maurice Ravel, tantas vezes revisitada por músicos de várias

procedências ao longo dos anos, se tornaria um sinal que atiçaria a curiosidade e

provocaria a identificação do público e de artistas que bebessem da mesma fonte, caso

da própria Simone. Novelli faz menção à importância da estética musical impressionista

em sua formação. Conta de sua surpresa ao ouvir Taiguara tocar para ele uma canção de

Bill Evans, célebre pianista impressionista do jazz. Novelli já conhecia a sonoridade do

pianista norte-americano desde os tempos em que vivia em Pernambuco, mas ali,

naquele diálogo com Taiguara, seu interesse se aguçaria. “... eu quero saber o conteúdo

que está nesses acordes, nessa coisa diferente, impressionista, né? Eu já tinha ouvido

um pouco os impressionistas, né?”35

A fala de Novelli dialoga com a de Simone. No depoimento da artista, essa

ligação com o impressionismo é motivada pelo desejo de enveredar por novos caminhos

musicais. Prossegue Simone Guimarães:

O Debussy, ele é uma pessoa que mexe muito com a estrutura da música

clássica. Ele foge um pouco do óbvio, foge sempre do óbvio. E eu acho que o

Clube da Esquina é um movimento revolucionário nessa questão mesmo de

fugir do óbvio. (...) Esse pessoal tem necessidade de sair pela tangente, é uma

tangência.36

Fugir do óbvio, eis uma linha que percorre o álbum Clube da Esquina e a obra

de vários outros artistas membros do clube. Na época em que entrevistei Simone

Guimarães, ela preparava novo álbum, Clarice. Na gestação dessa obra, Simone

mergulhava em sua inquietude e na vontade de agitar a música contemporânea. Para

isso se embebia do espírito que captou na música de Milton Nascimento e no Clube da

Esquina. Aquela vontade de sair pela tangente movia Simone Guimarães em Clarice:

Eu não quero me enquadrar em nada, em ninguém. Podem falar o que

quiserem, mas sou eu. O negócio vem pra mexer. Ele não é caipira, não é nada,

é aquele Clube da Esquina lá, que o Jobim gostava, sabe? É aquele negócio

que o Jobim gostava. Eu não sei se tem alguém fazendo o que eu tô fazendo

não.

34

Simone Guimarães em entrevista a mim concedida em Brasília (15/02/ 2013). 35

Entrevista realizada com Novelli. Op. cit. 36

Idem, ibidem.

151

No desenrolar de sua fala demarca essa vontade de sair do óbvio através de uma

música que ecoa memórias clube-esquinistas:

Em se dizendo, pra que vai servir na história, que seja pra finalizar. Se o Brasil

continuar essa pobreza que tá, eu não sei o que vão fazer aqui. Mais colônia

musical impossível, né? Mas o meu disco vai ficar tocando, na ponta do

abismo, mas vai. Vou botar para tocar e o Brasil vai conhecer.

Seu argumento é pautado pela falta de espaço para artistas de seu porte no

mercado musical atual. Sua arte, que se pretende questionadora, é produzida em

trincheiras encobertas por sombras. Esse sentimento captado na entrevista de Simone

Guimarães vibra nos palcos onde artistas independentes se apresentam. Há sempre

histórias sobre um percurso espinhoso para se chegar até o público. Percurso aberto pela

criatividade e pela esperança, essas forças capazes de impulsionar enfrentamentos

diante das dificuldades. Assim, nas trincheiras da música, a trajetória de Simone se

encontra com a de tantos outros, como Renato Braz e Badi Assad, artistas que se

aventuram a experimentar em música na atualidade. O esforço por arar o território da

canção tece a linha entre temporalidades, faz atual o discurso pronunciado por Milton

quando se preparava para a estreia do show Clube da Esquina: “E, mais uma vez, eu

vou estar com uma grande preocupação quando subir no palco do teatro Fonte da

Saudade: mostrar meu trabalho sem mentir, sem conceder.”37

Evidentemente, as

circunstâncias eram outras. Através da fala de Milton Nascimento, vislumbramos

inspirações para se cavarem espaços na cena musical. Uma das possibilidades que

reverbera em seu discurso seria fazer a música que sabe fazer, aquela em que acredita e

provoca os ouvidos daqueles que também caçam inquietude, emoção que impregnou a

experiência de elaboração do Clube da Esquina e que agita as águas de Clarice.

“Mas o meu disco vai ficar tocando, na ponta do abismo, mas vai.” A frase de

Simone Guimarães se remete ao mercado da música, mas dribla as barreiras dos

sentidos, servindo a outras situações, como a da própria inspiração e criação artística.

Em Clarice, estamos à beira do abismo, de onde se aprecia a imensidão do mar que traz

em cada onda convite ao mergulho em profundas emoções. Mar de sensações que nos

rondam e sopram de leve no pé do ouvido. Mar, fronteira aberta entre realidade e sonho,

lugar onde moram sensibilidades e criaturas mitológicas, como as sereias, que saltam

das vozes encantadas de Simone, Miúcha e Paulo Jobim: “Minha sereia/ Estrela do mar

37

“Milton, o que nunca parou”. Jornal da Tarde. (04/04/1972)

152

de Yemanjá/ Eu mais te quero aqui por perto”38

. Nesse ambiente, o piano manejado por

Simone Guimarães emite frases que traz a lembrança de um barco a navegar.

Movimento, passagem, sensação que dá liga a esse disco, cuja faixa-título faz

homenagem àquela criatura que agitou os mares da sensibilidade de Simone Guimarães:

Clarice Lispector.

Fig. 3 – Capa do álbum Clarice

Na canção Clarice, de autoria da própria Simone, a paisagem é desenhada em

cores misteriosas, entre sombras projetadas por sons que dançam na atmosfera, como se

os instrumentos se arranjassem num movimento de sedução a produzir o leve balanço

da cortina que nos distancia e nos aproxima da personagem evocada. Pano espesso onde

se emite a profundidade dos traços riscados em sensibilidades que deslizam pelas

páginas dos livros da escritora. “Basta olhar nos seus olhos, Clarice/Olhar que ninguém

vê/ Como são claros, os seus olhos Clarice! Claros de convencer”. Letra e verso caçam

centelhas de Clarice, mas nunca ousam decifrá-la. Nessa aventura, Simone convoca as

38

Anseios de Sereia (Simone Guimarães/Carlos Di Jaguarão)

153

vozes de Miúcha e Paulo Jobim, que clareiam uma referência que ronda no ar, Tom

Jobim. A canção foi inspirada na bossa nova, mas, afilhada musical de Milton, Simone

não conteria o desejo de se atirar em fugas, aplicar ares épicos, ares que Jobim também

experimentou, num arranjo que soa impressionista. Enigma, leveza, densidade,

sensações que pairam em frases lançadas pelos instrumentos e constroem o entrelugar

onde Simone Guimarães encontra Clarice em sua subjetividade, na vontade e coragem

de ser coração. “Só pra encontrar o seu mundo, Clarice, procurei escrever”. No

mergulho por águas de tantas cores, as vozes de Simone, Miúcha e Paulo Jobim pintam

os olhos de Clarice, que nos fita e vai. Nesse oceano de subjetividades, o balanço, ora

intenso, ora calmo, nos conduz a outras paisagens em sensações riscadas pelo horizonte

clube-esquinista.

Há momentos em que certo sotaque miltoniano se insinua por entre as vozes

emitidas em variadas tonalidades por Simone Guimarães, como em Estrela do Mar

(Simone Guimarães/Carlos Di Jaguarão). Nessa canção, Simone saca da garganta suas

“primas”, que navegam na melodia balizada pela flauta segura de Danilo Caymmi.

Noutras passagens, a referência a Milton é mais direta, como na viagem a Vera Cruz,

canção desse território de dimensão indefinida.

De repente, o barulho de água correndo brota da percussão manipulada por

Cristiano de Barros Novelli. Em suas correntezas, o reflexo do raio de tristeza

transmitida pelos acordes do violão. Vem à superfície o enigmático vocalise feminino,

canto de uma sereia que habita a garganta de Simone Guimarães. Monta-se a paisagem

que introduz a canção, Janaina meu canto de guerra, levada numa melodia que fabrica

os braços que nos embalam no casamento das vozes de Novelli e Simone Guimarães.

Canto de despertar numa cantiga de ninar. Na segunda estrofe, a voz de Simone paira

em profundidade dramática:

Nana nina

Janaina nana quem te ninou

Recrutar os homens livres

Chumbo em que te mandou

Acordar o canto firme

Cria quem te inventou

Canta todo mundo canta

Ama quem te amou

Se o que me resta é esta canção

Luto por quem lutou

Se o que eu tenho eu tenho pra dar

154

Basta você querer também

O sol vai nascer além

E as estrofes vão se repetindo, e vozes vão se ajuntando, e instrumentos são

despertados nessa convocação, que toma feição de hino. Em dado instante, um coro de

vozes – formado por Simone, Novelli, Carla Capalbo, João Gaspar Moura – produz o

canto de ordem, rasgado pelas vozes agudas do bandolim e da guitarra portuguesa de

João Gaspar Moura. Agora o canto reúne uma multidão, cujo grito se cobre de uma aura

mítica e faz pensar que estamos diante de uma procissão em filas tortuosas, a passos

desordenados que percutem memórias de outras canções, de outros discos. Na superfície

de vozes montada pelo coro de Janaina meu canto de guerra quase se ouvem falsetes

miltonianos, num eco puxado por faíscas de memórias do ambiente do Clube da

Esquina nº 2: “Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova/Viver semeando a

liberdade em cada coração/ Tenha fé no nosso povo que ele acorda/ Tenha fé em nosso

povo que ele assusta”39

. Os versos da canção Credo, que abre o Clube da Esquina nº 2 –

, dialogam com Janaina meu canto de guerra. Na parceria de Simone e Novelli ainda

sentimos esse espírito através do volume cheio do coro, do brilho do canto de alvorada,

mas também por outras lembranças, como as acionadas diante das presenças de Novelli

e Cristiano nessa gravação. Os dois, pai e filho, promoveram um dos momentos mais

comoventes do Clube Nº 2, a performance da canção instrumental Toshiro, composição

de Novelli entoada por Milton Nascimento e por Cristiano, que, criança ainda, emitia

inocência, melancolia, sofreguidão em sua voz.

Nessa viagem por Clarice, lançado como produção independente no ano de

2013, tecemos fios imaginários intertemporais, conduzidos por sons e poesias que

caçaram territórios abstratos onde imaginações misturaram mundos arranjados em tons

impressionistas. Mundo da música, lugar em que a fuga se faz necessária e o inusitado

se ergue em ponte onde se dão os encontros.

39

Credo (Milton Nascimento/Fernando Brant)

155

“Cavar o impensado do próprio pensamento, fazendo-o deslocar”: o jeito de ser

clube-esquinista

Essa porção gauche sentida no encontro de Simone Guimarães com a atmosfera

clube-esquinista aciona uma das marcas de Milton Nascimento: o cuidado com a

concepção da harmonia.40

Como bem lembra Ivan Vilela, “Com o Clube da Esquina a

canção passou a ser submissa à roupagem que lhe era colocada, o arranjo. Em nenhum

momento pensara-se em agasalhar a canção da maneira como foi feita por eles.”41

Voltando ao álbum Clube da Esquina, a obra parecia mesmo ter uma preferência

pela sombra, por se fazer insinuar e fisgar o público pela curiosidade, começando pela

capa. A fotografia, de autoria de Cafi, que, por seu trabalho nesse e em outros discos,

ficou conhecido como mais um membro da trupe, flagra duas crianças, uma negra e

outra branca, sentadas à beira da estrada, num momento de descontração, tendo como

fundo a terra e a cerca de arame farpado. Nada além dessa imagem. Sendo hoje disco

célebre, em listas dos mais importantes da música brasileira e até do mundo, basta bater

os olhos nessa foto para sabermos se tratar da capa do Clube da Esquina. Mas, e quando

foi lançado? Aquela capa, por si só, talvez não dissesse muito. As informações vinham

na contracapa. Nela, temos as inscrições: Milton Nascimento Lô Borges Clube da

Esquina. E uma fotografia onde Milton e Lô, rodeados por crianças, descem a rua

Divinópolis, a tal onde temos a famosa esquina do Clube. Ainda assim, as informações

não eram claras. Lô ainda era desconhecido. Quem seria Lô Borges naquela turma?

Talvez por ser o mais crescido no grupo de crianças, o adolescente podia ser

identificado. Aguçando o olhar, percebemos que há uma simetria entre a localização de

Milton e de Lô. Mesmo não ocupando o centro da imagem, a presença dos dois é

destacada. É assim, discretamente, que a fotografia provoca e revela a parceria até então

desconhecida do grande público, detendo-se no periférico, na sombra. Mais do que

divulgar o disco, a capa e a contracapa são elementos que, efetivamente, participam do

conjunto da obra. A amizade entre os dois meninos da capa serve de metáfora para o

trabalho do disco, erguido na coletividade e nas relações de amizade. E o disco,

40

A este respeito, Santuza Cambraia Naves destacaria: “Milton e seus companheiros atualizam a

preocupação bossa-novista de fundir ritmos regionais com o jazz de orientação mais sofisticada, buscando

a criação de harmonias ricas e o desenvolvimento de práticas experimentais”. (Santuza Cambraia Naves.

Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 44.) 41

Ivan Vilela. “Nada ficou como antes” Op. cit., p. 24.

156

concebido na fusão de tantos gêneros, flertando com o que havia de mais moderno em

termos de música naquele momento, sinaliza também para as tradições, para as

bagagens sonoras que faziam parte do cotidiano brasileiro.

Fig. 4 - Capa

Fig. 5 – Contracapa

Essa constatação de um país entre a modernidade e suas tradições já está

sinalizada na capa, onde a paisagem rural lhe serve de apresentação. Aquelas duas

crianças, muitas vezes confundidas pelo público como “Milton e Lô” na infância,

157

compõem a fisionomia do Brasil. Como vimos no capítulo anterior, o som do órgão,

presente também nesse álbum, acena para o diálogo com o rock e o jazz daquela década,

e igualmente para lembranças da música sacra – importante ingrediente na fusão

miltoniana –, cuja expressividade se faz sentir no interior de Minas Gerais e do Brasil.

Ao falar da música de Milton, Novelli salienta:

A formação musical dele é mineira. É jazzística, mas é mineira, é religiosa,

aquelas coisas de Minas, do interior, tudo o mais. Por isso a música dele é tão

boa, tão diferente, tão interessante. 42

Outras experiências sonoras remeteriam ao campo da tradição, despertando em

Milton o interesse por algumas canções da cultura popular, que se converteriam em

clássicos de seu repertório, caso de Calix Bento, presente no disco Geraes, de 1976: a

canção foi recolhida por Tavinho Moura, responsável também por outros tesouros

populares levados para a obra de Milton. No livro de Chico Amaral, Tavinho é

apresentado como “peça fundamental na recriação do folclore presente no repertório

miltoniano.”43

Essa mistura de informações, que vão de sons modernos aos do cotidiano

de cidades do interior, recria obras, como o bolero Dos cruces: “Estan clavadas dos

cruces/ En el monte del olvido/ Por dos amores que han muerto/ Qui son el tuyo e el

mio.” Na versão do álbum Clube da Esquina, sonoridade e sensibilidades percorrem

vias distintas das habitualmente adotadas no bolero: em lugar do excesso, a preferência

por certo intimismo, num ambiente onde preponderam o violão e a voz de Milton,

despida da impostação que dá o sotaque do bolero, sem atenuar a dramaticidade da

canção. O violão, num acento hispânico, por vezes crava tristeza nessa atmosfera onde o

tom dramático é experimentado em profundidade. Em dado momento, a percussão

perfura a cena, crescendo em volume e acentuando os ares pesados do ambiente.

Acrescenta urgência, apreensão, palpitação, irrompendo como descreve Ivan Vilela ao

refletir a respeito:

A percussão não mais fazia o papel de acompanhante rítmico e sim de criadora

de um evento que corria concomitante à voz e ao violão e com um volume

maior que o usual das gravações. A percussão atrelada à canção deixou de

existir, pelo menos na música do Clube da Esquina. Ela agora era um evento

que acontecia concomitante à música, mas que tinha vida própria.44

42

Entrevista realizada com Novelli. Op. cit. 43

Chico Amaral. A música de Milton Nascimento. Op. cit., p 311. 44

Ivan Vilela. “Nada ficou como antes” Op. cit., p. 21.

158

No seu arremate, o arranjo ainda surpreende, pois traz o choro rouco da guitarra

de Beto Guedes e um coro que emite aquela dor em vocalises. As frases da guitarra

aplicam uma pitada de rock nesse ambiente, sugerindo que, embora aparentemente

distante do gênero original da canção, o bolero, tais vertentes flertavam no que tinham e

têm de visceral e dramático em suas linguagens.

Ao fundo dessa massa sonora, redemoinho de emoções e sensibilidades, Milton

emite falsetes. A impressão é de uma voz vinda de um lugar distante. Um canto gestado

no âmago. Atentar aos percursos de Dos cruces é colocar-se diante de artistas que

ignoram fronteiras e fundem elementos e gêneros numa mesma canção. Sinalizam para

o passado e dialogam com o presente. Fazem pontes entre gêneros e temporalidades. E,

nesse exercício, essa voz que se joga em experimentos e se esmera em nuances, mostra-

se disposta a se atirar no inusitado, para tatuar sensibilidades, percorrendo caminhos

onde se apresenta nítida e próxima para, em seguida, pôr-se em áreas distantes e

nebulosas, movimentando-se numa incansável caçada à criatividade do próprio canto.

No Clube da Esquina a voz de Milton Nascimento tem papel fundamental. Inclusive

para estabelecer esse trânsito por gêneros e estilos e pela obra da diversidade de

compositores agrupados na expressão Clube da Esquina, questão que Nelson Ângelo

destaca: “E o Milton, com sua facilidade vocal, sempre gostou muito de interpretar

obras de outras pessoas. As nossas, as americanas, enfim. Então isso tudo foi mantido

dentro da estética que vinha rolando, comandada por ele.”45

A “facilidade vocal”, a

faceta intérprete, faria de Milton, além de compositor e músico inventivo, o porta-voz

daquela movimentação entre amigos.

Nesse mesmo disco teríamos outros exemplos de fusões, como a já citada

marcha-rancho Pelo amor de Deus (Milton Nascimento/Fernando Brant), envolvida em

surpreendente arranjo psicodélico.46 Noutra espécie de experimento, deslocam Me deixa

em paz de seu ambiente de carnaval através de uma interpretação eivada de dores

45

Nelson Ângelo (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit., p. 114. 46

Esses trânsitos e cruzamentos de informações musicais daqui com de outras paragens nos aproxima de

uma expressão que ganhou os debates acadêmicos ao mirar o fenômeno da globalização, o tal “glocal”,

que para Mike Featherstone se trata de uma “fusão dos termos global e local para se obter uma mistura.

Aparentemente o termo é modelado a partir do vocabulário japonês dochaku, derivado do princípio

agrícola de se adaptar técnicas de agricultura a condições locais e que foi adotado pelos interesses

comerciais japoneses nos anos oitenta.”(Mike Featherstone. O desmanche da cultura: globalização, pós-

modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997, p. 162 e 163.) Ao se valer do exemplo

japonês, o autor destaca o aspecto de uma apropriação ativa, que serve para pensar em processos noutros

campos, como os da arte, em tempos de globalização.

159

emitidas pelas vozes de Milton e Alaíde Costa. Explica Alaíde: “Agora você imagine o

“Me Deixa em Paz”: “Se você não me queria...” era assim, com alegria. E daí eu falei

assim: “Eu vou cantar essa música, mas vou cantar do meu jeito”. E foi assim que o

Milton me ouviu cantando e gostou.”47

“Experimentar”: postura presente, inclusive, nas formas de exprimir

determinados sentimentos através de construções poéticas diferentes das que

normalmente povoam nosso cancioneiro, o que constatamos numa das parcerias dos

irmãos Lô e Márcio Borges que integram esse disco, a canção Um girassol da cor de

seus cabelos. Márcio Borges recorda que a inspiração para os primeiros versos da

canção deu-se numa viagem de ônibus com Duca, sua namorada à época. Vale um

trecho da narrativa de Márcio:

Embalado pelo balanço do ônibus, entrei num devaneio, desses em que os

elementos da natureza se nos afiguram extraviados de sua essência, fazendo, de

repente, uma nuvem tornar-se o perfil de um gigante ou, quando faltam nuvens,

transformando o próprio céu num oceano profundo e silencioso, e se acaso uma

ave corta nosso campo de visão ela é adornada pela imaginação com os

atributos de um peixe voador ou os de um iate de velas içadas ao vento, e se o

devaneio vai além, podemos sentir o balanço do mar e até mesmo enjoar, ou ter

vertigens.48

O estado de viagem permeia os versos da canção. Os devaneios produzidos pelo

olhar fixo e distante são cortados por pensamentos ligados aos sentimentos amorosos,

numa condução narrativa marcada por sobreposições aleatórias em pura poesia. “Vento

solar e estrelas do mar/ Você ainda quer morar comigo”. Essas sensações inspiram o

ambiente sonoro, onde frases de instrumentos escapam, pintando em abstrações a

paisagem composta pela voz e piano de Lô Borges. O acento calmo da voz de Lô nos

embala nessa nuvem sonora, cultivando certa melancolia e nos levando àquela zona de

fronteira entre sonho e realidade, onde as sensações e sentimentos saltam e se misturam,

confundindo-se: devaneios, desejos, lembranças, expectativas. Tormento. Uma dança

entre sons e sentimentos que nos tomam e nos cortam, percepção adensada pelo som da

orquestra na parte instrumental já bastante conhecida da canção:

Vento solar e estrelas do mar

A terra azul da cor de seu vestido

Vento solar e estrelas do mar

Você ainda quer morar comigo?

Se eu cantar não chore não

47

Alaíde Costa (Depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op.cit., p. 82. 48

Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem. Op. cit., p. 245.

160

É só poesia

Eu só preciso ter você por mais um dia

Ainda gosto de dançar, bom dia,

Como vai você?

Sol, girassol, verde vento solar

Você ainda quer morar comigo?

Vento solar e estrelas do mar

Um girassol da cor de seu cabelo

Se eu morrer não chore não

É só a lua

É seu vestido cor de maravilha nua,

Ainda moro nesta mesma rua,

Como vai você?

Você vem, ou será que é tarde demais?

O meu pensamento tem a cor de seu vestido

Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo

Anos mais tarde, Márcio Borges faria letra para uma melodia de seu irmão Telo

Borges, cujo tema dialoga com Um girassol da cor de seus cabelos: Vento de Maio,

interpretada por Elis Regina no último disco que lançou, em 1980. Elis gravou a canção

em homenagem a Márcio e Duca Leal, que tinham se separado recentemente.

Separação, aliás, era o tema dessa canção.49

Participaram da gravação o coro composto

pelos irmãos Borges: Marilton Borges, Márcio Borges, Lô Borges, Yé Borges, Telo

Borges e Nico Borges:

Vento de raio rainha de maio estrela cadente

Chegou de repente o fim da viagem

Agora já não dá mais pra voltar atrás

Rainha de maio valeu o teu pique

Apenas para chover no meu piquenique

Assim meu sapato coberto de barro

Apenas para não parar nem voltar atrás

Rainha de maio valeu a viagem

Agora já não dá mais....

É quando o canto visceral de Elis Regina emite uma lembrança daquela relação:

“Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção”, e a voz de Lô, ao fundo, salienta

em tema incidental: “Vento solar e estrelas do mar....”. A citação revela o parentesco

das duas canções e chama a atenção para os efeitos dessas produções entre amigos, onde

ideias daqui são retomadas lá adiante, personagens de uma canção são citados noutras,

49

Em pesquisa anterior, fiz análise dessa canção ao refletir sobre o diálogo estabelecido por Elis Regina

com o Clube da Esquina. Cf. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção.

Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em História da

Universidade de Brasília, 2009.

161

criando uma trama interna que brinca com memórias de canções, adensa aquela obra e

ainda revela membros desse clube, como Elis Regina.

Nossos caminhos traçam, nesse disco de Milton e em outros momentos de sua

carreira, linhas de questionamento. Fugas que proporcionaram diálogos, inclusive com

os movimentos contraculturais que pipocavam pelo mundo. Esse efeito de misturas, de

combinações de elementos modernos com outros advindos do passado, inspirou Simone

Guimarães a construir bela imagem ao falar do Clube da Esquina como expressão da

contracultura:

Para mim, o Clube da Esquina é contraculturalista muito mais do que o

Tropicalismo. Cês me desculpem se eu estiver falando uma grande besteira.

Mas pra mim, como alicerce, como estrutura... porque tem uma frase da

Bárbara Heliodora, que ela fala assim: “eu sou conservadora, porque as

mudanças são inevitáveis, então, quando elas vierem, tem que ter alguém para

contar a história”. Então, tem que ter uma passagem. As coisas não são feitas

assim oh, pá! Pega uma guitarra e estoura na cara com não sei quantos

decibéis. É assim que você quer mudar minha visão do que vai ser o novo? Cê

não vai conseguir. Acho que o Milton Nascimento com o Clube da Esquina, eles

vinham de mansinho, estabelecendo coisas legais. “Vamos caminhar juntos”.

Contracultura, mas a favor. (...) uma atitude prometeica, roubou o fogo, mas

para entregar ao povo.50

A expressividade musical do Clube da Esquina ignorava enquadramentos em

escaninhos e linhas evolutivas, compondo sua sonoridade a partir do que afetasse e

provocasse inquietude, numa atitude mais próxima da ideia de fusão, de passagem, que

de ruptura. O caldeirão de notas musicais tinha variadas referências e sempre esteve

aberto a novas e surpreendentes pitadas sonoras.

Embora hoje seja um clássico da música brasileira, o disco Clube da Esquina

não foi tão bem recebido logo de cara. Em seu livro de memórias, Márcio Borges

destaca que o disco chegou a receber críticas negativas em relação às letras das canções,

à voz de Lô Borges e à música de Milton Nascimento. Em entrevista ao Jornal da Tarde

em abril daquele mesmo ano em que o disco foi lançado, a fala de Milton Nascimento é

pontuada por desconstruções de imagens a respeito de seu disco, de sua arte e de seu

grupo. Já na época da concepção do Clube da Esquina, Milton sabia que seria difícil

convencer a gravadora de que ele faria um álbum duplo, ainda mais assinado juntamente

com um artista desconhecido, Lô Borges. Se a gravadora cedeu aos seus desejos graças

ao apoio de Adail Lessa, diretor de elenco da Odeon, a imprensa parece não ter recebido

50

Simone Guimarães em entrevista a mim concedida. Op.cit.

162

tão bem aquela ideia, ou pelo menos não tinha entendido bem aquele disco. É o que se

constata em sua fala-resposta:

Não me venham dizer que eu facilitei o trabalho para o Lô Borges, o compositor

novo, de Minas, que assina o disco comigo. Não houve nada de protecionismo.

Afinal, as pessoas parecem se esquecer muito depressa que, no ano passado,

houve uma música importante para mim – “Para Lennon e MCcartney” – e que

me ajudou bastante: esta música é do Lô, e não minha, como muita gente pensa.

Então se houve essa história de proteção, de colher-de-chá, terá partido dele. 51

Em seguida, o descontentamento de Milton Nascimento se direciona ao

aprisionamento de sua obra em determinadas etiquetas confeccionadas pela imprensa da

época, como “grupo dos mineiros”. Em seu livro Os sonhos não envelhecem, Márcio

Borges diz que chegaram a chamá-los de Beatles brasileiros numa matéria publicada

pela revista O Cruzeiro, em 1971. Embora houvesse uma referência ao grupo inglês, a

obra de Milton Nascimento e sua trupe não se resumiria a isso. Na verdade, mostrava-se

como campo de fluidez, imprimindo mais passagens que barreiras, como no discurso

propagado sonora e poeticamente em seu álbum Clube da Esquina:

Não estou ligado ou desligado de grupos. Quando alguém se aproxima de meu

trabalho e resolve participar com intenções sérias, eu sou o primeiro a topar.

Exemplos? Edu Lobo, Dory Caymmi e Egberto Gismonti, que se interessam

pelo que eu faço. O que não gosto é de entrar em rodinhas de fofocas e coisas

assim. Não gosto também que falem do “meu grupo”. Não quero que exista um

“grupo mineiro”. Sou contra estas máfias regionais. A gente está junto,

trabalhando junto porque tem uma porção de coisas para mostrar. E é só isso.

Não existe nenhum compromisso além de mostrar música.52

A música brasileira dos anos 60 e 70, e mesmo a dos dias atuais, contou com

jornais e revistas como meio de divulgação, mas também como lugar onde sentidos e

enquadramentos a seu respeito foram edificados. Evidentemente, há muitos textos

interessantes, inclusive para se pensar e tentar inteligir o cenário musical brasileiro.

Nossos primeiros contatos com debates a respeito da música brasileira e com dados

sobre algumas de suas manifestações se dão por meio do que foi e é divulgado pela

imprensa. Certos termos e nomenclaturas dos quais se valem os discursos acadêmicos

hoje em dia foram cunhados em ensaios de cadernos de cultura de jornais. Alguns

nomes associados a esses veículos jornalísticos tornaram-se verdadeiros arquitetos de

sentidos e de indagações a respeito de movimentos e movimentações musicais, mas

também foram responsáveis por enquadramentos que socaram algumas expressões

51

“Milton, o que nunca parou”. Op. cit. 52

Idem, ibidem.

163

musicais em escaninhos novos ou antigos – que, por vezes, nem lhes cabiam tão bem –,

conformando-os às suas escutas e entendimentos estéticos. Assim, o cenário dos anos

70 assistiu à construção de nomenclaturas como “grupo dos baianos”, “invasão

nordestina” – colocando no mesmo balaio expressões musicais diversas – e de

fenômenos como o pós-tropicalismo.

Em monografia que se detém sobre o Udigrudi de Recife, Guilherme Menezes

Cobelo e Oliveira mostra como movimentações contraculturais diversas foram

entendidas a partir de uma ideia de ‘pós-tropicalismo’. Buscava-se por meio dessa

expressão as afinidades dessas outras manifestações com o Tropicalismo, deixando de

lado o que tinham de específico. Dessa forma, o Tropicalismo se transformava na

expressão máxima da contracultura brasileira e por qual todas as outras eram medidas.

Inteligentemente, o autor nos esclarece como nomes vinculados à mídia e mesmo ao

campo acadêmico contribuíram para a construção desse olhar.53

A respeito do Tropicalismo, são pertinentes as considerações de Edwar Castelo

Branco. Partindo de reflexões sobre Torquato Neto, Castelo Branco abre espaço para

problematizar o Tropicalismo, mostrando que o movimento foi mais amplo e

heterogêneo do que as elaborações a respeito apresentam. E ainda demonstra o peso

dessas elaborações, aliadas à ideia de “linha evolutiva” na maneira de se enxergar as

outras manifestações artísticas brasileiras contemporâneas, posteriores ou mesmo

anteriores ao movimento. Vale a citação do trecho abaixo para acessarmos o argumento

de Castelo Branco:

Por um lado, a idéia de “linha evolutiva” da música brasileira naturalizou todas

as intervenções feitas no campo musical a ponto de não deixar espaço para a

percepção do emergente como acaso e indefinido. Por outro lado, é também em

decorrência desse historicismo que todas as intervenções vanguardistas dos anos

sessenta foram, a partir de diferentes estratégias, abrigadas sob uma espécie de

guarda-chuva em que foi transformado o “Grupo Baiano”. E a própria idéia de

Grupo Baiano contribuiu para criar o objeto Tropicália articulado às

personalidades de Caetano Veloso e Gilberto Gil – exatamente nessa ordem – e

a alguns poucos outros que os dois primeiros – ocupando o lugar de “fala

competente” – foram nomeando e distribuindo nas posições de sujeito que o

objeto permitia: avô do tropicalismo, pai do tropicalismo, neto, etc. Isso fez com

que boa parte daqueles jovens que, em diferentes frentes, se debateram contra o

53

Cf. Guilherme Menezes Cobelo e Oliveira. Pelo Vale de Cristal – Udigrudi e contracultura em Recife

(1972-1976). Monografia final de Graduação. Departamento de História da Universidade de Brasília,

2011. Ver também: Guilherme Menezes Cobelo e Oliveira. “O desbunde do Udigrudi” In Eleonora Zicari

Costa de Brito, Mateus de Andrade Pacheco, Rafael Rosa (orgs). Sinfonia em Prosa. Diálogos da história

com a música. São Paulo: Intermeios, 2013.

164

cerceamento da liberdade de criação e ofereceram sua arte como instrumento de

redefinição de uma “realidade brasileira”, gesticulando exatamente no sentido

de provocar uma alteração na percepção da arte brasileira e na própria

percepção de Brasil, dando significado a um múltiplo que seria nomeado de

Tropicalismo, fosse ocultada no processo de nomeação da Tropicália.54

As reflexões de Castelo Branco e Guilherme Cobelo dialogam e nos alertam

para o perigo de se colocarem lentes tropicalistas para enxergar as variadas

manifestações artísticas que desfilaram no cenário brasileiro dos anos 60 para cá.

Interessante notar que esse Tropicalismo ainda é um guia para alguns acadêmicos e

jornalistas atuais elaborarem suas narrativas sobre manifestações culturais plurais.

Tomemos como exemplo uma entrevista de Fernando Brant ao jornal Correio

Braziliense – realizada por Irlam da Rocha Lima, José Carlos Vieira e Severino

Francisco. Uma pergunta me chamou a atenção: “De que maneira a Tropicália impactou

você e sua geração?”. As motivações para a pergunta poderiam ser múltiplas:

meramente uma provocação, uma pergunta retórica ou mais uma reverência ao

Tropicalismo. Mas a resposta de Brant desarma qualquer possibilidade de amarrá-lo ao

cordão tropicalista:

A Tropicália ocorre exatamente no momento em que nós fizemos Travessia.

Então, não teve muito impacto. A bossa nova sim, crescemos ouvindo Tom

Jobim, Os Cariocas, e o Tamba Trio. Achei interessante o resgate que a

Tropicália fez de Teixeirinha e Vicente Celestino, que a gente ouvia no rádio. E,

logo depois da Tropicália, Caetano e Gil foram para Londres. Mas, claro que a

gente conhecia o trabalho excelente que eles faziam.55

Como vimos, a tentativa de se fabricar um ‘grupo mineiro’ foi rejeitada

prontamente por Milton Nascimento na década de 70. A questão da rotulação ainda se

coloca na atualidade. Em entrevista ao Correio Braziliense, Ronaldo Bastos, mais uma

vez, destaca o prejuízo dessas etiquetas. “Não se trata de campeonato, muito menos algo

para um jornal carioca tratar como o ‘Sgt. Peppers de Minas’. Não dá para reduzir assim

a importância de algo tão fundamental para a música quanto o Clube da Esquina.”56

Dessa maneira, ao mesmo tempo que informavam a respeito daqueles fenômenos

musicais, algumas denominações criadas por suportes jornalisticos acabavam por

54

Edwar de Alencar Castelo Branco. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da

Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005, p.221. Ver também: Edwar de Alencar Castelo Branco.“Eu

não tenho nada a ver com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira. Música, história e cotidiano sob

o susto da pós-modernidade brasileira”. In: Eleonora Zicari Costa de Brito, Mateus de Andrade Pacheco,

Rafael Rosa (orgs). Sinfonia em Prosa. Diálogos da história com a música. São Paulo: Intermeios, 2013. 55 Fernando Brant à seção “O que eles pensam”. In: Correio Braziliense. Caderno Diversão & Arte, p.3.

(20/05/2012) 56

Ronaldo Bastos Apud Ailton Magioli. “Só a canção constrói”. Correio Braziliense. (06/01/2008)

165

limitá-los.57

E é contra essas limitações que se direciona as falas de Milton e de seus

parceiros.

Se ao redor de Milton Nascimento se reuniram importantes nomes da música

mineira, outros artistas que ficaram conhecidos por também compor a turma chegaram

de outras paragens. No entanto, se bem pensarmos, em muitos suportes discursivos, a

expressão Clube da Esquina passou a ser equivalente a “grupo mineiro”.

Evidentemente, essa associação não floresceu do nada, pois muitos são os artistas

mineiros integrantes desse Clube e abundantes os elementos identificadores de uma

sonoridade própria do grupo. Mas a esses nomes outros se juntaram, como já

verificamos na fala de Simone Guimarães. Ronaldo Bastos ainda destaca:

Quando se fala dessa coisa mineira, eu acho que é um elogio e eu me sinto

mineiro nesse sentido. Mas eu vejo o Clube da Esquina como uma coisa muito

mais universal, não só no ponto de vista de que englobava muito mais pessoas,

não só as pessoas conhecidas, mas outras pessoas que fizeram parte do clube,

como também o sentimento da música e da poesia tinha uma amplidão

planetária.58

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”. O verso da canção ecoa na fala do

compositor. Na verdade, ele e seus companheiros (re)tomaram a expressão Clube da

Esquina e a ampliaram. Se aquele era o grupo dos mineiros, as Minas que ali se erguiam

57

Em seu livro sobre a escritora norte-americana Sylvia Plath, Janet Malcolm faz consideração pertinente

a respeito das fontes de jornal ao observar que tipo de tratamento elas recebiam pelos depoentes

entrevistados por ela: “As personagens e cronistas da lenda de Sylvia Plath colecionam essas ralas

narrativas indignas de confiança como se fossem escritos sagrados. E talvez não haja outra ocasião em

que o poder da imprensa seja tão evidente – e tão perturbador – como quando parte de seu gotejamento

constante se cristaliza na estalactite conhecida como “material de arquivo”. Notícias de jornal escritas

originalmente com a finalidade de satisfazer nossa fome diária de Schadenfreude aleatória e impessoal –

despertar o interesse, divertir e cair no esquecimento na semana seguinte – passam a ser admitidas em

meio a fontes sérias de fatos e informações, sendo tratadas como se elas não fossem apenas uma forma de

perguntar o que ocorreu...” (Janet Malcolm. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da

biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 151.). Devo deixar claro que não pretendo inferir,

por meio do posicionamento de Janet Malcolm, que há uma hierarquia entre fontes a serem pesquisadas,

mas sim entender que há especifidades que não podem ser ignoradas. Vale recortar a citação anterior de

Janet Malcolm: “como se elas não fossem apenas uma forma de perguntar o que ocorreu...”. Esse é um

ângulo revelador sobre o fazer jornalístico. Por trás das afirmações contudentes de um texto enxuto, feito

para ser direto e o mais objetivo possível, temos a impressão de certezas, quando de repente ali estão

esboçadas dúvidas sobre uma novidade, ou mesmo tentativas de compreendê-la, seja ela política, social,

cultural. E esse exercício é guiado pela bagagem cultural de quem o executa, depende de suas condições

de recepção. Muitas vezes para o leitor fica apenas a impressão de certeza: “mas eu li no jornal”! A

afirmação serve para respaldar as opiniões daqueles que atribuem a esses veículos uma autoridade. E

quando essas notícias sobrevivem por anos e anos em arquivos, as vezes alcançam o patamar de verdade:

“Foi assim”. Um olhar crítico colocaria essas e demais fontes noutro patamar: essa é a leitura que fizeram

a respeito de tal evento, de acordo com as possibilidades inscritas numa temporalidade. E esse é um ponto

que não deve nos escapar. 58

Depoimento de Ronaldo Bastos no filme A sede do Peixe, dirigido por Carolina Jabor e Lula Buarque

de Hollanda.

166

eram tão Gerais que nelas cabia quem chegasse. Era fronteira que se espalhava. Assim,

passaram a ser “mineiros”, de muito bom grado, nomes como Ronaldo Bastos e Novelli.

No álbum Clube da Esquina já tínhamos o anúncio de que aquela turma era

mesmo muito maior. No grande mosaico de fotos que o disco abriga, reconhecemos

pessoas desconhecidas misturadas aos artistas participantes. Fotografias que trazem

Milton menino entre outras que registram vivências na casa de Mar Azul. Momentos de

estúdio com a presença de artistas como Paulinho da Viola, Norma Bengell e Nana

Caymmi, que não participaram diretamente do disco, mas faziam parte de sua rede de

interações e de ideias. Tais fisionomias, acompanhadas de tantas outras difíceis até de

identificar e nominar, sugerem que o leito clube-esquinista tem dimensões

inalcançáveis, está sempre se alargando através de novos braços que a ele se emendam.

Algumas das figuras que estamparam aquelas fotos, mas não participaram do

disco, reverberariam seu repertório e ideais em seus próprios trabalhos individuais,

como Nana Caymmi, uma das intérpretes preferidas de Milton Nascimento. Naquele

mesmo ano em que foi lançado o Clube da Esquina, duas canções, Cais e Nada será

como antes, comporiam o repertório do disco de outro grande nome da música

brasileira, Elis Regina, que experimentava novos caminhos para sua música através da

lapidação do canto e do diálogo sonoro com os membros de sua banda: César Camargo

Mariano (piano), Luizão Maia (baixo) e Paulo Braga (bateria).59

O lançamento do álbum Clube da Esquina se daria num espaço acanhado, o

teatro Fonte da Saudade, localizado na Lagoa, Rio de Janeiro. Antes de se tornar um

clássico, o disco parecia mesmo ter vocação para a sombra. Acompanhado pelo Som

Imaginário, Milton Nascimento teria uma bela surpresa durante a temporada desse

show. Foi nessa ocasião que conheceu o saxofonista Wayne Shorter, com quem gravaria

o disco Native Dancer. Na entrevista que realizei, Milton Nascimento relata essa

passagem de sua história, onde agregaria mais um amigo para sua vida e uma parceria

para sua arte.

O Wayne veio ao Rio com o grupo dele, o Weather Report, ele tava tocando no

Teatro Municipal. E eles chegaram aqui perguntando para o pessoal brasileiro,

onde estava o Milton Nascimento. E o pessoal falava uma porção de coisas,

sempre me denegrindo, “não tem Milton Nascimento por aqui”, tal, tal. Só que

59

Na época que foi gravado esse disco, o grupo que acompanhava Elis ainda contaria com a presença do

guitarrista Luiz Cláudio, que depois foi se dedicar a outros projetos e foi substituído por Hélio Delmiro.

(Cf. César Camargo Mariano. Solo: Cesar Camargo Mariano – memórias. São Paulo: Leya, 2011.)

167

eles não sabiam ou esqueceram que a esposa do Wayne era portuguesa. Então,

ela um dia pegou o jornal e viu escrito lá: Clube da Esquina, Milton

Nascimento, Lô Borges e tal. Aí ela começou a gritar no hotel e a xingar todo

mundo que tava me escondendo. E foi uma coisa danada.

Provavelmente Wayne Shorter conhecia aquele primeiro disco que Milton havia

lançado no mercado norte-americano, o Courage, do qual participou Herbie Hancock,

que já tinha um diálogo musical com Wayne, pois juntos integraram o grupo de Miles

Davis. Ao descobrir o paradeiro de Milton na ocasião em que esteve no Rio de Janeiro

com seu grupo, Wayne foi ao Teatro Fonte da Saudade para assistir ao show. Milton me

conta que estava se preparando para entrar no palco quando recebeu a notícia: “Oh, o

Wayne Shorter tá aí”.

Eu era fã dele, por causa do grupo que ele tinha, dele, Herbie, Ron Carter e tal,

com o Miles. Aí eu falei: “Não, não vou cantar não. De jeito nenhum!” Aí todo

mundo: “Ah, vai cantar sim, como é que não vai cantar?”. Falei: “Não vou!”

Teve uma época que eu era o rei do não, mas no fim acabava entrando na

coisa. “Bom, o teatro tá cheio, o cara tá aí, veio te ver, veio nos ver, e cê não

vai cantar?”. Bom, cantei. Quando acabou, aí eu fui conversar com ele, tremia

mais do que vara verde, e tal, conversamos.

Wayne já era admirador de música brasileira60

, mas parece ter se surpreendido

de fato com aquele som que Milton e o pessoal do Clube da Esquina tinham levado para

o palco:

Eles foram sete vezes. E eles faziam o seguinte, eles diminuíram o show deles,

deixavam o carro na porta de trás do Municipal, desciam correndo para pegar

uma parte de nosso show. (...) Aí o Wayne chegou e perguntou: “Escuta, você

quer gravar um disco comigo?”. Eu quase que caí pra trás. Falei: “Claro que

eu quero”. Ele falou: “então quando chegar a hora, eu te telefono”. (...) E aí

foi o que aconteceu, uma hora ele ligou lá. Atendi o telefone e era ele. Ele

falou: “Escuta, tá pronto pra gravar o disco?”. Eu: “Claro que tô”. “Quer

trazer alguém daí?”. Falei: “Quero, Wagner Tiso e Robertinho Silva”. Que era

na cabeça dele também.

Os depoimentos de Milton Nascimento sobre a gravação do álbum Native

Dancer esclarecem sobre sua música naquele momento, sobre a própria ideia de fusão

de gêneros e estilos promovida em discos anteriores e percebida, com maior clareza, no

álbum Clube da Esquina:

Tinha uma coisa que todo mundo me perguntava que tipo de música eu fazia.

Eu nunca soube, nem queria saber. Aí eu sempre falava: “Não sei”. “É

samba?”. “Não, não é samba, mas tem alguma coisa de samba.” “É isso?”.

“Não”. “É jazz?”. “Não”. Aquele negócio todo. Agora, a cabeça do Wayne é

uma cabeça assim, digamos, eu acho que é ou quase, ou igual a minha. Então,

60

Cf. Joachim E. Berendt. O jazz. Do rag ao rock. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975.

168

ele chamou o Herbie para tocar no disco, tínhamos nós três do Brasil, chamou

um baixista da área pop, um guitarrista da América Central, e o Airto Moreira

também, o engenheiro de som era produtor do The Band, que costumavam

tocar com o Bob Dylan. E chamou, para produzir o disco, o Jim Price, que

naquela época era produtor do Rolling Stones. Aquilo foi uma feijoada

misturada com sei lá o quê. [risos] Uma confusão danada. E o disco saiu e

aconteceu até uma coisa maravilhosa assim, porque geralmente as pessoas que

gostam de jazz não gostavam do pop, quem gosta do rock não gosta disso e tal.

Esse disco acabou com tudo isso. Inclusive quando o disco saiu, o pessoal de

várias áreas começou a me procurar. E o disco é uma coisa tão forte, que ele é

atemporal. Então até hoje tem gente que pensa que a gente gravou anteontem.

Mas ninguém mais perguntou que tipo de música era. [risos]

Em seu caldeirão musical, manipulava especiarias a seu gosto, sem se prestar a

discursos de organização da música em vertentes e gêneros. O artista se mostra atento à

interação e ao que dela possa inquietar os ouvidos. A amálgama, a fusão, se faz

primeiramente como prática, e Milton não se preocupa em teorizar. Interessante que, ao

juntar esses temperos musicais, manipula-os de uma forma que, embora possamos

detectar suas presenças, por vezes não os identificamos de todo; sabemos apenas que

compõem um novo sabor. Noutras palavras, trata-se de uma outra via, por meio da qual

o cantor reverencia escolas musicais, não se furtando a brincar, em fugas capazes de

produzir novidades, gestar um estilo, uma caçada à variação, como nos aponta o

discurso de Gilles Deleuze:

Não é uma estrutura significante, nem uma organização refletida, nem uma

inspiração espontânea, nem uma orquestração, nem uma musiquinha. É um

agenciamento, um agenciamento de enunciação. Conseguir gaguejar em sua

própria língua, é isso um estilo. É difícil porque é preciso que haja necessidade

de tal gagueira. Ser gago não em sua fala, e sim ser gago da própria linguagem.

Ser como um estrangeiro em sua própria língua, traçar linha de fuga.61

As palavras do filósofo francês caem bem ao que percebemos ainda no primeiro

capítulo e no decorrer desta pesquisa: esse quê de tantos gêneros que sentimos na

música de Milton Nascimento, que, ao mesmo tempo, produz um sentimento de

diferença, de novidade. “Cavar o impensado do próprio pensamento, fazendo-o

61

Gilles Deleuze. “Uma conversa, o que é, para que serve?” In: Gilles Deleuze e Claire Parnet. Diálogos.

São Paulo: Escuta, 1998, p. 12. No desenvolvimento de seu raciocínio, Deleuze ainda esclarece:

“Devemos ser bilíngues mesmo em uma única língua, devemos ter uma língua menor no interior de nossa

língua, devemos fazer de nossa própria língua um uso menor. O multilinguismo não é apenas a posse de

vários sistemas, sendo cada um homogêneo em si mesmo; é, antes de tudo, a linha de fuga ou de variação

que afeta cada sistema impedindo-o de ser homogêneo.” (idem, ibidem, p. 12.).

169

deslocar.”62

A frase do historiador Leandro Mendanha remete à questão do estilo no

campo do pensamento, mas sopra o mesmo espírito que sentimos no território da

música a partir de nossas reflexões sobre a obra miltoniana. Essa obra que desafia os

limites dos gêneros musicais, misturando e deslocando informações sonoras, também

não se agarraria a uma temporalidade. Em discos como o Native Dancer, ou mesmo

Clube da Esquina, pressentimos parentescos com gêneros, sonoridades de um tempo,

mas com contornos abertos. Talvez por isso, Native Dancer tenha essa centelha

atemporal que Milton Nascimento menciona. Em seus discos, insinuam-se

proximidades, avizinham-se mananciais de referências, mas a música esquiva-se sempre

do risco de traçar caricaturas. Experiências sonoras como estas são nutridas na

intimidade e na aposta de que cada músico dará o seu melhor, se atirará em linhas

criativas, num caminho produtivo para surpreendentes fugas.

Anos depois da experiência do Native Dancer, mais especificamente em 1978,

quando participou de mais um disco de Milton para o público norte-americano, o

Journey to Dawn, Wayne Shorter se pronunciou a respeito do encontro de sua música

com a de Milton Nascimento à imprensa brasileira: “Milton e eu criamos mágica. Só

poucas pessoas conseguem isso com Milton e Milton com poucas pessoas. Conosco

acontece”.63

Seu depoimento é conduzido por elogios que tomam ares enigmáticos ao

abordar a influência da música brasileira na música de seu país: “Mas é algo que vai

explodir e historiadores no futuro vão pensar: Como é que foi? Pois foi quando alguns

vieram do Brasil”64

. Algumas dessas contribuições musicais seriam surpreendentes,

uma delas proporcionadas pela maneira de cantar de Milton Nascimento durante as

gravações com o músico norte-americano. Na entrevista que deu a Chico Amaral,

Milton relembra a referência do grupo pop norte-americano Earth, Wind and Fire ao

seu canto:

Eu estava num hotel passando pela piscina e o líder do Earth, Wind and Fire –

Maurice White – me chamou: “Milton, Milton!” Os meus amigos me avisaram:

“Tem alguém te chamando ali”. Fui até lá e ele: “Olha, estou há muito tempo

procurando você para agradecer.” “Agradecer?” “É; quando você estava

gravando com o Wayne, eu ficava ouvindo, sem aparecer, e via tudo aquilo que

você fazia com a voz, e me deu vontade de fazer o mesmo. Mas acontece que

62

Leandro Mendanha e Silva. Nas transversais do tempo: uma intervenção de Foucault na História e sua

apropriação pela historiografia. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-

graduação em História da Universidade de Brasília, 2009, p.73. 63

Wayne Shorter Apud Regina Echeverria, Lucila Camargo. “Uma longa travessia”. Revista Veja

(1/11/78), p.52. 64

Idem, ibidem.

170

você fazia aquilo no estúdio, e eu não ia conseguir. Então, eu botei um anúncio

no jornal, chamando instrumentistas que cantassem também, para fazer esse

lance.” Bom, né?65

Mas, junto dele, Milton levaria muitos músicos aos estúdios norte-americanos,

como Wagner Tiso e Robertinho Silva, que o acompanharam para gravar o Native

Dancer. Esses artistas também despejariam novas informações musicais naquele

território. Certamente a pulsação rítmica de Robertinho Silva também chamou a

atenção. Mas na gravação desse disco o relato de Wagner Tiso nos encaminha para

manejos que acabariam por arejar solos que já pareciam esgotados na música norte-

americana:

O Bituca contou que quando ele falou que eu ia tocar órgão o pessoal riu? “Não,

mas órgão? Jimmy Smith já fez tudo que tinha no órgão!” Depois que eu toquei,

eles gostaram, né? É aquela sonoridade que eu busquei nas boates, lá no Drink,

ou na Arpège. Aquela sonoridade eu levei para Los Angeles; eles não usavam.

É o som de baile.66

Wagner Tiso se remete ao tempo que atuou como músico da noite no Rio de

Janeiro, aos aprendizados com seus colegas de profissão, como Carlinhos Cara de

Cavalo, que lhe passou algumas dicas sobre o órgão Hammond.67

Recorrendo às suas

memórias de experiências de baile em noites brasileiras com aquele instrumento

importado, Wagner Tiso impressionava os músicos envolvidos em Native Dancer ao

levar novas informações sonoras. Novas para eles, pois Wagner Tiso já estava bem

familiarizado com aquela forma de conduzir o órgão Hammond. Esse episódio nos

remete novamente a essas misturas de ingredientes sonoros, provocadoras de novas

linguagens, ou pelo menos, de nova cor para uma linguagem. Por essas e outras é que se

explica a dificuldade no enquadramento desse tipo de música em escaninhos e rótulos

fabricados pelos meios de divulgação.

Em variadas oportunidades, tentou-se rotular a música de Milton Nascimento. A

rotulação, procedimento tão em voga no período de franca expansão da indústria

fonográfica, quando Milton apareceu, não ultrapassaria a fronteira da sigla MPB. Essas

três letrinhas, no entanto, só pareciam suficientes para a catologação do artista no

65

Milton Nascimento em entrevista a Chico Amaral In: Chico Amaral. A música de Milton Nascimento.

Op. cit., p. 150. 66

Wagner Tiso em entrevista a Chico Amaral In: Chico Amaral. A música de Milton Nascimento. Op.

cit., p. 168. 67

Cf. Beatriz Coelho da Silva. Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação. São Paulo: Imprensaoficial, 2009.

171

acervo discográfico da gravadora. Fora desses domínios, que gênero musical acolheria

Milton Nascimento? Tal indagação vem permeando a carreira do cantor, motivando o

mais recente rótulo aposto a seu nome, agora em cenário internacional: world music.

Milton acha graça nos malabarismos feitos com vistas a inseri-lo em alguma categoria

musical, a ponto de serem utilizadas “soluções” bastante criativas, algumas até mesmo

adotadas inconscientemente:

O curioso é que, já na década de 1960, quando comecei a viajar e dar entrevistas

fora do Brasil, as pessoas sempre me perguntavam que tipo de música é a

minha, e eu nunca soube explicar. (...) mas resolveram isso para mim. Quando

fui a primeira vez para a Dinamarca, há uns 25 anos, tinha um cartaz com as

pessoas que iam se apresentar naquele mês, no Jazz Club Mont-Martre, em

Copenhague, e estava escrito assim: “Miles Davis – jazz; fulano de tal – blues;

Milton Nascimento – Milton. 68

A solução dinamarquesa apontava Milton como um estilo musical. Talvez fosse

mesmo a melhor saída, já que nem ele próprio se sentia à vontade para demarcar sua

obra. Mas a fusão de gêneros e estilos, somada à experiência de gravação de álbuns

voltados para o mercado norte-americano, seria também alvo de críticas, algumas

inclusive questionando a brasilidade de sua obra. É o que verificamos no artigo de

autoria de José Ramos Tinhorão, pesquisador de grande influência no cenário musical

brasileiro.

Já no título, a provocação: “O engano de “Milton” é pensar que é brasileiro.”

Publicado pelo Jornal do Brasil em agosto de 1977, o artigo de Tinhorão parte de um

episódio que aconteceu naquele ano, o show que Milton Nascimento deu em Três

Pontas em comemoração às homenagens que recebeu em sua cidade: a partir daquela

ocasião, uma praça em frente à casa de seus pais passava a ter o nome de seu primeiro

sucesso, Travessia. Em seu discurso, Tinhorão associa esse evento a outro, o

lançamento do último disco do artista, Milton, gravado nos Estados Unidos, para

sentenciar:

Ora, o que o exame desse disco revela, desde o local da gravação – uma

propriedade campestre chamada Malibu Beach, situada a meio caminho entre a

montanha e o mar em Los Angeles, Estados Unidos – é que o LP Milton nada

tem a ver, em termos de padrões culturais, com a maioria daquelas pessoas

68

Milton Nascimento em entrevista a Maria Dolores Pires do Rio Duarte. “Só faltou o Miles Davis.”

Revista Bravo!, p. 80. (Edição de dezembro de 2007)

172

simples que se abalaram de casa em Três Pontas para aplaudir o “artista da

terra”, em seu momento de glória municipal.69

Num raciocínio fundamentado num ideal de padrão cultural genuinamente

brasileiro, o estudioso enquadra o diálogo de Milton Nascimento com músicos

estrangeiros numa perspectiva onde prevalece a ideia de submissão cultural às

“metrópoles”, no caso os Estados Unidos. Aquele tinha sido um disco onde Milton

levou para o estúdio do sítio do The Band, artistas como Novelli, Toninho Horta e

Robertinho Silva. Juntaram-se a eles nomes já conhecidos em parcerias anteriores em

gravações de discos nos Estados Unidos, como Wayne Shorter e Herbie Hancock.

Presenças como estas contribuíram para que Tinhorão pontuasse em seu texto que a

música de Milton estava mais próxima da norte-americana do que da brasileira,

atendendo ao gosto de uma classe média, que, para ele, tinha “o ideal de se parecer, o

mais possível, com o equivalente de sua classe no país mais desenvolvido”70

.

O argumento do texto se desenrola a partir dessa ideia de dominação/submissão,

matriz geradora de várias críticas a obras de artistas brasileiros que agregaram

sonoridades estrangeiras a nossa música. Na verdade, Tinhorão seria um braço dessa

grande vertente, que ainda hoje distribui selos de “mais” ou “menos” brasileiro. Nessa

perspectiva, remete a fatores de nossa formação histórica – “Ora, o que a experiência

brasileira como nação historicamente colonizada demonstra é que essa tendência a

contemplar-se nas metrópoles nada mais faz que revelar um complexo de inferioridade

das elites locais.”71

– para refazer a trajetória de alguns nomes que tiveram sucesso aqui

devido à reverberação de suas atuações no exterior – Rui Barbosa e Oliveira Lima – ou

tiveram sua importância reconhecida através da comparação com um “equivalente”

estrangeiro – “Machado de Assis, o Swift brasileiro, Castro Alves, nosso Byron”72

.

Após esse percurso de adensamento argumentativo, Tinhorão miraria experiências

musicais brasileiras, para, aí sim, retomar o alvo, a música de Milton Nascimento. Vale

a transcrição dessa parte do texto:

No campo da música popular, esse processo de auto-engano, que toca as raias

do ridículo, começou por volta da Segunda Guerra Mundial – quando Carmen

Miranda foi para Hollywood cantar em inglês, acompanhada pelos músicos do

bando da lua vestidos de rumbeiros – culminando com o episódio lamentável da

69

José Ramos Tinhorão. “O engano de “Milton” é pensar que é brasileiro.” Jornal do Brasil (27/08/1977) 70

Idem, ibidem. 71

Idem, ibidem. 72

Idem, ibidem.

173

apresentação da bossa nova no Carnigie Hall, quando o Itamarati pagou as

passagens para um grupo de jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro irem ensinar

os americanos espertos como Stan Getz a ganhar dinheiro com uma nova forma

de cool jazz. É nessa linha de integração consentida na cultura alheia que deve

ser ouvida e entendida a música atual de Milton Nascimento, conforme expressa

no disco Milton, “mastered at A&M Recording Studios, Hollywood, by Bernie

Grundman”, com “producion by Rob Fraboni (Associete Producer Ronaldo

Bastos, é claro, porque nos Estados Unidos estrangeiro vem sempre em segundo

lugar), isso após “recorded at Shangri-La Studio” (não é interessante o estúdio

se chamar Shangri-La?), “Malibu And the Village Recorder, Los Angeles (Los

Angeles, em espanhol, quer dizer os anjos, não é engraçado?)73

Atento a fisgar elementos estrangeiros na música de Milton Nascimento,

Tinhorão deixou escapulir a maneira como esses mesmos elementos são manipulados e

incorporados à obra miltoniana. Ali não havia nada da passividade sugerida pela

expressão “integração consentida”. A ideia de amálgama, onde visualizamos linhas de

fuga produtoras de um estilo, sinaliza para uma criatividade nesse manuseio de uma

variedade de gêneros. Assim, aquela música emite partículas de diferentes estilos, sem

nunca se propor a ser imitação ou cópia. Talvez por se apresentar como um enigma,

com esse ar diferente, a música de Milton tenha provocado impacto em nomes como

Wayne Shorter e Herbie Hancock. Ou seja, não apenas através do reconhecimento de

uma identificação com o jazz, mas também da inquietação provocada pelo

estranhamento dos percursos da música de Milton Nascimento. Relevante é o fato de

esses nomes estarem vinculados ao jazz, um dos gêneros musicais com um histórico de

misturas e fusões enriquecedoras de seu território musical. Naquela década de 70, por

exemplo, o jazz travou diálogo com o rock e outras vertentes, como a música brasileira,

à procura de novas formas de expressar liberdade e criatividade.

Na mesma época em que Tinhorão destilava suas críticas conduzido por um

ideal de pureza cultural, numa argumentação amarrada a ideias de preservação e

proteção da cultura local, alguns estudiosos caminhavam noutra direção, o que ajuda a

refletirmos sobre esses diálogos de Milton Nascimento com a música estrangeira. Num

texto de 1971, Silviano Santiago faz reflexão importante para pensarmos a arte

brasileira e da América Latina. Nesse ensaio, o autor combate o enquadramento da

produção artística latino-americana a partir da busca de uma matriz original estrangeira,

da caça às “influências” e às “fontes”. Ou seja, a identificação de uma obra “original”

que influenciou a de um artista latino-americano. A partir dessa perspectiva, Santiago

73

Idem, ibidem.

174

reflete sobre o papel da América Latina no consumo do que vem de fora e conclui que

uma das contribuições latino-americanas é justamente a quebra de conceitos como

unidade e pureza:

A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao

movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos

feitos e imutáveis, que os europeus exportavam para o Novo Mundo. Em

virtude do fato de que a América Latina não pode mais fechar suas portas à

invasão estrangeira, não pode tampouco reencontrar sua condição de “paraíso”,

de isolamento e de inocência, constata-se com cinismo que, sem essa

contribuição, seu produto seria mera cópia – silêncio –, uma cópia muitas vezes

fora de moda, por causa desse retrocesso imperceptível no tempo, de que fala

Lévi- Strauss. Sua geografia deve ser uma geografia de assimilação e de

agressividade, de aprendizagem e de reação, de falsa obediência. A passividade

reduziria seu papel efetivo ao desaparecimento por analogia. Guardando seu

lugar na segunda fila, é no entanto preciso que assinale sua diferença, marque

sua presença, uma presença muitas vezes de vanguarda. O silêncio seria a

resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas

serve para apertar mais os laços do poder conquistador.74

Ao artista latino-americano cabia o papel de ruminar o que a ele chegava,

deixando florescer novos percursos para aquela arte. E ao devolvê-la aos seus

interlocutores internacionais, provocar a surpresa, pela maneira criativa com que se

apropriara daquelas informações. Nessa interação, acabaria ele próprio por se tornar

referência para quem lhe servira de inspiração. Interessante notar que, num diálogo

entre Fernando Brant e Milton Nascimento, proporcionado por uma entrevista que o

primeiro realizou com o segundo na década de 90, temos uma reflexão sobre essa

questão das “influências” que conversa de perto com as considerações de Silviano

Santiago no que se refere a esse “lugar na segunda fila” ocupado pela América Latina.

[Fernando Brant] – Lendo o livro de George Martin sobre os Beatles, tive a

nítida impressão de que ele não falava nos quatro garotos ingleses e, sim, de

nós, jovens mineiros e brasileiros, criando nossos primeiros discos. Era o

mesmo tipo de bagunça e energia criativa. Eles lá inventando, apesar da

precariedade dos quatro canais, e nós aqui, com apenas dois, fazendo magia e

música, obras que até hoje estão aí, prontas para serem ouvidas, reouvidas,

descobertas. O que você acha dessa coisa?

[Milton] – Eu acho que realmente era tudo igual. Muito me perguntaram sobre a

influência dos Beatles na nossa música e eu acho o seguinte: numa determinada

época, surgiu uma espécie de sentimento musical em várias partes do mundo,

muitos tinham mais ou menos a mesma estrela guia. Os arranjos de George

Martin, a maneira dos Beatles de cantar, de fazer música, tudo isso tinha a ver

com o que se fazia em vários outros lugares do mundo, como em Minas Gerais.

Era mais uma questão de época do que de influência de um sobre o outro.

74

Silviano Santiago. “O Entre-lugar do Discurso Latino-americano.” In: Silviano Santiago. Uma

literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de

São Paulo, 1978, p. 18 e 19.

175

Acontece que se fosse ao contrário, se a gente tivesse nascido em Liverpool,

diriam que a gente teria influenciado os Beatles. 75

A conversa entre amigos retoma o que temos desenvolvido ao longo de nosso

percurso: o sentimento compartilhado de estarem inseridos numa mesma época sinaliza

para a constatação de uma inclusão no mundo através do que circulava por aí. Sob esse

prisma, os artistas, confrontados com informações de tantos cantos do mundo, não se

sentiriam apenas brasileiros, mas, antes, cidadãos do mundo. A condição “periférica”

brasileira atingia em cheio o entendimento da obra de Milton Nascimento, questão que

o cantor inverte no arremate sua fala – prefere a ideia de partilha de informações e

experiências, mesmo entre lugares distantes. Ao me deparar com uma entrevista de

Silviano Santiago, fui surpreendido com um relato de vivências que possivelmente

tenham colaborado, em momento posterior, para as elaborações de seus pensamentos,

como aqueles vislumbrados no texto dele citado. Vivências essas que se aproximam das

de Milton e que contribuem para pensarmos nesse seu lugar de fronteira, sua posição de

cidadão do mundo. Nascido em 1936, Silviano passou sua infância na cidade de

Formiga, interior de Minas Gerais. Segundo ele:

(...) em Formiga cresci em um período que julgo importante para a cultura de

uma maneira geral. É o momento em que a presença da indústria cultural norte-

americana se torna muito importante no Brasil. Tão importante que vai atingir

de cheio uma cidade de trinta mil habitantes, ou um pouquinho mais, no interior

de Minas Gerais. Minha formação, naquela época, passava muito pouco pelo

livro. (...) Em Formiga, o que vejo muito é cinema. Vejo muito cinema e leio

muito histórias em quadrinhos. E o que acho fascinante no fato de ver cinema e

ler histórias em quadrinhos na infância é que, apesar de viver em Formiga –

uma pequena cidade, repito –, eu tinha uma imaginação muito cosmopolita,

porque eu estava assistindo aos filmes da Segunda Guerra Mundial. Tinha a

visão precisa, uma sensação muito nítida de que nós vivíamos a Segunda

Grande Guerra. A nitidez vem do fato de estar vendo cinema e, em particular,

lendo as histórias em quadrinhos. (...) Como há o interesse de vocês pela

música, desde aquela época tive o interesse despertado para ela. Indiretamente,

meus ouvidos ficaram acostumados à música, não à brasileira, repito, a música

brasileira também chega tardiamente à minha vida, mas a música norte-

americana. Trilha sonora de filmes, as grandes orquestras – por exemplo, Glenn

Miller, Tommy Dorsey, essas coisas tão estranhas e que tenho muito nítidas na

memória.76

75

“De bem com a vida e com o trabalho” In: Andréa dos Reis Estanislau. Coração americano: 35 anos do

Clube da Esquina. Belo Horizonte: Prax, 2008, p. 31. (originalmente publicado no Jornal do Brasil

(22/06/1997)) 76

Silviano Santiago. “Um Provinciano Cosmopolita” In: Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira

Coelho e Tatiana Bacal. (Org.). A MPB em Discussão: Entrevistas. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2006, p. 126 e 127.

176

No decorrer de sua fala, Silviano assume a importância da indústria cultural

estrangeira em sua formação, o que atinge suas formulações sobre essas culturas vindas

de fora:

De maneira nenhuma gostaria de ser crítico, de ter uma postura totalmente

negativa em relação a essa indústria cultural. Mesmo mais tarde na vida, não o

consegui ser. Nunca consegui ser adorniano na crítica à indústria cultural. Acho

que existe um valor nisso tudo, não sei bem como me expressar, um valor meio

palpável, concreto, meio complicado, complexo, mas existe um valor positivo,

porque, apesar de viver ali, numa pequena cidade, não tinha de maneira

nenhuma uma vida desbotada, provinciana.77

As experiências de Silviano se comunicam com as que verificamos nos

depoimentos de Milton Nascimento sobre seus primeiros contatos com música, quando

ainda vivia em Três Pontas. Milton teve contato com uma pluralidade de expressões

musicais naquela pequena cidade do interior.

Ao falar de suas referências musicais e das de Milton Nascimento, bem como da

relação dessas memórias com sua atuação musical posterior, Wagner Tiso afirma:

E outra coisa que influenciou muito a gente era o cinema. Três Pontas era a

única cidade do interior que tinha o famoso cinemascope, né? Som

estereofônico. Então a gente ia ao cinema e a trilha sonora encantava, porque

era estéreo. E aquilo ali era uma maravilha. A gente ouvia, depois ia comentar

as músicas.78

As vivências se cruzam e nos conduzem a um pensamento que subverte o que

normalmente se divulga sobre os interioranos. Ao contrário dos provincianismos

esperados, de uma vivência pautada pelo isolamento, estamos diante de nomes que

cruzaram o mundo não apenas através de viagens terrestres, mas daquelas

proporcionadas por livros, cinema, notícias, discos e histórias de amigos que partiram

rumo a outras paisagens. E não seriam apenas eles, mas tantos outros com quem tiveram

contato nesses pequenos lugares. Dessa maneira, como na noção de relato de Certeau,

ultrapassaram barreiras, passaram a se sentir pertencentes ao mundo que os nutriu com

tantos bens e informações. Temos aí uma via que se confronta com a apresentada por

Tinhorão numa das preocupações apontadas em sua crítica:

O que é terrível nessa conjuração de enganos, quando se trata de Milton

Nascimento, é que ele é hoje o artista catalisador dos ideais da maioria quase

absoluta das camadas universitárias. Realmente, como Milton Nascimento, em

77

Idem, ibidem, p. 127. 78

Wagner Tiso em entrevista a Chico Amaral. In: Chico Amaral. A música de Milton Nascimento. Op.

cit., p. 252.

177

sua inconsciência quase infantil da realidade brasileira, faz questão de prestigiar

artistas populares como Clementina de Jesus – e outros que cita em sua música

Raça (quer dizer, Race) – essas minorias privilegiadas de jovens estudantes do

chamado ensino superior ficam pensando que a música de seu herói cultural tem

alguma coisa a ver com o povo brasileiro. E cria-se, então, a falsa noção da

existência de uma “música brasileira de nível internacional”.79

A ideia de um cosmopolitismo interiorano nos faz crer que a música de nosso

“herói cultural” tinha, sim, muito a ver com o povo brasileiro. Pelo menos com parcelas

do público que compartilham com ele de tantas lembranças acionadas por remissão a

variados bens culturais, fossem estes daqui ou de alhures. Por isso mesmo, aqueles que

o aplaudiam no show da praça de Três Pontas no mínimo se reconheciam no artista e em

suas travessias e o que menos contava era a compreensão das filigranas do projeto

musical do três-pontano ilustre.

***

Os passos que nos permitiram afirmar que a obra de Milton foi urdida no

compartilhamento de ideias e performances musicais entre amigos igualmente nos

permitiram perceber o quanto o caráter coletivo permeou a produção de uma vastidão de

relatos e histórias que guardam tantas e tantas camadas de memórias. Foi a partir daí

que surgiu a ideia de uma obra em palimpsesto, onde o tecido da memória, quando

desfeito, reconstitui a complicada trama, camada por camada, desvelando, sob a forma

de som e poesia, enigmas e informações. O que visualizamos no álbum Clube da

Esquina salta para outros discos de Milton Nascimento. Ao ouvi-los nos deparamos, por

exemplo, com os rastros de personagens e canções que fazem variadas aparições em sua

obra. Estamos falando de seu Francisco, Maria Maria, personagens criados a partir da

referência a pessoas comuns do cotidiano que habitamos. Tais pessoas que passariam

como anônimas para uma maioria surpreenderam o olhar dos artistas através dos

encontros proporcionados pela vida, acabando por se transformar em mote para os

temas de suas canções. Talvez por isso mesmo, esses personagens possuam a densidade

capaz de provocar identificação e inquietação no público, pois são como essas tantas

pessoas que atravessam nossos caminhos, prontas a enriquecer nossas vivências se

estivermos de olhos e ouvidos atentos.

Quando estive com Fernando Brant em Belo Horizonte, conversamos sobre esse

olhar para as pessoas do povo, os anônimos, em suas parcerias com Milton Nascimento,

79

José Ramos Tinhorão. “O engano de “Milton” é pensar que é brasileiro.” Op. cit.

178

como o “seu Francisco, boné e cachimbo”, citado na canção Raça, e descobri que, por

detrás daqueles versos, onde Seu Francisco se mistura a outras

personagens/personalidades, temos um ser real, que encantou Fernando Brant:

Esse aí era um personagem da minha vida. Eu trabalhava no juizado de

menores, era escriturário, e ele era um preto alto que fazia o café. E a gente

conversava muito. Ele era um cara de Ouro Fino, de uma sabedoria danada.

Então eu gostava muito. Um cara que foi muito importante na minha

convivência.80

A canção Raça apareceu pela primeira vez no disco Milton, de 1976, aquele

gravado nos Estados Unidos. Mas também permeou outros, como a trilha de balé Maria

Maria, onde a canção aparece como tema instrumental. Passou ainda por discos como o

Missa dos Quilombos, de 1982, e Encontros e Despedidas, de 1985. Volta e meia, a

canção ressurge no repertório de Milton, como no caso do espetáculo Ser Minas tão

Gerais e do show Uma Travessia, em que o artista comemorou seus 50 anos de carreira.

Aqui nos deteremos na versão do disco Milton, fonograma que foi reutilizado no disco

Missa dos Quilombos.

Com ambiente composto por forte base percussiva, que cobre de brilho o tom

vibrante já presente na melodia, a canção se ergue como um hino ao negro. Raça nesse

território não é somente sinônimo de etnia, pois destaca uma das marcas do povo ali

referendado: a coragem. Pelos discursos desses versos, ecoa a mensagem: para ser negro

há de se ter raça! Coragem de enfrentamentos e resistências, vias que enunciam a

reivindicação de um lugar cidadão na sociedade da qual faz parte e na história de seu

país. A voz de Milton passeia com facilidade pelas quebras melódicas naquele ambiente

sincopado e aquecido por andamento acelerado. Desse lugar, o artista encarna o que o

verso proclama: “lá vem o canto, o berro de fera.” Eis a voz corajosa, aquela que

enfrenta obstáculos, elevando, através do canto, o monumento em homenagem aos que

já foram alvo de tantos preconceitos e cerceamentos. O violão de Milton assume faceta

percussiva, dialogando com a atmosfera ali constituída, espécie de memória de tantos

cânticos e festas negras que engendram essa celebração de resistências:

Lá vem a força, lá vem a magia

Que me incendeia o corpo de alegria

Lá vem a santa maldita euforia

Que me alucina, me joga e me rodopia

80

Fernando Brant em entrevista a mim concedida no dia 13 de março de 2013

179

Lá vem o canto, o berro de fera

Lá vem a voz de qualquer primavera

Lá vem a unha rasgando a garganta

A fome, a fúria, o sangue que já se levanta

De onde vem essa coisa tão minha

Que me aquece e me faz carinho

De onde vem essa coisa tão crua

Que me acorda e me põe no meio da rua

É um lamento, um canto mais puro

Que ilumina a casa escura

É minha força, é nossa energia

Que vem de longe pra nos fazer companhia

É Clementina cantando bonito

As aventuras de seu povo aflito

É seu Francisco, boné e cachimbo

Me ensinando que a luta é mesmo comigo

Todas Marias, Maria Dominga

Atraca Vilma e Tia Hercília

É Monsueto e é Grande Otelo,

Atraca atraca que o Naná vem chegando

Em dado instante, o andamento da canção desacelera, convidando o corpo em

euforia a um balanço malemolente – quarta e quinta estrofes. Nesse novo ambiente,

Milton emite falsetes, canto mágico, sagrado, que açula o ouvinte a perscrutar as

complexidades desse som, onde partículas de alegria se misturam com de lamento e dor,

numa busca de coragem e sensualidade, produzindo encontros nas fronteiras entre o

santo e o profano. Esboços de traços múltiplos que compõem identidades sempre em

constituição, eis o que observamos nesse canto de raça. Levada para o disco destinado

para o público norte-americano, com o título traduzido, Race, a canção insinua que a

coragem aqui elaborada projetava reconhecimentos com aquela outra, evocada pela dura

realidade do País, e perpassava cotidianos. Aqui o que se vê são vários artistas negros

produzindo cultura através da música, caso de Wayne Shorter e Herbie Hancock,

participantes dessa obra e interlocutores de Milton Nascimento.

Na teia de referências de Raça, personagens famosos passeiam entre os do

círculo mais íntimo, anônimos para o grande público, numa demonstração de como essa

raça e coragem se alastram por aí, povoando o nosso cotidiano. Na feitura dos versos da

canção, revela-se a riqueza do diálogo entre parceiros: “O Bituca, por exemplo, falou:

180

“Põe aí a Tia Hercília.” Que é tia dele. Tudo bem! O Naná já é coisa nossa, né?”81

Momentos simples como este, relatado por Fernando Brant, mostram como uma

produção artística se matura e ganha densidade a partir dessa conversa provocativa-

criativa, catalisadora de lembranças e ideias que insuflam vida ao esqueleto de uma

obra. Nesse patamar, o fato de o solo poético da canção se constituir de maneira íntima,

abrigando memórias de pessoas queridas, produz identificações e questionamentos –

provavelmente quem ouve a canção não sabe quem é tia Hercília, mas outros,

certamente, desconfiam que Naná é o grande Vasconcelos, que tanto contribuiu para a

obra de Milton Nascimento. Lado a lado com ícones negros do porte de Grande Otelo,

Monsueto e Clementina de Jesus, passeiam personagens como tia Hercília, Vilma,

Maria Dominga, atiçando a curiosidade do público. Quem seriam? Mais que anônimos,

surgiriam como enigma. Por brechas, os parceiros musicais injetam intimidade nas

dobras da canção, brincando e cativando pela curiosidade e provocando a atenção ao

detalhe. As canções são feitas de elementos que transitam entre o público e o privado,

guardiãs de causos e histórias a nos espreitar. Quase sem querer, catamos uma ou outra

revelação, parentescos entre canções etc. Uma dessas surpresas tive no desenrolar de

meu diálogo com Fernando Brant sobre esse destaque dado aos anônimos nas parcerias

com Milton Nascimento:

(Mateus)- É, eu acho bacana isso, porque é um olhar bem sensível pro

anônimo, pra quem é visto como anônimo, que vai para outras canções

também, como em Roupa Nova...

(Fernando Brant) - Porque Roupa Nova é a história do seu Francisco!

- Ah, é também? Isso eu não sabia...

- Não, essa ele me contou, essa aí é a história dele. Que ele era carregador de

mala em Ouro Fino, que é no Sul de Minas, carregador de mala da estação. Aí

ele trabalhava lá para carregar mala para as pessoas que chegavam, né, ou

para ajudar as pessoas a colocar a mala no trem e tal. Mas tinha um trem, que

era um expresso, que ele passava lá, mas passava direto. Mas ele era tão sério,

ele achava que podia ser que algum dia o trem parasse e alguém ia precisar

dele. Então todo dia, na hora, ele ia lá. Aí não passava, ele ia pra casa. Essa

história ele me contou.

Por mera coincidência, essa outra referência a seu Francisco, agora Pinduca,

chegou aos meus ouvidos. Do relato de Fernando Brant acionamos a lembrança dos

versos de Roupa Nova, canção que compõe o repertório do álbum Sentinela e a trilha de

balé Último Trem:

Todos os dias, toda manhã

81

Idem, ibidem.

181

Sorriso aberto e roupa nova

Passarim preto de terno branco

Pinduca vai esperar o trem

Todos os dias, toda manhã

Ele sozinho na plataforma

Ouve o apito, sente a fumaça

E vê chegar o amigo trem

Que acontece que nunca parou

Nesta cidade de fim de mundo

E quem viaja pra capital

Não tem olhar para o braço que acenou

O gesto humano fica no ar

O abandono fica maior

E lá na curva desaparece a sua fé

Homem que é homem não perde a esperança, não

Ele vai parar

Quem é teimoso não sonha outro sonho, não

Qualquer dia ele para

Assim Pinduca toda manhã

Sorriso aberto e roupa nova

Passarim preto de terno branco

Vem renovar a sua fé

Os versos são abrigados em melodia onde, nos primeiros momentos, se ativa a

lembrança do movimento do trem, aguçada na versão do disco Sentinela pela constância

da marcação do baixo e bateria, além das divisões emitidas pela voz de Milton

Nascimento. Há instantes em que a massa sonora se move, se enchendo e se recolhendo

rapidamente naquele ambiente, de maneira tal que faz recordar as sensações provocadas

pelo apito de trem: atenção, susto, euforia, apreensão. A voz em prolongamento desenha

um risco na paisagem: o trem se distancia, deixando atrás de si apenas o eco de um apito

na memória dos que ficam.

A história de Seu Francisco serve de mote para, poeticamente, se delinear uma

reflexão sobre a força daquela máquina no cotidiano do interior. Na rítmica de sua

engrenagem, o trem acende a esperança do encontro com o outro, a curiosidade com o

vindo de fora, que, mesmo desconhecido, produz encantamento, pois traz consigo

relatos de outros mundos, descobertas. Essa rítmica do trem provoca ainda outras

sensibilidades, como as que inspirariam sonoridades em Milton Nascimento,

apaixonado confesso dos trens e ouvinte atento de sua musicalidade. A relação afetiva

182

com a máquina traz um eco da poesia de Adélia Prado. Atualmente, é comum, na

introdução de uma canção ligada a esse tema, Milton recitar o seguinte trecho:

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,

mas atravessou a noite, a madrugada, o dia,

atravessou minha vida,

virou só sentimento82

Esse olhar sensível de Adélia Prado transborda para o cotidiano. É a marca da

poeta e também o que move a parceria de Milton Nascimento e Fernando Brant, postura

que se comunica com a visão de Seu Francisco (Pinduca) em Roupa Nova. Mas o gesto

humano daquele olhar interiorano confronta-se com a postura urbana, viciada em

produzir anonimatos: “E quem viaja pra capital não tem olhar para o braço que

acenou”. A imagem provoca e faz pensar: ávido de calor humano, curioso de novas

culturas, não seria, justamente, o indivíduo do interior o modelo ideal para exercitar o

cosmopolitismo? Está aí uma questão para se pensar. Uma coisa é certa: a curiosidade e

sensibilidade de Pinduca guardariam um vínculo estreito com a curiosidade e

sensibilidade da dupla de compositores. Aquele cenário interiorano, enquadrado como

calmo e até mesmo parado, era também incentivo para se aguçar a atenção ao detalhe,

ao corriqueiro. Como na poesia de Adélia, de onde se deixa entrever a voz de

Drummond em poema já lembrado nessa nossa pesquisa:

Na minha cidade, nos domingos de tarde,

As pessoas se põem na sombra com faca e laranjas

Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,

a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:

‘Eh bobagem’.

Daqui a muito progresso tecno-ilógico,

Quando for impossível detectar o domingo

Pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas

Em meu país de memória e sentimento,

Basta fechar os olhos:

É domingo, é domingo, é domingo.83

Nos versos de Adélia o cotidiano toma feição familiar quando identificado e

mesmo concebido através da partilha de memórias. Localizar-se nesse mundo vira

sinônimo de lembrar. Um jeito de domingo, uma sexta com cara de sábado. Em artigo

em que se debruça em reflexões sobre o cotidiano, Edwirges Zaccur nos alerta:

82

“Explicação de poesia sem ninguém pedir” In: Adélia Prado. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, p.

48. 83

“Para comer depois”. In: Adélia Prado. Poesia reunida. Op. cit., p 43.

183

nada mais cotidiano do que habitar o mundo memória, espaço em que nos

reconhecemos no já-registrado, mas que se abre ao que nos acontece e

surpreende, e nos afeta de diferentes modos, e nos faz capturar, no voo de um

instante, algo que contém a marca de um momento único: uma fala densa, um

gesto forte, uma cena marcante, um encontro, uma ruptura.84

Na sombra da impressão de mesmice descansa a diferença, o tal momento único,

às vezes apenas acionado por um olhar minucioso, como o de Adélia, que capta naquela

imagem de domingo traços da beleza e da poesia do cotidiano. É uma forma peculiar de

experimentar o tempo: fora da lógica de um tempo acelerado, pronto a servir ao

“progresso tecno-ilógico”, aqui nos deparamos com um tempo propício à apreciação, à

contemplação. É o que temos também na maneira que o cotidiano de Pinduca é pintado

na canção de Milton Nascimento e Fernando Brant. Esse cotidiano, “tão igual” para

muitos, seria arca de grandes tesouros para compositores como estes.

Das experiências do cotidiano, Fernando Brant encontraria inspiração para a

letra de outra canção que remete à paisagem rasgada pelo trem, Ponta de Areia, gravada

primeiramente por Elis Regina, em seu álbum de 1974, e depois por Milton

Nascimento, em seu LP Minas, de 1975. O tema levantado em Ponta de Areia ainda

seria retomado no espetáculo Último Trem, estreado em 1980 pela companhia de dança

Grupo Corpo, com música de Milton Nascimento e roteiro de Fernando Brant. É

interessante que as duas canções – Roupa Nova e Ponta de Areia – compõem a trilha de

um espetáculo que reúne canções com a temática de viagem agregada para adensar a

trama ali enredada. Na entrevista que me concedeu, Fernando Brant conta sobre o

episódio que o inspirou a produzir Ponta de Areia e, posteriormente, o roteiro do

espetáculo Último Trem:

No caso, o Último Trem tem a ver com Ponta de Areia e tal é porque eu fui

repórter da sucursal da revista O Cruzeiro aqui em Belo Horizonte e aí eu fazia

matéria pelo interior de Minas. Aí, mais ou menos em 66, o primeiro governo

deles lá, né, eles acabaram com a estrada de ferro que era a Bahia-Minas, que

ligava Araçuaí, em Minas, Norte de Minas, a Caravelas e Ponta de Areia, no

Sul da Bahia. E quando eles acabaram, eles prometeram fazer estrada de

rodagem, não sei o que, para substituir... aí a gente foi fazer lá por 72, eu acho

que foi 73, uma matéria lá, eu e um fotógrafo de O Cruzeiro. Aí a gente

documentou aquela história lá, de tudo abandonado, não só no caminho, que

tinha cidades que só se chegava a pé ou a cavalo, como onde era lá a estação

final do trem. Que Ponta de Areia era uma cidadezinha ferroviária,

pequenininha... era uma praça enorme onde tinha as oficinas para consertar as

máquinas, onde moravam todos os ferroviários e suas famílias. Então eu fiz

84

Edwiges Zaccur. “Metodologias abertas a iterâncias, interações e errâncias cotidianas” In: Regina Leite

Garcia (org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003, p. 179.

184

uma matéria sobre isso, saiu um monte de páginas, foi uma matéria bacana. E

o gozado é que depois, muito tempo depois, eu fui recuperar cópia dessa

matéria, né, que esse amigo fotógrafo meu tinha guardado, e a capa era o

Médici. [risos] E, quer dizer, eu sempre usei muito essas coisas. Por exemplo,

quando eu fui fazer, o Milton me mandou duas músicas, ao mesmo tempo. Uma

virou “Saudades dos aviões da Panair”, que eu contei uma experiência minha.

E a outra, eu achei que “Ponta de Areia” era um negócio bem sintético, que aí

coube exatamente minhas impressões sobre Ponta de Areia, o fim da estrada de

ferro, sobre o abandono das pessoas.

Fernando Brant capta poesia na pluralidade de demandas que o cotidiano

circundante produz. Da experiência de repórter nasceria um dos clássicos da parceria

com Milton Nascimento. Ponta de Areia é uma canção embalada por delicadeza, tanto

na letra quanto na melodia. Em sua elaboração poética, o compositor emoldura o

abandono daquelas pessoas à própria sorte, diante da extinção da linha de trem Bahia-

Minas, ciente da dimensão simbólica desse acontecimento. Está aí um dos pontos de

sensibilidade da canção. As chegadas e partidas do trem compunham o cotidiano de tais

cidades. Além de progresso e emprego, o trem mobilizava afetos. Acabar com aquela

linha ferroviária era decretar o fim de uma época, caracterizada pela movimentação

festiva nas cidades por onde o trem passava e pela expectativa da chegada de pessoas

queridas; era silenciar um canal por onde circulavam notícias das cidades que faziam

parte do itinerário do trem; era derrubar a ponte que ligava Minas à Bahia não só

territorialmente, mas também culturalmente. Aquela ação era, assim, produtora de

isolamentos que atingiam o imaginário daquelas pessoas. Erguiam-se barreiras

confrontadas com lembranças de tempos de fronteiras, de encontro, estágio de viagem

que percorre a canção.

Na versão do disco Minas, um coro de meninos – Alexandre, Marco Valério e

Rúbio –, convocado pelo canto de chamada emitido em tom de comoção pelo sax

soprano de Nivaldo Ornelas, introduz Ponta de Areia. As vozes infantis que cantarolam

a melodia vêm de longe e ganham nitidez; depois se esvaem, como se fossem uma

lembrança recuperada, a mesma que a voz de Milton Nascimento nos contará logo após

nesse prólogo:

Ponta de Areia, ponto final

Da Bahia-Minas, estrada natural

Que ligava Minas ao porto, ao mar

Caminho de ferro mandaram arrancar

Velho maquinista com seu boné

Lembra o povo alegre que vinha cortejar

Maria-fumaça não canta mais

185

Para moça, flores, janelas e quintais

Na praça vazia um grito, um ai

Casas esquecidas, viúvas nos portais.

No princípio, o vocalise emociona em falsete, envolto pela magia produzida pela

percussão, preparando-nos para a viagem nutrida na sensação de desamparo. De um

vórtice de vozes, surgem os primeiros versos da canção emitidos por Milton

Nascimento num canto que vem do âmago, à caça de notas altas, convertendo-se num

grito que traduz aquele lamento curtido em pura dor. Esse estado de pureza e delicadeza

ronda toda a atmosfera sonora, sublinhando a comoção arrancada por aquelas

lembranças.

As lembranças de Ponta de Areia proporcionariam o enredo do espetáculo

Último Trem, como já mencionado. Ali, algumas canções compostas especialmente para

o espetáculo se misturariam a outras do repertório de Milton Nascimento. Em sua

condução, montam a memória do cotidiano dos lugares por onde aquele trem passava,

trazendo à tona a denúncia da dor proporcionada pelo abandono. Curioso é que algumas

canções inéditas que serviriam de peça para essa trama, também comporiam o repertório

do disco de Milton Nascimento lançado naquele mesmo ano, Sentinela. Algumas delas,

como Itamarandiba, remetiam à paisagem do Norte de Minas, região de onde saía o

trem da Bahia-Minas. Estamos diante de uma prática já vislumbrada ao longo dessa

pesquisa. Canções que servem a diferentes tramas, peças móveis que insinuam e

guardam histórias, fazendo da obra miltoniana um grande baú de referências e citações.

No caso de Último trem, tropeçamos numa peça explícita de ecos de outros ‘causos’,

mais uma via de saída para aquele cenário – e olha que já tínhamos três! Novamente,

Saídas e Bandeiras, e um caminho onde o descontentamento diante de uma situação que

se arrastava por anos era metaforizado por imagem sustentada na violência,

manifestação de impaciência diante das promessas do que estava sempre por vir, a

liberdade:

O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé?

O que vocês fariam pra sair dessa maré?

O que era terra vira pedra

Quem vai ser o segundo a me responder?

Com pedra e mais pedra construir nossa rebelião

Com fogo e mais fogo destruir a estação

Quanto mais barulho fizermos

Alguém há de ouvir a nossa explosão.

186

Fernando Brant e Milton Nascimento tiveram duas experiências com o Grupo

Corpo. Além do Último Trem, o balé de estreia da companhia teve roteiro assinado por

Fernando Brant e música, por Milton Nascimento. Trata-se de Maria Maria, de 1976.

Embora o público tenha tido contato com essas trilhas no momento em que os

espetáculos foram encenados pela companhia de dança, ambas só foram lançadas no

mercado fonográfico anos mais tarde, mais especificamente, em 2002. As duas foram

reunidas num álbum duplo, o Trilhas de Balé – Maria Maria e Último Trem, item que

marca a estreia do selo musical de Milton, o Nascimento. Em texto que apresenta o

projeto, o próprio Milton destaca:

Estas duas trilhas, Maria, Maria e Último Trem foram compostas e gravadas no

ano de 76 e 80 para as apresentações de estreia do Grupo Corpo, de Belo

Horizonte. Foram feitas e gravadas de maneira bem diferente do usual, aliás,

como sempre gosto de compor. Ao invés do silêncio, prefiro barulho e agitação,

e os dois balés foram compostos num pequeno apartamento da Barra da Tijuca,

no Rio, lotado de afilhados e amigos. Era uma confusão só, mas era também

uma festa. Maria, Maria, o tema, por exemplo, eu quase não conseguia ouvir

enquanto compunha. Mas ficou bonito, né? E acabou que essa Maria saiu do

balé e ganhou o mundo. Eu sempre quis soltar essas gravações originais. O

empurrão definitivo foi dado pelo coreógrafo americano David Parsons, para

quem compus uma outra trilha carinhosamente batizada por ele de

“Nascimento”. Desde a estréia desse balé ele me cobra um CD com as trilhas,

pois segundo ele, em todos os lugares onde o balé era dançado, o público

procurava o CD. Demorou um bocado porque a vida tem sido cheia de idéias e

projetos, e esse foi ficando para depois. Mas agora, taí. Vocês vão reconhecer

muitas das músicas que estiveram mais tarde em outros discos, mas que foram

compostas como estão nas trilhas, tendo nela sua versão original. As gravações

foram também feitas nos estúdios com os músicos, mas também com os amigos

e os afilhados, e os arranjos saindo da minha cabeça sem nenhuma ordenação.

Muito bom de fazer e melhor ainda de ouvir agora, tanto tempo depois, tão

bonito. Em alguns trechos, não conseguimos recuperar 100% a qualidade do

áudio, mas preferi deixar assim, porque foi assim que foi feito. Nana Caymmi,

Zezé Motta, Fafá de Belém, Beto Guedes e os coros coloriram a paisagem.

Tenho saudade e guardo com muito carinho esses momentos. Tô muito feliz

com esse disco, que além de tudo, estréia meu selo, Nascimento, por onde, aliás,

lanço no ano que vem, a trilha do balé feita para o David Parsons.85

Uma breve mirada nesse texto e nas trilhas produzidas para esses espetáculos

nos colocam diante de tesouros produzidos por essas parcerias. Tais tesouros, por vezes,

apenas se insinuam na carreira discográfica de Milton Nascimento. Tomemos o

exemplo da canção Maria Maria, um dos clássicos de seu repertório com Fernando

Brant. Atentar para os fios de sua trajetória nos conduzirá a um manancial de histórias.

85

Encarte do álbum duplo Trilhas de balé – Maria Maria e Último Trem.

187

Tornou-se costume a presença da canção Maria Maria no fechamento dos shows

de Milton Nascimento, quando seu público o aplaude entusiasmadamente, incentivando

seu retorno ao palco, e o prolongamento, mesmo que por alguns instantes, da magia e da

comoção que construíram através da interação promovida por sua música. Por anos,

Milton manteve o ritual, Maria Maria vinha na última hora. Em meio aos “aê, aê, aê”,

o artista e seu público compartilhavam momento empolgante: a festa de um povo que

“possui a estranha mania de ter fé na vida”. Nessa atmosfera, todos se reconhecem um

pouco na mulher Maria Maria.

A versão mais conhecida de Maria Maria foi gravada no álbum Clube da

Esquina nº 2, de 1978. A canção de Milton narra a história de mais uma anônima da

sociedade. Seu nome? Maria, que, de tão comum, apoia-se no seu duplo, como para

antecipar-se à pergunta: “Maria de quê?”. “Maria de nada: Maria Maria”. Poderia ser

qualquer uma dessas tantas mulheres que comungam das mesmas vivências e

sensibilidades experimentadas num cotidiano assinalado pela exclusão social. Esta

Maria poderia ser uma mulher dos muitos sertões brasileiros, uma retirante ou mais uma

habitante de favelas de grandes centros urbanos.

As linhas de sua história sugerem um drama, não fosse a coragem para

enfrentamentos uma das marcas de Maria Maria. Pela sua maneira de encarar a vida,

torna-se mulher guerreira. Das experiências de dificuldades, produziu sabedorias nas

formas de lidar com o cotidiano. Maria Maria é daquelas pessoas capazes de misturar “a

dor e a alegria”, que “possui a estranha mania de ter fé na vida.” É mulher-fera, como a

onça personagem tomada do universo rosiano para lhe inspirar o nome. Se nessa canção

a referência não se faz clara, numa outra parceria da dupla, viria a certeza: “Senhora de

fogo/ Maria Maria/ Onça verdadeira me ensina a ser realmente o que sou”. A canção

que abriga esses versos também dá nome ao disco: Yuaretê, de 1987, citação direta à

obra de Guimarães Rosa86

. Atentemos para Maria Maria:

Maria, Maria

É um dom, uma certa magia

Uma força que nos alerta

Uma mulher que merece viver e amar

Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria

É um som, é a cor, é o suor

86

“Meu tio o Iuaretê” In: Guimarães Rosa. Estas Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

188

É a dose mais forte e lenta

De uma gente que ri quando deve chorar

E não vive apenas aguenta

Mas é preciso ter força

É preciso ter raça

É preciso ter gana sempre

Quem traz no corpo a marca

Maria, Maria

Mistura a dor e alegria

Mas é preciso ter manha

É preciso ter graça

É preciso ter sonho sempre

Quem traz na pele essa marca

Possui a estranha mania de ter fé na vida

A canção que evoca a mulher guerreira tem melodia vibrante. O arranjo assinado

por Milton Nascimento na versão para o álbum Clube da Esquina nº 2 salienta essa

característica, que traduz o espírito dessa Maria, constituído num casamento perfeito

entre música-arranjo-letra. Nessa atmosfera, a voz de Milton Nascimento é adornada

por véu de emoção entretecido no coro de vozes composto pelo próprio Milton, Novelli,

Flávio Venturini, Vermelho e Lô Borges. Ao cantar a história de Maria Maria, Milton

explora os tons mais agudos da voz, como se a força dos pulmões insuflasse vida àquela

personagem. Esse fonograma eterniza o instante em que Milton Nascimento é a própria

Maria Maria.

Mesmo sendo tão conhecida do grande público, a canção Maria Maria, no texto

de Milton Nascimento sobre as trilhas de balé, guarda curiosidades que acabam por

revelar importantes experiências e parcerias do artista. Ou seja, o lançamento dessas

trilhas ara os terrenos abertos por memórias sobre a trajetória de Milton Nascimento, e

isso a partir de ação promovida por ele próprio através de seu selo. Nessa trilha de balé,

a canção Maria Maria não tinha letra, aparecia apenas como tema instrumental

embalado pelos falsetes e pelo violão de Milton, arautos de outras canções que nos

conduziriam ao universo daquela personagem. Além das canções, textos recitados por

Milton e Nana Caymmi ajudavam a compor a narrativa. Já na primeira faixa, traçavam o

perfil da personagem em texto de Fernando Brant lido por Milton:

Maria, Maria, um simples nome de mulher. Corpo negro de macios segredos,

olhos vivos farejando a noite, braços fortes trabalhando o dia. Memória da longa

desventura da raça, intuição física da justiça. Alegria, tristeza, solidariedade e

solidão. Mulher-pantera, fera, mulher-vida, vivida. Uma pessoa que aprendeu

189

vivendo e nos deixou a verdadeira sabedoria: a dos humildes, dos sofridos, dos

que têm o coração maior que o mundo.87

No decorrer desse texto, temos alguns dados da história de Maria Maria: negra,

moradora do Jequitinhonha, pobre na infância, casada precocemente (aos 14 anos),

viúva aos 20 anos, mãe de seis filhos. Em entrevista sobre o espetáculo, Fernando Brant

lembra que sua inspiração foi uma personagem real, a Maria Três Filhos, que havia

morrido no ano anterior ao do lançamento do espetáculo que, na verdade, contava “a

vida, a morte e de novo a vida – dela ou de qualquer outra Maria.”88

Maria Três Filhos

inclusive foi título de uma parceria de Milton com Fernando Brant gravada em 1970.

Construía-se assim uma personagem fictícia que servia de metonímia do povo

brasileiro, para contar a história de tantas outras mulheres e, no limite, do próprio

Brasil. Nesse cenário, os sons produzidos por Milton Nascimento e sua trupe dão

consistência à personagem, ligando os fios da trajetória pessoal de Maria Maria às

memórias do segmento ao qual pertence, o dos afro-brasileiros. Por vezes, trazem à

tona, através dos arranjos, referências a religiosidades afro, como no pot-pourri Santos

católicos x candomblé, que reúne canções como Raça, Tema dos Deuses, S. Francisco

(Francisco), Sentinela. Noutras, vem a denúncia de martírios, traduzidos num rearranjo

da canção Lília, interpretada por Milton Nascimento e Nana Caymmi. Somos

conduzidos à melodia de Lília pelos falsetes de Milton. Mas, aqui, a canção, que já

havia aparecido em discos anteriores, como no Clube da Esquina, contou com novos

ingredientes que ajudariam a situá-la na trama em que agora estava inserida. Junto da

voz de Milton, vinham choros e gemidos pela voz de Nana Caymmi. Ao fundo, sons

que lembram palmadas e chibatadas. Tais recursos aplicam dor e angústia ao ambiente e

nos põem diante de uma característica desse espetáculo: a posição de fronteira entre

passado e presente, lugar de produção de identidades através de memórias, referências

às heranças culturais de um povo, guardadas e gestadas também em sua musicalidade.

As resistências dos escravos se entrelaçam com as dos negros do cotidiano atual. Em

Maria Maria, a amálgama entre textos e sons nos conduz a lembranças da cozinha, dos

afazeres do dia-a-dia, atos que cotidianamente nutrem identidades. Cotidiano que

inspirou artistas a produzir obras como esta.89

E nesse campo erguido numa fronteira

87

Encarte do álbum duplo Trilhas de balé – Maria Maria e Último Trem, p.1. 88

Fernando Brant Apud José Márcio Penido. “Carne e espírito” (Seção Show, Revista Veja, 07/04/1976) 89

Para acessar uma reflexão mais detida na trilha de balé Maria Maria ver: Mateus de Andrade Pacheco.

“Maria Maria: de retalho em retalho um retrato de Brasil”. In: Anais do V Simpósio Nacional de História

Cultural. Brasília, 2010. (on line)

190

temporal, onde partículas de hoje se misturam com as de ontem, produz-se outro tempo,

que não podemos bem identificar, pois é uma ideia próxima à suspensão.

Entre o autor e o seu texto existem caminhos, existem tempos. O

caminho que separava Rosa do texto rosiano foi o da poesia. Os tempos

foram os do Sertão. João Guimarães Rosa trilhou o caminho da poesia

para poder sair de todos os existentes caminhos. Os tempos do sertão

fizeram com que ele escapasse do tempo. Porque esse sertão, construído

com poesia, não era da ordem da geografia.90

As palavras do escritor moçambicano Mia Couto sobre Guimarães Rosa, este

último uma das fontes de inspiração para Milton Nascimento e sua trupe, nos servem

para traduzir o sentimento provocado por essa obra miltoniana e outras de suas

experiências artísticas, como as que presenciamos em nossos trajetos. Insinua-se na

música de Milton Nascimento um tempo mítico, concebido em travessias que criam

lugares imaginados a partir de centelhas da realidade. Nessas travessias, os encontros

com vozes como as de Fafá de Belém e Beto Guedes na trilha de Maria Maria. E Nana

Caymmi, cuja voz perpassa todo o disco, ora como narradora, ora em duetos, ora como

solista. Uma das intérpretes preferidas de Milton Nascimento, a interlocução entre o

artista e Nana é um dos elementos sublinhados em Maria Maria.

Numa das peças que compõem a trilha do espetáculo, a canção Boca a boca

(Milton Nascimento/Fernando Brant), uma interpretação pungente para o drama que se

encarna na voz de Nana: a morte de Maria, evento emoldurado em poesia crua e som

áspero:

É na carne, é no osso

A dor vai penetrando

Quem sentirá tanto como eu minha agonia?

Delírio de velha

Visão ou lembrança

Ah, como eu fui jovem

E amei tanto a vida

Estou sozinha na cama fria

Meu corpo arde na lenta espera

Estou sozinha na cama e na vida

Estou sozinha diante da morte

É o medo, é o frio

Nas juntas, nos nervos

90

Mia Couto. “Um caminho feito para não haver chão”. (Apresentação) In: João Guimarães Rosa. Antes

das Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 7.

191

Quem me dará força

Para ver o fim do pavio (de tudo)?

Eu tenho fé no mundo e nos homens

Eu tenho fé nessa louca aventura

Eu quero sim esse ar que me falta

Eu quero sim respirar boca a boca, amar

É na carne, é no osso

A dor vai penetrando

Quem sentirá junto com você sua agonia?

Delírio de velha

Visão ou lembrança

Ah, como foi jovem

E amou demais a vida

Acreditou no mundo e nos homens

E teve fé nesta louca aventura

Ela quis sim esse ar rarefeito

Ela quis sim respirar boca a boca, amar

E é boca a boca

Que a nova se espalha,

Quem conheceu sabe

Era uma santa mulher

Ah, sirva sua dor de exemplo e sol

Ah, sirva como luz na noite escura

Num clima sombrio e tenso, Nana Caymmi prolonga os versos, desafiando os

limites da voz para viver aquela agonia. Diante da morte, apenas a morte. Cena dura

traduzida naquela atmosfera. Numa dinâmica, a voz volumosa converte-se em fiapo,

canto que, aos solavancos, caça as últimas partículas de ar, a agonizante nota, emissão

do traço que colore a imagem do “fim do pavio”. Voz de choro, pavor diante da entrega

ao irremissível desconhecido. Canto fúnebre em tom de dor pela própria morte. Voz que

se agarra as últimas centelhas de vida: “Eu quero sim esse ar que me falta/eu quero sim

respirar boca a boca, amar”.

Por vezes, as estrofes cantadas por Nana Caymmi são intercaladas por outras,

interpretadas por coro de vozes masculinas, onde o timbre de Milton Nascimento

sobressai. A mudança da pessoa verbal nos versos cantados por esse coro – estrofes em

terceira pessoa –, indica sua localização diante desse drama. Tais vozes pairam sobre a

atmosfera, emitem lamento, mas também a calma dos que não são protagonistas daquela

cena. Modulam sua dor em zona mais confortável. São narradores do drama de Maria

192

ou talvez fantasmas que reverberam os pensamentos que a atormentam em seu leito:

“Delírio de velha/visão ou lembrança/ah, como foi jovem/e amou demais a vida.”

E quando parece não caber mais dor, Nana Caymmi mergulha em vocalises que

dão cores ainda mais pesadas à atmosfera ali constituída. Um canto do âmago, grito

lamurioso arrancado pelas últimas forças dessa Maria às portas do fim. E nesse lugar de

fronteira, o lamento se converte em fio de esperança emitido pelo coro envolto pelos

gemidos daquela mulher: “Ah, sirva sua dor de exemplo e sol/Ah, sirva como luz na

noite escura.” Sua dor propagava como canto de alerta. E a vida de Maria só teria valido

a pena se fosse exemplo produtor de novos rumos tecidos pela mesma “fé nessa louca

aventura”.

Não podemos esquecer que Maria Maria foi um espetáculo de dança, em que

cenários, coreografia, iluminação e figurino também eram ingredientes que compunham

sua trama.91

Na conversa sobre a experiência de fazer o roteiro para os espetáculos para

o Grupo Corpo, Fernando Brant brinca e instiga minha atenção para essas citações de

personagens no universo de canções dele e de Milton Nascimento:

E no Maria Maria o seu Francisco está de volta!Porque o parceiro da Maria,

não tem letra, mas a música chama Francisco, o pas-de-deux, tem a Maria e o

Francisco [risos]. Em volta tem as Marias também, porque as Marias estão

sempre aí. [risos] São Marias com que eu convivi na minha infância e na minha

juventude. Porque eu morei em Diamantina, meu pai era juiz lá, então as

pessoas que trabalhavam lá em casa, todas elas eram Marias, e vinha, a

maioria delas, de Itamarandiba. Depois, quando a gente mudou para cá [Belo

Horizonte], elas vieram com a gente. Quer dizer, essa relação da minha

infância com esse pessoal humilde, pobre, preto e maravilhoso, que me ensinou

muito. Eu acho que eu aprendi muito na minha vida nessa convivência com

essas pessoas.

Através da fala do compositor, espreitamos o quanto esses personagens saltam

de um canto para outro, por vezes assumindo feições bem específicas, próximas às

pessoas que os inspiraram, noutras se comunicando com muitos outros seus Franciscos

e Marias que passeiam pelo nosso cotidiano. Por essas memórias, as canções de Milton

Nascimento e Fernando Brant nos afetam em reconhecimentos. Experiências como esta

sugerem muitas outras parcerias, diálogos desses artistas com quem produziu essas

91

Em tese de doutorado em que se detém na trajetória da bailarina Denise Stutz, Lilian Vilela traz

importantes reflexões sobre o cenário da dança, contemplando também esses dois espetáculos do Grupo

Corpo – Maria Maria e Último Trem –, nos quais Denise Stutz atuou. Cf. Lilian Freitas Vilela. Uma vida

em dança: Movimentos e percursos de Denise Stutz. Tese de doutorado. Faculdade de Educação.

Universidade Estadual de Campinas, 2010.

193

peças de balé, com os músicos, compositores e demais letristas. Diálogo que faz uma

canção nascer da conversa entre caneta e violão, para posteriormente se adornar de

magia por arranjos manipulados por mãos hábeis como as de Wagner Tiso e por

contribuições de grandes músicos.

Nessas conversas entre amigos, Milton se valeu de técnicas criativas e até

mesmo inusitadas para elaborar algumas canções, como O que foi feito devera (De

Vera), peça intrigante de sua obra que promove o encontro de alguns de seus maiores

parceiros, tanto na feitura dos versos quando na gravação em estúdio:

- Eu fiz a música, O que foi feito devera, e mandei uma música para o Márcio

Borges e a mesma música para o Fernando Brant, sem nenhum saber que o

outro estava escrevendo, nem nada. Aí teve um dia que chegou a letra do

Fernando Brant. Aí eu li aquilo e falei: “Nossa Senhora!”. Aí fiquei esperando

a do Márcio Borges. Quando chegou, acho que era minha vida que tava ali

naquele pedaço, “o cara que eu era voltou, depois de ter passado por alguma

coisa, mas voltou.” E a outra antes tava perguntando o que fazer, o que foi

feito, aquilo tudo. Teve um que ficou bravo depois porque eu mandei a música

para os dois sem falar [risos]

- Juntou e casou muito bem as duas.

- Meu Deus, eu acho que se eu tivesse falado: “Olha, faz uma coisa assim,

assim e outro assim”, não saía.92

A canção foi gravada no disco Clube da Esquina nº 2, de 1978, e contou com a

participação de Elis Regina. A intérprete que sempre visitou o território miltoniano

através de canções feitas especialmente para ela, agora se ‘esquinava’ oficialmente. Elis

não iria sozinha para essa aventura, carregaria consigo sua trupe de músicos93

e seu

grande interlocutor na elaboração da sonoridade de seus discos naquele momento, o

pianista César Camargo Mariano, que ainda assinou os arranjos e a regência dessa

gravação.

Céu limpo, horizonte sem tamanho. De longe se avista o agrupamento de

pássaros num voo-balé de sincronia paralisante. Num rasante, risco no céu. E aqueles

pássaros, antes distantes, pairam perante a face. Tempo de uma piscada. Seguem numa

curva. Para trás, apenas a brisa leve que roça a pele, rastro da experiência produzida por

esses seres que têm asas. A cena imaginada nos serve para expressar as sensações

provocadas pelos vocalises masculinos que introduzem a canção: Novelli, César

92

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit. 93

Banda de Elis Regina naquele momento: César Camargo Mariano (teclados e arranjos), Nathan

Marques (guitarras e violão), Crispin Del Cistia (guitarra), Dudo Portes (bateria e percussão), Fernando

Sizão (baixo).

194

Camargo Mariano, Nathan Marques, Crispin Del Cistia, Fernando Sizão, Milton

Nascimento e José Luiz. Nessa gravação ainda temos as presenças de Lô Borges e

Gonzaguinha nos vocais. Em nosso grupamento de pássaros, o anúncio do encontro das

turmas de Milton e Elis. Aquela massa de vozes que aos poucos se avoluma e depois se

vai abre passagem para o canto aguerrido da intérprete. Nessa primeira parte da canção,

Elis mergulha em tons graves como ave de rapina rumo ao chão e perfura o ambiente

em agudos angustiantes, lâmina onde afia palavras num canto metálico, instrumento das

memórias das quais se faz mensageira. “O que foi feito amigo/ De tudo que a gente

sonhou”. Em primeiro plano, a voz, ladeada pelo violão, que, em notas firmes, despeja

comoção na notícia cantada por aquela narradora-intérprete. Pela maneira de cantar,

enfatizando cada palavra, Elis desenha seus gestos em melodia. Por instantes, quase

podemos visualizar suas mãos traçando a força do seu canto no ar, olhos entreabertos,

proclamando o estado de quase transe, lugar onde capta as sensações que aplica à

canção. Nesse horizonte aberto, a percussão goteja sinais de alerta, atenção à palavra

cantada. Por vezes, aquela massa de vozes ronda Elis Regina, como pássaros

mensageiros que ecoam o que sua voz emite: “Se muito vale o já feito/ Mais vale o que

será”. Aos poucos, as sensações se adensam. O canto visceral de Elis enfatiza a

reivindicação de um lugar de memória para certas histórias: “E o que foi feito/É preciso

conhecer/ Para melhor prosseguir”. Mas quais histórias? Em seu solo poético, a canção

instiga: o que foi feito “devera”, de verdade? O som do órgão se esparrama pelo

ambiente. Ao longe, vocalises miltonianos. Os terrenos da memória são revolvidos.

De repente, apenas o violão. Em sua frase melódica, chora a lembrança de outra

canção e nos encaminha para novo ambiente, agora tomado pelo volume da percussão.

Sob o véu percussivo, Elis explora ao máximo sua potência vocal, emitindo partículas

de desespero em vocalises. A voz forte, vinda de longe, detona, mais uma vez, a

lembrança da canção já citada pelo violão, Vera Cruz, parceria de Milton com Márcio

Borges. Estamos diante de um relato sobre as terras de Vera Cruz, o Brasil. Tudo nessa

ambiência nos prepara para outro evento, a entrada triunfal do canto-alerta de Milton

Nascimento, voz solta que ressoa: “Alertem todos os alarmas/ que o homem que eu era

voltou”. Nessa passagem, permanece a forte marcação percussiva, como se o volume

daquele som desenhasse a imagem do quão grande era aquela “tribo toda reunida”,

espécie de festa, celebração-lamento em nome de tantas memórias. Vozes de

195

indignação, portadoras de sensibilidades sobre uma época. Performance envolvente, que

toma os ouvidos e provoca a atenção.

A voz de Milton enche o ambiente numa dinâmica onde projeta sua face

dramática. Ao fundo, num canto-berro, buscado nas entranhas, Elis propaga os versos

cantados por Milton. Vozes dançantes, que intuem os percursos uma da outra e, por isso

mesmo, podem se atirar em voos ousados, partir em direções distintas, para logo se

ladearem e, num prolongamento de frase melódica, colherem a mesma nota e, nesse

gesto, tornarem-se outro timbre, fruto desse encontro, que da beira do abismo lança o

grito: “Nem vá dormir como pedra/E esquecer o que foi feito de nós.” À espera por seus

ecos:

[primeira parte]

O que foi feito amigo

De tudo o que a gente sonhou

O que foi feito da vida

O que foi feito do amor

Quisera encontrar

Aquele verso menino

Que escrevi há tantos anos atrás

Falo assim sem saudade

Falo assim por saber

Se muito vale o já feito

Mais vale o que será

E o que foi feito

É preciso conhecer

Para melhor prosseguir

Falo assim sem tristeza

Falo por acreditar

Que é cobrando o que fomos

Que nós iremos crescer

Outros outubros virão

Outras manhãs plenas de sol e de luz

[segunda parte]

Alertem todos os alarmas

Que o homem que eu era voltou

A tribo toda reunida

Ração dividida ao sol

De nossa Vera Cruz

Quando o descanso era luta pelo pão

E aventura sem par

Quando o cansaço era rio

E rio qualquer dava pé

E a cabeça rodava

196

num gira-girar de amor

E até mesmo a fé

Não era cega nem nada

Era só nuvem no céu e raiz

Hoje essa vida só cabe

Na palma da minha paixão

De Vera nunca se acabe

Abelha fazendo o seu mel

No canto que eu criei

Nem vá dormir como pedra

E esquecer o que foi feito de nós

Nos discursos poético-melódicos dessa canção, várias são as lembranças

guardadas nas dobras do tecido da memória, algumas remetidas ao plano geral, o

momento político brasileiro, por exemplo, outras ao plano íntimo, revelando histórias

sobre aquelas parcerias. Por vezes se ergue a ponte onde se vislumbra a atuação desses

artistas nas variadas esferas do cotidiano brasileiro.

Assim, entrevimos no discurso um caminho que nos conduz a maneiras de lidar

com memórias de um passado, nesse caso, mais especificamente, atrelado à ditadura

militar. Diante de um horizonte de abertura política, a canção traduz a necessidade de

seguir adiante, mas sem se esquecer dos caminhos percorridos até ali. Num cenário

político de abertura gradual, lenta e até desconfiável, fazia-se necessário nutrir as

memórias de um passado recente com episódios de resistências, maneira de celebrar as

lutas pela liberdade. Aliás, não se podia deixar de lado um passado sem conhecer o que

dele ainda estava em solo oculto. Digo isso pensando nas vítimas do regime autoritário

e situações de torturas e mortes não esclarecidas. Vítimas essas que, muitas vezes,

ficaram estigmatizadas ao serem enquadradas como bandidos e terroristas pelo regime

autoritário e por aqueles que o apoiavam. Era preciso mudar o foco para valorizar esses

personagens. Através de um novo enquadramento da memória94

poderiam brotar heróis

de onde antes só se viam baderneiros. Um dos lugares para se fazer esse deslocamento

de foco seria a música. E, nesse ponto, a estridência das vozes de Milton e Elis em O

que foi feito devera (de Vera) se converte num monumento, gesto de demarcação de

memória. Em entrevista à Regina Echeverria e Tárik de Souza, Milton Nascimento é

questionado sobre a “predominância de agudos, de vozes quase gritadas” em seu disco

Clube da Esquina nº2. Assim, o cantor-compositor responderia:

94

Michel Pollak. “Memória e identidade social.” Estudos Históricos. Vol. 5, n.10. Rio de Janeiro: 1992,

p. 200-212. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/104.pdf, p.6.

197

Não foi nada programado. Mas só pode ser resultado do que a vida está nos

levando a fazer. Principalmente na música “E Daí” que fiz para o filme de Ruy

Guerra e Nélson Xavier (“A Queda”) e “O Que Foi Feito de Vera”, que canto

com a Elis. No fundo, acho que é um desabafo, um botar para fora. Eu sinto

vontade de gritar. Sabe quando você começa a falar e no final tem a sensação de

que não disse tudo? É isso que acontece com a minha voz. Tem horas que

explode, de uma maneira ou de outra. É uma forma de dizer que estou aqui. Não

só eu, mas todo mundo, os que estão fazendo e os que estão ouvindo. Então sai

aquele grito, aquele que a gente guarda no cotidiano. Não dá pra segurar, é

muito mais forte do que eu. A gente canta e canta as coisas que estão engolidas,

engasgadas no peito, no nó da garganta. Eu já chorei muitas noites no meu

íntimo, pelas coisas que vejo – nas ruas, nas pessoas que sofrem na carne e por

elas, eu e meus amigos cantamos nossas esperanças, nossa amizade e buscas.

Aos trancos e barrancos, como exige um país como o nosso e com a “desajuda”

da minoria massacrante.95

Ao nos determos em algumas passagens da canção, nos deparamos com citações

que evocam versos de outras, espécie de memória que foca na esfera íntima, de

produções gestadas em parcerias capazes de criar um território de referências, arca de

imagens poéticas que desvelam as sensibilidades sobre o cotidiano. Arca de uso

comum, pois aqueles letristas que acompanharam Milton Nascimento partilhavam

vivências e poesias que adensavam seus traços.96

Assim, na segunda parte da canção

temos citações de imagens já projetadas em outras peças da parceria de Milton e Márcio

Borges: “Num gira-girar de amor”. O verso traz o eco de Gira, Girou, da mesma safra

de Vera Cruz: “Gira, girou/A roda de palmas saudou meu amor/Roda girou/Perdida no

longe uma voz se calou/ Gira, girou”. Além de produzir laços entre canções,

continuações, o recurso nos coloca diante da criatividade artística, capaz de rearranjar

ingredientes já usados e, assim, fabricar novo sabor, temperado de memória. Nessa gira,

vem a menção a outra canção, Fé cega, faca amolada, parceria de Milton Nascimento e

Ronaldo Bastos: “E até mesmo a fé/ Não era cega nem nada/ Era só nuvem no céu e

raiz.” Essa canção que se ergue como um canto de insatisfação com o cenário político –

“Agora não pergunto mais aonde vai a estrada/ Agora não espero mais aquela

madrugada/Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada/ O brilho cego de

paixão e fé faca amolada” –, além de remeter à produção interna, ao cancioneiro clube-

95

Milton Nascimento em entrevista à Regina Echeverria e Tarik de Souza. “É preciso gritar”. Revista

Veja (01/11/1978) 96

Na entrevista que realizei com Fernando Brant, perguntei sobre esses diálogos com os demais letristas,

se tinham o hábito de mostrar um para o outro as letras que elaboravam, se pediam alguma opinião.

Dessas indagações, Fernando me revelou uma curiosidade, mais um desses termos de obras feitas entre

amigos: “Algumas vezes, muitos anos depois, principalmente o Ronaldo, o Marcinho e o Murilo Antunes,

criaram um negócio chamado Socorro Costa. Socorro Costa era um caminhão de reboque de carro. Então,

às vezes um deles falava: “Ih, tô com dificuldade aqui, eu quero Socorro Costa.” Eles iam lá e às vezes

nem entravam como parceiros. Eu mesmo não participei do Socorro Costa não” [risos].

198

esquinista, salienta a atuação do grupamento de Milton Nascimento naquele cenário: “O

homem que eu era voltou”. Em sua bagagem vinham tanto experiências colhidas na

intimidade quanto no cenário político e social. Travessias pelo plano macro e micro,

onde se engendram relações e parcerias. Talvez por compartilharem de tantas

experiências, a dupla de letristas escolhida por Milton para compor O que foi feito

devera (de Vera), Fernando e Márcio, tenha feito versos em tão nítida sintonia, mesmo

sem saber do projeto de seu melodista brincalhão.

Memórias nessa canção também vêm em forma de som, revelando percursos,

encontros e parcerias de Milton Nascimento. Por exemplo, a participação de Elis Regina

e a citação de Vera Cruz nessa gravação. Em entrevista da época, Milton Nascimento

foi questionado sobre um recurso utilizado no Clube da Esquina nº 2, “... superposição

de arranjos. Muitas músicas novas têm pedaços das antigas, por quê?”

Cada uma das músicas tem uma história. “San Vicente” e “Credo”, por

exemplo. Porque “San Vicente” foi a primeira música minha que ouvi toda uma

platéia cantar. Aconteceu em 1972, logo depois do lançamento do primeiro

“Clube da Esquina”, em Niterói. E de repente, todo lugar que eu ia, pediam para

cantar “San Vicente”. Essa música se tornou uma espécie de hino. E o “Credo”

também tem a mesma idéia – que é “vamos pra frente, todo mundo”. Nesse caso

usei “San Vicente”, dando a ideia de povo, cruzado com o “credo”. Em “O Que

Foi Feito de Vera”, a história se repetiu. Tinha que ser a Elis Regina cantando

comigo porque foi a primeira pessoa a gravar uma música minha e também a

primeira a cantar “Vera Cruz”. No fundo, é como se eu estivesse fazendo um

flash-back, jogando o passado para o presente e para o que vem.97

Vera Cruz foi gravada por Elis Regina em seu álbum Elis como & porquê, de

1969. No mesmo ano, a canção comporia o repertório de Courage, o primeiro disco de

Milton voltado para o mercado norte-americano. Retomando a fala de Milton

Nascimento, o que pressentimos na canção O que foi feito devera (de Vera), integra o

espírito que entremeia o disco Clube da Esquina Nº 2. Nesse álbum, as canções se

faziam linhas que (re) arranjavam memórias para se contar histórias a partir do território

da música. Nas lembranças atuais de Milton Nascimento, a canção ainda se tornou uma

espécie de monumento a Elis: “Eu nunca cantei a parte do Fernando, sempre foi a

Elis.”98

Se nesse encontro entre Milton Nascimento e Elis Regina visualizamos a ponte

entre estética e reflexão política, podemos ainda captar nessa performance o anseio dos

dois artistas por descobrir diferentes nuances de seu talento. Não fizeram do sucesso dos

97

Milton Nascimento em entrevista à Regina Echeverria e Tárik de Souza. “É preciso gritar”. Op. cit. 98

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

199

tempos dos festivais entraves para novos voos. Estavam ali as mesmas vozes daqueles

tempos, lançadas, não obstante, em novos percursos, espécie de lapidação do canto,

sempre sintonizado e em diálogo com a temporalidade em que estavam inseridos. De

certa forma, a canção ainda produzia discursos dos encontros das trajetórias desses dois

artistas, sempre em diálogo criativo/afetivo.

Elis e Milton sonhavam um dia fazer um disco juntos. O projeto não se

concretizou, a amiga partiu muito antes.99

Não era mais possível que as canções fossem

interpretadas por Elis, mas a lembrança da amiga permaneceu no repertório de Milton

Nascimento. Uma das canções em que o cantor homenagearia Elis seria Essa voz,

parceria com Fernando Brant, gravada no disco Änïmä, de 1982, ano da morte da

cantora:

Não se apaga

Não se cala essa voz

Não se esquece

Permanece essa voz

Voando livre no espaço

Essa voz

Eterno canto de esperança essa voz

Ela é humana e é divina, essa voz

Nossa amiga não parou de cantar

Ela é a voz de todos nós

Não se apaga, não se cala a mulher

O seu sorriso, o seu sonho, a fé

Sua coragem, sua enorme paixão

A vida inteira lapidando a canção

Canção de vida e amor vai ficar

Com as pessoas que não param de ouvir

A sua voz, a voz

Que é a voz

De todos nós

Nos versos, prevalece o espírito inquieto da Pimentinha, sempre pronta a se

desafiar em voos mais ousados, na busca constante pela perfeição em seu ofício de

cantora. Seu canto permaneceria, fosse através de sua obra ou de outras vozes que

beberam de sua música, matriz de mistérios na arte de cantar. Elis Regina, voz de

inspiração para tantas outras vozes e para o próprio Milton Nascimento. A inquietude

dos versos se alastra na ambiência sonora, preenchida pelo som do violão. Numa

sobreposição de sons, o choro alongado em notas agudas é arrancado do instrumento

por Milton, apunhalando aquele lugar de onde o artista modula seu canto, mistura de

99

Cf. Mateus de Andrade Pacheco. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção.

Op. cit.

200

dor e celebração. Tudo ali tem um quê solene, e a bateria de Robertinho Silva, junto

com a percussão de Frank Cólon, tratam de despejar mais tinta sobre a paisagem

harmônica. De repente, o gemido da guitarra de Hélio Belmiro. Uma nuvem densa de

sons é manipulada por Wagner Tiso através do sintetizador Oberheim, programado por

Rick Pantoja. Numa dinâmica acelerada, as notas firmes do baixo elétrico de Paulinho

Carvalho vibram como se caçassem o caminho onde se aprisionasse num nó o coração.

A atmosfera instalada é atravessada por uma tempestade de sensações que não se pode

bem definir, mas que são experimentadas através do canto do mito ali homenageado.

Sensações que servem ainda para exprimir a dor de sua perda. Ao fim dos versos,

Milton Nascimento convoca os “primos” que habitam sua garganta para emitir vocalises

emocionantes. Aquele emaranhado de vozes se projeta pelo espaço, arremessando

lamento em diferentes tonalidades. Essas variações miltonianas passeiam nas bordas do

ambiente, circulando o centro da cena sem ocupá-lo, com a feição de um canto

longínquo. Junto de sua voz, avulta-se a conversa cada vez mais envolvente entre

percussão e bateria. Os ares tomam feições pesadas. Evocação, canto de chamada. As

vozes dançam, rondam o vazio, criando o espaço para a chegada da próxima, coroada

no centro desse turbilhão sonoro: “O que foi feito amigo/ De tudo que a gente sonhou/

O que foi feito da vida/ O que foi feito do amor”. Aos poucos esse ambiente vai se

desfazendo e, por instantes, ouvimos somente ela, a voz de Elis Regina.100

E assim Elis

se eternizava na voz de quem a conhecia interiormente e lhe tocava o coração em cada

verso.

Voltando à experiência do disco de 1978, nele, Milton Nascimento se remetia à

experiência do Clube da Esquina, de 1972, mas agregava muitos outros convidados,

forma de renovar aquele território e ao mesmo tempo mostrar que o clube era casa

aberta, de fronteiras indefinidas. Assim, chegavam figuras como Elis, com toda a sua

trupe, Chico Buarque, Flávio Venturini, Murilo Antunes, Joyce, Grupo Tacuabé.

Alguns dos interlocutores apenas se insinuam em coros, como Gonzaguinha. Fernando

Brant recorda que Gonzaguinha chegou a gravar a primeira parte de O que foi feito

devera num disco próprio: “Única música que não era dele, do pai dele, que ele gravou,

foi essa. Porque ele vivia aqui, né?”101

E ainda pontua sobre esse clube sempre em

100

A voz de Elis Regina foi recuperada do fonograma de O que foi feito devera (de Vera) para aparecer

nessa canção em sua homenagem. Embora o nome de Elis não figure na letra, o canto não deixava

dúvidas sobre a presença da cantora ali evocada. 101

Fernando Brant em entrevista a mim concedida. Op. cit.

201

expansão: “Tem muita gente do Rio que, quando a gente chegou lá, quer dizer, todo

mundo foi agregando, o clube é maior do que parece.”102

Há sempre alguém para se

fisgar em diálogos nessa esquina imaginária.

Nas paisagens atravessadas pela locomotiva de Milton Nascimento, muitas são

as estações, os fios tecidos em parcerias que estabelecem lugares imaginados, caminhos

pelo interior adentro, onde nos deparamos com tipos como seu Francisco, Maria Maria e

ouvimos ressonâncias de gêneros musicais diversos, que nos encaminham para

paisagens estrangeiras e também para outras temporalidades que se insinuam na

tessitura da amálgama musical miltoniana. Essas travessias, estágio de viagem, foram

temas de várias parcerias de Milton Nascimento, parcerias que se construíram a partir de

intimidades, relações entre amigos, onde se cria aquela dicção interna capaz de nos

revelar um pouco de sua concepção artística através de suas expressões: “Falta de

Couro”, “primos”, “Socorro Costa” e tantas outras que se espalham nesse território.

Produções ricas em detalhes, que provocam a atenção e convocam mais um parceiro

para enredar-se em sua trama: o público. Em entrevista com Fernando Brant

conversamos sobre as canções cujos temas versam sobre viagens. Nessa passagem da

entrevista, muito se revela sobre essa temática, mas também sobre o olhar que se

constitui nessa obra tecida em parcerias:

[Mateus]- Um ponto, Fernando, eu vejo que vocês têm muitas canções de

trânsito. Eu falo de atravessar fronteiras, “Encontros e Despedidas”, aquela

“Quem perguntou por mim” – da voz do Milton –, tem também uma da década

de 90, “Janela para o mundo”. Eu acho interessante essa ideia de movimento,

de uma coisa que é de Minas, mas parece que é aberta. Eu queria que você

comentasse um pouco a respeito...

[Fernando Brant]- Aí tá falando o crítico, eu vou fazendo minhas coisas.[risos]

[Eleonora Zicari]- Nem tá pensando nisso, né?

[Fernando Brant]- Mas, é lógico, as coisas que eu vou vivendo...tanto que, na

realidade, o que exemplifica isso é o “sou do mundo, sou Minas Gerais”. Quer

dizer, pé no chão, mas o olho tem que tá olhando tudo o que está acontecendo,

né? Isso aí, eu acho que a base é essa.

Logo que ouvi pela primeira vez essa fala de Fernando Brant me chamou a

atenção a poeticidade da imagem: “pé no chão, mas o olho tem que tá olhando tudo o

que está acontecendo, né?” Uma postura diante da vida que se assemelha à dos

personagens a quem ajudou a dar vida: estar imerso numa identidade, num território,

não impede a inquietude do espírito diante do novo. Essa imagem entremeou algumas

análises produzidas neste capítulo e algumas canções produzidas por esses artistas. 102

Idem, ibidem.

202

Numa delas, a voz paira e se torna mensageira de tudo o que está acontecendo aqui e lá.

Edifica pontes, sem esquecer seu lugar de fala, o Brasil. Refiro-me a Quem perguntou

por mim, parceria de Milton Nascimento e Fernando Brant, gravada no disco Encontros

e Despedidas (1985), cujo espírito é nutrido por esse estado de constantes viagens:

Quem me chamou

Me procurou

Quem quis ouvir minha voz

Quem escreveu

Quem perguntou por mim

Quem falou e chorou

Quem me telefonou

Seus dramas contou

Pois se sentia sozinho

É meu amigo

É isso que eu tenho no mundo

Em qualquer lugar

Moram no Rio

São Paulo e Salvador

Em Barcelona estão

Escrevem de Paris

Roma e Xangrilá

É bom assim

Ser a voz que alegra alguém

Além do oceano

Além das nações

A brasileira voz

Que se emociona

Que acredita e

fala e vive o humano

Amor

No princípio, o piano de Wagner Tiso. A maneira como suas mãos pesam sobre

as teclas do instrumento imprime ênfase a cada nota. A fala do piano caça uma voz,

aquele canto de chamada. Despertado de seu sono, lança no ambiente vocalise que

dilata seu enigma gestado em falsete. Em seguida, a voz se despe de seus falsetes e

emite os primeiros versos da canção: “Quem me chamou/ me procurou/ quem quis ouvir

minha voz”. As frases, alongadas num decrescendo, são arrematadas em solo grave.

Aquele canto emite comoção. Insinua-se em blues, matriz de encantamento que atrai

cada instrumento ao diálogo, a preencher os espaços oferecidos por essa voz amiga, que

plana, atravessa nuvens orquestrais, deixando florescer a beleza de seu timbre quando

ascende em rodopio. Pairam à volta sensações de liberdade e emoção. E quando a voz

se recolhe, deixa falar o coração: “Que acredita e vive o humano/amor”. Novamente,

veste-se de falsetes, emitindo vocalises que arrematam a canção. Por um instante, esse

canto rompe com as fronteiras das palavras, busca a compreensão a partir de outro

203

plano, o das abstrações, onde navegam sensações. Está aí uma das linguagens possíveis

para se minarem fronteiras e chegar ao coração.

204

CAPÍTULO 3

Pelo ar ou pelo chão, os caminhos levam ao coração

“entre o planeta e o Sem-Fim,

a asa de uma borboleta.”

(Cecília Meireles, Canção mínima)

Olhar disperso e atento. Dança por detrás das lentes dos óculos escuros. Olhos

que se movem, pensando. Olhos que se fixam, quase dizendo: “eu sabia”. Viagem por

pensamentos que uma fala detona. Entrevistar Milton Nascimento foi uma experiência

em que a afinação do diálogo era regida pela atenção aos detalhes. Sempre alerta,

Milton capta o momento exato da entrada de sua fala. Momento, por vezes, escolhido

por ele próprio numa entrevista entremeada de passagens, como num bate-papo. Foi o

que aconteceu no instante em que propus uma questão próxima à que fiz a Fernando

Brant, transcrita ao final do segundo capítulo. Pena que no papel só temos um eco

longínquo do registro em vídeo. Enquanto falo, Milton mexe delicadamente em suas

pulseiras, toma água, balança a cabeça afirmativamente e emenda sua fala ao meu

comentário:

- É interessante, porque esse seu trânsito por vários gêneros musicais também

virou tema de algumas canções do seu repertório, como Para Lennon e

McCartney, Janela para o Mundo, acho que Quem perguntou por mim, que é

aquela do Encontros e Despedidas; e mesmo o tema de viagem é muito presente

na sua obra, no Clube da Esquina tem algumas músicas com essa ideia de

trânsito, de passagem; é bem presente em sua obra essa ideia de atravessar

fronteiras mesmo.

- É, sempre foi. É uma coisa que sempre adorei, e agora estou gostando mais

ainda, sair para os outros países, mas não só para cantar; para conhecer as

pessoas, saber da cultura dos outros países. E tá cada vez melhor. Então, é

assim mesmo.

Conhecer novas paragens, novas pessoas no que elas têm de próximo e distante.

Experiência capaz de avivar os olhos e inquietar o espírito, tanto como ser humano,

quanto como artista. Na verdade, para Milton Nascimento os dois campos não se

separam; se tocam na fronteira do invisível. O contato com músicos estrangeiros

promoveu viagens, como vimos ao longo de nossas reflexões. Viagens de Milton

àquelas sonoridades estrangeiras e a dicção de novos amigos incorporados à sua música.

205

Na década de 70, o cantor-compositor gravou alguns discos voltados para o mercado

norte-americano, além de ter participado de gravações de outros artistas por lá. No

entanto, ainda não havia feito turnês pelos Estados Unidos, questão que seria resolvida

em meados dos anos 80 e no desenrolar dos 90, graças à iniciativa dele próprio e de seu

empresário, Márcio Ferreira, que investiu numa maior profissionalização da produção

da carreira do amigo, fator primordial para incursões, através de shows, por terras norte-

americanas, europeias, asiáticas. A década de 80 ficaria como o momento em que as

turnês por essas localidades se tornaram constantes, a ponto de Milton Nascimento

passar até 4 meses fora do Brasil anualmente.1 Nessas andanças, o cantor-compositor

apresentava seu país, matava um pouco de sua sede por conhecer outras culturas e ainda

se inspirava para compor novas canções. Ainda hoje, é assim pelos palcos do mundo,

como se nota em sua fala transcrita acima.

A presença em turnês pelo exterior lhe renderia maior popularidade e prêmios

internacionais, além de notícias na imprensa brasileira sobre tais feitos. Uma novidade

seria a gravação de seus discos com lançamento simultâneo no Brasil e no exterior. Na

verdade, as gravações dos discos também contariam com essa simultaneidade, pois

passavam a ser gravados parcialmente em estúdios brasileiros e norte-americanos. São

exemplos dessa novidade discos como Yuaretê (1987), gravado no Rio de Janeiro e Los

Angeles, com participações de Paul Simon e Herbie Hancock. Nesse processo, o nome

Milton Nascimento, antes vinculado ao jazz na cena norte-americana, passaria a compor

a galeria dos artistas enquadrados num dos jargões divulgados na década de 90, a World

music, categoria musical bem mais ampla.

À “salada” promovida no disco Native Dancer de Wayne Shorter, na década de

70, Milton Nascimento agregaria novos temperos ao longo de sua carreira. O artista

manteria os laços com seus antigos parceiros do jazz e se aproximaria de outros nomes

dessa vertente, como Sarah Vaughan, que conheceu em meados dos 70. Além de ter

canções de seu repertório gravadas pela diva do jazz, Milton participou de dois de seus

discos, O som brasileiro de Sarah Vaughan (1978) e Brazilian Romance (1987). No

entanto, despertaria o interesse de artistas de outros segmentos musicais, como Paul

Simon, James Taylor e os grupos Yes e Duran Duran.

1 Cf. Maria Dolores Pires do Rio Duarte. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Rio de Janeiro: Record,

2006.

206

Nos anos 90, a imprensa brasileira comemorava os feitos de Milton Nascimento

em solo norte-americano. Seu disco Txai (1990), feito a partir de expedição à Amazônia

e de pesquisa sobre sonoridades indígenas, parecia conversar bem com a mistura tão

bem acolhida na World Music. Na Folha de S. Paulo anunciava-se:

O compositor Milton Nascimento, 48, é o primeiro brasileiro a chegar ao topo

da lista da revista norte-americana “Billboard”. Seu LP “Txai”, lançado no ano

passado no Brasil e há dois meses nos Estados Unidos, está há duas semanas em

primeiro lugar na categoria de álbuns “world music” na parada norte-americana,

monitorada pela “Billboard”. “Txai” bate, por exemplo, “Talkin Blues” de Bob

Marley (em terceiro lugar) e a coletânea “Brazil Classics vol. 3: Forró”,

organizada por David Byrne (11º lugar).2

Meses depois, novos dados surpreendiam: Milton foi eleito pela crítica e pelo

público da revista norte-americana Down Beat como o músico do ano. Seu disco Txai

apareceria em terceiro lugar na mesma revista. Em matéria que saiu na imprensa

brasileira celebrando a premiação de Milton Nascimento, sublinhava-se uma

coincidência: ele alternava com Paul Simon no topo da lista da Down Beat. Simon ficou

em terceiro como melhor músico e seu disco Rhythm of the Saints em primeiro lugar.3

Bem-humorado, Milton Nascimento comentava a disputa: “Ele e eu estamos num

pingue-pongue (...) Mas eu faço parte do disco do Simon. Aí estou ganhando...”4

Na mesma matéria ainda se mencionava um novo diálogo musical, a parceria

com o grupo inglês Duran Duran, motivo para mais confusão em relação às tentativas

de enquadrá-lo em alguma categoria musical: “Sempre gostei do pop. De tudo. O que

me interessa é a música, sem rótulos. (...) Lutei muito aqui fora para não me

catalogarem como músico de jazz. Adoro jazz, mas não tem que ter essa diferenciação.

Música é música.”5 A fala de Milton Nascimento não se dirige apenas ao jazz, mas ao

processo de rotulação em geral. Em entrevista anterior, ao discorrer sobre as

‘redescobertas’ de sua obra pelo público norte-americano, enfatizava:

Primeiro me descobriram no jazz. Em 1974, gravei com Wayne Shorter. Depois

fui descoberto como pop e o trabalho com Paul Simon ajudou nesse sentido.

Agora, na terceira vez, sou descoberto como “world music”. Não gosto desse

negócio de rótulo. Nos Estados Unidos, querem sempre rotular. Quem ouve pop

2 Luis Antònio Giron. “Milton chega ao primeiro lugar na ‘Billboard’.” Folha de S. Paulo. (17/05/1991).

3 Cf. Sonia Nolasco. “Milton ganha o mundo e festeja na neve.” O Estado de S. Paulo. (06/12/1991).

4 Milton Nascimento Apud Sonia Nolasco. “Milton ganha o mundo e festeja na neve.” Op. cit.

5 Idem, ibidem.

207

não ouve jazz. É engraçado por que o que é minha música? Ela não tem como

ser enquadrada.6

Lembranças de um debate que já acompanhamos, mas que reverbera anos mais

tarde em forma de nova etiqueta. A World Music, embora evocasse uma mistura sonora

mais ampla, gerava incômodo, pois acabava por limitar a criatividade pulsante de uma

obra artística, achatando os encontros sonoros e fusões ali promovidos às percepções da

crítica especializada e da indústria fonográfica.7 Mas, à limitação, integrava-se a

divulgação do nome do artista. Milton Nascimento se mostra pouco preocupado com

esses fatores, produzindo suas parcerias internacionais não por razões mercadológicas,

mas por afinidades musicais unidas à curiosidade em relação ao novo. Na verdade, os

sotaques diversos já eram traço bem marcado de seus experimentos musicais,

compondo-se como característica antiga, que o tem acompanhado ao longo da carreira.

Em matéria da Folha de S. Paulo, a fala do artista é contundente em relação à nova

etiqueta: “Não gosto do rótulo ‘world music’, assim como não gosto de nenhum

rótulo.”8

A canção composta em parceria com o Duran Duran, Breath after breath,

contou com a participação de Milton Nascimento em gravação para o álbum do grupo

inglês e para clipe filmado em Buenos Aires e Foz do Iguaçu. A liga desse diálogo,

além da música, passava pelas preocupações atuais de Milton e de outros artistas como

os jovens do Duran Duran: a preservação do planeta, seus recursos naturais e culturais.

É o caso também de Paul Simon e David Byrne, artistas-pesquisadores e divulgadores

da música brasileira, e de outras vertentes, no exterior. Em matéria em que destacam o

sucesso do show de Milton Nascimento em Londres, pontuam: “Ele [Milton

6 Milton Nascimento em entrevista a Luis António Giron. “Milton chega ao primeiro lugar na

‘Billboard’.” Folha de S. Paulo. (17/05/1991). 7 De maneira geral, recebiam essa etiqueta obras onde a crítica especializada norte-americana reconhecia

uma familiaridade através de referências correntes no mercado global – uma sonoridade pop, por exemplo

–, mas que ao mesmo tempo trouxessem uma coloração distinta, buscada em sonoridades locais, de

matizes africanas, asiáticas, etc. Mas o fenômeno World Music é complexo, como menciona Márcia Tosta

Dias em breve reflexão sobre o tema: “Alguns autores defendem a ideia de que a indústria fonográfica,

flexibilizada, “democratizada”, permite a integração de uma produção diferenciada, com acento étnico-

cultural, confirmando o advento da era do pós-imperialismo cultural. Outros concluem que o investimento

na World Music responde simplesmente a estratégias de prospecção de novos segmentos para a produção

e consumo, impingindo-lhe condições de produção fortemente padronizadas.”(Marcia Tosta Dias. Os

donos da voz: a industria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2. Ed. São Paulo: Boitempo,

p. 126.) Focada em processos de globalização do mercado fonográfico, a autora nos apresenta a dupla

face da Word Music. Os diferentes tratamentos dados pela indústria fonográfica às obras de artistas postos

nesse escaninho permitem pensar que suas localizações são diversas se adotarmos o jargão World Music.

Dependendo do artista, constata-se uma aproximação com a face “heroica” da categoria, ou seja, a das

fusões sonoras. Outras obras já tomariam feição de pasteurização musical. 8 Milton Nascimento Apud André Barcinski. “Milton quer fazer ‘Graceland’ para índios”. (21/02/1991).

208

Nascimento] acha que a divulgação da música brasileira por Simon e Byrne e seu

trabalho com os povos da floresta são os dois fatores por trás do sucesso da turnê

“Txai”.”9 Na verdade, a importância da atuação de nomes como Paul Simon e David

Byrne na divulgação de nossa música se dava também em solo brasileiro, onde os meios

de comunicação ainda vibram com as “descobertas” de talentos brasileiros pela

imprensa internacional e por artistas estrangeiros, passando assim a valorizar o que

anteriormente estava na sombra, como foi o caso de Tom Zé, que, antes de ser

reabilitado por Byrne, encontrava-se com sua carreira artística interrompida.

Txai ainda seria motivo de mais notícias na imprensa brasileira. Em matéria de

janeiro de 1992, o Jornal do Brasil anunciava sua indicação ao Grammy na categoria

World Music.10

Nesse mesmo ano, as andanças de Milton pelo circuito universitário

norte-americano, “25 shows em 22 cidades”, e sua “aula/conferência” na UCLA,

Universidade de Los Angeles, seriam notícia.11

Os itinerários de Milton Nascimento no

exterior continuariam a ser tema de notícias. Algumas experiências proporcionadas pela

aproximação com sonoridades e artistas estrangeiros ficariam como marco de sua

carreira. Suas canções seriam monumento para suas constantes travessias. Em suas

passadas, dá um pulo em território estrangeiro, mas igualmente planta os pés em seu

próprio chão. Milton Nascimento, um viajante estimulado pelas sensibilidades do

momento. É o que assistimos em seu passeio pelo mundo em Angelus e na experiência

pungente de Tambores de Minas.

9 “Milton lota o Royal Festival Hall de Londres”. Folha de S. Paulo. (26/06/1991).

10 Marília Martins. “Milton Nascimento está pronto para o Grammy.” Jornal do Brasil. (12/01/92).

11 “Milton dá aula na UCLA durante turnê pelos EUA”. O Globo. (07/10/92).

209

Angelus: rastro mágico de um voo libertário

Nossos passos largos por percursos de Milton Nascimento nos ajudam a

vislumbrar a ampliação do alcance de sua obra no exterior e também a composição de

novas parcerias. Contribui ainda para localizarmos uma de suas experiências prediletas,

que foi motivo para o prosseguimento da entrevista que me concedeu.

- Eu sinto que, nesse sentido, o Angelus é um CD bem interessante porque o

próprio percurso dele de gravação traduz muito isso, né? Porque eu li que em

parte ele foi gravado numa fazenda no interior de Minas, depois veio para o

Rio, pros Estados Unidos...eu queria que você comentasse um pouco a respeito

desse álbum.

- Os Belmondo queriam gravar comigo. E eu estava lá em Paris, eles marcaram

um encontro. Aí eu fui. Aí tavam lá conversando, não sei que e tal... eu tinha

ouvido uns discos deles assim, que eles também tinham umas viagens por uns

lugares incríveis, né? E tava tudo bem, até a hora que um deles falou assim:

“sabe a coisa que eu mais gosto que você fez? É o Angelus”. Eu falei: “Oh,

vamos gravar!”. Porque, para mim, é uma das coisas mais importantes da

minha vida.

- É?

- É! É o terceiro Clube da Esquina.

As palavras de Milton Nascimento tecem laços entre experiências vivenciadas

em diferentes períodos. O disco Angelus foi lançado em 1993, e o álbum com os irmãos

Belmondo, músicos franceses de ascendência jazzística, em 2008. A lembrança da

conversa com um dos Belmondo enfatiza a importância de Angelus em sua carreira. Ao

mencionar que se tratava do Clube da Esquina nº 3, o artista valoriza o álbum num jogo

em que brinca com uma expectativa do público: quando se reuniria a velha turma,

certamente aumentada, para fazer um novo clássico da música brasileira, o Clube da

Esquina nº 3? Pois é, para Milton, esse encontro já havia acontecido e se chamava

Angelus. Talvez, então, seja lícito aguardar pelo quarto, quinto Clube da Esquina... Se é

que já não tenham sido lançados também.

Com o carimbo “Clube da Esquina”, Milton coroa seu Angelus no que tem de

qualidade, espírito de coletividade e inquietude artística. Com aproximadamente 30

anos de carreira na época do lançamento de Angelus, o cantor-compositor não se rendeu

a antigas fórmulas. Usufruir do lugar de “monstro sagrado” da música seria conformar-

se com o já feito. Um novo Clube da Esquina reuniria antigos amigos, mas também

celebraria novos encontros e caminhos sonoros. Talvez pelas distintas feições, não se

210

percebe imediatamente o que de Clube há em Angelus, álbum que Milton sente que

ainda não recebeu a devida atenção:

... Mas creio que as pessoas ainda não entenderam o Ângelus, de 1993. Lá fora,

há uma compreensão maior, mas aqui, não. Para mim, é outro Clube da

Esquina. Só tem gente boa no disco – músicos do Brasil, da América Latina,

dos Estados Unidos, da Inglaterra. É um verdadeiro clube.12

Em seu novo Clube, ecoa um espírito inquieto em busca constante por

surpreender e lapidar a canção. O artista manteve a curiosidade por conhecer e agregar,

características presentes em sua obra também nos dias atuais. No entanto, estariam o

público e a antiga crítica acessíveis aos novos tons da obra de Milton Nascimento? Fica

a questão. Em um de seus últimos álbuns lançados até o momento, ... E a gente

sonhando (2010), Milton juntou jovens artistas – músicos, cantores, compositores –, em

sua maioria de Três Pontas, para recordar momentos de sua trajetória e também cantar

novas histórias. No plano internacional, celebra o encontro com mais uma estrela do

jazz que descobriu sua música e se tornou sua parceira em shows e gravações,

Esperanza Spalding, revelação do cenário musical norte-americano.

Angelus, primeiro álbum de Milton Nascimento lançado em formato CD, além

de ter sido lançado também em LP duplo, foi um marco da troca de gravadora.

Anteriormente, Milton Nascimento integrava o elenco da CBS e agora era artista da

Warner (WEA). O seu novo contrato reafirmava um investimento no mercado

internacional e os lançamentos simultâneos dos discos no Brasil e no exterior –

“gravado sob a chancela da Quilombo Música, selo de Milton que a WEA internacional

passa a distribuir –, com lançamento nacional marcado para o dia 16 próximo e no

exterior ainda este mês.”13

Relativamente à estrutura oferecida para as gravações, estas

continuariam a ser executadas entre estúdios do Brasil e dos Estados Unidos. Apostas

como esta permitiriam que Milton Nascimento juntasse parceiros de cá e de lá em

experiências como a de Angelus.

Nesse disco, Milton reunia antigos e novos companheiros, encontros

proporcionados pela vida de artista ao longo daquelas três décadas. No encarte,

listavam-se os navegantes da barca Angelus, um Clube da Esquina de fronteiras ainda

mais largas: Jon Anderson, João Batista, Leonardo Bretas, Ron Carter, Jack DeJohnette,

12

Milton Nascimento em entrevista a Maria Dolores Pires do Rio Duarte. “Só faltou o Miles Davis.”

Revista Bravo!, p. 80. (Edição de dezembro de 2007). 13

“Gabriel e Jon Anderson estão no álbum de Milton” O Estado de S. Paulo. (10/11/1993)

211

Hugo Fattoruso, Peter Gabriel, Gil Goldstein, Herbie Hancock, Wilson Lopes, Pat

Metheny, Túlio Mourão, Wayne Shorter, Robertinho Silva, Ronaldo Silva, Vanderlei

Silva, James Taylor, Naná Vasconcelos e Flávio Venturini.

A oportunidade de produzir mais um disco gestado na ideia de coletividade e

espontaneidade inspirou Milton Nascimento a ousar, e, desta forma, sua gravadora

cedeu a uma exigência: parte do Angelus seria gravada na fazenda Grotão, no município

de Esmeralda, interior de Minas Gerais. Para isso, a Warner teve que montar um estúdio

improvisado de 24 canais:14

A ideia nasceu da minha cisma crescente com a disparidade que existe entre os

ensaios – espontâneos, soltos etc. – e as gravações em estúdio, frias,

arrumadinhas demais. Já havia feito um disco num sítio perto de Los Angeles,

com The Band e Bob Dylan, e tentei repetir o mesmo clima na fazenda do

Grotão, unindo simplicidade e tecnologia de ponta.15

Necessitava daquele calor das reuniões entre amigos. Escolher uma fazenda

abria caminho para a convivência entre os músicos e para a conversa quente à beira da

fogueira, ingredientes capazes de fomentar um som encorpado e vivo. Nessa aventura,

embarcaram amigos como Robertinho Silva, Ronaldo Silva, Vanderlei Silva, Túlio

Mourão, João Batista, Wilson Lopes, dentre outros do segmento brasileiro.

Posteriormente, Milton partiria para os Estados Unidos. Lá adornaria algumas das

canções gravadas no Grotão com o som de amigos como Wayne Shorter. Mantinha,

assim, aquele clima de criação coletiva em estúdio, mas não dispensaria completamente

uma prática bastante comum naquele momento, ou seja, a inclusão posterior de alguns

instrumentos. A técnica foi utilizada para enriquecer o ambiente de Angelus. Desse

entremeio, convertia, portanto, em ferramenta produtiva um dos recursos apontados por

artistas como responsável pela tal “frieza” da sonoridade daquele cenário. Em solo

norte-americano também experimentaria a espontaneidade através de um clima de jam

session criado em estúdio na companhia de Ron Carter, Herbie Hancock, Jack

DeJohnette (todos componentes de conjuntos de Miles Davis), Pat Metheny e

Robertinho Silva.

14

Cf. Maria Dolores Pires do Rio Duarte. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Op.cit. 15

Milton Nascimento em entrevista a Sérgio Augusto. “Milton renasce como um anjo das Gerais” Folha

de S. Paulo (10/11/1993)

212

As andanças de Milton Nascimento por estúdios durante o período de gravação

de Angelus nos Estados Unidos o levariam a Pittsburgh, para gravar com Peter Gabriel

(ex-Gênesis), Los Angeles e Nova Iorque. Nesse percurso, às informações de

sonoridades mineiras e do jazz, acrescentaria pitadas de rock e pop através das

participações de artistas como

James Taylor e Jon Anderson

(vocalista do Yes). As viagens

pelo ar e pela terra,

perambulações físicas de Milton,

são transferidas para a ambiência

sonora de Angelus, onde há uma

urdidura de gêneros plurais que

não se sobressaem de maneira

geral no disco, mas, por vezes, se

esboçam de maneira mais nítida

em algumas canções, como em

Vera Cruz, onde o sotaque

jazzístico aflora.

Contar sua história, eis o espírito que conduz os passos de Milton Nascimento

pelo Angelus. Com esse intuito, revisita algumas canções de diferentes passagens de sua

carreira, como Novena – composta naquela noite em que assistiu Jules e Jim com

Márcio Borges –, Vera Cruz – composição das primeiras safras, presente no disco

Courage –, Clube da Esquina 2 – marca presença como remissão aos encontros dos

discos Clube da Esquina 1 e 2. Clássicos de seu repertório se unem a canções inéditas

que falam dele e de seus arredores, pois sua história é braço de outras tantas que se

enredam em passagens do cenário amplo ao plano íntimo, num jogo onde o indivíduo

compõe o todo, transformando-se em peça de uma unidade que chamamos Terra. Um

fio imaginário percorre a narrativa de Angelus e nos une num mesmo laço onde passado

e presente se comunicam, dão pistas de futuros, e sugerem: a vida é mágica e exige

liberdade.16

16

Repertório completo do disco Angelus: Seis horas da tarde (Milton Nascimento), Estrelada (Milton

Nascimento/Márcio Borges), De um modo geral (Milton Nascimento, Wilson Lopes/Milton Nascimento),

Fig.1 – Capa

213

Seis horas da tarde. Os últimos raios solares pintam de alaranjado intenso as

bordas das nuvens. Ao cruzarem o branco algodão, produzem outros tons dessa

coloração: ora suaves, ora densos, ora quase amarelos, imperceptíveis. Um céu em

tonalidades de um eterno entardecer, eis o que temos na capa e nos encartes do disco

Angelus, onde os tons de laranja se esparramam. A cena, sinalizada em cores, ganha

vida através de sons. O sopro de uma flauta convida outra e mais outra. Ao fundo, o

cello comenta a melodia. Aos poucos, os sons vão se ajuntando em sua aparente

dispersão, produzindo a brisa quente que acalma e alerta o espírito. Num decrescendo,

essa brisa orquestral abre passagem para um som mágico: o falsete cristalino, canto

envolvente soprando doçura e simplicidade. Segue trabalhando a melodia em vocalises,

arrebatando as atenções, fazendo de seu canto um caminho para meditação. Junto desta,

as notas emitidas pela sanfoninha – nossa velha conhecida – ecoam memórias,

encorpando as sensibilidades que abraçam a canção. Seis horas da tarde, composição de

Milton Nascimento, não vem pronunciada em palavras, mas sim em sentimentos

lançados num ambiente onde moléculas de lirismo ladrilham caminhos que levam ao

coração. É uma canção que convida à entrega, numa contemplação sustentada por

energias e memórias que rodeiam aquela hora cravada no relógio. Seis horas da tarde,

horário do nascimento de Milton, que aconteceu no dia 26 de outubro, é também a hora

do Angelus, a hora da Anunciação:

O disco repassa a minha vida até hoje, abrindo uma porta para novos horizontes.

Dizem que seis horas da tarde é uma hora mágica, pois foi quando o arcanjo

Gabriel anunciou que Maria seria mãe. Minha vida sempre foi marcada ou

movida por lances mágicos, pelo puro acaso.17

Na hora do Angelus, pessoas de distantes localidades guardam o costume de se

conectarem através de preces. Há um momento de suspensão dos afazeres do cotidiano

para se fazer um instante de meditação – suspiro da vida em homenagem à Virgem

Angelus (Milton Nascimento), Coisas de Minas (Milton Nascimento, Wilson Lopes/Milton Nascimento),

Hello Goodbye (Lennon/McCartney), Sofro calado (Milton Nascimento/Régis Faria), Clube da Esquina

nº2 (Milton Nascimento/Lô Borges/Márcio Borges), Meu veneno (Milton Nascimento/ Ferreira Gullar),

Only a dream in Rio (James Taylor/versão:Fernando Brant), Qualquer coisa a ver com o paraíso (Milton

Nascimento/Flávio Venturini), Vera Cruz (Milton Nascimento/Márcio Borges), Novena (Milton

Nascimento/Márcio Borges), Amor amigo (Milton Nascimento/Fernando Brant), Sofro calado (Milton

Nascimento/Régis Faria) 17

Milton Nascimento em entrevista a Sérgio Augusto. “Milton renasce como o anjo das Gerais” Folha de

S. Paulo. Op. cit.

214

Maria. No ambiente ali montado, a conversa comovente entre falsetes e sanfona convida

outra voz, que surge em todo o seu esplendor metálico: o sax soprano de Wayne Shorter

paira na atmosfera como uma nuvem cuja força é ornamentada de sutilezas que fazem

da simplicidade o percurso para atingir o mágico. Os falsetes de Milton Nascimento e o

sax de Wayne Shorter tomam feição de vozes celestiais, como a dos anjos que brotam

entre os tons alaranjados da capa do disco. Vozes que traçam a pintura invisível onde se

esboça a lembrança de outra voz comovente, a do trompete de Miles Davis, que havia

morrido em 1991. O que se pressente na ambiência sonora é escancarado em matéria de

O Estado de S. Paulo. Aí, Milton comenta a recomendação feita a Gil Goldstein, que

assina a orquestração e regência de Seis horas da tarde: “Considere que minha voz é o

trompete de Miles Davis.”18

A magia de Seis horas da tarde se produz por esse limiar entre memórias

pessoais – a sanfoninha que nos faz recordar Lília, o ambiente que aciona o lirismo de

Miles Davis e mais um encontro emocionante com Wayne Shorter – e um sentimento

universal, enunciado pelo misticismo que abarca esse instante. Seis horas da tarde,

fronteira entre dia e noite, portal aberto entre o real e o invisível, lugar de prenúncios de

mudanças, como a que foi anunciada à Maria. Seria, assim, um horário de festividade,

pois se cobre de esperanças lançadas em notas alegres e celestiais, como no balé vocal

de Milton Nascimento e Leonardo Bretas na canção que dá nome ao álbum, Angelus, de

autoria do próprio Milton.

Angelus, um canto dos anjos ou para os anjos? Certamente as duas coisas.

Aquelas vozes que cantam aos anjos em tom de chamada se contagiam das energias

atribuídas a essas criaturas mágicas, emitindo a comoção e a alegria da Anunciação.

Qual seria o idioma pronunciado por esse canto angelical? Como em Seis horas da

tarde, não é no território das palavras que se busca essa comunicação, mas nas

sensibilidades sonoras capazes de desarmar o coração.

A voz do menino Leonardo Bretas19

entorna partículas de inocência e pureza na

ambiência. Ao solfejar notas longas, apura a delicadeza da melodia de Angelus. Voz

infantil, canto de anjo. Os instrumentos se contaminam dessa energia num arranjo onde

se divertem em dissonâncias, notas de um voo libertário. O piano de Túlio Mourão, logo

18

Milton em “Gabriel e Jon Anderson estão em álbum de Milton”. O Estado de S. Paulo (10/11/1993) 19

Leonardo Bretas tinha participado do álbum Txai num dueto com Milton na canção Benke (Milton

Nascimento/Márcio Borges).

215

na introdução, pontilha partículas infantis e brincantes em notas agudas e ligeiras. A

percussão de Naná Vasconcelos aplica leveza à atmosfera, propiciando o voo macio das

vozes de Leonardo e Milton.

Enquanto Leonardo Bretas canta a melodia principal, a voz de Milton

Nascimento rodopia à sua volta. Ora em falsete, ora experimentando outros percursos,

de onde destila sensibilidades, a voz suave do menino segue puxando a canção. É voz-

brisa que, atiçada, sacode o chão e faz brotar distintas emoções. Um anjo desdobrável,

redemoinho que revolve a terra solta e produz a estranha beleza de uma coreografia

encenada por folhas secas, gravetos e poeira. Às vezes essa voz se alonga, noutras

goteja notas breves. De repente, surge uma multidão de “primos”, trançando linhas

curvas e infinitas ao redor de Leonardo Bretas – uma ciranda vocal miltoniana, onde a

voz brincalhona converte o lado moleque em porção angelical. Nessa performance, a

versatilidade vocal de Milton Nascimento se transmuda em celebração de sentimentos

expressos no olhar distante, na graça, no sorriso escancarado, na comoção, no choro

convulsivo...

Essas linhas mágicas, ou a própria música, tudo seria um chamamento ao qual

não se escapa. Seria uma vocação, um sacerdócio, fonte de libertação à qual o artista se

atira por uma espécie de devoção e salvação. Conter este voo corresponderia ao drama

de se deixar abandonar num comodismo desconfortável, estágio letárgico arquitetado no

medo e na eterna tensão de controlar “essa música escondida/Doida de explosão”. É o

que se vislumbra na canção De um modo geral, composta por Wilson Lopes em parceria

com Milton Nascimento.

Como te conheço

Esquece esta conversa de loucura sã

Te pego na primeira volta do cometa

Que sai desses olhos a dizer “eu quero, quero, quero”

Pensas disfarçar a sensualidade que nasce daí

Brotou ao mesmo instante de tua chegada

Só engana a quem nunca sabe de nada

Coração de fogo

Nenhuma grade vai prender

Teu sentimento, a jóia do momento

Nossas almas lentas, o próprio amanhecer

Coração de ouro

Nem teu silêncio vai conhecer, vai não

Essa inquietude, essa vida,

216

Essa música escondida,

Doida de explosão

Olho de criança é

Festa de esperança, mundo a renascer

Não cabe o sofrimento de novos messias

Anuncia a vida, alimenta a sorte, sorte, sol

Dói, mas carece acontecer

Em cada segundo, a porta deste mundo

Ver nessa beleza a cor do sim

Ser, de dentro e de fora

O que a paixão

Pensa que devora

Mas que só o amor pode entender

Teu jogo de cintura vai dizer

Todo mundo espera acontecer

O que esse amor tem pra contar

Harmoniza o coro, o maior tesouro

Só pode ter futuro se cantar

A minha mão diz sim

Teu medo quer que não

Acaba com isso

Esse compromisso

Que é meu, que é teu, que é nosso

E de qualquer país

O que os versos da canção proferem é reforçado pelos arranjos. No princípio,

sons urdidos numa tapeçaria de cores vibrantes arrebatam através da alegria enunciada.

No entanto, alguns fios sonoros se desprendem, como nos instantes das viradas de

bateria de Ronaldo Silva, filho de Robertinho Silva. Robertinho, junto ao outro filho,

Vanderlei, libera a magia da percussão, dando brilho às cores dessa peça. Estas vêm

encorpadas pelo baixo manipulado pelos dedos espertos de João Batista, voz grave e

sincopada daquele “coração de ouro”. E os fios soltos dão movimento à tapeçaria, cujo

desenho salta em relevo por momentos solos. Tal é a fala do piano de Hugo Fattoruso

brincando agilmente por improvisos numa convocação ao grito estridente da guitarra de

Wilson Lopes, voz aguda que vai às alturas para depois se jogar em sua porção grave,

onde vibra e faz firulas. O teclado de Túlio Mourão enche o ambiente. E a voz de

Milton Nascimento, exposta na beleza do timbre, exprime a segurança de sua vocação:

“Só pode ter futuro se cantar” – mensagem incorporada por cada músico, soltando a

voz de seus respectivos instrumentos num virtuosismo que dá liga à execução da peça.

217

Pontilhando o tecido desse ambiente, o sax soprano de Wayne Shorter, cujo som

paira por sobre o desafio lançado ao músico de potencializar o tom da canção. Por

vezes, o som aparece discretamente, noutras o sax apenas soluça notas contidas, em

segundo plano. Mas o brilho e criatividade do músico revelariam a presença do

instrumento, pois difícil é “disfarçar a sensualidade que nasce daí”. Mais do que isso,

outro caminho não haveria senão o do virtuosismo. É o que Wayne Shorter demonstra

em sua performance, quando o sax ascende em êxtase numa explosão estridente de

notas, ou se resvala pelo mundano em frases baixas, mas cheias de dobras que

demonstram toda a habilidade do artista em extrair movimentos intimistas numa região

sonora pouco confortável. A versatilidade de Shorter também se faz sentir na

convocação dos outros instrumentos, seja mesmo pelo diálogo inusitado com uma cuíca

imaginária, que vem à luz a partir do som do sax, num delicioso momento de

exploração das possiblidades sonoras do instrumento. Aí o artista capta e semeia

sensibilidades, é a voz inventiva, que ao final da canção, encontra-se com suas irmãs: a

voz de Milton Nascimento e o som dos outros instrumentos, personagens que compõem

o sentimento de comunhão num nó criativo dessa tapeçaria de costuras flutuantes.

Os sons e magia que pairam no ambiente de Angelus, quando se elevam, abrem-

se num convite à meditação e quando essas vozes criativas descem ao chão nos

conduzem no propósito de fortalecer os sentimentos de cuidado com o planeta e com

nosso próprio futuro. Nesse laço, o caminho para a harmonia, ferramenta imprescindível

para uma vida melhor. Estrelada, canção de Milton Nascimento e Márcio Borges,

dialoga com as preocupações ambientalistas que agitavam os discursos da época. Foi

composta para ser tema da ECO-92.20

Nessa empreitada, os compositores optaram por

imagens poéticas que humanizam o planeta, apresentando-o em sua grandeza e em sua

fragilidade: “Terra, Terra, és tão delicada”. A Terra toma feição de mãe, daquela que

provê a vida, mas também suplica colo diante do desamparo promovido pelas condutas

predadoras dos próprios filhos: “Os teus homens não têm juízo/Esqueceram tão grande

amor”

És menina do astro sol

És rainha do mundo mar,

Teu luzeiro me faz cantar

Terra, Terra, és tão estrelada

20

Cf. Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. 4ª edição – São Paulo:

Geração Editorial, 2002.

218

O teu manto azul comanda

Respirar toda criação

E depois que a chuva molha

Arco-íris vem coroar

A floresta é teu vestido

E as nuvens o seu colar

És tão linda, ó minha terra

Consagrada em teu girar

Navegante das solidões

No espaço a nos levar

Nave mãe e o nosso lar

Terra, Terra, és tão delicada

Os teus homens não têm juízo

Esqueceram tão grande amor

Ofereces os teus tesouros

Mas ninguém dá o teu valor

Terra, Terra, eu sou teu filho

Como as plantas e os animais

Só ao teu chão eu me entrego

Com amor firmo tua paz

Sons sobrepostos constituem a massa que nos transposta para fora da Terra,

como se pudéssemos assistir à melodia de um planeta que mistura em sua sinfonia

sotaques de lugares e civilizações aos sons da natureza, dos ventos, de memórias e

energias movimentadas em seu girar. Um planeta que ao rodar em torno do próprio

eixo, canta sua melodia circular. Geme e chora como engenhoca em seu trabalho

interrupto. A Terra arquitetada em poesia, traço da importância do plano simbólico para

a vida humana. Desse lugar surge o retrato onde os versos de Estrelada despertam

lembrança da metáfora bíblica, livro onde nos nutrimos de subjetividades que dão

sentido à vida: “Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do

sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça a coroa de doze estrelas. Estava grávida e

gritava de dores.”21

Uma mãe, Maria talvez, numa evocação que canta a imagem da

Terra.

Na abertura de Estrelada, a rítmica produzida pelo balançar de chocalhos –

Ronaldo e Robertinho Silva – aciona a sonoridade indígena, varando ecos de matas e

florestas. A percussão ainda debulha memórias sonoras de celebrações que povoam o

planeta. É o caso do canto das matracas, som que ensurdece os fiéis tagarelas e decreta o

21

“Apocalipse 12 – A mulher e o dragão.” Bíblia Sagrada. 195 ª Edição. São Paulo: editora Ave-Maria,

2001, p.1566.

219

silêncio em procissões solenes. Da viola caipira de Wilson Lopes vem uma dicção

interiorana que traz à baila cenas e cenários das cidadezinhas brasileiras e, sob essa

inspiração, o título da canção, Estrelada, se justifica plenamente, por evocar o contraste

claro-escuro do céu estrelado em face da luz mortiça dos postes das ruazinhas e vielas:

no interior, o brilho das estrelas se sobressai ante a escuridão reinante, por isso o manto

celeste parece muito mais estrelado. O acordeon de Hugo Fattoruso enche o ambiente

como mais uma voz que se espalhou pelos interiores do mundo afora e nos conduz para

o chão, onde se alastram as nossas raízes, entrelaçadas em culturas e identidades. O som

do instrumento produz a mágica de transmudar-se em voz do próprio planeta e, nessa

perspectiva, é possível se descolar da realidade e contemplar, de fora, a paisagem

terrestre.

Em Estrelada temos ainda a participação de Jon Anderson, vocalista do Yes,

cantando em português. Sua voz sempre vem junto da de Milton Nascimento nessa

melodia cíclica, representação dos movimentos do planeta que ainda se configura como

uma espécie de mantra, concebido na esperança de alertar os povos para a causa

ambientalista. Um pedido de comunhão simbolizado no dueto de Jon Anderson e Milton

Nascimento, vozes de lugares distantes que se juntaram no impulso humano de cuidar

do planeta.

Ao me relatar sobre a forma que se deu a participação de Jon Anderson na

gravação de Estrelada, Milton Nascimento acrescenta às memórias desse evento pitadas

de humor:

E tem umas coisas, por exemplo, eu tava em Nova Iorque, já, depois daqui, aí o

Jon Anderson, do Yes, ligou pro meu quarto no hotel e falou: “se você pensa

que eu não vou cantar nesse teu disco, você tá muito enganado, eu tô aqui na

Inglaterra, mas tô indo hoje pra aí. E depois você vai gravar no meu também.”

[imperativo] Bicho, eu nem sabia como é que ele sabia desse disco, não tinha

falado pra ninguém!

Milton mescla seu lado ator, quando representa a entonação imperativa de Jon

Anderson, com seu lado narrador, que se desprende da cena para me alertar em tom de

surpresa: “eu nem sabia que ele sabia”. A narrativa faz rir e informa sobre seu trânsito

pelo meio musical estrangeiro a partir da intimidade com nomes conhecidos

mundialmente. Essa proximidade levaria artistas como Jon Anderson a atender

prontamente a alguns pedidos de Milton Nascimento.

220

Na época em que o artista brasileiro estava em turnê com o show Angelus, o

Jornal do Brasil noticiava uma apresentação que seria feita no Palácio das Artes em

Belo Horizonte em apoio à campanha Natal sem fome, encabeçada por Herbert de

Souza, o Betinho. Toda a arrecadação do show seria destinada à campanha, que ainda

seria divulgada através da transmissão do show pela rede de tevê Bandeirantes. Além de

nomes brasileiros, como Simone e Caetano Veloso, Milton reuniria astros estrangeiros

nessa apresentação. Na matéria publicada pelo Jornal do Brasil salienta-se o prestígio

de Milton junto aos artistas internacionais que participaram de Angelus:

Jon Anderson e James Taylor participarão do show atendendo a um especial

convite de Milton Nascimento, que gravou com os dois em seu último disco,

Angelus. Eles não receberão cachês (assim como os artistas brasileiros) e nem

fizeram qualquer exigência típica de astros internacionais.22

Artistas que fazem da arte um caminho para a luta por causas humanitárias, eis o

que temos emoldurado nessa notícia. Angelus foi concebido num momento em que

Milton Nascimento havia se engajado em lutas pelos direitos humanos, em benefício

das causas indígena e ambiental. Algumas dessas informações surgem em forma de

poesia e música, como em Estrelada, ou em ações como a do show acima mencionado,

ou mesmo em forma de alerta, como nas inscrições do encarte do disco:

Só Temos 10 Anos Para Salvar Nosso Planeta. Começa com Você e é Fácil.

Use Produtos Seguros Para o Meio-Ambiente

Pressione Líderes Políticos

Ame e Respeite Toda Forma de Vida

Economize Energia

Seja Solidário

Recicle.

Nas linhas desse recado repercute o que visualizamos em Estrelada. Ao lado

dessas inscrições, os dados da entidade ambiental internacional a qual Milton

Nascimento estava associado: ECO – Earth communications Office. Também nos

encartes temos o selo da Anistia Internacional. Os jornais da época ainda noticiavam a

ligação de Milton com a Aliança dos Povos das Florestas, em nome da causa indígena.

Essa questão ficou evidente em disco anterior, Txai, não somente através do diálogo

com a sonoridade indígena, mas de outras ações, como a doação da renda de alguns

shows para a causa dos povos das florestas.

22

Roselena Nicolau. “Milton amplia o time”. Jornal do Brasil (18/12/1993)

221

No disco Txai temos algumas canções de Milton Nascimento compostas e

ambientadas a partir de referências indígenas. Igualmente temos algumas faixas que

reproduzem os registros sonoros feitos em tribos. Aquela sonoridade seduziu o mundo,

pois, como vimos, Txai foi premiado e bem recebido no mercado estrangeiro. Uma de

suas inovações se dava em relação à arrecadação de direitos autorais. Em matéria da

Folha de S. Paulo, o líder indígena Ailton Krenak comemorava a prática promovida em

Txai: “Muita gente já gravou música de índios, da África e da Ásia. A diferença é que

neste escolhemos o que cantamos. Pela primeira vez cantos de índios foram gravados e

editados, sem serem considerados de domínio público.”23

Dessa maneira, a matéria

salientava uma mudança na relação dos índios com o mercado, pois agora os direitos

autorais das faixas do disco seriam repassados para as tribos de origem. O respeito

permeava a relação de Milton Nascimento com a cultura indígena. Aquela era uma obra

feita “com eles”, um trabalho onde tiveram voz ativa.

Em sintonia com os discursos ecológicos que povoavam o imaginário social no

cenário dos 90, propiciando eventos internacionais como a ECO-Rio-92 – conferência

promovida pelas Nações Unidas na cidade do Rio de Janeiro –, Milton Nascimento

agregava nomes internacionais no esforço de lutar para salvar o planeta, como pudemos

ver. Tais laços transbordariam para sua obra. Assim, a faixa Curi-curi24

, do disco Txai,

conta com a participação do jovem ator norte-americano River Phoenix, que recita texto

de autoria própria onde proferia sua defesa dos Povos da Floresta. Paralela à fala em

inglês, o choro da flauta indígena de Tsaqu Waiãpi reverbera as travessias do local para

o global, retratando cidadãos do mundo. River Phoenix tinha sido homenageado por

Milton em disco anterior, Miltons (1988), com a canção River Phoenix – Carta a um

jovem (Milton Nascimento). O ator ainda viria com sua família ao Brasil para a ECO-92

a convite de Milton, que fez grande apresentação no evento ecológico.

O interesse de Milton Nascimento em defender a natureza era perceptível desde

a década de 70 em discos como Milagre dos Peixes, tornando-se mais contundente na

década de 90, em ações e debates sobre a causa ambiental, que inspirariam novidades

como Txai. O tema permaneceria latente na obra de Milton, mas a busca por novas

linguagens não se esgotaria. Noutras palavras, a luta por direitos humanos e em favor da

23

Ailton Krenak Apud Carlos Calado. “Milton faz show ecológico no parque Ibirapuera” Folha de S.

Paulo (20/10/1990) 24

Interpretação do índio Tsaqu Waiãpi, texto e fala de River Phoenix.

222

natureza permaneceriam, mas, na aventura de Angelus, por exemplo, enveredariam por

outras informações sonoras e retomadas de algumas rotas, como os percursos por um

som que reverberava uma fala sacra, uma dicção jazzística ou um sotaque pop.

Embalados pelos movimentos de Estrelada, realizamos uma reflexão musical,

onde os sons são componentes discursivos que nos transportam para lugares e culturas

num movimento constante de dentro para fora e de fora para dentro. Um jogo entre o

todo e o específico. Outras ondas sonoras insinuam que esse planeta guarda memórias e

energias invisíveis aos quais a sensibilidade humana pode e deve dar voz. Sendo assim,

o que a canção demonstra em sua especificidade ramifica pela amplitude do álbum

Angelus, entremeado de temporalidades, lugares, memórias e sensibilidades.

Nessas movimentações para dentro, uma passagem por angústias e perturbações

que agitam o espírito humano é propagada em imagens agressivas por onde escorre a

poeticidade em forma de versos e melodia. Meu veneno, parceria de Milton Nascimento

com Ferreira Gullar, mergulha em inquietações alimentadas no campo das afetividades:

Atrás de meus olhos, dorme

Uma lagoa profunda

E o céu que trago na mente

Meu vôo jamais alcança

Há no meu corpo um incêndio

Que queima sem esperança

A própria terra que piso

Vira um abismo e me come

Corre em meu sangue um veneno

Veneno que tem teu nome

Corpo abandonado num quarto escuro. Pelo violão de Milton Nascimento saltam

acordes pesados e cortantes que traduzem a tensão daquele olhar imóvel. As mãos-vento

de Naná Vasconcelos tremulam – em forma de som – a poeira revelada através dos fios

de raios solares que escoam das gretas do telhado. A percussão ainda se transmuta em

restos de sons do cotidiano que violentam aqueles ouvidos surdos para o seu exterior.

Nesse ambiente denso, arrasta a lenta melodia que escapole da boca de Milton em frases

graves e agudas, sobrepostas. O sentimento que um dia foi fonte de vida transforma-se

em veneno corrosivo quando não correspondido. Tons graves, parados, de um ser

prostrado na profundidade de seu oceano de frustrações. Agudos de uma agonia

agitadora. Voz de dor sobreposta a pedido de socorro. Tentativa de romper aquele nó-

âncora. Os “primos” que brotam daquela garganta emitem o harmonioso contraste desse

223

espírito inquieto. As sensações do coração agitado em seu desamparo são expressas por

imagens poéticas que remetem a fenômenos físicos, às agressividades sofridas por

nosso planeta: “incêndio que queima sem esperança”. O corpo é uma floresta que arde

em chama. A metáfora motiva a questão: não seria o mal que assola o humano o mesmo

que desgasta a Terra? O incêndio que literalmente queima o planeta não seria fruto do

mesmo desamor que atormenta o homem? O veneno-mágoa que corrói o humano é da

mesma natureza dos dejetos que arrasam a Terra. Nessa leitura, as imagens discursivas

criam diálogo entre Meu veneno e Estrelada.

O laço entre as duas canções incentiva o retorno àquela passagem bíblica:

“Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho, com sete cabeças e

dez chifres, e nas cabeças sete coroas. Varria com sua cauda uma terça parte das estrelas

do céu, e as atirou à terra.”25

Um dragão a atirar labaredas. “Serpente primitiva” que

despeja veneno. Demônio, imagem que conjuga todos os males. Metáfora que faz

recordar-se dos conflitos de Meu veneno. Por essa via interpretativa, a percussão toma

feição de guizo de serpente, rabo de dragão a estraçalhar estrelas. Imagem que traduz a

maldade encarnada no próprio homem. Diante de nós, leituras que insinuam a

pluralidade de olhares para uma canção, território movediço por onde se configuram

incontáveis sentidos:

O leitor é o produtor de jardins que miniaturizam e congregam um mundo.

Robinson de uma ilha a descobrir, mas “possuído” também por seu próprio

carnaval que introduz o múltiplo e a diferença no sistema escrito de uma

sociedade e de um texto. Autor romanesco, portanto. Ele se desterritorializa,

oscilando em um não-lugar entre o que inventa e o que modifica. Ora

efetivamente, como o caçador na floresta, ele tem o escrito à vista, descobre

pistas, ri, faz “golpes”, ou então, como jogador, deixa-se prender aí. Ora perde

aí as seguranças fictícias da realidade: suas fugas o exilam das certezas que

colocam o eu no tabuleiro social.26

Nesse voo interpretativo, a urdidura entre o simbólico e o real na atmosfera de

Angelus. As linhas imaginárias que estabelecemos entre Estrelada e Meu veneno

interceptam o humano e o planeta numa sensação de abandono diante de tantos males.

No fio que entrevemos, pontua-se a necessidade das subjetividades, da importância de

carinhos na relação com o próximo, além de pitadas de amor-próprio, ferramentas

25

“Apocalipse 12 – A mulher e o dragão.” Op. cit., p. 1566 e 1567. 26

Michel de Certeau. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 17. Ed. Petrópolis- RJ: Editora Vozes,

2011, p. 245.

224

propícias para uma mudança interna capaz de nos atirar numa mudança maior, gestada

no espírito de comunhão. O equilíbrio entre a partícula e o todo. Entre nós e essa grande

Terra. Nessa dinâmica, o mínimo e o todo se equiparam. O que alcançamos em palavras

é produzido em metáfora fotográfica que estampa o encarte do CD Angelus. Nela,

Milton Nascimento se curva em pose característica de agradecimento. Por detrás,

apenas a imensidão do céu ladrilhado por nuvens. A representação do indivíduo alinha-

o à própria Terra. Está nele a fonte para promover todas as mudanças, que começam por

atos corriqueiros em sua própria vida.

Fig. 2 – imagem de encarte

Dessa maneira, em Angelus somos atirados ao drama humano. No entanto,

sobrevive a esperança, desabrochada na sensibilidade e espírito de comunhão que

permeiam o disco. Espírito que paira, na verdade, em toda a obra de Milton Nascimento,

que sempre enxergou a ponte suspensa entre o micro e o macro, entre o local e o

universal. Nessas travessias, ecoam lembranças que fizeram suas Minas serem tão

Gerais, como na canção Coisas de Minas, mais uma parceria de Milton e Wilson Lopes

e outro tesouro de Angelus, esse sopro misterioso que vem da alma.

225

O sotaque da viola caipira de Wilson Lopes aponta a localidade: estamos no

interior. A rítmica despejada pelas mãos do clã Silva – Robertinho, Vanderlei e Ronaldo

– convida os quadris à dança. Os braços do uruguaio Hugo Fattoruso espalham o sorriso

do acordeon, que joga na atmosfera a gargalhada contagiante. Os sons armam uma folia,

lugar onde se reza festejando. A letra clareia o que os sons provocam. Por ela

acionamos referências à folia de reis.

Ê, ê boi, ê, ê boi

Se eu contasse o que ninguém conhece

Do povo daí

Iam dizer que é mentira

Acabava a carreira

E o que resta de mim

Ê, ê boi, ê, ê boi

Fez a fogueira, caiu dentro dela

E o povo sorriu

No outro dia, as beatas

De língua de fora, que o padre serviu

O animado “Ê boi!” que salta da boca de Milton Nascimento traz a recordação

do povo cutucando o brincalhão Boi-de-Janeiro, que rodopia seu “vestido” chitão e suas

fitas coloridas em cortejo durante as festividades de Santos Reis no Jequitinhonha. No

entanto, a folia aqui serve como mote para memórias de tantos outros festejos que

comungam da mesma alegria. Serve ainda para Milton Nascimento visitar Minas Gerais

a partir da mágica que atravessa simples detalhes de seu cotidiano: “Se eu contasse o

que ninguém conhece/ Do povo daí/Iam dizer que é mentira/Acaba a carreira/E o que

resta de mim”. O verso vem em tom de uma confidência que paira no ar. Mas em seu

festejar aquele ser rodeado pela folia escapa noutro pensamento, traduzido em

sensibilidade, pela desaceleração da melodia, que toma ar queixoso na voz de Milton

Nascimento:

Dentro de mim, nas estrelas

Ou no que se faz passar

Anda meu amor primeiro

Que teima em não completar

Ê, pena

Breve lamento para se lançar novamente na simplicidade daquela festividade

emoldurada de fragmentos identitários de um povo que canta:

Ê, ê boi, ê, ê boi

226

A porta aberta

Bem-vindo à casa, prazer conhecer

Se a conversa acabar na cozinha

Já é da família

Melhor pra você

Nos versos, a hospitalidade de um povo que acomoda forasteiros que se

achegam para a folia. A receptividade e espontaneidade apresentadas na cena se

espalham por memórias de convívios e solidariedades do cotidiano, expressões do povo

interiorano. Milton Nascimento revive a infância em Três Pontas, onde compartilhava

com amigos e família momentos de divertimento cultivados na percepção de que

amizade é casa aberta. No entanto, o arremate da estrofe soa como um alerta: “Melhor

pra você”. Receptividade, sim, mas de um povo “cabreiro”. Sorriso aberto de quem

antes, da janela, concedia apenas um olhar fechado, armava a carranca, trancava a porta

e, se facilitasse, punha mesmo é para correr.

De repente, uma quebra na atmosfera sonora através da introdução de um novo

componente, o piano de Túlio Mourão, que em sua fala melodiosa insinua uma

tonalidade urbana em homenagem ao convidado estrangeiro. Enquanto isso a voz de

Milton Nascimento pavimenta o ambiente num canto sincopado, que a percussão

acompanha, entornando sonoridades que acionam memórias de vozes da cultura negra.

Sonoramente, celebra-se a miscigenação cultural, matriz de identidades já nem tanto

mineiras, mas brasileiras. Encontros que proporcionam o sentimento de pertença ao

mundo.

Tem o som de tudo

É absurdo

É mistério

Libertas... doce folia

O som de todos que escutei

Ouro Preto chama Paris

Philadelphia entra na roda

Negro mina chora

Sonho apaixonado de quem canta

E cantará, ê, ê

Nesses versos, a imagem de Minas Gerais em destaque no mapa-múndi evoca

histórias de tempos atrás. Na ciranda, Ouro Preto dá as mãos a Paris e a Filadélfia em

passos onde se insinuam discursos de liberdade. Através dos detalhes e dos traços

discretos dos versos, reverberam fragmentos de memórias dos discursos libertários

227

fomentados no século XVIII. Paris, berço dos ideais iluministas que correram o mundo.

Filadélfia, importante centro urbano das Treze Colônias no XVIII onde pipocaram

discursos de liberdade, foi também a primeira capital dos Estados Unidos, após a

declaração de independência. Ouro Preto, antiga Vila Rica, ergue-se sobre as memórias

da Conjuração Mineira demarcando o seu lugar de terra da liberdade. “Libertas...doce

folia”, uma lembrança do lema daquela movimentação celebrada simbolicamente na

bandeira de Minas Gerais: Libertas quae sera tamen. Naquele cenário, já se bebia das

ideias revolucionárias de outros países pela circulação de ideias divulgadas em livros e

viagens para estudos. Aqueles jovens que passaram pela Universidade de Coimbra,

quando retornavam a Minas davam um colorido local ao espírito iluminista. Liberdade,

desejo que ainda perpassava por outra classe, a dos escravos, representados nessa

canção pelo canto de lamento e saudade do negro mina.

O que se faz presente na canção transborda noutros suportes, como na capa do

disco. Por detrás daqueles anjos, inscrições antigas. Trata-se de um texto daquele que

ficou como um herói da liberdade: Tiradentes. No traço dos anjos, a ousadia de

Aleijadinho. No encarte, a pintura de Guignard (1896-1962), esse carioca criado na

Alemanha e símbolo das artes

plásticas de Minas Gerais, onde

passou boa parte de sua vida,

criando e ensinando. Sua tela

reproduzida em Angelus pinta a

paisagem mineira em tons

flutuantes, numa imagem em

que nuvens e montanhas se

misturam, compondo um

horizonte sem fim por onde

igrejas coloniais navegam. Sem

barreiras, uma paisagem se

esparrama em liberdade, forma

de ver e sentir Minas Gerais.

Nessas referências a ícones

mineiros do disco Angelus, o

Fig. 3 – Paisagem mineira de Guignard

228

cruzamento de informações e temporalidades que pronuncia ousadia e liberdade

criativa, fonte para inovações.

Na ciranda miltoniana, saboreia-se o espírito de liberdade que paira em suas

Minas Gerais. Liberdade propiciada também pela miscigenação cultural. Ao artista que

se constituiu em terras mineiras não restaria outra via que não a da liberdade, inclusive

no campo musical, onde agregou e misturou informações de distintas paragens sem se

preocupar com discursos enviesados por argumentos sobre causa/efeito do fenômeno

conhecido como globalização. Apropriar-se livremente do que vinha de fora já seria

característica de seu povo desde tempos longínquos. Por essa via, compreende-se que

ser mineiro equivaleria a ser cidadão do mundo. Em texto crítico sobre Angelus, Sérgio

Augusto capta esse espírito presente no álbum de Milton Nascimento em breve análise

da capa:

....anjos barrocos da antiga Vila Rica sobrepostos à réplica de um pedido de

Tiradentes para visitar o Rio. Uma das chaves de Angelus é esse entrelaçamento

gráfico da cidade onde Milton Nascimento nasceu e se projetou para o mundo

com a Minas Gerais de Três Pontas e Belo Horizonte, onde cresceu e descobriu

a música.27

As travessias miltonianas ecoam esboços da porosidade das fronteiras entre

Minas Gerais, o Rio de janeiro e o mundo. Uma rota de idas e vindas marcada por

passos deveras antigos. Por estar ambientado nessas transposições, Milton enfrentaria

com tranquilidade os constantes questionamentos sobre as suas verdadeiras origens.

Volta e meia ao artista é perguntado: onde você nasceu? A resposta “Rio de Janeiro”

sempre causa surpresa àqueles tão acostumados a atrelarem seu nome a Minas. Mas, à

pergunta constante, construíram-se respostas inteligentes, que convertem a surpresa

aguardada numa outra, inesperada. Assim, em apresentação no programa Ensaio, Milton

Nascimento reproduz nova fórmula para o constante impasse: “Eu nasci em dois

lugares, um foi em Laranjeiras, no Rio, e o outro foi Três Pontas, sul de Minas

Gerais.”28

É justamente no “estar aí” que reside o “jeito de ser” miltoniano, sujeito em

permanente viagem, sem solo definitivo, disposto a retornar para contar o que aprendeu

em suas andanças. Mas retornar a que lugar? A essa Três Pontas idealizada, pátria-mãe

27

Sérgio Augustos. “Milton renasce como o anjo das Gerais”. Folha de S. Paulo (10/11/1993). 28

Milton Nascimento &Wagner Tiso. Programa Ensaio. TV Cultura (1995). Lançado em 2011 pela

Warner.

229

de todos os lugarejos mineiros, brasileiros e estrangeiros que, interceptados, recriam,

continuamente, o eterno drama da existência. Por isso faz sentido pensar numa origem

mineira, uma vez que os diálogos musicais são tributários de uma memória constituída,

sobretudo, em solo mineiro.

Voltemos ao ambiente da canção Coisas de Minas. Em seu seguimento, retoma-

se aquele espírito de festa entremeada de quadros que compõem o cotidiano.

Pensamentos em fuga se misturam às cenas que os olhos captam e à algazarra daquela

folia. Vivências e memórias estilhaçadas.

Ê, ê boi, ê, ê boi

A porta aberta

Benvindo à casa, prazer conhecer

Se a conversa acabar na cozinha

Já é da família, melhor pra você

Ê amor, ê amor

Os namorados no meio da tarde começam a sorrir

E eu aqui neste morro

Na frente de um touro

Falando de mim

Mas toda essa movimentação tem pausa. Vem o suspiro provocado pela

lembrança de um momento que se desenha nas tonalidades do horizonte e então ocorre

uma nova quebra de ambiência. A massa sonora se dilui, a melodia desacelera, pondo

no centro a voz de Milton Nascimento, que, num estalo, prepara-se para a

contemplação.

O sol tá descendo agora

O silêncio deixa ouvir

Será o sinal de um anjo

Essa brisa a traduzir

Meus nomes

Seis horas da tarde. A voz, agora em falsete, emite o canto de um anjo, chave

para o portal mágico que se abre naquele horizonte cortado por tons alaranjados. Hora

de contemplação apreendida através da hipnótica beleza e simplicidade daquele canto

de elevação. A voz sobe e reverbera, despertando os instrumentos que retomam a festa.

Aquela melodia, aparentemente desconhecida, de repente ganha contornos familiares

por novo caminho traçado pelo falsete miltoniano, que entoa em comovente vocalise a

melodia da Ave Maria.

230

Ao emitir essa melodia, Milton Nascimento desperta a memória da Hora do

Angelus. Diariamente, às 18 horas, a canção percorre o país em homenagem a Maria,

seja pelo interior ou nas grandes cidades. Canto que não pede licença, apenas invade

suavemente os ouvidos. Melodia que nos arrebata quando escapa do rádio de um táxi

em movimento ou das notas de um piano dolente que rasgam o burburinho no interior

da confeitaria Colombo em pleno Rio de Janeiro.

A magia desse momento povoa o universo do próprio Milton Nascimento. Em

sua canção, pesca um punhado de coisas que remetem a Minas, sem explicá-la, pois

parte da beleza e do espírito dessa localidade está em seus mistérios, na sabedoria do

não contar, ou mesmo do contar não contando, como descrito nos versos em que se

monta a ciranda entre Ouro Preto, Filadélfia e Paris. Mistérios que fazem das Minas de

Milton um lugar onde o intuitivo aflora:

Além de eu ter nascido às seis horas da tarde, essa era a hora que a gente subia

num morro lá em Três Pontas para ver o sol baixar. Nos períodos de lua cheia o

movimento é simultâneo e dá para sentir que é a terra que se move e não o sol.

É uma coisa mágica. Não gosto muito de ficar contando muita história de Minas

porque no Exército quase fui preso como mentiroso por causa disso. O Rodrigo,

irmão do Caetano [Veloso], costuma tirar férias sempre numa cidade mineira

diferente e acontecem coisas incríveis. Ele contou isso numa roda de baianos

em que eu estava presente na casa do Caetano, em Salvador, e só fiquei calado

ouvindo. Garcia Marques teria escrito um Cem anos de solidão muito mais forte

nas Geraes.29

A passagem propaga memória dos versos que abrem a canção Coisas de Minas.

Vale relembrá-los mais uma vez: “Se eu contasse o que ninguém conhece/ do povo

daí/Iam dizer que mentira/ Acabava a carreira/E o que resta de mim”. O que para

alguns seria tachado de realismo fantástico ou mágico, na verdade resultaria de

vivências desse artista de olhar apurado, sempre pronto à contemplação e à atenção ao

detalhe. Olhar desarmado e atento, espelho que capta a simples magia, que, uma vez

apurada e depurada, é devolvida em forma de músicas inquietantes. Magia gestada

numa identificação que faz do olhar de Milton Nascimento um rastro do espírito

contemplativo que abraça sua gente e suas Minas Gerais. Em texto em que apresenta o

álbum Angelus, Caetano Veloso tateia hipóteses que, antes de explicarem a música de

Milton ou o espírito mineiro, buscam uma aproximação sensível, eu diria mesmo um

canal, para acessar fagulhas daquela atmosfera onde se desenha a paisagem mineira:

29

Milton Nascimento a Tárik de Souza. “Milton agora é do mundo” Jornal do Brasil (10/11/1993).

231

Estou escrevendo essas notas numa fazenda mineira encravada na Serra da

Mantiqueira. Diante da paisagem e das cidades que visitamos eu comentei com

Paulinha e Moreno: a gente entende por que Minas deu Drummond e Guimarães

Rosa – e Milton. Vêm-me à cabeça dois baianos que souberam ver e dizer

melhor do que eu: Gilberto Gil – que costumava repetir que a música de Milton

reproduz os contornos das montanhas de Minas Gerais (...) e Rodrigo Veloso,

meu irmão, cuja graça para contar os casos de Minas fizeram rir em Salvador e

foi lembrada por ele ao compor Coisas de Minas, que, conhecendo Minas já

depois dos quarenta anos e voltando à Bahia surpreso me dizia com humor mas

com convicção: Minas é muito mais que a Bahia. (...) Nós, baianos, fazemos

muito espalhafato, os mineiros são discretos (...). Mas a verdade é que Minas é

uma maravilha. Neste disco, ouve-se isto com limpidez.30

Ao colocarmos em diálogo o trecho escrito por Caetano Veloso, a passagem da

entrevista de Milton Nascimento a Tárik de Souza e a letra da canção Coisas de Minas,

acessamos novamente a intimidade que provoca o artista mineiro à composição. No

encontro com o outro, Milton sentiu-se estimulado a falar de si mesmo. Aquelas

conversas em Salvador conduziram o cantor a pensar nas coisas de seu Estado, que

acabou virando tema para mais uma de suas canções. A magia e o mistério que

deslumbraram os irmãos Veloso derramam-se em Coisas de Minas e noutras canções,

onde o cotidiano é enquadrado por olhar miltoniano, como na primeira versão de Sofro

Calado, parceria de Milton com Régis Faria que aparece duas vezes em Angelus.

Letra curta, sentimento profundo, melodia que vibra em cores intensas quando

coberta por sons metálicos, pingados pela percussão de Robertinho Silva. Alguns sons

mais agudos, brilhantes, outros, graves, em tons foscos. Correntes se arrastam. Falsetes

miltonianos se irmanam nessa massa sonora, emitindo uma multidão de “primos” em

fagulhas magnéticas. Uma chuva que canta sua beleza sincopada ao desabar sobre o

chão, para depois se erguer em vapor e ressoar no espaço como mar de sinos. Desse

emaranhado, Milton Nascimento emite em voz natural os versos concisos e fortes:

30

Caetano Veloso. “Caetano escreve sobre Bituca.” Jornal do Brasil. (27/11/93). O texto publicado pelo

Jornal do Brasil reproduz trechos de outro texto de autoria de Caetano Veloso distribuído pela gravadora

Warner no momento em que Angelus foi lançado, funcionando como uma espécie de release que

reverberou em críticas jornalísticas sobre esse álbum. Os cortes assinalados pelas reticências entre

parênteses são originais da publicação do jornal. A proximidade de Caetano com Milton Nascimento seria

lembrada na dedicatória de Angelus: “As gravações deste disco foram marcadas pela carinhosa e presente

conversa de Caetano Veloso.” É desse diálogo que Caetano apura suas percepções sobre Angelus no texto

em que discorre sobre o álbum e sobre outros passos da trajetória de Milton Nascimento. Nas linhas

abaixo, algumas das percepções de Caetano sobre o Angelus: “Acho que Milton deve entender com que

intensa delícia ouvi as faixas de seu novo disco. E quanto sentido faz para mim que ele seja um mergulho

profundo na atmosfera de sua intimidade inicial com a música, um entregar-se a ela sem medo – e depois

do medo. De fato, esse disco soa como uma volta à primeira morada. (...) Todas as características que

marcaram a presença de Milton na história da música brasileira – e que lhe possibilitaram reafirmar (e

mesmo alargar e aprofundar) o prestígio de que esta goza no mundo – estão presentes neste disco em

estado puro e num grau de concentração e polimento que só se vê em artistas que crescem quando

amadurecem: não se trata de mera confirmação daquelas características, mas de um aperfeiçoamento do

seu entendimento e uma consequente ampliação de sua eficácia.” (idem, ibidem)

232

Sofro calado

Pra não lhe dizer, a cada

Segundo, o que é um

Segundo sem você

Sinos, o que fisgamos nessa atmosfera, nos remetem mais uma vez às Seis horas

da tarde. Em algumas cidades, como São João Del Rey, os sinos dobram em festa na

hora do Angelus. Ali ouvimos a conversa entre os sinos das igrejas coloniais que

cercam o centro histórico. Fala atirada de uma torre e devolvida de outro ponto da

cidade, atiçando um e mais outro sino em vozes graves, agudas, repinicadas, alongadas.

Um balé coreografado em ondas sonoras de leveza, alegria, choro, angústia. Sensações

que circulam aquele momento em que nos botamos em contemplação. Sons mágicos

que ecoam pelas montanhas, atravessam o cotidiano e inspiram arranjos de canções.

Melodias que fazem pensar que, apesar de tudo, o paraíso pode ser experimentado aqui

mesmo, neste instante. Basta arriscar-se a olhar e ouvir.

É o convite que nos faz a próxima canção, Qualquer coisa a ver com o paraíso

(Milton Nascimento/Flávio Venturini). A peça traz mais um nome internacional para o

clube de Milton Nascimento: Peter Gabriel, ex-integrante do grupo de rock progressivo

Gênesis. Na passagem em que Milton me conta sobre as negociações para a participação

do artista inglês, vislumbramos, mais uma vez, o prestígio de seu nome no cenário

internacional. Milton alude à afinidade musical entre ele e Gabriel, desde os tempos em

que este ainda era integrante do Gênesis:

A coisa que eu mais queria na minha vida era gravar com o Peter Gabriel.

Porque, quando tinha o grupo dele, eles vieram aqui no Brasil; ele já chegou

dizendo que queria encontrar comigo. Só que eles vieram para o Rio e eu fui

para São Paulo. E quando eles foram para São Paulo, eu vim para o Rio. Não

teve jeito. Aí, falei com o pessoal lá, “tem que achar o Peter Gabriel, de

qualquer maneira” e tal. Aí foi aquele negócio, conseguiram achar ele na

África. Ele tava ensaiando um negócio de um pessoal africano que nunca tinha

viajado, nunca tinha nada, né? Aí eu falei com ele. Ele falou: “Que bom cê

falar comigo, tal, tal, tal. Agora, pra quando é pra gente gravar?” Eu falei:

“Ah, no máximo um mês ou dois.” Aí ele falou assim: “Bom, então nós vamos

ter que deixar para uma outra época, um outro disco teu eu prometo que eu

gravo. Tá legal?” Eu falei: “Tá legal.” Daí explicou o porquê, não podia

deixar o pessoal lá. Aí ele desligou, eu fiquei meio triste assim... quinze minutos

depois ele liga: “dia tal você pode ir a Pittsburgh?”, falei, “posso”. “É porque

nós vamos viajar da África pra aí, vamos para Pittsburgh, e eu vou ter um dia

off, e a gente pode gravar nesse dia. Será que dá pra você?”. Falei: “Se dá pra

mim? Claro!” Aí gravamos, foi um negócio!

O relato surpreende a quem já ouviu ou ouvirá o dueto de Milton Nascimento e

Peter Gabriel em Qualquer coisa a ver com o paraíso. Do encontro rápido resultou uma

233

performance intensa, daquelas que projeta a espontaneidade proporcionada por vozes

que se reconhecem e têm intimidade. Nesse caso, a intimidade provocada pela

admiração compartilhada por artistas que, ao longo das respectivas carreiras, fizeram de

suas vozes ferramentas para voos ousados, construindo assim uma versatilidade que

estimula a aventura criativa.

O título da canção propaga a lembrança do morro de Três Pontas, famoso pelo

pôr do sol descrito em histórias miltonianas. Seu nome, Paraíso. De lá de cima, a voz se

lança, caçando a resposta de outra montanha que, ao mesmo tempo, é extensão do

próprio morro. Falas vizinhas no efeito sonoro e distante do eco. Da fazenda do Grotão

um sinal de fumaça a Pittsburgh. A imagem aqui pintada ganha nitidez e se projeta

através do dueto de Milton e Gabriel. Na introdução, o ambiente calmo alicerçado em

vocalises miltonianos. Peter Gabriel lança uma frase melódica, que, em certo ponto, é

sobreposta por Milton Nascimento em tom grave. No quase toque, a passagem. A voz

de Milton ganha o centro da cena, ascendendo descansadamente até chegar aos céus em

falsete. Nas alternâncias e sobreposições iniciais, a sintonia de vozes que se reconhecem

num princípio de conversa que vai se apurando aos poucos. Diálogo produzido num

cântico que faz das nuances vocais desses dois artistas o vocabulário de um idioma

desabrigado de palavras.

Os arranjos produzem a nuvem quase dispersa de um fim de tarde, contornando

e realçando a beleza dessas vozes-raios-solares. Nuvem suave de sons, que sugerem ares

sublimes extraídos por Flávio Venturini do violão e por Hugo Fattoruso, do piano. Túlio

Mourão ocupa-se do teclado, João Baptista, do baixo fretless, e Robertinho Silva, da

bateria e percussão, que conta ainda com Vanderlei e Ronaldo Silva. De repente, os

sons dos instrumentos caçam uma pulsação quente, encorpando esse ambiente e

estimulando aquelas vozes a brincar num jogo onde visitam suas múltiplas facetas em

frases ligeiras e longas, entremeadas e emaranhadas em tons graves, agudos e falsetes

propagados por distintas direções. Um dueto duelado, provocação que leva à ousadia

criativa. Vozes que proporcionam, uma à outra, a experiência de um voo livre. De onde

estão, compõem uma pintura sonora das lembranças de Milton Nascimento sobre

longínquos fins de tarde em Três Pontas. A performance ainda inspira a interpretação de

que aquele paraíso idealizado pode ser experimentado aqui, seja através das belezas que

nutrem nosso cotidiano ou do redescobrimento da liberdade como forma de encarar a

vida.

234

Nesse entremeio, as cores propagadas pelos últimos raios solares produzem o

encontro num lugar terceiro, estágio entre o lá e o cá. A fronteira-abismo entre

territórios-montanhas é vencida por aquelas vozes ressonantes que fazem do canto sem

palavras uma fonte cujas águas se espalham em tons de linguagem universal para

remover todos os obstáculos interpostos entre o perto e o longe. Às tentativas de

enquadramento dos cantores em jargões como o da World music os dois artistas

responderiam com essa amálgama de cores fortes povoada dos mais diversos sotaques.

O que se capta aqui se alastra por todo o álbum Angelus. Naquele cenário dos

anos 90, a Warner apostaria alto na carreira internacional de Milton Nascimento. Em

comentário à imprensa, o então presidente nacional da gravadora, Beto Boaventura,

afirmaria: “Milton será um artista prioritário dentro da estrutura multinacional da

Warner. Do ponto de vista da gravadora, esse contrato é um grande desafio.”31

Ao

artista seria concedida liberdade para produzir sua música, com prerrogativas

direcionadas no investimento numa carreira internacional. Assim, ao ser questionado

sobre a sua relação com a nova gravadora – “como foi trabalhar com a Warner?” –,

Milton Nascimento destacaria:

Foi ótimo. Descobri em Los Angeles que eles conheciam muito bem minha obra

e também se antecipavam a tudo que eu pretendia exigir. Antes que eu dissesse

qualquer coisa, eles sugeriram que meu disco fosse, acima de tudo, brasileiro,

sem compromissos óbvios com o que chamam de “world music”. As outras

gravações queriam que eu cantasse em inglês. Posso até gravar uma ou outra

canção em inglês, mas não por obrigação nem com muita frequência. Paul

Simon, por exemplo, se ofereceu para escrever uma letra para mim e sugeriu

que Laurie Anderson escrevesse outra. Vou colaborar também com a Joni

Mitchell.32

No decorrer de sua fala, portanto, Milton Nascimento salienta a liberdade que

recebeu da gravadora. Uma liberdade até mesmo de recusar propostas sugeridas. Em

discos anteriores, como Courage e Milton (1976), o artista gravou algumas faixas em

versões bilíngues, em português/inglês. Mas, em Angelus, Milton gravou apenas uma

canção em inglês. Optou por enveredar por outros percursos para dialogar com

localidades distantes, como observado em Qualquer coisa a ver com o paraíso, uma das

4 faixas sem letra, do total de 15 canções que compõem o disco. Evidentemente, não

podemos atribuir as escolhas de Milton Nascimento unicamente às exigências de uma

carreira internacional, pois, ao longo de sua trajetória musical, mesmo em gravações de

31

Beto Boaventura Apud Mauro Ferreira. “O fim da travessia”. O Globo (11/05/1993) 32

Milton Nascimento em entrevista a Sérgio Augusto. “Milton renasce como o anjo das Gerais”. Op. cit.

235

discos voltados para o mercado brasileiro, o artista sempre realizou experimentalismos

com a voz para comunicar subjetividades impossíveis de serem descritas em palavras.

Dessa maneira, não constituiria barreira para o público internacional o canto em

português. Na performance de Estrelada, por exemplo, Jon Anderson canta em

português, e não Milton em inglês. Simples questão de escolha. Se bem pensarmos,

Milton Nascimento impressionou seus admiradores internacionais pela qualidade e

criatividade de sua obra, e não pelo exotismo do idioma. Estava aí sua linha de

comunicação. Os nomes internacionais que abrigaram seu nome, como os acima

mencionados, circulavam por meios receptivos e até mesmo ansiosos por uma música

que escapasse de padrões pré-formatados. Assim, dos circuitos universitários aos clubes

do jazz, ou mesmo em vertentes do rock, cantar em inglês seria mero detalhe. Ou, numa

inversão, cantar em português seria puro charme em meio àquele som diferente.

No caso do álbum Angelus, descortinam-se formas plurais de comunicação de

subjetividades, como nas interpretações de canções sem letra e de canções cantadas em

português, em inglês ou mesmo em versão bilíngue, caso de Only a dream in Rio, de

James Taylor, mais um membro internacional do clube de Milton Nascimento. Para a

gravação dessa faixa, Fernando Brant verteu para o português os versos que seriam

cantados por Milton. Os versos em inglês permaneceriam na voz de James Taylor.

Nesse dueto, a barreira do idioma não impede o diálogo produzido na musicalidade que

risca uma paisagem, o Rio de Janeiro. Juntaram-se nessa aventura os músicos Jeff Bova

(Teclados), Tony Cedras (Acordeon), Anthony Jackson (Guitarra “contrabass”), Chris

Parker (Bumbo) e Naná Vasconcelos (percussão). A atmosfera sonora que se instala

mostra uma caravana musical em diálogo pelo idioma música. Naná Vasconcelos dá a

dicção local, contagiando as falas de outros instrumentos com um balanço que dá

leveza. Nessa conversa entre instrumentos, as partículas que rondam as vozes de James

Taylor e Milton Nascimento ajudam a compor o cenário carioca com traços de cartão

postal brasileiro pintado com tintas cosmopolitas: “O lugar de onde eu vim/Brota no

coração/ O lugar aonde eu nasci/ Está no mundo e em mim”. A frase solta, em

vocalização melodiosa da boca de Milton Nascimento, tece a proximidade entre aquele

lugar do mundo e o sentimento que nutriu em terras mineiras (“Sou do mundo, sou

Minas Gerais”), mostrando, mais uma vez, o rompimento de fronteiras na adoção de

uma identidade que vai do local para o universal. Rio de Janeiro, cenário que projetou o

nome de Milton através do II FIC (Festival Internacional da Canção), também trazia

236

boas lembranças a James Taylor, como menciona Tárik de Souza, ao referir-se à cidade

como “... a terra onde [James Taylor] ressuscitou, num boca-a-boca com a multidão do

primeiro Rock in Rio.”33

No diálogo entre as vozes de Milton e James Taylor, a vista é apreendida em

imagens que capturam as múltiplas facetas do Rio de Janeiro: os ares paradisíacos, os

problemas sociais, a exuberância da música etc. É como se as percepções da voz de

dentro, somadas às impressões do olhar estrangeiro, compusessem um grande mosaico

que reverberasse a beleza contrastante da cidade.

A terra é minha mãe

O mar é o meu chão

O verde é a luz

Sorrindo em meu olhar

Pois eu digo, é mesmo um sonho o Rio

Tudo será como deve ser

Quero estar com você lá

Eu garanto, é um lugar diferente

A minha gente carrega uma cruz

Mas tem força pra mudar

Strange taste of a tropical fruit

Romantic language of the portuguese

Melody on a wooden flute

Samba floating in the summer breeze

It’s alright you can stay asleep

You can close your eyes

You can trust the people of paradise

To call your keeper

And tender your goodbyes

Oh What a night wonderful one in a million

Frozen fire brazilian stars

Oh holy southern cross

Later on take me way downtown in a tin can

I can’t come down from the banstand

I’m never thrown for such a loss when they say

O lugar de onde eu vim

Brota no coração

O lugar onde eu nasci

Está no mundo e em mim

O lugar que a gente sonhar

Pode existir, existirá

33

Tárik de Souza. “‘Angelus’ das Gerais”. Jornal do Brasil (09/11/1993)

237

Vive em nós e viverá

Enquanto houver canção

Caught in the rays of the rising sun

On the run from the soldier’s gun

Shouting out loud from the angry crowd

The mild the wild and the hungry child

I’ll tell you there’s more than a dream in Rio

I was there on the very day

Dói demais o coração

E era mais

Mais do que nossas vozes

Mais do que o nosso rosto

Mais do que a luz do olhar

Na continuação, James Taylor e Milton Nascimento põem de lado a alternância

de estrofes bilíngues e passam a interpor frases em inglês e português, com James

Taylor lançando uma frase in english, e um coro de vozes miltonianas, em resposta,

vertendo uma a uma para o português, num esforço por traduzir aquele encontro.

But it’s more than the shining eye

Mais do que a luz do olhar

More than the steaming green

Mais do que o verdejar

More than the hidden hills

Tudo o que não se viu

More than the concrete Christ

Mais do que o Redentor

More than a distant land

Mais do que a terra mãe

Over shining sea

Mais do que céu e mar

More than a hungry child

A fome a nos doer

More like another time

O tempo a nos curtir

Born of a million years

Mais do que um milhão

More than a million years

De anos pra sonhar

Em termos práticos, o bilinguismo ampliaria a comunicação do discurso aos

diversos lugares por onde circulasse a canção: no Brasil, nos Estados Unidos, ou onde

mais. No entanto, artistas criativos e sensíveis que são, Milton Nascimento e James

Taylor fizeram da letra bilíngue muito mais que mera tradução simultânea. Com o

incremento de suas performances, através da tessitura vocal, promoveriam uma

quentura de sentimentos, no suave balanço dos arranjos, de forma a deslocarem a

238

tradução do verão carioca para além das descrições habituais, em total sintonia com a

letra: “Mais do que o Redentor/mais do que a terra mãe/mais do que céu e mar”.

Interpretações sensíveis como as de Milton e James Taylor revelam, antes, um esforço

mútuo de ser compreendido, sem prejuízo das práticas comuns em lugares

cosmopolitas, visitados por turistas de tantos lugares, onde os idiomas se misturam em

diálogos inimagináveis: cada falante procura se expressar da forma que lhe é mais

confortável – quem sabe muito do idioma estrangeiro faz a mediação entre o “gringo” e

os locais; os que sabem pouco, ou quase nada, dão lá o seu jeitinho, por vezes se

valendo de inusitados malabarismos. Assim, entre palavras soltas, pedaços de frases

num e noutro idioma, repetições e entonações, faz-se o milagre da comunicação. E

nesse milagre, a constatação primaz de que, mais do que simples palavras, o que os

falantes buscam mesmo são linguagens aptas a traduzir subjetividades.

Nossa parada em Only a dream in Rio demonstra como Milton Nascimento fez

da sugestão de sua gravadora uma possibilidade de dar asas à sua criatividade. Em

matéria da época, o que vem descrito como sugestões da Warner para uma carreira

internacional, reflete, na verdade, o perfil cosmopolita do próprio Milton. A canção

gravada com James Taylor e a opção pela gravação de Hello Goodbye, dos Beatles,

demonstram isso: de longa data, o cantor nutria uma afinidade musical com James

Taylor, e os Beatles, desde sempre, foram uma de suas referências:

Eu tinha improvisado Hello Goodbye, que está no Planeta Blues ao vivo. Repeti

a versão e entreguei a Gil Goldstein, junto com o Sgt. Peppers. Disse a ele que

ouvisse os Beatles até cansar antes de fazer o arranjo para mim. (...) E quando

me sugeriram Only a dream... bom, eu detesto o James Taylor. Foi um grande

barato.34

Milton não se furtaria a gravar canções que estivessem em sintonia com a sua

música, independente do idioma em que tivessem sido escritas. Num álbum onde enreda

algumas de suas memórias, a canção dos Beatles, por exemplo, remete aos tempos de

Clube da Esquina, ao ambiente de convivência com Lô Borges e Beto Guedes, ao

espírito daquele momento, que passou a ser eterno em sua obra; ou mesmo a períodos

anteriores, quando Milton ia com Lô Borges ao cinema para ver os filmes do grupo

inglês. Hello Goodbye faz parte do repertório da trilha sonora do filme Magical Mystery

Tour, estrelado pelos Beatles em 1967. Sgt. Peppers foi um marco musical, por ser um

34

Milton Nascimento Apud “Gabriel e Jon Anderson estão no álbum de Milton” O estado de S. Paulo.

Op. cit.

239

álbum conceitual em que o grupo inglês se jogou em experimentalismos sonoros,

tornando-se referência para vários grupos. A crítica brasileira, por vezes, faz a ponte

entre este trabalho dos Beatles e o álbum Clube da Esquina, apontado como uma

espécie de Sgt. Peppers brasileiro. O elogio é bem-vindo quando, no contexto da crítica,

a comparação se constrói no interesse de apontar o Clube da Esquina como tributário do

esforço dos Beatles em inaugurar novos discursos musicais. Entretanto, quando tal

comparação se direciona para a submissão do Clube da Esquina a parâmetros formais a

partir do trabalho dos Beatles, perde-se a oportunidade de enfrentar um instigante

diálogo entre um trabalho e outro.

Ao entregar a Gil Goldstein o Sgt. Peppers, Milton Nascimento sugeria que os

arranjos se inspirassem na criatividade dos arranjos feitos por George Martin. A

lembrança desse disco emitia o passaporte para o território do espírito inventivo, lugar

onde esperava ser gestada a sua versão personalizada de Hello Goodbye. Se aquela era

uma homenagem a uma de suas referências, ela só poderia ser levada a termo mediante

tratamento que aplicasse novos timbres à canção e favorecesse uma interpretação que

reinventasse o espanto da gravação original. Queria, noutras palavras, uma interpretação

criativa, vizinha da que fez em seu disco ao vivo, O planeta Blues na estrada do sol, de

1991.

A versão de Hello Goodbye, gravada pelos Beatles, tem trama sonora arquitetada

por frases melódicas de instrumentos elétricos com dicção roqueira. Gritos estridentes

perfuram esse ambiente de cores densas. Somados ao andamento acelerado, traduzem

sonoramente a palpitação angustiante de um “hello” que sempre recebe de volta um

“goodbye”. Relação conflitante em tom de eterna despedida. Fazem da estridência um

grito que incomoda o nó na garganta.

You say yes

I say no

You say stop

And I say go, go, go

Oh! No

You say goodbye

And I say hello

Hello, hello

I don’t know why you say goodbye

I say hello

Hello, hello

I don’t know why you say goodbye

I say hello

240

I say high

You say low

You say why

And I say I don’t know

Oh! No

You say goodbye

And I say hello

Hello, hello

I don’t know why you say goodbye

I say hello

Hello, Hello

I don’t know why you say goodbye

I say hello

“A influência beatle, nunca negada, retine em releitura majestosa de Hello

Goodbye, orquestrada por Gil Goldstein para um desempenho próximo do canto

lírico.”35

O trecho recortado é extraído da crítica de Tárik de Souza ao álbum Angelus.

Nele, visualiza-se o deslocamento feito na versão de Milton Nascimento para Hello

Goodbye. Sobressai a voz em falsete, que se faz acompanhar ao violão, sob ornamentos

da orquestra regida por Gil Goldstein, grande nome do jazz.

A voz, emitida quase todo o tempo em falsete, flana suavemente em andamento

desacelerado. O canto inspira delicadeza e conduz ao plano intimista, onde a angústia da

versão beatle se transfigura em doce melancolia. Delicadeza emitida em partículas

infantis e femininas dessa voz que nos toma nos braços e acalenta. As cordas da

orquestra insinuam uma nuvem lamentosa que, descansadamente, toma contornos de

puro lirismo. É um canto para si mesmo, um mergulho para dentro, num conflito

interno, que, vez ou outra, quando a voz escapa em forma de grito, ganha o exterior.

Percebe-se aí um oceano de leituras possíveis a partir do virtuosismo vocal em

serviço da interpretação. Diante de uma obra que lhe inspira admiração, o artista se

lança num jogo onde cantar é compor, aplicar sentidos e nuances capazes de insuflar

beleza em território já tão conhecido. Como criança arteira, que inverte as regras de suas

brincadeiras prediletas, Milton se apropria criativamente de uma de suas referências,

demonstrando curiosidade e inquietação artística. Nessa performance, o intérprete se

esbalda no reinvento de uma obra-prima, reverenciando-a, ao amparo da mobilidade

discursiva latente na canção. A respeito desse tema, Adalberto Paranhos afirmaria:

35

Tárik de Souza. “‘Angelus’ das Gerais” Jornal do Brasil (9/11/1993)

241

Canção alguma é uma ilha voltada para dentro de si. Nem seria possível

submetê-la a uma blindagem que a mantivesse a salvo de qualquer tentativa de

reapropriação de seus sentidos. Por mais cristalizadas que sejam as leituras que

façam dessa ou daquela canção, sempre subsiste a possibilidade de reanimá-la

com novos sopros de vida. E, conforme o caso, mais do que evidenciar a

agregação de outros significados, uma composição pode sair inteiramente dos

eixos.36

Nesse passeio por rotas de sua trajetória através do tecido da memória, Milton

Nascimento traz algumas canções que traduzem marcos de sua carreira. Uma delas puxa

o espírito da movimentação que deu densidade ao seu som e que foi propagada pela sua

voz: o Clube da Esquina, lembrado através da gravação da canção Clube da Esquina 2.

No olhar dirigido a essa peça do repertório de Milton, percebe-se que a visita ao passado

também se dá no plano da mobilidade, da transformação, buscada na interpretação e em

arranjos que desdenham da cristalização de uma obra alçada à categoria de clássica.

Milton Nascimento conta sua história a partir do seu tempo, pois o tempo do artista é

sempre o agora. Assim, no tratamento dado à canção Clube da Esquina 2, despeja

informações que misturam a trajetória da canção com a do cantor-compositor.

Pelo som do órgão elétrico manejado por Túlio Mourão escorre a frase melódica

vibrante que nos encaminha às águas da memória. Aquele é um trecho da melodia de

Clube da Esquina 2. A levada calma toma o ambiente, formando um espelho d’água a

se perder no horizonte. Dele, emerge a voz límpida de Milton Nascimento, que lança

melodia e palavras, pronunciando histórias sobre o Clube da Esquina 2. De seu lugar de

tema instrumental que compunha o repertório do álbum Clube da Esquina à canção com

letra de Márcio Borges nessa versão do Angelus já se opera uma grande mudança, pois

as palavras que agora enfeitam a melodia passam também a compor quadros do

cotidiano que antes a canção não possuía. Da letra escapolem imagens captadas da

ambiência de uma grande cidade em seu dia-a-dia, que traduzem, a um só tempo, o

clima de uma época: “Em meio a tantos gases lacrimogêneos”.

Porque se chamava moço

Também se chamava estrada

Viagem de ventania

Nem lembra se olhou pra trás

Ao primeiro passo, aço, aço, aço

Porque se chamavam homens

Também se chamavam sonhos

36

Adalberto Paranhos. “A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo”. Revista

ArtCultura. Uberlândia: EDUFU, 2004, p.26.

242

E sonhos não envelhecem

Em meio a tantos gases lacrimogêneos

Ficam calmos, calmos, calmos...

E lá se vai mais um dia

E basta contar compasso

E basta contar consigo

Que a chama não tem pavio

De tudo se faz canção

E o coração na curva de um rio, rio, rio...

E lá se vai mais um dia...

E o rio de asfalto e gente

Entorna pelas ladeiras

Entope o meio-fio

Esquina mais de um milhão

Quero ver então a gente, gente, gente...

Em seu livro, Márcio Borges relembra que foi praticamente intimado por Nana

Caymmi a escrever uma letra para a canção, concebida como instrumental pelos autores

Milton Nascimento e Lô Borges. A cantora queria gravá-la, por isso clamava pela letra.

Fui para o apartamento que agora dividia com Henrique Leiner e no dia

seguinte fiz a letra. Depois, conforme combinado, entreguei direto nas mãos de

Nana. Ela foi para o estúdio e gravou. Só depois do fato consumado é que

Bituca e Lô se renderam à evidência: “Clube da Esquina 2” tinha letra.37

De fato, na versão do disco Clube da Esquina, o lugar de tema musical fazia da

canção um pretexto para os músicos se soltarem e viajarem em improvisos num diálogo

apurado no virtuosismo. Naquele ambiente, Milton Nascimento fazia de sua voz mais

um instrumento, ora se colando ao violão, como se juntos fossem a mesma voz, ora se

jogando em falsetes flutuantes, escapando em linhas de fuga. Após receber letra, a

canção ganhou versões gravadas por Nana Caymmi e também por Lô Borges. Em

Angelus, Milton Nascimento gravaria pela primeira vez essa versão com letra.

Na imagem de transmutação da massa sonora em espelho d´água, também

visualizamos o corte daquela superfície. A aparente calmaria tremula em ondas

produzidas por folhas-galhos-percussivos. A voz atravessa a superfície revolvendo as

profundezas desse lago da memória. Ondas largas e curtas, agitadas e tranquilas, galhos

sobre águas. Movimentos que soerguem recordações. A voz atira lembranças em forma

37

Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem. Op. cit., p. 337.

243

de som e palavras. Assim, ao recordarmos certos versos, eles tomam feição de

catalisadores da comunicação entre o Clube da Esquina e o espírito de Angelus. “Que a

chama não tem pavio”. Naquele passado, a fonte para o presente. A inquietude que

paira na atmosfera de Angelus é acionada numa imagem que remete à criatividade de

seu álbum-irmão, o Clube da Esquina. Num momento solo, Milton Nascimento lança

improvisos em falsete que se casam com os acordes do violão, ecoando a memória do

manejo que experimentou na primeira versão, agora de maneira distinta, porque o

momento é outro. Ao variar no recurso de um “violão vocalizado”, utilizado feito uma

marca, surpreende a recordação em nova suspensão contemplativa, estabelecida por

delicadeza e criatividade. Tais visitas ao passado alertam para o presente e para o futuro.

“Esquina mais de um milhão”. O verso serve de metáfora para se pensar o momento de

Angelus. A canção Clube da Esquina 2, rodeada por tantas outras que compõem essa

trama movediça, ergue-se como um monumento imaginário que ressoa em suas ondas

invisíveis uma outra fala pulsante: Clube da Esquina 3. Em Angelus Milton caçava

aquela energia criativa de uma produção coletiva, mas ao mesmo tempo mostrava como

seu clube havia se ampliado, reunindo agora um time internacional de amigos que

comungavam da mesma fé de que “os sonhos não envelhecem”.

Um caleidoscópio sonoro a projetar memórias num ambiente onde as

temporalidades se cruzam, em desafio dos limites entre passado e presente, eis o que se

colhe da visita a certas canções do repertório de Milton Nascimento. Trata-se de um

jogo onde as melodias remetem a vivências do passado e reconfiguram os percursos que

as trouxeram até o presente. Angelus, um território de memórias despedaçadas, motivo

que insinua o todo numa levada que ignora o traço ordinário da linearidade. O caminho

é ladrilhado em afetividades. “A memória opera com grande liberdade escolhendo

acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam

através de índices comuns.”38

, lembra Ecléa Bosi. Nesse patamar, a presença de

algumas canções e o tratamento a elas dispensados surpreendem. É o caso de Vera

Cruz, Novena e Amor amigo, gravadas com toda a turma do jazz reunida em estúdio

nova-iorquino: Milton Nascimento (voz e violão), Robertinho Silva (percussão), Herbie

Hancock (piano), Pat Metheny (guitarra), Ron Carter (baixo), Jack DeJohnette (bateria).

38

Ecléa Bosi. “A substância social da memória” In: O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia

social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 31.

244

Voz central, fala dispersa, frase-comentário, um grito de continuação, canto

firme, passagens. Tudo ao mesmo tempo, numa explosão de começos onde cravam-se

rotas distintas de uma mesma travessia sonora. Caminhos que circulam e levam até

Vera Cruz. Um ambiente sonoro constituído na improvisação coletiva. Atmosfera

quente e intimista, onde o vulto de cada voz instrumental ganha nitidez através de

passos inesperados. Frases curtas e longas num tempo de pulsações diversas. A voz de

Milton Nascimento paira no ambiente, assumindo o lugar de canto inventivo, produtor

de viagens pelo vento, como vem nos versos da canção:

Hoje foi que a perdi

Mas onde, já nem sei

Me levo para o mar Em Vera me larguei

E deito nessa dor

Meu corpo sem lugar

Ah! Quisera esquecer

A moça que se foi

De nossa Vera Cruz

E o pranto que ficou

Da morte que sonhei

Nas coisas de um olhar

Ah! Nos rios me larguei

Correndo sem parar

Buscava Vera Cruz

Nos campos e no mar

Mas ela se soltou

No longe se perdeu

Quero em outra mansidão

Um dia me ancorar

E aos ventos me esquecer

Que ao vento me amarrei

E nele vou partir

Atrás de Vera Cruz

Ah! Quisera encontrar

A moça que se foi

No mar de Vera Cruz

E o pranto que ficou

Do norte que perdi

Nas coisas de um olhar

Noutros momentos, a voz de Milton se veste de falsete, lançando vocalises,

emissão de sua face instrumental. Atiça assim o canto solo da guitarra de Pat Metheny.

Depois, o piano de Herbie Hancock. Esses momentos “solos” não intimidam Ron

245

Carter, Jack DeJohnette e Robertinho Silva a criarem toda uma cena paralela. Um clima

de jam session numa performance onde se respira criatividade, linha que enlaça Vera

Cruz ao jazz, gênero que se tornou sinônimo de liberdade. Mais do que fazer jazz

pretendia-se praticar a liberdade criativa atribuída a ele.

“Ah! Quisera Esquecer/ A moça que se foi/ De nossa Vera Cruz”. Os versos,

escritos ao final da década de 60, reclamam, agora mais do que nunca, uma ausência.

Num cenário de ditadura militar, “a moça que se foi” toma feição de liberdade.

Liberdade que atribuímos ao plano político, mas que se desdobra para outros campos.

Na leitura acima apresentada, Vera Cruz ecoa seu grito de liberdade no território da

canção no cenário dos anos 90. Alguns cerceamentos eram e são impostos pelo próprio

mercado da música, como Milton Nascimento salientou quando ainda divulgava o disco

Txai:

O problema da MPB não é falta de material humano, mas sim o controle que os

produtores e grandes empresários exercem sobre a música e a capacidade que

eles têm de ditar o que vai fazer sucesso ou não. Tenho certeza de que, se eu

fosse um artista novo, nunca conseguiria gravar um LP nos dias de hoje.39

Em sua fala, sintomas da restrição da liberdade criativa que se fazem sentir em

variadas esferas do campo da música. Tomemos como exemplo as tecnologias

sofisticadas do momento. Elas favoreceram a prática de divisão das etapas de gravação

de um disco. Algumas dessas etapas, inclusive, eram executadas em distintas

localidades. Assim, em muitos casos, os músicos não mais se reuniam em estúdio para

gravar. Em reflexão sobre o tema, Tosta Dias pondera:

A universalização das técnicas e a consagração mundial de fórmulas musicais

padronizadas conferem um ar de semelhança à produção mais diversificada e

dilui o que, potencialmente, os recursos tecnológicos poderiam ressaltar como

especificidades dos produtos.40

A questão se mostra complexa. As novas tecnologias proporcionariam maior

sofisticação das gravações. Gravar separadamente possibilitava performances “mais

redondas”, mas também produzia acomodações em padrões. Aquele clima de produção

coletiva em estúdio havia se diluído mesmo em segmentos musicais considerados mais

inventivos. Em nossas reflexões sobre Angelus, vimos exemplos de canções em que a

39

Milton Nascimento Apud André Barcinski. “Milton quer fazer ‘Graceland” para os índios”. Folha de S.

Paulo (21/02/1991) 40

Marcia Tosta Dias. Os donos da voz: a industria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura.

Op. cit., p. 124.

246

inclusão de novos instrumentos foi feita posteriormente; entretanto, isso se deu numa

trama instrumental elaborada e maturada na convivência em estúdio. Assim, encontrou-

se um meio-termo, utilizando-se produtivamente os novos recursos, como caminhos

para encorpar, e não diluir, a sonoridade das canções. No caso de faixas como Vera

Cruz, ia-se adiante. Aquele clima de jam session caçava o calor de gravações

promovidas na inquietação do encontro. Através de performances como esta, Milton

Nascimento e seus parceiros ignoravam padrões e retomavam a energia criativa

promovida pela espontaneidade de diálogos entre amigos. Se como artista novato não

conseguiria divulgar sua música, Milton mostrava como de seu lugar de artista

consagrado contribuiria para criar linhas de fuga naquele cenário. O clima das

gravações de Angelus ressoaria nas memórias a respeito do disco. Numa passagem

recente pelo Brasil, Ron Carter concedeu entrevista ao Correio Braziliense. Em texto de

Pedro Brant, o músico é apresentado como “a principal referência viva do contrabaixo

no jazz.” O texto ainda dá conta do amplo diálogo de Ron Carter com a música

brasileira, de onde surge a recordação de Angelus:

Poucos jazzistas americanos têm uma relação tão próxima com a música

brasileira quanto Ron Carter. O contrabaixista já participou de discos de Tom

Jobim, Hermeto Pascoal, Luís Bonfá, Eumir Deodato, Astrud Gilberto e Milton

Nascimento – com quem, ele contou, em entrevista ao Correio, fez sua gravação

brasileira favorita, uma das faixas do disco Angelus, de 1993.41

Nessa mesma levada criativa, somos conduzidos a Novena, canção que naquele

momento recebeu especial atenção da imprensa pelas memórias que a circundavam. Era

mencionada como a primeira composição feita por Milton Nascimento, embora o artista

já tivesse composto Barulho de Trem, que só veio a aparecer em disco posterior, o

Crooner, de 1999. No entanto, Novena desponta como um marco do momento em que

Milton se assumiu como compositor, depois de assistir ao filme Jules e Jim com Márcio

Borges. Beto Guedes já havia gravado essa canção em seu álbum Amor de índio, 1978,

mas ela só receberia uma versão de Milton nessa experiência do Angelus.

Novena, ou Paz pelo amor que vem, surge numa melodia de frases alongadas e

suspensas, movimentação que inspira lembrança do traço de parábolas, como arco-íris

de cores densas. A voz em falsete se deixa levar na intensidade desse voo, ascendendo

até a curva onde mergulha na imensidão de seu universo interior. Viagem para dentro,

num canto preciso, tradutor de emoções. Junto da voz, as falas instrumentais erguem

41

Pedro Brant. “Cavalheiro do jazz”. Correio Braziliense . (01/06/2010).

247

aquele clima de improviso coletivo. Em seu embalo, a vertigem de uma queda livre

produzida por cores dissonantes. Ou o ambiente ao redor se desmanchando. Voo largo

nas primeiras estrofes, caminho melódico aberto em incansáveis retornos: “Tem sua vez

de lá retornar/ ao lugar mais fundo/Fundo, fundo, mais que mar.” Retornos, melodia

circular que causa a impressão de estabilidade, logo quebrada por distinta direção, lugar

onde surpreende em combustão: “Se digo sol”.

Se digo ai

É por ninguém

É pela certeza

De saber que tudo tem

Tem sua vez de lá retornar

Ao lugar mais fundo

Fundo, fundo, mais que o mar

Se digo sol

Não tem talvez

Não espero mais a chuva

Só preparo meu começo

A explosão de toda luz

A chama, chama, chama, chama

Se digo amor

Só é por alguém

É pelos malditos

Deserdados desse chão

Uma jam session de cores angustiantes, conversa afiada em curvas minuciosas

que enchem o espaço. Lugar construído em quebras constantes pela criatividade dos

músicos. Nessa dinâmica, acionamos as curvas das memórias que a canção guarda sobre

a trajetória de Milton Nascimento. Tempos de começos, a jam session daqui faz

recordar das jam sessions da época do Berimbau Club em Belo Horizonte. Recordações

da atmosfera do filme Jules e Jim e das primeiras referências de jazz que sensibilizaram

o artista. Sua paixão pelos conjuntos de Miles Davis. Tempos que, como os da canção

que remetem aos Beatles, se traduzem nos versos: “Eu sou da América do Sul/Eu sei,

vocês nem vão saber...” Naquele estúdio, fagulhas de memórias traçavam a linha entre

passado e presente.

Quando eu imaginaria gravar Novena, minha primeira música, com Herbie

Hancock, Ron Carter, Pat Metheny e Jack DeJohnette? Na época que eu a

escrevi, há trinta anos, com exceção do Pat, o mais novo, eles eram meus ídolos.

248

Aliás, eles não acreditaram que essa fosse minha primeira composição com esse

nível e tivesse ficado até hoje inédita.42

Às memórias da época em que eram seus “monstros sagrados” somavam-se os

percursos que os convertiam em parceiros e amigos. Herbie Hancock, por exemplo,

participou de variados discos de Milton Nascimento ao longo dos anos. No caso de Pat

Metheny, de uma geração mais recente, Milton e Clube da Esquina ainda se

configurariam como referência. Travessias anunciadas pelos arranjos da canção,

adornos instrumentais que retomavam os encontros e enredos da trajetória miltoniana.

Nessa aventura, a surpresa provocada em seus ídolos se afigura como saborosa

recompensa.

Quando a gente foi fazer o Ângelus, estava aquele pessoal todo do jazz; eu

passei essa música pra eles e falei pro Pat [Metheny]: “essa é a primeira música

que eu fiz”. O Pat sentou-se e mostrou a primeira que ele fez. Desde a gravação

do Beto, eu dava um acorde diferente para entrar na segunda parte; então o

mesmo aconteceu lá em New York com os jazzistas. Na hora em que eu dei o

acorde, todo mundo parou; pra mim, estava acontecendo a melhor gravação

daquela música. Eu perguntei: “mas o que houve”? Eles olharam pra mim e

falaram: “é o acorde”. Eu disse: “mas é assim!”. “É assim?”. “É”. Aí eu olhei

pra cara do Ron Carter – Ron Carter me chama de maestro –, estava com o

sorriso até aqui. “Quer dizer que é assim?”, perguntou Jack DeJohnette. “É”,

falei. “É loucura, né?”. “É”. “Oba!” [Risos]. E eu pensando: “pô, será que

derrubei meus mestres?”43

Surpresa, criatividade, energia que alimenta os voos desses artistas em diálogos

provocativos. Milton Nascimento bebeu da linguagem de seus ídolos para alçar novos e

surpreendentes voos. Nessa conduta, acabaria ele próprio, ainda nos anos 60, se

transformando numa referência capaz de imprimir frescor ao segmento jazzístico. E,

posteriormente, a outros segmentos musicais, como vimos ao longo desse capítulo.

Em Angelus, o clima de jam session toma ares mais intimistas na gravação de

Amor amigo, parceria de Milton com Fernando Brant, anteriormente gravada no álbum

42

Milton Nascimento em entrevista a Tárik de Souza. “Milton agora é do mundo”. Op. cit. 43

Milton em entrevista a Chico Amaral In: Chico Amaral. A música de Milton Nascimento. Belo

Horizonte: Editora e consultoria Gomes, 2013, p. 84. Numa passagem anterior, Milton explica a mudança

de acorde: (...) a única coisa que eu sei é que eu não queria fazer nada parecido com o que os outros já

tivessem feito. Quando comecei a fazer Novena, que naquela época se chamava Paz do Amor que Vem, já

é uma coisa, porque ela começa com aquele acorde menor [ré menor com sétima] e depois, no final o

acorde muda [fá menor com baixo em ré], que não tem nada a ver com a primeira parte, mas isso saiu

assim, sabe? Eu sempre falo que as coisas que eu faço têm muito a ver com cinema. Então, para mim,

aquilo foi bênção de Deus pra eu continuar fazendo, e é diferente mesmo. (Idem, ibidem, p. 83.) (As

intervenções dentro da fala de Milton Nascimento são originais do texto).

249

Caçador de mim, de 1981. Na versão de Angelus, a canção se despe de versos e é

emitida a partir de vocalizações de Milton Nascimento, que se acompanha ao violão,

circundado por Pat Metheny, também ao violão, e Herbie Hancock, ao piano. Elabora-se

um bate-papo entre vozes instrumentais que demonstram todo o seu traquejo no idioma

da música. Vozes que se provocam, complementam-se, ecoam a fala da outra, irmanam-

se na simplicidade e virtuosismo, fazendo de Amor amigo um canto de exaltação ao

território da música, lugar de onde memórias de emoções e sensibilidades afloram em

cores plurais.

Angelus se fecha sem se encerrar, em tom de passagem. Deixa no ar esperanças

de futuros. A última faixa do álbum é uma nova aparição de Sofro Calado em distinta

leitura. Milton Nascimento, sozinho ao piano, numa interpretação comovente, que

desperta algumas outras histórias.

O Régis Faria, filho do Reginaldo Faria, tem uns vinte e poucos anos, somos

amigos, há muito tempo. Ele não pretende fazer carreira na música, seu

interesse é televisão. A letra de Sofro calado é um trecho de uma carta que

escreveu para a namorada. Achei tão bonito que resolvi musicar. A faixa ia ter

três versões, mas só deu pra entrar duas. A com piano tem um clima de Última

sessão da música, mas é uma evocação de Pablo.44

Um clima de Última sessão da música no que ela tem de suspensão. Um instante

em que se deixa levar por uma saudade. Última sessão da música compõe o repertório

de Milagre dos peixes, onde também se encontra a canção Pablo – relembrada em

citação no arranjo de Sofro Calado –, que Milton Nascimento compôs em homenagem

ao filho, ausência doída em Angelus.

No caleidoscópio de memórias de Angelus, canções se impregnam de

recordações de vivências, afetos, sensibilidades, trajetos musicais num diálogo que

ainda arrebata outros suportes. Das fotografias que entornam pelos encartes vêm a

imagem de Lília, Seu Zino, a famosa sanfoninha, Milton menino e tantas outras que

enredam linhas entre passado e presente. Na superfície alaranjada, tais fotografias

brotam como raios atirados em diversas direções. Não são lembranças lineares, mas

pulsações estilhaçadas. Um enredo móvel que, em sua caçada no solo de afetos, dribla a

cristalização de suas histórias. Nessa empreitada, a percepção de rotas e trajetórias que

constituem o ser. No mesmo encarte, as palavras de Milton: “Se eu não tivesse

44

Milton Nascimento em entrevista a Tárik de Souza. “Milton agora é do mundo”. Op. cit.

250

aparecido em 1967, talvez não existisse o cantor. Agora, se eu não tivesse nascido no

meu tempo, na minha hora certa, não haveria hoje o Milton Nascimento.” Assim, as

sensibilidades que rondaram suas experiências pela vida nutrem a obra recente, Angelus,

de maneira que o passado surge como uma espécie de matéria-prima para se produzir o

novo em tons detalhistas. Um nó criativo desse artista que sempre escapou de definições

e aprisionamentos. Angelus é mesmo um retrato de contentamento diante do impasse

que provocou: “Ele [o Angelus] pega tantas tendências e caminhos, que a gravadora não

sabe por onde começar para promovê-lo.”45

Tambores de Minas: canto para avivar as asas e tocar a vida

A experiência de realização de um projeto denso incita o artista a traçar outros

percursos, onde insinua continuações, mas igualmente, linhas de fuga. Um traço

marcante de um disco pode ser temporariamente abandonado. Uma linha discreta que se

esboça aqui ganha força ou se apaga logo adiante. Seu compromisso é com a sua

verdade, daí o desejo de surpreender em variações que enriquecem o repertório, sem

abrir mão das marcas identitárias que personalizam o seu trabalho. As vivências de cada

instante dão cor especial à obra de nomes como Milton Nascimento. Assim, após

Angelus, o artista optou por outros caminhos, um deles seria um álbum ao vivo, registro

do show onde celebrava o sentimento de amizade através de algumas canções de seu

repertório e de outros compositores.

Amigo (1995) é um disco ao vivo, onde a voz de Milton Nascimento se encontra

com as de crianças de dois corais infantis – os Rouxinóis de Divinópolis e os meninos

do Projeto Curumim, esse último de Belo Horizonte –, mais a orquestra Jazz Sinfônica

de São Paulo. A lembrança de um grande amigo, morto recentemente, o piloto de

Fórmula 1 Ayrton Senna, servia de mote para esse voo. A atmosfera sonora cheia,

nutrida na emoção e na eloquência, promovia a comunhão entre público e artista. Juntos

recordavam-se das pessoas que guardam “dentro do coração”. Enquanto viajava em

turnê com o show Amigo, Milton começava a se preparar para o novo disco de canções

45

Idem, ibidem.

251

inéditas, que seria gravado no ano de 1996. Em entrevista publicada em setembro

daquele ano, o artista fala sobre o novo disco, num momento em que ainda burilava

ideias e sonoridades para a sua realização: “Tem nove músicas prontas e vamos

começar a gravar em setembro. Mas nenhuma tem nome nem letra. Estão trabalhando

nas letras o Chico Buarque, o Fernando Brant, o Márcio Borges e também vou fazer

algumas.”46

Milton entraria em estúdio naquele mesmo mês de setembro para gravar seu

Nascimento. O álbum ficou pronto ainda no segundo semestre de 1996, mas só seria

lançado no ano seguinte.

Em meio a tantos projetos, Milton Nascimento teve que fazer breve pausa,

devido ao agravamento de seu quadro de saúde. Naquele ano, o cantor-compositor foi

diagnosticado com diabetes tipo 2. Os primeiros passos do enfrentamento da doença lhe

custaram visível perda de peso. Seu estado de saúde pioraria diante da violência de

boatos propagados após uma participação no episódio de fim de ano do programa

humorístico Sai de Baixo, da Rede Globo. Devido a sua magreza, jornais e revistas

especulavam sobre o que acontecia. Naquelas notícias, antecipavam o fim.

Nascimento foi lançado no primeiro semestre de 1997, com Milton já

recuperado. Nesse cenário, os acontecimentos relacionados aos seus problemas de saúde

reverberavam em notícias que salientavam a dramaticidade daquele momento e,

igualmente, a capacidade de superação do cantor. Em matéria publicada no Jornal do

Brasil, destacavam:

A via-crucis médica que o cantor viveu de novembro do ano passado a março

deste ano, quando teve alta, foi causada por certa mágoa. “Eu estava muito bem.

Como passei muito tempo fora, fazendo shows, as pessoas desacostumaram de

me ver e quando apareci no programa Sai de baixo, me acharam muito magro e

começou uma avalanche de maldades e crueldades que me levaram, aí sim, a

ficar realmente doente. Graças a Deus, não da doença que diziam que eu

tinha.”47

Nessa mesma matéria, Milton Nascimento fala das motivações para a realização

de seu novo disco, uma espécie de retorno a Minas Gerais num mergulho em suas

entranhas, em seus recantos, lugar de onde vibram os sons de seus tambores: “A

imagem de Minas é a melodia e as igrejas. Pensava-se que tambores eram exclusividade

46

Milton Nascimento em entrevista a J. Paulo da Silva e Roberta Jansen. “Todos pensam que sou um

bicho”. O Estado de S. Paulo. (07/09/1996). 47

André Luiz Barros. “O milagre do Nascimento”. Jornal do Brasil (28/05/1997)

252

da Bahia e Rio.”48

Em sua fala propaga a notícia de que Minas também tem tambores. E

na visita a esses tambores Milton traria novo traço da sonoridade mineira para sua obra.

“Meu baterista Lincoln Cheib é um grande pesquisador de sons de Minas e ficou

encarregado de ‘transar’ os ritmos. Eu fui compor em cima do manancial de pesquisa

que ele me deu. Foi fácil. Isso me deixou feliz. Todos os músicos queriam algo

assim.”49

Como vimos em momento anterior, o artista se sentiu provocado com os

boatos que chegaram aos ouvidos de Naná Vasconcelos de que em Minas não havia

mais tambor. A resposta viria em forma de verso, percutido em batida seca e pungente,

onde evocava memórias de festejos populares que minam os territórios das Gerais:

“Seus tambores nunca se calaram/ Os tambores de Minas soarão.”

Em seu Nascimento, a forte base percussiva conduz três canções que

referenciam sonoridades e imaginários de festejos religiosos/profanos. Louva-a-Deus,

Tambores de Minas e Janela para o mundo. A essas canções, Milton enlaça outras,

visitando diversas paisagens.50

Assim, um retoque uruguaio dá o tom pulsante em duas

canções: Cuerpo y Alma (Eduardo Mateo) e Biromes y servilletas (Léo Masliah) – esta

última recebeu duas gravações nesse mesmo disco, uma em versão para o português de

Carlos Sandroni. Nos entremeios do percurso de Nascimento, as referências a

sonoridades plurais fazem pensar no quanto aqui tem de lá. Mais uma vez Milton

Nascimento visita territórios da música já bem conhecidos por ele, mas experimentando

possibilidades na combinação de sonoridades. Surpreende pela maneira peculiar que as

manipula. Uma linha de trabalho já se esboçava em Angelus, porém aqui se tornaria

mais contundente. A forte experiência de Angelus seria mesmo motivo para que Milton

se provocasse, percorrendo agora um caminho diferente:

Quando ficou pronto meu último disco com repertório inédito, “Angelus”, eu

descobri que tinha dado uma passagem geral em minha vida e comecei a avaliar

coisas que eu gostaria de ter feito e não fiz. “Angelus” foi um disco que eu

trabalhei mais no exterior. Eu estava feliz, mas ao mesmo tempo, foi me dando

48

Milton Nascimento Apud André Luiz Barros. “O milagre do Nascimento”. Op. cit. 49

Milton Nascimento (entrevista). “Quero retomar o caminho dos palcos”. O Globo (28/05/1997) 50

Repertório do álbum Nascimento: Louva-a-Deus (Milton Nascimento/Fernando Brant), O Cavaleiro

(Milton Nascimento, Wilson Lopes/Milton Nascimento), Guardanapos de Papel (Léo Masliah/versão

Carlos Sandroni), Cuerpo y Alma (Eduardo Mateo), O Rouxinol (Milton Nascimento), Janela para o

Mundo (Milton Nascimento/Fernando Brant), E agora, rapaz? (Dinho Caninana), Levantados do chão

(Milton Nascimento/Chico Buarque), Ana Maria (Wayne Shorter), Ol’man river (Oscar Hammersteim/

Jerome Kern), Os tambores de Minas (Milton Nascimento/Márcio Borges), Biromes y Servilletas (Léo

Masliah)

253

uma saudade grande do Brasil. Me deu vontade de fazer shows pelo país e de

pegar na lembrança coisas de Minas.51

Depois do disco lançado, da divulgação feita, era hora de subir novamente aos

palcos. Retorno com cara de começo, onde Milton se joga em experimentos. Tambores

de Minas, espetáculo dirigido por Gabriel Vilela, trazia Milton Nascimento numa

ciranda cênica, onde o cantor-compositor cantava suas canções e brincava com um

elenco de cantores-atores-acrobatas. Uma folia levada pelos sons de caixas e tambores.

Procissão solene em tom de reverência. Trupe que faz das Minas de Milton um Estado

viajante. No repertório, canções já conhecidas e algumas de seu novo trabalho. Parecia

que a sede pelas coisas de Minas não havia se esgotado na experiência do disco. No

palco, Milton e sua trupe cantavam algumas histórias e insinuavam muitas outras em

gestos, vestimentas e movimentações. Algumas de suas linhas seguiremos nos próximos

passos dessa nossa narrativa através do DVD e do álbum que registram o espetáculo.52

Uma coisa era certa: ali se celebrava a figura do artista e dos solos que o nutriram. Em

belo texto crítico, publicado no Jornal do Brasil, Lena Frias instiga o público para a

estreia de Tambores de Minas no Rio de Janeiro, depois do sucesso da temporada

paulista:

A voz de Milton – rei Congo coroado pelos próprios cabelos trançados em ouro

– vem de um recanto qualquer da alma, do espírito, da raiva, da mágoa, da

esperança, da certeza, da alegria, da exaltação. Vem embrulhada nos tambores,

som ancestral de todas as gentes (“Estrangeiro eu não vou ser/Cidadão do

mundo eu sou”). Os tambores exprimem o coração da terra. O gemido do cio. O

ronco das águas internas, dos seres aprisionados nas cavernas e subsolos da

vida, o canto anhangá das furnas, dos bichos encafuados em tocas, o arquejar

dolorido do pensamento, o rugido dos deuses do fundo, o surdo latejar do

sangue nas entranhas, o palpitar do ferro, das gemas que subjazem nas

montanhas magnéticas de Minas Gerais, o ritmo pélvico do ato de amor, o

pulsar do feto descendo à luz. O Nascimento de Milton nos tambores de Minas,

leito de paixão do artista e onde ele se refaz. Como na lenda grega de Anteu –

filho de Géia, a terra, que na dor e na fragilidade plantava-se no coração da

terra-mãe para o próprio re-Nascimento. Essa força, a fervura, o prazer, o amor

explodem no show Tambores de Minas, estréia de hoje no Metropolitan.

Espetáculo exuberante no qual, sob direção de Gabriel Vilela, Milton exorciza

os demônios e louva a Deus, como só os mineiros sabem.53

51

Milton Nascimento (entrevista). “Quero retomar o caminho dos palcos”. Op. cit. 52

É interessante lembrar que o DVD foi gravado como um especial para o canal Multishow, sob direção

de Dênis Carvalho, sendo lançado em lojas posteriormente pela Warner (2003). O CD foi lançado por

Milton Nascimento ainda durante a turnê espetáculo. Em ambos, temos uma seleção das canções de

Tambores de Minas. No registro em DVD, apenas duas canções do roteiro foram cortadas, Calix Bento

(presente no CD) e Saudade dos aviões da Panair. 53

Lena Frias. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. Jornal do Brasil (21/08/1997)

254

Um filete de luz quebra a penumbra. Como vela acesa diante de oratório, sua

claridade vai se esparramando quando se aviva. Nos entremeios de luz e sombra, a

chama tremula, revelando os contornos dançantes de imagens e penduricalhos. Espaço

cheio, tudo carinhosamente arrumado para destacar e agradar o símbolo de devoção. A

cena que pode ser assistida em milhares de casas do interior, transporta-se para o palco.

A inspiração de Gabriel Vilela para o cenário de Tambores de Minas seria mesmo o

oratório, como salienta o release assinado por Angela de Almeida54

, além de matérias e

críticas a respeito desse espetáculo. No centro do palco, um elevado em forma de

tambor é rodeado por pequenas luzes que seguem por escadaria, de onde se acessa a

parte mais alta do cenário. Lá, figuras de mãos dadas, moldadas em uma espécie de

madeira, lembram a brincadeira infantil onde o desenho recortado em folha de papel

insistentemente dobrada multiplica-se quando aberto, como sanfona. Se essa tira de

figuras aciona o imaginário infantil, também se revela signo de comunhão e amizade.

Fig. 4 – Palco-oratório

54

Texto disponível no site oficial de Milton Nascimento. (http://www.miltonnascimento.com.br/)

255

As luzes que se esparramam pelo palco revelam a silhueta dos atores imóveis e

de braços erguidos. Pela maneira que estão dispostos em cena, acionam a memória de

um cartão-postal de Minas Gerais: os profetas do Santuário de Bom Jesus de

Matosinhos em Congonhas, obra do mestre Aleijadinho. Os músicos a postos vestem-se

em ternos recobertos de desenhos e símbolos. Em sua matéria para o Jornal do Brasil,

Lena Frias destaca: “os ternos de congo dos músicos trazem estamparias de peixes”,

apresentados como “símbolo de Jesus e da renovação, na tradição católica”55

. O teor

simbólico é reforçado na continuação do texto, onde se emoldura a fala de Milton

Nascimento: “O peixe não é apenas uma imagem, um objeto decorativo, ou um simples

elemento cenográfico. É símbolo mesmo. Está na roupa dos músicos porque os músicos

são sustentação”56

.

Se esses figurinos remetem a uma manifestação específica, o congado,

igualmente inspiram a memória a percorrer os fios de outras manifestações ambientadas

nessa mistura de festa com religião. Assim, embora elaborado de maneira distinta, o

figurino dos músicos de Tambores de Minas me fez recordar, particularmente, uma das

manifestações ainda presentes em minha cidade no interior de Minas Gerais. Lá, durante

festejos em que são convidados para se apresentar, os “caboquim” se vestem de roupas

e capacetes cuidadosamente enfeitados por penas de aves. Entre sanfonas, caixas de

folia, pandeiros, flechas e espadas percussivas, eles entoam e dançam suas histórias.

Sob inspiração do espetáculo de Milton Nascimento, senti-me motivado a remexer no

baú de memórias que guardo dos “caboquim” e entrevistar, em Virgolândia, minha

cidade natal, um de seus representantes, Zim da Sá Ana, que, aos 97 anos, ainda faz sua

caixa soar forte. Zim está sempre disposto a desfiar histórias sobre os “caboquim” e

outras manifestações que integrou, como a marujada, hoje ausente por aquelas bandas.

A respeito da indumentária, que chama de farda, ele me explica:

É a mesma coisa de um policial. Uai, um policial é o seguinte, quando ele está

à paisana, nós tamo junto com ele aí, né? Eu mais um policial. O policial vai

pra lá, eu vou mais ele. O policial vem pra cá, eu venho mais ele e tudo. Mas

antes de fardar! O policial fardou, eu já saio fora dele! Ele já é outra gente.

Assim mesmo é os “caboquim”! Antes de nós fardar, os “caboquim”, a gente lá

mistura com nós assim. Igual tá nós aqui, né? Mas nós fardou, isso aí me

encangalha junto com o outro, o povo afasta assim de nós! Já não é a pessoa

mais. 57

55

Lena frias. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. Op. cit. 56

Milton Nascimento Apud Lena frias. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. Op. cit. 57

Zim da Sá Ana em entrevista a mim concedida em Virgolândia. (29/07/2013)

256

A farda transforma o homem comum em “caboquim”, “marujo”, “outra gente”

capaz de botar “o pau pra quebrar”, como sempre demarca Zim da Sá Ana com toda a

ênfase em sua aula sobre a força do símbolo. À medida que vai explicando o

funcionamento do “caboquim”, Zim vai buscando as peças de sua farda. Põe a faixa,

traz o capacete. Ensaia passos de uma “marcha”. Apita uma marcação. Entoa um

cântico. Traz a farda inteira. Ajeita aqui, mexe lá. Ao final da entrevista, já está

completamente paramentado: “Agora já mudei de pessoa”. Transformado, a brincadeira

fica séria. O compromisso e a destreza na conversa dançada-cantada com seus parceiros

de “caboquim” produzem o espírito de comunhão que dá a pulsação aos festejos

populares. É desse tipo de energia que Tambores de Minas se alimenta para criar sua

magia. Ao visualizarmos aqueles músicos e atores paramentados no palco, já temos um

anúncio de que o “pau vai quebrar”. Dispostos naquele espaço como se abraçassem o

seu centro, tonificam o sentimento de comunhão ali acionado. Estão preparados para

fazerem da intensidade de cada um a força para o brilho coletivo.

Em Tambores de Minas tudo inspira atenção aos detalhes e nada se propõe à

exatidão. Pelo contrário, uma referência pode se transfigurar em outra, dependendo do

momento ou da pessoa que mira a trama do espetáculo. Dessa maneira, aquele oratório

pode tomar jeito de grande circo, ainda mais quando preenchido pela trupe em

momentos em que os atores saltam em acrobacias, dançam e cantam, tocam tambor,

mostrando a face guardada em espessa camada de maquiagem. Fabiano Medeiros, Fábio

Tavares, Felipe Grinnan, José Geraldo Filé, Luiz Borges, Maurício Vougue, Pablo

Colbert, Rogério Romero e Toninho Marra. Atores se misturam a acrobatas58

, uns se

jogando nos terrenos dos outros. Aprendem juntos novos manejos, como a arte de

cantar, treinada pela preparadora vocal Babaya. São do tipo que “se viram”, como o são

os artistas do povo, homens do circo a fazer estripulias para ganhar a vida. Podemos

chamá-los de atores-dançarinos, acrobatas-cantores, como preferirmos, ou simplesmente

artistas.

No princípio, somente o centro da cena está vazio, à espera do personagem

principal. Mas, antes deste, vem a sua marca maior, a voz. Não em forma de melodia,

58

Os quatro acrobatas do elenco vieram do grupo Os Acronautas, de Curitiba. (Cf. Antonio Carlos

Miguel. “Milton emociona a platéia na estréia de Tambores de Minas”. O Globo (23/08/1997)). (Deve-se

lembrar que Fábio Tavares ficou responsável pelas técnicas de acrobacias).

257

como estamos acostumados, mas de fala, a recitar a notícia do retorno do artista, em

texto de própria autoria:

Valei-me, profetas! Minas Gerais!

Terá existido em outra parte além do meu arbitrário pensamento? Será que tudo

que está ligado à consciência, tocando de leve no real, sem penetrá-lo, está

destinado ao fracasso e ao esquecimento? Será que este meu retorno a Minas

não é apenas uma reconciliação com o intolerável? Eu quis colocar minha voz a

serviço de Deus, isto é, a serviço do homem. Eu tinha um projeto. Nascido do

sangue, asfixiei-me no sangue. As terras fartas de Três Pontas conservam meu

rastro. Que restará na memória de meus amados, nos quais coabitam minha

alma de criança e o caos dramático em que me meti, dessa mistura de esquinas e

perturbações poéticas? Fizeram de mim a voz de Minas, o cidadão do mundo.

Depois... um atestado de óbito. Que restará na memória do meu povo? A

violência dos ternos, traição dos fiéis, imprevidência dos sábios e minha própria

cegueira de adivinho? Não, restará a vitória, o meu salto mortal para dentro de

uma nova vida. Deixo nas mãos das pessoas honestas e na ferocidade dos

críticos minha própria cronologia e a geografia exata do meu coração – um

lugar vivo de todos os contrários. Este show é um inventário, baseado em meu

imaginário pessoal, que transforma minha obra numa declarada reconciliação

com a vida. Este show expõe sem qualquer piedade a minha verdadeira alma,

perturbadora e desigual. Não tenho intenção cultural, estética ou didática. Ele

foi concebido para meu benefício próprio, com intenção de louvar a Deus e,

neste ato, agradecer aos meus amigos e a vocês, que, sei, não deixaram que eu,

prematuramente, me transformasse num pasto para os vermes.59

Um texto com força para marcar o momento de retorno, onde Milton

Nascimento revia posturas, passando a limpo algumas histórias, como sua relação com

os meios de divulgação da arte, nesse jogo em que o artista é celebrado para, logo

adiante, ser sumariamente sepultado. Texto de desabafo, de agradecimento a alguns e

superação. Prenúncio de mudança. A tragédia anunciada por segmentos da imprensa

seria convertida em celebração à vida. Seria na profissão, em sua arte, que Milton

demonstraria intensidade, destilaria emoções e se transformaria. Seria na cultura de seu

povo, no mais corriqueiro cotidiano, que buscaria forças. Cada verso cantado,

decantado, revisitado nesse espetáculo, centralizaria sua inquietude. Aí, o artista, que

brinca com melodias e com palavras, conduziria a um caminho para, em seguida, nos

apanhar numa arapuca poética. É dessa forma que, à promessa de exatidão da geografia

de seu coração, entrega um “lugar vivo de todos os contrários”. Está aí uma das linhas

do espetáculo, uma obra em que as canções se enredam como forma de apreender a

vida, sem constrangê-la. Aqui o canto é para nutrir, avivar as asas. É um inventário de

59

O texto – retirado do encarte do álbum Tambores de Minas, lançado pela Warner em 1998 – teve forte

impacto, sendo destacado por matérias e críticas sobre o espetáculo. Vários veículos o publicaram em

parte ou na íntegra.

258

memórias de versos, vivências, sonoridades e sensibilidades, constituído para

impulsionar a caminhada, seguir em frente. Pisar no palco, cobrir-se de arte, para se

despir diante da vida, é forma de gritar o que o verso de sua canção já anunciava: “E o

que foi feito é preciso conhecer/Para melhor prosseguir”.

Logo após a declamação do texto, vem a canção O que foi feito devera (de

Vera), na voz de Elis Regina. A voz da cantora enche o palco, irradiando saudades de

sua presença naquele espaço. Trata-se da mesma gravação do álbum Clube da Esquina

nº2. Terminada a primeira parte da canção, Milton Nascimento surge do alto do cenário,

descendo a escadaria e cantando: “Alertem todos alarmas/ Que o homem que eu era

voltou.” Nesse momento, a luz se faz intensa, como se metaforizasse o brilho que vem

do próprio artista atiçando as chamas dos que estão a sua volta. Os versos que podiam

se endereçar a tantas situações agora serviam para que o cantor-compositor contasse sua

história recente, e nela não poderia faltar uma voz de amparo e coragem, a da amiga Elis

Regina. Os “profetas”, antes imóveis, tomam seus lugares diante de caixas de folia,

percutindo aquele ambiente e soltando a voz em coro. Uma atmosfera de festa se instala.

Milton chega ao seu lugar na cena, o centro, em cima do elevado/tambor, altar para sua

música. Sobre a concepção desse primeiro ato do espetáculo, Gabriel Vilela

mencionaria:

É quando dançam os profetas, o Aleijadinho, o pintor Athayde (que recobriu

com sua pintura barroca os tetos e os campanários das igrejas mineiras), os

inconfidentes, as postas de carne de Tiradentes. Dançam Riobaldo, Diadorim e

Guimarães Rosa, o velho Chico (o rio são Francisco), e até as próprias

montanhas de Minas, tudo em torno de Milton rei.60

Chamaram a atenção da imprensa os figurinos de Tambores de Minas. Os atores

encarnavam os profetas não apenas pelos gestos, mas pelas túnicas e adereços que

vestiam. As dobras dos tecidos propagavam o balanço e caimento esculpidos em pedra

sabão por Aleijadinho. Gabriel Vilela trouxe materiais colhidos em lojas londrinas para

compor os figurinos barrocos, que assina juntamente com Teca Fichinsky61

. Nos trajes

de Milton Nascimento e do elenco de Tambores de Minas, retalhos de uma multidão de

referências, onde os tecidos mineiros se misturam com peças indianas bordadas em ouro

60

Gabriel Vilela Apud Lena Frias. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. Jornal do Brasil. Op. cit. (Em

sua matéria, Lena Frias dedicou um subitem ao trabalho do diretor:“Gabriel Vilela faz retorno a Minas”). 61

A dupla também seria responsável pelos cenários do espetáculo. A coreografia ficaria por conta de

Vivien Buckup. A direção musical, por conta de Milton Nascimento, que dividiria os arranjos das canções

com Túlio Mourão.

259

e prata, pedaços da cortina da Ópera de Pequim e tantos outros.62

De Londres, Gabriel

Vilela trouxe ainda uma saia de samurai que compõe a indumentária de Milton, como

destaca Lena Frias.63

A roupa, toda preta, é preenchida por bordados em fios de ouro,

numa remissão aos trajes da imagem de São Jorge de Aleijadinho, depositada no Museu

da Inconfidência, em Ouro Preto. Amparado em símbolos que traduzem força e

coragem – a saia de samurai e São Jorge –, Milton Nascimento se veste de guerreiro da

canção.

Fig. 5 – Guerreiro da canção

Nesse jogo de costuras e tecidos, alinhavam-se diálogos entre culturas distantes:

o traço barroco, composto com tantas referências, faz recordar os temas orientais

bordados nos interiores das igrejas coloniais de Minas Gerais, num grito de que o

cruzamento de informações plurais já se fazia presente há tempos.64

Fios dourados

também cobrem os cabelos de Milton Nascimento, trançando veios de memórias sobre o

62

Cf. Eros Ramos de Almeida. “Milton volta às origens em espetáculo barroco”. O Globo (22/08/1997).

Nessa matéria, o autor dedica um item dando destaque ao figurino: “Tecidos da China, referências

mineiras”. 63

Lena Frias. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. Jornal do Brasil. Op. cit. 64

Cf. Adalgisa Arantes Campos. Cultura Barroca e manifestações do Rococó nas Gerais. Ouro Preto:

FAOP/BID, 1998. Ver também: “Barroco mineiro também tem olho puxado.” Disponível no site do

IEPHA-MG (http://www.iepha.mg.gov.br/component/content/article/1/588-barroco-mineiro-tambem-

tem-olhos-puxados).

260

período do ciclo do ouro, através de histórias e “causos” que compõem nosso

imaginário e ainda hoje são amplamente divulgados por moradores e guias turísticos de

cidades históricas como Ouro Preto. Histórias, inclusive, sobre a escravidão e a

resistência negra, engendrada astuciosamente em pequenas brechas, como destaca o

próprio Gabriel Vilela: “Muito do ouro que ficou nas igrejas mineiras foi

contrabandeado pelos negros nos cabelos. Daí fazer ouro e prata escorrer da cabeça

dele.”65

Esse ouro também coroa Milton Nascimento, numa aclamação a uma das

figuras mitológicas do imaginário mineiro, Chico Rei.66

Assim, a roupa arranjada em

tamanho simbolismo deixa de ser mero figurino. Pelas histórias que cata, pelos panos

que usa como matéria-prima, torna-se uma espécie de farda, manto sagrado para o

sacerdote da música, o Milton ali festejado.

Muitos desses detalhes minuciosamente trabalhados, fazem apenas alusão

discreta a uma figura ou outra, transformando-as em motivo de onde vibram imagens

variadas. Alguns traços são mais nítidos, como a remissão aos profetas de Aleijadinho.

Outros só identificamos após percorrermos todas as informações derramadas em

páginas de jornal, que acabam ajudando a compor a narrativa e os mistérios de

Tambores de Minas. No palco, aquelas referências não se dispõem a serem decifradas,

mas a provocar, sacudir as memórias do próprio público. É ao público que cabe fazer

uma ou outra ponte com pequenas coisas entranhadas em recordações de seu cotidiano.

65

Gabriel Vilela Apud Eros Ramos de Almeida. “Milton volta às origens em espetáculo barroco”. O

Globo. Op. cit. 66

A lembrança de Chico Rei me fez retomar um desses livros de nossas estantes familiares: Histórias da

terra mineira, de autoria de Carlos Góis. A publicação, que chegava a sua 13ª edição em 1942, era

dirigida à educação infantil. Apostava na linguagem do conto para fomentar o patriotismo, apresentando

figuras do panteão de heróis mineiros, caso de Chico Rei. Sendo essa narrativa apresentada em livro

didático, ela nos dá indícios da divulgação e do alcance desse mito em terras mineiras. Em seu enredo, o

personagem surge como um rei africano, traficado como escravo para terras brasileiras, mais

precisamente Vila Rica (Ouro Preto), onde conseguiu, com seu trabalho, comprar a liberdade de seu filho

e, posteriormente, a sua. Não pararia por aí: “êle e o filho trabalhariam para libertar terceiro escravo;

forrado êste, os três trabalhariam para forrar um quarto, e assim, sucessivamente, os próprios negros

trabalhariam em comum para, com os próprios recursos, redimir do cativeiro os seus irmãos de raça!”

(Carlos Góis. Histórias da terra mineira. Leitura Moral e Cívica – História Regional. 3º ano das Escolas

Singulares. 13ª edição. Únicos depositários: Paulo de Azevedo & Cia. São Paulo – Rio – Belo Horizonte,

1942, p.116 e 117). A ideia restituiria a majestade daquele rei, quando libertasse mais e mais escravos:

“Formaram assim poderosa colônia (...). Francisco foi logo aclamado o “Rei” dessa nação. Data dessa

época o seu apelido de Chico Rei, que é como o povo lhe ficou chamando.” (idem, ibidem, p.117). A

narrativa segue lapidando a trajetória de seu herói lendário, chegando ao momento em que atribui a ele a

criação de uma das festividades populares que ganhou a paisagem brasileira: “No dia 6 de Janeiro de cada

ano o Rei, Rainha e os Príncipes, vestidos com trajes opulentos, cobertos de suas insígnias e corôas, eram,

com grande aparato, levados à Igreja do Rosário, onde assistiam à missa cantada. Acabada esta, saíam

pelas ruas de Vila Rica, executando dansas características, à moda da África, tocando instrumentos

indígenas dos usados na Guiné. Essas festas chamavam-se REISADO DO ROSÁRIO. De Ouro Preto

extenderam-se às outras cidades e lugares do Brasil, onde ainda hoje são conservadas”. (idem, ibidem, p.

19).

261

Dessa maneira, a vestimenta que remete a São Jorge pode se transformar em manto

singelo de santo de oratório caseiro. Depende de quem mira e das memórias que a

pessoa guarda. Os floreios e bordados aplicados à colcha de retalhos de Tambores de

Minas são de identificações moventes. As linhas insinuantes acabam aproximando

muitas coisas. Assim, as flores alegres e as fitas de cores vivas que vestem as caixas de

folias, os tais tambores mineiros, lembram variadas ocasiões especiais. Elas desfilam

por memórias de grandes e pequenas folias, apresentações de “caboquim”, congado,

marujada. Os lambrequins que bordam o cenário tremulam lembranças de casas que se

enfeitam da mesma maneira. De repente, não é uma casa qualquer, uma paisagem

distante. É a minha casa. É justamente nesse dia a dia, no imaginário popular, nos

enredos da tradição oral, que Milton Nascimento e Gabriel Vilela criam o ambiente de

Tambores de Minas, caldeirão onde sempre cabem mais e mais memórias.

Em reflexão sobre a importância da memória para a composição da identidade e

unidade de um povo, Pollak traz contribuição para pensarmos sobre o efeito produzido

pelo caleidoscópio de Tambores de Minas: “Vale dizer que memória e identidade

podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser

compreendidos como essências de uma pessoa ou grupo.”67

A fala do intelectual se

mostra afinada com a da linguagem do espetáculo. Ali, traços atribuídos a Minas Gerais

também se comunicam com incontáveis paisagens. E, quando a caravana Tambores

toma a estrada, transportando suas Minas itinerantes, acaba promovendo o

reconhecimento e encantamento em lugares gerais, identificando o estado com qualquer

outro recanto do Brasil.

Nessa história rendada de simbolismos, Gabriel Vilela revela fios de

manifestações que lhe serviram de inspiração para a composição do primeiro ato de

Tambores de Minas:

Conversei muito com Milton sobre o que ele viveu neste último ano, sobre o

atestado de óbito que colaram nele, e ele resolveu purgar isso de uma maneira

nobre. Daí parte da peça ser calcada na procissão de Corpus Christi, a

celebração da ascensão de Cristo aos céus. 68

Uma procissão onde desfilam passos de Milton Nascimento por labirintos de

memórias e sensações. Em seu inventário, a promessa de vida. No palco, a comoção

67

Michael Pollak. “Memória e identidade social.” Estudos Históricos. Vol. 5, n.10. Rio de Janeiro: 1992,

p. 204. 68

Gabriel Vilela Apud Eros Ramos de Almeida. “Milton volta às origens em espetáculo barroco”. Op. cit.

262

religiosa entoa felicidade e certeza de renovação. Um ambiente vivo quando preenchido

pelo coro de vozes e por pés agitados em coreografias e acrobacias. Atmosfera que

inspira contemplação e intimidade quando foca no brilho solitário de seu personagem

principal. Lugar onde a alegria se disfarça em perturbação e choro. Nada nas filas

imaginárias dessa procissão é tramado de maneira linear. As memórias vêm aos

espasmos, como pulsações de cerimônias populares. A canção Cálix Bento, adaptação

de Tavinho Moura para um cântico colhido da Folia de Reis do Norte de Minas, nos

ambienta nessa paisagem religiosa: “Ó Deus salve o oratório/ Ó Deus salve o

oratório/onde Deus fez a morada....” . Festa percutida pelos sons de caixas e pandeiros,

acompanhadas das palmas da plateia. A voz de Milton Nascimento é mais uma caixa

retumbando um canto de celebração a essa canção, peça de seu repertório desde a

gravação do álbum Geraes, de 1976. Funciona como lembrete da cultura popular em

sua obra, presença marcante desde tempos remotos.

Nessa levada de Tambores de Minas, o artista verte antigas companheiras de seu

repertório em cânticos de força e fé, declarando, desta forma, a inquietude que vai em

seu espírito. Canções de sua autoria se misturam às de outros autores, que se fizeram

conhecidas em sua voz, além de algumas que povoam o seu imaginário, como

Cavaleiros do céu, versão de Aroldo Barbosa para Riders in the Sky de Stan Jones,

lembrança da infância em Três Pontas, gravada no disco Caçador de mim, de 1981.69

A

lembrança dessa época também vem em forma de gesto cênico. Em dado instante,

Milton se cala para soltar a fala de sua sanfoninha em singela e emocionante versão

instrumental de Ponta de Areia. Sentado nas escadarias do cenário, o artista emite

recordação do tempo em que passava horas e horas a se encantar com mistérios de sua

fiel companheira musical no alpendre de sua casa em Três Pontas. Ou mesmo dos

festejos populares em que acompanhava a cantoria de sua mãe Lília com a sanfona.

As passadas por esse território de lembranças, semeado de canções por onde

Milton Nascimento se expressa e por meio das quais também se recompõe, são

embaladas por performances que encenam sua agitação diante das sensibilidades e da

69

Numa matéria que destaca algumas das memórias de Milton Nascimento, relembra-se um episódio

marcante com essa canção: “Entre as quais uma reprovação “aos onze anos, quando estudava no Rio”,

apesar das notas altas no boletim, “Levei bomba em canto! Aí, voltei a Três Pontas, em Minas, e acabei

prestando a prova em uma escola de padres. O padre que me examinou escutou ‘Cavaleiros do Céu’ e me

mandou cantar junto com outros meninos. Fomos todos aprovados.”” (“Milton lança ‘Angelus’ com show

no Olympia”. Folha de S. Paulo (02/12/1993))

263

arte.70

Algumas tomam jeito de recado de quem nunca se acomodou. É o caso Caçador

de mim, hino que leva o artista aos constantes caminhos das (re) descobertas.

Por tanto amor, por tanta emoção

A vida me fez assim

Doce ou atroz, manso ou feroz

Eu caçador de mim

Preso a canções, entregue a paixões

Que nunca tiveram fim

Vou me encontrar longe do meu lugar

Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta

Nada a fazer senão esquecer o medo

Abrir o peito à força numa procura

Fugir às armadilhas da mata escura

Longe se vai sonhando demais

Mas onde se chega assim

Vou descobrir o que me faz sentir

Eu, caçador de mim

Os atores-cantores Fabiano Medeiros e Toninho Marra revezam nos vocais da

melodia de Caçador de mim. Por vezes, a canção é entoada por todo o elenco em coro.

O canto, suave, em baixo volume, promove uma interpretação delicada numa atmosfera

comovente. Os arranjos são discretos, estão ali a serviço das vozes, dando-lhes brilho.

Durante todo o tempo, Milton Nascimento emoldura o canto dessas vozes principiantes

70

Selecionar peças de seu repertório para o espetáculo seria uma dificuldade para Milton Nascimento

diante do denso manancial de composições. No entanto, não se tratava de eleger as canções mais

significativas, e sim de demonstrar a força de sua obra e sua agitação artística, tanto como compositor

quanto como intérprete. Assim, vêm canções que se tornaram clássicos em sua voz, como Paula e Bebeto

(Milton Nascimento/Caetano Veloso), Ponta de Areia (Milton Nascimento/Fernando Brant), Para

Lennon e McCartney (Lô Borges/Márcio Borges/Fernando Brant), Caçador de mim (Sérgio Magrão e

Luiz Carlos Sá). Outras, menos conhecidas do grande público, como Léo (Milton Nascimento/Chico

Buarque) e A sede do peixe (Milton Nascimento/Márcio Borges), também compõem a trilha sonora do

espetáculo. E ainda uma surpresa: Corsário (João Bosco/Aldir Blanc), que conversava com esse

ambiente, mas ainda não tinha sido interpretada por Milton Nascimento. O roteiro completo do espetáculo

é o seguinte: O que foi feito devera (Milton Nascimento/Fernando Brant), O que foi feito de Vera (Milton

Nascimento/Márcio Borges), Cavaleiros do céu (Riders in the Sky – Stan Jones, versão de Haroldo

Barbosa), Cálix bento (recolhida do folclore mineiro e adaptada por Tavinho Moura) Paula e Bebeto

(Milton Nascimento/Caetano Veloso), Léo (Milton Nascimento/Chico Buarque), Corsário (João

Bosco/Aldir Blanc), Caçador de mim (Sérgio Magrão/Luiz Carlos Sá), Saudades dos aviões da Panair

(Milton Nascimento/Fernando Brant), Ponta de Areia (Milton Nascimento/Fernando Brant), A Sede do

peixe (Milton Nascimento/Márcio Borges), Para Lennon e McCartney (Lô Borges/ Márcio

Borges/Fernando Brant), Queremos Deus (Adaptação Túlio Mourão e Milton Nascimento), Louva-a-

Deus (Milton Nascimento/Fernando Brant), Rouxinol (Milton Nascimento), E agora, rapaz? (Dinho

Caninana), Guardanapo de papel (Biromes y servilletas – Léo Masliah, versão de Carlos Sandroni),

Janela para o mundo (Milton Nascimento/Fernando Brant), Levantados do chão (Milton

Nascimento/Chico Buarque), San Vicente (Milton Nascimento/Fernando Brant), Nos bailes da vida

(Milton Nascimento/Fernando Brant), Os tambores de Minas (Milton Nascimento/Márcio Borges),

Canções e momentos (Milton Nascimento/Fernando Brant), Redescobrir (Gonzaguinha) e Canção da

América (Milton Nascimento e Fernando Brant). Esta última é escolhida para o bis.

264

com vocalises arrebatadores. Seu lugar no palco traduz o canto de sua voz nesse

instante. Sentado ao lado, cede o espaço central para os companheiros de Tambores de

Minas. Performiza, assim, a postura que o conduziu durante sua carreira, sempre

enriquecida por novas e antigas parcerias. Enquanto cede espaço, vai criando lugar para

sua liberdade. Como voz de fundo, borda o espaço, preenchendo aquele campo com

subjetividades que atira, ora em falsetes, ora numa emissão de coloração tribal.

Acrobacias vocais que se distanciam da melodia principal para depois se abraçar com

vozes amigas. Essas vozes são um pouco a própria voz de Milton. Seu voo é

proporcionado no encontro com elas. A magia do momento se emite nesse

companheirismo em que todas as vozes se reconhecem e se atiçam. E quando a voz de

Milton Nascimento assume o centro, cantando os versos e a melodia de Caçador de

mim, acaba fazendo de sua força o seu amparo. Mesmo nesse instante o intérprete teima

em perseguir emocionantes variações. É voz mestra caçando a atenção de olhos

emocionados diante de seu mergulho abissal. Avoluma-se, desafiando-se. Chega à

estridência de falsetes buscados nas entranhas de seu sentir. Nessa dinâmica, cada nota

emitida cria uma suspensão, como se aquele canto fosse uma meditação onde as

variações transformassem a canção, seu cantor e vozes amigas. Meditação, que, em

nossa análise, tomamos de empréstimo da óptica de Michel Foucault. Em sua

exposição, o pensador contrapõe tal meditação às enunciações de discurso por “pura

demonstração”:

Se se trata de uma pura demonstração, esses enunciados podem ser lidos como

uma série de eventos ligados uns aos outros segundo certo número de regras

formais; quanto ao sujeito do discurso, ele não é implicado na demonstração:

ele fica em relação a ela, fixo, invariável e como neutralizado. Uma

“meditação”, ao contrário, produz, como tantos eventos discursivos, enunciados

novos que carregam com eles uma série de modificações do sujeito enunciador:

por meio do que se diz na meditação, o sujeito passa da obscuridade à luz, da

impureza à pureza, da obrigação das paixões ao desapego, da incerteza e dos

movimentos desordenados à serenidade da sabedoria etc. Na meditação, o

sujeito é incessantemente alterado por seu próprio movimento; seu discurso

suscita efeitos no interior dos quais ele fica preso; ele o expõe a riscos, fá-lo

passar por provas ou tentações, produz nele estados e lhe confere um status ou

uma qualificação de que ele não era detentor no momento inicial. Em resumo, a

meditação implica um sujeito móvel e modificável pelo próprio efeito dos

eventos discursivos que acontecem.71

71

Michel Foucault “Meu Corpo, Esse Papel, Esse Fogo.” In: Ditos e escritos. Volume X: filosofia,

diagnóstico do presente e verdade. Organização, seleção de textos e revisão técnica de Manoel Barros

Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p.100 e 101.

265

As reflexões de Foucault clareiam nossas percepções sobre o tipo de efeito

proporcionado por performances como a de Caçador de mim. E, numa ampliação, de

experiências como a de Tambores de Minas. “Movimento”, “modificações”, “sujeito

móvel”, vocabulário afinado com o universo miltoniano. Ainda mais nesse espetáculo

em que convertia a música em trampolim para um “salto mortal para dentro de uma

nova vida”72

. Se, através de uma nova leitura de uma peça de seu repertório, o artista se

modifica, afetando a si próprio e ao público, essa espécie de meditação pronuncia a

própria maleabilidade de versos e melodias. Maleabilidade que dispensa cristalizações,

pelo contrário explora a arte como campo de provocações e inquietações. Ao longo da

encenação de Tambores de Minas, as variações e insinuações se estabelecem como

parte de sua linguagem. E o que se sente no decorrer do espetáculo ganha ênfase numa

canção de versos perturbadores, A sede do peixe, parceria de Milton e Márcio Borges,

recolhida do disco Clube da Esquina nº2.

No momento de apresentação dessa canção, estão no palco somente Milton

Nascimento e sua banda. Os atores fazem breve saída quando o primeiro ato se

encaminha para o fim. A sede do peixe foi inspirada no universo rosiano: “Só não existe

remédio é para a sede do peixe.” A frase colhida do livro Ave, palavra, estimulou

Márcio Borges a brincar com a rigidez de sentidos das palavras, como se recolhesse

elementos de um laboratório para neles pesquisar filigranas de beleza e solucionar

dúvidas de significação, através de experimentos poéticos. “O que isso quer dizer?”. A

pergunta pronta, diante de A sede do peixe, não tem resposta certa. Em seus versos,

jogos de contrários, conflitos e incongruências.

Para o que o suor não me deu

O fogo do amor ensinou

Ser o barro embaixo do sol

Ser chuva lavrando o sertão

Qual Aleijadinho de Sabará

E a semente das bananas

Para o que não tem solução

A sede do peixe ensinou

Não me vale a água do mar

Nem vinho, nem glória, navio

Nem o sal da língua que beija o frio

Nem ao menos toda raiva

72

Texto de introdução do espetáculo. Op. cit.

266

Para o que não tem mais razão

A calma do louco ensinou

A dizer nada

Para o que não tem mais nada

A calma do louco ensinou

A dizer razão

Dos teclados de Kiko Continentino e Túlio Mourão saltam ondas que instalam

uma ambiência grave, tumultuada pela aflição de notas nítidas do baixo de Luiz Alves.

A bateria de Lincoln Cheib e a percussão de Marco Lobo propagam dramaticidade

através da força. E Milton Nascimento solta um canto rasgado. Desdobra e alonga frases

em tons proféticos. Um canto para lembrar que, certeza mesmo, somente a da dúvida. O

artista dá ênfase a cada palavra da canção, ecoando a agitação de espírito que toma todo

o seu corpo. “Toda a raiva” que despeja na voz, também se desenha nas linhas do rosto.

“A calma do louco” empunha em mão fechada contra o peito, um gesto que vibra no

coração. Sinais firmes de mãos tensas sacodem o canto eloquente, desmanchando

apaziguamentos produzidos por sensações de certeza. A voz se verte assim em berro

nervoso, grito de questionamento. Cada gesto desloca sentidos e inverte evidências.

Assim, o canto emite um convite à contemplação da arte e da vida através da inexatidão.

A sede do peixe, imagem que suscita dúvidas, traz o vulto de Guimarães Rosa numa

fresta.

“Uma mãe é pra cem filhos. E olha lá que cem filhos não é pra ela. Não é

verdade?” A frase, que poderia vir da boca de qualquer personagem do autor mineiro ou

de verso de canções como A sede do peixe, me chegou aos ouvidos pela voz do Zim,

quando recordava de sua mãe, Sá Ana. Quando se sedimenta a narrativa de Tambores de

Minas em traços da cultura popular, da oralidade, se favorece um ambiente de diálogos

com personagens icônicos que povoam as aldeolas brasileiras. O público encontra o seu

lugar no universo rosiano, em viagens por histórias contadas sobre o Grande Sertão.

Nessa comunicação da circulação de informações e bens culturais, Zim da Sá Ana me

surpreenderia com uma lembrança retirada da cartola, quando eu já me despedia dele ao

fim de nossa entrevista: “Oh Deus salve a casa santa/ onde Deus fez a morada/ Onde

mora o cálix bento e a hóstia consagrada”. Era um sinal: Cálix Bento numa outra toada,

tão próxima e tão distante da versão de Milton Nascimento. Eis um belo exemplo da

mobilidade daquela melodia, que se contorce, arrastando-se por caminhos diversos,

mas, mesmo assim, guarda parentesco com seus primeiros passos, permanecendo

reconhecível, principalmente pela mensagem que transporta.

267

Em Tambores de Minas, com o perdão do paradoxo, tudo é sutilmente

escancarado. As informações rondam o espaço como a água em que o peixe habita. É

preciso prestar atenção para matar a sede. Ou simplesmente relaxar e se deixar levar

pela maré, ao som do que se identifica sem saber de todo o significado. Nessa toada,

público e artista enveredam por memórias evocadas de canções que compartilham. Os

sucessos de Milton Nascimento são como redemoinho de histórias de sua vida, mas

também de um público que soube cultivá-las como relíquias de suas próprias travessias.

Durante o primeiro ato de Tambores de Minas, partículas festivas se misturam a

fagulhas religiosas e ares solenes. Os sons dos tambores mineiros ali celebrados

aparecem na performance de poucas canções. No entanto, a presença física desses

tambores já é marcante pela carga simbólica que carregam. Estão ali como ostensórios.

São guardiões de memórias. Fazem-me recordar da caixa de folia do Zim da Sá Ana.

Feita artesanalmente, é peça antiga, que guarda rastros de mãos de outros “caboquim”.

Até mesmo a maneira como chegou às mãos do Zim é pretexto para novas histórias.

Essa caixa foi de um moço que já morreu há bem anos atrás. E então ficou a

viúva. Aí eu cheguei lá e tal. Conversei com ela, e como é que daqui dá ali e tal,

e ela mexeu, mexeu, mexeu... Ela buscou as fardas e me entregou. Mas acontece

que a caixa, eu não posso falar que ela é minha. A viúva me entregou ela, mas

num falou nem que me deu ela de graça e nem que me vendeu. Ficou aquele

trem embaçado. E de modo que o negócio é o seguinte: o genro dela mora ali

na rua, na Rua Nova, né? E eu vou lá com ele: “escuta aqui, como é que é? A

sua sogra não me deu a caixa. Ela não falou nem que me deu ela, nem que me

vendeu. Me entregou ela assim... De modo que, qualquer coisa, eu te entrego

ela.” Que é essa aqui. (...) E o Jovino falou assim: “Não! Pode ficar com ela

rapaz!” Agora ficou certo.

A caixa não é meramente um pertence. É daquelas companhias que vão

chegando e, aos poucos, ficando, se misturando ao seu guardião, a ponto de não

imaginarmos Zim sem sua companheira de “caboquim”. Esse caboclo vai me contando

histórias de sua caixa enquanto a acaricia distraidamente. Tem orgulho de se tratar de

uma peça muito antiga, como sempre frisa. Esmera-se em explicar como é engenhoso o

processo de feitura de uma caixa. Por vezes, Zim se põe a tocá-la e a cantar os famosos

“caboclos” de enredo cômico. Diz que estes são cantados em festas pequenas, em casa

de amigos. São ocasiões mais descontraídas que as apresentações “oficiais”. Com

alguns desses “caboclos”, Zim tem cautela, pois o engraçado pode se transformar em

ofensa, dependendo de quem escuta. Enquanto canta um desses “caboclos”, ele bate sua

caixa. De repente, para, olha fixamente e diz: “A caixa falta pouco conversar, né?”. A

268

caixa é quase parente de quem lhe reserva carinho e afeição. É esse tipo de força que se

traduz no palco de Tambores de Minas: no momento em que “não falam”, aquelas

caixas estão expostas para serem admiradas em sua energia simbólica. Evocam

memórias como se fossem imagens desse palco-oratório. Representam peças preciosas a

quem lhes presta reverência. Ao mesmo tempo, estão ali, sim, para celebrar Milton

Nascimento.

No anúncio do segundo ato, a iluminação cor púrpura, cortada por voz doce e

delicada da flauta de Paulo Magalhães, cria ambiente intimista, propício para promover

a paz de espírito. Em seu canto solitário, a flauta vai envolvendo o público, tomando

suas atenções. A melodia segue em variações, exercitando sua voz, até enveredar por

caminho melódico reconhecível: um cântico a rabiscar filas de uma procissão em nossas

memórias. Se ainda restasse dúvida, a certeza se realizaria com a entrada do coro de

atores: “Queremos Deus, homens ingratos/ O Pai supremo criador....” O canto suave

para a canção Queremos Deus, mescla-se com voz eloquente. Por instantes, aplicam-se

à canção ares marciais, tornando a atmosfera solene. As vozes se agigantam em força e

volume: “Queremos Deus, que é nosso rei/ Queremos Deus que é nosso pai”. É quando

os tambores soam fortemente e a luz preenche todo o palco, invertendo a solenidade em

grandiosa festa pagã. Milton Nascimento ressurge do alto das escadarias, agora todo

vestido em tecido branco ricamente bordado em prata. Um Oxalá mineiro, como lembra

Gabriel Vilela, em algumas reportagens. À memória vem o eco da frase proferida por

Elis Regina: “Se Deus cantasse, seria com a voz do Milton”. O artista surge como

partícula desse Ser maior que é Deus, emitindo um canto de adoração à vida, ao

humano. O quadro representa a sua renovação. Essa segunda parte do espetáculo seria

recheada de composições do novo disco, Nascimento, mescladas a alguns clássicos de

seu repertório. Para esse instante, a canção escolhida é Louva-a-Deus, parceria atual

com Fernando Brant, que abriria aquele disco.

Senhora dona, eu lhe dou meu coração

Fazei de mim o seu altar, seu Louva-a-Deus

Nasci para ser o seu escravo, guia

Sonhei a estrada que me traz o dia

Senhora deusa da paixão

Quero o ventre e o pensamento

Quero o vinho e quero o pão

Quero o leito, quero a mesa

Quero a casa e a oração

269

Senhora dona da paixão...

Fig. 6 – Segundo ato do espetáculo

A sonoridade de Louva-a-Deus é constituída basicamente por instrumentos

percussivos. Junto do som de coloração escura das caixas de folia, manuseadas pelos

atores-bailarinos, vêm os floreios da bateria de Lincoln Cheib e da percussão de Marco

Lobo. A voz grave dos tambores mineiros canta para dentro. Cheio de quebradas e

balanço, a tonalidade grave caça aquela alegria doída dos festejos religiosos. O

ambiente popular que inspirou a pesquisa musical de Lincoln Cheib também serviu de

tema para os versos de Fernando Brant, fazendo recordar o manancial de cânticos

entoados nessas ocasiões: “Viemos, viemos, viemos com prazer e alegria./ Viemos,

viemos, viemos com prazer e alegria./ Nós viemos festejar nossa mãe Virgem Maria.” A

peça de marujada me foi apresentada por Zim da Sá Ana. Sua voz encorpada emite

canto choroso, que, não obstante, evoca e produz a festa: “E quando nós entrava no

salão assim, o pau quebrava. (...) Nós dava salto que pegava até terra lá em cima

[aponta para o telhado]”.

270

Na interpretação de Louva-a-Deus, Milton Nascimento emite um canto que se

avizinha dessas vozes da cultura popular. Dança e canta como se fosse entidade

espargindo centelhas do espírito de folião, marujo, congo, caboquim,73

em celebração

da própria música, a “senhora deusa da paixão”. Há instantes em que sua voz deita no

chão de graves-tambor. É mais um tambor de Minas volteando-se numa festa em seu

próprio quintal. E é desse lugar que abre sua Janela para o mundo.

Da janela, o mundo até parece o meu quintal

Viajar, no fundo, é ver que é igual

O drama que mora em cada um de nós

Descobrir no longe o que já estava em nossas mãos

Minha vida brasileira é vida universal

É o mesmo sonho, é o mesmo amor

Traduzido para tudo que humano for

Olhar o mundo é conhecer

Tudo o que eu já teria que saber

Estrangeiro eu não vou ser

Estrangeiro eu não vou ser

Ê, ê, ê

Estrangeiro eu não vou ser, ê, ê

[Repetição da primeira estrofe]

Estrangeiro eu não vou ser

Eu não vou

Cidadão do mundo eu sou

Estrangeiro eu não vou ser

Cidadão do mundo eu sou

Cidadão do mundo eu sou

Cidadão do mundo eu sou

Estrangeiro eu não vou ser

Ê,Ê...

As mãos na cintura repetem o gesto de teimosia compartilhado nas tantas

encruzilhadas de um Brasil interior. Milton ainda arma o beiço para, debochadamente,

provocar: “Estrangeiro eu não vou ser! Ê, ê”. Janela para o mundo (Milton

73

Numa proposta do Jornal do Brasil, Milton Nascimento entrevistou Gabriel Vilela. E o diretor,

entrevistou seu artista. Numa das perguntas de Milton, destaca-se o sentimento relacionado à sonoridade

do tambor mineiro: “Você diz que os mistérios na Bahia são gozosos, ao contrário dos de Minas, que são

dolorosos. Qual é a diferença entre essas duas definições?”. Assim Gabriel Vilela responderia: “A

diferença entre as manifestações artísticas da Bahia e de Minas Gerais são históricas. Os escravos que

trabalharam nas monoculturas da Bahia transformaram a nostalgia do continente africano em prazer. Daí

vem o termo gozoso, justamente para designar a alegria do tambor baiano. Em Minas Gerais, a relação

dos escravos, que trabalhavam em minas de ouro, com a música foi outra. O canto mineiro é, antes de

mais nada, um canto triste.” (“Milton pergunta, Gabriel responde”, item da matéria “Saudades Gerais”,

Jornal do Brasil, 22/08 a 28/08/1997, p. 20.)

271

Nascimento/Fernando Brant), como outras canções de seu repertório, emoldura uma

travessia, mas numa levada diferente, a dos tambores. “Descobrir no longe o que já

estava em nossas mãos”. O verso batuca afinidades culturais em linguagem tambor. O

tambor, símbolo de uma identidade daqui, também proclama pertencimentos a outras

tribos. Mesmo com sotaques e dicções próprias, nos espaços entre uma e outra batida,

provoca-se um reconhecimento entre povos distantes.

Nesse show, a canção esparrama espontaneidade pelo palco. É como se, depois

da louvação, fosse hora de apenas farrear livremente, brincando com instrumentos e

versos. Canto para pintar graça, arrancar risadas através de gracejos vocais lançados aos

companheiros de voz e dança. Os atores rodopiam pelo palco, agora com figurino

composto por sobreposições de tecidos coloridos vivamente preenchidos por bordados,

fitas e adereços. Fazem caretas se divertindo, como numa grande ciranda. Em seu texto

sobre o espetáculo, Lena Frias pontua: “O elemento de orientação, condução e

acabamento é a mítica Siá Olympia, figura tradicional de Ouro Preto, para uns, uma

louca mansa e delirante, para outros, a alma fabular daquelas montanhas alterosas.”74

Esse segundo ato também remete ao ambiente das folias.75

Talvez àqueles momentos de

descontração, onde os foliões são um pouco Siá Olympia, a se divertir e brincar depois

de horas e horas de canto-oração. Tal imagem me traz à memória vivências da Folia da

Roça, festejo em homenagem ao Divino que acompanhei numa pesquisa acadêmica

realizada na região de Formosa, Goiás, quando ainda no curso de graduação. Em texto

escrito em parceria com a professora Eleonora Zicari, remontamos um pouco do que

vivenciamos no ambiente da Folia da Roça, logo após os cânticos mais solenes:

A inspiração que antes fez com que os músicos cantassem em louvor ao Divino,

agora motiva a improvisação de versos irreverentes e até mesmo cômicos de

agradecimento às cozinheiras e serventes, ou até mesmo nossa equipe de

pesquisa, também por eles lembrada. (...) Nesta parte lúdica da festa, ainda se

apresentam os grupos de danças típicas como a catira, a curraleira e o lundu. Em

dados momentos, o clima que se instala é de total descontração. Dançarinos de

diferentes grupos interagem e brincam, ultrapassando inclusive as fronteiras que

separam grupos masculinos de femininos.76

74

Lena Frias. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. Jornal do Brasil. Op. cit. 75

Cf. Mauro Ferreira. “Um canto emocionado de fênix” O Globo. (19/07/1997) 76

Eleonora Zicari Costa de Brito e Mateus de Andrade Pacheco. “Formosa: entre festas e identidades.”

In: Marcia de Melo Martins Kuyumjian (Org.) Semeando Cidades e Sertões: Brasília e o Centro-Oeste.

Editora da PUC Goiás: Goiânia, 2010, p. 263. A pesquisa aqui mencionada faz parte do projeto Entorno

que transborda: Patrimônio Imaterial da RIDE, patrocinado pela Petrobras e coordenado pela professora

do departamento de história da UnB, Maria Thereza Negrão de Mello. Através do projeto Entorno que

transborda, buscava-se fazer um levantamento de práticas culturais de cinco cidades da RIDE (Região

Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal): Formosa, Buritis, Corumbá de Goiás, Santo Antônio

do Descoberto e Luziânia. Cada uma dessas cidades contava com uma equipe composta por um professor

coordenador e três alunos auxiliares de pesquisa (além de seis jovens selecionados em cada cidade para

272

É esse tipo de ambiente que é recriado na interpretação de Janela para o mundo

e no decorrer do segundo ato do espetáculo. No entanto, há sempre algo de louvação nas

passagens brincantes. E há sempre um quê de festivo nas passagens mais solenes e

intimistas. Funciona como as folias, onde sensibilidades variadas entremeiam todo o

festejo. Referências a essas festividades e suas sonoridades ainda dariam retoques ao

Tambores de Minas.

Marco Lobo e Lincoln Cheib avivam a atmosfera de Janela para o mundo,

demonstrando toda a desenvoltura com as baquetas em variações. Enquanto isso, o

elenco pontua o ritmo. A cena sugere aproximação com outra característica de

manifestações da cultura popular, como destaca Lena Frias em momento que discorre

sobre a pesquisa de ritmos mineiros feita por Lincoln Cheib para o show:

No catopê, manifestação típica mineira que inclui dança e toques, cabe aos mais

jovens manter o ritmo básico tradicional. O espaço de variação é reservado aos

mais velhos, que conhecem os mistérios ancestrais e têm licença para conversar

com os santos na linguagem tambor. No show, essa função de alta

responsabilidade e espiritualidade cabe ao tambor-mestre Robertinho Silva,

além de Ronaldo, filho de Robertinho, e Lincoln.77

É interessante notar que nos créditos do especial gravado para a televisão,

Robertinho e Ronaldo Silva só aparecem nas canções Léo e Levantados do Chão.

Teriam maior participação na gravação do álbum Tambores de Minas ao vivo.

Robertinho ainda foi responsável por ensinar aos atores do elenco a manusear os

tambores. No palco do espetáculo, eles encarnavam o que de fato eram: iniciantes

naquela arte.

Junto do catopê vinham outros sotaques percussivos amalgamados em canções

como Janela para o mundo. Na mesma matéria jornalística que envereda pelas

pesquisas de Lincoln Cheib, cita-se ainda a folia de reis, congadas, cateretê e catira, uma

colcha de variados retalhos musicais onde se aposta na linguagem de fresta para a

confecção de sua sonoridade. Nesse “sendo não sendo”, tais elementos fariam do

ambiente sonoro um campo aberto, pronto a arregimentar e despertar mais e mais

memórias sonoras. Assim, uma festividade poderia se endereçar a outra. Por essa via,

integrar as equipes). Integrei, juntamente com meus colegas Eduardo Kolody Bay e Fabrício Barbacena, a

equipe da professora Eleonora Zicari Costa de Brito, responsável pela pesquisa na cidade de Formosa. A

mim coube o papel de registrar em vídeo as entrevistas e práticas culturais e depois dirigir o curta-

documentário Viola rezadeira, terço cantador, um dos produtos finais da pesquisa. 77

Lena Frias. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. Jornal do Brasil. Op. cit.

273

visualizamos outro fenômeno: ao mesmo tempo que proclamam mineiridade, esses

tambores puxam conversa com tambores de outros cantos. Os tambores de Minas têm

um pouco do interior de Goiás, de São Paulo, e mesmo de paisagens estrangeiras, como

o Uruguai, lembrado no espetáculo pela música Guardanapos de papel. Pela cultura

popular pronunciam fala própria, mas ao mesmo tempo propiciam encontros. Naquele

cenário onde ganhavam o palco para desfazer o equívoco de que em Minas Gerais não

havia tambor, também estimulavam outros cantos do país a soltarem suas vozes graves,

a fazer do Brasil um grande tambor de sotaques multifacetados.78

De outro canto de Minas, o som da caixa e festejos populares inspiraria a voz

límpida de Consuelo de Paula. Naquele mesmo ano, a cantora lançaria, de forma

independente, seu primeiro álbum, Samba, seresta e baião. Acompanhada de sua caixa,

Consuelo erguia canto-relato das folias de sua cidade, Pratápolis, e percorria o tema da

brasilidade, deixando-se levar por outros ritmos e sensibilidades. Num ambiente de

batida pungente, chacoalhado pelo pandeiro, o canto melodioso enuncia a alegria

tristonha dos contemplativos: “Voam fitas amarelas, voam fitas multicores/ Fitas

amarelas, levando as nossas dores/ Fitas amarelas, soam tambores/ Voam fitas

amarelas, levando as nossas dores”79

. E seria dessa mesma tessitura sonora que, anos

mais tarde, Consuelo de Paula emitiria seu canto de cidadã do mundo:

(...)

Olhos do oriente, olhos judeus

Olhos palestinos, índios, ateus

Luz do olhar de qualquer lugar

São teus sinais, são olhos meus

Olhos do ocidente, olhos cristãos

Olhos africanos, latinos, irmãos

Olhos negros, americanos

78

Tambores de Minas, como vimos, ganhou os palcos do país no ano 1997, momento em que já ecoavam

notícias e projetos sobre as comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil. Embora o

espetáculo não esteja diretamente vinculado a essas comemorações, acaba compondo a ambiência onde a

proximidade dos 500 anos redobraria a atenção dos meios de comunicação para a tal brasilidade. À luz

desse ambiente, Regina Porto se debruçaria sobre o fenômeno da musicologia e suas distintas vertentes

em texto publicado pela revista Palavra: “Há cinco séculos, o drama fabuloso, farsesco e tragicômico do

Brasil vem sendo todinho narrado em música. Seja ela sacra ou profana, erudita ou popular, de abre-alas

ou abre-as-asas. Trilhá-la tem sido tarefa bandeirante de alguns pesquisadores, historiadores e intérpretes

da música. Gente de diferentes procedências, vertentes e gerações, que a história uniu por laços de

amizade ou inimizade, não importa. Em comum, uma ciência nova chamada musicologia, e a dura missão

de devolver à terra jovem – e já tão fraca – da memória esse patrimônio “imaterial” que é a música, como

adjetiva Anna Keiffer.”(Regina Porto. “Gigante (musical) pela própria natureza”. Revista Palavra. Nº11

(03/2000)) Mesmo tento sido publicado no ano 2000, data em que se comemoravam os 500 anos do

descobrimento, o trecho acima recortado nos serve de alerta para a importância dada ao tema da

brasilidade nos nossos meios de comunicação no final dos anos 90. 79

Fitas (Consuelo de Paula/Luiz Gonzaga de Paula)

274

Vão ancorar no mesmo cais

(...)80

De maneira distinta, outra cantora, Marina Machado, trazia cânticos e a

sonoridade pesada dos tambus, expressões do candombe da Serra do Cipó, para seu

Baile das pulgas, álbum independente lançado em 1999, que contou com a produção de

Flávio Henrique e Chico Amaral. A textura sonora desse disco é tramada na

combinação do rock mais pesado com a linguagem clube-esquinista. Lugar de onde

Marina Machado ainda ajuntaria elementos da música eletrônica, Beatles e até Elis

Regina. Em canções de ares bem urbanos, Marina improvisa, agregando aos versos

costumeiros outros, colhidos de cânticos populares. Funcionam como citações desses

cânticos que, logo adiante, ressurgem em vinhetas onde se registram vozes populares

em conversa sincopada com os tambus. Dona Mercês, voz do candombe, e sua turma

entoam suas músicas nessas vinhetas que atravessam o disco. Por vezes saltam para

dentro de canções de atmosfera urbana. No seu Baile das Pulgas, Marina Machado

dialoga com o candombe e ainda faz da própria circulação por terrenos sonoros diversos

a marca de sua música. Ao final da canção Bagaceira (Flávio Henrique/Chico Amaral),

ela dá seu recado em forma de improviso: “Eu sou candombeira/ Candombeira eu sei

que eu sou/ Eu sou candombeira, candombeira de Belô.” É desse urbano rodeado de

tradições que Marina se pinta e solta seu canto.

A pesquisa de sonoridades brasileiras, temas da expressão oral, ganhava especial

atenção nesse cenário. Em matéria que destaca o trabalho de Robertinho Silva

desenvolvido no espetáculo Tambores de Minas e o praticado no seu Centro de

Percussão Alternativo Robertinho Silva, repercute essa necessidade de estimular o

conhecimento da pluralidade de ritmos e sonoridades brasileiras. Um dos estímulos era

a ampla projeção da percussão baiana que, por meio do sucesso de grupos como

Olodum e Timbalada, foi fortemente divulgada dentro e fora do Brasil. “Os baianos

fazem um trabalho muito bom. Qualquer um que chegue ao Brasil interessado em

percussão vai direto para a Bahia, mal passa pelo Rio. É preciso mostrar e divulgar os

ritmos do Rio”81

, menciona o percussionista. Volta e meia, matérias e críticas sobre o

espetáculo Tambores de Minas, comparam os tambores mineiros com os baianos, postos

como espécie de parâmetro. Iniciativas como as de Robertinho Silva e Milton

Nascimento sugerem que o cenário percussivo brasileiro é bem mais rico do que se

80

Retina (Rubens Nogueira/Consuelo de Paula). Álbum Dança das rosas, 2004. 81

Robertinho Silva Apud Lena Frias. “PhDs em percussão” Jornal do Brasil (20/08/1997)

275

pensa. Noutras palavras, os terrenos percussivos também precisavam ser revolvidos na

busca constante por preciosidades. Assim, quando lançou o disco Nascimento, que

serviu de base para o segundo ato de Tambores de Minas, Milton destacou sua

inspiração: “Pensando nos meus pais, foi uma busca para dentro do país. Quis resgatar

as festas populares do interior do país, de Minas Gerais. Resolvi ir fundo.”82

Mostrar a

cara de outras festividades, outras sensibilidades e pulsações que arregimentam pessoas

ao toque de tambor país afora, trazer esses tambores para o palco, tudo isso pretexto

para se colocar esse instrumento percussivo no centro, para fazê-lo ecoar o seu grito

rouco.

Era um, era dois, era cem

Mil tambores e as vozes do além

Morro velho, senzala, casa cheia

Repinica, rebate, revolteia

E trovão no céu é candeia

Era bumbo, era surdo e era caixa

Meia-volta e mais volta e meia

Pocotó, trem de ferro e uma luz

Procissão, chão de flores e Jesus

Bate forte até sangrar a mão

E batendo pelos que se foram

Ou batendo pelos que voltaram

Os tambores de Minas soarão

Seus tambores nunca se calaram

Era couro batendo e era lata

Era um sino com a nota exata

Pé no chão e as cadeiras da mulata

E o futuro nas mãos do menino

Batucando com fé e destino

Bate roupa em riacho a lavadeira

Ritmando de qualquer maneira

E por fim o tambor da musculatura

O Tum-tum ancestral do coração

Quando chega a febre ninguém segura

Bate forte até sangrar a mão

Os tambores de Minas soarão

Seus tambores nunca se calaram

Os tambores de Minas soarão...

A canção Os Tambores de Minas (Milton Nascimento/Márcio Borges) é uma

das últimas apresentadas no espetáculo ao qual empresta o nome. “Seus tambores nunca

se calaram/ os tambores de Minas soarão”. Versos feitos para pegar fácil, ainda mais

82

Milton Nascimento em entrevista a Fábio Schivartche. “Músico aponta momento feliz”. Folha de S.

Paulo. (17/02/1998)

276

quando repetidos em forma de refrão. Urdidos numa mesma rítmica, os tambores

retumbam grande volume, cadenciando os passos da dança de Milton Nascimento por

terrenos da memória. À medida que exercita o refrão da canção, a voz do artista

ultrapassa essa simples função, transformando seus versos em canto de evocação. Nas

mãos dormentes a batucar, espasmos de recordações. Em seus versos, a canção Os

Tambores de Minas sacode lembranças de instantes e sentimentos. Suas síncopes caçam

ecos passados, desdobrando-se em esperanças de continuidade: “E o futuro nas mãos do

menino/Batucando com fé e destino”. Provoca, assim, identificações. Entregue a essa

toada, Milton passeia por paisagens memoriais, sente nos pés a textura de serragem e

flores misturadas em tapetes de procissão. O balanço dos braços abre e fecha o peito em

dança de pássaro avivando as asas. São movimentações que performizam o transe de um

xamã no palco, igreja ou terreiro, onde Milton se nutre de vida. Derrama-se aqui aquela

força mística que o cantor cintila e lhe vale de motivo para emocionada história contada

tempos depois numa matéria de jornal assinada por Marcus Preto:

Tudo começou tempos antes de ficar famoso, ainda na primeira metade dos

anos 1960. Milton foi ajudar uma pessoa a entregar doces para a criançada em

dia de Cosme e Damião.

“Recebi de uma senhora espírita a seguinte mensagem: ‘Não adianta fugir, você

vai ter um centro, um terreiro seu’”, conta. “Mas eu era católico, nem conhecia

o candomblé, como poderia ter um centro?”

Chegou à conclusão depois: “Encostei a cabeça na parede do palco e falei:

‘Puxa, como é que posso ser tão burro? Meu terreiro é isso aqui!’ A partir

daquele dia, estar em cima do palco virou a coisa mais importante da minha

vida.”83

Nessa imersão em memórias sonoras de festejos populares trançadas para a

confecção do ambiente do espetáculo, Milton Nascimento e sua trupe ainda

experimentam em arranjos e rearranjos. Ao mesmo tempo em que se aproximam dessas

matrizes, fazem delas motivo para algo novo. Esse manuseio dialoga com fenômenos

como o da canção regionalista, entendida pela historiadora Maria Amélia Garcia de

Alencar como “aquela que, ancorada em raízes tradicionais, busca ser moderna, ou seja,

dialogar com as correntes culturais de seu tempo, para tanto atualizando temáticas e

formas de criação e interpretação musicais.”84

Nesse diálogo de Milton Nascimento com

as raízes tradicionais, o cantor se põe numa zona de troca. Em capítulo anterior, citamos

83

Marcus Preto. “Águas de Milton”. Folha de S. Paulo (04/01/2010) 84

Maria Amélia Garcia de Alencar. “Viola que conta histórias”: o sertão na música popular urbana.

Tese de Doutorado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em História da Universidade

de Brasília: 2004, p. 12.

277

a participação do grupo de candombe, da Serra do Cipó, na gravação do DVD Pietà, em

2006. No show Pietá, o artista voltaria a cantar Os Tambores de Minas. Desta vez, as

vozes femininas do candombe arranjariam a canção com aquele sotaque de canto

ancestral quando respondessem a Milton no refrão: “Seus tambores nunca se

calaram/Os tambores de Minas soarão”. A sonoridade percussiva habitual de Os

Tambores de Minas seria preservada pela trupe miltoniana. No entanto, ganharia

distinta dicção no momento em que a turma fosse completada por rapazes da

comunidade Povo do Açude – Serra do Cipó. Nas variações dos sons que tiram de seus

tambus, eles acrescentam pulsação “candombeira” aos Tambores de Minas. Marina

Machado, que apresentou Milton ao candombe, brinca e dança com uma espécie de

chocalho, no meio dessa farra. Nesse encontro, assistimos ao instante em que

representantes da cultura popular incrementam a música de Milton Nascimento.

Inspirada em ambiente de festejos, Os Tambores de Minas se transformariam em casa

aberta a mais e mais tambores que chegassem. Canções do álbum Nascimento ainda

serviriam para a trama de novas experiências artísticas de Milton, como o espetáculo

Ser Minas tão Gerais, onde o imaginário mineiro seria retomado, numa levada que

recorda Tambores de Minas, mas, ao mesmo tempo, o artista, como sempre, se

arriscaria em outros percursos.

Voltemos ao espetáculo Tambores de Minas. O fervor dos festejos populares se

sente na quentura de voz coral entoando versos que convidam o grande público a

farrear. Canções inspiradas na sonoridade do tambor se misturam a sucessos de Milton

Nascimento. Nos bailes da vida, cantada a plenos pulmões pelo coro de atores,

enquanto Milton brinca em vocalizações, produz um clima efervescente. Ganha força de

grito coletivo quando ajunta a plateia numa grande festa. A iluminação de Maneco

Quinderé alegra ainda mais a atmosfera. Os sucessos cantados por todos tomam feição

de hinos de folias e procissões, aqueles mesmos cânticos que, quando entoados,

despertam memórias e sentimento de comunhão. A folia miltoniana faz da música e do

palco lugares onde se evoca e apresenta a riqueza de festejos populares. Os discursos

vêm em forma de música. É também através da sonoridade que se insinua, mais uma

vez, a proximidade com nossos vizinhos da América Latina, em canções como San

Vicente, alegrada por vozes de coral e pelo ambiente percutido por simples latinhas de

molho de tomate recheadas de cascalho. O som chacoalhado nos convida a enveredar

por memórias de festejos que brotam ao longo do território latino-americano. Um

278

acento hispânico vem pelos gestos das mãos dos atores-bailarinos. A maneira como

empunham as latinhas lembra o balé de castanholas em mãos dançantes. E é no diálogo

com o canto de América Latina que se compartilha uma identificação relacionada ao

papel da arte no nosso mundo. Os versos da música uruguaia, vertidos para o português,

traduzem a vontade de inquietar, de fazer das palavras espada a talhar a realidade em

horizontes mais amplos. Palavras, fonte de beleza em A sede do peixe, seguem

perturbadoras, “retorcendo-se confusas”, em Guardanapo de papel85

.

Na minha cidade tem poetas, poetas

Que chegam sem tambores nem trombetas,

Trombetas e sempre aparecem quanto

Menos aguardados, guardados, guardados,

Entre livros e sapatos, em baús empoeirados

Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares

Onde vivem com seus pares, seus pares

Seus pares e convivem com fantasmas

Multicores de cores, de cores

Que te pintam as olheiras

E te pedem que não chores

Suas ilusões são repartidas, partidas

Partidas entre mortos e feridas, feridas

Feridas mas resistem com palavras

Confundidas, fundidas, fundidas

Ao seu triste passo lento

Pelas ruas e avenidas

Não desejam glórias nem medalhas

Medalhas, medalhas, se contentam

Com migalhas, migalhas, migalhas

De canções e brincadeiras com seus

Versos dispersos, dispersos

Obcecados, pela busca de tesouros submersos

Fazem quatrocentos mil projetos

Projetos, projetos, que jamais são

Alcançados, cansados, cansados nada disso

Importa enquanto eles escrevem, escrevem

Escrevem o que sabem que não sabem

E o que dizem que não devem

Andam pelas ruas esses poetas, poetas, poetas

Como se fossem cometas, cometas

Num estranho céu de estrelas idiotas

E outras e outras

Cujo brilho sem barulho

Veste suas caudas tortas

Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas

Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares

De palavras retorcendo-se confusas, confusas,

Confusas, em delgados guardanapos

Feito moscas inconclusas

(...)

85

Canção de Léo Masliah em versão para o português de Carlos Sandroni.

279

A formatação textual dos versos no encarte do álbum Nascimento insinua

palavras escorregando beleza e inquietação por funil estreito de ampulheta. Seriam jóias

tão preciosas como o tempo que, quando mexidas, remexidas, invertidas, alargam

sentidos e possibilidades de ver. O alargamento é forjado por olhar aflito que perturba

apaziguamentos diante da realidade. A atmosfera de Guardanapos de papel é de

atenção à voz, tanto nos arranjos, que emolduram o canto, quanto pela disposição dos

atores-dançarinos na cena. Encontram-se sentados ao lado de cada tambor calado,

atentos às palavras, soltas a conta-gotas por Milton Nascimento. Cada gesto do artista

convida à conversa lado a lado. Seus olhos fixam o nada. Suspensos, parecem dar conta

de tudo. Parecem lunetas para o mundo os olhos de Milton. Sua voz e mãos são

instrumentos de um grande narrador a contar histórias daqueles poetas, que se

desdobram em memórias de cantores, compositores, atores, artistas que, como ele

próprio, são “obcecados na busca de tesouros submersos”. Personagens que fazem de

suas linguagens matrizes de provocações sobre a estética e a vida. “Escrevem o que

sabem que não sabem/ E o que dizem que não devem”. Estrelas a derramar sol na

obscuridade, dispersando o olhar diante de um mundo arranjado para ser coerente e

estável. Não têm receio em revolver o caos cotidiano. Colocam-se como guardiões

daquilo que teimamos em não ver.86

Seu papel é o de provocar através da instabilidade e

da inexatidão das sensibilidades. Remexer, através do canto, solos já por demais

pisados, extraindo dali novos sentidos: “É a minha linguagem. No canto é que eu dou o

meu recado. No canto não tem barreira. Quando eu entro num estúdio ou estou num

palco ou qualquer coisa, o canto nunca é limitado, não tem barreiras”87

, frisaria Milton

Nascimento quando perguntado se era no canto que ele “se comunicava mais”. Sua

comunicação se realiza na abstração das emoções que capta e espalha no cotidiano.

Por essa via, Guardanapo de Papel se torna ponto de convergência que nos

chama a atenção para sensibilidades que rodeiam o espetáculo, como a referência aos

festejos populares, o retorno de Milton aos palcos, questões de cunho pessoal, social e

tantas outras que atravessam o seu cotidiano. Pelo manejo de várias linguagens, Milton

Nascimento faz os tambores de Minas soltarem seu berro. Dá o seu recado com relação

86

As considerações por nós realizadas aqui aproximam a imagem do artista de noções cunhadas em

ambiente acadêmico, como a de “memórias subterrâneas”. Em reflexão sobre a memória, Michel Pollak

associa as “memórias subterrâneas” aos excluídos e marginalizados, numa oposição à “memória oficial”.

O autor vê nesse jogo um tipo de “trabalho de subversão”. (Cf. Michel Pollak. “Memória, esquecimento,

silêncio.” Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol. 2, n3, 1989, p.4) 87

Milton Nascimento em entrevista a Lena Frias e Regina Zappa. Jornal do Brasil (5/03/1998)

280

à riqueza das festividades populares, sem apontar silêncios. Prefere provocar um grande

barulho, chacoalhando o chão dos vários recantos do país. No cenário dos anos 90,

muitas práticas e manifestações culturais minguaram em redondezas onde antes se

faziam fortes. Em bate-papo informal com Gilberto Gil no documentário A Sede do

peixe, Milton Nascimento pondera sobre essa questão:

- [Milton Nascimento] O pessoal de folia de reis, de reisado, essas coisas todas,

tava com medo porque os jovens tavam com vergonha de tocar aquilo. Que

queriam tocar era o que aparecia na televisão.

- [Gilberto Gil] A música urbana.

-[Milton Nascimento] É. E eu acho que pelo menos uma coisa Minas me deve.

Porque eu comecei a empurrar o pessoal a aparecer.88

Levar sonoridades capturadas de manifestações da cultura popular para o palco

de um grande nome como Milton Nascimento era uma maneira de atribuir valor a essas

expressões, de recolocá-las em seu lugar de merecimento. Em Tambores de Minas, a

mensagem não se dispersa em discursos sobre o processo de desvalorização das

práticas, mas sim traduz-se em amostra da força musical e simbólica do ambiente de

festejos populares. Ao ganharem os palcos e ecoarem pelo país em forma de notícias e

shows, os tambores de Minas converteriam o filete sonoro em que tinham se

transformado num rio caudaloso de voz retumbante.

A valorização dos tambores ainda seria fortalecida na metade da turnê. Em

fevereiro de 1998, enquanto fazia breve pausa para aproveitar o carnaval na Bahia,

Milton Nascimento receberia a notícia de que seu álbum Nascimento havia ganho o

Grammy na categoria world music. O álbum tinha sido produzido por Russ Titelman,

produtor norte-americano que já havia trabalhado com Milton em algumas faixas do

disco Angelus. O prêmio Grammy coroava as investidas de Milton Nascimento numa

carreira internacional justamente no momento em que sua turnê de shows privilegiava o

cenário nacional. Aquele era mesmo um cenário de mudanças. Com o falecimento de

seu empresário de anos, Márcio Ferreira, em 1996, Milton tinha passado a ser

empresariado pela amiga Marilene Gondim, que não mediu esforços para a realização

do espetáculo Tambores de Minas. A notícia do Grammy reverberaria nos meios de

comunicação, dando novo fôlego e captando as atenções para o artista e seu álbum mais

88

Milton Nascimento e Gilberto Gil no filme A sede do Peixe, documentário dirigido por Carolina Jabor e

Lula Buarque de Hollanda. Conspirações filmes/Tribo Produções/Nascimento Música/ HBO Brasil, 1997.

Lançado em DVD em 2003.

281

recente. Logo Milton Nascimento lançaria o disco Tambores de Minas ao vivo. Se uma

das motivações para esse show foi dar visibilidade aos tambores mineiros, certamente

ela foi cumprida. Evidentemente, não era uma ação isolada. E nem se esperava que

fosse. Tambores de Minas era apenas uma iniciativa a somar-se a tantas outras, numa

expectativa de incentivar outras mais, na tentativa de manter fértil o terreno da cultura

popular.

Nesse espetáculo, a inquietude e sensibilidade do olhar artístico seriam tema da

performance de outra canção: Levantados do Chão, nova parceria de Milton com Chico

Buarque.

Como então? Desgarrados da terra?

Como assim? Levantados do chão?

Como embaixo dos pés uma terra

Como água escorrendo da mão

Como em sonho correr numa estrada

Deslizando no mesmo lugar

Como em sonho perder a passada

E no oco da terra tombar

Como então? Desgarrados da terra?

Como assim? Levantados do chão?

Ou na planta dos pés uma terra

Como água na palma da mão

Como andar numa lama sem fundo

Como em cama de pó se deitar

Num balanço de rede sem rede

Ver o mundo de pernas pro ar

Como assim? Levitante colono?

Pasto aéreo? Celeste curral?

Um rebanho nas nuvens? Mas como?

Boi alado? Alazão sideral?

Que esquisita lavoura! Mas como?

Um arado no espaço? Será?

Choverá que laranja? Que pomo? Gomo?

Sumo? Granizo? Maná?

Como andar numa lama sem fundo

Como em cama de pó se deitar

Num balanço de rede sem rede

Ver o mundo de pernas pro ar

Como então? Desgarrados da terra?

Como assim? Levantados do chão?

Como embaixo dos pés uma terra

Como água escorrendo da mão.

282

Um percurso melódico difícil, onde a voz é convidada a subir de novo após

penosa subida. E quando o ar falta, mais um degrau. Do alto, o canto subnutrido ergue

sua insistente força. Valendo-se de apurada técnica, Milton Nascimento transmite o

sufoco que passeia por cada palavra de Levantados do chão. Os versos riscando

imagens que poderíamos entender como surreais seguem cercando o universo que

referencia em tom de desalento. Aos poucos emolduram o vazio. São imagens poéticas

que transpiram emoção no olhar para uma causa que ganhava toda a força naquele

momento. Levantados do chão faz alusão ao MST, Movimento dos Trabalhadores Sem

Terra.89

A atmosfera sonora é cultivada

pelos graves de piano e presença

marcante da percussão. Desse ambiente

monta-se o solo que a voz descalça

procura em vão. A canção inspira aquela

agonia diante do que sempre escorre por

entre os dedos lacrados em desespero.

Seria triste, não fosse cantada por voz

insistente, que não desiste. No canto de

Milton Nascimento, a força da voz

daquele movimento social. Ao final da

performance, despeja-se no palco uma

chuva de olhos, representados por

milhares de bolinhas de pingue-pongue.

Em matéria para caderno do Jornal do

Brasil, Gustavo Autran destacaria: “É

uma referência à peça Ventania, dirigida

pelo próprio Gabriel, na qual Sílvia Buarque vivia uma cega cujos olhos eram

representados por bolinhas de pingue-pongue. Assim, Gabriel homenageia o pai da

89

A proximidade com a causa dos Sem-Terra renderia homenagem a Milton e Chico. Em texto sobre um

disco lançado pelo MST, intitulado Arte em Movimento, salienta-se: “O show também serve de pretexto

para a entrega do prêmio “Luta pela Terra 97” aos cantores Milton Nascimento e Chico Buarque, por

causa do livro “Terra”. O livro, que teve renda revertida para o movimento, é sobre o MST, tem fotos de

Sebastião Salgado e um CD que vem como brinde, com quatro músicas de Chico e Milton.” (Luiz

Antônio Ryff. “MST lança disco com a participação de convidados”. Folha de S. Paulo (23/07/1998))

Uma das canções era justamente, Levantados do chão. Além de ser acompanhado pelo disco compacto, o

livro contaria com prefácio de José Saramago.

Fig. 7 – Chuva de olhos

283

atriz, que, segundo o diretor, enxerga o que ninguém vê.”90

A homenagem, endereçada a

Chico Buarque, chega até Milton Nascimento e ao próprio Gabriel Vilela. Deságua na

figura de todo artista, metaforizando a riqueza do seu olhar para as coisas do cotidiano.

Nessa segunda parte do espetáculo, outra canção promove breve pausa na

ambiência festiva, embora não seja menos alegre pela notícia que traz. Rouxinol, que já

fez aparição em capítulo anterior, quando passeávamos pelo espetáculo Ser Minas tão

Gerais, ressurge aqui para transmitir relato de Milton Nascimento sobre a superação dos

abatimentos sofridos naquele ambiente dos 90. No palco, a iluminação discreta cai sobre

o artista, centralizando ainda mais sua imagem. Entre gritos de “lindo”, “maravilhoso” e

aplausos aquecidos, sua voz vai roubando o silêncio da plateia quando emite profunda

ternura. Uma paisagem bucólica se desenha pelos arranjos da canção, acolhendo essa

voz que nos embala em melodia singela. De olhos fechados, Milton se transporta. É

como se tivesse sozinho e nesse gesto compartilhasse de toda sua intimidade com o

público.

Rouxinol tomou conta do meu viver

Chegou quando procurei

Razão para poder seguir

Quando a música ia e quase eu fiquei

Quando a vida chorava

Mais que eu gritei

Pássaro deu a volta ao mundo

E brincava

Rouxinol me ensinou que é só não temer

Cantou

Se hospedou em mim

[Intermezzo]

Todos os pássaros, anjos

Dentro de nós,

Uma harmonia

Trazida dos rouxinóis

Rouxinol é um relato pós-tempestade. Canto de uma serenidade adquirida depois

da meditação transformadora de que nos falou Foucault. É superação dos traumas

depois do quase fim. A história da canção ecoou em entrevistas à época do lançamento

do álbum Nascimento. Durante a turnê do show Amigo, Milton havia tomado uma

decisão drástica e silenciosa:

90

Gustavo Autran. “Saudades Gerais”. Jornal do Brasil (22/08 a 28/08/1998), p. 21.

284

Quando comecei a compor, botei na cabeça que somente iria escrever sobre

coisas que estivessem acontecendo em minha vida. E eu andei um tempo meio

triste. Minha vida particular não estava tão forte quanto as músicas. Tive muitas

perdas de amigos, coisas tristes... Não foi só a morte do Márcio (Ferreira,

empresário e grande amigo de Milton). Resolvi parar. Só que não falei nada pra

ninguém. Senão, todo mundo ia falar que eu estava ficando louco. Marquei até

um show para ser o derradeiro. Fiz um show com coral e orquestra em São

Paulo e cantei nele como se fosse o último. No bis, as crianças ficavam de

costas para mim e de frente para o público. Só que um menino ficou de frente

para mim na hora em que eu cantava “Travessia”. Parecia que ele sacava que

alguma coisa acontecia dentro de mim. Foi a primeira vez que cantei

“Travessia” vivenciando a letra. No final, o menino me deu um sorriso. No ato

desisti da ideia absurda de parar com a carreira.91

A simplicidade de um sorriso infantil foi o combustível que alimentou a

coragem de seguir adiante. Um sorriso arrancado com a voz. Rouxinol foi composta

para o garoto Mardey, componente do coral Rouxinóis de Divinópolis. Na canção, além

de homenagear o novo amigo, Milton se transformaria em mais um rouxinol. É nessa

sua porção infantil, em seu olhar desarmado para as coisas, que busca reconstituir a

serenidade para refundar a sua força. A transformação pessoal atravessa seu canto, suas

composições, pois o artista, como bem demarca nas palavras acima, não separa a arte da

vida. Essa sensibilidade presente na canção se transportaria para o palco de Tambores

de Minas. Aqui, Rouxinol somava um amontoado de superações à história que a

inspirou. A força de experiência desse espetáculo levaria Milton a afirmar: “Ele vai

abrir caminhos para outros artistas pensarem quando forem subir em um palco.”92

A fala

de Milton Nascimento não se direciona a uma questão específica; assim, favorece

reflexões sobre aspectos diversos, desde a visibilidade dada aos festejos populares até o

processo de transformação do próprio artista, como visualizamos ao longo de nosso

percurso por Tambores de Minas. Poderia um artista passar pelo palco sem fazer dessa

experiência uma transformação pessoal? Seguindo esse espetáculo, a resposta é

peremptória: não. No instante em que brilhava com Tambores de Minas, Milton vertia,

em acréscimo, o seu quase-fim em continuação teimosa e desafiadora.

91

Milton Nascimento (entrevista) “Quero retomar o caminho dos palcos”. Op. cit. 92

Milton Nascimento Apud Luiz Antonio Ryff. “Milton retorna a suas origens em Minas”. Folha de S.

Paulo (16/07/1997).

285

Naquele palco, Milton Nascimento mostrava que não havia se acomodado. Sua

mudança era pressentida já na aposta na linguagem do espetáculo para celebrar sua

volta aos palcos. Alguns detalhes não passaram batido nos meios de comunicação da

época. Em variadas matérias salientam uma ausência: o fiel escudeiro desde os anos 70,

o boné, marca registrada de Milton, havia sido abandonado no espetáculo Tambores de

Minas. Evidentemente, não faria sentido com o vestuário do espetáculo, como bem frisa

Gabriel Vilela em relato bem-humorado: “O boné é incompatível com os figurinos

religiosos (...). Além do mais, ‘Tambores de Minas’ é um show em que Milton

reverencia os amigos. Eu falei: ‘Já que não dá pra tirar o chapéu, tira o boné...’”93

O

próprio Milton se divertiria com a temática ao enfrentar a questão: “Por que você

abandonou a boina?”: “Não abandonei, não. No show eu faço um dos motivos de

Aleijadinho e outro é um Oxalá mineiro. Não tem sentido um Oxalá com boina, não. E

depois, é bom deixá-la descansar um pouquinho. Ela está muito metida, só dá ela.”94

As

férias sem prazo dadas ao boné já eram ensaiadas na capa do disco Nascimento. Nesta, o

artista posa para a fotografia de Vania Toledo, onde abraça o peito nu. Numa das mãos,

o boné entre os dedos. Ao

retirarmos o CD da capa,

nos deparamos com nova

fotografia onde o boné

repousa em berço de

palha. Naquele mesmo

disco onde se

embrenhava em Minas

Gerais, Milton

Nascimento se despia da

imagem que carregou por

anos. Estava pronto para

“novas novidades”,

estava pronto para ser

agasalhado por símbolos

e tecidos que viriam em

93

Gabriel Vilela Apud Mauro Ferreira.” O canto emocionado de fênix” O Globo. Op. cit. 94

Milton Nascimento em entrevista a Leandro Fortino. “Milton Nascimento leva tambores a MG” Folha

de S. Paulo (08/07/1998)

Fig. 8 – Capa do álbum Nascimento

286

Tambores de Minas e por outros tantos acessórios que poderia ou não experimentar ao

longo da vida. Como a própria transformação em Crooner, em show posterior. Ou como

mais um membro da trupe de Ser Minas tão Gerais, anos mais tarde.

Nesse gesto mínimo, Milton Nascimento ainda faz refletir sobre o engessamento

da imagem do artista. E não pararia por aí. Em Tambores de Minas encheria o palco não

somente com a voz, mas também com passos de dança, com as mãos articulando e

desenhando sentidos. A performance ali apresentada confrontava-se com a imagem

anterior de Milton sentado ao violão. Em seus projetos anteriores ao Tambores de

Minas, reinava absoluta a música. Já nesse espetáculo, a música integrava um rol de

outras linguagens; Milton era um pouco ator, dançarino, artista de circo; um corpo a

representar a própria superação e a fazer de seu drama mote para um novo começo.

Quando o espetáculo Tambores de Minas toma seus ares finais, todas as luzes

recaem sobre Milton Nascimento. Acompanhado apenas pelo som do teclado, cria uma

atmosfera de intimismo capaz de encurtar a distância entre ele, sua trupe e o público. A

voz em baixo volume convida a chegar perto, mais e mais próximo, despejando

confidências aos ouvidos atentos. Abre assim caminho para a comunhão, sentimento

nutrido no compartilhamento de Canções e momentos (Milton Nascimento/Fernando

Brant).

Há canções e há momentos

Eu não sei como explicar

Em que a voz é um instrumento

Que eu não posso controlar

Ela vai ao infinito

Ela amarra todos nós

E é um só sentimento

Na plateia e na voz

Há canções e há momentos

Em que a voz vem da raiz

Eu não sei se é quando triste

Ou se quando sou feliz

Eu só sei que há momento

Que se casa com canção

De fazer tal casamento

Vive a nossa profissão

Em seu canto, Milton congrega as emoções que semeou ao longo de Tambores

de Minas. A voz, arrancada do âmago, continua nos gestos das mãos, nos olhos, no

corpo inteiro transpirando a verdade do coração. No instante em que vai ao infinito, o

287

olhar perde-se à vista. Quando “... é um só sentimento/ na plateia e na voz”, o braço

percorre largo espaço e volta ao peito num abraço a toda a gente. A mão batida contra o

lado esquerdo tremula a voz em tom de lembrança: “amigo é coisa pra se guardar...”.

Os sons do teclado comentam os percursos tomados, marcando o arrebatamento dessa

voz já bastante acostumada a reger coro de emoções conflitantes. Aqui, os sentimentos

não têm barreira, a dor se mistura à alegria, a força se confunde com a delicadeza. A

receita de contrários libera o espírito ao que vier. Tudo deflagra a comoção.

E quando a lágrima já não pode ser contida o olho franze, entregando o sorriso

molhado, arrancado de si, quando, então, faz a festa. Aos “lará, lará, lará”, o elenco de

atores arma a ciranda. Com as baquetas em punho, cruzam-nas no espaço, percutindo o

ambiente. Aos poucos vão envolvendo Milton, que apenas se diverte, dançando. É hora

de brincar, rir junto, em redenção. As cores dançantes das luzes se embaraçam ao

colorido dos figurinos. Nessa atmosfera viva, promove-se a catarse em belo arremate de

percursos por enredos e memórias, canções e gestos que fazem da arte o canal adequado

para se “redescobrir o gosto e o sabor da festa”.

Fig. 9 – “Como se fosse brincadeira de roda...”

Novamente e por fim, Elis Regina. Redescobrir (Gonzaguinha), sucesso na voz

da cantora, celebra a travessia de Milton Nascimento pela experiência de Tambores de

288

Minas. O artista abraça emocionadamente cada integrante do espetáculo, enquanto a

canção invade o palco na voz de Elis. “Eu não concebo nada na minha vida sem Elis no

meio. Elis é o começo, o meio, o fim, é tudo. Elis é o grande amor da minha vida, daí

tantas homenagens.”95

A imagem é comovente. A celebração ao retorno de Milton

Nascimento se completa. Colhendo os agradecimentos da plateia, ele subiria novamente

a escadaria do cenário, agora se despedindo. Enquanto isso, aos seus pés, se fazia a

folia: “Como se fosse brincadeira de roda/ jogo do trabalho na dança das mãos/ O suor

dos corpos na canção da vida/ O suor da vida no calor de irmãos...” Músicos e atores

cantam em coro o refrão. Uma fanfarra arregimentando todos, uma brincadeira de roda

ecoando alegria.

Milton Nascimento, subindo aqueles degraus, passeava pela recordação de

outros passos, por outra escadaria. 1980: num cenário de grande circo, Redescobrir

alegrava outra ciranda. Naquela algazarra, Elis Regina se misturava a sua trupe,

composta por músicos e atores-bailarinos, e ao público. De repente, tomaria a escada

central. Do alto, apreciaria a festa em tom de despedida. A cena, que fechava o

programa especial Elis Regina Carvalho Costa, veiculado pela Rede Globo96

, citava o

espetáculo que a cantora encenava naquele momento, o Saudade do Brasil. Pressente-se

aqui uma ligação entre Tambores de Minas e o espetáculo de Elis Regina. Talvez seja

mera coincidência a congruência de imagens. Mesmo assim, elas proporcionam a

aproximação entre Tambores de Minas e Saudade do Brasil, diálogo regido por olhar

inquieto e cúmplice de dois quase irmãos, Elis e Milton.

No Saudades do Brasil, Elis Regina caçava o Brasil nas coisas mais simples do

cotidiano. Saudades do que estava aí, mas ninguém via, justamente por estar tão

entranhado nos subterrâneos do dia a dia. Nessa viagem, Elis desviava-se de um país

traçado em unidade para apreender o Brasil como grande mosaico de traços

indefinidos.97

Essa inquietude para aquele cenário quase caótico comunica-se com a

perturbação retumbada em Tambores de Minas. Quando Milton Nascimento sentiu

saudades do Brasil, fez voos por sonoridades que estavam nos escapando entre os

95

Milton em entrevista a Eros Ramos de Almeida. “Milton volta às origens em espetáculo barroco”. Op.

cit. 96

Programa dirigido por Daniel Filho. Série Grandes Nomes. (TRAMA, Som Livre, Globo Marcas DVD

e Lereby). Lançado em DVD em 2005. 97

Cf. Mateus de Andrade Pacheco. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção.

Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em História da

Universidade de Brasília, 2009.

289

dedos. Trouxe os festejos cravados em recantos do país para o centro de seu palco. As

saudades de Milton, como as de Elis, nos encaminham para uma identidade brasileira

constituída na fluidez. Um Brasil mistério, numa visão inacabada, sempre provocada

pela percepção de novos e velhos tesouros culturais.98

Em seu Tambores de Minas,

Milton pega a estrada mineira e ruma para um Brasil interior, já insinuado em Angelus,

em canções como Coisas de Minas. Na fluidez desse olhar para dentro, que não deixa

de espreitar o que existe lá fora, a paisagem brasileira se risca com as mesmas cores

com as quais Milton Nascimento se pinta: “Para mim, sempre é um começo, porque

sempre estou procurando coisas novas. Sei que estou sempre aberto a coisas novas,

pessoas novas. Então para mim é sempre um começo.”99

98

Em suas reflexões sobre o tema da identidade, mais especificamente sobre as identidades nacionais,

Stuart Hall chama atenção para seu caráter de representação simbólica regida pela ideia de unidade. No

entanto, o autor destaca a diversidade guardada por de trás de aparente homogeneidade: “As identidades

nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de

divisões e contradições internas, de lealdades e diferenças sobrepostas.” (Stuart Hall. A identidade

cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 65.) 99

Entrevista de Milton Nascimento a Regina Zappa e Lena Frias. Jornal do Brasil. (05/03/1998).

290

CAPÍTULO 4

“Se já conheço, eu quero é mais...”

Depois do espetáculo Tambores de Minas, Milton Nascimento levou outras

pulsações aos palcos. Alguns desses novos shows decorreram de discos que já foram

motivo de reflexões dessa tese, caso de Crooner (1999) e Pietà (2002). Nesse

entremeio, o artista ainda dividiria o palco com Gilberto Gil na turnê de divulgação do

disco Gil & Milton (2000). A turnê Pietà se alongou por mais de quatro anos, dentre

apresentações no Brasil e no exterior. Findado esse período, o artista se deslocaria para

outras paragens sonoras, aventurando-se numa movimentação que alargaria ainda mais

os horizontes de sua música através de novas parcerias. Assim, em 2007, partiu para

França atendendo ao convite dos irmãos Belmondo para gravarem um disco juntos. Em

2008, gravaria juntamente com o Jobim Trio, o Novas Bossas, álbum de tributo a Tom

Jobim.

2008 seria um ano positivamente tumultuado para Milton Nascimento, pois o

cantor-compositor teria que se desdobrar entre as turnês de divulgação dos dois discos.

Com Novas Bossas correria o circuito brasileiro e estrangeiro. Com o show decorrente

do álbum Milton Nascimento & Belmondo percorreria parte da Europa, apresentando-se

em variados espaços destinados ao jazz, caso do festival Jazz à Vienne. O show ainda

viajaria por outros caminhos, sendo encerrado no auditório da Sorbonne1. Em entrevista

ao Jornal do Brasil, Milton noticia a experiência de gravação com os Belmondo e

aproveita para brincar sobre seu revezamento entre uma turnê e outra: “Nos

apresentamos na Europa com Orquestra Nacional da França para lançar o CD. Shows

estes que coincidiram com o início da turnê do Jobim Trio. Tinha dia que saía de casa e

nem sabia mais que show estava indo fazer.”2 Deve-se acrescentar que esses projetos

corriam por linhas diferentes, desde a armação da ambiência sonora ao repertório

escolhido. Enquanto em Milton Nascimento & Belmondo remodelavam canções de

Milton, em Novas Bossas visitavam o universo de Jobim. Na sequência, o artista ainda

rodaria o Brasil com show de repertório de sucessos, juntamente com sua banda – Kiko

1 Cf. “Saideira à francesa” Jornal do Brasil (15/05/2008)

2 Milton Nascimento Apud Leandro Souto Maior. “Nada será como antes para Milton Nascimento”

Jornal do Brasil (26/04/2009)

291

Continentino, Wilson Lopes, Gastão Villeroy e Lincoln Cheib. Nos espaços entre

shows, o artista já matutava ideias para o seu novo disco, que sairia em 2010: ... E a

gente sonhando, um álbum onde reencontra Wagner Tiso e reúne novos talentos de sua

Três Pontas.

Três discos lançados em curto espaço de tempo, três rotas distintas que

enunciam a ebulição miltoniana na cena contemporânea. O artista aventureiro ladeia o

nômade, segue apanhando estradas e cenários que recompõem o tecido de sua própria

história. Na sua inquietude, brinca inclusive com o tempo. Assim, quando revisita

clássicos de seu repertório, cânones do cancioneiro brasileiro, ou mesmo o chão de sua

terra, multiplica linhas de fuga, trilhas para emitir novo canto, a voz do ainda nebuloso

agora.

Tem sotaque francês na música brasileira

Milton Nascimento & Belmondo aqui. Belmondo & Milton Nascimento lá.

Encontro na fronteira Brasil-França, onde a música brasileira de Milton Nascimento

flerta com a clássica belgo-francesa e ainda passa o olho no bom tempero do jazz. No

ano de 2007, Milton foi à Paris realizar novo projeto de carreira, a gravação do álbum

com os irmãos Lionel (sax soprano e flauta) e Stéphane Belmondo (flugelhorn3). O

disco foi lançado na Europa em 2008 e chegou ao Brasil no ano seguinte pelo selo

Biscoito Fino. O convite partiu dos irmãos Belmondo, instrumentistas reconhecidos por

projetos onde investem em releituras ousadas dos artistas que visitam. Um dos traços

que identifica a dupla é a busca constante por trabalhar repertórios que soam como

diferentes, seja quando miram artistas menos conhecidos, mitos do jazz ou mesmo

nomes amplamente divulgados no cenário internacional. De Lili Boulanger –

compositora francesa do início do século XX – a Stevie Wonder, esses irmãos franceses

fizeram de sua garimpagem, uma forma de enriquecer seu próprio território musical.

Normalmente classificados como jazzistas, os Belmondo juntaram outros ingredientes

3 Por ser da mesma família de instrumentos, volta e meia o flugelhorn é citado como trompete nos textos

de divulgação desse disco.

292

em seu caldeirão sonoro, demonstrando aptidão para a fluidez, lugar de onde sua arte

acena. Essa inquietação e gosto pelo inusitado sintonizaria sua música com a de Milton

Nascimento: “Eles gostam de trabalhar como eu: quando vejo algo diferente, quero

entrar.”4

Fig. 1 – Capa Fig. 2 – Contracapa

Milton, que poderia optar por breve participação especial no disco dos irmãos

franceses, acabou aderindo integralmente ao projeto, interpretando praticamente todas

as faixas que compõem o Milton Nascimento & Belmondo – só não cantou numa.

Aquele disco passou a ser seu também. Como vimos em capítulo anterior, a chave para

o embarque de Milton nesse projeto foi a afetividade, acionada através da menção ao

álbum Angelus por um dos Belmondo em seus primeiros contatos. Ao pedir que

comentasse sobre a experiência de gravação, Milton destacou: “Foi o lance que eu falei,

né? Tocaram no meu coração com o Angelus... aí fui pra França e a gente começou a

escolher as músicas e tal”5.

Numa matéria para o jornal O Globo, João Pimentel reverbera histórias que

permitiram a formação da parceria entre o artista brasileiro e os Belmondo:

Certo dia, Milton Nascimento recebeu alguns CDs dos irmãos Lionel e

Stéphane Belmondo, saxofonista e trompetista considerados dos melhores

músicos franceses contemporâneos. Gostou do trabalho que eles fizeram junto a

um coral lituano e de sua sonoridade. Pouco tempo depois, chegava o convite

para um encontro, ocorrido meses depois em Paris. Sob a regência do maestro

4 Milton Nascimento Apud Roberta Pannafort. “Travessia por sete clássicos de Milton”. O Estado de S.

Paulo (06/05/2009). 5 Milton Nascimento em entrevista a mim concedida no Rio de Janeiro, em 17/07/2012.

293

Christophe Mangou e acompanhados pela Orquestra Nacional da Île-de-France,

Milton, os Belmondo e seus músicos fizeram um show e, em seguida, entraram

em um estúdio para regravar oito canções do artista mineiro de forma bem

intimista.6

No texto aqui recortado, temos ainda notícia da constituição sonora do disco:

Milton Nascimento, os irmãos Belmondo e a Orquestra Nacional da Île-de-France. Um

projeto grandioso, no entanto, de coloração intimista. Os arranjados foram assinados por

Lionel Belmondo e Christophe Dal Sasso. Em minhas buscas por informações sobre o

disco, encontrei resenha e entrevista num site europeu especializado em jazz, o Citizen

jazz.7 Elas nos permitirão breve passeio por percepções sobre essa obra pela óptica de

lá. Na entrevista que deram a Jacques Prouvost, os Belmondo comemoram o fato de

Milton ter confiado no trabalho de elaboração dos arranjos, aprovando inteiramente o

que lhe apresentaram.8 No Brasil, Milton afirmaria: “Todo o repertório e arranjos foram

definidos por Lionel e Stéphane (...). Foi a primeira vez que deixei alguém fazer tudo

por mim”9. Mas à casa arrumada, Milton Nascimento acrescentaria detalhes, dando

nova tonalidade ao ambiente do disco, como veremos adiante em mais uma história com

sua companheira musical, aquela sanfoninha.

Para realizar essa aventura pelo território miltoniano, os Belmondo reuniram

velhos amigos sintonizados pelo convívio em parcerias anteriores: Eric Legnini, pianista

que integrou o quinteto dos Belmondo em 1995; Thomas Bramerie (baixo acústico),

amigo que partiu de Nova Iorque rumo a Paris para participar desse novo projeto. Além

do baterista Dédé Ceccarelli.10

Os Belmondo ainda contariam com o reforço de outros

sopros para constituir a ambiência sonora: Sabine Tavenard (flauta), Bernard Burgun

(Oboé e corn inglês), Jérôme Voisin (clarinete e clarinete base), Cécile Hardouin

6 João Pimentel. “Milton e irmãos Belmondo criam a Paris-Minas, uma estrada natural”. O Globo

(26/04/2009) 7 No cenário atual, blogs e sites especializados se mostram como caminho para divulgação musical. Por

vezes, é apenas por eles que temos acesso a resenhas e críticas de obras de certos artistas, principalmente

os que passeiam pelo circuito independente. No entanto, mesmo no caso de artistas consagrados, a

consulta desses sites se faz importante. Por meio deles nos deparamos com textos engendrados por olhar

detido, que se esmeram em longas entrevistas e resenhas. Assim, acabam se transformando em nova fonte

para enriquecer o trabalho do historiador que se envereda em estudos sobre música. Na verdade, a

tecnologia digital acrescentou distintas maneiras de divulgação, circulação e armazenamento de música.

Seja via pirataria ou por venda legal, a possibilidade de baixar arquivos musicais pela internet ampliou o

acesso a catálogos discográficos e igualmente criou novos padrões de escuta. 8 Cf. Entrevista de Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et Stéphane Belmondo”.

Citizen jazz (28/05/2008). Disponível em www.citizenjazz.com. 9 Milton Nascimento Apud Leandro Souto Maior. “Nada será como antes para Milton Nascimento”

Jornal do Brasil (26/04/2009) 10

Cf. Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et Stéphane Belmondo”. Op. cit.

294

(fagote), Jean-Pierre Bouchard (coro/corn francês), Stéphane Peter (coro/corn francês),

Bastien Stil (tuba). Milton também acrescentaria alguns amigos a essa turma, como

Wilson Lopes (guitarra), Lincoln Cheib e Ricardo Cheib (ambos na percussão). As

motivações afetivas aqueciam esse projeto, servindo de urdidura para uma experiência

criativa. A esse respeito, Stéphane Belmondo diria:

Il y a la musique qui est très forte, mais il y a aussi les sentiments. On

fonctionne beaucoup aux coups de coeur et aux sentiments. Pour Milton, c’est

pareil. C’est vrai que c’est un projet qui nous coûte cher, en qualque sorte, car

on y travaille énormément. Il y a beaucoup de monde et de choses à gérer, ce

n’est pas ça qui va nous rendre riche, mais sentimentalement et humainement,

ça fonctionne et ça vaut tout le pognon du monde.11

A afinada sintonia sentimental impulsionaria a ousadia de uma produção musical

onde não se renderiam a cerceamentos estéticos. Na Europa, o disco seria lançado pelo

B-flat recordings, selo independente criado pelos irmãos Belmondo, dentre outros

colaboradores, para viabilizar seus projetos musicais. Nas entrelinhas do discurso de

Stéphane Belmondo, destaca-se a coragem de artistas que driblam as imposições do

mercado num momento em que a indústria fonográfica mergulha em crise de vendas.

Se na atualidade o disco não é uma das mercadorias mais lucrativas, permanece como

obra de arte, dimensão que motiva experiências como a do encontro dos irmãos

Belmondo com Milton Nascimento.12

Nessa empreitada, repensariam, inclusive, questões relacionadas ao manuseio de

técnicas e tecnologias. No decorrer dos anos, assistimos a avanços tecnológicos que

impulsionaram a caçada por performances perfeitas. Assim, propagaram-se artefatos de

correção de pequenos e grandes “defeitos” de gravação. No “polimento” proporcionado

por programas como Auto-Tunes, arrumam-se, por exemplo, a afinação e a respiração.

Os debates sobre os usos desses recursos dividem opiniões. Em muitos casos, criam a

impressão de falseamento, ou seja, um cantor que não sabe cantar.13

Esse fenômeno

11

Stéphane Belmondo. Entrevista de Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et

Stéphane Belmondo”. Op. cit.. “Há a música que é muito forte, mas há também os sentimentos. Nós

funcionamos muito ao compasso do coração e pelos sentimentos. Para Milton, é parecido. É verdade que

é um projeto que nos custa caro, pois trabalhamos muito. Há muita gente e coisas para administrar. Não é

isso que nos fará ricos, mas o ganho sentimental e humano faz compensar todo o dinheiro do mundo.”

[tradução livre] 12

A respeito das mudanças na indústria fonográfica no cenário atual ver: Marcia Tosta Dias. “Apêndice:

A grande indústria fonográfica em crise.” In: Marcia Tosta Dias. Marcia Tosta Dias. Os donos da voz: a

industria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2008. 13

A respeito do uso dessas ferramentas de correção ver: Marcelo Carvalho de Oliveira. “Para além do

iTunes”: A indústria fonográfica da primeira década do século XXI na perspectiva de um selo musical de

Brasília. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília. Instituto de Arte, Departamento de Música,

2010.

295

reconfigura o olhar para as performances de grandes intérpretes, despertando

curiosidades e até mesmo atualizando formas de valorização. Na reedição do último

disco lançado por Elis Regina, o Elis (1980), a propaganda comercial colada em

decalque sobre a capa, alerta: “Todas as vozes de Elis foram gravadas numa única

tomada, sem emendas. Nenhum programa para afinar ou editar cantores foi usado na

sua voz. A performance é real.”14

Em Milton Nascimento & Belmondo, mesmo hábitos hoje correntes em vertentes

consideradas musicalmente mais inventivas, foram recusados. Dessa maneira, ao invés

de optarem por colocar voz após a gravação dos outros instrumentos, convenceram

Milton a cantar junto dos músicos e da orquestra: “Mais moi, je voulais tout enregistrer

en “live”. Il a fait l’effort”15

. Queriam assim promover um disco que captasse a

sensibilidade de seu ambiente de gravação e o calor da performance frutificada pelo

traquejo desses artistas. Milton Nascimento & Belmondo foi gravado em dois dias, ou

seja, quase ao vivo, mantendo como baliza esse quê de espontaneidade do encontro

entre grandes músicos. Milton também demonstraria que há inventividade no uso de

tecnologias através de experimentos em estúdio. Assim, o artista acrescentaria algumas

vozes posteriormente, incrementando aquela atmosfera com seus “primos”, esse recurso

que ele bole de maneira surpreendente há anos.

Em texto crítico sobre o álbum, publicado no Citizen jazz, Denis Desassis

desenha perfis para Milton e Belmondo em quadros onde sobressai a audácia de suas

obras. Assim instiga o público para essa parceria. A narrativa de Desassis parte de

recordação da contribuição de Milton Nascimento no Native Dancer, de Wayne Shorter.

Encontra aí um dos laços entre Milton e os Belmondo. Sendo os irmãos franceses

enquadrados pela crítica em geral como representantes do jazz contemporâneo,

poderíamos entender a lembrança do Native Dancer como alusão a uma sintonia

jazzística entre eles e Milton Nascimento. No entanto, não seria apenas isso. Nesse

artigo, o Native Dancer é celebrado pelas misturas de gêneros como jazz, bossa nova e

rock. Essa percepção inspira Desassis a entendê-lo como precursor da World music.

Mais do que defini-lo como pertencente a esse segmento, o autor frisa o caráter

visionário de sua fusão, traduzido na citação que faz da canção Milagre dos peixes:

14

Relançamento em edição especial pela TRAMA em 2006. 15

Lionel Belmondo. Entrevista de Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et Stéphane

Belmondo”. Op. cit..“Mas eu queria tudo gravado ‘ao vivo’. Ele fez esse esforço.”[tradução livre]

296

“...world music avant l’heure, où le miracle des poissons (“milagre dos peixes” em

portugais) était déjà à l’ordre du jour”16

. É nesse rastro, povoado por cruzamentos,

milagres sonoros, que Desassis ergue ponte entre os Belmondo e Milton Nascimento.

En 2008, ces poissons suscitent à nouveau une exploration réjouissante. Nul

doute que les frères Belmondo se sont goulûment nourris de cette galette, parmi

quelques autres! Et qu’ils ont réussi, une fois encore, le pari risqué d’un

palimpseste musical dont ils deviennent, année après année, les experts

reconnus: après avoir réinventé des univers aussi variés que ceux des

compositeurs post-impressionnistes du début du XXè Lili Boulanger, Gabriel

Fauré ou Maurice Deruflé pour Hymne au soleil, celui de Stevie Wonder pour

un festif Wonderland ou la musique plus introspective de Yusef Lateef avec

Influence, voici venu le temps de Milton Nascimento, grande voix de ce que

l’on appelle la musica popular brasileira, musicien chanteur pour lequel

Stéphane Belmondo éprouve une fascination de longue date et qui nous a

habitués à ne jamais se laisser enfermer dans une seule catégorie musicale et à

multiplier les collaborations internationales. Pour mémoire: Paul Simon, Cat

Stevens, George Duke, Quincy Jones, Pat Metheny, Ron Carter, Herbie

Hancock, Jack DeJehnette, Nana Vasconcelos, Jon Anderson, James Taylor,

Peter Gabriel…et même Duran Duran.17

Na lista de artistas visitados pelos irmãos Belmondo, viagens inventivas por

territórios instigantes da música. O desejo por continuar inovando os encaminharia

agora para o universo de Milton Nascimento, apresentado nessa crítica como enigma,

aquele artista que driblou todos os rótulos musicais. Uma pergunta parece sombrear

todo o texto: O que sairia do encontro de artistas tão inventivos? Nesses ingredientes

discursivos, mistura dos universos de Milton e dos Belmondo, a receita para atiçar a

curiosidade sobre esse disco de feição surpreendente.

Para certas parcelas do público francês, a visita dos Belmondo à obra de Milton

já soaria como inusitado. Efeito semelhante, mas por outras vias, se realizaria no

16

Denis Desassis. “Belmondo & Milton Nascimento” Citizen jazz. (23/06/2008) Disponível em:

www.citizenjazz.com. “... World music antes da hora, onde o milagre dos peixes (“milagre dos peixes”

em português) já estava na ordem do dia” [tradução livre] 17

Idem, ibidem. “Em 2008, esses peixes suscitaram uma nova exploração criativa. Não há dúvidas que os

irmãos Belmondo se alimentaram avidamente desse bolo, mais do que de qualquer outro! E eles foram

bem sucedidos, mais uma vez, na aposta arriscada no palimpsesto musical do qual se fizeram especialistas

reconhecidos ano após ano: depois de ter reinventado o universo bem variado dos compositores pós-

impressionistas do início do século XX, como Lili Boulanger, Gabriel Fauré ou Maurice Deruflé para o

Hymne au Soleil, feito o mesmo com Stevie Wonder em um efervescente Wonderland, ou com música

mais introspectiva de Yusef Lateef com Influence, chegou a vez de Milton Nascimento, grande voz

daquilo que chamamos de música popular brasileira e músico pelo qual Stéphane Belmondo cultiva

grande admiração já há muito tempo e que nos acostumou a nunca se deixar aprisionar numa única

categoria musical, multiplicando as colaborações internacionais em sua obra. Para lembrar: Paul Simon,

Cat Stevens, George Duke, Quincy Jones, Pat Metheny, Ron Carter, Herbie Hancock, Jack DeJehnette,

Nana Vasconcelos, Jon Anderson, James Taylor, Peter Gabriel… e mesmo o Duran Duran.” [tradução

livre]

297

público já habituado à obra de Milton Nascimento, mesmo aqui no Brasil, onde os

Belmondo são pouco conhecidos. Nesse álbum, reuniriam cânones do cancioneiro

miltoniano, exceto no caso de duas faixas. As canções que compõem o álbum são:

Ponta de Areia (Milton Nascimento/Fernando Brant), Canção do Sal (Milton

Nascimento), Milagre dos Peixes (Milton Nascimento/Fernando Brant), Oração

(Adaptação de César Franck por Christophe Dal Sasso), Travessia (Milton

Nascimento/Fernando Brant), Morro Velho (Milton Nascimento), Nada Será como

Antes (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), Berceuse/ Malilia (Maurice Ravel/Lionel

Belmondo), Saudade dos aviões da Panair (Milton Nascimento/Fernando Brant) e,

novamente, Ponta de Areia. Se ao lermos a relação das canções não nos deparamos com

grandes novidades, o mesmo não acontece ao arriscamos ouvir o disco. Os arranjos de

Lionel Belmondo e Christophe Dal Sasso e as interpretações de Milton Nascimento

constroem, junto com a performance dos músicos integrados ao projeto, um ambiente

intimista e descontraído, onde exploram nuances que dão novos ares àquelas canções.

Dos sopros dos Belmondo, escorre doce e vagarosamente a lembrança do verso

que a frase melódica guarda: “Ponta de Areia, ponto final/ Da Bahia Minas, estrada

natural”. Vocalises em falsete chegam à cena, reverberando memórias de versões

anteriores. No entanto, surpreende em performance distinta. Ponta de Areia, canção que

abre Native Dancer, anuncia agora outra viagem. Juntos, os sopros dos Belmondo e o

canto de Milton Nascimento emitem a emoção do encontro dessas vozes nômades. Aos

poucos outros instrumentos vão se achegando. As cordas da orquestra repinicam cortina

sonora discreta, dando coloração clássica à canção. Num andamento desacelerado, em

relação às versões anteriores, instalam-se ares de comoção. E Milton canta os primeiros

versos, degustando pacientemente cada palavra, num gesto vocal onde desenha a

melodia de Ponta de Areia. A massa orquestral realça seu risco, criando uma atmosfera

onde se contempla a beleza particular do canto miltoniano e daquela peça de seu

repertório.

298

Ponta de Areia, a canção que referencia um cotidiano marcado pela

presença/ausência do trem de ferro na paisagem Minas/ Bahia, ergue-se como tema de

viagem. Nesse disco, toma feição de prelúdio, chamamento para o embarque naquele

trem de ferro que corre trilhos de memórias musicais. Um percurso de paisagens

diversas, onde a música de Milton Nascimento ora ganha contornos jazzísticos, ora

superfície clássica e mesmo horizonte sacro. Transpõe inclusive temporalidades. Às

vezes tudo misturado num bordado onde não se revela o artifício da costura. Deixam à

vista apenas algumas de suas linhas. Nos arranjos, sobressaem as passagens. Uma

canção chama a outra, como se compusessem uma

mesma peça, uma emocionante sinfonia

bituquiana, trama cujo enredo é elaborado pelos

sentimentos que deixa fluir na alternância de

momentos minimalistas, de quase silêncio, clímax,

explosão. As canções são executadas

descansadamente, como se aquele estúdio fosse

capela onde a música é oração debulhada em

Rosário sonoro. Assim, elas são entremeadas de

longos solos, momentos de suspensão e apreciação.

Nessa conduta, os músicos exploram várias

possibilidades, burilando percursos sonoros num

jogo onde o tempo de execução de cada faixa é

estendido em relação às versões anteriores.

Em entrevista a Jacques Prousvot, Lionel Belmondo menciona como foram

trabalhadas as canções do álbum:

De toute façon, je pense qu’on ne pouvait pas se tromper. On a passé beaucoup

de temps avec lui à discuter, préparer, échanger des idées. Faire les relevés par

rapport aux originaux - gros travail. Éliminer ce qui était superflu à mon goût,

développer ce qui devait encore l'être sur certains morceaux. Trouver une voie

différente tout en gardant une identité.18

18

Lionel Belmondo. Entrevista de Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et Stéphane

Belmondo”. Op. cit.. “De todo modo, eu penso que não poderia dar errado. Passamos muito tempo com

ele, discutindo, preparando, trocando ideias. Fazendo declarações em relação aos originais – um grande

trabalho. Eliminando o que era desnecessário para mim, desenvolvendo o que ainda devia ser

desenvolvido em algumas faixas. Encontrando uma via diferente, mas guardando uma identidade.”

(Tradução livre)

Fig. 3 – Milton e os Belmondo em estúdio

299

As palavras de Lionel Belmondo nos dão a entender que os arranjos das canções

funcionam mesmo como palimpsesto ou caleidoscópio sonoro, se preferirmos. Milton

Nascimento & Belmondo é um disco contemporâneo, com tratamento contemporâneo,

mas que guarda identidades. Os arranjos originais são como monumentos a serem

citados e burilados. Fazem assim uma espécie de trabalho arqueológico onde mexem,

desmontam, pinçam informações para a elaboração de nova leitura. Nessa condução, os

Belmondo ainda aplicam ares de sua própria sonoridade, um sotaque francês à obra de

Milton Nascimento.

Tomemos como exemplo o trabalho realizado com Nada será como antes

(Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), sucesso buscado no disco Clube da Esquina. Em

Milton Nascimento & Belmondo, a canção é introduzida por solo de bateria. André

Ceccarelli aplica balanço metálico numa levada onde passeia basicamente pelos pratos.

Um começo diferente, mas que insinua o ambiente de versões anteriores. Nas linhas de

suas baquetas passeiam memórias da gravação feita no próprio Clube da Esquina e

também do álbum Elis, 1972, onde os pratos se avultam ainda mais na atmosfera. A

performance de Ceccarelli surge como citação das linhas impressas por Robertinho

Silva e Paulinho Braga no Clube da Esquina e no álbum Elis, respectivamente. Citação

esta que serve de mote para desdobramentos em performance de tessitura jazzística.

Nesse manejo, produz-se ligeira identificação e igualmente a novidade.

Logo essa sonoridade metálica seria rasgada por referência nítida e direta à

versão do disco Clube da Esquina. Nela, uma frase do piano de Wagner Tiso, tornou-se

assinatura dos arranjos originais. Apresentada lá pelo meio da canção, ela ressurge

agora com dicção distinta, a dos sopros dos Belmondo. Soa como recado:

mergulharemos em Nada será como antes e brincaremos com citações, inversões e

improvisações. Repetida variadas vezes, essa frase vai sendo incorporada por outros

instrumentos, constituindo grande massa sonora que rapidamente se desfaz. Tal frase

será retomada noutros momentos, servindo de chão para solos instrumentais levados em

ambiente de pura espontaneidade.

Quando se dilui na introdução, a massa sonora dá passagem para a voz de Milton

Nascimento. “Eu já estou com pé nessa estrada/Qualquer dia a gente se vê”. Com um

fraseado cheio de ginga, sua voz revela os contornos mais solares da canção. De

300

repente, o baixo acústico de Thomas Bramerie, insinua recordação da pulsação suingada

de Luizão Maia na versão de Elis Regina. Das fendas dessa atmosfera sonora soergue

sotaque jazzístico e um bocado de referências num arranjo onde se salienta o balanço de

Nada será como antes. Algumas dessas referências são mais nítidas, outras bem

discretas. O que pressentimos em audições, Lionel Belmondo sublinha em sua fala:

Il y a d'abord eu un travail de fond pour relever toutes les versions des

chansons. Celles chantées par Milton, mais aussi celles reprises par d'autres

chanteurs. Par exemple Elis Regina. On s'en est beaucoup inspiré, car ces

versions sont très intéressantes. On les a travaillées autrement, bien sûr. Quand

j'ai dit ça à Milton, il en a eu les larmes aux yeux et m'a avoué que beaucoup de

chansons lui étaient justement dédiées. C'est elle qui l'a aidé durant toute sa

jeunesse. Alors, pour les paroles, j'ai demandé à une amie de me les traduire.

C'était important de les comprendre mais aussi de savoir où je pouvais faire des

césures, placer un solo, mettre un accent, etc… De toute façon, par la suite, j'ai

toujours envoyé les scores à Milton, qui me donnait son aval.19

A parceria de Milton e Elis Regina é um dos tesouros que Milton Nascimento &

Belmondo deixa entrever em seus arranjos e ambientes. Apenas uma canção da seleção

do repertório do artista brasileiro para esse disco não foi gravada pela cantora, Milagre

dos peixes. Tantos outros tesouros estão ali aguardando ouvidos atentos. Em sua

performance, Milton refrescaria ainda mais a atmosfera de Nada será como antes ao

brincar com seus novos arranjos. Após momento povoado por solos instrumentais, sua

voz traz à cena uma nuvem de “primos”. Uma memória do coro da versão de Clube da

Esquina? Talvez, mas aqui todas as variações seriam de sua própria voz. Esses “primos”

fazem sombra para a voz central. São vozes de fundo, que depois seguem se

contorcendo por rotas que preenchem todos os espaços entre e através da orquestra e

demais músicos. Uma massa sonora (re)arranjando vocalmente aquela atmosfera com

cores ainda mais quentes. Colocadas posteriormente, essas variações vertem os arranjos

em planejamento disposto a intervenções e até mesmo a inversões capazes de

surpreender e inquietar ainda mais.

19

Idem, ibidem. “Primeiramente, houve um trabalho para conhecer todas as versões anteriores das

canções. Aquelas cantadas por Milton, mas também aquelas retomadas por outros cantores. Por exemplo,

Elis Regina. Inspiramos-nos muito nessas versões, pois são muito interessantes. Mas as trabalhamos de

outro modo, é claro. Quando eu disse isso a Milton, ele tinha lágrimas nos olhos e me disse que muitas

das canções eram justamente dedicadas a ela. Foi ela quem o ajudou durante toda sua juventude. Então,

para as letras, eu pedi a uma amiga para traduzi-las. Foi importante para compreendê-las, mas também

para saber onde eu poderia fazer hifenizações, pôr um solo, colocar um acento, etc. De qualquer forma,

em seguida, eu mandava as notas ao Milton, que me dava seu aval.” (Tradução livre)

301

O cuidadoso estudo arqueológico dos arranjos originais fez os Belmondo

enxergarem proximidades da canção de Milton Nascimento com outras expressões

musicais, caso da própria música clássica e sua vertente sacra. Essa percepção motivou

a trazer peças de compositores anteriores para esse disco, como César Franck e Ravel. A

insinuação dessa parecença entre universos distintos desafia as fronteiras de gêneros e

de temporalidades. Se esses rearranjos demonstram fontes onde Milton Nascimento

possivelmente se inspirou, elas igualmente propiciam a percepção sobre as pesquisas

anteriores dos irmãos Belmondo. Na experiência de Hymne au Soleil (2003), por

exemplo, já tinham passeado por compositores de música clássica/sacra, como Gabriel

Fauré, Lili Boulanger, Ravel em interpretações onde acrescentavam pitadas de jazz. Os

cruzamentos e manipulações sonoras dão ar contemporâneo às peças da virada do

século XIX para o XX. Para essa experiência, Lionel Belmondo acrescentou músicos de

formação clássica ao quinteto. Com grupo mais conciso, em relação a Milton

Nascimento & Belmondo – não chegaram a usar as cordas de uma orquestra –, o terreno

sonoro de Hymne au Soleil é ainda mais intimista.

Ouvindo a canção Oração, adaptação do compositor clássico César Franck feita

por Chistophe Dal Sasso, notamos ambiência sonora próxima a do disco Hymne au

soleil, mas igualmente um “quê” da coloração mais clássica do repertório miltoniano,

como a que abriga a canção Evocação das montanhas (Henrique de Curitiba), gravada

juntamente com a Orquestra Sinfônica Teatro Municipal e a Sinfônica Brasileira no

disco Änïmä (1982). E mesmo o ambiente do disco Amigo, onde há aquele som

eloquente e volumoso da Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo misturado a dois corais

infantis.

Atmosfera sacra içada solenemente por véu orquestral. Sons que transportam

para o interior de igreja. Eis o que temos no princípio de Oração. Do alto, as vozes de

Milton Nascimento e do flugelhorn de Stéphane Belmondo propagam lenta melodia,

apurando o clima contemplativo inspirado pela canção. Surge o sax soprano de Lionel

Belmondo. No encontro, essas vozes vão se acariciando, sobrepondo-se em linhas da

mesma melodia, arquitetada como degraus de escalada ao sublime. Em sua

versatilidade, Milton Nascimento emite vocalises bailarinos, ora tomando a face

encorpada e quente do sopro do flugelhorn, ora a doce estridência do sax soprano,

corporificada em falsetes. Uma interpretação levada por variações de tonalidades e

revezamentos de sensibilidades que fazem o timbre de uma voz se confundir com o da

302

outra. Canto humano daqueles sopros, voz instrumental de Milton Nascimento. Parece

até que estão conversando. No seguimento da performance de Oração, um instante de

mudança. Harmonizado com o ambiente sacro, surge o solo jazzístico de Stéphane

Belmondo numa interpretação eivada de lirismo. Transposição macia por

temporalidades, pelos limites clássica/jazz, numa metáfora sonora em que a oração se

faz em nome da própria música.

Lionel Belmondo esclarece que Oração é adaptação de um exercício musical

elaborado pelo belga César Franck (1822-1890), onde o compositor demonstra como

diferentes tonalidades proporcionam variados caminhos para uma mesma melodia.20

O

trabalho com canções como esta é promovido pela vontade de transpor barreiras

temporais.

(...) Cette musique jette des ponts entre les générations, les mondes et les gens.

Ça montre que la musique de César Franck n’est pas limitée à une époque, et

qu’elle ne doit pas disparaître. Il nous a laissé matière à enrichissement,

évolution. On n’est pas figé dans une partition. C’est ce qu’on veut démontrer à

chaque fois. La musique ne se limite pas au simple fait d’écrire une note, de la

jouer e puis basta. Les gens sont là pour transcender la note. Ce que j’ai écrit

n’est pas simplement ce qu’il faut jouer, si tu veux. Donc, on modifie au fur et à

mesure. Milton aussi travaille comme cela. Sur le premier morceau, “Ponta de

Areia”, il a proposé de changer des choses lors de l’enregistrement. C’est la vie

de la musique. Et les organistes, dont César Franck fut le père, étaient et

continuent d’être de grands improvisateurs. Les musiciens dit “classiques” qui

improvisent encore aujourd’hui sont les organistes. Donc, je voulais faire

rencontrer la musique de Nascimento avec celle de César Franck, qu’il

connaissait bien (sa mère était cantatrice, il a baigné dans cette musique). Ce

que j’aime, c’est de passer d’une époque à l’autre. Entre la “Berceuse” de Ravel

et “Ponta de Areia” il y a un lien évident. (Il chante les deux mélodies). Ça peut

être Milton qui écrit un truc pour Ravel, ou Ravel qui écrit pour Milton!21

20

Cf. Entrevista de Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et Stéphane Belmondo”.

Op. cit. 21

Lionel Belmondo. Entrevista de Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et Stéphane

Belmondo”. Op. cit. “Esta música constrói pontes entre gerações, mundos e pessoas. Isso mostra que a

música de César Franck não está limitada a uma época, e que ela não deve desaparecer. Ele nos deixou

material para enriquecermos, irmos adiante. Não podemos petrificá-lo numa partitura. É isso que

queremos demonstrar sempre. Uma música não se limita ao simples fato de escrever uma nota, de

executá-la e pronto. As pessoas estão lá para transcender a nota. O que eu escrevo não é simplesmente o

que é obrigatório tocar, se você quiser. Então, nós modificamos. Milton também trabalha assim. Na

primeira canção, “Ponta de Areia”, ele pediu para mudar coisas durante a gravação. Essa é a vida da

música. E os organistas, dos quais César Franck foi o pai, eram e continuam sendo os grandes

improvisadores. Os músicos ditos “clássicos” que improvisam ainda hoje são os organistas. Então, eu

quis fazer o encontro da música de Nascimento com a de César Franck, que ele conhece bem (sua mãe era

cantora, ele mergulhou nessa música). É isso que eu gosto, de passar de uma época a outra. Entre a

“Berceuse” de Ravel e “Ponta de Areia” há uma ligação evidente (ele canta as duas melodias). Isso pode

ser Milton fazendo uma mágica para Ravel, ou Ravel para Milton.” (Tradução livre)

303

Abrir janelas onde a música de hoje se comunica com o passado. Ver parentesco

entre compositores aparentemente distantes, como Milton e Ravel. O discurso de Lionel

Belmondo é conduzido por argumento sobre a mobilidade da música, lugar aberto a

releituras, interpretações e improvisações levadas por criatividade capaz de manter uma

canção, seja ela erudita ou popular, viva e atual. Deve-se acrescentar que César Franck

não seria novidade no repertório de Milton Nascimento. O artista brasileiro já havia

reverenciado o compositor no disco Amigo, de 1995. Naquela atmosfera onde misturava

a sonoridade clássica com a popular, Milton gravou Panis Angelicus, de Franck.

Cantada em latim, a canção foi coberta por trama orquestral emocionante, próxima à

que Oração receberia anos mais tarde nessa gravação de Milton Nascimento &

Belmondo.

Curiosamente, Panis Angelicus é amplamente divulgada no Brasil ainda hoje,

tendo variadas versões propagadas em programação de redes de rádio e televisão

católicas, ou mesmo em missas. Assim, ela atravessa o cotidiano, chegando a diversos

lares brasileiros. Não exatamente como música clássica, mas como música de fé,

cântico que remete à novena assistida diariamente diante da televisão. O exemplo indica

a pluralidade de maneiras e lugares de circulação e apreensão de uma obra. Essa questão

nos encaminha para outra. Ao acionarmos algumas referências musicais de um artista,

como os Belmondo fizeram ao trazer César Franck para o disco com Milton

Nascimento, desembocamos noutras que talvez não imaginássemos a princípio.

Na obra de Milton Nascimento, aquela tessitura clássica, também traz

recordação da paixão do artista pelo cinema. No álbum Amigo, por exemplo, a orquestra

arquiteta ambiente onde se transforma em elemento narrativo, criando climas como os

de suspense e apreensão. Já habituados com experiências do cantor-compositor levadas

por atmosfera sonora grandiosa, em proximidade com as de trilhas cinematográfica,

ouvirmos Oração e Berceuse, nos remete também a essa bagagem. Em Milton

Nascimento & Belmondo, o cinema nos espreita pelas memórias que guardamos dos

caminhos anteriores do cantor-compositor.

Nessas redes de referências, outra também se deixa entrever. Canções como

Oração convidam à escuta apurada, à entrega num estado contemplativo que recorda

aquele clima de Angelus, álbum cuja lembrança serviu de motivação para que Milton

aceitasse o convite dos Belmondo. Angelus não é diretamente citado aqui, sua memória

304

floresce é na emoção e sensibilidade que rodeia a atmosfera de Milton Nascimento &

Belmondo. Esses dois álbuns ainda se irmanariam no que têm de espontâneo, nos

instantes em que estabelecem intimidade e recriam sensação de jam sassion em estúdio.

Nossos percursos demonstram como canções que não fazem parte do repertório

de Milton Nascimento estão sintonizadas com seu universo e com o ambiente proposto

pelos Belmondo, tornando-se peças dessa narrativa onde esboçam pontes musicais. Nos

arranjos de Berceuse, de Maurice Ravel, previam passagem por sonoridade jazzística

rompendo densa nuvem orquestral. Um trabalho próximo ao que fizeram em Oração. A

canção de Ravel teria Malilia, de autoria de Lionel Belmondo, como tema incidental.

Tudo cuidadosamente arquitetado.

No princípio da execução, a delicadeza dos sopros num convite a Milton, que

despeja vocalises emocionantes. A orquestra apenas pinta levemente esse ambiente em

tonalidades brandas. No entanto, ao se encorpar, transmuta a atmosfera em drama. Em

ondas densas, produz tons de suspense, realçados num momento clímax, onde se

descortina nova paisagem: do piano de Eric Legnini escapa um jazz dengoso, temperado

em quentura pela bateria de André Ceccarelli. Logo, vocalises miltonianos fazem breve

retomada à atmosfera anterior, num movimento de passagem a outro lugar, de onde

solta a voz cheia de sua sanfona. O encontro de Milton com Ravel, promovido pelos

irmãos Belmondo, ganharia sotaque surpreendente através desse ingrediente, fruto da

astúcia do artista brasileiro durante os ensaios. De tão certo que deu, o solo de sanfona

foi incorporado à gravação em estúdio. Milton Nascimento se delicia ao narrar as

histórias ao redor dessa performance, demonstrando seu gosto pela provocação criativa.

... Eu tava no meu quarto [de hotel em Paris]. Quando eu acordei tinha uma

caixa no lado da minha cama. Eu falei: “ué isso é minha sanfona”. Minha

sanfoninha que eu acompanhava minha mãe lá em Três Pontas. Eu falei: “que

que essa sanfona tá fazendo aqui?” Aí perguntei para todo mundo que

trabalhava comigo: quem que levou a sanfona para Paris? Ninguém tinha

levado. Isso eu não faço ideia o que aconteceu, alguém mentiu, né, mas não sei

quem. Aí nós fomos ensaiar, eu falei: “ah, vou levar a sanfona!” Levei, botei

assim do meu lado, sem falar nada. E tinha uma música do Ravel... esse dia foi

demais! Porque foi o primeiro show que eu cantei lendo partitura. Eu vi uma

partitura que era ou SOL maior ou MI menor, que é o tom da sanfona. E

Ravel...eu falei: “bom, deixa pra lá.” Aí começamos a ensaiar, aí tem uma hora

que eu paro de cantar e entra um jazz. Aí o trompetista para de tocar e eu entro

cantando de novo. Eu peguei e falei: “ele vai ver amanhã!” [risos]. No dia

seguinte, na hora que ele fez o solo, antes dele acabar o solo, eu peguei a

sanfona e comecei a tocar. E ele olhou assim [expressão de surpresa],

continuou na dele e quando acabou eu tava sentado, calmamente, santinho! E

305

ele parou na minha frente, fez assim [braços cruzados]. Eu falei: “ai meu Deus,

o que que eu fiz?”. Ele saiu e foi chorar.22

A sanfona de poucos recursos manuseada por mãos inventivas enche a paisagem

com tintas instigantes. O improviso aplica alegria popular a essa peça de Ravel. Os

pratos da bateria sublinham essa nova atmosfera. Enquanto maneja sua sanfona, Milton

emite notas em falsetes, como uma criança hipnotizada pela brincadeira que ela mesma

inventou. Stéphane Belmondo entra na roda, solando com seu flugelhorn num bate-papo

descontraído com a sanfona de Milton. Apuram assim a ambiência de intimidade que

entremeia todo o percurso do disco. A performance com a sanfoninha na canção de

Ravel marca a presença de Milton Nascimento nesse território da música. A sanfona,

tão comum à chanson française, pronunciava agora canto miltoniano. O artista brinca

com as fronteiras, fazendo de sua velha companheira de tantos discos um sotaque de sua

própria música.

As canções de autoria de Milton Nascimento contempladas nesse disco com os

Belmondo foram colhidas de manancial de composições das décadas de 60 e 70.

Algumas delas emolduram a tensão de um cotidiano atravessado pela presença da

ditadura militar. Saudade dos aviões da Panair sobrevoa esse cenário. Para quem nunca

ouviu falar na Panair, certamente ela atiça a curiosidade a seu respeito. Aos que

conservam recordações remotas sobre essa companhia aérea, a canção aviva a memória.

Noutros, como naqueles ex-funcionários que ainda hoje se reúnem anualmente no

aniversário da Panair, mesmo depois de mais de 40 anos de sua extinção, a recordação

vem em forma de comoção. Saudade dos aviões da Panair traz relato da sensibilidade

de uma época, guardando suas memórias. É canção-monumento àquela companhia área

e à liberdade, proclamada através de lembranças dos tempos anteriores à instalação do

regime autoritário. Assim, é também canto de negação aos tempos de repressão,

pronunciados como lugar de “medo” e “pavor”. Tempos de silêncio e silenciamento,

onde lembrar era ato de coragem e resistência: “... minha arma é o que a memória

guarda dos tempos da Panair.”

Lá vinha o bonde no sobe desce ladeira

E o motorneiro parava a orquestra um minuto

Para me contar casos da campanha da Itália

E do tiro que ele não levou

22

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

306

Levei um susto imenso nas asas da Panair

Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno

Nas asas da Panair

E lá vai menino xingando padre e pedra

E lá vai menino lambendo o podre delícia

E lá vai menino senhor de todo fruto

Sem nenhum pecado, sem pavor

O medo em minha vida nasceu muito depois

Descobri que minha arma é o que a memória guarda

Dos tempos da Panair

Nada de triste existe que não se esqueça

Alguém insiste e fala ao coração

Tudo de triste existe e não se esquece

Alguém insiste e fere no coração

Nada de novo existe nesse planeta

Que não se fale aqui na mesa de bar

E aquela briga e aquela fome de bola

E aquele tango e aquela dama da noite

E aquela mancha e fala oculta

Que no fundo do quintal morreu

Morri a cada dia dos dias que vivi

Cerveja que tomo hoje é apenas em memória

Dos tempos da Panair

A primeira Coca-Cola foi me lembro bem agora

Nas asas da Panair

A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo

Nas asas da Panair

Em volta dessas mesas velhos e moços

Lembrando o que já foi

Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual

Em volta dessas mesas existe a rua

Vivendo seu normal

Em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais

Em volta da cidade....

Lará, lará...

A canção que também ficou conhecida como Conversando no bar remonta em

seus versos o ambiente de boteco: frases de bate-papo se misturam aos retratos da

paisagem exterior e aos pedaços de memórias que vêm aos espasmos. Em meio a tantos

assuntos, os aviões da Panair são memória recorrente. Na gravação que recebeu no

disco Minas (1975), a canção é abrigada por ambiente onde a melodia é levada por coro

volumoso em seus primeiros versos. Coro este composto por nomes da música

misturados a amigos pessoais: Tavinho Moura, Toninho Horta, Joyce, Lizzie, Keller,

Bebeto, Isaurinha, Francisco, Sandro e Sônia. Ganha assim aquela coloração crua do

“falta de coro”, preenchendo de espontaneidade o ambiente da canção. Bem depois viria

a voz de Milton, ainda assim emoldurada por vozes corais23

. De repente, passa

23

O segundo coro foi composto por: Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Wagner Tiso, Novelli, Paulinho

Braga e Fernando Leporace.

307

rapidamente pela cena aquele coro infantil que abre a primeira faixa e ressurge em

variados momentos do disco Minas. Os sons que enchem essa atmosfera insinuam o

burburinho de conversas cruzadas em bar. Ou mesmo a movimentação do ambiente dos

aviões da Panair, lugar acolhedor aonde as novidades chegam às mãos de menino: “A

primeira Coca-Cola foi me lembro bem agora nas asas da Panair.” Os versos

demarcam a forte presença da Panair no imaginário popular e a perplexidade diante de

seu súbito fechamento.

Em momento anterior, fizemos breve sobrevoou nas asas da Panair. Fernando

Brant nos lembrou da interrupção abrupta de suas atividades em 1965, uma das

imposições do governo militar. Quando teve sua concessão suspensa, a Panair gozava

de grande prestígio, sendo reverenciada pelo seu padrão de qualidade. No documentário

Panair do Brasil24

, apanham memórias do clima de tensão e suspense diante do

fechamento da Panair, presidida por Paulo de Oliveira Sampaio e pertencente a Mário

Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, importantes empresários com

investimentos em variados setores. Naquele momento, a empresa ligava regiões do

Brasil, seus voos internacionais tinham pouso em Europa, América do Sul e Oriente

Médio. Em suas investidas, a Panair do Brasil foi responsável por importantes

iniciativas relacionadas à infraestrutura, como construção dos principais aeroportos da

região Nordeste e de centro de revisão de motores – a CELMA. Além de rede de

comunicações que possibilitavam o controle aéreo de seus voos e de demais

companhias. O susto detonado pelo abatimento da companhia em pleno voo trouxe

danos materiais e humanos. Na narrativa do documentário sobre a Panair, funcionários

relembram a perturbação diante daquela nova realidade, determinante inclusive para

medidas extremas, como suicídios de alguns colegas. A Panair teve sua falência

decretada pela justiça sem maiores explicações. A respeito desses episódios e da luta

jurídica que travariam por anos, Rodolpho da Rocha Miranda, filho de Celso Miranda,

destaca:

Ali o objetivo não era só fechar. Era fechar a imagem da companhia. Porque

eles não queriam que permanecesse o resíduo da história Panair. Eles

nomearam um procurador específico para fazer o dia a dia, um procurador da

república que só tinha como função perseguir a Panair do Brasil. Então o

processo era fechar, matar, enterrar e não deixar a memória voltar.25

24

Dirigido por Marco Altberg e lançado em 2007. 25

Depoimento gravado no documentário Panair do Brasil.

308

Na canção, mantêm-se centelhas de memórias e ainda fazem da violência sofrida

pela Panair motivo para se pensar sobre outros tipos de violências e imposições que

seguiam se espalhando em distintas esferas daquele cotidiano. O avião, símbolo de

progresso e modernidade, serve ainda como metáfora para liberdade. Através dele,

rompia-se com provincianismos, abriam-se janelas para outros mundos, ampliando

olhares sobre nós mesmo. Do específico, vai se ao horizonte largo, numa jogada em

que, novamente, deixa-se entrever a travessia. “Descobri que as coisas mudam e que

tudo é pequeno/ Nas asas da Panair.” Descobertas, movimentações, sensações que

fazem da travessia mais uma temática da canção Saudade dos aviões da Panair. A ideia

aqui demarcada retoma caminhos que fizemos ao longo dessa tese. Partindo de enredo

onde se utiliza de mudanças de escalas de percepção, a canção exercita em seu território

abordagem próxima às dos estudos de micro-história. Ao se debruçar nessa corrente

historiográfica, Jacques Revel pondera:

Ela afirma em princípio que a escolha de uma escala particular de observação

produz efeitos de conhecimento, e pode ser posta a serviço de estratégias de

conhecimentos. Variar a objetiva não significa apenas aumentar (ou diminuir) o

tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e sua trama.26

Curioso é que o disco Minas está inserido num momento em que os debates a

respeito da microanálise estavam em efervescência no campo da história. No entanto, tal

corrente teria ainda maior vigor na atualidade. Essa percepção nos possibilita pensar

como a arte dialoga com seu tempo, fornecendo formas de ver, sentir e refletir sobre

variadas questões. Sua sensibilidade para as demandas do cotidiano pode enriquecer

debates de múltiplas esferas, inclusive do campo acadêmico.27

Os caminhos aqui engendrados chegam à gravação de Saudade dos aviões da

Panair no álbum Milton Nascimento & Belmondo. As cordas da orquestra modulam

planície sonora, lugar privilegiado para se assistir a voz de Milton Nascimento pintando

a melodia da canção no horizonte. Por vezes, essa massa orquestral antecipa ou propaga

frases entoadas por Milton, avultando os percursos minuciosos dessa melodia. As

26

Jacques Revel. “Microanálise e construção social.” In: Jacques Revel (Org.). Jogos de escala: a

experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 20. 27

A esse repeito, vale recorrermos, mais uma vez, a Jacques Revel: “Mais do que uma escala, é

novamente a variação de escala que aparece aqui como fundamental. Os historiadores se dão conta disso

hoje, mas não são os únicos. Em 1966, Michelangelo Antonioni contou em Blow up a história, inspirada

numa novela de Julio Cortázar, de um fotógrafo londrino que por acaso registrou em seu filme uma cena

da qual é testemunha. A cena é incompreensível para ele, seus detalhes não são coerentes. Intrigado, ele

amplia as imagens (é o sentido do título) até que um detalhe invisível o coloca na pista de uma outra

leitura do conjunto. A variação de escala lhe permitiu passar de uma história para outra (e, por que não,

para várias outras).” (Idem, ibidem, p. 38)

309

mudanças de rumos, de tempos, são levadas pela voz de Milton numa performance

conduzida por travessias de ambientes. Sonoridades de coloração densa encaminham a

áreas nebulosas, para, em seguida, descortinar lugar de quase silêncio. Surpreende-se

região de turbulência de emoções. Há instantes em que os sopros assumem a melodia,

permitindo que Milton faça acrobacias em falsete. Noutros momentos, as variações de

volume da nuvem orquestral produzem movimento que sinaliza mudanças de altitude

em pleno voo. Como criança correndo de peito aberto contra o vento, a voz de Milton

Nascimento reverbera a imagem de avião forjando rotas por entre nuvens que se agitam

ao acariciar suas asas.

Outros ingredientes seriam acrescentados ao ambiente, desvelando mais

histórias. Em seu arremate, a nuvem orquestral se dissipa, cedendo lugar aos sopros dos

Belmondo, que emitem paisagem avistada do alto: “Ponta de Areia, ponto final...”.

Arrebanhando outras vozes instrumentais, essa citação melódica de Ponta de Areia

pronuncia ligação entre as duas canções.

Certa noite, acordei, e algo me levou a compor. Era “Saudade dos aviões da

Panair”. Eu não acreditava que tinha feito aquilo, então virei a noite e fiquei

tocando até às 18h. Achei que estava enlouquecendo e resolvi dormir. Passei

pelo quarto onde ficava um piano e fiz “Ponta de Areia”. Fui para Nova York e

cobrei do Fernando (Brant) as letras, já que Elis Regina estava fechando o

disco. Quando voltei, ela me mostrou as gravações com as faixas na sequência.

Quando contei a história ela se benzeu.28

Numa espécie de metalinguagem, os arranjos da canção insinuam essa história

contada por Milton Nascimento em entrevista de jornal. As duas canções receberam

primeira interpretação na voz de Elis Regina em seu álbum Elis, de 1974. Saudade dos

aviões da Panair ainda seria regravada pela cantora em seu disco Saudade do Brasil

(1980).29

Acabaria como peça importante de seu próprio repertório. Além de guardarem

essa memória, as duas canções dialogam pela temática, apesar de se guiarem por

percursos totalmente distintos. Ponta de Areia é peça concisa, enquanto Saudade dos

aviões da Panair desenrola seu enredo calmamente.

O trabalho minucioso de elaboração dos arranjos de Milton Nascimento &

Belmondo demonstra como a canção é campo pronto a arregimentar mais e mais

28 Milton Nascimento Apud João Pimentel. “Milton e irmãos Belmondo criam a Paris-Minas, uma estrada

natural” Op. cit. 29

Em pesquisa anterior, realizei análise sobre interpretações para essa mesma canção na voz de Elis

Regina. Cf. Mateus de Andrade Pacheco. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez

canção. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em História da

Universidade de Brasília, 2009.

310

memórias. Dessa maneira, seus rearranjos sugerem mobilidade, plano que a aproxima

das observações de Maffesoli a respeito da metáfora. Para o autor, essa figura de

linguagem “... aponta, sublinha, põe em relevo esta ou aquela característica da vida

social sem, no entanto, constrangê-la.”30

E quando uma canção se torna clássico, nada

mais comum do que o interesse pela sua própria história, pelos bastidores de sua

elaboração e gravação. Transforma-se assim em monumento a sua própria memória e,

numa ampliação, relato da criatividade do artista que a confeccionou. Essa percepção

nos encaminha para outras peças do repertório de Milton Nascimento & Belmondo. Ao

pinçarem clássicos da carreira de Milton, como Travessia, Morro Velho, Milagre dos

peixes, acabam por desenharem um perfil do próprio artista. São canções que se

assemelham aos objetos biográficos, sobre os quais Ecléa Bosi destaca: “Mais que uma

sensação estética ou de utilidade eles nos dão um assentimento à nossa posição no

mundo, à nossa identidade; e os que estiveram sempre conosco falam à nossa alma em

sua língua natal.”31

No entanto, essas canções identificam o artista também pela maneira

como são executadas. Em matéria sobre Milton Nascimento & Belmondo, retomam

memória de Milton sobre experiência anterior que diz muito a respeito da conduta

adotada nesse novo disco.

A primeira gravação de “Cravo e Canela”, por exemplo, que é bem conhecida, é

de um jeito; a segunda já foi diferente. Agora, quando estava fazendo o show

“Pietá”, na Itália, de repente encerrou a música e eu não parei de cantar.

Ficamos eu e o violão fazendo uma coisa completamente diferente, que nem

meus músicos e nem eu mesmo conhecíamos.32

Os exemplos citados preparam o espírito para a escuta de Milton Nascimento &

Belmondo e revelam o gosto de Milton por surpreender em releituras de canções de seu

próprio repertório. Novidades não viriam apenas com composições inéditas, mas,

igualmente, através de transformações exercitadas no manuseio de velhas conhecidas.

Nesses percursos, onde brinca e remoça suas canções, Milton Nascimento demonstra,

mais uma vez, o gosto pela fluidez, pela fronteira móvel, lugar onde mostra sua face e

assina sua identidade. “É um disco de tudo. Tem coisa brasileira, a sinfônica, o jazz,

tudo misturado, como eu gosto.”33

30

Michel Maffesoli. O conhecimento comum: introdução á sociologia compreensiva. Porto Alegre:

Sulina, 2007, p.207. 31

Ecléa Bosi. “A substancia social da memória” In: O tempo vivo da memória: ensaio de psicologia

social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 25 e 26. 32

Milton Nascimento Apud Ailton Magioli. “Todo esse jazz”. Estado de Minas (28/05/2009) 33

Milton Nascimento Apud Roberta Pennafort. “Travessia por sete clássicos” Op. cit.

311

Milton Nascimento & Belmondo se encerra com versão instrumental de Ponta

de Areia. A canção, que também abre essa viagem, torna-se ingrediente da unidade do

disco ao reaparecer como epílogo. Tal artifício ainda aplica circularidade aos percursos

do álbum, sugerindo que sua escuta é um passeio pelo território miltoniano. No entanto,

mais que caçar toda riqueza de seus horizontes, essa obra fornece amostra do quanto

podem ser igualmente intrigantes viagens por suas outras paisagens.

Novo canto no território da bossa

Clima descontraído içado por amigos entocados no Bituca’s Studio, instalado

nas dependências da casa de Milton Nascimento. O que era para ser lugar de ensaio

acabou como ambiente de gravação do Novas Bossas, álbum em que Milton se junta ao

Jobim Trio – Daniel Jobim (piano e voz), Paulo Jobim (violão e voz) e Paulinho Braga

(Bateria) – para visitar Tom Jobim. A essa turma, agregariam ainda Rodrigo Villa,

baixista recomendado por Paulinho Braga. No estúdio de Milton, contavam com a

informalidade propícia para a convivência e criação coletiva, atividades dificultadas

pela maneira dos grandes estúdios conduzirem processos de gravação na atualidade. A

esse respeito, o próprio Milton destaca:

Em estúdio profissional tem hora para parar, tem que sair para que outra pessoa

possa tocar, uma confusão danada. Em casa, deu para tocar a qualquer hora do

dia. Chico Neves, co-produtor do disco, mexeu naqueles aparelhos difíceis nos

quais não consigo mexer de jeito nenhum. Foi um barato, tudo com muita

liberdade.34

O Bituca’s Studio era lugar ideal para a fruição. Ali tinham tempo para trocar

ideias, palpitar sobre repertório, tramar arranjos, debater temas musicais, deixarem-se

levar na feitura desse disco que ia se constituindo aos poucos. Assim, abririam espaço

até mesmo para surpreender os contornos iniciais do projeto. A ideia era revisitar o

repertório de Tom Jobim. No entanto, outros compositores foram apanhados nessa

viagem, estabelecendo pontes entre territórios da canção.

No primeiro dia de gravação, me atrasei por meio segundo e o Jobim Trio, já

em estúdio, havia escolhido umas músicas minhas para fazer parte do disco. Eu

nem sabia, não era minha intenção incluir músicas minhas no disco, só as de

Tom. Daniel Jobim escolheu Tudo que você podia ser e os outros escolheram

34

Milton Nascimento em entrevista a Clara Passi, Marco Antonio Barbosa e Mario Marques. “Acham que

sou quietinho, mas não sou”. Jornal do Brasil (16/03/2008).

312

Tarde e Cais. Perguntava-se: “Mas e o Dorival Caymmi?”. Esse é comigo!

Gravamos O vento, música pela qual sou doido. Sou fascinado. Mostrava essa

canção para músicos e cantores em todo lugar que eu ia. Mostrei até para Tina

Turner, na época em que ela morava na casa de Wayne Shorter. Eu dizia:

“Grava isso! É uma das coisas mais bonitas do mundo, feita por um dos

melhores compositores do mundo”. Não sei por que, mas nunca ninguém

gravou. Estava guardada para mim. Uma coisa que quase ninguém sabe: todos

conhecem Vinicius de Moraes como letrista e poeta. Mas ninguém conhece o

compositor de música que ele era. Suas músicas são todas lindas, parecem que

são do Tom. Não é que se pareçam. São tão bonitas que parecem que são do

Tom. Escolhemos uma de Vinicius (Medo de amar). Entraram depois parcerias

de Tom com Billy Blanco (Esperança perdida), com Newton Mendonça

(Caminhos cruzados) e Aloysio de Oliveira (Inútil paisagem). Entrar em estúdio

e gravar músicas que não foram escolhidas por um produtor dá um sentimento

bom na gente. 35

A liberdade constituída no estúdio seria também impulsionada pelo fato de

Novas Bossas ter sido lançado pelo selo Nascimento Música. Por meio dessa escolha, os

artistas envolvidos no projeto ficariam inteiramente responsáveis pelas etapas de

elaboração do disco que, posteriormente, seria negociado com uma grande gravadora

para sua distribuição – nesse caso, a EMI. No relato acima, Milton noticia sobre o clima

de espontaneidade das gravações, o que reverberou no acabamento final do disco.

Aquele era um reencontro entre amigos para celebrar a memória de outro. A ideia para o

disco surgiu no ano anterior, quando Milton e Jobim Trio se reuniram em show de

homenagem aos 80 anos do nascimento de Tom Jobim.36

Nas dobras dessas percepções

reluz recordação de experiências de gravação como as do Clube da Esquina. Novas

Bossas caça aquela energia de criação livre e coletiva, embora se realize por outras

linhas, aquelas que são permitidas pelo seu tempo. “Fundei o selo para gravar trilhas de

espetáculos e novos talentos, como Marina Machado. Fico feliz com o modo ‘clube da

esquina’ de trabalho”37

. A fala de Milton ao jornal O Estado de S. Paulo salienta a

importância de seu próprio selo na realização de discos nos moldes ‘clube da esquina de

trabalho’. Como vimos, o Nascimento Música estreou com lançamento de álbum duplo

composto pelas trilhas de balé feitas para o Grupo Corpo – Maria Maria e Último trem.

Com Novas Bossas dava-se um passo adiante. Milton lançava disco atual gravado pelo

seu próprio selo. E ainda forjava mais um espaço para novos talentos. No mesmo ano de

Novas Bossas, chegava ao mercado o disco Tempo quente, de Marina Machado.

35

Idem, ibidem. 36

Na mesma época, gravariam a canção Samba do avião(Tom Jobim) para a trilha da novela Paraíso

Tropical, veiculada pela rede Globo. Posteriormente, essa faixa integraria o disco Novas Bossas como um

brinde. 37

Milton Nascimento Apud Flávia Guerra. “Os Tons de Milton”. O Estado de S. Paulo (06/03/2008)

313

Em momentos anteriores, vimos que Paulinho Braga compartilhou experiências

musicais com Milton desde os primórdios de suas carreiras, quando, junto com Wagner

Tiso, formaram o Berimbau Trio para se apresentarem nas noites de Belo Horizonte.

Paulinho já havia participado de outro álbum dedicado a canções de Jobim, o Elis &

Tom, em 1974. Posteriormente, chegou a integrar a Banda Nova, grupo formado para

acompanhar Tom Jobim. A amizade de Milton com o outro Paulo, o Jobim, também

vem de longa data. Para se ter exemplo, Paulo Jobim participou ativamente da gravação

do álbum Clube da Esquina nº 2 – tocou flauta juntamente com Danilo Caymmi em

Toshiro (Novelli) e Paixão e fé (Tavinho Moura/Fernando Brant); dividiu violão com

Nelson Ângelo em Canoa, Canoa (Nelson Ângelo/Fernando Brant) e ainda assinou os

arranjos de Olho d’água, canção de sua própria autoria em parceria com Ronaldo

Bastos. A afeição de Milton por Paulo Jobim se estenderia a um terceiro: “Quando

completei três anos, Milton dedicou um show em minha homenagem”38

, revelaria

Daniel, filho de Paulo e neto de Tom. Às condições de produção do Bituca’s Studio,

somavam-se a amizade e a sintonia musical existente entre Milton Nascimento e

membros do Jobim Trio para realização de papo musical onde todos se mostram mais

que à vontade. Nessa reunião integrariam o novo amigo, Rodrigo Villa, como já dito. E

ainda receberiam a visita breve e marcante de velho companheiro de som, Danilo

Caymmi que, com sua flauta, apimenta o ambiente de Dias Azuis, canção ao estilo bossa

mais que nova assinada por Daniel Jobim. Nessas histórias, ambientes e canções

vislumbramos reencontros, homenagens, circulação por territórios sonoros onde

enredam diálogo da música de Milton com a de Tom Jobim.

No ano de comemoração dos 50 anos da bossa nova, Milton e Jobim Trio

pinçaram clássicos bossanovistas do repertório jobiniano, mas igualmente canções

menos conhecidas. Tesouros submersos, como Esperança perdida (Tom/ Billy Blanco)

e Trem de ferro (obra derivada do poema homônimo de Manuel Bandeira) dão nova

tonalidade à bossa de Tom, demonstrando outros caminhos pelos quais o compositor se

enveredou. Rearranjos de clássicos como Chega de saudade (Tom Jobim/Vinicius de

Moraes) trazem novo fôlego para canção. No entanto, a maior novidade mesmo seria

ouvir Milton Nascimento entoar canções do universo bossanovista. Embora seja grande

admirador da bossa nova, em especial das composições de Tom Jobim, pode-se contar

nos dedos os exemplos de canções do gênero registras na discografia miltoniana. Esse é

38

Daniel Jobim Apud Heloisa Tolipan. “Troca de gentileza”. Jornal do Brasil (08/03/2008)

314

um dado interessante, ainda mais quando pensamos que a bossa nova se transformou em

música brasileira “tipo exportação”. Ainda hoje, artistas brasileiros fazem desse gênero

uma ponte para chegada ao circuito internacional da música. Milton Nascimento, que

tanto transitou em meios musicais internacionais, apostou noutro tipo de sonoridade já

naquele seu primeiro disco voltado ao público norte-americano, o Courage.

Permaneceria assim, levando ao exterior seu estilo próprio, aquela música cuja mistura

de informações levou os dinamarqueses a defini-la como pertencente ao gênero

“Milton”.

Fig. 4 – Capa do Novas Bossas

Novas bossas é disco de roupagem acústica onde vozes instrumentais travam

diálogo intimista em performances cobertas por sutilezas que arrebatam as atenções. Ao

piano, Daniel Jobim dedilha delicadezas sustentadas pela beleza do violão discreto de

Paulo Jobim, e pela precisão do baixo de Rodrigo Villa. As baquetas de Paulinho Braga

são como engrenagem misteriosa do motor chamado bateria, sempre surpreendendo

315

pela maneira que movimenta, faz ligações e ainda aplica balanço às canções. Há

instantes em que essas baquetas são substituídas por vassourinhas que, quando tocam

levemente a superfície da caixa em movimentos circulares, temperam o ambiente em

cores quentes. Por vezes, Milton Nascimento arranca acordes enigmáticos de seu violão.

Através dos artifícios de seu canto – “primos”, falsetes, variações de tonalidades –, traça

ainda novo horizonte aos clássicos bossanovistas. Sua performance vocal experimenta

sensibilidades: combina ginga com um quê de tristeza, dá comoção à leveza, ecoa

dramaticidade e mistério nesse projeto onde explora sua faceta intérprete. A

descontração dessas performances instala atmosfera acolhedora fazendo da textura de

Novas Bossas um carinho aos ouvidos: ali tem qualquer coisa que lembra a quentura da

sonoridade de vinil ou mesmo a atmosfera de dia chuvoso. A espontaneidade que

permeia o disco, desdobra-se nas entrevistas de divulgação. Ao se posicionar sobre

presença de canções do repertório de Milton nessa homenagem a Tom Jobim, Paulinho

Braga se diverte: “O trio foi empurrando o disco para outros lados. Afinal, já estávamos

tocando “Tão” Jobim há um bom tempo.”39

O trocadilho bem humorado com o apelido

de Tom Jobim imprime maior intimidade com o universo do compositor, sugerindo

ainda que Novas Bossas o reverencia não somente pela presença de canções de sua

autoria, mas também pela maneira que sua sonoridade se constitui. O jeito Jobim se faz

presente e se mistura ao de Milton Nascimento nesse trabalho.

Fig. 5 – Milton e Jobim Trio.

39

Paulinho Braga na matéria “Milton reencontra Tom Jobim”. Folha de S. Paulo (06/03/2008)

316

Memórias dos arranjos anteriores e do ambiente de discos de Jobim são

acionadas e remexidas, valendo de plano para variações, acréscimos de frases e

citações. Esse ponto nos encaminha para a percepção de experiência em área de troca.

Se o encontro de Milton Nascimento com o Jobim Trio dá cor distinta a clássicos

bossanovistas, o ambiente intimista, tão próprio da bossa, promove leitura inovadora de

peças do repertório miltoniano, como Tudo que você podia ser (Lô Borges/Márcio

Borges), Cais (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) e Tarde (Milton

Nascimento/Márcio Borges). Através da roupagem que aplicam às músicas desse disco,

desmontam distâncias, demarcando proximidades entre territórios da canção. Novas

Bossas é viagem ao universo de Jobim. E o Tom de Milton e do Jobim Trio tem

vizinhos: Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Lô e Márcio Borges, Ronaldo Bastos,

Daniel Jobim e o próprio Milton.

A travessia por territórios musicais é enunciada por releitura da canção Chega de

saudade, marco inicial da bossa nova na voz de João Gilberto e tema de divulgação do

álbum Novas Bossas. Aqui a canção é introduzida de maneira diferente: pelas notas

graves do piano de Daniel Jobim vem a memória da rítmica de trem de ferro. Juntos,

bateria, violão e baixo, arranjam detalhes das engrenagens que dão movimento à

máquina. Logo, tudo se desmancha e o piano toma outro rumo, emitindo a introdução

costumeira de Chega de saudade em notas agudas – aquela que vem por voz de flauta

na versão de João Gilberto. Nesse novo plano, violão, baixo e bateria armam tessitura

bossanovista. O rearranjo da introdução da canção emoldura a viagem. O trem de ferro,

tão presente na obra de Milton Nascimento, pronuncia a passagem do artista pelo

território bossanovista, superfície para aprofundamento na obra de Tom Jobim.

Arquitetam assim lugar para chegada de Milton a versos clássicos, mas inéditos em sua

voz.

Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela

Não pode ser, diz-lhe numa prece

Que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade, a realidade

É que sem ela não há paz, não há beleza

É só tristeza e a melancolia

Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Mas se ela voltar, se ela voltar,

Que coisa linda, que coisa louca

Pois há menos peixinhos a nadar no mar

Do que os beijinhos que eu darei na sua boca

317

Dentro dos meus braços, os abraços

Hão de ser milhões de abraços

Apertado assim, colado assim, calado assim

Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio de viver sem mim

Não quero mais esse negócio de você longe de mim.

Milton dialoga com o intimismo da bossa nova ao cantar em baixo volume. Mas

desse lugar surpreende em tons agudos, bordando minuciosamente interpretação onde

imprime doçura e também dramaticidade à canção. Detrás do canto de brisa leve,

esconde-se angústia que esses rearranjos destacam. É o que se sente mais nitidamente

quando a voz de Milton decola, prolongando e repetindo variadas vezes – mais que o

habitual em outras versões para a canção – o verso “Não sai de mim, não sai de mim,

não sai.” Nesse gesto insistente, a voz sedimenta toda a “... tristeza e a melancolia/ que

não sai de mim, não sai de mim, não sai”. Pontuando a angústia que perpassa esse

instante, retoma-se aquela levada grave de piano-trem-de-ferro. Logo se descortina

ambiente de paz, traçado na esperança de retorno: “Mas se ela voltar, se ela voltar/ que

coisa linda, que coisa louca”. Nesses manejos produzidos pela leitura de Milton e

Jobim Trio, enfatiza-se a tensão presente no discurso melódico-poético de Chega de

saudade. E ainda se visualiza coloração peculiar ao canto de tessitura bossanovista. De

sua voz, Milton traz aquele efeito eco de que tanto gosta, emitindo “canto-montanha”,

voz de propagação larga, que brinca com tonalidades, mesmo em ambiente discreto e

intimista. Dessa maneira, traz aquele quê de sonoridade mineira ao ambiente da bossa.

Sua voz desafia limites de cochicho ao pé do ouvido. Sua bossa é diferente, a ela

mistura outras informações sonoras que ajuntou ao longo de experimentos musicais,

como bem pudemos visualizar no primeiro capítulo.

Chega de saudade foi a canção de trabalho do disco Novas Bossas, contando

com videoclipe de divulgação dirigido por Dora Jobim, Gabriela Figueiredo e Gabriela

Gastal. Esse clipe chegou a ser transmitido pelo programa dominical Fantástico – rede

Globo. Dessa forma, a canção se comporta como cartão visita, convite que chega antes

do disco. Somada às notas de divulgação, cria expectativas: Milton cantando bossa

nova, Milton cantando Jobim. No entanto, o disco aposta noutras direções para seus

começos, fazendo de seu itinerário de canções lugar para nos aprontar surpresas.40

40

Itinerário do álbum: Tudo que você podia ser (Lô Borges/Márcio Borges), Dias azuis (Daniel Jobim),

Cais (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), O vento (Dorival Caymmi), Tarde (Milton

Nascimento/Márcio Borges), Brigas nunca mais (Tom Jobim/Vinicius de Moraes), Caminhos cruzados

318

Novas Bossas inicia sua viagem com a mesma canção que abre o Clube da

Esquina: Tudo que você podia ser (Lô Borges/Márcio Borges) numa levada delicada,

mas de interpretação pungente. Passa por Dias azuis, composição de dicção

bossanovista assinada por Daniel Jobim – “Dias azuis, noites de paz na cidade/Dias

azuis, vento que traz a saudade” –, entoada em dueto: do canto grave de Daniel saltam

lembranças da voz do próprio Tom, enquanto Milton caça outra região, sobrepondo-se

em oitavas, subindo e variando tonalidades. Chega aos falsetes num canto que deságua

em Cais (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) apontado para mar de sensações sem

fim: “Eu queria ser feliz/Invento mar/Invento em mim o sonhador”. Dali se escuta ecos

de vozes agrupadas no canto de Milton: através de sobreposições de tons, o artista

emaranha emoções, transformando-se em fala d’O Vento (Dorival Caymmi): “Vamos

chamar o vento/ Vamos chamar o vento.” Vento cujo assovio conduz ao horizonte da

Tarde (Milton Nascimento/Márcio Borges), mais uma peça do repertório miltoniano:

“Das sombras quero voltar/Somente aprendi muita dor/ E vi com tristeza o amor

morrer devagar, se apagar”.

No encadeamento desse itinerário, os arranjos e as vocalizações vão costurando

canções, sugerindo trajeto em que sublinham veios comuns, sem se esquecerem da

região própria de cada uma. Aqui, a leveza pode se transmutar em onda densa, caçar via

terceira onde condensam sensibilidades. Dessa localização no “entre”, indica-se uma

direção para se tomar outra, arranjando lugar propício para desarmar o espírito. Abre-se

assim espaço para exposição ao inusitado, ambiente provocador de inquietante emoção.

Isso tanto no plano interno das canções, quanto na amplitude da trama do disco. Em

Novas Bossas mergulhamos em águas aparentemente familiares para sermos jogados ao

desconhecido. Um começo inesperado para uma obra em que se contempla Tom Jobim.

E que volta a surpreender quando chegamos às canções de sua autoria. Jobim vem

depois de a Tarde, num momento em que visitam clássicos da bossa nova. O primeiro

seria Brigas nunca mais, em dueto de Paulo Jobim com Milton Nascimento. Daí Milton

segue por Caminhos cruzados (Tom Jobim/Newton Mendonça) e Inútil paisagem (Tom

Jobim/ Aloysio de Oliveira), desembocando em Chega de saudade. À região de canções

tão reconhecidas pelo público, aplicariam dicções próprias, como vimos no exemplo de

(Tom Jobim/ Newton Mendonça), Inútil paisagem (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira), Chega de saudade

(Tom Jobim/Vinicius de Moraes), Medo de amar (Vinicius de Moraes), Velho riacho (Tom Jobim),

Esperança perdida (Tom Jobim/Billy Blanco), Trem de ferro (Tom Jobim/poema de Manuel Bandeira),

Samba de avião (Tom Jobim).

319

Chega de saudade. Mas justamente por serem clássicos e virem na sequência, recriam

espaço para familiaridade, arapuca armada para nos apanhar em novas surpresas.

Ambientada num plano próximo aos das demais canções vem melodia suave,

entoada noutro dueto de Paulo Jobim e Milton Nascimento. Poderia passar como

composição de Jobim, não fosse Medo de amar assinada somente por Vinicius de

Moraes. Localizada nesse ponto do disco, entre composições de Tom Jobim, a canção

surge como boa pegadinha, alcançada somente pelos que já sabiam de histórias sobre

sua autoria ou por quem percorresse os olhos pelos créditos do disco. Aqui reverbera

lembrança da fala de Milton sobre faceta desconhecida de Vinicius, a de compositor de

melodias. Assim, o disco se abre para uma de suas motivações, que se comunica com

obras anteriores de Milton e mesmo com as mais recentes, como o álbum produzido

com os irmãos Belmondo: arar territórios da canção, mostrando outros ângulos dos

perfis de grandes nomes.

Em Medo de amar aprofundamos no intimismo que perpassa o disco. Ali, os

sons emanam suavemente, propiciando viagem para dentro, abrigo para ruminar

sentimentos. Nesse cenário, a textura aplicada pela bateria faz lembrar dias de chuva,

convite irrecusável ao isolamento. É desse ambiente que o verso salta da boca de Paulo

Jobim: “Vira essa folha do livro e se esqueça de mim.” Noutra tonalidade, Milton

responde repetindo a mesma frase. O recurso esboça circularidade, montando parábolas

vocais onde vislumbramos a virada de páginas sugerida nos versos.

Vire essa folha do livro e se esqueça de mim

Finja que o amor acabou e se esqueça de mim

Você não compreendeu que o ciúme é o mal de raiz

E que ter medo de amar não faz ninguém feliz

Agora vá sua vida como você quer

Porém não se surpreenda se uma outra mulher

Nascer de mim, como do deserto uma flor

E compreender que o ciúme é o perfume do amor.

No decorrer da performance, as vozes de Milton e Paulo Jobim revezam

localidades. Uma sombreia a outra, produzindo atmosfera que acalenta o espírito. A

segunda parte da canção toma direção de subida, como se sustentasse o reflorescimento

emoldurado pelos versos: “Porém não se surpreenda se uma outra mulher/ Nascer de

mim como do deserto uma flor”. Ainda aqui prevalece atmosfera de puro intimismo.

Essa arquitetura dialoga com a emoção pronunciada em Medo de amar e instala

320

contraponto para a canção que dá sequência ao disco. A calmaria de Medo de amar é

atacada por nuvem de “primos” em falsete, uma pancada vocal armada por Milton

Nascimento para introduzir Velho Riacho (Para não sofrer), samba pouco conhecido de

Tom Jobim. Nessa onda de vocalises, Milton caça lugares imprevistos para a voz, dando

a essa introdução aspecto de pintura surrealista de cor vertiginosa. A atmosfera é

aquecida pela agilidade das baquetas de Paulinho Braga. Do piano brota balanço

malicioso. E Milton se joga em canto sincopado que, combinado com o suingue do

ambiente, reverbera memória da sonoridade exuberante daqueles trios que pipocaram no

cenário musical dos anos 60.

No prosseguimento, Novas Bossas traz outra peça pouco visitada do território de

Jobim, Esperança perdida, parceria com Billy Blanco. Nessa releitura, apreendemos um

quê de samba-canção. Através de prolongamentos, Milton encontra a dramaticidade,

adensada pelos intervalos de silêncios que ligam versos da canção. Silêncios da voz

preenchidos pela melancolia do piano criam espaço para curtir a dor. Por vezes, o canto

parte frases, a voz debulha história, realçando choro engolido diante da constatação: “Eu

pra você...” [breve pausa] “... fui mais um”.

Tanta esperança perdida

Mas felizmente é assim

O tempo passa, com ele a vida

E a vida um dia tem fim

Eu pra você fui mais um

Você foi tudo pra mim

Fiz de você o meu céu

Minha razão, meu tudo, enfim

As coisas belas da vida

De nada servem porque

Porque não tenho, querida

Você

Através de leitura intimista, Milton Nascimento e Jobim Trio rodeiam emoção

visceral, palpitando tensão numa atmosfera que inspira solidão. Tensão enquadrada pela

própria voz quando emite notas altas em baixo volume. De maneira muito própria,

Milton despeja memória da sensibilidade de outras vozes. Seu canto ladeia a emoção

feminina que sempre admirou. Na tristeza de Esperança perdida há um pouco de

Dolores Duran, um quê de Ângela Maria e tantas outras vozes que estão sedimentadas

em seu canto. De repente, Esperança perdida nos causa impressão de ser mesmo canção

321

do repertório dessas cantoras. Essa identificação também vem pela letra de Billy

Blanco, compositor frequentemente visitado por cantoras como Dolores Duran, que,

inclusive, foi parceira de Tom Jobim na canção Por causa de você.

A leitura de Esperança perdida, somada a de Velho riacho, bem como os

contrapontos armados no itinerário desse álbum, sinalizam para outros ambientes

sonoros frequentados por Jobim. Em Novas Bossas há Tons além daquele do território

da bossa. Do corte vertical em sua obra soergue variedade de gêneros e experiências que

o nutriu mesclada às referências dos artistas agrupados em Novas Bossas. Em tom de

bossa, variam em linhas de samba, de samba-canção, bordam pontos de samba-jazz,

deixam escapulir partículas de Clube da Esquina e das canções marítimas de Caymmi,

estimulando caçada a outras e mais outras variações. Criam assim caleidoscópio que

propaga coexistência de possibilidades sonoras num mesmo artista e,

consequentemente, nas temporalidades em que está inserido. As imagens aqui

desenhadas nos reencaminham à entrevista ao Jornal do Brasil onde Milton Nascimento

fala sobre o disco recém-lançado. Nessa ocasião, foi convocado a rememorar o impacto

da bossa nova em sua formação musical:

JB – Caetano Veloso e Tom Zé dizem que, para eles, o mundo começou quando

eles ouviram “Chega de saudade”. Qual foi sua reação ao ouvir bossa nova pela

primeira vez?”.

Milton – Wagner Tiso e eu morávamos na mesma rua em Três Pontas (Minas

Gerais), tocávamos em bailes, cantávamos na noite. Eu tinha 14 anos e ele, 12 –

era uma correria contra o juizado de menores. No fim dos anos 50, o Brasil era

muito rico de música de todo o mundo. Cantávamos e ouvíamos músicas

francesas, italianas, espanholas, do resto da América Latina. Fizemos um grupo

vocal que cantava rock. Conheci Ângela Maria, que tinha algo na carreira dela

que batia em mim como definitivo. Tocávamos de tudo, afora as coisas da

região, os ecos das montanhas. Considero as montanhas como co-autoras de

minhas canções e de minha voz. Um dia, estava trabalhando como locutor na

rádio de Três Pontas quando chegou o disco de Chega de saudade. Pus para

tocar e narrei: “Vamos ouvir agora, Chega de saudade, com João Gilberto”.

Nem sabia quem ele era. Ouvi aquilo e quase cai para traz. Falei com Wagner e

pusemos umas 20 vezes na rádio. Não tínhamos vitrola. Das músicas de bossa

nova, Chega de saudade foi a única que a gente ouviu de uma maneira que dava

para tirar a harmonia direitinho. Essa música fundiu nossa cabeça. 41

A narrativa de Milton inspira nova questão sobre o assunto no prosseguimento

da entrevista:

41

Milton Nascimento em entrevista a Clara Passi, Marco Antonio Barbosa e Mario Marques. “Acham que

eu sou quietinho, mas eu não sou”. Jornal do Brasil. Op. cit.

322

JB – O que o fez cair para traz ao ouvir Chega de saudade?

Milton – Tudo. Nunca havia ouvido um samba ser tocado daquele jeito, a batida

do violão, a bateria, a orquestra. Aquilo mexeu com todo mundo – com gente

em Minas, no Rio Grande do Sul e no mundo. Se o rádio de repente tocava uma

bossa nova, tentávamos anotar o que ouvíamos o mais rapidamente possível, se

não teríamos que esperar até sei lá quando para a próxima execução. Não

desgrudávamos do rádio. Não havia discos com essas músicas na cidade. Como

não dava para ouvir a harmonia, inventávamos. Fazíamos a voz e inventávamos

o resto. Tentava tirar a batida do violão de João Gilberto, mas o som não saía de

jeito nenhum e eu não entendia por que diabo nosso som não saía como o de

João. Não conhecíamos violão de nylon – tocávamos com o de aço. Cantávamos

muita bossa nova, mas do nosso jeito. Foi assim até ir a Belo Horizonte e ter o

primeiro contato com músicos profissionais, num bar chamado Berimbau.

Quando vi o pessoal tocando de outro jeito, disse: “O que a gente faz está

errado! Tenho que aprender tudo de novo”. Os músicos, em resposta, diziam:

“Não mexam nisso aí. Isso é vocês.”42

Algumas dessas linhas narrativas já nos perpassaram noutros momentos dessa

pesquisa, mas aqui elas enquadram a bossa em primeiro plano. “Cantávamos muita

bossa nova, mas do nosso jeito.” Vale frisar essas palavras. Das barreiras encontradas,

Milton fez pista para alçar voo próprio. Ao artista habituado a cruzar sonoridades, nada

mais comum que perceber e aplicar outros tons na obra em que visita Jobim. A memória

das audições da época em que era crooner e ouvinte assíduo do rádio faz brotar

lembrança da convivência de gêneros diversos. Pelo mesmo rádio onde se encantou com

o minimalismo de João Gilberto, Milton já tinha se arrebatado pela exuberância e

sensibilidade de Ângela Maria e pelo violão intimista, mas de coloração densa, de

Dorival Caymmi. Num texto escrito de próprio punho nesse ano em se comemora o

centenário do compositor baiano, Milton Nascimento relembra o mesmo cenário dos 50,

mas agora destacando a importância de Caymmi na sua formação musical:

Nessa época, eu costumava ouvir música do mundo inteiro, havia muita coisa de

Cuba, França, Espanha, Estados Unidos e, principalmente, do Brasil. No meio

disso tudo, um dos acontecimentos que mais fizeram minha cabeça foi quando

descobri Dorival Caymmi. Eu passava horas, dias, semanas e meses seguidos

ouvindo somente Caymmi, e nada mais. Aquela voz inimitável e aquele violão

capaz de uma força transcendental foi, sem dúvida, uma das maiores influências

musicais em toda minha vida. (...) Tom Jobim, João Gilberto, Ary Barroso,

Vinicius de Moraes e Moacir Santos nos ensinaram muita coisa, mas, a fonte, a

raiz, e o princípio de tudo quem nos deu foi mesmo Dorival Caymmi, e mais

ninguém.43

Em Novas Bossas, propagam-se ecos dessas memórias relatas por Milton

Nascimento e imprime-se gosto por combinações de sonoridades. Desse ponto, O vento

42

Idem, ibidem. 43

Milton Nascimento. “Uma força do outro mundo”. O Estado de S. Paulo. (27/04/2014). O texto faz

parte da edição especial do Caderno 2 desse jornal onde prestam homenagem a Dorival Caymmi.

323

surge como relato da singularidade de Caymmi. No momento onde prevalecia a

exuberância do samba-canção, Caymmi ousava numa arquitetura diferente, tanto em

suas linhas melódicas quanto na aposta em constituição sonora sustentada pelo par voz e

violão, antes mesmo do surgimento da bossa nova. Nesse sobrevoo por referências

deflagradas em Novas Bossas, interessa-nos, principalmente, a ideia de coexistência.

Desse ângulo, ignora-se a apreensão da experiência musical em linhas retas,

organizadas em compartimentos, para arregimentar curvas que apreendem a

efervescência daquele cenário musical. É esse lugar que devemos tomar para

compreendermos a parceria de Milton Nascimento com o Jobim Trio.

Quando toma caminho para seu ponto final, Novas Bossas surpreende com

canção onde amarra o encontro dos universos de Jobim e Milton Nascimento: Trem de

ferro, mais uma peça pouco conhecida do repertório de Tom Jobim. Aquela máquina

que se tornou símbolo do território miltoniano, também foi tema de trabalhos de Tom.

Nessa canção, o compositor criou melodia para o poema de Manuel Bandeira, aquele

cuja métrica pontua o movimento do trem, motivando seus leitores à declamação

acelerada e bem marcada, forma de evidenciar a engenhosidade do poeta.

Café com pão

Café com pão

Café com pão

Virge Maria, que foi isso maquinista?

Agora sim

Café com pão

Agora sim

Voa, fumaça

Corre cerca

Ai, seu foguista

Bota fogo na fornalha

Que eu preciso, muita força, muita força

(trem de ferro, trem de ferro)

Oô...

Foge, bicho

Foge, povo

Passa ponte

Passa poste

Passa pasto

Passa boi

Passa boiada

Passa galho

De ingazeira

Debruçada

No riacho

Que vontade

De cantar!

324

Oô..

(café com pão é muito bom)

Quando me prendero

No canaviá

Cada pé-de-cana

Era um oficiá

Oô...

Menina bonita

Do vestido verde

Me dá sua boca

Pra matar minha sede

Oô..

Vou mimbora, vou mimbora

Não gosto daqui

Nasci no sertão

Sou de Ouricuri

Oô...

Vou depressa

Vou correndo

Vou na toda

Que só levo

Pouca gente, pouca gente, pouca gente....

(trem de ferro, trem de ferro)

Os arranjos e vocalizações formulados dão vida ao meio de transporte. O piano,

a bateria, seus pratos, e as vozes nos embarcam nos vagões da locomotiva: simulam o

trem, ora rápido, ora lento, freando, subindo e descendo, anunciando caminhos e

encruzilhadas, partidas e chegadas, a travessia. Da tessitura sonora vem memória da

marcação bem cantada do atrito entre rodas do trem e trilhos da ferrovia. Os sopros

quentes das vozes aplicam fervura. O trem segue rasgando a paisagem, faiscando sons

de suas engrenagens. O trabalho vocal é surpreendente. “Café com pão é muito bom”.

Enquanto as vozes de Paulo Jobim e Daniel Jobim entoam o verso, apontando bem o

ritmo do trem, o apito de Maria Fumaça vem em forma de falsete lançado por Milton:

“Quando me prendero/no canaviá, cada pé-de-cana/Era um oficiá”. Quase

visualizamos esse trem serpenteando por serras e montanhas, sumindo por territórios de

fronteiras infinitas. O trem de Milton Nascimento e do Jobim Trio pedia passagem.

Tudo ali inspirava viagens e redescobertas sonoras.

A imagem que cabe tão bem ao universo de Milton se projetava nos caminhos de

Tom Jobim, evidenciando como ele também se enveredou pelo Brasil interior à procura

de belezas e mistérios. Esse traçado motiva recordações de outras viagens onde Tom se

inspirou nesse meio de transporte, como na faixa Crônica da casa assassinada, suíte de

seu disco experimental Matita Perê (1973). A dramaticidade toma seu lugar em Um

trem para Cordisburgo, movimento que anuncia chegada à terra encantada de

325

Guimarães Rosa.44

Num ensaio em que tece bela análise sobre o álbum Matita Perê, o

artista Kiko Continentino observa:

É um mergulho do compositor no interior do Brasil. Nos seus sertões, veredas e

vastos recantos; paisagem observada por um prisma absolutamente pessoal.

Referências literárias e geográficas dão o tom de uma saga musical e poética,

que se transforma a cada audição do disco. Arranjos inteligentes e uma

orquestração “de primeiro mundo” conferem ao álbum caráter universal.

Dedicada aos escritores mineiros Guimarães Rosa, Carlos Drummond de

Andrade e Mário Palmério, a música que intitula o álbum tem cheiro de

aventura. Nesse trabalho, o maestro carioca conhecido por imortalizar a beleza

das suas praias, parte em busca de novos ares: a atmosfera das montanhas do

vizinho estado das Minas Gerais.45

Ou seja, Tom Jobim também se enveredou pelos territórios Gerais, flertando

com seu imaginário através da literatura. Tal direção se evidencia já nos títulos das

canções. Crônica da casa assassinada, por exemplo, toma de empréstimo o nome do

livro impactante de Lúcio Cardoso. Nas dobras de Novas Bossas, o barulho de trem nos

desperta para histórias como esta e nos embarca numa viagem retrospectiva. De repente,

vem à mente aquela gravação que Tom Jobim fez para Trem azul (Lô Borges/Ronaldo

Bastos), prenúncio de seu diálogo com o território clube-esquinista. Percepções como

estas não estão simplesmente dadas no álbum, são também engenhadas por nós mesmos

através da recepção. Aos vagões de Novas Bossas, despejamos nossas próprias

bagagens a respeito de Tom Jobim. Sendo ele um artista conhecido, o efeito se torna

ainda mais contundente. As combinações de nossas informações com as do disco

permitem visualizarmos, novamente, a interação, plano onde se estabelece a parceria

entre artistas e público. Nessa relação, Novas Bossas incentiva a atenção aos detalhes,

prisma que possibilita a fuga do óbvio.

O apanhamento de caminhos e traços de Novas Bossas demonstra como o Tom

de Milton e Jobim Trio é constituído em imagem pontilhada. Visto de longe,

identificam-se nitidamente os contornos de seu rosto, de seu universo mais familiar. A

aproximação inquieta as primeiras percepções através de detalhes inesperados. Assim, o

olho – ou ouvido – apreende outras cores que vão sombreando aquele lugar,

constituindo neblina que, ao mesmo tempo em que o encobre, instiga a vontade de

44

A suíte Crônica da casa assassinada é composta por quatro movimentos: Trem para Cordisburgo,

Chora coração, O Jardim abandonado, Milagre e palhaços. 45

Kiko Continentino. Matita Perê. (Março de 2008).

Disponível em: http://ensaios.musicodobrasil.com.br/kikocontinentino-matitapere.htm

326

conhecê-lo melhor. E, dessa maneira, a adentrar mais, perder-se para encontrá-lo do

outro lado, lugar onde Jobim se multiplica em centelhas de tonalidades plurais.

Rotas de som para seguir sonhando

Para a realização de novo projeto, Milton Nascimento tomou o caminho para

Três Pontas na companhia de Wagner Tiso. Lá reuniu jovens talentos que conheceu ao

longo de incursões recentes pela cena musical de sua cidade. O álbum ...E a gente

sonhando, de 2010, celebra esse encontro dos filhos ilustres de Três Pontas com novos

amigos de canção. No total, mais de 25 artistas desconhecidos, entre compositores,

cantores e instrumentistas que passariam a integrar a trupe miltoniana. Para isso, a

produção de Milton levaria toda uma parafernália tecnológica para a cidade, montando

um estúdio improvisado no Centro Cultural batizado com o nome do cantor-compositor.

Partes das gravações ainda seriam feitas em seu próprio estúdio no Rio de Janeiro46

.

Como ele, sua turma tinha espírito cigano, estava pronta para embarcar numa viagem

para realização de seu sonho, palavra que se esfacela em variados sentidos, delineando o

conceito de ...E a gente sonhando.

Fig. 6 – Capa

46

Outros estúdios também abrigariam gravações do disco: Studio Casa do Mato, Estúdio Madre Música,

Marco Elízeo Studio e Bemol Estúdio.

327

Nas entrevistas e materiais de divulgação é destacada a maneira como se deu os

primeiros contatos de Milton com essa nova geração de artistas de Três Pontas. Através

de vídeo de apresentação de ...E a gente sonhando, Milton destaca:

Bom, essa história começou duma maneira assim... Completamente diferente na

minha vida. Eu abri era um livro. A BillBoard, que é o pessoal que mais

entende de música do mundo, mais respeitado e tudo... Aí que eu levei um susto,

tinha Minas Gerais e, mais embaixo, tinha Três Pontas.47

O livro ao qual o artista se refere é o The Brasilian sound: samba, bossa nova

and the most popular music of Brazil, de autoria de Chris McGowan e Ricardo

Pessanha. Ali, mapeiam as expressões musicais brasileiras, destacando as capitais de

estados aos quais pertencem. Minas Gerais ainda foi agraciada com menção à Três

Pontas. A inclusão de sua cidade no mapa da música despertaria em Milton Nascimento

o desejo por saber o que se passava em sua cena musical contemporânea. Afinal, a

publicação serviria de incentivo para que mais turistas conhecessem aquelas paragens já

tão visitadas por admiradores de seu filho ilustre. Mas que música encontrariam ao

desembarcarem por lá? A pergunta retumbava na cabeça de Milton. Marco Elízeo,

músico trespontano com quem o cantor-compositor divide a produção do disco, tratou

de apresentá-lo aos músicos atuais de Três Pontas, quase todos jovens a exercitar sua

música em recantos da cidade:

Marco me chamou numa vendinha afastada, tínhamos que pegar uma longa

estrada de terra. Lá, vi uns 15 garotos tocando rock muito bem, coisa como Pink

Floyd. Perguntei a ele o nome de cada um dos músicos e, conforme ele ia

falando, ia identificando as famílias, algo que acontece em cidades do interior.48

Na mesma matéria do jornal O Globo, Milton relata mais encontros nessas suas

idas a Três Pontas:

Fui para uma fazenda observar Marte num dia em que estaria mais próximo da

Terra, tinha muita gente lá. Comecei a ouvir, vindo da cozinha, o melhor lugar

da casa para o mineiro, umas vozes e harmonias legais, de música brasileira.

Cheguei lá, me juntei e aí meu grupo ganhou mais outros 15 caras, agora de

MPB. Num outro dia, fui almoçar numa fazenda e havia um piano lá. Um rapaz

novinho sentou-se ali e começou a tocar maravilhosamente. Depois, numa

homenagem que fizeram para mim, fiquei doido com um rapaz que vi cantando,

o Bruno Cabral, que hoje está com 19 anos e é o mais novo do disco.49

47

O vídeo foi divulgado através do canal do artista no Youtube.

(https://www.youtube.com/watch?v=EHbWrjfpBlw) 48

Milton Nascimento Apud Leonardo Lichote. “Reflexão sobre o tempo: Milton Nascimento grava disco

com jovens músicos de Três Pontas, onde cresceu.” O Globo (01/11/2010) 49

Idem, ibidem.

328

As andanças por Três Pontas despertaram o entusiasmo de Milton em relação

aos jovens músicos que conheceu. Logo sairia o primeiro resultado dessa interação. Na

gravação do DVD do show Pietá, lançado em 2006, Milton reuniu a turma toda para

participação de um vídeo que compõe os extras desse DVD. Os meninos de Três Pontas

se espalhariam pela sala da casa do cantor-compositor no Rio de Janeiro, montando

ambiente acolhedor e descontraído. Junto do anfitrião, receberiam Lenine numa

performance comovente de um grande sucesso do artista pernambucano, Paciência.

Naquele espaço, a nova cena musical de Três Pontas eclodia sua voz. No entanto, essa

experiência seria pequena diante do talento que Milton reconheceu em seus

conterrâneos. Precisava de mais, resolveu gravar um disco inteiro. Mas esse só viria

quatro anos mais tarde, depois do encerramento das turnês de divulgação do disco com

os irmãos Belmondo e do Novas Bossas, projetos levados ao público logo após o

encerramento da turnê Pietá.

Conversei com Milton Nascimento sobre o álbum ...E a gente sonhando. No

seu relato entrevemos a espontaneidade com que se realizou seu contato com aqueles

jovens artistas, o que se transporia para o disco, onde, mais uma vez, Milton aposta em

experiência de criação coletiva. Em ...E a gente sonhando, mistura sua inquietude

artística ao desejo de reverberar o canto de novas vozes de Três Pontas, vertida aqui em

espécie de celeiro musical.

Cê sabe que esse disco eu fiz baseado nos meninos da minha cidade. Tem umas

cinco pessoas que não são de lá, o resto é tudo menino de lá. Eu nunca tinha

gravado “E a gente sonhando”. Mas tem o Pedro, esse meu afilhado, e ele

tinha uma bandinha, e um dia eles fizeram um circo, um “Gran circo” na praça

da casa dos meus país, e todas as bandas de Três Pontas foram tocar. A última

a tocar foi a banda dele. Aí tocou e aí eles chamaram um garoto lá. O garoto

chegou, subiu e cantou...achei uma coisa fenomenal! Falei: “Meu Deus o que

que é isso?”. Aí quando o Pedro chegou, eu falei: “Pedro, quem que é esse

menino?”. Porque geralmente quando a gente tá na cidade, você olha para

uma pessoa e sabe até de que família que ela é, né? Esse eu não consegui...

então eu perguntei pro Pedro, ele falou que era o Bruno Cabral. Eu falei, “fala

com ele pra ir na casa da minha irmã. Eu quero conversar com ele”. Aí ele foi,

chegou primeiro que eu. Aí eu cheguei e falei assim: “Olha, eu quero gravar

um negócio com você.” Eu não sei bem o que que ele sentiu...: “mas é

mesmo?”. “É!”. Falei: “Pois é, então eu vou ver que música pra você aprender

pra gente cantar juntos.” Aí eu lembrei do “...E a gente sonhando”, porque

com o rapazinho cantando, seria a primeira faixa do disco, ele ajudando a

trazer os sonhos dos outros.50

50

Milton Nascimento em entrevista a mim concedida. Op. cit.

329

A canção que batiza o disco é da primeira safra de composições de Milton

Nascimento, feita nos anos 60, quando ainda tentava a sorte como cantor da noite em

Belo Horizonte. É mais um marco de seus primeiros começos. Nesse disco, recebia

interpretação de Milton pela primeira vez. Anteriormente, ... E a gente sonhando tinha

sido gravada por Alaíde Costa em disco próprio. Agora servia para relatar os começos

de outros jovens arregimentados nesse registro do disco homônimo.

Gente de um dia se abrindo

De um sol se entregando ao espaço

de um céu assim

Alma do longo das ruas

Vivendo uma vida

que está pra ter fim

Gente reclama de tudo

Tristeza enfrentando

Acha tempo para rir

Corre errante seu mundo

Toda vida chegando

Vida inteira a partir

Há quem muito sofre, porque quer sofrer

Há quem muito chora, porque quer chorar

Há quem não quer nada e de tudo tem

E tendo de tudo, nunca tem ninguém

Gente da noite surgindo

Um sol foi sumindo e uma lua chegando

Muitos são lua no dia

Outros, sol pela noite

E a gente sonhando

Sonhando...

Na introdução da canção, a voz de Milton Nascimento cintila seu brilho, abrindo

caminhos para chegada de seu convidado, Bruno Cabral, que, com sua voz quente e

suave, reveza emoção e sensibilidade com aquela voz madrinha. Nesse dueto, planam

sobre trama sonora discreta, armada por vozes instrumentais que se despejam

calmamente, elaborando ambiente de movimentação delicada e envolvente: “um dia se

abrindo...”, em que o pequeno riacho nasce das mãos percussivas de Lincoln e Ricardo

Cheib, fonte de onde também escapam ecos do sino dos ventos, insinuando o carinho da

brisa que roça a paisagem imaginada. Um tom de magia enfeita o espaço numa nuvem

sutil produzida pelo órgão manipulado por Clayton Prósperi. A sensação de

movimentação é incrementada pelos violões e guitarras de Ismael Tiso e Marco Elízeo.

Uma cor densa vem pela pulsação do baixo de Cláudio Ribeiro (Casquídeo). E o piano

330

de Wagner Tiso se ergue como beija-flor a se divertir, ora parando no ar, ora se jogando

entre ramagens que perfura e costura. Arranja-se assim ambiência em que predominam

ares lisérgicos, produzindo o efeito de suspensão da realidade, reforçada no arremate da

canção, quando se provoca a embriaguez musical em momento de improvisação. Como

um mantra, as vozes de Milton e Bruno liberam canto inebriante ao repetirem o verso

final: “E a gente sonhando...sonhando”. Nesse som viajante, condensam-se dimensões

em que jogam com o passado e o presente, deixando entrever esboço de futuro.

Sedimentam assim memórias do passado daquela voz mestra com a experiência recente

na companhia de seus novos amigos. A expressão sonho aqui é manipulada em suas

variadas dimensões: sua porção de “suspensão da realidade” se mistura com a

persistência da inquietude artística e com o desejo, daqueles jovens, de tomar seu lugar

ao sol. Desejo este que compartilham com Milton Nascimento.

O que se estabelece no plano sonoro, ramifica pelas fotografias – assinadas por

Vanusa Campos e Thiago Nascimento – e pelo trabalho de arte – dirigido por Milton

Lima. Nos encartes e capa que acompanham o disco, fotos sombreadas por cores

diversas e circundadas por nuvens dançantes se misturam a outras do acervo pessoal de

Milton Nascimento e também a desenhos e postais que enquadram temporalidades em

mosaicos, esboçando assim a pulsação de um lugar: Três Pontas, braço do território

miltoniano, canto arquitetado numa urdidura movente de memórias, afetos e

sonoridades. Retratos da paisagem de Três Pontas se combinam às fotografias que

registram passos da trajetória de Milton e de seus novos amigos por aquelas terras.

Retratam também a própria experiência de gravação do disco, como os momentos de

concentração e farra. Nessa movimentação de imagens, cada página virada dos dois

encartes que acompanham o disco – um, reúne as letras das canções e o outro, detalhada

ficha técnica – abrigam pedaços de preciosas memórias, vertendo-se numa espécie de

álbum familiar, que, em seu acúmulo de tesouros, constrói portal para várias

temporalidades. Na página que traz a letra da canção ...E a gente sonhando, por

exemplo, cruzam-se fotos de instantes das vidas de Milton Nascimento e Bruno Cabral:

registros de infância de ambos, do momento atual, rostos de outros personagens caros

aquele cenário, como o casal Lília e Zino, os pais de Milton, retratados numa foto

envelhecida. Parte integrante do conceito do disco, o trabalho de arte produz sentimento

de familiaridade através do reconhecimento de rostos e localidades avistados em outros

331

discos de Milton Nascimento. Ao longo de sua carreira, o artista compartilhou sua Três

Pontas com o público.

Fig. 7 – página do encarte de ...E a gente sonhando

Folheando o encarte reconhecemos ainda a casa dos pais de Milton ao fundo da

Praça Travessia. Ao abrir toda a capa do disco surge uma grande montanha de

contornos familiares. Voltar aos encartes retira a dúvida: ali reproduzem aquele mesmo

desenho traçado por mãos miltonianas na capa do disco Geraes. Tal desenho se inspira

naquela paisagem. Nessa nova versão, a seta aponta o destino: Três Pontas. Acima do

sol vem os dizeres em guarani: Ava Nheyeyru Iyi Yvy Renhoi. Numa cerimônia que

havia acontecido naquele mesmo ano de 2010, no Mato Grosso do Sul, Milton foi

batizado pelos índios com esse nome, que significa “Semente da Terra”.51

Em ...E a

gente sonhando, a expressão mobiliza variados sentidos. Num primeiro plano, relata o

berço de Milton. Ao mesmo tempo, demonstra como sua música germinou, tornando-se

laço com aqueles jovens trespontanos e com quem mais chegasse as suas paragens.

51

Cf. “Milton Nascimento ganha nome guarani em batismo durante show na Praça do Rádio”.

(http://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=85064).

332

Fig. 8 – A locomotiva miltoniana pede passagem

Como vimos, naqueles encartes temos vários itens de reconhecimento, coisas

que acompanhamos ao longo da estrada de Milton. De alguma forma, aquela cidade que

se fez como canto do mundo através de sua arte passava também a ser nossa. A

familiaridade provocada na apreciação das fotografias é alicerce para a surpresa diante

do desconhecido: páginas antes limpas, agora são preenchidas por novos rostos e

sorrisos; alguns deles, participantes ativos do disco ... E a gente sonhando, outros,

privilegiados expectadores ou mesmo fonte de inspiração para novas canções.

A ambiência inebriante que ergue clima de suspensão na canção ...E a gente

sonhando, alastra-se por outras peças do disco, tramando labirinto sonoro onde

dimensões são abertas e sobrepostas. Nos seus caminhos, memórias se enfeitam de

atmosfera de sonho tecido na inexatidão do agora. Corredores arquitetados em bordados

sonoros minuciosos são perpassados por ondas de sensibilidades, por vezes adensadas

pelo coro robusto composto por vozes descobertas por Milton Nascimento. Há instantes

em que prevalece a comoção de onda calma aninhando o canto de Milton, como em

Estrela, Estrela (Vitor Ramil). Noutros, essa mesma onda transmuta-se em alegria

333

vibrante que aquece aquela voz madrinha, caso de Raras Maneiras (Tunai/Márcio

Borges). A onda segue se movimentando e se transmutando: as vezes toma feição

daquela fervura de festejos populares, mas não deixa de experimentar tons solenes e

dramáticos. Sublinham assim as minuciosas dobras desse labirinto sonoro pronto a nos

arrebatar num detalhe, numa nota crucial, num som enigmático que inventa esconderijos

da exatidão. Nos infinitos percursos do labirinto de ...E a gente sonhando, mais do que

caçar saídas, somos convocados a nos perder, adentrarmos experimentando sensações

em forma de nirvana musical. O repertório do disco é integrado por 16 canções onde

vislumbramos a diversidade de compositores:

...E a gente sonhando (Milton Nascimento), Flor de ingazeira (João Bosco/Francisco

Bosco), O ateneu (Milton Nascimento/Fernando Brant), Do samba, do jazz, do menino

e do bueiro (Ismael Tiso Jr/Miller Sol), Estrela, estrela (Vitor Ramil), Raras maneiras

(Tunai/Márcio Borges), O sol (Antônio Júlio Nastácia), Espelho de Nós (Milton

Nascimento/Fernando Brant), Me faz bem (Milton Nascimento/Fernando Brant),

Resposta ao tempo (Cristovão Bastos/Aldir Blanc), Amor do céu, amor do mar (Flávio

Henrique/Milton Nascimento), Gota de primavera (Pedrinho do Cavaco/Milton

Nascimento), Adivinha o quê? (Lulu Santos), Sorriso (Milton Nascimento), Olhos do

Mundo (Marco Elízeo/Heitor Branquinho) e Eu pescador (Cleyton Prósperi/Haroldo Jr).

Canções dos talentos descobertos por Milton Nascimento são combinadas com

peças de outros compositores e algumas de autoria do próprio Milton. Destas, algumas

foram compostas com novos parceiros, como Amor do Céu, amor do mar (Flávio

Henrique/Milton Nascimento) e Gota de primavera (Pedrinho do Cavaco/Milton

Nascimento). Outras são peças antigas do repertório de Milton, mas que até então

permaneceram inéditas em sua voz, caso de Me faz bem (Milton Nascimento/Fernando

Brant) e O ateneu (Milton Nascimento/Fernando Brant). A primeira foi sucesso na voz

de Gal Costa, a segunda foi composta especialmente para peça baseada no livro de Raul

de Pompéia. Gravá-las pela primeira vez agora demonstra como permanecem

contemporâneas e ainda nos alerta para como podem ser ricos os baús de Milton

Nascimento. Por detrás das pérolas gravadas ao longo de sua discografia, há ainda as

canções com as quais presenteou seus amigos, trilhas compostas para balés que não

foram lançadas, etc. Como vimos, mesmo seus sucessos, o cantor trataria de enriquecer

com inquietantes releituras em experiências recentes.

334

Os percursos de ...E a gente sonhando são ladrilhados por canções que surgem

aleatoriamente. A condução do disco lembra a de um baile onde o crooner vai

apanhando canções pelos fios da memória ou conforme os pedidos do público. Nessa

atmosfera, vislumbra-se leve recordação dos tempos em que Milton e Wagner Tiso

integravam conjuntos de baile que aqueciam os salões de Três Pontas. Há momentos em

que esse veio ganha maior nitidez, como no instante em que produzem performance

irreverente de Adivinha o que? (Lulu Santos). Ali, os metais – Widor Santiago (sax-

tenor), Vittor Santos (trombone) e Nelson Oliveira (trompete e flugelhorn) – constituem

ambiência de baile, avultada pelo requebrar das linhas suingadas do baixo de Cláudio

Ribeiro. A bateria de João Vitor Campos traz vivacidade à cena. De repente, os metais

abrem frinchas de onde escapam ares de banda jazzística numa passagem por ambiente

de coloração retrô, reforçada pela dicção da bateria de Lincoln Cheib e pelo baixo

acústico de Gastão Villeroy. Milton brinca o tempo todo, faz firulas, joga-se em scats

vocais, acrescenta cacos aos versos da canção, como na estrofe seguinte:

Você vive me dizendo

Que o pecado mora ao lado

Por favor não entre nessa

Por que um dia ainda te explico direito

“te pego de jeito”.

Um “te pego de jeito” é maliciosamente acrescentado nessa atmosfera que

contagia por sua espontaneidade. O artista deita e rola, mostra-se mais que a vontade.

Chega a brincar com as palavras, como quando puxa o “S” enfaticamente nos versos

finais numa franca caricatura do sotaque carioca. De repente, entra em cena o coral,

revezando com Milton a pulsação brincante. Ali a fervura de outros tempos dialoga com

o agora. A lembrança dos bailes da adolescência se transmuta em sarau com novos

amigos a comungar alegrias através de canções que sacodem memórias. Na atmosfera

do disco prevalecem essas passagens onde se divertem com a maleabilidade de

discursos e sonoridades. Brinca-se com o próprio tempo, motivo de jogos onde índices

de temporalidades diversas são invertidos, retorcidos, cruzados. Quando pinçados,

transformam-se em citações para constituição de nova urdidura. Nesses manejos, outras

canções são remodeladas, como O sol, grande sucesso do grupo Jota Quest, que nessa

versão ganha coloração de rock setentista no instante em que é invadida pela sonoridade

do órgão manipulado por Ademir “Fox” Junior e pelas guitarras de Marco Elízeo. Ou

335

mesmo quando um ar de bolero se insinua no diálogo do piano de Wagner Tiso com a

percussão de Lincoln e Ricardo Cheib em Flor de ingazeira.

Nas passagens por corredores desse labirinto sonoro avistamos paisagem aberta

em que se escoa a efervescência de festejos religiosos. A ebulição cadenciada criada por

vozes corais, palmas e percussão alimenta o canto de comunhão, sentimento que

preenche a arquitetura de Espelho de nós (Milton Nascimento/Fernando Brant), levada

por novo dueto de Milton com Bruno Cabral.

Quem vem de lá, o que nos traz?

Quem vem de lá, que gente é?

Quem vem de lá, vem, é de paz

Quem vem de lá sabe o que quer

Traz a farinha, traz é o peixe,

Traz é o pão que quer dividir

É gente nossa, homem, mulher

Espelho de nós, mistérios da fé

Quem vem assim, vestido de céu

Quem vem assim, filho de Deus

Luz na manhã, cor no papel

Flor no jardim, fruta no mel

Traz na viagem, sonho, esperança

Pra alimentar quem quer resistir

É gente amiga, homem, mulher

Estrela, farol na noite do mar

Sei que enquanto amar

A vida me valerá

Gostar pra mim é o ar

Que busco na atmosfera

É o princípio e é o fim

Eu quero é tocar, eu quero saber

Qual a mais bela verdade que há

Aqui, uma memória se conjuga a outra, colhe mais uma, arrumando lugar de

reconhecimentos através de sonoridade e poesia. Os versos rodeiam recordações de

atmosfera de cortejo religioso, pendurando quadros desse cenário: “Luz da manhã, cor

no papel/ Flor no jardim, fruta no mel”. As cores da paisagem pintada se misturam aos

enfeites, bandeirolas que inventam caminhos a serem percorridos em homenagem ao

divino. Nesse compasso, expressões e palavras, signos tão correntes do léxico religioso

–“Traz o pão que quer dividir”, “mistérios da fé”, “vestido de céu” – brotam como

migalhas, que, ao serem arregimentadas, deixam entrever a sensibilidade da grande

narrativa cristã, motor que impulsiona aquela fervura de riso e choro.

336

As vozes de Milton Nascimento e Bruno Cabral tricotam dueto coberto de

mansidão, constituindo atmosfera de naturalidade, própria de conversa tranquila entre

amigos que se reconhecem na partilha de vivências. A pulsação de festejos populares

que transpassam essas vozes provoca identificação por meio das permanências. É som

de ontem e de hoje. É como aqueles cânticos de Folia de Reis, levados ano após ano,

década após década. Cantados fervorosamente por quem segue passos de um cortejo,

ganha a força de refrão. É canto que pega quem apenas aprecia o festejo pela janela,

segue invadindo a casa e preenchendo os silêncios que entremeiam conversas na

cozinha. De tão repetido, torna-se voz tatuada no cotidiano, criando fissuras temporais

que diminuem distâncias entre gerações, mesmo que por um instante, aquele em se

reconhecem numa mesma melodia. É o tempo da celebração, é o tempo da festa eivada

de solenidade e dor. Espelho de nós produz familiaridades, mas sem se dirigir

diretamente a uma expressão específica dos festejos populares. Faz da maleabilidade a

ponte para ampliar seu alcance, para seguir se acomodando às nossas vivências e

memórias. Em suas gretas, vemos a própria comunhão através da arte: o encontro de

Milton e Bruno Cabral se dava através da paixão pela música. Tal perspectiva faz de

alguns detalhes da sonoridade de Espelho de nós, trilha para se chegar a outras

memórias. A alegria ecoada pela voz do acordeom, por exemplo, sotaque de

manifestações como a Folia de Reis, ganha nova dimensão quando recorremos aos

encartes do disco. As mãos hábeis passeando por aquelas teclas são as de Wagner Tiso.

Aquele mesmo instrumento o acompanhava nos tempos dos primeiros conjuntos de

baile em Três Pontas. A conversa da voz de Milton com o acordeom de Wagner Tiso

pronuncia veios dessa outra narrativa, dos começos daquela amizade e parceria. Assim,

no jogo de prismas de Espelho de nós, visualizamos o passeio por horizonte largo, mas

igualmente o mergulho da embarcação em canto bem particular. Nesse amontoado de

lembranças e sensibilidades, contemplamos a viagem.

As linhas que arranjam lugar contemplativo no disco se adensam em O ateneu

(Milton Nascimento/Fernando Brant), uma das primeiras peças dessa narrativa. Nela,

também se experimenta centelhas de religiosidade, mas de ângulo distinto ao de

Espelho de nós. Se lá estávamos no plano aberto dos festejos populares, agora somos

transportados para dentro da igreja, cujo ambiente ganha maior ardor quando a onda

sonora que brotada do órgão se encorpa, escoando tristeza e dramaticidade nessa trama

de comoção solene. A igreja arquitetada sonoramente se comunica com a atmosfera da

337

obra que lhe serviu de inspiração. O ateneu foi composta para integrar a trilha sonora da

peça de teatro onde se adaptava a obra homônima de Raul de Pompéia. Assim, centelhas

memoriais do colégio interno que lhe servia de cenário, e também de personagem,

tornam-se vivazes na canção.

Vermelho no céu

Fogo nas estrelas

Fogo na prisão

Vermelho no mar

Que se coloriu

Espelho a mostrar

O fim da prisão

A paixão

Veio incendiar, matar a dor

Que há nas paredes

Que há nos porões

Rubra flor

Que cresceu nos ares

Para derrubar os muros

Cantar a vida

Sonhar o mundo

Abrir os corações

Vermelha paixão

Essa luz primeira

Que nos acendeu

Rebelião

Libertação

Fogo na prisão

Abrigada em atmosfera intimista em seus começos, os caminhos de O ateneu são

edificados num crescendo, onde a voz de Milton Nascimento incorpora a beleza

emocionante da flor a se desabrochar, a rubra flor, retratada na harmoniosa união entre

versos e melodia. Quando a voz fumegante desperta o coral, o jardim incandescente se

alastra ao seu redor, arranjando quentura que rompe com a clausura. O ateneu se ergue

como canto de despertar. Apesar de sua sensibilidade e beleza, essa canção era

desconhecida, não tendo sido registrada em disco anteriormente. Surte, assim, efeito de

canção inédita. No entanto, seu lugar na narrativa do disco ...E a gente sonhando vai

além do de tesouro recolhido do baú miltoniano. Localizada entre as primeiras canções

que abrem os caminhos do disco, é a que introduz aquele coro robusto de vozes jovens

em cena pela primeira vez. O balé alçado na interação de Milton Nascimento com essa

338

massa vocal faz de O ateneu relato de vivências recentes num discurso tecido por

sensibilidades. Ou seja, naquela atmosfera efervescente se desenha musicalmente a

motivação do disco: a voz de Milton Nascimento iluminando novos talentos, abrindo

espaços para arejar o território da música. E aquele coral incorporando a fonte que

alimenta a inquietude de Milton. Desse canto, peças como essas e outras que lhe

serviram para belas releituras, caso da própria ...E a gente sonhando e Espelho de nós,

têm características em comum com a “verdadeira narrativa”, modalidade discursiva

traçada por Walter Benjamin. Distinta da informação, que tem vida breve, a narrativa,

segundo Benjamin “(...) não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito

tempo ainda é capaz de se desenvolver”52

. A aposta em linguagem minuciosa, cheia de

dobras sonoras e tecida em linhas voláteis produz o enigma, fazendo da canção de

Milton Nascimento uma vizinha da narrativa benjaminiana. As duas se encontram em

sua inexatidão, nas suas formas misteriosas de enredar e sobreviver. Assim, ao

dimensionar o impacto causado pelo frescor de canções como O ateneu, valho-me, mais

uma vez, das palavras de Benjamin sobre a verdadeira narrativa: “Ela se assemelha a

essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente

nas câmaras das pirâmides e que conservaram até hoje suas forças germinativas.”53

Canções como O ateneu, abrem portas para temporalidades. Ainda nos fazem pensar,

mais uma vez, como a maneira como uma canção é arranjada ajuda a compor sua

densidade e sua longevidade.

O sentimento eclodido em O ateneu se espalha pelo disco através da

apresentação de novos talentos. Ainda hoje se reclama sobre o vazio proporcionado pela

ausência de novos talentos no cenário musical brasileiro, embora eles se multipliquem

em variados suportes independentes de divulgação. Milton contraria esse discurso de

aridez sonora mais uma vez, trazendo a cada faixa de seu disco, músicos e compositores

criativos totalmente desconhecidos. Apresenta também novas vozes. Além de Bruno

Cabral, já citado, reverberaria o canto de Ismael Tiso Jr e Paulo Francisco (Tutuca). Os

compositores Heitor Branquinho e Marco Elízeo também dividiriam os vocais com

Milton numa faixa de autoria própria. Se pegarmos o coro que participa de O ateneu, e

de outras canções do disco, encontraremos mais de 20 vozes regidas por Clarissa Veiga:

52

Walter Benjamin. “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.” In: Magia e técnica,

arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras recolhidas, volume 1. São Paulo:

Brasiliense, 1994, p. 204. 53

Idem, ibidem, p. 204.

339

Adriano kamizaki, André Duarte, Bruno Cabral, Bruno Morais, Cassius Clay, Clarissa

Veiga, Clayton Prosperi, Dayvid Castro, Elisângela, Felipe Duarte, Fernando Marchetti,

Heitor Branquinho, Helen Mariá, Hugo Branquinho, Isabela Morais, Ismael Tiso Jr,

João Marcos Veiga, Lidyanne Brito, Marco Elízeo, Mauro Marques, Natashha, Paulo

Francisco (Tutuca), e Paulo Loures. As canções por onde paramos o olhar já trazem

nomes pouco conhecidos e que integraram sua musicalidade à obra de Milton: Cláudio

Ribeiro, Clayton Prósperi, Marco Elízeo, Ademir “Fox” Junior etc. Assim como amigos

mais antigos: Lincoln Cheib, Ricardo Cheib, Gastão Villeroy, Vittor Santos, etc. Talvez

por essa atmosfera e por destacar três cantores em dueto com Milton, alguns textos e

críticas de divulgação recordaram nesse disco a experiência de Pietà, álbum onde se

propagava o canto de três novas cantoras e ainda sinalizava para o cenário musical

atual.

A aposta de Milton Nascimento na cena de sua cidade faz de seu disco um fecho

de luz a pressentir nas sombras a riqueza da música contemporânea. Muitos dos artistas

convocados ainda não tinham gravado ou mesmo entrado em estúdio. Antes,

despejavam sua arte pelos barzinhos de sua cidade. O passeio por ...E a gente sonhando

nos inspira a questão: se na pequena Três Pontas há tantos talentos, no Brasil então...

Basta desviar os olhos dos lugares fixos, ampliando cenários, exercício que também

demonstra a importância de se pensar nos meios e estratégias de criação e divulgação

musical. Nesse panorama, Milton ainda faria de seu selo musical, mais um lugar para se

divulgar novos talentos. Anteriormente, já havia lançado o disco da cantora Marina

Machado. Agora, ecoaria o talento de um de seus afilhados convidado para ...E a gente

sonhando, o carioca Pedrinho do Cavaco. A nova turma ainda integraria a caravana que

levaria o disco para o palco. O show ...E a gente sonhando estrearia no festival Música

do Mundo, que agitou Três Pontas com apresentações de artistas como Wagner Tiso, 14

Bis, Clayton Próperi, Änïmä Minas, Tunai, Gilberto Gil, Sá & Guarabira, Pablo

Milanés, Jorge Vercillo e outros nomes que se espalharam por diversos palcos da

cidade, fazendo daqueles dias uma celebração à música.54

A turnê de divulgação

seguiria por capitais brasileiras. Posteriormente, alguns de seus integrantes

participariam de apresentações do show de repertório de sucessos de Milton

54

Cf. Festival Música do Mundo reúne Milton Nascimento, Pablo Milanés e Mallu Magalhães em Três

Pontas (MG). UOL Música. (09/09/2010) (disponível em

http://musica.uol.com.br/ultnot/2010/09/09/festival-musica-do-mundo-reune-milton-nascimento-pablo-

milanes-e-mallu-magalhaes-em-tres-pontas-mg.jhtm)

340

Nascimento. O palco do cantor-compositor continua sendo abrigo para seus novos

amigos.

O garimpo à procura da novidade é fonte que traduz a permanente ebulição

miltoniana. Arriscar na interação com talentos recém-descobertos é caçar saída do

lugar-comum musical. É desconfiar-se diante das evidências. É pôr o ouvido para fora

atrás do barulho diferente, do sotaque inusitado que, ao mesmo tempo, produz o

estranho reconhecimento. O artista que não se acomoda, bota-se na nebulosidade.

Prefere se descolar do confortável panteão das grandes estrelas para se agitar diante do

que desconhece. Assim, se embrenha nas sombras para catar luzes raras. Passar por elas,

sem percebê-las enquadraria outra pintura: “Um encontro marcado a que ninguém

comparece, fica cenário em excesso.”55

As linhas dessa reflexão se encorpam quando

trazemos a voz do filósofo Giorgio Agamben:

Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode

fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros.

E por isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque

significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas

também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se

infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode

apenas faltar.56

Nesse recorte textual, entrevemos a inquietação, manancial que transposto para o

cenário da arte, reluz o exercício de busca, onde o artista se enriquece, avoluma-se,

fazendo-se voz da contemporaneidade. No entanto, não basta trazer o novo para dentro

do disco. É preciso interagir verdadeiramente com ele, fazendo desse contato uma

experiência que resulta noutra coisa, que ao mesmo tempo é Milton Nascimento e

também seus novos amigos. Nessa constatação, uma questão levantada em entrevista

concedida ao jornal Correio Braziliense na ocasião do lançamento de ...E a gente

sonhando, mostra-se interessante: “Estar com os meninos de sua cidade lhe trouxe uma

sensação nostálgica, de volta às origens? Ou trouxe Três Pontas para os dias de

hoje?”57

A resposta de Milton Nascimento, revela sua disposição ao diálogo:

Trouxe para os dias de hoje. Eu não me via neles. Eu me via com eles. E chamei

todo mundo para trabalhar comigo. Porque todos são instrumentistas, cantores,

55

Maria Abília de Andrade Pacheco. “Desperdício” In: Décio de Mello; Regina Garbellini (orgs.). Livro

da Tribo/ dia-a-dia de seu humor, opinião e poesia. São Paulo: Editora da Tribo, 2003, p.244. 56

Giorgio Agamben. “O que é ser contemporâneo?” In: O que é ser contemporâneo? e outros ensaios.

Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 65. 57

Teresa Albuquerque. “Depois de 8 anos, Milton Nascimento lança álbum ...E a gente sonhando.”

Correio Braziliense (07/11/2010)

341

compositores, letristas e fazem tudo muito bem. Foi fácil trabalhar com eles

nesse disco. Todos tinham ideias, fizemos os arranjos juntos.

Noutra matéria, Milton Nascimento se diverte ao relatar sobre a escolha do

repertório: “As músicas foram vindo sem que a gente nem entendesse como. Coisa de

gente jovem, sabe?”58

Nesse clima de produção coletiva, o disco ganha seus contornos à

medida que vai sendo ricamente bordado por tantas mãos. Não é obra que começa

pronta, pois se compõe na ousadia de se pôr aberta ao que lhe vai sendo acrescentado.

Através desse modo de produção, que nos faz relembrar tantas outras experiências

miltonianas, constrói-se espaço para a criatividade, ninho aconchegante para se gestar a

novidade.

O diálogo de Milton Nascimento com jovens artistas também se estenderia para

o cenário internacional. Atualmente é reconhecida a proximidade dele com a cantora,

contrabaixista e compositora Esperanza Spalding, apresentada pela mídia como um

expoente entre novos talentos do jazz. A cantora ainda seria celebrada por importantes

nomes, como Wayne Shorter. Num cenário onde o jazz clama por novos ares, Shorter vê

na música de Esperanza uma possibilidade de renovação:

(...) Conheci recentemente a jovem baixista e cantora Esperanza Spalding,

estivemos juntos no mesmo festival na África do Sul. Ela surpreendeu todo

mundo ao levar o jazz a ganhar o Grammy na categoria de jovem artista. É uma

pessoa muito articulada, superinteligente. Abriu shows para Prince e tem a

sensibilidade de grande poeta. Essas pessoas, como Esperanza, podem fazer

algo acontecer no espírito do jazz, renová-lo, abri-lo para as novas gerações. É o

que se espera do jazz, que seja criativo e sem medo, sem intimidação.59

Uma das fontes para a renovação de Esperanza Spalding seria justamente a

música de Milton Nascimento. Grande admiradora do artista, a cantora fez regravação

inventiva de Ponta de Areia, canção que abre seu disco Esperanza, de 2008. No seu

álbum posterior, Chamber Music Society, de 2010, contou com a participação de Milton

num dueto de profundo intimismo na canção Apple Blossom. A admiração fez nascer a

amizade. Os dois se apresentaram juntos no palco alternativo Sunset do Rock in Rio de

2011. Na mescla de canções do repertório de ambos para esse show, admira-se a

sintonia que faz da canção de Esperanza uma vizinha da de Milton. Numa visita recente

ao Brasil, a artista concedeu uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, sendo

Milton o entrevistador especialmente convidado. Nessa entrevista, Esperanza fala do

58

Marcus Preto. “O novo clube do Milton”. Folha de S. Paulo. (08/09/2010) 59

Wayne Shorter em entrevista a Jotabê Medeiros. “Na cabeça de Wayne” O Estado de S. Paulo.

(13/05/2011)

342

impacto provocado pela descoberta da obra do artista brasileiro, sobre a experiência de

dividir o palco com ele, além de mencionar um projeto futuro, questão abordada abaixo:

[Milton] Já pensou em gravar um disco com os compositores brasileiros que

você mais gosta? O que acha da ideia?

[Esperanza] Sim, sim, sim! Há um compositor chamado Milton Nascimento.

Ele é meu compositor brasileiro favorito, e em minha mente senta num trono à

direita de meus compositores favoritos de todos os tempos. Isto é, a questão não

é ser um “compositor brasileiro”, é ser “um compositor brilhante”. Por isso fico

grata em informar que pretendemos fazer um álbum juntos. Além disso, há um

pianista/compositor que está vivendo em Nova York chamado Samuel Kardos.

Ele escreveu um fabuloso concerto para contrabaixo para mim, mas vou

precisar de mais quatro anos para prepará-lo! Tive a alegria de tocar um pouco

com o Guinga e gostaria de trabalhar mais com ele. É outro dos meus

compositores favoritos. Trabalhei um pouco com Ana Carolina também e ela é

fantástica. Além disso, aprendi na vida que apesar de termos “uma lista de

desejos” de pessoas com as quais gostaríamos de trabalhar, a vida com

frequência nos surpreende com colaborações inesperadas que acabam sendo

mais mágicas do que qualquer coisa que poderíamos ter sonhado!60

Esperanza tem se embrenhado na diversidade da música brasileira. Na passagem

acima, noticia alguns de seus percursos e sua admiração pelo trabalho de Milton

Nascimento, reverenciado como grande ídolo. Tudo num clima bem-humorado e

descontraído, maneira como também leva sua música. O depoimento entusiasmado da

artista nos estimula à constatação: se o contato com novos talentos alimenta a

inquietação miltoniana, a música do cantor-compositor permanece enigma a deixar

estarrecidos os iniciantes com sede de inventividade.

Voltemos aos percursos de ...E a gente sonhando. A inquietação que crepita em

sua atmosfera motiva releitura emocionante de Resposta ao tempo (Cristovão

Bastos/Aldir Blanc), sucesso na voz de Nana Caymmi que ganhou o grande público

quando se tornou tema de abertura da minissérie Hilda Furacão, transmitida pela Rede

Globo em 1998. No disco de Milton Nascimento, Resposta ao tempo se inicia num jogo

de inversão: os versos finais são transpostos para o início, arranjando nova introdução

que, levada numa delicada conversa da voz de Milton com o piano de Wagner Tiso,

repercute o recado: “No fundo é uma eterna criança/ que não soube amadurecer/ Eu

posso, ele não vai poder/ me esquecer”. Num vocalise em falsete, a voz de Milton abre

as cortinas para entrada do grupo vocal Änïmä Minas, formado por parte dos integrantes

do coro que participa de outras faixas do disco: Adriano Kamizaki, André Duarte,

Bruno Morais, Cassius Clay, Clayton Prósperi, Dayvid Castro, Felipe Duarte, Fernando

60

Esperanza Spalding em entrevista a Milton Nascimento. “Esperanza e a descoberta do Brasil” O Estado

de S. Paulo (06/06/2013)

343

Marchetti, Heitor Branquinho, Hugo Branquinho, Ismael Tiso Jr, Marco Elízeo, Paulo

Francisco (Tutuca) e Paulo Loures.

Ambientada no território do bolero, as primeiras estrofes da canção são levadas

pelo Änïmä Minas numa toada de envolvente leveza. Daquelas vozes plurais saltam

memórias do clima romântico que abraça salões riscados por passos de dança. Se letra,

melodia e instrumental arranjam essa atmosfera romântica, a maleabilidade dos versos

abre janelas para que a canção seja lida de outros lugares. Assim, Resposta ao tempo

decola, fazendo-se como reflexão que flerta com as diferentes esferas em que o tempo

atua. Serve inclusive para relatar a experiência de ...E a gente sonhando.

Batidas na porta da frente

É o tempo

Eu bebo um pouquinho para ter

Argumento

Mas fico sem jeito, calado

Ele ri

Ele zomba do quanto eu chorei

Porque sabe passar

E eu não sei

Num dia azul de verão, sinto o vento

Há folhas no meu coração, é o tempo

Recordo um amor que eu perdi

Ele ri

Diz que somos iguais

Se eu notei

Pois não sabe ficar

E eu também não sei

E gira em volta de mim

Sussurra que apaga os caminhos

Que amores terminam no escuro

Sozinhos

Respondo que ele aprisiona

Eu liberto

Que ele adormece as paixões

E eu desperto

E o tempo se rói com inveja de mim

Me vigia querendo aprender

Como eu morro de amor

Pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança

Que não soube amadurecer

Eu posso, ele não vai poder

Me esquecer

344

Numa espécie de jogral, as vozes do grupo Änïmä Minas e Milton Nascimento

figuram a ebulição do seu encontro na terceira estrofe. Ali, um aviva o outro. Colocam-

se em área de troca, delineando a palpitação que circula o disco. A releitura da canção

se avizinha do que já enunciamos em O ateneu. Novamente, Milton surge como voz

contemporânea, aquela que se desgarra dos comodismos e emite canto teimoso, que

desperta paixões – incorporadas naquele mar de vozes que apresenta –, desbravando

caminhos rumo a novas experiências. Bota-se assim, em movimentação, matriz do

entusiasmo de “uma eterna criança/ que não soube amadurecer.”

O lugar de obra aberta, feita na interação, despeja em ...E a gente sonhando

pulsações diversas. Do intimismo, passa-se a fervuras de cores variadas ou mesmo por

regiões de tonalidade sombria e horizonte enigmático. Revelar novos talentos conduz os

caminhos de Milton à diversidade sonora, rota que o artista bem conhece. Nesse disco

perpassam por pluralidade de gêneros, apostando na mescla: aqui romantismo pode

conversar com rock. O pop se deixa entrever nas linhas de canções como Olhos do

Mundo (Marco Elízeo/Heitor Branquinho). A passagem por outras canções já nos deram

notícia de presença jazzística, de sonoridades de coloração sacra, etc. Assim, pencas de

esquinas são abertas. Em Gotas de primavera (Pedrinho do Cavaco/Milton

Nascimento), por exemplo, o lirismo que escoa do piano manejado por Pedrinho do

Cavaco, combinado à doçura da voz de Milton, borda a mansidão do ambiente

romântico que circula a canção:

És a mulher, dona de minha história

Um milagre que brotou

Do carinho esperança

Um caminho pra depois.

(...)

Mas tal ambiente é invadido pelo rompante da guitarra de pegada roqueira de

Marco Elízeo apregoando outra emoção. Mais adiante, chega aquela velha companheira

de guerra, a sanfoninha manando candura pelas mãos de Milton. Nessa liga, demarcam

a liberdade em cruzamentos sonoros, que ainda traduz passagem por variadas

sensibilidades do imaginário amoroso: doçura, intempestividade, contemplação.

Por vezes a combinação desses elementos não permite precisão na localização de

uma canção. A que gênero pertenceria certas canções de ...E a gente sonhando? Se bem

estudamos a cartilha miltoniana, arriscamos: nenhum. Ou então: ao grande gênero

chamado música. Ou mais: ao gênero Milton. Como o cantor-compositor, seus

aprendizes são estimulados a brincar nas fronteiras musicais. Em Do samba, do jazz, do

345

menino e do bueiro (Ismael Tiso Jr/Miller Sol), a mistura se pré-anuncia no título. Aqui,

Milton apresenta a voz de um dos autores da canção, Ismael Tiso Jr, que também se

desdobra na guitarra e violão. A cena de Do samba, do jazz, do menino e do bueiro, é

composta por climas diversificados. No princípio, uma região mais intimista faiscando

alegria em partículas de jazz, bossa nova e samba. Os músicos se divertem, passeando

por sotaques dessas regiões musicais que coexistem em cena. Destacam-se aqui as

presenças de Iago Tiso (Bateria), Ismael (voz, guitarras e violões), Wagner Tiso (Piano)

e Cláudio Ribeiro (baixo). Nessa cena, vislumbramos comunicado do talento propagado

pela família Tiso em Três Pontas. A nova geração daquele clã se encontra com seu

membro famoso. É nesse ambiente que Milton e Ismael Tiso Jr se encontram numa

performance vocal temperada por um quê bossanovista. Mas que logo caçaria novos

rumos.

Onde as cores se misturam com facilidade

Mudando quem se vê

Gozando o cheiro das cores, das cores

Através dos olhos o infinito é lembrado

Mas no chão a sujeira

Carrega crianças, entope bueiros

Como a atmosfera sonora, os versos se cobrem de inexatidão. As frases criam

efeito de canhão de luz arremessando cores que projetam pedaços retorcidos do

cotidiano. Num primeiro momento, a questão retumba: o que querem dizer esses

versos? Há ali um ar viajante que a voz de Ismael Tiso Jr salienta. Seu canto vem de

longe, projetado num eco que dobra sua voz em tom embriagante, característica

reforçada por vocais miltonianos. A partir desse momento, a paisagem intimista

transmuta-se em efervescência. O instrumental é incrementado pelo trombone de Vittor

Santos e o teclado de Clayton Prósperi. Da percussão dos irmãos Cheib vem a forte

pulsação de batucada. Assim, descortinam a festa, que ganha cores ainda mais quentes

quando invadida pelo coro – formado por Milton, Ismael Tiso Jr, Pedrinho do Cavaco e

Marco Elízeo – irreverentemente nomeado no encarte como “Guela Solta 1”. Aquela

batucada arregimentando vozes e instrumentos compõe um bloco carnavalesco. Desse

patamar, a letra da canção, antes nebulosa, torna-se retrato desse festejo que arrasta

pessoas entre papéis picados, cheiros e sensações. Uma multidão correndo por ruas num

momento de suspensão. A alegria que tropeça em cenas do cotidiano e deixa no chão

pegadas coloridas de sua passagem.

346

A descontração aqui insuflada ainda se ergue como sintonia entre os gêneros

convocados para armar a farra. Nos passos desse bloco, também se propagam memórias

de outros ambientes festivos, pois se jogar numa festa é também sacudir recordações de

passados nos quais já agitamos os pés. Assim, o “Guela Solta” traz recordação daqueles

coros dos discos de Milton da década de 70, como o “Falta de Couro”, que também

ecoou grito carnavalesco em Reis e Rainhas do Maracatu (Milton

Nascimento/Novelli/Nelson Ângelo/Fran), no álbum Clube da Esquina 2.

Passagens por lugares, sensibilidades e mistérios. Nas quinas de ...E a gente

sonhando, o véu mágico se estende discretamente, tornando-se mais nítido em canções

onde abrem picadas para outras dimensões. O som distante hipnotiza, convoca os passos

por corredores de seu labirinto. A cada passo, a atmosfera se faz mais turva e,

igualmente, envolvente. Nitidez em magia é dar de cara com a inexatidão. Aquele som

de chamada tem coloração delirante, compõe-se desmanchando. Sua onda preenche

todo o espaço, dobrando e se desdobrando. Vem como emaranhado, uma mancha

disforme de estranha beleza sonora. Um sol que se alimenta de emoções para flamejar

magia. É desse vórtice que emergem os versos de Amor do céu, amor do mar (Flávio

Henrique/Milton Nascimento)61

, entoadas em dueto de Milton com Paulo Francisco, o

Tutuca.

Quando sonhei Elis Regina

Um coro de anjos se fez escutar

Meu coração desamparado se encheu de muitas cores

Cobriu todo o ar

Quando o cantar de Janaina me trouxe a esperança de acreditar

Minha lembrança apaziguou e o mundo encantou

Uma era voz daquela deusa, chamada, e então

Me querendo levar

Senti que era muito cedo, sem sombra de medo

Me jogo no mar

Outra, juntou-se com os anjos

Num canto de saúde pra me ajudar

Eram dois anjos, muita força, sem medo de amar

Uma de lá, outra de cá

Amor do céu, amor do mar

Aquelas vozes incorporam céu e mar. Enquanto Milton se eleva, propagando voz

celestial, Tutuca emite canto grave, âncora cortante que nos arremessa aos profundos

mistérios do mar. Num ambiente tenso, que inspira estado de alerta, essas vozes 61

Anteriormente, a canção foi gravada por Marina Machado no Pássaro Pênsil, álbum de Flávio

Henrique lançado em 2007 pela Biscoito Fino.

347

intercalam dimensões, lancinando via terceira, um portal na linha do horizonte. Entre o

céu e o mar, um novo lugar povoado por criaturas mágicas. Milton arranca da garganta

aqueles tantos “primos” quando repete os versos: “Quando sonhei Elis Regina/ Um coro

de anjos se fez escutar.” Nesse instante ele próprio é aquele coro angelical invocando

sua amiga e musa inspiradora. Elis vem em forma de sonho. Surge como voz de

amparo: “... juntou-se com os anjos/num canto de saúde para me ajudar”. Voz esta

acompanhada de anjos que revestem Milton de proteção. O time ainda ganha o reforço

da rainha do mar, Iemanjá. Em Amor do céu, amor do mar, a subjetividade é água que

fortalece o ser.

De repente, uma mudança de plano numa onda de vocalises. Vozes em coro

depreendem mistério numa constante, arranjando região de apreensão. Na entrega,

experimenta-se o sublime. É desse lugar que Milton dá seu salto, trazendo nos falsetes

um canto de pássaro encantado. Ainda saca vocalises tribais, fazendo-se xamã da

canção. No exercício do seu canto, capitaneia centelhas de sentimentos, sobrepondo

lugares e memórias. É como se do mar, passássemos aos mistérios de floresta, aos céus,

aos lugarejos plantados em montanhas, recantos onde a magia sobrevive. Tudo de uma

vez. Ao redor de Milton, aquelas vozes são canto de sereia, canto dos céus. Eis que

surge a forte marcação rítmica, armando o terreiro miltoniano. Ao fundo, as vozes

daqueles jovens repetem em forma de ladainha: “Uma de lá, outra de cá/ Amor do céu,

amor do mar.” O canto segue em tom de comunhão, convocando à entrega ao

conhecido/desconhecido, aquilo que se deixa entrever, mas não se entrega por inteiro. A

magia de Amor do céu, amor do mar se constitui nesse jogo modulado na insinuação.

Esses climas apanhados em nosso passeio pelo labirinto de ...E a gente sonhando

arrumam uma casa de horizonte largo, aquela que estabelece familiaridade através de

sensibilidades e memórias que nos rodeiam, mas sem se confiarem à decifração. Assim,

cravam-se códigos e recordações comuns ao território miltoniano num chão movediço,

afeito às variações e às nuances. A magia se realiza na maneira que se rearranja esse

lugar para compor nova história. Se o tempo, como na canção, ameaça apagar

caminhos, a música de Milton demonstra como eles sobrevivem quando riscados em

planos móveis, deixando-se reproduzir por outras vias, ruelas e pequenas trilhas,

refúgios do aprisionamento. Dessa superfície, coberta de movimentação que estende

visão sobre o território miltoniano, canções daqueles jovens se avizinham das

composições do próprio Milton, como Eu pescador (Cleyton Prósperi/Haroldo Jr), que

arremata o disco.

348

Instante em que a respiração se abranda e os olhos se atarantam. O menor

movimento é convidado a descansar diante daquele som que arremessa puro lirismo.

Num plano de mar aberto, compõe-se a atmosfera intimista, tramada em linhas

comoventes que saltam das teclas do piano de Wagner Tiso e das cordas do violão de

Marco Elízeo. A voz de Milton se aporta como maresia, inspirando a pausa no tempo

corrido, criando momento de contemplação da poesia e da beleza.

E vamos eu e a solidão a caminho do mar

Canoa e coração deixam pra trás a terra, o cais

Partem buscando vendavais

Ah, meu peito de sonhador sabe os abismos do amor

Como a canoa os do mar

Eu que fiz dos meus sonhos, meus navios

Eu que fiz velas de rimas

De canções o meu pesqueiro

Eu que armei rede de estrelas

Ainda espero entre anzóis e sereias

Quem ficou de me encontrar

De sol em sol, cruzando o mar, calmarias sonhei

No coração, a paz de quem provou do querer bem

Mas sopram tantos vendavais

Ah! Meu peito de pescador sabe que a lua passou

Finda a maré de pescar

Eu que dei os meus sonhos, meus navios

Que troquei mares por rios

Que aportei o meu pesqueiro

Nas paragens do desejo

Ainda guardo pra alguém o meu beijo

E adornos de corais

É como se fôssemos levados para um ponto longínquo, a profundidade de nosso

próprio ser. O canto de Milton Nascimento sorve cada palavra. O breve suspiro de

silêncio, cria segundo de agonia eterna, abrindo paisagem para canto de dor. A voz

maneja espaços, é lâmina afiando versos e melodia. A contemplação de seu mergulho

nos faz passageiros de cada linha melódica e dos versos bailarinos dessa canção. Aqui, a

palavra é embarcação que chispa sentidos plurais. No horizonte, o universo de pescador

sopra “causos” de amor e da própria vida de artista. Nas cavidades de suas nuvens conta

até nossa história. A emoção da voz de Milton é também a de quem embarcou com ele

nessa viagem e se perdeu momentaneamente noutras memórias. Na atmosfera de Eu

pescador, a tristeza se faz pungente. No entanto, o lirismo que dela emerge aprofunda a

beleza, fonte de onde escapole a alegria. Como no verso de Cecília Meireles, o cenário

349

grita: “...há finos deltas de felicidade abrindo os braços num oceano triste.”62

A voz do

artista segue tomando a canção para si, produzindo beleza no quase choro: “Ainda

guardo pra alguém o meu beijo/E adornos de corais”. Quando passeia por esses versos,

a voz se embarga, seu canto é súplica abafada pela emoção que o abraça. Nesse gesto,

encanta. Quando recupera o fôlego, emite multidão de “primos” ao repetir os versos.

“Os adornos de corais” se vertem em dobras de sua própria voz, enfeite que se entrega à

paixão. A magia que se instala no diálogo de Milton com Wagner Tiso e Marco Elízeo,

transforma o espaço de execução dessa canção num ritual onde cada minuto de

suspensão se dá em celebração ao território música. Desse lugar, Eu pescador toma

feição de obra do próprio Milton, motivo de aplauso ao talento de seus jovens

compositores. E Milton segue como porta-voz de preciosidades que antevê e propaga.

Um final contemplativo desdobra emoção quando o silêncio pede passagem:

“uai, o disco acabou?”. Provavelmente não, pois no vácuo que agora se instala,

pronuncia-se continuação. Diferente de uma catarse, grande explosão depois da fervura,

o final contemplativo inspira à percepção sobre a ebulição constante pela qual se

passou. Cria canal para que aquele disco permaneça tatuado por mais alguns instantes

no pensamento. Os contornos abertos convidam à atenção sobre a experiência vivida, a

olhar para trás e ver o disco pelo qual passamos; voltarmos, retomá-lo, fazermos dele

uma experiência.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer

um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que

correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar

mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,

sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o

juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção

e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,

aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,

ter paciência e dar-se tempo e espaço.63

As palavras de Jorge Larrosa Bondía têm ascendência no discurso benjamiano.

Tomadas nesse instante, dialogam com as passadas que demos por ...E a gente

sonhando. Num momento em que a música se tornou onipresente, nos acompanhando

por quase todo o dia através de aparelhos diversos, como celulares que levamos a

tiracolo, a escuta apurada se diluiu. No entanto, sobrevivem os teimosos que se dispõem

a parar um instante para viajar na feitura ou audição de um disco. ...E a gente sonhando

62

Cecília Meireles. “Mar em redor” In: Vaga música. São Paulo: Global, 2013, p. 24. 63

Jorge Larrosa Bondía. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência.” Revista Brasileira de

Educação. Nº 19. Rio de Janeiro: Jan/Fev/Mar/Abr de 2002, p. 24.

350

é um respiro, um disco que incentiva a pararmos um pouquinho, deixarmos nos levar

sem nos perguntar para onde, pois fez parte de seu próprio processo de realização,

compor-se enquanto atravessava caminhos. O que vislumbramos ao longo dessas linhas

pulsa na capa do disco. Lá as mãos firmes de Milton Nascimento indicam as nuvens,

ladrilho abstrato aonde memórias vêm aos espasmos, formando rotas de som para seguir

sonhando.

As mãos que desbravam nuvens deixam surgir raios de sol. “E se quiser saber

pra onde eu vou/Pra onde tenha sol, é pra lá que eu vou”64

, já diria o verso da canção.

...E a gente sonhando se põe como lugar de abertura, um álbum em que Milton

Nascimento aponta novos talentos, descortina cenários musicais do presente, insinuando

traços de futuro. Nessa viagem, o artista embarca junto. Aquela voz madrinha não

abandonou a vivacidade de sua porção aprendiz. Sem medo do inexato, delicia-se com a

magia que cria com seus novos amigos. Porto seguro seria, somente, a travessia.

64

O sol (Antônio Júlio Nastácia) foi a música de divulgação do disco ...E a gente sonhando.

351

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embarcar numa viagem e sempre desaguar em esquinas reprodutoras de outras

mais. Nessa pesquisa, todos os passos nos levaram à travessia. A percepção da

mobilidade e movimentação da obra de Milton Nascimento perpassou constantemente

nosso itinerário. Travessia por tempos, lugares, sensibilidades e memórias que eclodem

histórias. Travessia de um artista que arregimentou linhas de diversos gêneros musicais,

triscando limites numa combinação prenha de pontes: Jazz, rock, bossa nova, música

sacra, música de cinema, samba, expressões da cultura popular, tudo se transmuta em

ingredientes instigantemente harmonizados em novo e saboroso estilo. Travessia de

uma voz que irrompeu em seu canto fagulhas infantis e femininas, transbordando as

cercanias da região masculina. O canto de Milton Nascimento gorjeia larguras. Nos

contornos de seu horizonte pendura o céu multívoco, lugar ideal para se gestar a

liberdade.

O rio, a parede ou a árvore faz fronteira. Não tem o caráter de não lugar que o

traçado cartográfico supõe no limite. Tem um papel mediador. Também a

narração o faz falar: “Para!” – diz a floresta de onde sai o lobo. “Stop!” – diz o

rio mostrando o seu jacaré. Mas esse ator, pelo simples fato de ser a palavra do

limite, cria a comunicação assim como a separação: e muito mais, só põe uma

margem dizendo aquilo que o atravessa, vindo de outra margem. Articula. É

também uma passagem.1

As palavras de Michel de Certeau rimam com o universo miltoniano. O artista

inquieto confecciona sua música driblando demarcações para fixar novas aberturas.

Assim, corre a largos passos do risco de se plantar em lugares-comuns, simples clichês

do território da canção. Prefere o gosto inexato da fronteira, parque de diversões para

sua porção criança-arteira, a fazer rir e chorar com canções que cria e recria como se

fosse brincadeira. Em nossas investidas, as experiências sonoras de Milton Nascimento

tomaram feição de estripulias de criança. Essa é uma astúcia que devemos frisar, pois

nos põe em contato com a própria espontaneidade e inquietação do cantor-compositor.

Assim, o artista ignora a atmosfera de tensão que entremeia a fronteira. Em seu trabalho

de composição e interpretação, a sagacidade de Milton está em cavar passagens,

transitando tranquilamente por regiões que, num primeiro momento, parecem

1 Michel de Certeau. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 17 ª Edição. Petrópolis: Vozes, 2011, p.

195.

352

conflitantes. Dessa maneira, o cantor-compositor brinca com códigos musicais

apalpando-os como se caçasse uma textura diferente, um veio que desemboque na

preciosidade que compartilha em tom de surpresa: “achei!”. A impressão é de que tudo

cabe no território miltoniano.

O traquejo que possibilita brincar seriamente com música, de exercitá-la como

se fosse um mantra, faz com que o artista acesse justamente esse plano da mobilidade,

onde a articulação insinua bifurcações, coexistências e multiplicação de lugares. Na

margem se avista outro caminho, descortinam-se gretas a solfejar via terceira, uma nova

margem nas beiras. A imagem aqui traçada nos encaminha a uma das referências de

Milton, Guimarães Rosa, mais especificamente ao conto A terceira margem do Rio.

Numa bela narrativa, Rosa cria um personagem que partiu numa canoa rumo a destino

algum. Escolheu correr as águas a esmo. Na sua falta de cais, inquieta, provocando

reflexões nos que deixou para trás.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a

invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre

dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade

deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.2

Na cena de Guimarães Rosa, elabora-se a metáfora que transportamos para o

campo musical. A música de Milton, como aquela canoa, não lança âncoras, surpreende

pelo som que insinua lugares sem neles se prender. Estamos falando a respeito da

maneira que o artista filtra gêneros musicais que agrega a sua música. E o que se pontua

em melodias e arranjos se entranha nas letras, tanto nas de autoria de Milton

Nascimento quanto nas de seus amigos de canção, como Fernando Brant, Márcio

Borges e Ronaldo Bastos. Ali as palavras frutificam imagens que brincam com a

polissemia. De repente, fala-se de tanta coisa ao mesmo tempo... No horizonte

explodem metáforas, uma das assinaturas poéticas do Clube da Esquina. As palavras

como se fossem embarcações jogadas ao vento: na amplitude de sentidos, aportam na

sensibilidade de quem as sorve como ar. A parceria entre artistas se desdobra no contato

com o público, também conclamado a participar da festa. O conto de Guimarães Rosa

ainda inspiraria a canção homônima de autoria de Milton Nascimento e Caetano Veloso

gravada no disco Txai, 1990. Eis alguns dos versos:

2 João Guimarães Rosa. “A terceira margem do rio” In: Primeiras Estórias. Ed. Especial. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 2005, p. 78.

353

Água da palavra, água calada, pura

Água da palavra, água de rosa, dura

Proa da palavra, duro silêncio, nosso pai,

Margem da palavra entre as escuras duas

Margens da palavra, clareia, luz madura

Rosa da palavra, puro silêncio, nosso pai3

O que aqui enquadramos, comunica-se ainda com o jogo do qual Milton se fez

especialista. Muitas de suas canções manejam escalas de percepções, armando imagens

de voo largo para depois pousar em campo especifico e alçar novo voo, passeando

assim por planos que deixam entrever a travessia. Essas variações de prismas de

observação enriquecem visões sobre o cotidiano, seja ele enredado em lugar próximo ou

distante. Foi o que constatamos, por exemplo, em Saudades dos aviões da Panair

(Milton Nascimento/Fernando Brant) e em tantas outras canções que focamos nesse

trabalho, além de discos e mesmo espetáculos, como Tambores de Minas, onde as

Gerais de Milton são também um pouco de cada canto do Brasil e, numa propagação,

navio flutuante percorrendo espaços musicais do mundo.

Essa superfície volátil que entremeia a obra de Milton Nascimento inventa lugar

propenso ao diálogo e à criação coletiva, palavras-chave do vocabulário miltoniano.

Assim, aprofunda-se na brincadeira com a fluidez da linguagem poético-musical. A

música de Milton sempre foi moldada por muitas mãos: Wagner Tiso, Lô Borges,

Toninho Horta, Robertinho Silva, Beto Guedes, Nivaldo Ornelas, Novelli, Nelson

Ângelo, Naná Vasconcelos, são alguns dos muitos nomes que se tornaram célebres

quando falamos do ambiente sonoro que abriga clássicos do repertório miltoniano. Ao

longo de nossas reflexões vimos como a provocação criativa entre amigos adornou seu

território em arranjos e rearranjos. No bordado minucioso de seu tecido sonoro sempre

coube novo sombreamento, uma voltinha, mínimo detalhe que faz total diferença. Esse

espírito coletivo se traduz na própria atmosfera de seus discos, ainda mais quando

aposta naquela fartura sonora, redemoinho arregimentando vozes e instrumentos que

arranjam sua combustão.

A brincadeira segue seu caminho, aproveitando-se das frinchas do bordado para

deixar florescer a beleza e o frescor de sua arte. O traquejo de Milton e sua trupe

impulsionou essa diversão. Restaria outro caminho para músicos tão talentosos? Brincar

3 A terceira margem do Rio (Milton Nascimento/Caetano Veloso). Disco Txai, 1990.

354

com as formas, seja em poesia, melodia ou arranjos é irresistível para artistas

tarimbados. Na música de Milton isso se fez e se faz imprescindível. O ambiente

sonoro não é apenas moldura para sua bela voz, pelo contrário, faz parte da pintura,

engendra sua criatividade. Por outro lado, a própria voz do artista tomou feição

instrumental, tornando-se mais um canal de reverberação de sua inventividade. Nessa

levada o cantor-compositor cruza mais uma fronteira, a da canção com a música

instrumental.

Questões como estas nos guiaram por todo o trabalho, tornando-se pulsantes em

empreitadas como a do capítulo 2, onde o disco Clube da Esquina (1972) se fez como

palimpsesto que eclodiu veios de todo um universo arquitetado por vozes plurais.

Naquele álbum germinava uma movimentação que ramificaria em outros discos de

Milton e de artistas ao seu redor. E também uma forma de produção que privilegiava a

criação coletiva, o “modo de trabalho Clube da Esquina”, como o artista brincou em fala

recortada em nosso último capítulo. Além de demonstrar que levaria esse sentimento de

coletividade para outros discos, Milton evidencia como esse modo de conduzir seu

trabalho se adapta a novos cenários e contextos, renovando-se à medida que agremia

novos amigos e lida com novas tecnologias e estilos musicais. Ainda hoje é esse

envolvimento promovido pela amizade que serve de linha para que Milton juntamente

com Lincoln Cheib (bateria), Kiko Continentino (piano e teclados), Gastão Villeroy

(baixo), Wilson Lopes (Violão e guitarra) e Widor Santiago (sopros) teçam

encantamento e magia nos palcos em que se apresentam mundo a fora.

A respeito desses diálogos musicais de Milton Nascimento, torna-se

esclarecedora a declaração de Wayne Shorter sobre as gravações do Native Dancer,

disco que permeou vários pontos de nossa trama. Esse testemunho foi pinçado numa

entrevista em que Shorter foi indagado: “O sr. considera que o Native Dancer (1974),

que o sr. fez com Milton Nascimento, é um disco revolucionário?”

Sim. Gravamos o disco em uma semana, e tudo demorou 10 dias, entre

produção e mixagem. Eu me lembro que foi pouco antes do Natal de 74. Minha

mulher me falava muito de Milton, e eu o tinha encontrado no Rio. Eu o chamei

e ele não hesitou, veio com sua banda. As sessões de gravação foram em Santa

Mônica, na Califórnia, no mesmo estúdio onde o Steely Dan gravou Naja. Foi

tudo uma grande festa. Havia muita gente lá. A atriz Rachel Welch

acompanhou. O cara dono do estúdio era casado com a atriz Leslie Caron, que

fez Um americano em Paris com o Gene Kelly. O engenheiro de som era

casado com uma filha do Ingmar Bergman, e ela também estava lá. Essa era a

atmosfera. Nós começamos a tocar e logo estabelecemos amizade e confiança

355

mútuas. O Herbie Hancock estava gravando naquele momento a trilha de Death

Wish, com Charlton Heston, e o Herbie toca no disco. Foi um momento muito

especial. O disco é importante porque mostra como aproximar duas visões da

música sem que nenhuma delas seja submissa à outra. Nós não queríamos que

Milton imitasse o jazz, e eu não conseguiria imitar o Milton. Conseguimos fazer

algo muito complementar.4

As palavras de Wayne Shorter ambientam a gravação do disco para, em seguida,

noticiar uma parceria em que vigorou a coexistência de sonoridades de vias musicais

distintas. Como vimos, esse disco ficou como marco de abertura da música de Milton

Nascimento para o exterior. Nos depoimentos de Milton, Native Dancer é celebrado

pela “feijoada” musical que fomentou. O bate-papo musical de Milton Nascimento e

Wayne Shorter é feito nesse cruzamento de veios que revitalizam ambos os campos

sonoros. E essa característica se estenderia a outras viagens, tornando-se especialidade

do artista brasileiro, o que se verifica em discos como Angelus, 1993, que motivou

reflexão detida em nosso terceiro capítulo.

É nesse ponto que se dá a costura de nossa tese. Nesse esforço por mirar os

diálogos musicais de Milton Nascimento pelo viés das passagens por ele exercitadas a

cada projeto que visitamos. Nos trabalhos de sua carreira, o cantor-compositor dialoga

com variadas vertentes musicais, mesclando sotaques locais com dicções “universais”.

Em seu trânsito, tais vertentes não se ultrapassam, pelo contrário, convergem,

produzindo enigma pela maneira como são filtradas e assimiladas. O canto do mundo,

também fala do Brasil de Milton Nascimento pela maneira que se processa as

informações vindas de fora. Ao ouvir um disco de Milton não podemos catalogá-lo

como regionalista, nem tampouco como pertencente a segmentos como jazz, rock ou

pop. Ao mesmo tempo, pressentimos um quê de cada uma dessas vertentes em suas

músicas.

A dificuldade em responder à pergunta sobre qual música seria a de Milton

Nascimento incentivou o mercado fonográfico e a crítica musical a investir nos mais

variados rótulos. Em dado momento, mais precisamente na década de 90, assistimos à

tentativa de fixá-lo na World music, vertente deveras ampla com a qual o cantor-

compositor flertou e, ao mesmo tempo, se distanciou. A música de Milton é arisca a

definições. Conclama a ser ouvida de maneira desarmada num ato de sincera

4 Wayne Shorter em entrevista a Jotabê Medeiros. “Na cabeça de Wayne” O Estado de S. Paulo.

(13/05/2011)

356

contemplação. Uma contemplação que não é somente um ato de espera ou iluminação,

mas também um gesto que aciona lembranças, que canta o possível clamando pelo

impossível, que atiça devaneios e convida o outro (músicos e público) a participar, a se

revisitar num processo de deslocamento que reinventa passagens. Como avistamos

noutros momentos, a única definição que arrancaria suspiros de nosso tecelão de

canções seria seu próprio nome, retumbando certeza e mistério: Milton.

O artista brasileiro seguro de sua identidade musical plural tem liberdade para se

abrir à interação. Sua música se faz no contato, na combinação de elementos de nossa

paisagem com os do exterior. Essa abertura seria mais um índice de seu estilo e matriz

para sua criatividade. A acolhida de gêneros como o jazz e o rock no território

miltoniano processa transformações que ampliam as possibilidades de experimentação

desses estilos musicais. Possibilidade, essa palavrinha parece dizer muito sobre o

exercício em que a música de Milton Nascimento abre novos caminhos para regiões já

tão conhecidas. Desse patamar, Milton se aproxima de uma postura vanguardista, seus

experimentos sonoros arejam territórios, fazendo de sua canção fonte convidativa aos

que também clamam por renovação.

Os ares diferentes do território miltoniano provocam reconhecimentos pelo

espírito inquieto, provedor de novas parcerias, como as que travou com Wayne Shorter,

Herbie Hancock, com os irmãos Belmondo, Esperanza Spalding, e tantos outros. Esse

modo de estabelecer contato afasta a música de Milton Nascimento do simples

deslumbramento diante do que vem de fora e também do orgulho exacerbado dos que

permanecem dentro. Seu diálogo se realiza em pé de igualdade, na curiosidade

deflagrada pelas proximidades e distanciamentos com o outro. Através da música,

Milton joga e apanha recados ao vento num movimento que adorna ainda mais seu

território. Nessa dinâmica, a troca sonora ventila cenários musicais – sejam eles internos

ou externos – em variados tempos. Aqui vêm à memória a imagem poética arquitetada

por João Cabral de Melo Neto.

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

357

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aero

que, tecido, se eleva por si: luz balão.5

A tenda invisível trançada por tantas vozes captura a beleza flutuante de uma

manhã. Ao mesmo tempo, revela nos filetes de seu tecido cada enfeite que compôs

aquela luz balão. Tal ideia, arremessada para a nossa trama reforça o sentimento de

mobilidade da arquitetura musical. Ecoa nessa paisagem o espírito agregador evocado

pelo nome de Milton Nascimento. Ajuntar tanta gente encorpou seu som e também

permitiu que sua música se fizesse farol, iluminando regiões de onde surgem tesouros

submersos. Quando nos detemos nas parcerias de Milton com talentos brasileiros,

saltam cenas locais que dão outros contornos ao plano nacional. Foi assim no tempo do

Clube da Esquina, mas também na atualidade. Através do disco Pietà (2002), por

exemplo, surgiu em nossas vistas uma cena contemporânea de Belo Horizonte, e mais

três cantoras: Simone Guimarães, Marina Machado e Maria Rita. Em ...E a gente

sonhando (2010), o sonho de Milton foi ainda mais ousado ao revelar tantos talentos

amontoados em sua pequena Três Pontas.

São muitos os exemplos, Milton Nascimento é incansável no exercício de dar

visibilidade a novos talentos. Ao mirarmos experiências como a do espetáculo Ser

Minas tão Gerais (2002), deparamos com o grupo Ponto de Partida, trupe teatral de

Barbacena, Minas Gerais, e com os Meninos de Araçuaí. Tais grupos já eram

conhecidos, mas suas carreiras ganharam nova dimensão no contato com o artista. No

palco desse espetáculo, o cantor-compositor extrapolaria os limites do território da

música, integrando à trupe como “cant’ator”. Desvela assim outras nuances de sua face

numa demonstração de sua aptidão para a experimentação artística. Regido pelo Ponto

de Partida, Ser Minas tão Gerais ainda impressionaria por forjar uma linguagem

5 João Cabral de Melo Neto. “Tecendo a manhã”. In: A educação pela pedra e outros poemas. Rio de

Janeiro, Objetiva, 2008, p. 219.

358

brasileira para espetáculos musicais. No seu enredo, trama outra cara para o Brasil, um

país visto do interior. Produzia-se, assim, um espetáculo inusitado, a provocar

identificações e espanto pelos palcos onde passava.

Experiências como estas fazem do artista mineiro uma espécie de garimpeiro.

Seria pelas mãos de Milton que descobriríamos muitos talentos, inclusive de paragens

estrangeiras. Ao ouvirmos discos como o Milton Nascimento & Belmondo, logo vem a

pergunta: “quem são esses irmãos franceses?”. O espírito garimpeiro se apossa do

público por meio do atiçamento da curiosidade. Através dos discos de Milton

Nascimento, também somos convocados a pesquisar, aprofundarmos nas obras daqueles

cuja aparição nos provocou inquietação.

Sombreou o nosso percurso a ideia de que as canções de Milton proporcionam

viagem ao próprio Brasil. O artista disposto a conhecer, embrenha-se num País interior,

redescoberto no contato com cada voz ancestral recolhida em festejos e celebrações dos

cotidianos de pequenas cidades. Para dentro da música de Milton, saltam as pulsações

de manifestações como marujadas, congadas, procissões solenes, Folias de Reis e do

Divino. É daí que seu canto se reverte de negritude em toada eivada de alegria e dor.

Minas Gerais aqui se faz pulsante. É em seu território que Milton colhe sonoridades que

compõem seu bloco sonoro. Aqui cabe breve parada no texto do pesquisador Ivan

Vilela, que, ao falar dos discos de Milton produzidos na década de 1970, nos esclarece:

Toda a expressão da musicalidade negra na MPB até então vinha pela via da

Bahia e do Rio de Janeiro. Roberto Moura, em seu livro Tia Ciata e a Pequena

África do Rio de Janeiro, aponta diferenças entre os negros escravizados que

foram para a Bahia e os que vieram para Minas. Segundo ele, os negros que

foram para a Bahia eram, na maior parte das vezes, de etnia iorubá,

normalmente negros islamizados, alfabetizados e muito organizados em suas

lutas. Mantiveram seus traços de origem de maneira mais intacta que os nagôs,

etnia que predominou em Minas Gerais. Estes, para sobreviverem, mesclaram

seus traços à cultura dominante, ao catolicismo. Suas religiões foram

amalgamadas a elementos do catolicismo popular para assim preservarem a sua

essência. É essa a África que vem com Milton. A África dos congados e

moçambiques, catopés e marujadas, caiapós, candombes e vilões. São outros

ritmos, são outros cantos.6

Essa África-Minas seria tema de outras experiências de Milton Nascimento,

como verificamos nos espetáculos Tambores de Minas e Ser Minas tão Gerais.

Interessante notar que as Minas Gerais de Milton cantam passagem, reconhecem-se

6 Ivan Vilela. “Nada ficou como antes” In: Revista USP. São Paulo, n.87, p. 14-27, setembro/novembro

2010, p. 21 e 22.

359

noutras paisagens através desses festejos populares e de outras manifestações que deles

se avizinham, esparramando-se em variados cantos que compõe esse grande Brasil.

Nas escavações de Milton Nascimento, descortinam-se rotas que enredam

identificações desse País subterrâneo. Numa ampliação, surgem pontes até com

paisagens externas, como a que nos liga à perto e distante América Latina. Foi o que

avistamos em peças de álbuns como Milagre dos Peixes (1973), Pietà (2002) e

Nascimento (1997). A cada festejo que nos apresenta, Milton também revela o quanto

esse Brasil ainda se faz oculto. Nas solombras de suas matas e montanhas, no horizonte

de seus sertões gerais, guardam-se tesouros desconhecidos que bordam identidades. É o

que percebemos quando o artista nos apresenta ao Candombe da Serra do Cipó em

Pietà, por exemplo. Em sua música, Milton Nascimento envia recados sobre esses

outros Brasis numa espécie de contra narrativa que desloca imagens hegemônicas.7 O

país de Milton se coloca em permanente composição: cada peça (re) descoberta é

motivo para enriquecer seu mosaico de novo e indecifrável mistério.

O espírito aventureiro que vislumbramos em Milton Nascimento seria o motor

para sua permanente ebulição artística. Numa entrevista concedida no ano em que

comemorava os seus 50 anos de carreira, o cantor-compositor reafirma sua inquietude

quando confrontado com a seguinte pergunta: “E o que o Milton em início de carreira

diria ao de hoje?”8. Prontamente, responderia: “Que a gente é o mesmo. Porque é assim

que eu me sinto, um garoto que está começando, e que tem muitos sonhos.” Essa

energia permeou boa parte de nosso percurso, alastrando-se em variados capítulos,

ainda mais nos que se nutriram de experiências artísticas atuais. Ali visualizamos que

mesmo os códigos que identificam o artista são rearrumados em variações. Assim,

Milton se diverte com índices e assinaturas de sua cartilha musical, como os “primos”,

os falsetes, o violão-vocalizado, os coros, aqueles ares sacros, os veios de cultura

popular, o sotaque latino, etc. A cartilha de Milton Nascimento é livre, prefere descobrir

nova exceção a demarcar regras. Essa constatação ganha ainda maior nitidez quando

atentamos para as releituras que faz de clássicos de seu repertório.

7 A ideia aqui pontuada surge no contato com o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari quando se

pronunciam sobre a noção de maioria: “Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior,

mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores

quanto as menores serão ditas minoritárias. (...) Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso.”

(Gilles Deleuze, Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997.) 8 Entrevista concedida à Nana Queiros. Jornal Metro Brasília. (14/06/2012)

360

Revisitar suas canções é colocar-se num exercício que deixa aflorar nova

beleza. Uma música nunca deve ser petrificada. Em seus shows, o cantor-compositor

brinca com memórias de seu repertório. Na execução de uma peça antiga relembra o

arranjo original, mas acrescenta novas variações e ainda insinua veios de outras canções

numa espécie de metalinguagem. Na superfície sonora soerguem citações, recordações

de outras melodias. Mesmo em composições atuais, Milton brinca com esse tecido

como se fosse palimpsesto. De repente o artista no palco noticia sua trajetória, seus

passados e presentes, numa ciranda onde fagulhas de sentimentos e lembranças abrem

portais entre diversas temporalidades. Ali, montam-se as paredes de sua casa invisível,

preenchidas por sons e memórias.

A identidade de Milton se planta na movimentação. Nesse lugar, o passado,

como o presente, mostra-se fluído, pronto a ser tomado como matriz que enreda nova

experiência artística. “Há um passado no meu presente/ Um sol bem quente lá no meu

quintal...”9, lembraria o verso da canção. E assim, o artista se faz presente, mantendo-se

contemporâneo num canto que entoa futuros. “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa

fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que

deve suturar a quebra.”10

A forte imagem do filósofo Giorgio Agamben nos serve bem

para nos expressarmos a respeito de nossa contemplação do emaranhado de linhas

temporais tramadas na música de Milton Nascimento. Ali, o cantor-compositor também

é o narrador. Através de seu discurso poético-musical, Milton ainda se avizinha do

historiador. No entanto, sua história também se comunica através de ambientes e climas

arquitetados nas dobras de sons e palavras, no gosto inexato das subjetividades. Fica aí

uma rota que a própria história precisa tomar com maior coragem, na plena convicção

de que as subjetividades também enriquecem nossas percepções sobre tempos e lugares,

além de proporcionar nova cor à linguagem acadêmica.

Nesse trabalho, ouvir uma canção, muitas vezes, foi deixar-nos levar por uma

linha que nos impactou, tecê-la com memórias colhidas em depoimentos e entrevistas,

escavar solos para sabermos e nos envolvermos mais e mais. Nesse gesto, que se

distancia da simples e ingênua decifração, nos ambientamos no território de Milton

Nascimento. O artista acostumado a nos surpreender nas curvas de sons e palavras

9 Bola de meia, bola de gude (Milton Nascimento/Fernando Brant).

10 Giorgio Agamben. “O que é ser contemporâneo?” In: O que é ser contemporâneo? e outros ensaios.

Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 61.

361

desenvolveu olhar descansado, aquele que demora na paisagem observada,

possibilitando assim a captura e aplicação de minuciosos detalhes. Nessa dinâmica, sua

linguagem é confeccionada num jogo de revelações e ocultamentos. De repente, o que

se apreende numa paisagem abre caminhos para outras viagens. A música de Milton

Nascimento, que nos inspirou a tantas travessias, cria lugar para suspensões e mistérios.

Nessa perspectiva, somos também chamados a exercitar nosso olhar contemplativo, a

criarmos passagens para países imaginados, aqueles que habitam sonhos e se plantam

no coração. Através dessa atitude, deixa-se, novamente, brotar a liberdade que Milton

exerce e transmite, inventando na sua música a metáfora da casa aberta, lugar acolhedor

a quem mais chegar.

362

CORPUS DOCUMENTAL

Entrevistas

Novelli – realizada no Rio de Janeiro (10/12/2010)

Milton Nascimento – realizada no Rio de Janeiro (17/07/2012)

Simone Guimarães – realizada em Brasília (15/02/2013)

Fernando Brant – realizada em Belo Horizonte (13/03/2013)

Zim da Sá Ana – realizada em Virgolândia (29/07/2013)

Jornais e revistas

Folha de S. Paulo

Marcus Vinicius. “Milton, milagre de peixes e de música”. (19/09/1973)

Carlos Calado. “Milton faz show ecológico no parque Ibirapuera”. (20/10/1990)

André Barcinski. “Milton quer fazer ‘Graceland” para os índios”. (21/02/1991)

Entrevista de Milton Nascimento a Luis Antònio Giron. “Milton chega ao primeiro

lugar na ‘Billboard’.” (17/05/1991)

Paul Simon e David Byrne. “Milton lota o Royal Festival Hall de Londres”.

(26/06/1991)

Entrevista de Milton Nascimento a Sérgio Augusto. “Milton renasce como um anjo das

Gerais” (10/11/1993)

“Milton lança ‘Angelus’ com show no Olympia”. (02/12/1993)

Luiz Antônio Ryff. “Milton retorna a suas origens em Minas”. (16/07/1997)

________. “MST lança disco com a participação de convidados”. (23/07/1998)

Entrevista de Milton Nascimento a Fábio Schivartche. “Músico aponta momento feliz”.

(17/02/1998)

Entrevista de Milton Nascimento a Leandro Fortino. “Milton Nascimento leva tambores

a MG”. (08/07/1998)

“Milton reencontra Tom Jobim”. (06/03/2008)

363

Marcus Preto. “Águas de Milton”. (04/01/2010)

________. “O novo clube do Milton”. (08/09/2010)

Jornal da Tarde

Entrevista de Milton Nascimento a Eric Nepomuceno. “Solitário, inquieto, angustiado.

Milton Nascimento.” (17/11/1972)

Seção k/Skrobo. (14/07/1999)

Jornal do Brasil

Tárik de Souza. “Toninho Horta”. (11/06/1976)

________. “‘Angelus’ das Gerais”. (09/11/1993)

José Ramos Tinhorão. “O engano de “Milton” é pensar que é brasileiro.” (27/08/1977)

Marília Martins. “Milton Nascimento está pronto para o Grammy.” (12/01/1992)

Entrevista de Milton Nascimento a Tárik de Souza. “Milton agora é do mundo”.

(10/11/1993)

Caetano Veloso. “Caetano escreve sobre Bituca.” (27/11/1993)

Roselena Nicolau. “Milton amplia o time”. (18/12/1993)

Entrevista de Milton Nascimento a Fernando Brant. “De bem com a vida e com o

trabalho”. (22/06/1997)

André Luiz Barros. “O milagre do Nascimento”. (28/05/1997)

Lena Frias. “PhDs em percussão”. (20/08/1997)

________. “Acrobacia radical da voz das Gerais”. (21/08/1997)

Entrevista de Milton Nascimento à Lena Frias e Regina Zappa. (05/03/1998)

Gustavo Autran. “Saudades Gerais”. (22/08 a 28/08/1998)

Heloisa Tolipan. “Troca de gentileza”. Jornal do Brasil (08/03/2008)

Entrevista de Milton Nascimento a Clara Passi, Marco Antonio Barbosa e Mario

Marques. “Acham que sou quietinho, mas não sou”. (16/03/2008)

“Saideira à francesa”. (15/05/2008)

Entrevista de Milton Nascimento a Leandro Souto Maior. “Nada será como antes para

Milton Nascimento”. (26/04/2009)

364

O Estado de S. Paulo

Sonia Nolasco. “Milton ganha o mundo e festeja na neve”. (06/12/1991)

“Gabriel e Jon Anderson estão no álbum de Milton”. (10/11/1993)

Entrevista de Milton Nascimento a J. Paulo da Silva e à Roberta Jansen. “Todos pensam

que sou um bicho”. (07/09/1996)

Flávia Guerra. “Os Tons de Milton”. (06/03/2008)

Roberta Pannafort. “Travessia por sete clássicos de Milton”. (06/05/2009)

Entrevista de Wayne Shorter a Jotabê Medeiros. “Na cabeça de Wayne”. (13/05/2011)

Entrevista de Esperanza Spalding a Milton Nascimento. “Esperanza e a descoberta do

Brasil”. (06/06/2013)

Milton Nascimento. “Uma força do outro mundo”. (27/04/2014)

O Globo

“Querem que Milton seja herói. Ele não. Prefere a margem, a sombra, a música”.

(26/12/1975)

“Milton da aula na UCLA durante turnê pelos EUA”. (07/10/92)

Mauro Ferreira. “O fim da travessia”. (11/05/1993)

________. “Um canto emocionado de fênix”. (19/07/1997)

Entrevista de Milton Nascimento. “Quero retomar o caminho dos palcos”. (28/05/1997)

Eros Ramos de Almeida. “Milton volta às origens em espetáculo barroco”. (22/08/1997)

Antonio Carlos Miguel. “Milton emociona a platéia na estréia de Tambores de Minas”.

(23/08/1997)

João Pimentel. “Milton e irmãos Belmondo criam a Paris-Minas, uma estrada natural”.

(26/04/2009)

Leonardo Lichote. “Reflexão sobre o tempo: Milton Nascimento grava disco com

jovens músicos de Três Pontas, onde cresceu”. (01/11/2010)

Correio Braziliense

Ailton Magioli. “Só a canção constrói”. (06/01/2008)

Pedro Brant. “Cavalheiro do jazz”. (01/06/2010)

365

Teresa Albuquerque. “Depois de 8 anos, Milton Nascimento lança álbum ...E a gente

sonhando”. (07/11/2010)

Entrevista de Clodo Ferreira a Irlam da Rocha Lima e Severino Francisco. “Cantador de

Brasília”. (13/05/2012)

Entrevista de Fernando Brant a Irlam da Rocha Lima, José Carlos Vieira e Severino

Francisco. (20/05/2012)

Estado de Minas

Ailton Magioli. “Todo esse jazz”. (28/05/2009)

Jornal Metro Brasília

Entrevista de Milton Nascimento à Nana Queiros. (14/06/2012)

Veja

Tárik de Souza. “Sem palavras. Milagre dos Peixes, com Milton Nascimento; LP Odeon

(12370)”. (11/07/1973)

José Márcio Penido. “Carne e espírito”. (07/04/1976)

Entrevista de Milton Nascimento à Regina Echeverria e Tárik de Souza. “É preciso

gritar”. (01/11/1978)

Regina Echeverria e Lucila Camargo. “Uma longa travessia”. (01/11/78)

Revista Palavra

Márcio Borges. “Bituca no bailão de réveillon 2000”. Nº2 (maio de 1999)

Regina Porto. “Gigante (musical) pela própria natureza”. Nº 11 (março de 2000)

Revista Imprensa

Entrevista de Milton Nascimento à Thaís Naldoni. Ano 20 - Nº 220 (janeiro/fevereiro de

2007)

Revista Raiz

Afonso Capelas Jr. “As donas da história”. Disponível em:

http://revistaraiz.uol.com.br/portal/index.php?Itemid=96&id=82&option=com_content

&task=view

366

Revista Brasileiros

Entrevista de Milton Nascimento a Marcelo Pinheiro. “Nos bailes da vida”. Nº 75

(outubro de 2013)

Revista Bravo!

Entrevista de Milton Nascimento à Maria Dolores Pires do Rio Duarte. “Só faltou o

Miles Davis.” (dezembro de 2007)

Entrevista de Sonny Rollins a José Flávio Júnior. “É bem difícil ser uma lenda viva”.

(outubro de 2008)

Discografia

Milton Nascimento

Barulho de trem – Conjunto Holiday – 1964 (Dex Discos do Brasil)

Milton Nascimento – 1967 (Codil)

Courage – 1969 (CTI)

Milton Nascimento – 1969 (Odeon)

Milton – 1970 (Odeon)

Clube da Esquina – 1972 (EMI/Odeon)

Milagre dos peixes – 1973 (EMI/Odeon)

Milagre dos peixes ao vivo – 1974 (EMI/Odeon)

Minas – 1975 (EMI/Odeon)

Native Dancer – Wayne Shoter Featuring Milton Nascimento – 1975 (EMI cedido pela

CBS)

Milton – 1976 (EMI/Odeon)

Geraes – 1976 (EMI/Odeon)

Clube da Esquina nº2 – 1978 (EMI/Odeon)

Journey to Dawm – 1979 (A&M Records)

Sentinela – 1980 (Ariola)

Caçador de mim – 1981 (Barclay)

Änïmä – 1982 (Ariola)

Missa dos Quilombos – Milton Nascimento, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra – 1982

(Ariola)

367

Milton Nascimento ao vivo – 1983 (Barclay)

Encontros e despedidas – 1985 (Barclay/Polygram)

Corazón Americano – Milton Nascimento, Mercedes Sosa y León Gieco – 1986

(Polygram)

A barca dos amantes – 1986 (Barclay/Polygram)

Milton Nascimento e RPM – 1987 (EPIC/CBS)

Yauaretê – 1987 (CBS)

Miltons – 1988 (CBS)

Txai – 1990 (CBS)

O Planeta Blue na estrada do sol – 1991 (CBS/Sony)

Angelus –1993 (Warner)

Amigo – 1995 (Warner)

Nascimento – 1997 (Warner)

Os Tambores de Minas – 1998 (Warner)

Crooner – 1999 (Warner)

Gil & Milton – 2000 (Warner)

Trilhas de balé – Maria, Maria e Último Trem –2002 (Nascimento música)

Pietá – 2002 (Warner)

Novas Bossas – Milton Nascimento e Jobim Trio – 2008 (Nascimento/ EMI)

Milton Nascimento & Belmondo – 2009 (Biscoito Fino)

...E a gente Sonhando – 2010 (Nascimento música/ EMI)

Uma travessia – 2013 (Nascimento música/ Universal music/Canal Brasil/MP,B discos)

Outros álbuns:

Simone Guimarães. Clarice. Prod. independente. Lançado em 2013.

Consuelo de Paula. Samba, seresta e baião. Prod. Independente. Lançado em 1998.

Marina Machado. Baile das pulgas. Prod. Independente. Lançado em 1999.

Elis Regina. Elis. CBD –Phonogram/Philips, 1977.

368

Videografia utilizada

Milton Nascimento Especial. Rede Globo, apresentado em 1981. (Programa de Augusto

Cesar Vannucci)

Entrevista de Milton Nascimento ao Programa Bar academia, TV Manchete, 1984.

Apresentado por Walmor Chagas, a entrevista foi realizada por Sérgio Cabral, Renato

Sérgio e Geraldo Carneiro.

Milton Nascimento: A sede do Peixe. Dirigido por Carolina Jabor e Lula Buarque de

Hollanda. Conspirações filmes/Tribo Produções/Nascimento Música/ HBO Brasil,

1997. Lançado em DVD em 2003.

Milton Nascimento: Tambores de Minas. Gravado em 1998 e lançado em DVD em

2003/Warner e Nascimento.

Pietá por Milton Nascimento. Vídeo de divulgação dirigido por Bernardo Palmeiro e

realizado pela Fuzo Produções. É um produto da Warner Music, Tribo Produções e

Nascimento. Disponível no sítio: www.youtube.com

Elis Regina. MPB Especial – Programa Ensaio. Produzido pela TV Cultura em 1973 e

lançado em DVD em 2004.

Elis Regina Carvalho Costa. Programa especial de 1980. Programa dirigido por Daniel

Filho. Série Grandes Nomes. TRAMA, Som Livre, Globo Marcas DVD e Lereby.

Lançado em DVD em 2005.

Ser Minas tão Gerais. Protagonizado por Milton Nascimento, Meninos de Araçuaí e

Ponto de Partida. DVD de 2004.

Panair do Brasil. Documentário dirigido por Marco Altberg e lançado em 2007.

Vídeo de divulgação, apresentação de ...E a gente sonhando. Disponível no canal do

artista no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=EHbWrjfpBlw

A música audaz de Toninho Horta. Documentário de Fernando Libânio, lançado em

2011.

Milton Nascimento &Wagner Tiso. Programa Ensaio. TV Cultura (1995). Lançado em

2011 pela Warner.

Outras fontes

Entrevista de Lionel e Stéphane Belmondo a Jacques Prouvost. “Lionel et Stéphane

Belmondo”. Citizen jazz (28/05/2008). Disponível em www.citizenjazz.com

369

Denis Desassis. “Belmondo & Milton Nascimento”. Citizen jazz. (23/06/2008).

Disponível em: www.citizenjazz.com.

“Milton Nascimento ganha nome guarani em batismo durante show na Praça do Rádio”.

Disponível em: http://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=85064

Festival Música do Mundo reúne Milton Nascimento, Pablo Milanés e Mallu Magalhães

em Três Pontas (MG). UOL Música. (09/09/2010). Disponível em:

http://musica.uol.com.br/ultnot/2010/09/09/festival-musica-do-mundo-reune-milton-

nascimento-pablo-milanes-e-mallu-magalhaes-em-tres-pontas-mg.jhtm

Sites consultados

http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/10/manicomio-de-barbacena-foi-palco-de-

maus-tratos-torturas-e-mortes.html)

http://www.miltonnascimento.com.br/

www.citizenjazz.com

Acervo Digital Tom Jobim (http://portal.jobim.org)

Referências das Imagens

Capitulo 1

Figura 1 – Milton e Fernando Brant no II FIC. Retirada do encarte do álbum Travessia,

lançado pela Dubas em 2002. Trata-se daquele primeiro disco Milton Nascimento,

originalmente lançado pela codil em 1967.

Figura 2 – Capa do álbum Crooner, 1999. Capa: Rico Lins. Foto: Cafi.

Figura 3 – Foto: Cafi. Encarte do álbum Crooner, 1999.

Figura 4 – Foto: Cafi. Revista Palavra, nº 2 (maio de 1999). Márcio Borges. “Bituca no

bailão de réveillon 2000”.

Figuras 5 e 6 – álbum Pietà, 2002 – Fotografias: Miguel Aun. Direção de arte: Cristina

Portella.

Figuras 7, 8, 9 – álbum Milagre dos peixes. Fotografias: Neguchi e Ronaldo Cientista

Figuras 10, 11, 12, 13, 14. Material de divulgação do espetáculo Ser Minas tão Gerais.

Capítulo 2

Figuras 1, 4, 5 – Fotos da capa, contracapa e nuvem: Cafi. Internas: Cafi e Juvenal

Pereira. Álbum Clube da Esquina, 1972.

370

Figura 2 – Desenho: Milton Nascimento. Foto: Cafi. Capa do álbum Geraes, 1976.

Figura 3 – Arte da capa: Milton Sobreiro. Álbum Clarice, de Simone Guimarães, 2013.

Capítulo 3

Figura 1 – Capa: Geraldo Leite e Márcio Ferreira. Álbum Angelus, 1993.

Figura 2 – “Milton/Céu”: Tom Tavee. Imagem do encarte de Angelus, 1993.

Figura 3 – Paisagem de Minas: Guignard. Imagem do encarte de Angelus, 1993.

Figura 4 – Palco-oratório. Foto: SESI. Acervo Tom Jobim. 1998.

Figura 5 – Guerreiro da canção. Foto: Maristela Martins. Acervo Tom Jobim. 1998.

Figura 6 – Segundo Ato. Foto: SESI. Acervo Tom Jobim. 1998.

Figura 7 – Chuva de Olhos. Foto: Arquivo Nascimento Música. Acervo Tom Jobim.

1998.

Figura 8 – Capa. Foto: Vânia Toledo. Álbum Nascimento, 1997.

Figura 9 – “Como se fosse brincadeira de roda...” Foto: Mila Maluhy. Acervo Tom

Jobim. 1998.

Capítulo 4

Figura 1 e 2 – Capa e contracapa. Foto e arte gráfica: Yann Orhan. Álbum Milton

Nascimento & Belmondo. 2008.

Figura 3 – Milton e irmãos Belmondo no estúdio. Foto: Paola Romani. Libreto do

álbum Milton Nascimento & Belmondo. 2008.

Figura 4 – Capa. Desenho: Elizabeth Jobim. Projeto gráfico: Elieanne Canetti Jobim.

Álbum Novas Nossas. 2008.

Figura 5 – Milton e Jobim Trio. Foto: Leonardo Aversa. (Antônio Carlos Miguel.

“Velhos amigos passeiam por eternas canções”. O Globo. 09/03/2008)

Figuras 6, 7, 8 são da capa e libreto do disco ...E a gente sonhando (2010), que teve

direção de arte de Milton Lima e fotografia de Vanusa Campos e Thiago Nascimento.

371

BIBLIOGRAFIA

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Argos, 2009.

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2012.

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