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MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: POLÍTICA, MEMÓRIA, TESTEMUNHO, E A LITERATURA DE AUGUSTO BOAL Mariana De-Lazzari Gomes Rio de Janeiro Agosto de 2018

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MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO:

POLÍTICA, MEMÓRIA, TESTEMUNHO, E A LITERATURA DE AUGUSTO BOAL

Mariana De-Lazzari Gomes

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

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MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO:

POLÍTICA, MEMÓRIA, TESTEMUNHO E A LITERATURA DE AUGUSTO BOAL

Mariana De-Lazzari Gomes

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Doutor

em Ciência da Literatura (Literatura

Comparada)

Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto

Nogueira Alves

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

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Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro: política, memória, testemunho e a

literatura de Augusto Boal

Mariana De-Lazzari Gomes

Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do

Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)

Aprovada por:

______________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves

______________________________________________________

Prof. Doutora Priscila Saemi Matsunaga - UFRJ

_______________________________________________________

Prof. Doutora Flávia Trocoli - UFRJ

_______________________________________________________

Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus - UFRJ

_______________________________________________________

Prof. Doutor José Víctor Regadas Luiz - FIOCRUZ

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

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Não existe revolução sem cronista, assim como não existe cronista sem história. Faço

história pelo viés da memória e do afeto.

Sílvio Tendler.

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À Anna, para que eu possa ajudar a escrever sua vida e a vivê-la.

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AGRADECIMENTOS

E compreendo melhor por que é que tive há

pouco tantas dificuldades em começar. Sei agora

qual é a voz que eu gostaria que me precedesse,

que me conduzisse, que me convidasse a falar e

que se alojasse no meu próprio discurso. Sei o

que é que havia de temível em tomar a palavra,

dado que o fazia neste lugar, onde o escutei, e

onde ele já não está para me escutar.

Michel Foucault, em A ordem do discurso.

Em sua lição inaugural no Collège de France, Foucault assume sua dificuldade de

tomar a palavra no mesmo espaço onde aprendeu com seu professor, Jean Hyppolite, que

já não mais estava lá.

Assim como fez Foucault, desejei que a voz do Boal me precedesse, me conduzisse

e que se alojasse em meu discurso, porque ele, também, já não está aqui para me ouvir.

Tentei. Se consegui, não sei. Ainda assim, a filha da costureira agradece ao filho do

padeiro a oportunidade de me libertar para exercer um pensamento político-ideológico-

intelectual em um cenário também político-ideológico-intelectual de tantos retrocessos

como se encontra o Brasil de 2018.

Além da de Boal, outras vozes me precederam, alojaram-se no meu discurso, me

acompanham e me conduzem:

Meus pais, irmãos e irmã, tias Neusa e Tereza, primas Fernanda e

Marcela: cada um a seu modo, contribuiu para que eu aprendesse a defender minhas ideias.

Quebraram – e quebram! – a minha velha carcaça de 44 anos da mais genuína teimosia.

Amigas, Maria Rita, Cínthia e Carla: acalorados debates tanto na

esfera privada quanto na acadêmica.

Ronaldo, amante-amigo à moda antiga, que refuta quase todos os

meus argumentos e mantém o equilíbrio nos momentos de tensão radical.

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Luís Alberto, carinhosamente apelidado por mim de LA, orientador,

a quem atribuo os melhores diálogos político-ideológicos-artísticos dos últimos tempos e a

quem devo eterna gratidão por ter assumido o desafio de me orientar já na metade do

processo de doutoramento.

Eduardo Mattos Portella, orientador inicial, que apostou em mim:

generosidade sem tamanho, mesmo diante das nossas diferentes linhas de pensamento.

Sirlei Dudalski, orientadora no mestrado, que me apresentou a

Poética do Oprimido e fez valer a pena mudar de projeto.

Cecília Thumin Boal, cuja disponibilidade para ser entrevistada foi

decisiva e essencial para a elaboração desta tese.

No mais, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (CAPES), pelo auxílio financeiro a esta pesquisa, e ao Programa de Pós-

graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que me

recebeu e me proporcionou concluir este trabalho.

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RESUMO

MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: POLÍTICA, MEMÓRIA,

TESTEMUNHO E A LITERATURA DE AUGUSTO BOAL

Mariana De-Lazzari Gomes

Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

Esta pesquisa aborda, sob a perspectiva do testemunho e da memória, a literatura de

Augusto Boal, cujo recorte se centra nas experiências de violências oriundas do golpe

civil-militar brasileiro de 1964. Considerou-se, portanto, que sua práxis fez frutificar uma

vasta produção política, teórica e artística que abre caminho para refletir sobre a realidade

brasileira em suas mais profundas contradições sociais, políticas e ideológicas. O trabalho

tem como foco principal as análises da obra Milagre no Brasil – testemunho - e dos

capítulos finais de Hamlet e o filho do padeiro – memórias -, no que diz respeito a traçar a

trajetória do artista Boal e de suas experiências de violências. Nesse contexto, a discussão

encontra solo firme no terreno da História e coloca Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do

padeiro como obras fundamentais para a depuração de um movimento estético-político,

permitindo questionar por que a arte de resistência tornou-se, hoje, um legado

memorialístico destituído do projeto político que a motivou, bem como pode lançar luz a

futuras pesquisas que possam avançar nas mediações necessárias para problematizar as

coincidências entre os sucessivos golpes políticos desferidos contra a sociedade brasileira.

Palavras-chave: Augusto Boal, Política, Testemunho, Memória, Literatura.

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

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ABSTRACT

MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: POLITICS, MEMORY,

TESTEMONY AND THE LITERATURE OF AUGUSTO BOAL

Mariana De-Lazzari Gomes

Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

This research deals with the literature of Augusto Boal, under the perspective of

memory and testemony, posessing a focus point that centers around the violence originated

from the Brazilian military coup of 1964. Considering, therefore, his práxis as a spawning

factor for a vast production of political, theoretical and artistical productions that opened

paths of reflection about Brazilian reality in its most deep and striking social, political and

ideological contradictions. The research has as a main focus the analysis of the work

Milagre no Brasil – testemony – and the final chapters of Hamlet e o filho do padeiro –

memories –, regarding Boal’s trajectory and his experiences with violence. In such context

the discussion finds firm ground on the terrain of history and sets Milagre no Brasil and

Hamlet e o filho do padeiro as fundamental works in order to depuration of an aesthetic-

political movement, enabling questions with regards as to why art, as a resistence practice,

became today a memorialistic legacy destitute of the political project that was once its

original motivation, as well can to illuminate future research that might advance at the

necessary mediations to discuss the similarities between the successive brandished political

coups against Brazilian society.

Keywords: Augusto Boal, Politics, Testemony, Memory, Literature.

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

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RESUMEN

MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: POLITICA, MEMORIA,

TESTEMONIO Y LITERATURA DE AUGUSTO BOAL

Mariana De-Lazzari Gomes

Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves

Resumen da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

Esta investigación aborda, desde la perspectiva del testimonio y de la memoria, la

literatura de Augusto Boal, cuyo recorte se centra en las experiencias de violencias

oriundas del golpe civil-militar brasileño de 1964. Se consideró, por lo tanto, que su praxis

hizo fructificar una vasta producción política, teórica y artística que abre el camino para

reflexionar sobre la realidad brasileña en sus más profundas contradicciones sociales,

políticas e ideológicas. El trabajo tiene como foco principal los análisis de la obra Milagre

no Brasil - testimonio - y de los capítulos finales de Hamlet e o filho do padeiro -

memorias -, en lo que se refiere a trazar la trayectoria del artista Boal y de sus experiencias

de violencias. En ese contexto, la discusión encuentra suelo firme en el terreno de la

Historia y coloca a Milagro en Brasil y Hamlet y al hijo del panadero como obras

fundamentales para depurar un movimiento estético político, que permite cuestionar por

qué el arte de resistencia se ha convertido hoy en un legado memorialístico destituido del

proyecto político que la motivó, así como puede arrojar luz a futuras investigaciones que

puedan avanzar en las mediaciones necesarias para problematizar las coincidencias entre

los sucesivos golpes políticos desechados contra la sociedad brasileña.

Palabras clave: Augusto Boal, Política, Testimonio, Memoria, Literatura.

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

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LISTA DE SIGLAS

AI-5 – Ato Institucional Número 5

ALN – Aliança Libertadora Nacional

CIE – Centro de Intervenções do Exército

CNV – Comissão Nacional da Verdade

CPC – Centro Popular de Cultura

DEOPS – Departamento Estadual de Ordem Política e Social

DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa

Interna

EAD – Escola de Arte Dramática

OBAN – Operação Bandeirantes

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PC do B – Partido Comunista do Brasil

PT – Partido dos Trabalhadores

SIAN – Sistema de Informação do Arquivo Nacional

SNI – Serviço Nacional de Informações

TBC – Teatro Brasileiro de Comédia

TO – Teatro do Oprimido

TPE – Teatro Paulista do Estudante

UNE – União Nacional dos Estudantes

VPR – Vanguarda Popular Revolucionária

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 15

1.1 Pressupostos iniciais 18

2 POLÍTICA E CULTURA 24

2.1 Cultura e condições materiais de existência 24

2.2 Política, cultura e resistência 28

3 MILAGRE NO BRASIL: PARA NÃO ESQUECER DE LEMBRAR 47

3.1 O estatuto do testemunho 47

3.2 Ele ia para casa comer milanesas... 55

3.2.1 Ato I - O incomunicável 57

3.2.1.1 Cena I 57

3.2.1.2 Cena II 59

3.2.1.3 Cena III 63

3.2.1.4 Cena IV 64

3.2.1.5 Cena V 67

3.2.1.6 Cena VI 68

3.2.2 Ato II – O incomunicável comunicável 70

3.2.2.1 Cena I 70

3.2.2.2 Cena II 73

3.2.3 Ato III – Eu queria dizer alguma coisa que não fosse triste 77

3.2.3.1 Cena final 77

4 HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: PARA LEMBRAR DE NÃO ESQUECER 82

4.1 O estatuto da memória 82

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4.2 Memórias imaginadas? 84

4.2.1 Sobre Kafka e milanesas 87

4.3 Estrangeiro para si mesmo 92

CONSIDERAÇÕES FINAIS 108

REFERÊNCIAS 112

APÊNDICE 119

ANEXOS 123

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São criminosos os fabricantes irresponsáveis de

comedietas idiotas que, segundo a publicidade,

“até parecem italianas”. Estes são criminosos e

não são artistas porque arte é sempre

manifestação sensorial da verdade e não estará

dizendo a verdade o artista que constantemente

ignore a guerra de genocídio no Vietnã, ignore o

lento assassinato pela fome de milhões de

brasileiros no Norte, no Sul, no Centro, no

Nordeste e no Centroeste – Estas são verdades

nacionais e humanas que nenhuma mensagem

presidencial, por mais esperta que seja, fará

esquecer.

Augusto Boal, Que pensa você da arte de

esquerda?, 1968.

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1 INTRODUÇÃO

Você é um artista engajado? Eu falei: não, eu

sou um cidadão engajado. Como eu sou um

cidadão engajado, é claro que, como artista, a

minha arte não vai ser etérea, então eu tenho que

trabalhar e pensar na realidade na qual eu vivo.

Eu acho que todo mundo tem que ser engajado,

todo cidadão que vive em sociedade. Eu sempre

digo que viver em sociedade não é andar por aí.

Isso é vegetar em sociedade. Eu acho que o

verdadeiro cidadão não é o que vive em

sociedade, é aquele que transforma a sociedade.

Augusto Boal.

O Humanismo, a necessidade da arte e a coragem para enfrentar as revoluções

marcaram as gerações do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, artistas,

guerrilheiros e revolucionários se pautaram na mobilização social e cultural. Diversos

intelectuais europeus manifestaram seu apoio e simpatia pela dinâmica dos movimentos de

independência dos países do chamado Terceiro Mundo.

No Brasil do final dos anos 50 e início da década de 60, música, cinema, literatura,

teatro e movimentos sociais foram conquistados por essa dinâmica e pela necessidade de

uma cultura nacional. Abriu-se um campo efervescente para se debater o modo como a

cultura brasileira era idealizada. O debate era embasado na idealização de uma cultura

nacional e popular, segundo a qual caberia a todas as manifestações artísticas resgatar o

povo brasileiro das garras do imperialismo norte-americano e do capitalismo. O ensaio

Cultura e política, 1964-1969, de Roberto Schwarz, registra as condições históricas que

gestaram essa discussão:

O aliado principal do imperialismo e, portanto, o inimigo principal da esquerda,

seriam os aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio,

contra o qual deveria erguer-se o povo, composto por todos aqueles interessados

no progresso do país (SCHWARZ, 1978, p. 13).

Novos atores entram na cena política: os camponeses. A batalha pela reforma

agrária ganha contornos artísticos em canção, prosa, verso, telões e dramaturgia. Para que

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aflorasse essa cultura nacional-popular, era necessário levar a arte até o povo. Importa

destacar que a ideia do nacional-popular tinha estreito vínculo com as proposições do

Partido Comunista Brasileiro (PCB) e era entendida como uma tomada de consciência

revolucionária, de acordo com o que ressalta Ferreira Gullar, em Cultura popular (1980):

A cultura popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade brasileira.

Cultura popular é compreender que o analfabetismo, como o da deficiência de

vagas nas Universidades, não está desligado da condição de miséria do

camponês, nem da dominação imperialista sobre a economia do país. Cultura

popular é compreender que as dificuldades por que passa a indústria do livro,

como a estreiteza do campo aberto às atividades intelectuais, são frutos da

deficiência do ensino e da cultura, os quais são mantidos como privilégios de

uma reduzida faixa da população. Cultura popular é compreender que não se

pode realizar cinema no Brasil, com o conteúdo que o momento histórico exige,

sem travar uma luta política contra os grupos que dominam o mercado

cinematográfico brasileiro. É compreender, em suma, que todos esses problemas

só encontrarão solução se se realizarem profundas transformações na estrutura

socioeconômica e, consequentemente, no sistema de poder. Cultura popular é,

portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária (GULLAR, 1980, p.

84).

É nesse contexto de efervescência política e cultural que entra em cena Augusto

Boal. Convidado a fazer parte do grupo do Teatro de Arena, que se caracterizava como

teatro revolucionário, Boal, de fato, revoluciona a dramaturgia, tanto no aspecto formal

quanto conteudístico. Agora, a personagem principal das peças era o trabalhador, sua vida,

suas lutas. No palco, levantavam-se questões acerca da importância do protagonismo do

proletariado. O Arena propunha não só um teatro de conscientização popular como

também lutava para oportunizar o acesso a essa estética politicamente engajada àqueles

que antes não viam possibilidades de frequentar o teatro.

Em 1964, o presidente João Goulart (Jango) sobe nos palanques das reformas

sociais e é deposto por um golpe civil-militar, que visava interromper a consciência

revolucionária político-social em curso. Uma marcha reacionária, chamada pelos golpistas

de “revolução”, se instaura no Brasil. Segundo o próprio Boal, a primeira medida da

ditadura brasileira foi interditar o setor cultural: Centro Popular de Cultura (CPC), ligas

camponesas, sindicatos, uniões estudantis e qualquer forma de diálogo:

Notícias davam conta: o exército, estacionando tanques no meio-fio; a marinha,

ancorando navios ao largo; a aeronáutica, aterrissando onde havia pista; tinham

abandonado seus deveres militares e se convertido em força policial.

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Vasculhavam, atrás de nós e do povo. Quem, alguma vez, tivesse dito coisa que

pudesse ser aparentada a pensamento assemelhado à esquerda – exemplo, a

afirmação de que comunista não comia criancinha e, caso comesse, não seria na

Praça Vermelha, em público festim! – era preso e levado para navios adaptados

ao propósito carcerário, quartéis, prisões comuns ou delegacias de bairro. Onde

houvesse porta e cadeado, aí se encerravam presos (BOAL, 2000, p. 221).

O golpe de 64 obstruiu um dos períodos maior desenvolvimento do teatro brasileiro

em sua feição estético-política, que propunha a dramaturgia enquanto decorrência de um

exame dialético da realidade, de modo que o fazer artístico pudesse intervir nessa realidade

para modificá-la. A resposta ao golpe se deu tanto pela proposta de luta armada quanto

pela representativa resistência cultural de militância política.

1968 também é um ano de luta. Em 13 de dezembro, o Ato Institucional nº 5 (AI-5)

fecha o Congresso, caça mandatos, prende, exila e censura. A frente ampla de oposição é

proibida. Era preciso derrubar a ditadura, reconquistar os direitos usurpados, reconquistar a

liberdade nas universidades e nos sindicatos, nos palcos, nas telas. De acordo com Luiz

Paixão Lima Borges (2015), o teatro, em virtude dessa feição estético-política adotada, foi

a mais perseguida das artes.

Ao longo de todo o período de obscurantismo e perseguições políticas, o teatro

procurou formas, as mais diversas, para escapulir das garras do monstro da

Censura Federal, e dizer, viva voz, o que pensava. Sem medo e sem se intimidar,

trouxe para a cena discussões profundas e fundamentais, denúncias severas e

críticas mordazes ao regime; lançou mão da metáfora e da parábola como seus

principais recursos; às vezes, situando a ação dramática em outro tempo e

espaço, ou mesmo criando situações absurdas, mostrou os desmandos cometidos

pelo regime de força. O engajamento da dramaturgia se fez sentir de maneira

clara e determinada (BORGES, 2015, p. 28).

Mesmo diante de tantas perseguições políticas, os artistas engajados acreditavam no

teatro como um instrumento que buscava apresentar e compreender o homem brasileiro e o

resultado do conflito entre suas possibilidades e necessidades. Muitos desses artistas

pagaram o preço de desafiar a ditadura com prisão, tortura e exílio, mas responderam com

suas artes, como foi o caso de Augusto Boal.

Recorrendo a essa sucinta configuração do que constituiu, politicamente, esse

processo de resistência cultural de significativa militância política, o que fica claro é que

produções artístico-literárias nas quais as temáticas se centram em narrar qualquer tipo de

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barbárie, como perseguições, torturas e genocídios em regimes autoritários, permitem

refletir sobre a importância dessas obras enquanto registros testemunhais e memorialísticos

que problematizam, na América Latina – e, sobretudo, no Brasil -, a normalização de um

passado histórico violento que acoberta as injustiças sociais.

A partir dessa breve apresentação das condições históricas que impulsionaram toda

uma ideologia estético-política, calcada no signo de uma arte coletiva e transformadora da

realidade social, apresento os pressupostos da pesquisa.

1.1 Pressupostos iniciais

Diante de uma realidade teatral ainda influenciada pela cultura europeia, Boal, após

sua entrada para o Teatro de Arena, junto a Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha,

Gianfrancesco Guarnieri e outros, buscou uma dramaturgia com fortes significados sociais,

que se aproximasse do cotidiano popular. Em meados da década de 1950, o teatro

brasileiro consegue definir as circunstâncias para desenvolver sua dramaturgia, voltada

para o debate dos problemas mais profundos do povo brasileiro.

Gestar uma proposta teatral que ultrapassasse o divertimento e fosse um meio de

análise social foi sempre o objetivo desse dramaturgo inquieto e convencido de suas

propostas. Dono uma profunda consciência marxista e arguto observador da realidade, ele

esmiuçou as contradições sociais e produziu uma obra comprometida com a luta pela

transformação social. Dessa forma, participou dos mais importantes movimentos culturais

dos anos 50 e 60, levando a eles reflexão e crítica, seja em termos de conteúdo ou de

forma. Sua práxis teatral mais conhecida é o Teatro do Oprimido (TO), cuja metodologia

foi sendo concebida durante o período em que dirigiu o Arena, passando pela censura,

prisão, tortura e exílio político.

Portanto, o projeto inicial era resgatar três peças do Boal - Torquemada, de 1971;

Tio Patinhas e a pílula, de 1974; e Murro em ponta de faca, de 1978 -, todas produzidas

em tempos de censura, tortura e exílio após o golpe civil-militar brasileiro de 64. Tomando

como fios condutores a memória e a performance, a estreita a relação entre o Boal

dramaturgo e o Boal teórico da dramaturgia, a ideia era a de mapear a importância da

articulação entre elementos estéticos e momento histórico-social, em que este momento

adquiriu relevância sobre a forma como se estruturaram essas três peças.

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No intercurso das disciplinas obrigatórias do doutorado, porém, tive um contato

mais aprofundado com os debates sobre o testemunho na literatura, que – conforme já

apontei anteriormente - problematizam, especialmente na América Latina, a normalização

de passados históricos de perseguições, torturas e genocídios em regimes autoritários.

Produções literárias cujas temáticas se centram em narrar essas barbáries são importantes

registros testemunhais e memorialísticos que permitem questionar o processo de

esquecimento em relação aos horrores praticados durante esses eventos.

Por causa do contato com o testemunho na literatura, minha memória acionou duas

obras do Boal que abordam suas violentas experiências relativas ao tempo do golpe civil-

militar de 64: Milagre no Brasil, escrito no exílio, após prisão e tortura, e publicado em

1979, e Hamlet e o filho do padeiro, de 2000, que resgata, em seus últimos capítulos, as

experiências relatadas em Milagre no Brasil. O recorte dos últimos capítulos feito em

Hamlet e o filho do padeiro é amparado pelos dois sentidos do testemunho, conforme

detalho no primeiro capítulo. Portanto, no que se refere a Hamlet e o filho do padeiro,

leiam-se os capítulos 17 a 25.

Em relação aos objetos escolhidos para a pesquisa, saliento que não se trata de

relegar a obra dramatúrgica de Boal a um segundo plano. Trata-se, antes de tudo, de trazer

à tona essas obras tão relevantes porque elas manifestam uma dimensão da sua arte que,

embora não sendo estritamente dramática, constitui-se de importantes relatos cujos

significados e alcance se articulam com sua dramaturgia e com seus posicionamentos

teóricos e políticos.

O objetivo, então, foi o de colocar esse intelectual/dramaturgo na cena da

literatura, em uma tentativa de demonstrar os caminhos que seu testemunho e suas

memórias - assim como o TO – abriram para denunciar um regime que, em sua

propaganda, “salvou” o Brasil do terror do comunismo, mas que, em seus porões, garantiu

a sobrevivência de 20 anos de um Estado ilegítimo, consolidado sob a força bruta e o

silêncio dos seus cidadãos, bem como pela tentativa de apagamento de um período

histórico que perseguiu, encarcerou, torturou, exilou e matou.

O argumento central que norteou todo o processo de elaboração da pesquisa foi a

percepção de que a produção política, teórica e artística de Boal se alarga para além do TO:

Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro são obras emblemáticas, em cujo centro a

política se evidencia, mas que, de modo algum, se dissociam nem de suas peças nem de

sua incursão pela teoria do teatro. Pelo contrário, são relatos calcados no estatuto político

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da arte e abrangem uma proximidade com os despatriados de qualquer época ou lugar,

como tantas outras deflagradas em todo o mundo e muito mais conhecidas e estudadas no

Brasil que o próprio Boal.

Sobre isso, Iná Camargo Costa, em um círculo de palestras sobre Boal, pronuncia:

Penso que ainda vamos esperar por alguns anos para definir a importância, a

estatura da obra de Augusto Boal no teatro brasileiro. O Izaías falou sobre a

surpresa dele numa livraria de Londres com o número de livros editados em

inglês sobre Boal... Eu desafio aqui a qualquer um de vocês a ir a qualquer

livraria brasileira e lá encontrarem três livros do Boal ou sobre o Boal...

(COSTA, 2012)1.

Tendo em vista a relevância do argumento, em ambas as obras, as referências para

a sua condução foram os estudos sobre o teor testemunhal e memorialístico na literatura da

América Latina – especificamente no Brasil –, cujo fio condutor das análises foram as

experiências de violências, uma vez que esse teor testemunhal da arte contemporânea se

estende a narrativas repletas de traços e rastros das experiências catastróficas do século

XX, como as guerras, os campos de concentração e, na América Latina, os regimes

militares, que perseguiram, encarceraram, torturaram e mataram.

No que diz respeito ao regime civil-militar brasileiro, esse boom da literatura de

testemunho deixa uma lacuna: na medida em que não houve uma adequada transição entre

o fim da ditadura e a chamada “abertura” política, também não houve o desenvolvimento

da democracia. Assim, a própria anistia tem sido dissociada da memória e, em virtude

disso, troca-se o reconhecimento pelo esquecimento e as práticas autoritárias, travestidas

de discurso democrático, estendem-se à literatura e mantêm marginalizadas as experiências

de violências de muitos artistas que foram presos políticos, dentre eles Augusto Boal.

Quando não, essas experiências ficam relegadas à categoria de “literatura menor” e

carregam o rótulo de “memórias ficcionais”, como foi, durante muito tempo, caracterizada

Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.

Cabe ressaltar que não foi crucial para a pesquisa uma abordagem teórica sobre os

gêneros aos quais se filiam essas duas obras. A rigor, seu andamento é movido não pelas

1 Esse círculo de palestras ocorreu entre os dias 19 e 22 de junho de 2012, no Teatro Studio 184, em São

Paulo, organizado por Izaías Almada. As transcrições das palestras, bem como de entrevistas, inclusive

realizados com o próprio Boal, encontram-se no livro Teatro de Arena: Uma estética de resistência,

publicado em 2004.

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tipologias correntes e externas a elas, pois, no caso do Boal, o essencial está na

experiência, isto é, na práxis. É por meio da práxis que Milagre no Brasil e Hamlet e o

filho do padeiro vão adquirindo sentido, bem como definindo sua importância. Assim,

observando a trajetória do artista Boal, a questão se desloca do abstrato para o terreno

concreto da história, o que confere relevância à discussão e convida ao debate.

As experiências de violências, desse modo, permeiam nossa identidade nacional e,

na esteira dessa discussão, os estudos sobre as literaturas que acionam a memória

promovem um recorte nessa construção ideológico-social e colocam foco nas narrativas

dessas experiências de violências, funcionando como espaço, no tempo presente, de relato

do trauma – tal como o testemunho que é Milagre no Brasil - ou mesmo como memórias

desse testemunho – presentes em Hamlet e o filho do padeiro -, o que em muito contribui

para reconstituição de parte da nossa história, qual seja, o tempo do Estado de Exceção

após o golpe civil-militar de 1964, e que têm a dizer muito mais que a historiografia dita

“oficial”.

Para esse contexto de pesquisa, em razão da análise que me propus a fazer, a

expressão poéticas políticas adquire bastante relevância, uma vez que o estético e o social

estão em uma relação de mútua subordinação, numa clara vinculação da produção artística

a uma opção político-ideológica. Em outras palavras, se a realidade social tem relevância

na composição da obra literária, também a literatura torna-se uma via para desnudar essa

realidade. Assim, além das orientações teóricas, considero também uma relação dialógica

dessas com o materialismo cultural.

O processo de elaboração da pesquisa, então, foi delineado da seguinte maneira: em

primeiro lugar, propôs-se uma discussão acerca da incontestável aproximação entre a

dimensão cultural e as condições materiais de existência, relevantes para pensar a

construção social do Brasil; a abordagem dos percursos teóricos e políticos que ampararam

as análises, englobando o panorama do golpe civil-militar de 1964 e seus impactos na

produção cultural brasileira; e a atuação de Boal nesse panorama.

No segundo momento, busquei reflexões também teóricas e políticas acerca das

narrativas que abordam as experiências de violências, na perspectiva do testemunho e da

memória.

Traçados esses caminhos teóricos e políticos, segue a análise de Milagre no Brasil -

em que Boal dá seu testemunho tanto como sobrevivente quanto como aquele que viu, que

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testemunhou e ainda como testemunha solidária, que se compromete com a experiência de

violência do outro - e de Hamlet e o filho do padeiro, na qual, ao recordar os eventos que o

levaram a escrever Milagre no Brasil, Boal lança mão de uma narrativa de teor

testemunhal, a partir da qual resgata, no tempo presente, memórias da prisão, da tortura, do

exílio e da impossibilidade de retorno.

A escolha por Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro sob a perspectiva do

testemunho e da memória permitiu identificar um entrecruzamento entre memória e

experiência histórica, em que a questão crucial, reafirmo, não se limita aos gêneros aos

quais essas duas obras se filiam, mas sim à práxis: ao analisar a trajetória do artista Boal e

suas experiências de violências, a discussão encontra solo firme no terreno da História e

coloca Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro como obras não só fundamentais

para propalar a depuração de um movimento estético-político, mas também essenciais ao

compromisso ético de reconhecer que o olhar lançado para a história não se isenta de suas

vivências posteriores.

Longe de pretender esgotar essa discussão, que encontra solo firme, mas também

fértil, o que esta tese defende é a pertinência e a atualidade de se discutir a emancipação

enquanto a violência - e suas múltiplas formas de manifestação, físicas e simbólicas -,

perdura, persiste e se transmuta. As obras de Boal, suas posições políticas - depuradas ao

longo do tempo - mostram, ao contrário do senso comum, a importância da luta pela

emancipação. Nenhum regime autoritário que persegue, tortura e mata pode ser apagado da

memória. A ditadura não pode ser tomada como algo positivado.

Em razão disso, o trabalho de pesquisa que aqui se apresenta é antes uma tentativa,

a partir do testemunho e da memória de Augusto Boal, de propor um exercício de reflexão

que abre espaço para questionar por que a arte de resistência tornou-se, hoje, um legado

memorialístico destituído do projeto político que a motivou, bem como para lançar luz,

quem sabe, a futuras pesquisas que possam avançar nas mediações necessárias para

problematizar as coincidências entre os sucessivos golpes políticos desferidos contra a

sociedade brasileira.

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Os reacionários buscam sempre, a qualquer

pretexto, dividir a esquerda. A luta que deve ser

conduzida contra eles é, às vezes, por eles

conduzida no próprio seio da esquerda. Por isso

nós – festivos sérios ou sisudos – devemos nos

precaver. Nós que, em diferentes graus

desejamos modificações radicais na arte e na

sociedade, devemos evitar que diferenças táticas

de cada grupo artístico se transformem numa

estratégia global suicida. O que os reacionários

desejam é ver a esquerda transformada em saco

de gatos; desejam que a esquerda se derrote a si

mesma. Contra isso devemos todos reagir: temos

o dever de impedi-lo.

Augusto Boal, Que pensa você da arte de

esquerda, 1968.

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2 POLÍTICA E CULTURA

2.1 Cultura e condições materiais de existência

Frente às mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais pelas quais o mundo

passa, sobretudo desde o século XIX, é importante revisitar o materialismo cultural de

Raymond Williams, proposto em Cultura y sociedad: 1780-1950. De Coleridge a Orwell

(2001)2, principalmente para uma pesquisa que busca trazer à tona o testemunho e as

memórias das experiências de violências de Augusto Boal durante o período de ditadura

civil-militar (Insisto: o olhar lançado para a história não se isenta de suas vivências

posteriores). Para a análise dos escritos dessa “sobrevivência”, torna-se imprescindível

tomar a cultura, em todas as suas nuances, como a literatura, enquanto produto e produção

de um modo de vida social intrinsecamente ligado a uma base socioeconômica:

Una hipótesis esencial en el desarrollo de la idea de cultura es la de que el arte

de un período está estrecha y necesariamente relacionado com el “modo de vida”

dominante en general, y que, en consecuencia, los juicios estéticos, morales y

sociales muestram una íntima interrelación. Esa hipótesis goza hoy de uma

aceptación tan generalizada, como cuestión de hábito intelectual, que no siempre

es fácil recordar que se trata, en esencia, de un produto do siglo XIX. Una de sus

formas más importantes es, por supuesto, la de Marx (WILLIAMS, 2001, p.

119)3.

Assim, Williams conceitua o materialismo cultural como uma necessária

aproximação entre cultura e condições materiais de existência e como uma maneira de

2 Apesar de o princípio norteador da obra ser a descoberta de que a ideia de cultura tem seu início no

pensamento inglês da Revolução Industrial, Williams, no prefácio da segunda edição, diz: já se foram mais

de 25 anos que escrevi Cultura e sociedade. Às vezes, quando o releio todo ou em parte, me parece que é

como ler um livro escrito por outro. Não obstante, foi nele onde encontrei pela primeira vez uma posição que

expressava minha ideia do que havia passado e ainda estava passando na civilização industrial e em sua arte e

em seu pensamento. Desde então desenvolvi e em ocasiões modifiquei determinados aspectos e juízos,

porém não renunciei a minha opinião de que uma das formas fundamentais de entender os dois

extraordinários séculos que mudaram tão enormemente o mundo e que subjazem a sua grande crise atual

consiste em valer-se da reflexão detalhada e completa sobre a cultura que tem sido tão atrativa e vibrante em

todas as suas etapas (WILLIAMS, 2001, p. 9, livre tradução minha). 3 Uma hipótese essencial no desenvolvimento da ideia de cultura é a de que a arte de um período está

próxima e necessariamente relacionada com o “modo de vida” dominante em geral, e que, em consequência,

os juízos estéticos, morais e sociais mostram uma íntima inter-relação. Essa hipótese goza hoje de uma

aceitação tão generalizada que nem sempre é fácil lembrar que se trata, em essência, de um produto da

história intelectual do século XIX. Uma de suas formas mais importantes é, claro, a de Marx (WILLIAMS,

2001, p. 119, tradução minha).

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resgatar o legado de Marx. Para ele, cumpre reabrir o debate acerca da importância da

emancipação dos oprimidos pela via da cultura, de acordo com a proposta da hegemonia

gramsciana. Em outras palavras, Williams discute que um sistema de produção unicamente

baseado na lei da oferta e da procura reduz os homens tão somente ao papel de mão de

obra disponível, impossibilitando o cumprimento de sua função última como ser humano4,

o que inviabiliza, por consequência, a produção cultural em comum, em virtude dos

interesses dominantes veiculados na esfera do que esses interesses entendem por “cultura”.

O desenvolvimento da palavra cultura é um registro de várias reações importantes a

grandes mudanças históricas na vida social, econômica e política. Esse desenvolvimento

mescla duas respostas: primeiro, o reconhecimento da separação prática de certas

atividades intelectuais e morais do ímpeto dirigido de um novo tipo de sociedade; em

segundo lugar, a ênfase dessas atividades, como um tribunal de apelo humano, deve ser

colocada sobre os processos de julgamento social prático, e ainda se oferecer como uma

resposta mitigadora e mobilizadora. A cultura não seria apenas uma resposta a novos

métodos de produção, mas também estaria preocupada com novos tipos de relacionamento

pessoal e social. Cultura passa a significar, então, todo um modo de vida (WILLIAMS,

2001), isto é, uma hipótese essencial no desenvolvimento da ideia de cultura é a de que a

arte de um período está intimamente e necessariamente relacionada ao modo de vida

geralmente prevalecente e, além disso, em consequência, juízos estéticos, morais e sociais

estão intimamente inter-relacionados.

No que se refere ao contexto brasileiro, as ideias de Raymond Williams foram

interpretadas, de forma muito consistente, por Maria Elisa Cevasco, em Dez lições sobre

Estudos Culturais (2008). Segundo ela, há acadêmicos que, ao se apropriarem do conceito

de Williams, se afastam da crítica desse pensador à ordem capitalista e se engajam na

lógica da mercantilização:

Está montada aí a estrutura que permitirá a disjunção de base da atuação crítica

da cultura em geral e da literária em particular: é o tribunal onde se aferem os

valores de uma sociedade, sem no entanto se imiscuir nas polêmicas e nos

conflitos que definem esses valores. Está dado o caminho que leva a um certo

conformismo militante da crítica literária: é uma instância que se auto-representa

como radical, como de oposição aos valores vigentes, mas, na medida mesma em

que se refugia na abstração, sua atuação se dá no sentido de manter o estado de

coisas a que pensa se opor (CEVASCO, 2008, p. 17).

4 Cf. WILLIAMS, 2001, p. 119.

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Ora, para Williams (2001), a literatura é uma atividade social que tem uma origem

mais do que literária, porque permeia todo o complexo de uma relação do artista com a

realidade e, mesmo que o elemento econômico seja determinante, este determina todo um

modo de vida. Portanto, é a isso, e não ao sistema econômico, que a literatura precisa estar

relacionada. O método interpretativo que é governado pela correlação arbitrária da situação

econômica e do objeto de estudo leva, muito rapidamente, tanto à abstração e à irrealidade

quanto à superação de julgamentos concretos e práticos por generalizações.

Desse modo, o conservadorismo dos anos 80 sepulta a tradição crítica da qual Boal

fez parte como um de seus principais formuladores, dialogando com uma realidade pautada

na colonização da sua sociedade e, por conseguinte, rendida à ambição da ordem

econômica mundial:

Por este lado se arma a ponte para a crítica da ideologia do presente. Em 1997

[...] já estamos em plena era de Plano Real e estabilização econômica. Reina no

país a noção de que o progresso vale todos os preços, inclusive o da enorme

fratura social que se agudiza nesses anos de modernização que conserva a

iniquidade social (CEVASCO, 2014, p. 12).

Não é de se estranhar, portanto, que a sucessão de golpes que o Brasil vem sofrendo

desde 1930, passando por 64 e culminando em 2016 repete um mesmo roteiro, motivado,

sobretudo, por uma violência simbólica exercida pelos privilegiados sobre os excluídos de

privilégios. A questão, nesse caso, é a subversão do marxismo quando esses privilegiados

disseminam discursos que negligenciam a importância das tentativas de silenciamento

comuns na formação do panorama social e político. Tais silêncios tendem a constituir uma

censura cultural que, diferentemente da censura patrocinada pelo Estado, é praticada na

ausência de coerção ou execução explícita. Essa censura cultural tende a ser constituída e

circunscrita por interesses políticos dos grupos dominantes.

Por conseguinte, as memórias de violências – físicas e/ou simbólicas – têm sido

permeadas por esses discursos, em um esforço para difundir concepções predominantes de

“honra nacional”. Sobre isso, Sérgio Buarque de Holanda, em O homem cordial, quinto

capítulo do seu livro, Raízes do Brasil (2015), sugere um paradoxo básico: certas formas

de vida e associação política trazidas da Europa Ibérica encontraram na América um

terreno muito diferente daquele em que se originaram, o que produziu a sensação de que,

no nível da cultura, nós permanecemos exilados em nossa própria terra. O seu conceito de

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“homem cordial”, interpretado por Iná Camargo Costa no ensaio Sérgio Buarque, o

“Homem Cordial” e uma crítica inepta (2018), explica essa sensação de exílio. O “homem

cordial” é o exato oposto daquele que, ao proteger sua vida privada, a considera inviolável,

escondendo todos os tormentos e segredos dentro do sagrado inescrutável espaço de seu

status como indivíduo.

O “homem cordial”, como conceito e como metáfora, retoma na leitura de Hegel de

Antígona, de Sófocles, em que se vê, no conflito entre Antígona e Creonte, um confronto

entre valores familiares e valores cívicos, entre um círculo de conhecidos e a abstração da

polis e, em resumo, entre o homem cordial e o cidadão. Esse impasse ainda não está

resolvido hoje e pode permanecer assim por muito tempo: no Brasil, o político, como

representante de grupos maiores, nem sempre é capaz de se libertar de compromissos

pessoais. Em outras palavras, o homem não cede para a persona política. Como Antígona,

quando ela foi proibida de enterrar seu irmão, o homem cordial está sempre pronto para

violar as necessidades da comunidade, permanecendo um indivíduo leal à sua família, mas

nunca um bom cidadão. Nesse trágico conflito, lido por Hegel, a lealdade à família é o

anverso da traição à polis.

A modelagem do espaço público, assim, é problemática e precária onde quer que os

valores de cordialidade prevaleçam e sempre que a ética é baseada no bem-estar de um

pequeno núcleo familiar que serve apenas a um círculo de amigos e beneficiários em

detrimento da coletividade. O “homem cordial” recusa todas as restrições, bem como todos

os mecanismos de proteção, em relação à sociedade e ao outro.

Então, não seria exagero afirmar que o “homem cordial” também é uma maneira de

dramatizar impasses políticos em um mundo dividido entre os fantasmas do totalitarismo e

os valores do liberalismo, o que possibilitou, por um lado, que artistas e intelectuais como

Boal debatessem, no período ditatorial brasileiro, a posição e o papel do indivíduo, quando

confrontado com as exigências imperiosas da coletividade e, por outro, se traduziu, no 64,

em violências físicas e violências simbólicas, mas efetivas, que isolaram e exilaram

aqueles que pactuaram com o coletivo.

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2.2 Política, cultura e resistência

Os movimentos sociais, junto às artes e a todas as atividades culturais dos anos 60 e

70, foram atingidos pela intensa contestação juvenil aos padrões políticos e de costumes

daquela época. Dentre as transformações sociais reivindicadas naquela época, a maior

parte das ações ocorreu no campo cultural e confrontava a concepção e a estruturação da

cultura brasileira. A maioria dos movimentos culturais de então estavam ligados ao Partido

Comunista Brasileiro (PCB), cuja proposta consistia em um resgate das origens do povo

brasileiro, que se encontrava sob controle do sistema capitalista, e a arte e a cultura

poderiam resgatar a genuína cultura brasileira, proporcionando a conscientização desse

sequestro intelectual e alienante do povo:

Os comunistas devem dedicar particular atenção à intelectualidade, que, em sua

grande maioria, é partidária do progresso e da emancipação nacional. A unidade

dos intelectuais de diversas tendências políticas e ideológicas pode ser alcançada

em tomo de objectivos comuns como a defesa da cultura nacional e de seu

desenvolvimento, a preservação e ampliação das liberdades democráticas, a

salvaguarda dos interesses éticos e profissionais dos intelectuais.

A unidade dos estudantes de várias tendências doutrinárias e políticas é factor

essencial para o fortalecimento das organizações estudantis universitárias e

secundárias, que constituem baluartes da frente nacionalista e democrática. A

fim de fortalecer essa unidade e ampliar o carácter de massas do movimento

estudantil, é necessário combinar a acção política com a defesa das

reivindicações específicas dos estudantes, com a luta pela solução dos problemas

culturais, económicos e sociais que afectam a juventude.

As acções unitárias de operários e estudantes em tomo de questões de interesse

geral, quer na luta anti-imperialista, quer na luta contra a carestia, etc., devem ser

estimuladas, uma vez que representam formas práticas de aliança do proletariado

com os sectores mais combativos da pequena burguesia.

Considerando o importante papel que cabe à juventude na vida social e política

do País, devem os comunistas intensificar seu trabalho entre os jovens,

organizando-os nos sindicatos, em clubes desportivos, recreativos e culturais, e

em organizações de massas, ou em entidades especificamente juvenis.

Maior atenção deve ser dedicada ao trabalho de massas entre as mulheres, que

podem ser reunidas nos mais variados tipos de organizações, especificamente

femininas ou não, para a luta em tomo de reivindicações, tais como o amparo à

criança, o combate à carestia, a abolição da desigualdade de direitos, a melhoria

das condições de vida nos bairros, etc (RESOLUÇÃO POLÍTICA DO V

CONGRESSO PCB, 1960, p. 4).

Esse documento influenciou a formulação estético-ideológica do Teatro de Arena,

que procurou adotar um pensamento estético calcado, principalmente, na expressão das

classes trabalhadoras e se orientava por três balizas fundamentais: a primeira era de que o

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Brasil não possuía representação expressiva dos trabalhadores no âmbito do teatro

nacional; a segunda era a de que, diante do cenário político no qual o país estava inserido,

o teatro tinha como dever realizar essa representação e, em terceiro lugar, acreditava que,

ao colocar em debate a exploração das classes trabalhadoras, o teatro estaria atuando como

instrumento de conscientização, buscando maneiras de intervir nesse cenário, para mudá-

lo.

Idealizado e fundado pelo dramaturgo José Renato Pécora, em 1953, o Arena se

constituiu como uma companhia de teatro popular, cujo projeto estético-ideológico foi o de

se engajar politicamente no que dizia respeito à sua avaliação da realidade brasileira, isto é,

“seu ciclo de espetáculos, entre laboratórios experimentais e processos criativos, constituiu

publicamente o seu caráter de persona teatral coletiva, em que se nota a imagem

reincidente de um sujeito-espaço assumindo posições diante da realidade brasileira

abordada” (CORDEIRO, 2015, p. 248).

O ano era 1956 e, por indicação de Sábato Magaldi, Boal assume a direção das

peças do Arena que, à época, já havia, de acordo com Mariângela Alves de Lima, no texto

História das ideias (1978), adotado uma nova proposta de espaço cênico5, diferente

daquela seguida até então pelo teatro brasileiro, embasada no palco italiano6. Nessa nova

estética, o espaço da representação passa a ocupar o centro e a colocar a cena à altura do

olhar do espectador. O espaço cênico, assim, poderia ser instalado em qualquer lugar, o

que, para uma proposta que ainda estava se delineando, significava economia de recursos.

Em virtude disso, o teatro passa a proporcionar acessibilidade a um público que antes não

tinha condições financeiras de assistir aos espetáculos.

Entretanto, não houve, na proposta inicial do Arena, um questionamento sobre as

características desse público, especialmente porque os espetáculos apresentados ainda

seguiam os moldes de outras companhias teatrais que se constituíram a partir de alicerces

muito díspares, como, por exemplo, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Segundo Luiz

Paixão Lima Borges, em dissertação intitulada O nacional e o popular na obra de

5 A sugestão para que J. Renato distribuísse as cadeiras ao redor do espaço cênico, no pequeno teatro onde

ele inaugura a sede da Companhia Teatro de Arena, foi dada pelo crítico Décio de Almeida Prado (um de

seus professores na EAD – Escola de Arte Dramática). A referência vinha de experiências teatrais de grupos

americanos da época. Estamos nos referindo ao início dos anos 1950, quando no “I Congresso de Teatro

Brasileiro”, Décio de Almeida Prado e José Renato apresentam um estudo sobre o espaço em arena, traço

arquitetônico que passa a determinar o projeto estético da companhia, além de registrar-se em seu nome,

carregado de significados para a história de nosso teatro (CORDEIRO, 2015, p. 249). 6 De acordo com o Dicionário de teatro, de Patrice Pavis (1999), o palco italiano é um tipo de palco separado

da plateia pelo fosso da orquestra e, nesse tipo de palco, a ação e os atores ficam confinados numa caixa

aberta, frontal ao olhar do público.

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Oduvaldo Vianna Filho (2015), se, por um lado, o TBC contribuiu sensivelmente para um

salto de qualidade no teatro brasileiro – sobretudo no que tange ao respeito profissional

dedicado aos artistas e técnicos, bem como ao apuro estético -, por outro ficou acomodado

unicamente no prazer estético, deixando uma lacuna no que se refere a um teatro de

identidade nacional, que se ocupasse de uma discussão sobre a realidade brasileira e

reafirmando um conceito de teatro calcado tanto estética quanto politicamente em um

modelo importado.

Finalmente, em 1956, tem início a modificação na forma de atuar. A experiência

estético-política do Teatro Paulista do Estudante (TPE), grupo amador que contava com a

participação de Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho7, o Vianninha, foi

embrionária na busca por essa identidade nacional no teatro (BORGES, 2015). Como

consequência natural de grupos que se afinavam política e ideologicamente, o TPE se

funde com o Arena e, em lugar de novos grupos de atuação cultural, o Arena passa a

investir em capacitações a partir de suas próprias experiências em teatro: José Renato

Pécora continua na Direção Geral, Boal assume o Departamento Cultural, Fausto Fuser

cuida do Departamento de Teatro Infantil e o Departamento de Publicidade fica a cargo de

Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Riva Nimitz (LIMA, 1978).

Enquanto essa nova organização se consolidava, espetáculos eram paralelamente

produzidos:

Ao mesmo tempo em que Boal ensaiava Ratos e homens, José Renato e Beatriz

de Toledo Segall orientavam um curso de treinamento inicialmente planejado

para ter a duração de dois anos no TPE. O curso deveria funcionar com um

estágio para os participantes que quisessem futuramente integrar a equipe do

Arena (LIMA, 1978, p. 4).

Desse modo, Eles não usam Black-tie surge como marco de uma proposta de

valorizar as produções nacionais e compor uma estética embasada em uma linha de

discussões sobre a realidade política brasileira a que Lima (1978) chama nacionalismo

crítico de vertente descolonial.

7 Vianninha e Guarnieri eram militantes ativos do PCB.

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Grande parte dos movimentos nacionalistas da arte brasileira emergiu de uma

espécie de complexo de colonizado. A descoberta da raiz brasileira foi uma

forma, até certo ponto, útil historicamente, que permitia ao colonizado

reconhecer-se em oposição ao colonizador. Como se as diferenças pudessem

garantir ao colonizado as dimensões assustadoramente grandiosas do colonizador

(LIMA, 1978, p. 5).

Ainda que não se atentasse especificamente a este complexo, o Arena passa a

pensar o teatro por meio das relações entre o povo e o aparato do poder político e

econômico, tomando uma posição efetiva em favor da descolonização (LIMA, 1978).

Dentro dessa perspectiva, o Arena conta com Augusto Boal para efetivar, com Revolução

na América do Sul, espetáculo que estreia em 1961, sua verdade artística calcada nos

signos de uma arte coletiva. Para Lima (1978, p. 40-41) “a definição de que tipo de cultura

estaria centralizada pelo grupo só vai tomar rumo mais nítido a partir da incorporação de

Augusto Boal”.

E é por meio dessa percepção crítica que se articula o Centro Popular de Cultura,

iniciado pela reunião de intelectuais, artistas e estudantes dispostos a debater A mais valia

vai acabar, seu Edgar, peça que Vianinha escreveu por ocasião do seu desligamento do

Arena. De caráter anti-dramático, A mais valia se propôs a uma montagem totalmente

voltada ao épico – influência do teatro de Brecht -, em que as classes sociais lutavam e,

desse modo, colocava-se em discussão a exploração do trabalho de muitos e a

concentração da riqueza nas mãos de poucos.

O objetivo era analisar em cena as questões que originavam a miséria,

procurando discutir as relações e estruturas que a tornavam crônica. Buscando

ferramentas de caráter radicalmente anti-dramático (projeções de slides, cartazes,

canções, efeitos de desnaturalização interpretativa e cenográfica, humor e

técnicas circenses e de teatro de revista), a peça procurava superar as

contradições detectadas por Vianna no trabalho dramatúrgico produzido dentro

do Arena e dos Seminários de Dramaturgia, colocando em foco não as situações

que ilustravam a crônica da miséria, mas o exame crítico das condições e

mecanismos ideológicos que a perenizavam (BETTI, 2013, p. 194).

De acordo com Marcelo Ridenti , em Ainda o romantismo revolucionário, subitem

do primeiro capítulo do seu livro Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do

CPC à era da tv (2000), uma forte influência exercida sobre o CPC foi do chamado

romantismo revolucionário. Tanto partidos de esquerda quanto alguns intelectuais também

de esquerda acreditavam que o verdadeiro representante do povo era o brasileiro oprimido

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o que poderia libertá-lo da opressão seria a arte. Essa ideia fez com que se buscasse no

homem do campo o coração do Brasil, puro e sem a contaminação capitalista.

A utopia revolucionária romântica do período valorizava acima de tudo a

vontade de transformação, a ação dos seres humanos para mudar a História, num

processo de construção do homem novo, nos termos do jovem Marx recuperados

por Che Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na

idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do

“coração do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade urbana

capitalista. (RIDENTI, 2000 p. 24).

O CPC, com a importante contribuição de Vianinha, disposto a levar a cabo um

teatro que efetivamente atingisse o proletariado, é um marco histórico de significativa

politização cultural no teatro do século XX e seu trabalho em busca de uma arte popular e

revolucionária sobrevive até 1964, ano do golpe civil-militar.

O Arena, com Boal e sua Revolução na América do Sul, também experimenta o

teatro épico brechtiano:

Eu tinha acabado de escrever o texto, influência de Brecht visível a olho nu: José

da Silva, operário exemplar, acreditava em tudo o que diziam os patrões,

televisões, jornais: passava fome a peça inteira, entrecortada de canções de

Chico de Assis, acreditando. No dia das eleições, José era cortejado por todos os

políticos, acabava comendo marmelada grátis e morrendo engasgado na primeira

garfada por falta do hábito de comer. Políticos erigiam estátua em sua

homenagem, com os consequentes discursos e pedidos de votos (BOAL, 2000, p.

174).

De acordo com Betti (2013), além do contato com Brecht, Boal e Vianinha também

utilizaram a obra Teatro Político, de Erwin Piscator, como parâmetro para a concepção

cênica de suas peças. Sendo assim, fica visível que a ideologia política tanto do Arena

quanto do CPC buscava trazer para os espetáculos os processos históricos que

determinavam os problemas e não somente a representação desses problemas.

No cinema, a crescente influência da revolução comunista gerou o movimento

Cinema Novo, que retomou o romantismo revolucionário e sagrou sua cinematografia

enquanto arte engajada. Cineastas, como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Nelson Pereira

dos Santos, Ruy Guerra e Eduardo Cotinho, dentre outros, destacam-se por trazerem para

as telas vida do proletariado e seus dramas. Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos

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Santos, Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Cabra marcado para

morrer (1964), de Eduardo Coutinho, Os fuzis (1964), de Ruy Guerra e Cinco vezes favela

(1962) de Cacá Diegues, são exemplos dessa instrumentalização política da arte.

Na música, despontaram cantores e compositores que militavam na mesma esfera

da resistência. João do Vale, Zé Keti e Nara Leão soltaram suas vozes no Show Opinião,

assinado por Vianninha, Armando Costa e Paulo Pontes e dirigido por Boal. A canção

Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, tornou-se o sinônimo do

protestos nas passeatas do movimento estudantil. Roda viva, de Chico Buarque, marca a

estreia do cantor como dramaturgo, em espetáculo de título homônimo, sob a direção de

José Celso Martinez Corrêa. Também de Chico Buarque, em parceria com Francis Hime,

Meu caro amigo, carta-canção escrita para Boal quando este já se encontrava no exílio,

manda notícias de um Brasil onde “a coisa ainda tava preta”. Soy loco por ti America,

composta por Gilberto Gil e Capinan, e interpretada por Caetano Veloso, homenageava

Che Guevara. Aquele abraço, de Gilberto Gil, escrita após passar 60 dias na prisão e

gravada pouco antes de o músico se exilar, metaforiza sua insatisfação com os rumos

políticos que o Brasil tomara após o golpe.

Esses são só uns poucos exemplos de um cenário musical que veio a influenciar um

movimento quase que imediatamente posterior, do qual Caetano Veloso é considerado

expoente: o Tropicalismo que, para alguns críticos, como Roberto Schwarz, marcou o

descrédito na militância revolucionária e comprovou que a produção cultural limitava-se à

sua própria classe, nunca além8.

Retomando o teatro – a mais perseguida das artes - entre os anos de 1964 e 1968, a

liberdade de criação teatral, um dos mecanismos de livre expressão, ainda foi tolerada,

apesar do golpe civil-militar. Depois da apresentação de Roda Viva, de Chico Buarque, em

1968, explica Armando Sérgio da Silva, em seu livro Oficina: do teatro ao te-ato (1981),

8 Para não fugir ao escopo da tese, mas a título de registro, é interessante a leitura do artigo Brasilidade

encarnada: artistas da revolução (2000), de Marcelo Ridenti. O artigo propõe uma leitura do Tropicalismo

que se afasta, ao mesmo tempo em que traz algumas similaridades com a crítica de Schwarz. Segundo

Ridenti, a hipótese sugerida vai na contracorrente das ideias dominantes sobre o tropicalismo: esse

movimento traz as marcas da formação político-cultural dos anos 50 e 60; isto é, o tropicalismo não foi uma

ruptura radical com a cultura política forjada naqueles anos, apenas um de seus frutos diferenciados,

modernizador e crítico do romantismo nacional-popular, porém dentro da cultura política romântica da

época, centrada na ruptura com o subdesenvolvimento nacional e na constituição de uma identidade do povo

brasileiro, com o qual artistas e intelectuais deveriam estar intimamente ligados. Ao encerrar o ciclo

participante, o tropicalismo já indicava os desdobramentos do império da indústria cultural na sociedade

brasileira, que transformaria a promessa de socialização em massificação da cultura, inclusive incorporando

desfiguradamente aspectos dos movimentos culturais contestadores dos anos 60, como o tropicalismo e o

nacional-popular (RIDENTI, 2000, p. 2).

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que Roda Viva era discutida em todos os lugares. Até mesmo os políticos se preocupavam

em discutir esse espetáculo na Assembleia Legislativa. Ainda que temerosa, boa parte da

população vencia o medo e lotava a plateia. Os atores de teatro passaram de artistas a

corruptores da sociedade brasileira. Proibida pela censura e, ainda assim, desafiadora,

Roda Viva sobreviveu inclusive ao espancamento dos atores. Tão desafiadora foi que

Plínio Marcos, José Celso Martinez e Boal escreveram contra a censura do texto, por meio

de um manifesto permeado de ironias e duras críticas à ditadura (ANEXO II). Se a peça foi

censurada por conter “palavrões”, a classe teatral subverte o conceito de “palavrão” e

desafia:

A fim de que fique bem claro este gasto enérgico da classe teatral, a Assembleia

determinou a elaboração da lista que se segue, contendo todos os palavrões

contra os quais São Paulo delibera lutar sem tréguas:

Ditadura

Censura

Analfabetismos

Acordo Mac-Usaid

Fome

Arrocho salarial

Napalm

Aposentaria dos Deputados

Latifúndio (A CLASSE TEATRAL CONTRA O PALAVRÃO, s/p, s/d).

A partir daí, as peças que o Arena queria montar estavam todas proibidas.

Já tendo experimentado encenar shows que aliavam música e crítica política e

percebido sua ampla repercussão, o Arena se preparou para a série Arena conta..., não sem

antes perceber a intransitividade que se dava entre o palco e o povo, embora ambos

dialogassem. Para Boal, a divisão de classes permeava o teatro, pois a plateia cantava no

coro, porém não participava do enredo. Com a repressão, pior ainda, o povo estava

proibido. Referindo-se ao Show Opinião, que, segundo ele, provocou a mesma polêmica na

fase realista do Arena, por ter sido considerado nem musical nem teatro, Boal parte para

São Paulo e, junto a Guarnieri e Edu Lobo, concebe Arena conta Zumbi e cria o Sistema

Coringa que, além de diminuir consideravelmente o custo da produção, também implanta

proposições estéticas, vinculadas a uma maneira épica e dialética9 de exibir a trama.

9 Para Sérgio de Carvalho, dramaturgo, diretor e fundador da Companhia do Latão, grupo teatral de São

Paulo, o efeito de distanciamento no teatro épico-dialético se dá na relação historicizante estabelecida pelo

trabalho dialético que ocorre no trânsito crítico e vivo entre palco e plateia, trabalho desapassivador, que gera

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Quatro são as bases norteadoras do Sistema Coringa: (1) qualquer ator pode (e

deve) representar qualquer personagem; (2) é necessário que o ponto de vista autoral seja

assumido ideologicamente por todos os participantes do espetáculo; (3) cada cena traz seu

próprio estilo; e (4) a música funciona como elemento de ligação ou de introdução ou

mesmo de discurso no contexto da peça (BOAL, 2011).

Conforme Boal (2011), o Coringa é uma personagem onisciente, de estrutura única,

que assume a função de alterar, inverter ou recolocar a perspectiva de uma cena, sempre

que houver a necessidade de chamar a atenção da plateia para o que for significativo. Por

isso é importante que o Coringa assuma uma postura crítica e distanciada, pois ele pode,

inclusive, refazer uma cena, de modo a enfatizá-la ou corrigi-la.

Zumbi concretizou as ideologias estético-políticas que procuravam novos processos

de análise para se adaptarem às novas realidades. Em um manifesto intitulado Vivemos um

tempo de guerra10

, Boal e Guarnieri afirmam que, se o teatro é conceituável, essa definição

anula suas outras potências:

Nesta etapa do seu desenvolvimento o Arena desconhece o que é teatro.

Queremos apenas contar uma história, segundo a nossa perspectiva. Dispomos

de uma arena, alguns velhos refletores munidos de lâmpadas (aproximadamente

Cr$ 20.000 cada), acomodações para pouco menos de duzentas pessoas, roupas,

madeiras, telas, projetores, etc. Somos um grupo de gente boa, diretores, atores,

técnicos, autores, eletricistas, porteiros, bilheteiros. Somos quase vinte.

Pensamos parecido. Esta gente reunida, usando o material disponível, vai contar

uma história que tem moral escondida. Uma história que, esperamos, vai ajudar

todo o mundo a entender melhor as coisas ocorridas, e as que estão acontecendo.

Que deve ajudar todo o mundo a ver com maior clareza (BOAL; GUARNIERI,

1965, p. 1).

Como se pode notar, a cultura nacional foi bastante debatida no período de 1960 e

recebeu grandes contribuições de diversos artistas e intelectuais. Entretanto, algumas

questões acerca do alcance dessa proposta de arte política precisam ser problematizadas.

Ao adentrar a década de 1960, o PCB vive um período de crises e cisões, devido a vários

fatores, dentre eles a Revolução Cubana, as mudanças na política externa da União

Soviética e a ascensão da China no cenário comunista. Especialmente a Revolução

uma disposição à atitude reflexiva conjunta ao desfrute estético da forma representacional. O efeito não se

completa sem que a imagem cênica ofereça consigo uma possibilidade de indagação sobre sua perecibilidade,

sua transformabilidade histórica, ou sobre a causalidade social do acontecimento mostrado ou sugerido pela

cena (Cf. CARVALHO, Sérgio de. Questões sobre a atualidade de Brecht. Sala Preta, São Paulo, v. 6, p.

167-173, 2006). 10

Ver na íntegra no Anexo III.

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Cubana, que iniciou a transição para o socialismo, repercutiu amplamente no Brasil,

inclusive no que dizia respeito às essas cisões políticas e ideológicas dentro do PCB após

1964, o que provocou o questionamento sobre a transição pacífica para o socialismo,

defendida pelo partido com a Declaração de Março11

(BASBAUM, 1977).

Em agosto de 1961, o PCB realiza uma conferência nacional e decide mudar o

nome do partido para Partido Comunista Brasileiro, de modo a legalizá-lo e a deixar claro

o seu caráter nacionalista, uma vez que um dos motivos alegados para o cancelamento do

seu registro, em 1947, foi o de que ele era um partido ligado à União Soviética, justamente

por se chamar Partido Comunista do Brasil. Todavia, no interior do partido houve uma

ruptura: de um lado estavam aqueles que defendiam as orientações da Declaração de

Março e, de outro, os que se mantinham fiéis aos métodos stalinistas e se opunham à

colaboração com o governo brasileiro. A partir dessa ruptura surge do PC do B, Partido

Comunista do Brasil.

Por conseguinte, o Brasil do início da década de 1960 vivia, por um lado, a

ascensão do nacionalismo nos movimentos populares ligados ao PCB e, por outro, a

oposição a esse nacionalismo pelos grupos que defendiam o desenvolvimento industrial do

país por meio de uma maior participação no capital estrangeiro.

Essa cisão se refletiu nos movimentos artísticos de resistência. O CPC, por

exemplo, começou a enfrentar um racha interno. Um debate se disseminou entre seus

participantes: como falar para o povo, para o proletariado, se os artistas não pertenciam ao

proletariado?

Boal, por sua vez, reconhecendo que o Arena encontrava-se limitado em suas

pretensões políticas, começa uma oficina que dá origem a um espetáculo chamado Teatro-

jornal Primeira Edição:

A forma de “teatro-jornal” tem vários objetivos. Primeiro, procura desmistificar

a pretensa “objetividade” do jornalismo: demonstra que uma notícia publicada

em um jornal é uma obra de ficção. A importância de uma notícia e seu próprio

11

Apresentada em março de 1958, essa declaração deixava clara uma proposta nacional-libertadora.

Entendia-se que: (i) o país não deixou de ser subdesenvolvido, ainda que houvesse um desenvolvimento

capitalista nacional; (ii) o desenvolvimento apresentava contradições entre a nação e o imperialismo norte-

americano e entre as forças de produção desenvolvimentistas e as relações semifeudais no setor agrícola; e

(iii) a revolução brasileira era antes anti-imperialista, nacional e democrática que socialista. Por meio dessa

Declaração, enfim, o PCB propunha alianças entre operários, camponeses, pequena burguesia urbana e

setores latifundiários, de modo a lutar, pacificamente, contra a submissão do país ao imperialismo norte-

americano (PRESTES, 2014).

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caráter dependem de sua relação com o resto do jornal. Se na manchete surge a

tragédia da jovem que foi miraculosamente salva depois de atear fogo às vestes,

desenganada no seu amor – essa tragédia de primeira página reduz à simples

condição de faits divers os sangrentos choques entre os guerrilheiros palestinos e

os mercenários do Rei Hussein. Pergunta-se: qual é a mais importante: a

conquista do tri-campeonato de futebol ou a sêca do Nordeste? (BOAL, 1971, p.

57)12

.

A partir daí, começam a se formar grupos de Teatro-Jornal13

. Esses grupos

representavam em qualquer lugar, desde que longe da polícia. Os espetáculos eram escritos

e, duas horas depois, encenados. O sonho de difundir as técnicas para que qualquer cidadão

pudesse fazer teatro, usar a riqueza da linguagem dramática para pensar a resistência à

opressão começa a tomar contornos de realidade.

É interessante notar que, quando Boal reconhece a limitação de pretensões políticas

do Arena, ele não se refere somente à censura instaurada pelo golpe civil-militar. Mais que

isso, vê como limitado, também, o projeto estético-político na medida em que reconhecia

que o teatro não poderia incitar o espectador a se rebelar contra a ditadura se o teatro não

fazia o mesmo:

Confessávamos que não sabíamos o que dizer, não queríamos aconselhar

caminhos que desconhecíamos. Mas não renunciávamos a fazer teatro. Eles que

fizessem também. Oferecíamos nosso saber. Se não sabíamos o que dizer,

sabíamos ensinar a dizer.

[...]

Entre nós e nossos espectadores não havia diferença, agora que não tínhamos

nada que nos vestisse de artistas: éramos cidadãos, humanos. Podíamos – nós e

eles – fazer teatro. Oferecíamos nosso saber, pedíamos o deles. Troca (BOAL,

2000, p. 271).

Schwarz (1978) lembra que um dos problemas enfrentados pelos movimentos

culturais logo após o golpe de 1964 residiu no fato de que esses movimentos sofreram

pressões tanto do governo golpista quanto da própria esquerda revolucionária. O primeiro,

porque tentava censurar as manifestações e a segunda, porque insistia no caráter

12

O Teatro de Arena de São Paulo publicou, em 1971, o livro de Augusto Boal Categorias do Teatro

Popular. Essa transcrição foi retirada do último capítulo do original, que se encontra no acervo do Instituto

Augusto Boal. O capítulo, na íntegra, encontra-se no Anexo IV. 13

O Teatro-Jornal foi uma resposta estética à censura imposta, no Brasil, no início dos anos 70, pelos

militares, para escamotearem conteúdos, inventarem verdades e iludirem. Nessa técnica, encena-se o que se

perdeu nas entrelinhas das notícias censuradas, criando imagens que revelam silêncios. Criada em 1971, no

Teatro de Arena de São Paulo, foi muito utilizada para revelar informações distorcidas pelos jornais da

época, todos sob censura oficial (Cf.: www.ctorio.com.br).

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revolucionário desses movimentos. Diante disso, quem quisesse lutar contra a ditadura e

continuar articulando a cultura nacional vislumbrava apenas um caminho, o da militância

política:

Se em 64 fora possível à direita “preservar” a produção cultural, pois bastara

liquidar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68, quando os

estudantes e o público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música

e dos melhores livros já constituem massa politicamente perigosa, será

necessário trocar ou censurar os professores, os encenadores, os escritores, os

músicos, os livros, os editores – noutras palavras, será necessário liquidar a

própria cultura viva do momento (SCHWARZ, 1978 p. 9).

No que diz respeito à música, Schwarz, em Verdade tropical: um percurso de nosso

tempo (2012), dá atenção especial ao Tropicalismo, cujo objetivo é analisar, mantendo a

ênfase nas relações sociais e nos desafios da esquerda que se refletem no país, a

autobiografia de Caetano Veloso, Verdade tropical, lançada em 1997. Debruça-se sobre o

livro de Caetano com a coerência que lhe é peculiar, focando a desordem entre as

condições de produção, o plano ideológico e o desenvolvimento do Brasil.

A impressão do autor sobre o tropicalismo, já desenhada em Cultura e política, de

1964 a 1969, ganha novos contornos quando relacionada e contrastada com

desenvolvimento posterior da história e é analisada sob três perspectivas, a saber: o

momento do tropicalismo (décadas de 60/70), o momento da escrita da biografia (década

de 90) e o tempo de se “fazer um balanço” histórico-político-cultural desses momentos

(que se constitui do próprio ensaio Verdade tropical: um percurso de nosso tempo, escrito

em 2011).

Desse “balanço”, o que fica como pressuposto central é que, se, por um lado, o

movimento tropicalista reconheceu e focou, assim como o movimento antropofágico

modernista, “o relacionamento conflitante e produtivo entre as formas estéticas, as

deformidades sociais do país e as grandes linhas do presente internacional” (SCHWARZ,

2012, p. 56), por outro, a vitória dos ideais desenvolvimentistas realizados pela ditadura,

que conseguiu apagar os movimentos sociais antes que estes pudessem realizar o desejo

por uma sociedade mais igualitária, redesenha o “desbunde” tropicalista. Desse modo, “a

satisfação legítima de sair do estado de segregação de uma cultura semicolonial se

converte, sem mais aquela, na ambição de fazer acontecer na arena internacional - em

lugar de questionar essas aspirações elas mesmas” (idem, p. 74).Ou seja: ao fim e ao cabo,

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o ensaio é antes uma crítica ao percurso que tomou a história política e cultural brasileira

que, assim como Caetano, “vem se fazendo acontecer” internacionalmente, desde a ruptura

com interpretação do nacional e do popular e com seus correspondentes no plano político.

Em relação ao teatro, especialmente ao Arena, Schwarz (1978) afirma que o teatro

político, na verdade, foi despolitizado e despolitizante, porque se apresentava para uma

parcela da sociedade que era intelectualizada e, por isso, burguesa. Assinala, ainda, a

ausência de qualquer crítica ao populismo e ao fato de esse teatro não questionar a derrota

da esquerda. O crítico alega que a revolução estético-política alcançada por Black-tie se

perdeu diante do Show Opinião, dirigido por Boal em 196414

, que não deu uma resposta

política para o fracasso da esquerda, constituindo-se em um limite estético:

A cena não estava adiante do público. Nenhum elemento da crítica ao populismo

fora absorvido. A confirmação recíproca e o entusiasmo podiam ser importantes

e oportunos então, entretanto era verdade também que a esquerda vinha de uma

derrota, o que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso. Se

o povo é corajoso e inteligente, por que saiu abatido? E se foi abatido, por que

tanta congratulação? (SCHWARZ, 1978, p. 80-1).

O mesmo se dá em relação a Zumbi. Para ele, a forma artística foi agradável ao

público e, simultaneamente, incompatível com a derrota da esquerda, uma vez que,

naquele momento, diante da falência do socialismo histórico, essa forma artística deixou

de ser a referência direta para uma crítica anticapitalista:

O espetáculo era verdadeira pesquisa e oferenda das maneiras mais sedutoras de

rolar e embolar no chão, de erguer um braço, de levantar depressa, de chamar, de

mostrar decisão, mas também das maneiras mais ordinárias que têm as classes

dominantes de mentir, de mandar em seus empregados ou de assinalar, mediante

um movimento peculiar da bunda, a sua importância social. Entretanto, no centro

de sua relação com o público – o que só lhe acrescentou o sucesso – Zumbi

repetia a tautologia de Opinião: a esquerda derrotada triunfava, sem crítica,

numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito (SCHWARZ, 1978, p.

82-3).

Na visão de Schwarz (1978), tratava-se de ingenuidade entender a injustiça social

como algo não natural para que a transformação social fosse possível. Além disso, essa

14

A despeito das críticas negativas, Boal (2000, p. 228) afirma que “Opinião foi o primeiro protesto teatral

coerente, coletivo, contra a desumana ditadura que tanta gente assassinou, torturou, tanto o povo

empobreceu, tanto destruiu o que antes chamávamos Pátria”.

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euforia, em um momento no qual a esquerda vinha de uma derrota, limitou a capacidade

crítica do espectador, na medida a peça se permitiu reproduzir as estratégias de dominação

e martirizar os representantes populares:

Em consequência apagam-se as distinções históricas – as quais não tinham

importância se o escravo é artifício, mas têm agora, se ele é origem – e valoriza-

se a inevitável banalidade do lugar-comum: o direito dos oprimidos, a crueldade

dos opressores; depois de 64, como ao tempo de Zumbi (séc. XVII), busca-se no

Brasil a liberdade. Ora, o vago de tal perspectiva pesa sobre a linguagem, cênica

e verbal, que resulta sem nervo político, orientada pela reação imediata e

humanitária (não-política portanto) diante do sofrimento (SCHWARZ, 1978, p.

83).

É perceptível a crítica de Schwarz à estagnação política da esquerda. Segundo ele, a

mesma classe intelectual que não conseguiu evitar o golpe, depois deste tentava se

reafirmar no palco. A Zumbi restou lutar por uma causa perdida e ao teatro, também.

Parece-me que o grande embate de Schwarz em relação ao cenário do pós-64

encontra-se no descompasso do tempo histórico, o que se traduz em um descompasso

político, porque, segundo ele, ao se alternar entre crítica política e simples exortação,

Arena conta Zumbi oscilava entre os contextos do regime escravocrata e do pós-64 sem,

contudo, oferecer possibilidades efetivas de enfrentamento da realidade política do

momento de sua produção, qual seja, a ditadura civil-militar.

Parece-me, também, que essa crítica de Schwarz faz referência às dissidências

ocorridas dentro das esquerdas, fato que as impossibilitou de se prepararem, de forma

coesa, para enfrentar o golpe, bem como não resultou em um projeto efetivo de

enfrentamento que arrebanhasse a sociedade civil contra a repressão.

No entanto, cabe apontar aqui as pesquisas de Ridenti, em Esquerdas armadas

urbanas (1964-1974) (2007). sobre as esquerdas armadas urbanas que se organizaram a

partir dos conflitos e posteriores dissidências dentro do PCB. Dentre essas organizações

destaca-se ALN, cuja inspiração na Revolução Cubana definiu que só seria possível a

repressão por meio do enfrentamento armado.

A ALN contou com a participação de alguns intelectuais e artistas, dentre eles Boal

que, embora não empunhasse armas, colaborava com a organização, inclusive recebendo e

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permitindo reuniões do grupo em sua casa, que também servia como esconderijo para os

perseguidos da ALN, conforme comprova o depoimento de Cecília Thumin Boal15

:

O Boal cedia a nossa casa para encontros dos militantes, em reuniões que, muitas

das vezes, varavam madrugada adentro. Ele era militante da ALN, isso está na

biografia do Marighella16

. Como viajava muito por causa do teatro, o Boal era

um tipo de apoio para a ALN, porque podia levar mensagens para outros

militantes fora do Brasil.

Por outro lado, Cecília questiona, em certa medida, leituras de Zumbi que veem na

peça um início de apelo à luta armada e que, posteriormente, se concretiza em Tiradentes.

Além disso, coloca que as críticas de Roberto Schwarz – bem como as de Anatol

Rosenfeld – fizeram certo sentido à época, pois de fato, esses espetáculos não cumpriram,

como era o desejo do Arena, com a sua finalidade de atingir as grandes massas populares.

Porém, ela ressalta a necessidade que Boal via de que o povo brasileiro resgatasse seus

heróis, que o povo tivesse heróis:

Vejo Zumbi e Tiradentes mais como um resgate de heróis. O Boal acreditava

que, naquele momento, o Brasil precisava de heróis. O Roberto Schwarz, o

Anatol Rosenfeld17

criticaram essas peças e, em certa medida, tinham razão,

porque o público desses espetáculos era mais da classe média18

, eram estudantes.

Embora eles tenham viajado e se apresentado para as classes mais populares, em

cima de caminhões, as peças não tiveram uma entrada tão significativa em meio

às grandes massas. Mas, mesmo assim, o Boal via a necessidade de o povo

brasileiro ter heróis.

Acredito que essa necessidade de Boal encontra respaldo em sua ideologia estético-

política que, à luz do distanciamento de Brecht, recusava a catarse em nome desse

15

BOAL, Cecília Thumin. Cecília Thumin Boal: entrevista [mai. 2018]. Entrevistador: Mariana De-Lazzari

Gomes. Ponte Nova/MG, 2018. 1 arquivo mp3 (22m 12s). Entrevista concedida à tese de doutorado Milagre

no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro: memória, testemunho e a literatura de Augusto Boal. [A entrevista

na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta tese]. 16

Sobre essa menção à biografia do Marighella, vale a pena conferir em MAGALHÃES, Mário. Marighella:

o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 17

No ensaio Heróis e Coringas, Rosenfeld aponta que Boal, na medida em que concedeu aos protagonistas a

empatia frente ao público que recusava ao coro, não mostrou compreensão das teses de Brecht. O crítico

aponta, ainda, essa opção abria espaço para que o público se identificasse festivamente com o herói, o que se

contrapunha às ideias de Brecht (Cf.: ROSENFELD, Anatol. Heróis e Coringas. In: ROSENFELD, Anatol.

O mito e o herói no moderno teatro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1966. p. 11-24). 18

Em Hamlet e o filho do padeiro Boal diz: “Zumbi foi a cristalização das experiências que havíamos feito.

Sabíamos que não iríamos dialogar com o povo. Mostraríamos a nossa cara. Não me chamo José, não me

envergonho. Nunca passei fome nem senti frio, sempre morei em conforto. Éramos classe média” (BOAL,

2000, p. 230).

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distanciamento e da reflexão, propondo um herói que não refletia a realidade, mas que, ao

permanecer distante, oportunizava uma crítica àquela realidade.

Enfim, é inegável que, diante de tantas cisões, a esquerda se enfraqueceu diante do

enfrentamento ao golpe, o que se refletiu, em grande medida, na desarticulação da arte de

resistência. Porém, é também inegável que, assim como a cabeça de Zumbi dos Palmares

foi enviada para o Recife como simbologia da vitória sobre os quilombolas, a sua

resistência precisa ser levada em conta. Assim como o governo civil-militar perseguiu,

mentiu, encarcerou e matou, a exemplo, Heleny Guariba19

, a sua decisão de nada confessar

precisa ser levada em conta. Assim como, em 1695, Zumbi não se rendeu, “nestes 10 anos

de terror, o povo brasileiro não deixou de produzir heróis” (BOAL, 1979, p. 27). Então,

apesar de a luta armada já não ser uma possibilidade, isso não anula o fato de que política e

estética se fizeram parceiras em prol de uma arte de denúncia, de resistência e de

mobilização social.

Por tudo e portanto, as análises que se seguem de Milagre no Brasil e de Hamlet e

o filho do padeiro – nas perspectivas do testemunho e da memória, das violências físicas e

das simbólicas, da estética e da política – podem contribuir para repensar esse Brasil de

tantos golpes que colocaram em xeque a resistência e a dignidade dos oprimidos.

19

Heleny Telles Ferreira Guariba fez parte do Teatro de Arena, como professora, junto a Cecília Thumin

Boal. Era militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ficou presa no presídio Tiradentes e foi

assassinada em julho de 1971. Consta no Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964

(1995, p. 235-236): Militante da VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA (VPR). Nasceu em 13 de

março de 1941 em Bebedouro, Estado de São Paulo, filha de Isaac Ferreira Caetano e Pascoalina Alves

Ferreira. Desaparecida desde 1971 aos 30 anos. Professora universitária e diretora do “Grupo de Teatro da

Cidade”, de Santo André, São Paulo. Presa no Rio de Janeiro no dia 12 de julho de 1971, juntamente com

Paulo de Tarso Celestino da Silva (desaparecido), por agentes do DOI-CODl/RJ. Inês Etienne Romeu, em

seu relatório sobre a “Casa da Morte”, em Petrópolis, denuncia que Heleny esteve naquele aparelho

clandestino da repressão no mês de julho de 1971, tendo sido torturada por três dias, inclusive com choques

elétricos na vagina. O Relatório do Ministério da Aeronáutica diz que Eleni foi “presa em 20 de outubro de

1970, em Poços de Caldas/MG, sendo libertada em 01 de abril de 1971...” Já o Relatório do Ministério do

Exército afirma que “foi presa em 24 de abril de 1970 durante a Operação Bandeirantes e libertada a 1° de

abril de 1971.” No anexo V estão as cópias das informações do Ministério do Exército, datadas de 30 de abril

de 1970.

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Acervo Augusto Boal

Sistema Coringa AB.ASCf.011

SÉRIE: Arena | AUTORIA: [Derly Marques]

DATA: Década de 1970 | ANO: 1970 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: Diapositivo, Viragem

DESCRIÇÃO: Gianfrancesco Guarnieri e outros em cenas de “Ratos e Homens”, peça do Teatro de

Arena. NOTAS: Slide integrante da montagem fotográfica "The Joker System/ El Sistema Comodín/ O

Sistema Coringa"

de Derly Marques e Stefan Leslie, com produção da VISUAL Arte/Comunicação de São Paulo. Ver

também fascículo

"O Sistema Coringa" que acompanha os 50 diapositivos. ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Sistema Coringa, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes

cênicas.

Acervo Augusto Boal

Ratos e homens AB.ARHf.007

SÉRIE: Arena | AUTORIA: Não identificada

DATA: 1956 | ANO: 1956 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: Papel; P&b

DESCRIÇÃO: Gianfrancesco Guarnieri, José Serber e Nilo Odalia em cena.

ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas

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Acervo Augusto Boal

Sistema Coringa AB.ASCf.013

SÉRIE: Arena | AUTORIA: [Derly Marques]

DATA: Década de 1970 | ANO: 1970 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: Diapositivo, Viragem

DESCRIÇÃO: Cenas de “Eles não usam Black-Tie”, com Lélia Abramo, Gianfrancesco Guarnieri e

outros. Primeira peça da fase nacionalista do Teatro de Arena. NOTAS: Slide integrante da montagem fotográfica "The Joker System/ El Sistema Comodín/ O

Sistema Coringa"

de Derly Marques e Stefan Leslie, com produção da VISUAL Arte/Comunicação de São Paulo. Ver

também fascículo

"O Sistema Coringa" que acompanha os 50 diapositivos. ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Sistema Coringa, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes

cênicas

Acervo Augusto Boal

Revolução na América do Sul AB.ARf.001

SÉRIE: Arena | AUTORIA: Não identificada

DATA: 1960 | ANO: 1960 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b

DESCRIÇÃO: Flávio Migliaccio em cena de “Revolução na América do Sul”.

NOTAS: Peça escrita por Augusto Boal e dirigida por José Renato no Teatro de Arena de São Paulo.

ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas

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Acervo Augusto Boal

Opinião AB.AOf.010

SÉRIE: Arena | AUTORIA: Não identificada

DATA: 1964 | ANO: 1964 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b

DESCRIÇÃO: Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti em cena.

ASSUNTOS: Teatro, Show, Música brasileira, Música, Espetáculo musical, Encenação, Artes cênicas

Acervo Augusto Boal

Arena conta Zumbi AB.AZf.023

SÉRIE: Arena | AUTORIA: Derly Marques

DATA: 1965 | ANO: 1965 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b

DESCRIÇÃO: Marília Medalha, Anthero de Oliveira, Chant Dessian, Vanya Sant’Anna,

Gianfrancesco Guarnieri, Dina Sfat e Lima Duarte (de costas) em cena. NOTAS: Foto possui carimbo do fotógrafo no verso.

ASSUNTOS: Zumbi dos Palmares, Teatro de Arena, Teatro, Heróis nacionais, Espetáculo teatral,

Encenação, Atores, Artes cênicas

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É preciso entender 64 não apenas como um

choque politico, mas como um choque

psicológico profundo, existencial profundo.

Aquilo muda a vida da gente. Como é possível

que aquilo tenha acontecido, se a gente sabia que

era outra coisa que ia acontecer?

Cacá Diegues.

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3 MILAGRE NO BRASIL: PARA NÃO ESQUECER DE LEMBRAR

3.1 O estatuto do testemunho

Todas as formas de dominação política dependem da construção humana de

diferenças sociais e culturais entre pessoas e povos, sem diferenças não haveria base para

distinguir aqueles que detêm o poder daqueles que estão sujeitos a isso. As ideias políticas

mais potentes sobre diferença são aquelas que são “naturalizadas” de tal forma que

parecem ser criadas não pelos humanos, mas pela natureza. Tais ideias são

ideologicamente poderosas porque afirmam que, por exemplo, os homens são naturalmente

superiores às mulheres ou que as pessoas brancas são naturalmente superiores às pessoas

negras. Ideias naturalizadas são hegemônicas, na medida em que permeiam diferentes

áreas da cultura.

Na literatura, a fabricação da ficção do outro serviu às necessidades hegemônicas

de construção de impérios, infiltrando-se nos aparelhos dos sistemas educativos, um dos

principais garantes da preservação do (s) sistema (s) no poder. A contrapelo dessa ficção

do outro, a literatura testemunhal é uma narrativa autêntica, contada por uma testemunha

que é movida a narrar pela urgência de uma situação, como enfatiza George Yúdice, em

Testimonio y concientizacion (1992):

“Testimonio” es un termino que se refiere a muchos tipos de discurso, desde la

historia oral y popular (people's history) que procura dar voz a los “sin voz”

hasta textos literarios como las novelas-testimonio de Miguel Barnet y aún obras

de compleja composicion documental como Yo el supremo de Augusto Roa

Bastos. El termino tambien se ha usado para referirse a las cronicas de la

conquista y colonizacion, los relatos vinculados a luchas sociales y militares

como los diarios de campania de Marti, el Che y Fidel (Fornet, 1977) y a textos

documentales que tratan de la vida de individuos de las clases populares

inmersos en luchas de importancia histórica (YÚDICE, 1992, p. 211)20

.

20

“Testemunho” é um termo que se refere a muitos tipos de discurso, da história oral e popular (história das

pessoas), que procura dar voz aos “sem voz”, a textos literários, como os romances-testemunho de Miguel

Barnet e até mesmo obras de composição documental complexa como Yo el supremo, de Augusto Roa

Bastos. O termo também tem sido usado para se referir às crônicas da conquista e da colonização, as histórias

ligadas às lutas sociais e militares, como os jornais Campania de Marti, Che e Fidel (Fornet, 1977) e textos

documentais que tratam da vida de indivíduos das classes populares imersos em lutas de importância

histórica (YÚDICE, 1992, p. 211, livre tradução minha).

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A testemunha retrata sua própria experiência como resgate de uma memória

coletiva. A verdade denuncia uma situação de exploração e opressão, assim como

estabelece corretamente a história “oficial”. O protagonista que dá testemunho é alguém

que não se concebe como extraordinário, mas sim como uma alegoria de muitos, o povo.

Essa identidade coletiva é revelada no testemunho de Boal. O desejo que motiva esses

relatos não é deixar um registro pessoal, mas documentar a realidade de um povo inteiro.

Há uma exigência, uma urgência de relatar uma situação de barbárie, porque, em primeiro

lugar, a testemunha sente essa necessidade e a sociedade precisa assumir o compromisso

de escutá-la e, em segunda instância – mas não menos importante -, os crimes precisam ser

documentados, para que se preserve a memória.

Assim, a experiência da violência assume, para os estudos literários, a condição de

Literatura de Testemunho, em um primeiro momento ao abarcar as narrativas dos

sobreviventes da Shoah, como Primo Levi, por exemplo. Em relação à história latino-

americana, o testemunho resgata histórias espezinhadas por ditaduras militares. As

histórias de crueldade e opressão, uma vez recontadas, constituem atos de desafio. Por

meio da voz do narrador, as vozes dos mortos e dos mutilados ainda podem ser ouvidas.

Às vezes, as fronteiras entre verdade e ficção podem se tornar turvas. Como Doris

Sommer argumenta, em Rigoberta’s Secret (1991)21

, as fronteiras entre informar e

executar são porosas, mas mesmo quando o contador de histórias vai além do que pode ser

verificado através de outras fontes, a voz da testemunha ainda representa um sentido

generalizado de opressão. Aqui está a política de identidade como um conjunto de

narrativas, uma contra-história que desafia a falsas generalizações na “História”

excludente.

Além disso, Selligman-Silva, em Testemunho da Shoah e literatura (2008),

defende que essa porosidade entre informar e executar encontra também explicação na

carga traumática que a testemunha aciona em sua memória:

Para o sobrevivente a escritura tem o papel duplo que caracteriza o

arquivamento: ela é deposição, inscrição, memória no sentido de recolhimento e

armazenamento de dados, mas é também um ato de separação desta memória.

No ato de escritura o passado é como que passado adiante. Sofre um

21

O artigo de Sommer aborda o testemunho feminino hispânico por meio da análise da obra Me llamo

Rigoberta Menchu y asi me nacio la consciência, publicado em 1983, na qual Rigoberta denuncia a violação

dos direitos humanos pela violência militar na Guatemala e que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1992.

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desdobramento que eventualmente pode aliviar o peso da carga da memória

traumática (SELLIGMAN-SILVA, 2008, p. 6-7).

Por memória traumática entende-se, no campo da psicanálise, os estudos de

Sigmund Freud, presentes em vários dos seus escritos - dentre eles em algumas seções de

Além do princípio do prazer (2016) que, em 1920, marcou uma mudança decisiva em sua

teoria psicanalítica. Até então, Freud afirmava que toda ação humana é baseada nos

impulsos sexuais (a libido ou Eros) e no princípio do prazer, evitando a dor. Em Além do

Princípio do Prazer, Freud sugeriu que o homem também é governado por uma pulsão

instintiva concorrente: a pulsão de morte (ou Thanatos, o deus grego da morte).

Foram os horrores da Primeira Guerra Mundial que levaram Freud a sustentar que,

dentro de todos nós, reside uma força agressiva, violenta e também autodestrutiva. A vida

e a morte, ele percebeu, são dois lados da mesma moeda e, portanto, sua interação mútua

está no cerne da existência humana. Para apoiar sua teoria, o psicanalista pergunta se

podemos encontrar exemplos de incidentes nos quais a ação humana se move “para além

do princípio do prazer”. Ele identifica quatro casos: jogos infantis, sonhos recorrentes,

autoflagelação e o princípio subjacente da compulsão à repetição (realizar eventos

desagradáveis repetidas vezes).

Como não podia explicar a compulsão à repetição sob a premissa do princípio do

prazer, Freud concluiu, portanto, que devia ser separado dela e especula que a compulsão à

repetição é uma forma ou alivio da pressão originada no trauma, concedendo alívio às

forças autodestrutivas.

De modo semelhante, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, sobreviventes da

Shoah descreveram eventos impregnados de horror. Desde a chegada ao galpão do

despimento, em que ficavam nus, despidos de suas subjetividades, até presenciarem as

mortes de seus semelhantes, esses sobreviventes carregam, em seus corpos e em suas

lembranças, uma dupla experiência de violência: a perda de toda a sua dignidade humana e

a culpa por terem sobrevivido.

Assim, a fixação nesses eventos absurdamente traumáticos exige, paralelamente à

dupla experiência da violência, um desdobramento: o registro das lembranças - para que

tais episódios não se repitam ao longo da história - e a tentativa de, ao registrar, conseguir

algum alívio do trauma.

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50

Para além disso, é oportuno destacar que esse tipo de registro por meio da escrita

requer uma elaboração da linguagem bem diferente daquela que se dedica à

transubstanciação proposta pela Poética de Aristóteles, segundo a qual a linguagem é, em

primeira instância, representação. Essa elaboração torna-se necessária na medida em que

o indivíduo se confronta com a dificuldade de dizer o indizível, aquilo que o machucou,

que o feriu, que o traumatizou, de modo que só é possível uma apresentação dessa

experiência por meio de uma linguagem muitas vezes intermitente, perpassada por

momentos de silêncio, por lacunas mnemônicas, mas, de modo algum, destituída de

veracidade.

Então, há que existir um meio pelo qual se pode conceber a linguagem enquanto

contato com o sofrimento e por meio da qual se pode acessar, ainda que com grande

dificuldade, uma cartografia mnemônica de grande valia para o registro de catástrofes, tão

presentes na história da humanidade e, por muitas vezes, relegadas ao esquecimento.

Por essa razão, faz-se indispensável, neste momento, abrir uma reflexão teórica

mais aprofundada acerca dessa instância narrativa que é a de contar a experiência da

violência. Em sua Poética (2011), Aristóteles coloca a teoria da mimese como fundamento

de toda a literatura e apresenta a arte mimética como atividade artística recriadora da

realidade. Destaca a competência do poeta ao narrar não o acontecido, mas o que poderia

acontecer, o possível, a necessidade. A literatura, então, não passa de uma representação,

isto é, de uma recriação do real. Assim, a diferença entre o poeta e o historiador, por

exemplo, não está na forma da obra, mas no que relatam. Por isso, a poesia, segundo ele, é

mais filosófica e de caráter mais elevado, pois permanece no universal. Sob essa

perspectiva, a literatura se ancora no conceito de representação do real, pelo menos até o

século XIX.

Em contrapartida, no Século da Imagem, como ficou conhecido o século XX,

emerge a necessidade de se repensar o caráter universal da poesia ou, nas palavras de João

Camillo Penna, em A experiência da violência (2015), estabelece-se a “crise na arte de

contar a experiência” (2015, p. 113). Desse modo, à ideia de modernidade se associa a

decadência da narrativa da experiência coletiva, tal como Walter Benjamin coloca em O

narrador (1994). Nesse ensaio, Benjamin observa que a narrativa possui origens remotas e

equivale a um tipo de experiência que, na contemporaneidade, é quase impossível. Para

ele, simultaneamente ao surgimento do gênero romance moderno ocorre o declínio da

narrativa.

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Indo mais além, pontua que a situação na qual se desenvolve o romance é a do

isolamento, ou seja, à proporção que a troca de valores comunitários vai se tornando cada

vez mais escassa, o sujeito, só e silenciosamente, lê: “a origem do romance é o indivíduo

isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes

e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994, p. 201). A narrativa, por

sua vez, é fruto de um trabalho artesanal cuja expressividade advém da matéria-prima da

experiência, tal como o artesão imprime sua marca em sua artesania, arte do conceber e

executar.

Nesse contexto, a figura materializada do narrador benjaminiano pressupõe duas

formas de narrar, representadas pelo “lavrador sedentário” e pelo “marinheiro mercante”:

aquele, porque conta as tradições de sua terra natal e este porque adquire, em suas viagens,

material para relatos sobre outras tradições. Há, então, pelo menos duas lacunas que se

interpõem entre o leitor da narrativa e o do romance. A primeira encontra-se entre o leitor

solitário do romance e aquele que está sempre em companhia do narrador: “quem escuta

uma história está na companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia.

Mas o leitor de um romance é solitário” (BENJAMIN, 1994, p. 213). A segunda diz

respeito ao sentido que o romance pretende alcançar e que, alcançado, marca o tempo de

terminar, ao contrário da contação, que ultrapassa a finitude e conserva viva a tradição:

Com efeito, numa narrativa a pergunta – e o que aconteceu depois? – é

plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode ser um único passo

além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra

fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida (BENJAMIN, 1994,

p. 213).

Em contraponto à lógica aristotélica da representação, a noção benjaminiana do

narrar encontra suporte na figura mitológica de Mnemosyne, deusa das reminiscências e

“mãe” da narrativa e do romance que, ao “pari-los”, o faz de modos diversos: enquanto a

primeira é memória – “consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate”

(BENJAMIN, 1994, p. 211) -, o segundo é rememoração – consagrada a “muitos fatos

difusos” (BENJAMIN, 1994, p. 211).

Volto aqui à “crise na arte de contar”, como já comentei, mencionada por João

Camillo Penna (2015), para que possa apresentar, posteriormente, o narrador Augusto

Boal, pois ignorar o processo histórico seria desconsiderar a função social da memória. Em

outro de seus ensaios, Experiência e pobreza, escrito em 1933, Benjamin defende a tese de

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que, após a Primeira Guerra Mundial - cujos embates não só revolucionaram as relações de

poder dentro das sociedades como também transformaram normas e atitudes sociais -, os

combatentes retornaram mudos, incapacitados de relatar suas experiências com a guerra.

Longe de cumprir o velho chavão de “qualquer semelhança será mera coincidência”, três

anos após, inicia O narrador basicamente com as mesmas palavras:

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo

de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o

que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada

tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia

nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente

desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a

experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de

material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à

escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem

em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num

campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano

(BENJAMIN, 1994, p. 198)22

.

Portanto, é a partir desse silenciamento, dessa impossibilidade de se representar

pela fala os horrores da guerra é que se concretiza a rememoração, o romance, o advento

do livro, em que a memória dá lugar à representação, a experiência individual se sobrepõe

à coletiva, por meio dos tais “fatos difusos” e eis a carência do homem moderno: a pobreza

de experiência socialmente compartilhada. Do avanço tecnológico advém a necessidade de

reinvenção da comunicabilidade, agora técnica porque responde aos anseios do século XX,

mobilizado para o capital. Mais tarde – e mais uma vez -, em O narrador (1994), ele

complementa: “basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo

que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas

também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis”

(BENJAMIN, 1994, p. 198).

22

Cf. em Experiência e pobreza, p. 114: Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado

silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de

guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis

de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente

desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela

inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda

fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo,

exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o

frágil e minúsculo corpo humano.

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Não por acaso, Boal, em sua Estética do Oprimido (2009), faz alusão a Benjamin

quando fala da modernidade enquanto tempo que marca a perda do caráter ritual da arte:

Walter Benjamim (1892-1940), filósofo alemão, no seu ensaio Surl´Oeuvre

d´Art (“Écrits Français”, Ed. Gallimard, 1991), afirma que, através dos tempos,

houve um deslocamento nas formas de apreciação da obra de arte e no seu uso.

Esse deslocamento vai do início da própria arte, quando desempenhava uma

função ritual, até os tempos modernos, quando, graças à multiplicação mecânica,

pode-se expor a mesma obra a um público diverso e heterogêneo, em muitos

lugares e ao mesmo tempo.

[...]

Perde-se o caráter ritual da arte, que, por sua unicidade, se ligava à tradição, à

sua origem, às narrativas que sobre ela eram feitas, fatos reais ou imaginários, à

sua autenticidade, sua história... (BOAL, 2009, p. 41).

Do diálogo com Benjamin surge uma saída: o estatuto político da arte. Se, por um

lado, o poder vigente tem as armas para fazer com que artistas e intelectuais cooperem com

as estratégias de dominação, por outro o pensamento sensível da resistência se coloca em

oposição e oportuniza a criação de conceitos não apropriáveis por esse mecanismo

excludente. Nessa estética concebida por Boal, ele parte de duas teses principais:

(1) O pensamento humano se processa de duas formas complementares – sensivelmente e

simbolicamente -, sendo que o simbólico equivale a pensar apenas por meio de palavras e

o sensível, a pensar, para além das palavras, por meio dos sons e imagens;

(2) Como todas as sociedades são permeadas por confrontações diversas, dentre elas as de

classes, castas, etnias, nações, religiões, por exemplo, não se pode afirmar a existência de

uma estética única. Pelo contrário, há muitas estéticas.

No entanto, a maioria dos sistemas políticos, seja pela arte, pela cultura ou por

todos os outros meios de comunicação, usam da palavra, do som e da imagem para

produzirem uma estética única, que programa os cérebros dos cidadãos à obediência, ao

mimetismo23

e à falta de criatividade. Remetendo-se à Segunda Guerra Mundial e às

ditaduras latino-americanas, diz:

Palavras que, em alemão, sempre foram inocentes, como Endlösung, Selektion e

Anschluss, tiveram seus vários significados reduzidos aos mais tristes pelo uso

que delas fizeram os nazistas. Na Alemanha, hoje, essas palavras devem ser

23

Leia-se aqui uma contraposição de Boal à mimeses aristotélica, o que coaduna com o pensamento de

Benjamin e, consequentemente, com a crise na arte de narrar, conforme já apontei anteriormente.

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54

evitadas, tal a carga trágica da qual estão carregadas: “solução final da questão

judaica”, “seleção dos prisioneiros a serem executados” e “anexação da Áustria

pela Alemanha, em 1938”24

. Outra palavra curiosa, fascismo, se encarada de um

ponto de vista histórico e social, remete a Mussolini desde 1922 e, mais

extensamente, aos regimes nazistas da Alemanha hitleriana até o fim da Segunda

Guerra Mundial e da Espanha franquista até mais tarde. Etimologicamente, seu

sentido é mais abrangente: deriva do latim fascio e fascis, que significam feixe,

molho, grupo, ajuntamento (Houaiss, Larousse, Britannica). Podemos, portanto,

apesar das diferenças sociais, falar do fascismo das ditaduras militares da

América Latina dos anos 60 a 80, e do fascismo de nações ultraindustrializadas,

que são, na prática, governadas por feixes, punhados, grupos de dirigentes de

grandes corporações, e não pelos detentores nominais do poder político – estes

são chefes que obedecem (BOAL, 2009, p. 77).

Guerras são caos, ditaduras também e, para Boal, o “caos é ininteligível para nós se

não o analisarmos de todos os meios de que dispomos, não apenas com teorias e palavras.

O Pensamento Sensível é necessário e insubstituível tanto para entendermos as guerras

mundiais como o sorriso de uma criança” (BOAL, 2009, p. 19). Por essa razão, é preciso

transcender o pensamento simbólico e buscar outras formas de comunicação que abarquem

o pensamento sensível, ética de todas as artes. Em outras palavras, tanto para Benjamin

quanto para Boal as artes são politizações das estéticas, não estetizações da política, o

que inclui, principalmente, a não obrigatoriedade de ser a literatura uma forma artística que

só se dá por meio da representação.

Ocorre que não existe uma simples transição entre a estetização da política – seja

tal como o nazi-fascismo europeu ou o neoliberalismo americano – e o estatuto político da

arte. O que ocorre, afinal, é um movimento que vou chamar de revolução intelectual por

parte daqueles que entendem a arte enquanto instrumento de humanização, para mencionar

a Antonio Cândido25

, e reconhecem a importância da narrativa como uma tarefa cujo

elemento fundante é a experiência. Então, de sua origem até seu desdobramento, as

reminiscências – as quais já me referi anteriormente - são permeadas por um processo

histórico, o qual atesta sua origem em comum da rememoração e da memória. Na

24

Segundo Mark Roseman, em Os nazistas e a solução final: a conspiração de Wannsee: do assassinato em

massa ao genocídio (2003), a multietnia e o multiculturalismo eram tradição do império Austro-Húngaro,

porém, na nova sociedade austríaca imperavam antissemitismo e o antijudaísmo, o que dificultava a anterior

coexistência multicultural. Em virtude disso, muitos austríacos de origem germânica, como era Hitler, por

exemplo, passaram a desejar a exclusão dos outros grupos étnicos. Assim, o termo “solução final” se refere

ao ideal nazista de, durante a Segunda Guerra Mundial, banir os judeus de todos os territórios de ocupação

alemã. Esse termo, inclusive, está presente em uma carta na qual o general Reinhard Heydrich pede a

participação do Ministério do Exterior alemão para executarem o plano de extermínio. A partir de então, nos

campos de concentração onde foram colocados os judeus, havia um processo de “seleção” de quando e como

esses judeus seriam executados. 25

O crítico literário Antonio Cândido, em seu texto O direito à literatura, defende que a literatura em nossas

sociedades tem o poder de instruir e educar e, por isso, deve ser um direito de todos os cidadãos.

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contramão da Poética de Aristóteles, é possível vislumbrar outro paradigma que não o

representacional, qual seja, o paradigma experiencial (PENNA, 2003).

3.2 Ele ia para casa comer milanesas...

Eu tinha acabado de ensaiar Simon Bolívar e estava cansado. Um dos atores

tinha me perguntado:

- Afinal pra que é que a gente fica ensaiando tanto? A censura não vai mesmo

deixar que a gente faça essa peça...

Eu não acreditava nada em nenhuma “abertura”, como muitos otimistas; desde

1964, desde uma semana depois do golpe e até hoje, tem muita gente que

continua dizendo que o governo vai mudar, que vai redemocratizar o país,

restaurar os direitos do homem, etc. Eu não acreditava que isso fosse possível; na

minha opinião o governo não ia restaurar nada de motu proprio. Mas não queria

de jeito nenhum aceitar a autocensura: não queria facilitar o trabalho deles. Se

quiserem proibir uma peça minha, que proíbam: têm a força do lado deles. Mas

não contem comigo para que me autocensure. Eu não queria fazer como muita

gente que já nem sequer se permitia pensar em certas peças que gostaria de fazer,

só de medo da censura. Por isso, continuávamos ensaiando essa peça sobre o

Libertador de tantos países de Nuestra América, o homem que se auto-intitulou

“O Lavrador do Mar”: tudo o que fez, ficou por fazer, tem que ser feito de

novo... (BOAL, 1979, p. 7).

Boal estava a caminho de casa, pensando nas milanesas que pedira para Cecília

preparar, quando seu percurso foi interceptado e desviado. Assim, ao invés de casa,

cadeia26

:

Ele foi buscar umas chaves enormes (dessas que eu já tinha visto no cinema) e

me levou através de um corredor comprido, cheio de portas gradeadas, de ferro.

No final do corredor, começava outro, menor, com celas individuais. Logo na

primeira ele parou, abriu a porta e me mandou entrar. Entrei. Havia uma cama e

nenhum cobertor, nem lençol, nem travesseiro. Uma pia e uma privada. A janela

ficava lá no alto (BOAL, 1979, p. 16).

Ao invés de milanesas, inapetência:

Hans me ouviu respeitoso, em silêncio, e perguntou depois se eu não queria

outro pão com manteiga. Não, eu não queria, nem sequer quis o primeiro, que

deixei de lado, sem comer. Perguntei a que horas chegaria o comissário e ele me

26

No Anexo VI encontra-se o prontuário de pedido de prisão preventiva de Boal. Esse documento está

disponível no Acervo Público da Cidade de São Paulo, relativo ao Departamento Estadual de Ordem Política

e Social, na pasta DEOPS – Santos.

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respondeu que só depois do almoço. Se despediu e foi atender outros presos

(BOAL, 1979, p. 20).

Ao invés do carinho da esposa e dos filhos, pau-de-arara e choque elétrico:

De repente senti um estremecimento: meu corpo convulsionado reproduzia o

ataque que eu tinha tido na sala de torturas. Lembro que caí na da cama. Lembrei

da rã e dos movimentos convulsos de suas pernas. Lembro que abriram a porta e

me levaram para fora e me deixaram deitado no chão. Ouvi a voz do crioulo

gordo (esclareço: gordo e reacionário):

- Quem num guenta o rojão, pra que se mete? Se meta não! (BOAL, 1979, p.

75).

Milagre no Brasil é o testemunho de um percurso nem tão longo e muito menos

violento do que o de outros, presos políticos ou não, pelos porões da ditadura. Nem por

isso deixa de representar a força do trauma que impeliu Boal a expor essas vivências,

inicialmente consumido pelo impasse entre o que viveu e a dificuldade de conseguir

organizar elementos da linguagem que dessem conta de expressar, na íntegra, a sua

experiência da violência e, posteriormente, reorganizar esses elementos em uma nova

perspectiva, pois, além de protagonizar a própria dor, ele ainda foi coadjuvante na cena de

dor do outro.

Nesse contexto, entende-se por testemunha – desde a semente lançada por Walter

Benjamin –, na visão de Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a

testemunha (2008), o sujeito que vivenciou a experiência traumática, conhecido como

superstes ou sobrevivente, “aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e,

portanto, pode dar testemunho disso” (AGAMBEN, 2008, p. 27). Há também o testis, o

que viu, que testemunhou, “que se põe como um terceiro em um processo ou em um litígio

entre dois contendores” (AGAMBEN, 2008, p. 26). Seria o testis a testemunha relacionada

à esfera jurídica e que, por isso, não tem como testemunhar do mesmo modo que o

superstes: “cabe ao sobrevivente precisamente isso: tudo o que leva uma ação humana para

além do direito, o que a subtrai radicalmente ao Processo” (AGAMBEN, 2008, p. 27).

Contudo, se, na cena do superstes, o presente do ato testemunhal prevalece, isso

não significa que a negar a possibilidade do testemunho também enquanto testis. É preciso

ter clareza para compreender que não há como separar radicalmente os dois sentidos do

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testemunho, assim como não se deve dissociar, de modo rígido, a historiografia da

memória, o que discutirei com mais detalhes posteriormente.

Além disso, as pesquisas de Jeanne Marie Gagnebin, especificamente na obra

Lembrar escrever esquecer (2006), agregam aos estudos sobre o testemunho o conceito de

testemunha solidária. Para ela, existe a testemunha que pode estar fora da relação entre

torturador e torturado, mas que, mesmo assim, compromete-se com a experiência de

violência do outro,

não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão

simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa

retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas

a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006, p.

57).

Assim, faço uma subdivisão da obra na qual mapeei cenas do Boal protagonista e o

coadjuvante, além do Boal solidário, e que nomeio como: Ato I - O incomunicável; Ato II

- O incomunicável comunicável; e Ato III - Eu queria dizer alguma coisa que não fosse

triste.

3.2.1 Ato I - O incomunicável

3.2.1.1 Cena I

Alguém certamente havia caluniado Josef

K., pois uma manhã ele foi detido sem ter

feito mal algum.

Franz Kafka, O processo.

A cela se chamava F-1 (isto é, Fundão, cela nº 1). Da minha janelinha eu podia

ver tudo que acontecia no corredor em frente, gente que entrava ou que saía das

celas grandes. À minha direita estavam as celas pequenas, individuais – mas

essas eu não podia ver: estavam ao lado da minha. No fundo do corredor estava

quase sempre um soldado armado, sentado numa cadeira. Nesse momento ele

veio caminhando na minha direção. Passou diante de uma das janelas e alguém

lhe pediu fogo. Os presos não podiam ter consigo fósforos. O soldado acendeu o

cigarro do preso e continuou caminhando em minha direção. Me deu boa noite

quando chegou perto. Eu perguntei se não podia ficar junto com os outros, numa

outra cela. Respondeu que não. Meu caso não era grave, mas de qualquer

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maneira eu estava incomunicável, e ia ter que continuar assim até que o

comissário me interrogasse (BOAL, 1979, p. 17).

Há aqui um processo descritivo que me parece fundamental, porque o vejo como

um complemento que possibilita um detalhamento da experiência que, na maioria dos

testemunhos, torna-se uma ação muito difícil, inclusive no decorrer das cenas de maior

carga traumática.

O predomínio dos verbos no pretérito imperfeito do indicativo no início da

descrição aponta para um fato ocorrido no passado, mas que não foi completamente

terminado, expressando, assim, uma ideia de continuidade e de duração no tempo como se,

no presente da enunciação, aquele fato também não tivesse terminado. Por sua vez, o

pretérito perfeito, que permeia o final da exposição, dá o tom de uma verdade passada e

ratifica o testemunho: ele estava incomunicável. O testemunho é antes apresentação que

representação, conforme aponta o desenrolar da cena:

Me lembrei de gente que tinha estado presa dois ou três dias, uma semana, e que

saiu depois, sem o menor problema. Afinal de contas, para mim, seria uma

experiência nova. Mas pensei também em Joseph K., que nunca chegou a saber

de que estava sendo acusado e mesmo assim acabou um dia apunhalado no

coração. Claro: existe uma enorme diferença entre a realidade e o romance.

Claro – pensava eu – a realidade é muito pior (BOAL, 1979, p. 18).

Joseph K. é personagem de O processo, escrito em 1925, pelo tcheco Franz Kafka.

K.,um bancário, certo dia acorda com dois homens em seu quarto que, sem maiores

explicações, apenas o conduzem a esperar para ser atendido pelo inspetor de polícia.

Surpreso, ele entra no quarto de Fräulein Bürstner, com quem dividia a casa, e o que

encontra o deixa intrigado: nada além do inspetor. Nesse momento percebe que está no

meio de uma investigação e ele é o investigado. E a história segue sem que se conheça

quem o teria denunciado às autoridades e o motivo de estar sendo preso. Apesar disso, K.

luta para descobrir do que estava sendo acusado. Sem sucesso, acaba assassinado.

Kafka escreveu O processo após a Primeira Guerra mundial, deflagrada,

basicamente, em virtude das ambições territoriais e de consolidação do capitalismo.

Imperavam os Estados autoritários e as lutas pelo poder tolhiam os direitos individuais,

feriam e culpavam inocentes, como Joseph K. Daí a identificação de Boal com a

personagem kafkiana. Contudo, importa ressalvar a diferença entre realidade e romance

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colocada por Boal; por isso, preciso retomar Walter Benjamin: ora, se o romance se calca

na possibilidade do que pode vir a ser, a realidade é, sem dúvida, mais dura. Enquanto

Kafka fala por Joseph K., Boal fala por si mesmo. Em uma primeira experiência de

violência, ao se comparar com protagonista kafkiano para, logo em seguida, dissociar-se

dele, Boal se depara com sua própria incomunicabilidade, o que o coloca em uma

situação de impotência, em um primeiro plano, diante de sua prisão e, em um segundo

plano – mas não menos importante – diante da dor do outro, conforme atesta a cena II.

3.2.1.2 Cena II

Aqui é preciso ser mais brechtiano do que

stanilawskiano... Aqui a gente não pode só

sentir, tem que tentar compreender... Tem

que ter muito efeito de distanciamento...

Nada de emoções...

Heleny Telles Ferreira Guariba.

A moça ao lado continuava chamando o “Catarina”. Daí a pouco ele veio à

minha janela e perguntou meu nome. “Boal”, respondi. Ele foi de novo falar com

a moça e logo ouvi a sua voz:

- Augusto?

- É... – disse eu meio surpreso.

- Sou eu, Maria Helena!

Era uma grande amiga minha que já estava presa há mais de um ano, já tinha

estado em várias delegacias e nos quartéis militares, havia sido torturada e quase

morta (BOAL, 1979, p. 20).

Boal, nesta cena, experimenta uma série de outras violências simbólicas, mas

efetivas, sobretudo no que diz respeito a vivenciar as experiências dos seus iguais. Sente-se

mal por não conseguir ver o rosto da amiga e avaliar se ela continuava igual ou se as

torturas haviam modificado seu rosto. Não sabe como postar a voz para que ninguém além

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dela possa ouvi-lo. Sofre porque, mesmo quase torturada até à morte, Maria Helena27

se

ocupa de aconselhá-lo:

- Ninguém deve confessar nada. Confessar um pouquinho só é pior que não

confessar nada, pra efeito de levar pancada, entende? Tem gente que confessa

um pouquinho só, pensando que assim eles vão parar com a tortura, e entram

pelo maior cano, porque assim é pior, aí é que eles torturam mesmo, porque eles

percebem que batendo mais o cara conta mais coisas. Mas se você não confessa

nada eles pensam que você não tem nada pra confessar, e acabam parando de

torturar (BOAL, 1979, p. 23).

O torturador é aquele que espera, na confissão, uma delação, para que possa

responsabilizar (torturar e matar) mais um. Portanto, não há verdade devida a um

torturador. Pode-se, sim, responder com mentira e violência à violência de um Estado de

exceção, como atesta Vladimir Safatle, em Do uso da violência contra o Estado ilegal

(2010):

Por isso, podemos dizer que o segundo princípio que constitui a tradição de

modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito fundamental de

todo cidadão é o direito à rebelião. Quando o Estado se transforma em Estado

ilegal, a resistência por todos os meios é um direito. Neste sentido, eliminar o

direito à violência contra uma situação ilegal gerida pelo Estado significa retirar

o fundamento substantivo da democracia (SAFATLE, p. 246).

Sobre isso, interessa pontuar que, em 2008, a ex-presidenta Dilma Roussef, então

Ministra da Casa Civil, quando da audiência da Comissão de Infraestrutura do Senado, ao

ser indagada pelo Senador Agripino Maia sobre ter mentido durante o período da ditadura

civil-militar, responde:

Eu tinha 19 anos, fiquei três anos na cadeia e fui barbaramente torturada,

senador. E qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para os seus interrogadores

compromete a vida dos seus iguais e entrega pessoas para serem mortas. Eu me

orgulho muito de ter mentido, senador, porque mentir na tortura não é fácil [...].

Não tenho nenhum compromisso com a ditadura em termos de dizer a verdade.

Eu estava num campo e eles estavam noutro e o que estava em questão era a

minha vida e a de meus companheiros [...]. Não há espaço para a verdade, e é

isso que mata na ditadura. O que mata na ditadura é que não há espaço para a

verdade porque não há espaço para a vida, senador. Porque algumas verdades,

até as mais banais, podem conduzir à morte. É só errarem a mão no seu

interrogatório [...]28

.

27

Em Hamlet e o filho do padeiro fica claro que Maria Helena era, na verdade, Heleny Telles Ferreira

Guariba. 28

Transcrição extraída do Youtube. Ver link: https://www.youtube.com/watch?v=12P7LtbHdqM.

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Ainda nessa mesma cena, Maria Helena conta sobre Manuela29

, outra amiga de

ambos, que estava também presa ali há um mês. E lhe avisa para não se impressionar,

porque Manuela tinha sido torturada e estava se aproveitando disso para exagerar,

esperando, assim, não ser mais torturada. Porém, algum tempo depois, Boal (1979) relata:

A verdade é que Manuela tinha sido tão torturada que não podia nem ao menos

andar. Mais tarde eu a vi no corredor, ajudada por duas companheiras; senti pena

dela, coitada, e um ódio mortal pela ditadura [...].

No corredor, Manuela reaprendia a andar. Cansava-se facilmente e ficava um

tempo sentada no chão. Era uma moça pequena e frágil. Duas ou três vezes ficou

sentada enquanto suas amigas também descansavam. Na quarta ou quinta vez em

que se sentou no chão estava bem perto da minha janelinha. As duas moças

ficaram conversando com um homem que estava mais distante – uma espécie de

fiscal, ou coisa que o valha, que tomava notas e examinava tudo. No chão,

Manuela falou comigo.

- Dói...

- Te machucaram muito?...

- É...

Perguntou se eu tinha visto a mãe dela ultimamente, e eu disse que sim e contei

todas as novidades que sabia. Ela disse que eu procurasse me manter calmo. Vi

que o homem fazia gestos para as duas moças, mostrando sua desaprovação, e

elas vieram de novo buscar Manuela. Ninguém podia falar comigo: eu estava

incomunicável. Manuela ainda pode se despedir de mim:

- Dói pra burro... (BOAL, 1979, p. 22).

Sem fome e se sentindo cada vez mais impotente em relação à dor do outro, Boal

testemunha mais uma tortura simbólica no momento em que vêm avisar a Maria Helena

que ela seria transportada para outro lugar:

- Capaz que eles queiram me levar de volta pro quartelzinho, pra me fazerem

umas perguntinhas mais...

O quartel a que se referia era um dos lugares mais lúgubres e terríveis de todo

Brasil. Ficava na rua Tutóia. Ali três equipes de oficiais se revezavam torturando

dia e noite, sem qualquer interrupção. Os mais ferozes torturadores, os mais

animalizados, ali praticavam. E como era pequena a distância entre a sala de

tortura e as celas dos presos, estes eram forçados a escutar dia e noite, sem

descanso, os gritos de dor dos companheiros. Às vezes, a pior tortura é ver um

torturado30

. E ali se podia ver – e se era forçado a ver – e ouvir. Vinte quatro

horas por dia (BOAL, 1979, p. 26).

29

Em Hamlet e o filho do padeiro Boal se refere à Manuela como Albertina, sua primeira mulher: “por

fingimento, não deveria me preocupar vendo Albertina, minha primeira mulher, reaprendendo a andar. Mas...

ficasse frio, descansado: ela exagerava na dor, não era tanta” (BOAL, 2000, p. 276). 30

Grifo meu.

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Além de ter a percepção da tamanha tortura sofrida por Manuela, Boal é violentado

pela possibilidade de Maria Helena estar sendo conduzida não só a mais algumas sessões

de tortura como também por ser torturada em um lugar no qual se é obrigado a partilhar, o

tempo todo, do sofrimento alheio. Dupla experiência de violência, que só se traduz pelo

silêncio:

Nesse momento eu ainda não sabia que minha amiga ia ser assassinada meses

mais tarde. Fiquei comovido do mesmo jeito. E quando ela desapareceu, sem

querer, chorei. Algumas lágrimas caíram das minhas mãos. Limpei os olhos com

os dedos que Maria Helena tinha beijado e sentei na cama. Fiquei pensando.

Pensamentos tão confusos como esse que a gente pensa sem saber direito no que

está pensando. Fiquei assim um tempo.

Durante toda a manhã não aconteceu nada mais.

Existiu um silêncio. Longo silêncio (BOAL, 1979, p. 28).

Segundo Boal (1979), Maria Helena foi solta meses depois e, a seguir, foi

reaprisionada, torturada e morta. Seu corpo despareceu.

Ao se comprometer com a experiência de violência do outro, Boal, além de também

violentado e, naquele momento, silenciado, oferece, posteriormente, em Milagre no Brasil,

o seu testemunho solidário, reestabelecendo um espaço simbólico que, nas palavras de

Gagnebin (2006), pode dar sentido humano ao mundo:

Muitas vezes se fala dos sofrimentos dos presos políticos no Brasil e nunca se

falará o bastante. Mas é igualmente necessário falar do heroísmo com que muitos

desses presos enfrentaram a repressão. Maria Helena foi uma dessas heroínas.

Dela ninguém jamais conseguiu arrancar a menor confissão, a mais

insignificante informação. Nenhum companheiro jamais poderá acusá-la da

menor falta (BOAL, 1979, p. 27).

Retomando a resposta de Dilma Roussef, feliz do país que não precisou desse tipo

de heróis:

Feliz do povo que não tem heróis desse tipo, senador, porque aguentar a tortura é

algo dificílimo, porque todos nós somos muito frágeis, todos nós. Nós somos

humanos, temos dor, e a sedução, a tentação de falar o que ocorreu e dizer a

verdade é muito grande, senador, a dor é insuportável, o senhor não imagina o

quanto é insuportável. Então, eu me orgulho de ter mentido, eu me orgulho

imensamente de ter mentido, porque eu salvei companheiros da mesma tortura e

da morte.

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3.2.1.3 Cena III

Mas não conseguia deixar de pensar...

Augusto Boal.

No intercurso que antecede essa cena, Boal diz ao soldado que está com vontade de

defecar, mas que na cela não tem papel higiênico. O soldado, então, tira uns papéis do

bolso, lê alguns e lhe entrega três deles. Nesse ínterim, a vontade de Boal já havia passado,

porém não o seu nervosismo e apreensão. Pensamentos recorrentes, circulares, imagens

que o faziam sentir como se estivesse prendendo ali, com ele, as pessoas a quem amava. A

tentativa de dormir fracassa e lhe vem à cabeça a hipótese de que, se conseguisse defecar,

o sono viria. Senta-se no vaso sanitário, mas continua não dando conta de controlar tais

pensamentos. De tão absorto, não percebe o ocorrido:

Estava tão entretido com os meus pensamentos que nem sequer percebi o que

tinha acontecido: foi o cheiro que me avisou que eu já tinha cagado. Limpei o cu

com as três folhinhas do soldado.

Mesmo assim não pude dormir (BOAL, 1979, p. 19).

No ensaio Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção

(1998), Selligman-Silva comenta, a propósito da obra Fragmentos: memórias de uma

infância 1939-1948, do autor Binjamin Wilkomirski, publicado em 1995. O livro alcançou

sucesso imediato, foi traduzido para mais de 12 línguas, adaptado três vezes para o cinema

e uma para o teatro. Foi aclamado tanto pela crítica literária quanto pelos mais importantes

estudiosos da Shoah como mais completo relato sobre o holocausto, em detrimento até das

provas documentais. Entretanto, em 1998, tamanho sucesso se tornou um escândalo da

história da literatura após a revelação de que tanto autor quanto obra eram ficção. Binjamin

Wilkomirski, na verdade, chama-se Bruno Doessekker, não é judeu nem tem origem

judaica e ainda nasceu em 1941.

Apesar disso, Selligman-Silva (1998) defende que, se a ficção de Doessekker é

trágica, mais trágicas foram as condições dos campos de concentração, condições estas que

continuam asseverando a inegável importância do testemunho para a literatura. Portanto,

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não vejo inconsistência em retomar o momento em que a resenha destaca as várias vezes

nas quais a testemunha, no campo de concentração, sentiu nojo, para lembrar que esse

sentimento serve como reafirmação dos limites do indivíduo:

Os seus limites físicos tornam-se a garantia de uma nova moral. É o corpo

também que serve de suporte para a nova cartografia mnemônica. Não é por

acaso que (proustianamente) o odor tem um papel importante na organização dos

fragmentos de memória (também) para Wilkomirski. Um sentido

tradicionalmente ligado aos instintos mais básicos e posto abaixo do olhar e da

audição ganha agora uma nova dignidade (SELLIGMAN-SILVA, 1998, p. 23).

Analogamente, naquele momento, sem ver ou ouvir ninguém após a saída do

soldado, esses outros sentidos dão lugar ao olfato, que se reconfigura na medida em que o

mau cheiro traduz mais uma experiência violenta: a incomunicabilidade confirmando a

solidão do cárcere.

3.2.1.4 Cena IV

Começa a ser revelada a história das

violências cometidas com o carimbo oficial

e que estão escondidas sob algumas pás de

terra ou impregnadas de teias de aranha.

Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos

a partir de 1964.

Ouvi ruídos no corredor: traziam um homem deitado em uma maca. Quando se

aproximaram, pude ver um rosto duramente golpeado. Era Hélvio que regressava

à sua cela. Tinha sido torturado com toda a crueldade: hematomas e sangue.

Depois me contaram que essa era uma das piores formas de torturar e se

chamava “Quente e Frio”: consistia de dizer ao prisioneiro que ele ia ser posto

em liberdade e lhe davam mesmo o direito de tomar banho, fazer a barba,

arrumar suas coisas. Às vezes, até lhe devolviam os documentos e objetos

pessoais. E, quando já estava no elevador, em vez de ir para a rua era levado

diretamente à sala de torturas para novas sessões. Inconsciente, voltava à sua

cela, onde tinha comemorado sua liberdade com seus amigos. Isso produzia um

impacto terrível sobre a vítima principal e, colateralmente, sobre todos os seus

companheiros. Aliava-se a tortura física à psicológica (BOAL, 1979, p. 33).

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Arrisco-me a fazer uma analogia: o superstes estaria para o narrador-personagem

assim como o testis estaria para o narrador-observador. Ocorre que, no testemunho,

enquanto experiência de violência - sobretudo a experiência derivada de grandes

catástrofes sociais – , dificilmente o superstes, ainda que observador da experiência do

outro (ou dos outros) dará conta, diante da violência na carne alheia, de ser testis, de

apenas narrar o que observou, de se colocar como um terceiro entre vítima e carrasco, entre

torturado e torturador. É impossível para ele ver o sangue do seu semelhante sem

compartilhar, mesmo que indiretamente, daquela dor. A não ser que não se julgue

semelhante, mas aí já não há experiência, pelo menos não aquela que impulsiona o

testemunho, como é o caso, nessa mesma cena, do Seu Luís cursilhista. Não ouso dar a

minha interpretação da sua fala, ela não abarcaria toda a ignara monstruosidade do que foi

dito, por isso transcrevo:

Seu Luís continuou e chegou perto da minha cela:

- Como é que vai, seu Francisco...?

- Meu nome é Augusto... – respondi.

- Eu sei, eu sei. Você pode se chamar pelo nome que quiser, mas aqui seu nome

não tem importância. Pra mim aqui, pelos documentos, você se chama... – e

olhou uns papéis que trazia - ...você se chama, deixa eu ver... Cela F-1, Francisco

de Sousa. Que tal? Gosta do seu novo nome? Não sei quem foi que o batizou...

- Prefiro meu próprio nome.

- É, mas não convém. Enquanto você estiver incomunicável, não convém. Você

já esteve preso antes ou essa é a primeira vez? (BOAL, 1979, p. 34).

Era muito comum, durante a ditadura civil-militar, forjar documentos com nomes

falsos, para que o prisioneiro não pudesse ser encontrado pela família ou para que, sendo

artista, não houvesse mobilização de qualquer natureza pela sua soltura. Mais do que isso,

o Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964 (1995) relata que, por

ocasião do golpe, a Doutrina de Segurança Nacional, alegando a defesa do Estado de

Segurança, instaura a censura, para que a maior parte do povo não tivesse acesso a nenhum

tipo de informação. Por outro lado, o governo investia na produção e na operação de

informações que visassem aos seus interesses e os de seus aliados, por meio do Serviço

Nacional de Informações (SNI), criado em junho de 1964. Essa e outras manobras31

31

A expansão do SNI teve como consequência o recrudescimento da repressão política. Foi criada a

Operação Bandeirantes – OBAN, financiada também por multinacionais, como a Ultra, Ford, General Motors

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garantiam que as autoridades governamentais não fossem responsabilizadas pelas mortes

de muitos desses presos, dados como foragidos pelos órgãos oficiais32

.

Voltando à situação de Hélvio, mais uma vez o Seu Luís é quem tortura:

- Aqui, os primários são tratados muito bem. A única coisa que precisam fazer é

confessar. Confessar tudo. O que você souber vai ter que confessar. É um

conselho de amigo: confesse. E logo você vai dormir na sua casa. Você vai

precisar demonstrar sua cooperação. Você precisa conquistar a confiança do seu

interrogador. O comissário é um homem severo, isso é verdade; mas ele gosta

muito das pessoas que confessam logo na cara. E é lógico: aqui todos confessam,

mais cedo ou mais tarde. Pra que perder o tempo, que é tão precioso? Pra quê?

Pra acabar como esse coitado aí ao lado? Quem não confessa por bem acaba

confessando por mal. Pra que perder tempo? Esse aí ao lado está com a perna

que dá dó, quase se pode ver o osso. Pra quê? Sofrimento inútil... (BOAL, 1979,

p. 34).

Assim, no decorrer de toda a cena, tem-se uma terceira experiência de violência:

uma para o Boal superstes protagonista, ao lidar com a subtração de sua identidade, e outra

para o Boal superstes coadjuvante, ao experienciar a dor de Hélvio. Quando ele diz que a

tortura “Quente e Frio”, além do impacto sobre a vítima, produzia um impacto psicológico

sobre todos os outros companheiros, está se incluindo entre esses companheiros, o que faz

dele também uma vítima. Chocado, Boal ainda relata:

Apareceu o médico da prisão, entrou na cela de Hélvio e seu Luís foi atrás.

Ficaram lá dentro uns 10 ou 15 minutos, depois saíram. Eu estava sentado aos

pés da minha cama, de modo que eles não me viam. Eu ouvia tudo o que diziam.

Seu Luís perguntou se não tinham exagerado um pouco na tortura.

- Não, não... – respondeu o médico – Acontece que torturaram ele de uma forma

errada. Não fizeram um trabalho profissional. Torturaram errado. Penduraram

ele de uma perna só, a direita. Porra, isso não se faz. Está me entendendo:

concentraram todo o peso do rapaz só no joelho direito. O resultado foi esse, é

lógico...

Seu Luís perguntou então muito naturalmente quantos dias teriam que esperar

antes de poder torturarem de novo. Friamente, o médico respondeu:

e outras. A OBAN contava com integrantes do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Política Estadual,

Departamento da Polícia Federal, Polícia Civil, entre outros. Foram tão eficientes seus métodos de combate à

chamada subversão, por meio de torturas e assassinatos, que serviu de modelo para a implantação, em escala

nacional, de organismo oficial – sob a sigla DOI-CODI – Destacamento de Operações e Informações Centro

de Operações de Defesa Interna (ARAÚJO et al, 1995, p. 24). 32

Ainda de acordo com o Dossiê, mesmo diante das mortes consideradas oficiais, ou seja, reconhecidas pelo

governo, muitas famílias, até hoje, não localizaram os restos mortais, pois as vítimas foram enterradas com

identidades falsas.

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- Não precisa repouso nenhum, não. Se quiserem fazer outra sessão hoje mesmo

à tarde, como não? Só que não podem encostar na perna direita: mas podem

pendurar o rapaz pela esquerda... (BOAL, 1979, p. 35).

Aqui, sim, tem-se o Boal testis, aquele terceiro que testemunhou e que, por isso,

além de deixar para a história o seu mal sofrido, também deixa como legado a denúncia da

omissão do Estado e de seus apoiadores, como comprova, mais uma vez, o Dossiê dos

mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964 (1995), segundo o qual o aparato de

repressão política tinha respaldo técnico de muitos Institutos Médicos Legais, que omitiam

as torturas, legalizavam mortes e permitiam a saída de cadáveres como indigentes, mesmo

identificados dentro das prisões33

.

3.2.1.5 Cena V

Enquanto os homens exercem seus podres

poderes...

Caetano Veloso.

O tira parecia ter prazer em tentar me assustar. Continuou contando detalhes

escabrosos de mortos, aleijados, e de gente que ficava louca durante os

interrogatórios.

- Você se lembra do Hélvio? Teve que ser internado na enfermaria. Está entre a

vida e a morte... Isso pode acontecer com qualquer um, até com você. Mas se

você deixar de besteira e confessar de uma vez, pode ser que hoje mesmo você

vá dormir em casa...

Eu estava já com dor de cabeça. Não conseguia pensar em mais nada, nem na

minha casa, nem no meu trabalho, nem na minha cela. Não conseguia ordenar

meus pensamentos. Meus olhos continuavam registrando imagens, mas era como

se elas não penetrassem na minha consciência. Por momentos, eu parecia perder

a consciência e era como se nem mais soubesse onde estava.

[...]

Creio que fiquei ali sentado umas duas horas (BOAL, 1979, p. 44).

Chamo essa cena de interiorização do terror, conforme colocam Marcelo e Maren

Viñar em Exílio e Tortura (1992, p. 164), segundo os quais “o clima de terror generalizado

33

Além disso, no formulário de requisição do laudo da necroscopia, vinha escrita a palavra “subversivo” ou

apenas a letra T, que significava terrorista.

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e a institucionalização da tortura (...) se traduzem, na subjetividade, como perda do apoio

social necessário ao funcionamento psíquico e com a interiorização do terror”. O relato,

por parte do policial, dos horrores da tortura, dos “detalhes escabrosos”, bem como a

ameaça do “isso pode acontecer com qualquer um, até com você” traduzem uma

experiência de desorganização da relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, para

qual a resposta do indivíduo me parece ser essa sensação de perda de consciência, de não

identificação nem com o lugar nem com o tempo:

Eu estava terrivelmente cansado de tanto me emocionar. A insegurança de cada

minuto, a tristeza de ver tudo o que eu via, se refletia nos meus músculos e eu

me sentia esgotado. Queria dormir. Queria parar de pensar. Não conseguia nem

ao menos pensar coordenadamente. Não juntava dois pensamentos. Às vezes

perdia a noção de onde estava (BOAL, 1979, p. 50).

A interiorização do terror, então, vem acompanhada de toda uma carga traumática.

Essa complexidade que é a descontinuidade de pensamentos, essa impressão de estar fora

de si mesmo, de se perder no espaço e no tempo constitui, assim, uma experiência que

dificulta tanto a elaboração das lembranças quanto a organização de uma linguagem que dê

conta de expressá-las.

3.2.1.6 Cena VI

Faz de conta que não dói...

Augusto Boal.

Nunca me havia ouvido gritar semelhante grito. Nem pude acreditar que era a

minha voz. Em geral, quando uma pessoa quer gritar, prepara o grito. Esse foi o

primeiro grito da minha vida sem nenhuma preparação. Por isso era diferente,

não parecia meu, não se parecia a nenhum grito conhecido (BOAL, 1979, p. 63).

Na literatura de testemunho, o corpo – a dor – é um de seus elementos e cada

vítima tem um modo de lidar com ela. O grito é uma das maneiras de se expressar a dor,

mas o não reconhecimento do próprio grito assinala uma lacuna memorialística típica do

testemunho. Tem-se, a partir desse não reconhecimento, um novo mapa de memória, em

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que a dor se sobrepõe a qualquer tentativa de a vítima, no presente da narrativa, delimitar

um espaço temporal para a tortura:

Comecei a tremer convulsivamente: sentia a eletricidade em toda parte do corpo,

nos braços, nas pernas, na cabeça, no estômago. Minhas orelhas pareciam

queimar. O choque elétrico não tinha durado muito – talvez uns poucos segundos

– mas os seus efeitos continuavam muito além.

[...]

Que horas seriam? Eu queria saber as horas. Talvez isso pudesse me distrair da

dor. Qualquer coisa me podia distrair da dor. Eu queria pensar em qualquer

coisa, menos na dor (BOAL, 1979, p. 63-64).

Diante da dor, tudo o que o cerca já não faz sentido para além do corpo que sofre.

Tamanha é a consciência embotada, que Boal ri:

Eu não podia acreditar. E isso o que era? Seria possível que eles não

compreendessem? Estavam me torturando e ao mesmo tempo declaravam que a

tortura só existia na propaganda feita no Exterior pelos maus patriotas. A

bestialidade da cena era tão grande que eu não me contive e sorri (BOAL, 1979,

p. 66).

Sobre essa passagem, preciso fazer duas considerações. A primeira se refere ao

paradoxo entre dor e riso, que remete a Freud (1905) em Os chistes e sua relação com o

inconsciente (2017), na qual ele relata o caso de um condenado à morte que, na manhã de

sua execução, diz que a semana está começando otimamente. Essa estranha relação entre

angústia e riso aponta para o quanto o humor pode funcionar como uma cortina que se

fecha por sobre o horror. A segunda, ainda na esteira desse paradoxo, reforça a potência do

testemunho, na medida em que não é possível metaforizar nem a tão grande bestialidade da

cena, muito menos o horror sob o disfarce do riso. É como se essa descrição fosse uma

peça de um outro quebra-cabeça colocada naquele cenário, um alívio cômico na narrativa

presente que permite suportar a sequência trágica:

Desta vez não me lembro nem mais ou menos quanto durou o choque, mas

certamente foi muito mais do que eu podia aguentar, em estado de consciência.

Eu me lembro que o meu corpo saltava pendurado pelos joelhos, como se fosse

uma máquina de quebrar pedras. Lembro do meu grito continuado e das caras

ferozes, ofendidas. Deve ter passado muito tempo. Desmaiei. Não sei se uma ou

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duas vezes, se muito ou se pouco tempo. Só sei que depois de algum tempo eu

ainda continuava ali, pendurado e que meus dedos pareciam bolas de sangue,

sangue escuro, quase preto.

[...] Enquanto isso, outra rajada de choques elétricos, mais curtos, mais rápidos.

Meus gritos, cada vez mais débeis. Comentaram entre eles que eu já não ia

aguentar mais. A sequência curta dos choques tinha me causado um mal enorme.

Tenho problemas respiratórios e isso, aliado à posição em que estava, quase me

impossibilitava de respirar. Duas ou três vezes perdi a consciência, não me

lembro (BOAL, 1979, p. 67-72).

Lembrar e não lembrar, saber e não saber: são imagens que se alternam e se

desorganizam, tal como o relato. Além disso, entremeando o passado, o verbo no presente

utilizado para se referir aos problemas respiratórios traz à narrativa tamanha vivacidade

que produz no leitor a sensação de participar da cena como se, tal como o protagonista,

estivesse também com dificuldade de respirar. Por isso, julgo necessário mais uma vez

reforçar a importância da narrativa em relação ao romance: essa narrativa dura, dolorida,

só ela dá conta de testemunhar.

Boal, ora coadjuvante, ora protagonista, nos oferece uma parcela, ainda que

pequena, mas não menos importante, do que foram os anos de chumbo no Brasil. Não

houve nada de sublime em Auschwitz, como de sublime nada houve nos cárceres da

ditatura brasileira, daí a coragem para reviver a dor, narrar o inenarrável, confessar o

inconfessável que, aqui, assume uma acepção muito diferente do que os torturadores

entendiam por confissão. No presente do narrar, Boal categoricamente afirma: “quero

deixar bem claro que eu nunca confessei nada” (BOAL, 1979, p. 81).

3.2.2 Ato II – O incomunicável comunicável

3.2.2.1 Cena I

- Esta é a sua nova casa!

- Bom, eu espero que seja só um hotel!

Augusto Boal.

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Era um motim suicida, sem nenhuma possibilidade de êxito: começaram por

queimar os três ou quatro colchões que os cinquenta ou sessenta presos

utilizavam, enquanto gritavam muito alto e alguns se jogavam com toda a força

contra as grades, numa inútil tentativa de escapar. Esse era o “motim”: puro

desespero. [...] E assim foi: obedientes às ordens dos seus superiores, os

soldados, enfurecidos pelos gritos desesperados dos corrós, munidos de longos

cassetetes tamanho “família”, como eram chamados, entraram no pavilhão dos

presos comuns e desceram a lenha com sanguinário ódio, estúpido ódio. A

quem?

Os cassetetes subiam e desciam, incessantes, e continuavam subindo e descendo,

calando gritos, ferindo rostos, costas, quebrando braços e pernas, sangrando

mãos e costelas.

Quando os soldados receberam ordens de parar, nas celas ficaram caídos mais de

trinta corpos desmaiados. Desses, três estavam mortos (BOAL, 1979, p. 151).

Depois da cela F-1, a cela do incomunicável, Boal é transferido para o presídio

Tiradentes, em São Paulo que, até então, abrigava os presos comuns, também conhecidos

como corrós. A partir do golpe de 64, o Tiradentes passou a abrigar, em um pavilhão

específico, os presos políticos. Agora se, por um lado, estes gozavam de certos

“benefícios”, como celas conjuntas, por outro os corrós sofriam constantes torturas,

quando não eram retirados de suas celas para serem executados. Em solidariedade, os

presos políticos costumavam ser as “vozes” contra tamanha violência, gritando e batendo

nas grades da celas, conforme relatam Alípio Freire, Izaías Alrnada e J. A. de Granville

Ponce em Tiradentes, um presídio da ditadura: Memórias de presos políticos, de 1997.

Quanto a essa cena, uma ponderação, sem a qual não posso dar sequência à

próxima, em que abarcarei, mais uma vez, Boal enquanto testemunha solidária. Cumpre-

me, então, a referência às pesquisas de Penna (2015) sobre o testemunho carcerário

brasileiro sob a perspectiva da experiência da violência biopolítica formulada por Foucault

(1978-1979), em Nascimento da biopolítica (2008).

Para esse filósofo, a partir do século XVII, o Estado, por ser detentor do poder, se

apropria dos processos biológicos, com o objetivo de controlá-los e/ou modificá-los. Como

uma necessidade dessa apropriação surgem os mecanismos reguladores e corretivos, tais

como a norma e a regulamentação. Desse modo, a norma se aplica como mecanismo

disciplinador de um corpo ou de uma população, por meio da regulamentação. Aplicando

esse conceito à realidade carcerária brasileira, Penna levanta a hipótese de que aqui a

prisão seria análoga a um laboratório em que se experiencia a biopolítica enquanto

tratamento da pobreza.

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De fato, desde massacres como o do Carandiru – conhecido internacionalmente e

relatado por Dráuzio Varella em Estação Carandiru – até o incêndio da cadeia pública de

Ponte Nova, em Minas Gerais – nem tão divulgado, apesar de considerado o terceiro maior

massacre em prisões no Brasil -, esses “laboratórios” podem ser mapeados. No Carandiru,

uma desavença entre dois detentos terminou com 111 mortos, sem chance de se

defenderem:

Passava das três da tarde quando a PM invadiu o pavilhão Nove. O ataque foi

desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu

chance para defesa. Embora tenha sobrado para todos, as baixas mais pesadas

ocorreram no terceiro e no quinto andar. Cerca de trinta minutos depois de

ordenada a invasão, nas galerias cheias de fumaça ouviram-se gritos de “Pára,

pelo amor de Deus! Não é para matar! já chega, acabou! Acabou!” (VARELLA,

1999, p. 288).

Diferente da versão oficial, os relatos dos sobreviventes contaram pelo menos 250

vítimas e, dentre elas, nenhum policial:

No dia 2 de outubro de 1992, morreram 111 homens no pavilhão Nove, segundo

a versão oficial. Os presos afirmam que foram mais de duzentos e cinquenta,

contados os que saíram feridos e nunca retornaram. Nos números oficiais não há

referência a feridos. Não houve mortes entre os policiais militares (VARELLA,

1999, p. 294).

Em Ponte Nova, a briga entre chefes de tráfico terminou com um enorme bolo de

carne carbonizada formado por 25 presos, que morreram abraçados. Depoimentos colhidos

pela CPI Carcerária revelaram que a ameaça do massacre já vinha ocorrendo há muitos

meses, ou seja, aqueles homens já tinham consciência de que poderiam morrer, bem como

já haviam relatado essa possibilidade aos responsáveis pela cadeia.

No Carandiru, atiradores posicionados apontaram suas armas para os fundos ou

para as laterais das celas e 70% dos tiros atingiram cabeças e tórax; em Ponte Nova, uma

carta escrita por Giovani Inês, da cela 8, um dia antes do incêndio que também o matou,

manifesta: “Não sei o que será porque já estou esplodino de raiva qualquer hora pode

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acontecer uma chacina já que os pessoal não quere nos separa e nem dar bonde”34

. Apenas

nessas duas ocorrências, a omissão do Estado matou pelo menos 275 seres humanos.

Portanto, um olhar mais atento revela que os presos políticos participaram de

episódios presentes na história carcerária brasileira pelo menos desde a época da

escravidão35

: a biopolítica do encarceramento e do genocídio da pobreza.

3.2.2.2 Cena II

É uma cova grande pra tua carne pouca

Mas a terra dada, não se abre a boca

É a conta menor que tiraste em vida

É a parte que te cabe deste latifúndio

É a terra que querias ver dividida...

Chico Buarque de Holanda.

Entre suas poucas respostas me disse que vinha do Nordeste e que se chamava

Buda Bóia-Fria, que estava preso fazia mais de dois anos, sem nenhuma

esperança de julgamento. Tinha sido acusado de saquear caminhões de alimentos

e armazéns. Durante a grande seca de 1970, ele e todo o povo da sua cidade,

famintos, vendo que seus filhos morriam de fome apesar de suas enormes

barrigas inchadas (fruto de uma doença), não resistiram e assaltaram alguns

caminhões de mantimentos. As autoridades o acusavam de haver incitado o povo

ao saque. Acusavam-no de ser o líder das desordens, e por isso foi aprisionado

(BOAL, 1979, p. 153).

Era hora do banho de sol na Tiradentes e Boal não quis descer, pois estava gripado.

Ficou na cela junto a um colega que atendia pelo apelido de Buda Bóia-Fria, homem que

despertava sua curiosidade, por ser “de poucas palavras”, inclusive para explicar por que se

34

Depois do incêndio, a carta foi encaminhada pela esposa do detento à vereadora Ana Ferreira, sendo

posteriormente anexada à documentação colhida pelos representantes da CPI Carcerária da Câmara dos

Deputados, que passaram três dias em Ponte Nova para apurar o massacre. Essa e outras informações

encontram-se na redação final do documento de 423 páginas, disponibilizado pelo seguinte endereço

eletrônico: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-

de-inquerito/53a-legislatura-encerradas/cpicarce/notas/NT240807.pdf. 35

Um documento do Programa Lugares da Memória, do Memorial da Resistência de São Paulo, relata que,

inicialmente, o Presídio Tiradentes teve sua estrutura pensada para dois propósitos: depósito de escravos, que

eram colocados no calabouço; e casa de correção, que abrigava aqueles que não correspondiam aos padrões

vigentes, fosse pela prática de crimes ou em virtude de sua classe social, como vadios.

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chamava Bóia-Fria36

. E ali estava uma personificação bem “Severina”. Interessante

analogia. A obra Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, publicada em 1954,

aborda a precária existência daqueles oprimidos pela seca e pelo desigual sistema sócio-

econômico-político brasileiro. Assim como o retirante Severino, Buda Bóia-Fria é vítima

desse sistema. É interessante notar que tanto a personagem de Cabral quanto Buda, ao se

apresentarem, nomeiam-se pela coletividade, representando todos esses oprimidos:

O meu nome é Severino/não tenho outro de pia/Como há muitos Severinos/que é

santo de romaria/deram então de me chamar/Severino de Maria/como há muitos

Severinos/com mães chamadas Maria/fiquei sendo o da Maria/do finado

Zacarias/mas isso ainda diz pouco/há muitos na freguesia/por causa de um

coronel/que se chamou Zacarias/e que foi o mais antigo/senhor desta

sesmaria/Como então dizer quem fala/ora a Vossas Senhorias? (MELO NETO,

1994, p. 4).

Não sou nada, sou povo (BOAL, 1979, p. 154).

Como então dizer quem fala a “Vossa Senhoria” Augusto?

Em resposta curta e seca:

- Muitos se chamam assim, que nem eu...

- Escuta – [...] – eu sou um ignorante. Não entendo nada de marxismo, nem de

revolução, nem de Partido. Não entendo nada. Por isso estou sempre estudando,

pra poder aprender. Não sou nada: sou povo. Isso sim: conheço o meu povo e sei

o que é a injustiça. Não sei escrever nem falar direito, mas se você quiser saber

qualquer coisa mais, toma [...] (BOAL, 1979, p. 154).

E deu a Boal um recorte de jornal que noticiava um grave acidente, próximo à

cidade de Palmares/PE37

, entre dois caminhões que transportavam trabalhadores dos

engenhos pernambucanos e um caminhão de gasolina. Esses trabalhadores eram os

substitutos de empregados fixos que os latifundiários dispensaram para evitarem

obrigações contratuais. Assim, muitos indivíduos em situação de vulnerabilidade, a

36

Na prisão Tiradentes os presos tinham por hábito se apelidarem com base nos motivos que os levaram à

prisão em características ou de acordo com a função que desempenhavam dentro das celas. 37

Sobre esse episódio, vale a pena questionar o anacronismo histórico que, segundo Schwarz (1978), permeia

o espetáculo Arena conta Zumbi. Pode-se notar, sim, uma analogia entre o período colonial brasileiro e os

períodos que antecedem e sucedem o golpe civil-militar de 1964, afinal, não eram (e são) também escravos

os boias-frias? Derrota não pressupõe ausência de luta nem de heróis.

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maioria moradores de periferias, aceitavam trabalhar por salários miseráveis e sem nenhum

amparo legal. Ficavam parados à beira das estradas, esperando serem escolhidos para

subirem nas carrocerias descobertas dos caminhões e transportados até os engenhos, onde

cortavam cerca de três toneladas de cana por semana, trabalhando 12 horas por dia,

sustentados por uma alimentação que consistia, no máximo, em um pouco de feijão preto e

arroz ou farinha de mandioca, frios. Daí o nome boia-fria. Desse acidente resultaram 11

mortos, 15 feridos em estado grave e uma notícia de um jornal mais corajoso em tempos de

ditadura, afinal, quando algum boia-fria ensaiava um protesto, era encarcerado.

Ao término da leitura, Boal olha para Buda, que se limita a dizer: “esse sou eu”

(BOAL, 1979, p. 157).

Interessa notar que, em relação à história de Buda Bóia-Fria, Boal recorre à

transcrição da notícia, afirmando: “transcrevo o que li. É melhor que contá-lo” (BOAL,

1979, p. 155):

Na noite de sexta-feira 7 de dezembro, sessenta pessoas, entre homens, mulheres

e crianças, se acomodavam como podiam em cima da carroceria do caminhão

que os conduzia de volta às suas casas, depois de uma semana de trabalho nos

canaviais queimados da zona do Monte, de Pernambuco. A toda a velocidade, o

chofer do caminhão tentou ultrapassar outro que ia na frente e subitamente se

encontrou com um terceiro caminhão carregado de gasolina. Manobras

desesperadas não impediram a infernal colisão. Os corpos ficaram prisioneiros

entre os ferros retorcidos, ou foram arrojados a vários metros de distância.

Resultado: 11 mortos, 15 feridos em estado grave e todos os restantes com

feridas menores, diversificadas. “Depois do choque”, contou Amaro Ferreira da

Silva, uma das vítimas, “Vi Enemias olhando os mortos caídos na estrada.

Muitos feridos pediam socorro, mas ele deixou tudo e fugiu”. Enemias era o

chofer do caminhão, o “gato” contratado pelos donos do Engenho Jereba para

fazer o transporte dos trabalhadores. Aproximava-se da cidade de Palmares pela

estrada BR 101quando aconteceu o desastre. Palmares fica a 95 quilômetros de

Recife, no sul do Estado de Pernambuco. “Não sei como não se incendiou o

caminhão com os 8 mil litros de combustível que tinha dentro”, disse o chofer do

outro veículo. Os corpos ficaram esparramados em um raio de 50 metros até que

foram recolhidos por outros caminhões que passavam por aí. Os trabalhadores

tinham sido “emprestados” pelo proprietário do Engenho Brejo, Abelardo

Carneiro Leão, ao seu cunhado, dono do Engenho Jereba, Luís Alvinho Soares.

Eles foram reforçar o pessoal nas tarefas de aproveitamento das seis mil

toneladas de cana incendiadas naquela área. Amaro Ferreira da Silva, que

quebrou uma perna com o impacto, levava no bolso 21 cruzeiros

correspondentes a três toneladas de cana que tinha cortado de segunda a sexta-

feira. Como ele, muitos dos seus companheiros recebiam 4 cruzeiros por doze

horas de trabalho, cuja produção alcançava a seiscentos quilos de cana por dia,

arrancadas com a foice. Este não foi o único acidente grave ocorrido em

circunstâncias semelhantes durante esta safra. Por toda parte era a mesma coisa:

Paraná, São Paulo, - a única diferença era que ali se colhia café, em vez de cana.

Oficialmente esses acidentes são causados por falhas humanas, mas as

autoridades se esquecem de que existe uma lei que proíbe o transporte de seres

humanos em caminhões descobertos, especialmente em tão grandes quantidades.

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Este tipo de transporte se vem institucionalizando na medida em que os

latifundiários preferem não manter empregados fixos, com a finalidade de evitar

as obrigações contratuais daí decorrentes: salários mínimos, 13º salário, férias,

etc. Por isso, empregam os chamados “bóias-frias” que vivem marginados nas

favelas das periferias das cidades. Durante o inverno, em São Paulo, os “bóias-

frias” formam estranhas figuras com lenços abrigando boa parte do rosto e

deixando de fora apenas os olhos e o nariz; já no Nordeste, a indumentária de um

“bóia-fria” se reduz a uma camisa e uma calça, ambos rasgados, e talvez um

chapéu de palha. Os “bóias-frias” ficam parados ao lado das estradas, esperando

o caminhão do “gato”, o emissário do patrão. Este passa, seleciona os mais

fortes, e em menos de meia hora enche seu caminhão com 40 ou sessenta desses

homens, que têm nome porque cada um leva sua panela (ou outro recipiente)

com a comida do dia, fria, que geralmente não é mais do que um pouco de feijão

preto e arroz, e talvez farinha de mandioca, e outras muitas vezes apenas farinha

e água. Essa é sua comida e vem daí seu nome. Quando chega a hora de voltar

para casa, o “gato” os transporta de retorno às suas choças de madeira e zinco.

Os caminhões são sempre velhos e o mais comum é que fiquem horas na estrada,

sendo consertados. É muito frequente que o “bóia-fria” regresse à sua casa na

hora de voltar à estrada para esperar o próximo “gato”. Estes trabalhadores não

são protegidos por nenhuma lei. Ninguém se responsabiliza por eles e ninguém

reconhece manter com eles vínculo algum. Os “bóias-frias” apareceram quando

o governo decidiu promulgar algumas leis “a favor” do trabalhador agrário, mas

o fez de maneira tão demagógica que incentivou os latifundiários a despedir os

trabalhadores que tinham contratado e a utilizar os serviços do intermediário, o

“gato”. Por que têm esse nome? Porque, como gatos, muitas vezes fogem com o

salário dos 40 ou 60 homens que levam ao trabalho. Mas não é preciso fugir com

esse dinheiro, já que o “gato” tem sempre formas próprias de exploração; pelo

serviço de transporte e, além disso, por ter feito a escolha de cada “bóia-fria”, o

“gato” se apropria de uma percentagem que chega a 50% do salário de cada

trabalhador. Além disso, muitas vezes o “gato” é também o proprietário do

armazém da favela. Por isso guarda consigo o dinheiro dos salários e paga em

“vales” de mercadorias, que podem ser descontados apenas no seu armazém. Por

isso, fixa os preços como bem entende. Muitas vezes, liderados por algum

companheiro, mais experimentado ou mais destemido, os camponeses ensaiam

um protesto. Imediatamente o “gato” chama os “bate-pau”. Vem a polícia e

encarcera esses líderes (BOAL, 1979, p. 155-57).

Ao optar pela transcrição, ele acaba por novamente se remeter a Benjamin38

, para

quem a contemporaneidade trouxe consigo uma valorização extrema da experiência

pessoal em detrimento da autenticidade dessa experiência. Porém, de acordo com Penna

(2003), o mundo moderno confirma o diagnóstico benjaminiano, mas, simultaneamente,

também o nega:

Tudo hoje em dia é experiência: dos relatos de vida à circulação obsessiva do

discurso das opiniões, construídas a partir da experiência pessoal, como podemos

verificar, por exemplo, na estrutura da notícia do jornalismo impresso e

televisivo, cada vez mais estruturada não tanto a partir da representação de fatos,

mas de experiências. A notícia é construída pela experiência pessoal do

entrevistado, transformada em discurso da opinião, com a intervenção marginal

38

Experiência e pobreza e O narrador.

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do jornalista como organizador das múltiplas experiências pessoais (PENNA,

2003, p. 114).

Logo, o testemunho, em suas diversas manifestações, é a primazia das experiências.

Assim, a opção pela transcrição da notícia revela uma transferência do protagonismo da

cena, de Boal para Buda, ao mesmo tempo em que, como leitor e transcritor, Boal não

deixa de ser testemunha de uma experiência de violência biopolítica, a testemunha

solidária, aquela que não vai embora após a narração do outro e que se compromete a

levá-la adiante, aquela que possibilita que o subalterno fale e seja ouvido.

3.2.3 Ato III – Eu queria dizer alguma coisa que não fosse triste

3.2.3.1 Cena final

De volta à cela, conversei com alguns companheiros e lhes contei minha tristeza.

Contei também que nunca ia esquecê-los. E lhes contei que julgava ser meu

dever denunciar tudo que me tinha acontecido e tudo o que tinha acontecido a

eles. Não me lembro quem foi que me sugeriu que eu escrevesse uma peça, mas

lembro que lhes mostrei alguns cadernos em que eu tinha feito anotações de tudo

que via e ouvia, das histórias que me contavam. Parte do texto estava escrito em

outras línguas para dar a impressão de que se tratava de um caderno onde eu

aprendia francês, espanhol, etc. Disseram que provavelmente, quando me

revistassem, apreenderiam esses cadernos.

[...]

Eu queria dizer alguma coisa que não fosse triste, mas só pensava pensamentos

tristes (BOAL, 1979, p. 286).

Na literatura de testemunho da Shoah, é frequente a concepção de que os campos

de concentração sejam a única realidade, de modo que não existe uma possibilidade de

saída: não há outro mundo do lado de fora. De fato não há. Não existe mais mundo do lado

de fora dos cárceres da ditadura brasileira. Milagre no Brasil foi construído pelas

anotações de Boal, anotações estas que antes se inscreveram no corpo, na sua dor e na dor

do outro.

Para além disso, é essencial pontuar que o exílio é também uma experiência de

violência: “me olhava no espelho vazio e todo mundo tinha ido embora – até eu! Difícil

fazer a barba quando não se vê a imagem...” (BOAL, 2000, p. 290). Faz-se importante,

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ainda, especificar que essa fala não está em Milagre no Brasil, mas sim em Hamlet e o

filho do padeiro – mais conhecido como memórias de Boal. Coloquei-a aqui por duas

razões: em primeiro lugar, para reafirmar que as experiências de violências acompanham o

indivíduo por aonde quer que ele vá. Não há superação. O cárcere, com todas as suas

nuances de horror, estará para sempre dentro daquele que por lá passou. Impossível se

libertar totalmente dele. Para alguns, como Boal e outros intelectuais, essa prisão interior

pode encerrar uma luta com a linguagem e se transpor em testemunho; para outros, que

perdem essa luta, resta continuarem violentados pela pobreza, pela exclusão, pelo

desemprego, trazendo em seus corpos físicos a lembrança da dor e em seus corpos civis a

marca da prisão.

Em segunda instância, porque, assim como a libertação do cárcere é impossível,

impossível também é o retorno após o exílio:

Sempre que chegava a novo país, nova língua, metabolismo, tudo novo, pensava:

um dia, volto pra minha caneca de café, minha, só minha.

Em trânsito – sozinho, com a família ou com meu elenco francês – eu visitava e

achava o Rio estranho; não tinha tempo de ver o que olhava. As pessoas não

eram iguais ao que haviam sido: vozes, timbres, pensamentos, tudo diferente.

Em 86 fiquei morando e me dei conta do impossível. Ninguém volta do exílio,

nunca! Jamais (BOAL, 2000, p. 323).

No final, presos políticos ou corrós se tornam estrangeiros em seus próprios países.

Pouco antes de ser libertado da Tiradentes, Boal teve vontade de comer milanesas.

Mais uma vez, não as comeu.

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Fotos de Aurora Maria Nascimento Furtado

FONTE: Dossiê Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

Disponível em:

http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/tag/Aurora%20Maria%20Nascimento%20Furtado

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Incêndio Cadeia de Ponte Nova/MG

DATA: 23/08/2007

FONTE: Associação dos Servidores do Corpo de Bombeiros e Polícia Militar

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Suportar o desencontro entre a imaginação e o

fato. Não inventar um outro sistema imaginário

adaptado ao novo fato. “Eu sofro”. É melhor

isso que: “esta paisagem é feia”.

Ruth Klüger, Paisagens da memória.

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4 HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: PARA LEMBRAR DE NÃO ESQUECER

4.1 O estatuto da memória

“Hoje, vejo. Sofro a frágil imagem” (BOAL, 2000, p. 276). Essa constatação está

no capítulo 22 de Hamlet e o filho do padeiro, intitulado Prisão e cadeia: a liberdade de

Prometeu, a partir da qual problematizo a questão do “eu” testemunhal, bem como meu

recorte dos últimos capítulos dessa obra.

Apesar de ter deixado claro que a tese não se limitou a uma abordagem teórica

sobre os gêneros aos quais se filiam os objetos de pesquisa, a saber, Milagre no Brasil e

Hamlet e o filho do padeiro, faz-se necessário, ainda que de modo breve, pontuar em que

medida o “eu” que testemunha uma experiência como objeto (de perseguição, prisão e

tortura) em Milagre no Brasil passa a ser o “eu” que testemunha uma experiência como

sujeito em Hamlet e o filho do padeiro: seria imperativo para a importância do testemunho

essa distinção?

Se retomarmos o conceito de Yúdice sobre testemunha, veremos que não:

El testimonio podria contrastarse ademas con otros tipos de discurso novelistico

o (auto)biografico - exemplum, diario, memorias, relato de conversion,

evangelio, etc.-, pero lo que me parece importante destacar es que en todas estas

formas puede encontrarse cierto grado de modalidad testimonial, imponiendose

algunas veces como en el relato de conversion o en el evangelio, o cediendo

otras veces ante los imperativos genericos de otras formas cuya meta es tipificar

o representar. Mas que nada, el testimonio reconoce la responsabilidad de la

enunciacion, rasgo que le proporciona un caracter muy distinto al de los

discursos hegem6nicos de la modernidad occidental (YÚDICE, 1992, p. 218)39

.

A medida, acredito, está em compreender que não há como separar radicalmente os

dois sentidos do testemunho, assim como não se deve dissociar, de modo rígido, a

historiografia da memória.

39

O testemunho também poderia ser contrastado com outros tipos de discurso romanesco ou (auto)

biográfico - exemplum, diário, memórias, história de conversão, evangelho, etc.-, mas o que eu acho

importante notar é que em todas essas formas pode ser encontrado um certo grau de modalidade testemunhal,

impondo-se às vezes como na história de conversão ou no evangelho, ou cedendo outras vezes ante aos

imperativos genéricos de outras formas cujo objetivo é tipificar ou representar. Mais do que tudo, o

testemunho reconhece a responsabilidade da enunciação, uma característica que lhe confere um caráter muito

diferente dos discursos hegemônicos da modernidade ocidental (YÚDICE, 1992, p. 218, livre tradução

minha).

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Em um primeiro momento, permito-me fazer, aqui, uma breve exposição acerca

dos dois sentidos do testemunho. Em Milagre no Brasil, a memória acionada pela

testemunha é a da experiência traumática passada do e no corpo que se traduz no presente

da escritura, segundo o qual o componente do relato é estabelecido no presente do escritor,

ainda que com lacunas, próprias da experiência da violência, como se a vítima ainda

estivesse lá.

De outro lado, a memória acionada em Hamlet e o filho do padeiro se ocupa,

simultaneamente, do passado e do presente, porque ele se volta para esse passado no

intuito de recuperar lembranças e, ao mesmo tempo, inscreve-se no seu texto, deixando

claro o tempo presente da sua escrita: “memória e imaginação são inseparáveis siamesas,

não univitelinas: parecem-se com poréns, que pena: uma loira, outra morena! Quem sou

eu pra divorciar quem Deus mandou casar? Ele sabe o que faz, linhas entortadas” (BOAL,

2000, p. 13).

Em segundo lugar, para se pensar nas obras-documentos de Boal, há que se pensar

nessas memórias sem restringi-las à mera historiografia, mas, ao mesmo tempo, sem

dissociá-las. Desse modo, no que diz respeito às memórias da ditadura civil-militar

brasileira, recorro às pesquisas de Renato Franco, em Literatura e catástrofe no Brasil: os

anos 70 (2001), para quem a literatura dessa época foi condicionada por fatores políticos.

A palavra do sobrevivente, então, pode servir como documento para que a historiografia –

campo de investigações científicas que visa, dentre várias pesquisas, esclarecer e registrar

essas experiências de violências – possa dar sua contribuição no que concerne a investigar

e apresentar a catástrofe que foi esse regime no Brasil, como exige a todo tratamento que

se dá a eventos históricos de barbárie.

Assim, as memórias resgatadas em Hamlet e o filho do padeiro, embora se

distanciem temporalmente daquelas resgatadas em Milagre no Brasil, também contribuem

para a reconstrução das cargas de repressão e censura que a memória “oficial” do país fez

questão de apagar. Por conseguinte, historiografia e memória atuam paralelamente.

Portanto, é inegável que, ao recordar, em Hamlet e o filho do padeiro, os eventos que o

impulsionaram a escrever Milagre no Brasil, Boal lança mão de uma narrativa de forte

teor testemunhal. Em nota de rodapé, diz: “carregamos museus em nossa memória: de

cera, históricos e também museus de horror: todas as cenas que descrevo neste capítulo,

todas as imagens, estão arquivadas na minha memória. É fácil consultá-las: basta recordar

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um nome, um episódio, cor, frase ou palavra, e elas retornam, tão vivas como quando

viveram” (BOAL, 2000, p. 274).

Não são memórias imaginadas. São memórias que, no tempo presente da escritura,

colocam-se como um ponto alto entre história e memória e ressignificam o testemunho.

4.2 Memórias imaginadas?

- Escreva sua biografia – sugeriu Talia Rodgers.

Valeria a pena esculpir esta pessoa? Modelar coerências na pedra impura e

excessiva da minha vida, moldar contornos do homem, supondo-se que tenha

tido sentido a trajetória? Jogar fora “o resto” e descrever o que penso que sou ou

tenha sido?

Biografias dão ideia de missão cumprida. Eu, ao contrário, a cada novo fim,

recomeço. “Caminhante: o caminho não existe – faz-se ao caminhar” – faço

veredas, atalhos. Quero mais. Sou excessivo, demasiado. Seria incômodo falar

de mim: no que faço, importa o feito, não o fazedor.

Talia havia publicado três livros meus –lembrou que, neles, feito e fazedor se

misturam. Para que melhor entendesse meu teatro, seria útil que eu desvelasse

minha vida do meu jeito, não tintim por mais tim, pingos nos is, mas histórias,

fatos e feitos.

Afinal, quem sou? Sirvo pra quê? Instruções de uso – bula. O Teatro do

Oprimido, de onde veio, praonde vai? Está nos quatro ângulos do mundo, mas

onde cresceu criança?

Eu achava imoral: Narciso mirando-se no espelho, belo, querendo-se mirado.

Presunção e água benta. Vaidade. Recusei.

Mesmo dizendo não, comecei a conversar com minhas irmãs, Augusta e Aída, e,

de conversa em conversa, histórias foram voltando à vida.

Comecei a ver a Igreja da Penha pedra, rochedo onde me batizei aos onze anos,

suportando água benta na cabeça, fugindo do sal na boca. Meu pai perdeu a hora

de me batizar bebê e só abriu a brecha no trabalho quando foi padrinho de um

sobrinho: “Batizam-se os dois, fica mais barato o padre.” “Deus há de entender a

demora”, confirmou minha mãe: sabia o que dizia quando falava do Céu e da

Terra.

Foi subindo no meu coração ternura imensa pelas personagens que voltavam a

bailar comigo. Senti cheiro de infância, música de vozes, gosto de pão, manteiga

derretida. Não madalenas proustianas: marias-bentas, barrigas de frade, sonhos,

quindins de Iaiá. Senti ternuras até por mim, vejam só! Nem sei se mereço.

Tomei decisão solene e me disse: “Autobiografia tem que ser póstuma: não

escrevo! Mas, se escrevesse, como seria? Como se escreve biografia?”

Memória é invasora – lembrando-se uma, escura, mil assanhadas querem ser

lembradas, invejosas. É contagiosa: lembrados lembram. Ciumentas, vaidosas:

querem aparecer, estrelas. Memória vagabunda, detalhe, pensa merecer

manchete e foto. Memórias são como nós, iguais.

Eu fugia, espavorido: memórias me acordavam no meio da noite, sacudiam no

fim do dia, soprando no ouvido: “Conta aquela: vão gostar, não duvido...”

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Procurei compreender, na tela trêmula, a trêmula vida: família, companheiros,

amigos, inimigos – que os tive, mais do merecido!

Procurei contar meu teatro, sua gênese: nada de intimidades. Personagens

importantes passaram de raspão: não denunciei ninguém. Não é meu feitio.

Mudei nomes, pessoas, personagens. Os fatos são verdadeiros, mas não

aconteceram iguais ao meu jeito de contar: estilo existe! Juntei gentes numa só,

poucas dividi em muitas; contei antes o que veio depois e, depois, o que nem

veio... mas podia. Quando os aconteceres são incontestes, aí sim, vai nome e

sobrenome; endereço, fax, telefone; CEP, DNA e CPF; e-mail, impressões

digitais, retratos falados e tudo mais.

Juro dizer verdades, não meço sinceridades: coração grande muito abriga! Não

juro verdade inteira, fria, solene: impossível. Memória e imaginação são

inseparáveis siamesas, não univitelinas: parecem-se com poréns, que pena: uma

loira, outra morena! Quem sou eu pra divorciar quem Deus mandou casar? Ele

sabe o que faz, linhas entortadas.

Espero que vocês gostem e, se perguntarem: “Será verdade?”, saibam: foi. A

vida até agora tem sido como confesso aqui: não sei o que vem por aí (BOAL,

2000, p. 11-13).

A transcrição das duas primeiras páginas que abrem Hamlet e o filho do padeiro

buscam contextualizar, neste capítulo, o local do testemunho, no que se refere à memória.

Em Hamlet e o filho do padeiro, como em Milagre no Brasil, Boal resgata a

descrição da F-1 e de sua incomunicabilidade:

No corredor, portas trancavam celas coletivas, rostos sofridos; espiando dentro,

corpos deitados. No fundo, outra porta dava para um corredor curto ligando

quatro celas para presos solitários. Segurança máxima. Eu não era perigoso; a

cela, sim, feita para prisioneiros imponentes: grades grossas, inventadas para

guerrilheiros medonhos. Fiquei trancado.

Sempre que digo portas, entenda-se de ferro, pesadas, rangendo! Sempre que

digo celas, entenda-se gente amontoada, triste. Sempre que digo triste, entenda-

se tristeza extrema, sensação de morte.

A cela que me hospedou – fiquei só! – estava no ângulo reto: através de

janelinhas – a minha e a do corredor – via o longo caminho; imaginava o curto, à

direita. Tinha dois passos apressados de comprido, menos de dois tímidos de

largura. Pia e latrina, rato no ralo (BOAL, 2000, p. 273-274).

Recorda a violência simbólica, mas efetiva, ao se deparar com Heleny e com

Albertina:

Heleny deu conselhos. Primeiro: não confessar nunca, nada. Nem a mínima reles

confissão de detalhe inconsequente. Lembrou Nelson Rodrigues: mesmo que o

marido surpreenda a mulher nua na cama, o amante ao lado, nu, mesmo flagrada,

deve negar, sempre: foi um mal-entendido. Mesmo nua: mal entendido... Na

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polícia, igual: negar sempre. Com vantagem: o marido é posto em dúvida mesmo

vendo a nudez da mulher; o torturador, esse, não viu nem sabe nada: suspeita. Se

interroga, é porque outro torturado, não resistindo, denunciou. A história estava

cheia de falsas denúncias... e novos tormentos, verdadeiros.

[...]

O segundo conselho veio com feições brechtianas: Heleny contou que os

torturados exageravam os efeitos da tortura para se livrarem de males maiores.

Stanislaskianos, simulavam com perfeição pequenas dores que exibiam,

magnificadas.

[...]

Isso me ajudou a suportar a visão de Albertina, reaprendendo a caminhada.

Pensei que fosse melodramática encenação: atriz, apesar do over-acting, sincera.

Soube, depois, que não: Heleny queria me poupar a dor de ver de verdade,

naquele lugar. Hoje, vejo. Sofro a frágil imagem (BOAL, 2000, p. 276).

Interioriza o terror:

Quiseram me assustar descrevendo torturas. Tupac-Amaru, guerrilheiro indígena

peruano, foi amarrado pelos espanhóis a quatro cavalos; um estampido

afugentou os animais, em quatro direções: Tupac-Amaru morreu estraçalhado.

No Brasil usavam-se jeeps. Cadeira do dragão era de alumínio: o prisioneiro

sentado nu, amarrado; punha-se fogo embaixo. O calor insuportável, o

prisioneiro podia-se levantar, encaixando a cabeça em capacete eletrificado...

Escolhia entre o choque elétrico na cabeça e fogo em pernas e nádegas. A

Psicodélica fazia-se em um quarto pouco maior que um elevador, paredes

cobertas de espelhos: alto-falantes tocavam diferentes ritmos na mais alta

potência, luzes de todas as cores se acendiam e apagavam. Depois de minutos, o

corpo do prisioneiro saltava, sem comando; estrebuchava, sem controle. Pelo

resto de sua vida ouviria sons, olhos cegos (BOAL, 2000, p. 278).

Rememora a tortura, o riso e mais tortura:

No começo, a dor é apenas suportável. Depois, não: sofre-se demais. Os dedos

incham, bolas roxas do sangue que não circula. Gritos ressoam no silêncio

sólido. Gritos de dor, medo, promessas de morte.

Eram demais as punhaladas da dor. Quis ganhar tempo, perguntei de que me

acusavam. Não sabiam: as equipes que torturavam não eram as mesmas que

prendiam – a cada qual, sua especialidade mortífera; pertencente às duas, apenas

o barbudo. Olhou a lista de acusações graves. A primeira dizia que eu difamava

o Brasil quando viajava ao exterior. Perguntei como difamaria. Lendo na lista,

disse que eu difamava a pátria porque afirmava, no estrangeiro, que no Brasil

existia tortura.

Impossível não rir, mesmo pendurado.

O reostato aumentou a carga. Secou meu riso magro.

[...]

Depois de uma ou duas horas – foram séculos, pendurado – me desceram do

engenho, joelhos desencaixados, respiração explosiva.

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“Amanhã tem mais. Aqui todo mundo confessa: cedo ou... tarde demais, na cova

rasa – aqui não tem caixão... nem compaixão...”

Não dormi. Sequelas ficam, corpo e alma. Imagens resistem na retina, jamais se

apagam! Vozes gritam nos ouvidos, jamais se calam (BOAL, 2000, p. 278-279).

Todos esses episódios, tudo o que representou para Boal a catástrofe que foi o

golpe e o impulsionou a escrever Milagre no Brasil está (re)contado em Hamlet e o filho

do padeiro. É preciso, portanto, abrir espaço para voltar o olhar a essas memórias sob a

perspectiva do local do testemunho. Em relação a isso, duas menções não podem deixar

de ser comentadas: Kafka e milanesas.

4.2.1 Sobre Kafka e milanesas

Efetivamente, a trajetória pelo Fundão e pela Tiradentes se inicia no capítulo 22,

mas há, por várias passagens do livro, algum tipo de menção a essa época. Duas delas

merecem especial atenção: Kafka e milanesas.

A primeira ideia veio simples: O processo, de Kafka, revelava o que, no Brasil,

acontecia. K. acorda de manhã, como havíamos acordado no 1º de abril de 1964,

e descobre em seu quarto dois policiais que vieram intimá-lo: está sendo acusado

por alguém (não se sabe quem), de alguma coisa (não se sabe o quê), e será

julgado (não se sabe quando), em algum tribunal (não se sabe onde) (BOAL,

2000, p. 223).

Mil novecentos e sessenta e oito – ano dos estudantes! -, clímax da luta pela

liberdade de expressão. Foi o último ano de relativa claridade antes da escuridão

que tomou conta do país inteiro a partir do Ato nº5, que instituiu oficialmente o

fascismo no país, trazendo leis como a famosa Lei Secreta: nas acusações

oficiais, publicava-se o número e não o conteúdo das leis que teriam sido

infringidas pelo réu, o que permitia à ditadura acusar e condenar quem quer que

fosse, alegando infração à lei, à qual nem os advogados tinham acesso.

Condenados sem saberem por que: Joseph K., Franz Kafka (BOAL, 2000, p.

253).

Se voltarmos a Milagre no Brasil, uma referência a K. está logo no início do seu

testemunho:

Pensei que talvez eu estivesse exagerando, que talvez meu caso fosse mesmo

sem a menor importância, como diziam todos. Pra que me preocupar? Me

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lembrei de gente que tinha estado presa dois ou três dias, uma semana, e que saiu

depois, sem o menor problema. Afinal de contas, para mim, seria uma

experiência nova. Mas pensei também em Joseph K., que nunca chegou a saber

de que estava sendo acusado e mesmo assim acabou um dia apunhalado no

coração. Claro: existia uma enorme diferença entre a realidade e o romance.

Claro – pensava eu – a realidade é muito pior. No Brasil mata-se muito, mas as

autoridades sempre dão uma explicação qualquer: às vezes mentem: o

prisioneiro tentou escapar, armou-se um tiroteio, morreram os prisioneiros. No

romance de Kafka o protagonista morre sem saber por quê; no Brasil, os mortos

morrem porque, de uma forma ou de outra, lutaram honradamente contra a

ditadura e em favor do povo (BOAL, 1979, p. 18-19).

Quanto a isso, as pesquisas de Selligman-Silva (2010, p. 17) apontam a constante

alusão a Kafka na literatura sobre a Shoah. Ora, se o testemunho sobre a Shoah é “uma

literatura que explora os ‘limites’ da humanidade e a metamorfose do ser humano”, o

processo de desumanização que se dá no cárcere é análogo a essa metamorfose: quem

sobrevive a quaisquer violências impostas por regimes totalitários não será mais o mesmo.

Nesse ponto, insisto na retomada do sistema trágico-coercitivo de Aristóteles, cunhado por

Boal, na medida em que, para que se produza uma violência totalitária, é preciso acionar

qualquer “razão” que transgrida um ethos social definido, também conhecido como razão

do Estado.

As milanesas, por sua vez, presentes no capítulo inicial de Milagre no Brasil,

metaforizam a prisão40

:

Minha mulher me telefonou e disse que tinha milanesas pro jantar. Eu estava

com fome e minha casa ficava a poucos quarteirões do teatro. Chovia muito.

Pensei que era melhor comer um sanduíche no bar em frente, o “Redondo”,

porque tinha que assistir ao espetáculo noturno e talvez não valesse a pena ir em

casa, só pelas milanesas. Mas fui. Queria comer milanesas.

[...]

Pensava lindos planos (na imaginação são mais fáceis de fazer), ia escapando da

chuva que não parava de cair, me encostando contra as paredes dos edifícios,

quando de repente senti que me agarravam as mãos e diante de mim apareceu um

sujeito que vinha me seguindo sem que eu percebesse.

[...]

- Eu vou buscar o carro. Não tenta bancar o espertinho que a gente te mete uma

bala por dentro da cara (BOAL, 1979, p. 8-9).

Mais que isso, metaforizam a ruptura de um movimento de resistência do teatro ao

golpe, estabelecido, sobretudo, em 1968:

40

O primeiro capítulo tem como título Eu ia para casa comer milanesas, não comi.

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Ia pensando pelo caminho na próxima viagem do meu elenco à Europa.

Tínhamos sido convidados a participar do Festival Mundial de Teatro de Nancy,

França e, além de Bolivar, íamos apresentar também Zumbi e uma experiência

chamada “teatro-jornal”. Formas e técnicas muito simples, para transformar

notícias de jornais em cenas teatrais, a fim de permitir que qualquer pessoa possa

fazer teatro, reconquistando essa arte para o povo. Todo o elenco estava

encantado com essa perspectiva – a viagem duraria mais ou menos dois meses.

Viajar, para nós, era uma forma de respirar um pouco. Desde o dia 13 de

dezembro de 1968, data do “golpe dentro do golpe”, quando o país entrou em

estado de sítio, quando começaram a se formar os famigerados “esquadrões da

morte” e outros organismos de repressão, de torturas e de assassinatos, desde

então também o teatro sofreu as consequências do neofascismo caboclo. O

lamentável era que, depois das viagens, tínhamos que voltar outra vez e

continuar fazendo teatro nessas condições tão terríveis. Mas eu tinha o hábito de

Scarlett O’Hara de deixar para resolver amanhã os problemas de amanhã e de

deixar para a volta os problemas da volta e, no meu caminho em direção às

milanesas, pensava exclusivamente em tudo que podia fazer nos outros países.

Pensava em regressar pela América Latina, parando em todos os países onde

pudéssemos apresentar nossos espetáculos, e estabelecer contactos mais

permanentes com os nossos colegas desses países, rompendo o bloqueio cultural

que o imperialismo estabelece entre nós (BOAL, 1979, p. 8).

Também em seu capítulo final, lá estão elas, pré-cheirando à liberdade e ao

testemunho:

Na hora do almoço senti vontade de comer milanesas. Não sei porque. Tive

vontade. Talvez porque nessa mesma noite, talvez, talvez, sempre talvez, eu

finalmente pudesse voltar para casa. Meu advogado tinha me dito que era quase

certo. Tantas outras vezes tinha sido quase certo. Mas desta vez eu estava com

mais esperanças, quase com certeza. Quase. Apesar do quase e, mesmo assim,

comecei a olhar cada companheiro e a me despedir mentalmente de cada um.

[...]

De volta à cela, conversei com alguns companheiros e lhes contei minha tristeza.

Contei também que nunca ia esquecê-los. E lhes contei também que eu julgava

ser meu dever denunciar tudo o que me tinha acontecido e tudo o que tinha

acontecido a eles (BOAL, 1979, p. 284-286).

Em Hamlet e o filho do padeiro, as milanesas acionam as memórias iniciais do

testemunho:

Acabado o ensaio, Cecília me telefonou. As milanesas estavam cheirosas. Fui

pisando em ruas molhadas. Na Amaral Gurgel – fazia escuro e chovia – três

homens armados saíram de um fusca. Dois, reconheci: interioranos que nunca

tinham ouvido falar de Eurípedes. Torcendo meu braço, perguntaram se ia ser

necessário me algemar ou se eu iria por bem (BOAL, 2000, p. 272).

Iam me soltar: eu pré-cheirava milanesas. Não querendo assumir

responsabilidades, o sub-chefete barbado telefonou ao superchefão drogado:

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feliz, mandou que me hospedassem por uma noite. Queria falar comigo. Eu quis

telefonar. Não! Afinal... uma noite só... raciocínio embrutecido do brutamontes

(BOAL, 2000, p. 273).

Fechava os olhos, explodiam na memória rostos de Cecília e Fabián, mulher e

filho, assustados. Abria os olhos arregalados: não queria vê-los na cela estreita,

vê-los presos, sequer imaginá-los – abria os olhos para que se fossem! Onde

estariam? Não queria vê-los prisioneiros, sequer na memória enjaulada. Fechava

os olhos, voltavam, Fabián, Cecília. Sobressaltado, levantava as pálpebras com

os dedos: via paredes sujas e eles desapareciam. Se piscava, voltavam: queria vê-

los voando, distantes, longe de grades, paredes, limites. Em segurança (BOAL,

2000, p. 274).

Boal queria comer milanesas. Não as comeu. Infelizmente, suas memórias ficaram

enjauladas por longos 24 anos, isto é, entre 1985 e 2009 – ano da sua morte -, no que se

referiu ao resgate dos espaços de memória relativos ao pós-64. Fato é que o ato jurídico de

recorrer à força legal para tratar do resgate à memória veio justamente ao final do ano de

2009, quando foi publicado o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, que

previa a criação da chamada Comissão Nacional da Verdade (CNV), demanda social de

reparo que já havia sido reconhecida pela Constituição da República do Brasil de 1988 (art.

8º, ADTC, BRASIL, 1988).

Por meio de um grupo composto por diversos conhecedores do período, muitos até

engajados profissionalmente em tutelar reparos para os danos sofridos pelas vítimas diretas

da ditadura, iniciou-se um trabalho de busca pela reconstrução dessa fase histórica, visto

que

no contexto da passagem do cinquentenário do golpe de Estado que destituiu o

governo constitucional do presidente João Goulart, a CNV atuou com a

convicção de que o esclarecimento circunstanciado dos casos de detenção ilegal,

tortura, morte, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver, bem como a

identificação de sua autoria e dos locais e instituições relacionados à prática

dessas graves violações de direitos humanos, constitui dever elementar da

solidariedade social e imperativo da decência, reclamados pela dignidade do país

(BRASIL, 2014,p.21).

O resultado dos trabalhos da Comissão da Verdade passou a integrar o Arquivo

Nacional e a fazer parte do Projeto Memórias Reveladas que “foi institucionalizado pela

Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional com a

finalidade de reunir informações sobre os fatos da história política recente do País”

(BRASIL, 2009).

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Fica claro, então, que essa ação foi possível porque foram reunidas vítimas e

solidários a elas. Logo, fica evidente, também, que, assim como o testemunho jurídico, o

testemunho artístico-literário está a serviço de possibilitar a construção de um novo cenário

político, essencial não só para as vítimas de experiências-limite, como também para as

sociedades que foram impactadas por regimes ditatoriais.

No entanto, o Brasil não fez muito mais que isso para que os vitimados pelas piores

formas de tortura e perseguição - em que a ideologia era punida e a liberdade, segregada e

velada, insidiosamente, mascarada sob o disfarce de proteção de fins do Estado –

pudessem trilhar esse caminho testemunhal. Politicamente, não houve a abertura de um

caminho para a História que, quando percorrido, torna possível considerar o testemunho

também como documento histórico, permitindo identificar um entrecruzamento de

memória e experiência histórica. Até porque, segundo José Carlos Moreira da Silva Filho,

em Memória e reconciliação nacional: o impasse da anistia na inacabada transição

democrática brasileira (2011, p. 282), a “ausência de uma adequada transição política

contribui para que a democracia não se desenvolva, para que ela fique isolada em um

discurso democrático ao qual corresponde, em verdade, uma prática autoritária”. E vai

mais além, quando afirma que a caracterização da anistia, no Brasil – no que tange ao

processo de transição relacionado à última ditadura -, tem sido dissociada da memória e,

em virtude disso, troca-se o reconhecimento pelo esquecimento.

A exemplo, por ocasião do golpe de 2016, mais precisamente durante a votação

pelo impeachment de Dilma Rousseff, o deputado Jair Bolsonaro, ao se manifestar em

sessão pública, fundamenta assim o seu voto: “pela memória do coronel Carlos Alberto

Brilhante Ustra41

, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças

Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”

(WENTZEL; DELLA BARBA, 2016).

Em um país onde esse tipo de discurso, no qual nenhuma violação ou apologia às

atrocidades ocorridas ganham a devida coerção social - como evidencia a homenagem

prestada -, onde a elite prega a corrupção do Estado, substitui os militares pelo Judiciário e

41

O relatório da CNV revela que o citado Carlos Alberto Ustra foi coronel do Exército. Comandante do

Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II

Exército de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Foi instrutor da Escola Nacional de Informações em 1974 e,

do final desse ano a novembro de 1977, serviu no Centro de Informações do Exército (CIE), em Brasília,

tendo atuado na seção de informações do e chefiado a seção de operações. No período em que esteve à frente

do DOI-CODI do II Exército ocorreram ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados por ação de

agentes dessa unidade militar, em São Paulo (BRASIL, 2014, p.859).

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decide que é preciso “virar essa página da história”, torna-se complexo considerar esses

atos como afronta às vítimas da ditadura, seus familiares e de toda a sociedade livre.

Selligman-Silva (2010) chama a atenção para o fato de que a literatura testemunhal

brasileira em relação ao regime civil-militar é ainda muito pequena, se comparada com a

de outros países da América Latina. Ele cita alguns testemunhos como o de Alípio Freire

sobre o presídio Tiradentes42

. Cita também o projeto coordenado por Marcelo Ridenti e

Zilda Márcia Gricoli, com a contribuição da pesquisadora Janaína Teles, que entrevistou

ex-combatentes do regime civil-militar43

. Demonstra, ainda, que autores como Antonio

Callado, Paulo Francis, Carlos Sussekind e Renato Pompeu, em suas obras, abordaram o

enfrentamento da violência e de sua representação.

Apesar de o Brasil não ter feito muito mais que a CNV em relação aos vitimados

pelo regime civil-militar, Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro lançam luz aos

passos que desaguaram nessa Comissão: Boal ia para casa comer milanesas, Cecília as

dizia cheirosas. Não comeu. Preso, pensou em Kafka, Joseph K., aquele que foi acusado de

não se sabe o quê e morto sem saber o porquê. Torturado, não confessou nem verdades

nem mentiras, desenhou Torquemada. Exilado, escreveu Milagre no Brasil: “Dirigi, na

NYU, Torquemada – espiões na plateia; na Saint Clement’s, a Feira latino-americana de

opinião – diplomatas espionando. Escrevi um romance, Milagre no Brasil – milagre o

povo continuar vivo, apesar do governo” (BOAL, 2000, p. 290). Em nota de rodapé,

confessa: “Neste, contei tudo o que os espiões procuravam, mas nenhum deles leu o livro”

(idem, p. 290). Em suas memórias, recupera K. e milanesas; estrangeiro para si mesmo,

oferece o testemunho sobre os impactos do exílio e do impossível retorno.

4.3 Estrangeiro para si mesmo

Antes da sentença final, o juiz me concedeu o direito de viajar e me juntar ao

elenco. Minha presença em Nancy44

daria a impressão de magnanimidade: a

ditadura precisava mostrar cara menos sórdida.

Assinei documento prometendo voltar terminado o Festival e estar presente no

tribunal na hora da sentença. O funcionário que me fez assinar a promessa de

42

FREIRE, Alípio. Tiradentes, um presídio da ditadura. São Paulo: Scipione, 1997. 43

TELES, Janaína de Almeida, RIDENTI, Marcelo; IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. (orgs.). Intolerância e

Resistência: Testemunhos da repressão política no Brasil (1964-1985). São Paulo: FFLCH/USP, 2010. 44

Festival Internacional de Teatro Universitário de Nancy, França.

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retorno avisou: “Não prendemos ninguém segunda vez: matamos! Não volte

nunca. Nesta linha: assine! Prometa voltar”45

.

Foi o único conselho da ditadura que segui a risca: só voltei em dezembro de

1979, meses depois da Anistia (BOAL, 2000, p. 282).

O exílio foi, para Boal e outros tantos perseguidos políticos, garantia de

sobrevivência. No entanto, se, para alguns, esse exílio foi uma escolha de não habitar um

país sob ditadura, para Boal significou banimento, sob ameaça de morte. Em 1998, a Casa

Militar da República entregou a ele um relatório no qual o serviço secreto da ditatura, após

investigações, o considerou oficialmente banido:

Em 1998, obrigada por lei federal, a Casa Militar da Presidência da República

me entregou a relação de todas as informações que o serviço secreto da ditadura

tinha colecionado a meu respeito: aí se lê que a ditadura me considerou

oficialmente banido – não apenas exilado: banido. Proibido de regressar ao

território nacional! Banido: proibido de voltar à casa. Banido: desterrado,

extirpado! (BOAL, 2000, p. 282).

Edward Said, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (2003), aponta que a

origem do exílio está na antiga prática do banimento. Usualmente, há mecanismos

jurídicos que corroboram para expatriar aqueles que, de algum modo, colocam em xeque

uma nova ordem instaurada, sobretudo quando existe um projeto político. Este foi o caso

do Brasil. A exemplo disso, no extrato de prontuário, parte do dossiê sobre Boal, datado de

15/10/75, dentre várias acusações, consta que ele foi indiciado, em 1965, por ter

contribuído com o CPC-UNE, apoiando e seguindo o processo de aliciamento ideológico,

baseado na luta de classe e visando à mudança da ordem política e social. Consta também

que, durante todo o tempo em que esteve residindo no exterior, vinha desenvolvendo

constante campanha difamatória contra o Brasil, escrevendo peças teatrais, fazendo

entrevistas, proferindo conferências, participando de reuniões subversivas, na América

Latina e na Europa, abordando aspectos negativos da política e do sistema judiciário

brasileiro, bem como e denunciando torturas praticadas em presos46

.

45

Boal foi absolvido nesse julgamento. A sentença, que se encontra no Anexo VII, dá provas da absolvição,

mas, como se pode notar, em atitude própria da ditadura civil-militar, ele foi ameaçado de morte e essa

ameaça jamais estaria registrada na sentença. 46

Cf. em Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), do Ministério da Justiça do Brasil. A parte

do dossiê que traz essas e outras acusações encontra-se no Anexo VIII.

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O primeiro país a receber Boal foi a Argentina, como também foi sua experiência

de violência pós-banimento:

Sensação estranha: a cidade não precisava de mim! Se não existisse, eu não faria

falta. Na minha terra eu fazia diferença, mesmo mínima. Em Buenos Aires,

nenhuma. Me sentia invisível. Me olhava no espelho vazio e todo mundo tinha

ido embora – até eu! Difícil fazer a barba quando não se vê a imagem... (BOAL,

2000, p. 289-290).

Fato é que o degredo implica em que o degredado rompa com suas referências e

impõe a ele uma violenta experiência de “desenraizamento”, conforme descreve Denise

Rollemberg, em Exílio. Refazendo identidades (1999):

A derrota de um projeto político e pessoal, o estranhamento em relação a outros

países e culturas, as dificuldades de adaptação às novas sociedades, que muitas

vezes os infantilizavam, o não-reconhecimento nos novos papéis disponíveis,

tudo isto subvertia a imagem que os exilados tinham de si mesmos,

desencadeando crises de identidade. Em diversas situações cotidianas, foi

possível ver a manifestação destas crises: na batalha pelos documentos ou na

recusa em obtê-los; no trabalho e no estudo; na militância política ou no seu

abandono; nas atividades culturais e artísticas; na vida familiar e afetiva

(ROLLEMBERG, 1999, p. 40).

A história do cotidiano no exílio implica em uma desordem identitária, em uma

constante busca por redefinir e reconstruir essa identidade. Dentre todo esse

estranhamento, o primeiro momento na Argentina como exilado trouxe para Boal o não

reconhecimento do seu papel naquele lugar, tanto que, em nota de rodapé, acrescenta: “a

personalidade do exilado corre sério risco de desintegração – é preciso que eu faça falta

para saber quem sou: sou a falta que faço. Se não faço falta, não sou! É o pior que pode

acontecer a alguém: tornar-se anônimo para si mesmo!” (BOAL, 2000, p. 289).

Por outro lado, Rollemberg (1999) defende que status social era um elemento que

diferenciava os exilados, pois, enquanto alguns foram reconhecidos enquanto pessoas

públicas e, por isso, recebiam convites para continuarem a desenvolver seus ofícios

interrompidos no Brasil, outros se viram com necessidade de atuar em profissões diferentes

daquelas para as quais eram qualificados. No caso de Boal, é inegável que ele pertencesse

ao primeiro grupo, porém julgo oportuno registrar que, ainda assim, o seu trânsito pelos

países nos quais temporariamente habitou não deixou de ser violento:

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Não conseguia me integrar em uma cultura que não era minha – só o vinho.

Tinha amigos, família, falava a língua. Faltava o quê? Eu me sentia dissolver.

Areias movediças não me tragavam: dificultavam a caminhada.

Voltar pra minha casa, caneca de café – o desejo crescia, gigante. Olhava o céu e

não encontrava minhas estrelas. As que havia, não eram minhas. Não era aquela

a minha lua. Não era o mar aquele rio.

Trânsito. Tirava os sapatos em outro chão, a cada noite. Quando caíam, o

estrondo me enlouquecia47

(BOAL, 2000, p. 294).

Não deixou, também, de fragmentar, em certa medida, sua identidade:

Dirigi Torquemada. Não acreditava no que me havia acontecido. Precisava vê-lo

acontecer fora de mim, em cena, para que me pudesse ver, separar-me de mim.

Eu e a palavra, eu e o ator. Só assim me entenderia.

Não me bastava espelho nem memória: precisava me ver em alguém que me

roubasse o nome, o Augusto Boal que eu pensava ser, que trazia colado ao rosto,

às mãos, ao peito. Já não sabia quem era eu ou tinha sido48

. Queria ouvir

palavras que pronunciei na tortura. Voz empostada de ator bem treinado

reproduzindo gritos roucos. Ver-me, longe de mim (BOAL, 2000, p. 294).

Dividido, tenta reunir seus fragmentos para se ver de longe, coletivo, e escreve

Murro em ponta de faca49

:

Em Portugal, outra vez me senti por demais sozinho – escrevi peça em que me

via de longe: Murro em ponta de faca. Olhava distante, na bruma. Sentia o vento

e o frio da viagem sem fim. Peça circular, nela não sou ninguém: sou todos, sou

a que se mata e sou os sobreviventes.

Escrevi o Murro em Lisboa, quando exilados se suicidavam. Tribo de solitários,

tão juntos, iguais: tão sós! (BOAL, 2000, p. 295).

Em trânsito, vislumbrou a morte:

Mãos quentes apertavam minha mão: no dia seguinte, frias. Quando se

esfriariam as minhas? Mortos davam exemplo! Incentivos: pra que viver?

Acabou, não acabou? Então melhor acabar de vez!

[...]

Pensei morte. Visitei locais suicidas. Lembrei defuntos queridos. Mortes

esperadas e mortes prematuras. Mortes dolorosas e mortes acidentais. Causa

47

Grifo meu. 48 Grifo meu. 49

A peça expõe a experiência de um grupo de exilados brasileiros em seu percurso pelo Chile, Argentina e

França.

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natural e causa bala. A caveira mexicana, ao lado dessa vertigem, é mimo

(BOAL, 2000, p. 296).

Se o exílio tem estreita relação com o desenraizamento, com a desestabilização e

com a solidão, a anistia, no Brasil, funcionou tão apenas como sequelas do degredo. A Lei

nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como Lei da Anistia, decreta, em seu artigo

1º, que

é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de

setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo

com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e

aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao

poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares

e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos

Institucionais e Complementares (BRASIL, 1979).

O que se observa nessa lei é que torturadores e torturados foram colocados no

mesmo patamar. Na medida em que se fala de crimes políticos, cabe questionar: o crime

político do golpe de 64, que prendeu, torturou, baniu e matou tem o mesmo peso e a

mesma medida para aqueles que estabeleceram resistência a esse golpe, para aqueles que

foram presos, torturados, banidos e mortos?

A Lei da Anistia foi tão somente mais uma manobra política que proporcionou a

um regime autoritário decadente uma via para controlar um processo de transição que o

protegesse de responder pela violação dos direitos humanos e que viabilizasse o retorno ao

poder, por meio da “democracia”, das mesmas pessoas que dele fizeram parte.

Ao abrir espaço para esse retorno ao poder, permitiu que o país permaneça

encarcerando a pobreza, que a justiça continue sendo seletiva, que os discursos de

violência e segregação sejam banalizados, que os pobres sejam responsabilizados pela sua

própria miséria e que o golpe de 2016, legitimado por uma elite colonizada, conseguisse

“exilar” um governo que se propôs a reduzir privilégios. Pela figura de um general de

toga50

, desenha-se uma aberta perseguição política, batizada de Operação Lava Jato, que

50

Marcos Cesar Danhoni Neves, professor titular da Universidade Estadual de Maringá, em artigo escrito

para a Revista Fórum, intitulado Moro, laços de família e o “ground zero” da destruição da justiça e da

esquerda no Brasil, afirma que a cólera de Sérgio Moro contra as esquerdas, Lula e o PT é promessa de

família e descreve sua formação como um “verniz conservador”, advindo do seu pai, Dalton Moro, que, em

1980, posicionou-se contra a abertura política. Neves também conta que, entre 1995 e 2000, Sérgio Moro

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relativiza a interpretação dos textos legais, inclusive da Constituição, e criminaliza a

igualdade social.

A Lei da Anistia proporcionou, também - ao tentar evitar o debate público

necessário sobre tamanha barbárie -, que muitos dos violentados ou suas famílias ficassem

excluídos das narrativas, dos testemunhos sobre esse passado. Para além, estabeleceu

ligação intrínseca com a impossibilidade do retorno: se exílio é meia morte, como prisão é

meia vida, o retorno é impossível:

Carmen51

, jamais voltaremos, eu, você, nós dois, jamais reencontraremos cães

vagando sem rumo, sem nós, legítimos proprietários de ilusões perdidas e cães

desenxabidos: nossos morros mais íntimos nunca existiram, nem cachorros

amados, mais queridos. Nós os inventamos com nossos desejos. Você voltou

para Hollywood sem saber que o Rio nem te via: o que você buscava só existia

em você. O meu Rio, em mim (BOAL, 2000, p. 325).

O primeiro espetáculo de Boal depois do exílio foi O corsário do rei, que se

ambienta em 1711 e trata das aventuras de Duguay-Trouin, pirata francês que, julgando ser

perda de tempo e dinheiro suas meras operações de pirataria, solicita e obtém a autorização

do rei da França para invadir o Rio de Janeiro, com o objetivo de ocupá-lo para,

posteriormente, vendê-lo aos brasileiros e portugueses. Os governantes, então, pagam

resgate com açúcar, ouro e demais pedras preciosas. Diante da agilidade com a qual o

resgate foi pago, Duguay-Trouin questiona a generosidade portuguesa e recebe a resposta

de que são os negros brasileiros, escravos, que pagaram essa conta. A peça, portanto,

satiriza e denuncia a exploração capitalista, a tradição escravocrata e a corrupção do

mercado, disfarçada de corrupção do Estado.

O espetáculo suscitou críticas negativas, dentre elas um debate organizado pelo

Jornal do Brasil e publicado com o título Ninguém gostou. Parece52

. Esse artigo dizia

basicamente o seguinte:

defende o prefeito de Maringá, Jairo Gianotto, do PSDB, da acusação de subtração de dinheiro público. Em

parceria com o advogado Irivaldo Joaquim de Souza – que advogava, à época, para a família Barros, hoje

representada no governo golpista pelo Ministro da Saúde, Ricardo Barros – Moro consegue um habeas

corpus que evita a prisão do prefeito e depõe favoravelmente a Gianotto, determinando sua absolvição. 51

Referência à Carmen Miranda quando, em seu retorno dos EUA ao Brasil, cantou “voltei para o morro”. 52

O artigo na íntegra encontra-se no Anexo IX.

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Muito ruim, ingênua, uma porcaria. Os convidados para o debate da peça O

Corsário do Rei, dirigida por Augusto Boal, chegaram à mesma conclusão.

Ninguém gostou. A atriz Lilia Cabral a estudante de teatro Isabella Dauzacker, o

diretor teatral Aderbal Junior, a figurinista e cenógrafa Biza Vianna, o ator

Ricardo Petraglia e o músico Edino Krieger, coordenados pelo crítico de teatro

do B-Especial Macksen Luiz, lembraram que Boal é um exilado cultural, e

trouxe para o Brasil uma proposta de espetáculo muito defasada em relação ao

momento em que vive o país (JORNAL DO BRASIL, CADERNO B-

ESPECIAL, 1985, p. 4).

Antes de me adiantar à discussão sobre o exílio cultural de Boal, mencionado nesse

debate, é importante pontuar, ainda que brevemente, que o cenário sociopolítico e cultural

brasileiro, na década de 80 - a chamada época de transição para a democracia -, colocou

em ação as estratégias que o regime ditatorial já havia traçado para o âmbito político - qual

seja, uma transição que garantisse a permanência da elite dominante no poder político e

econômico -, bem como para o contexto cultural, no que se refere ao incentivo do

desenvolvimento do capital privado ou mesmo operando pela mediação do Estado. Se, por

um lado, viu-se, a partir da década de 70, o renascimento dos movimentos sociais, como o

sindicalismo e o estabelecimento do Partido dos Trabalhadores (PT), enquanto um esforço

de se contrapor à hegemonia política e cultural, por outro, o que se observou foi a

concretização de uma aliança entre capitalismo e indústria cultural (RIDENTI, 2000).

A consequência dessa aliança é a implantação do chamado “mercado teatral” em

São Paulo e no Rio de Janeiro, a partir de 1980, conforme aponta Sílvia Fernandes em A

encenação (2013):

Especialmente no Rio de Janeiro, predominam carreiras individuais associadas à

fama produzida pela Rede Globo de Televisão, que cria e destrói celebridades no

ritmo de estreia de suas telenovelas. O ator volta a ser motor de um tipo de

espetáculo que se aproxima do “estrelismo pré-moderno” [...] (FERNANDES,

2013, p. 335).

Esse período fica conhecido como a “década do diretor”, em que o individualismo

na concepção dos espetáculos ocupa o lugar do trabalho coletivo. Observa-se, assim, o que

Ridenti (2003) chamou de integração contraditória dos artistas e intelectuais que

vivenciaram os anos de chumbo à cultura política que se estabeleceu a partir dos anos 70 e

se consolidou nos anos 80.

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A estigmatização de Boal como exilado cultural encontra explicação no fato de

que, mesmo diante da anistia, que possibilitou o retorno dos exilados, a política brasileira

não escapou ao controle da elite remanescente dos projetos políticos que se

comprometeram com a ditadura. Ainda que, naquele momento, o Brasil assistisse à

fundação de um partido como o PT, que congregou trabalhadores rurais e urbanos e que

passou a representar uma demanda pela igualdade social, a ideia do populismo persistiu.

No entanto, para o exilado, a chamada “abertura política” projetou a idealização do retorno

a uma sociedade que já não compactuava com o regime que o expulsou, agravando,

segundo Rollemberg (1999), o impacto da chegada e infligindo uma necessidade de rever a

si mesmo e ao país. O corsário do rei foi, para Boal, também o seu primeiro impacto:

A crítica desancou, era normal. Não tão normal que dissessem que eu, depois de

tanto exílio, não estava em sintonia com a realidade carioca, onde se

apresentavam bulevares franceses e alcoólicas comédias norte-americanas

escritas por autores que jamais haviam estado sintonizados com o que quer que

fosse e nem sabiam se o Brasil ficava em Buenos Aires ou vice-versa. No Rio,

ouvi o argumento ouvido em outros países: “Você é estrangeiro, não pode nos

entender.” Estrangeiro em minha casa. Não: simplesmente era eu! Não tenho

porque ser igual! Igual a quem? Alguém é igual? Não somos sequer iguais a nós

mesmos (BOAL, 2000, p. 326).

É interessante notar a continuidade do pacto firmado pelas elites para defender seus

interesses econômicos: em 1930, ao perder o poder político para Getúlio Vargas, a elite

paulistana articulou e pensou um poder ideológico que condicionasse o poder político a

agir de acordo com suas regras. Em 1964, esse mesmo poder ideológico mitigou o efeito

do princípio da soberania popular, tornando suspeitas quaisquer lideranças advindas dessa

classe. Como consequência, o setor cultural passa a ser submetido à lógica mercantil, logo,

a presença cultural da esquerda foi se diluindo:

O pleno desenvolvimento do capitalismo no Brasil tenderia a inviabilizar

quaisquer atividades grupais que pudessem embasar socialmente uma arte

subversiva, numa era de ocupação quase completa do espaço cultural pela lógica

mercantil, dificultando a produção e a invenção estéticas assentadas nas

experiências de grupos (RIDENTI, 2006, p. 7).

Como reflexo dessa conjuntura política, o cenário cultural que Boal encontra é um

cenário já esvaziado do projeto político-cultural de um teatro de identidade nacional,

embasado no estatuto político da arte.

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Para aquele cenário, o Corsário, de fato, foi um grande elefante branco:

Seduzido pelas facilidades – e pela Moral Sindical: era urgente empregar o maior

número de atores, tempos de crise! – eu me senti Ingrid Bergman em

Hollywood. “Se eu pedisse um elefante cor-de-rosa, vivo e pulando corda, no dia

seguinte me dariam dúzias de elefantes coloridos, a escolher”, disse ela.

O elefante que me foi dado era branco (BOAL, 2000, p. 326).

No Rio de Janeiro, sob o governo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro – ambos tão

expoentes da esquerda perseguida e exilada quanto Boal – desenhava-se uma

contraposição da elite ao fomento estatal à cultura. A ideia de cultura já se encontrava

burocratizada e mercadológica. É possível constatar, então, que o elefante branco chamado

O corsário do rei concretizou, para Boal, uma impossibilidade de retorno que já havia

marcado nele, de modo indelével, uma fratura que se deu a partir do golpe civil-militar de

64: a perda do Arena, não só no que diz respeito aos projetos políticos contra o sistema

capitalista transnacional, mas também no que se refere à vasta produção intelectual do

grupo, conforme aponta Cecília Thumin Boal:

[...] a meu ver, o que mais doeu nele em relação à volta do exílio foi a perda do

Arena, porque eles se dedicaram muito. Quando o Boal assumiu o Arena, ele

havia voltado de um curso com o Gassner, propôs seminários de dramaturgia,

todo mundo escrevia, tinha que escrever. Isso criou uma leva de autores como

nunca o Brasil teve, foi uma reviravolta na dramaturgia brasileira. Não se tem

hoje na dramaturgia brasileira peças tão bem “costuradas” como as daquela

época. Hoje temos grupos, como [...] o Galpão, como a Companhia do Latão, do

Sérgio Carvalho, mas a quantidade de trabalhos como o Arena não tem hoje.

Podem até dizer que o contexto é diferente, mas eu estava relendo Revolução na

América do Sul e novamente me encantando com essa peça tão bem estruturada.

Em suas memórias, Boal relembra que, ao finalizar o curso de Engenharia Química

– desejo de seu pai – ganhou a oportunidade de se especializar, durante um ano, no

exterior. Escolheu a Columbia University, ao descobrir que John Gassner53

estaria lá

oferecendo um curso de Playwriting. Foi para ficar um ano e o estendeu a dois. De sua

experiência com Gassner, trouxe para o Arena cursos e seminário de dramaturgia, nos

quais muito se debatia e muito se incentivava a escrever: “Guarnieri e Vianninha

53

John Gassner, expoente da scholarship e da crítica norte-americana, foi professor de Dramaturgia na

Universidade de Columbia, na Yale Drama School e no Laboratório Dramático de Piscator, além de editor,

dramaturgista do Theatre Guild e encenador de peças. Escreveu, dentre outros estudos, os livros Masters of

the drama, volumes 1 e 2, publicados no Brasil como Mestres do drama pela Editora Perspectiva.

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escreviam muito – estimulavam os outros” (BOAL, 2000, p. 148). Sob a direção de Boal,

textos de vários autores brasileiros foram encenados pelo Arena, como Chapetuba Futebol

Clube (1958), de Vianninha; A Farsa da Esposa Perfeita (1959), de Edy Lima; Gente

como a gente (1959), de Roberto Freire; Fogo Frio (1960), de Benedito Ruy Barbosa;

Pintado de Alegre (1961), de Flavio Migliaccio; e O Testamento do Cangaceiro (1971), de

Chico de Assis, para citar alguns54

.

Após o Corsário, Boal dirigiu Fernanda Montenegro em Fedra, de Racine; fez,

com Maitê Proença, La malasangre, de Griselda Gambaro; dirigiu O encontro marcado, de

Fernando Sabino, com estudantes e em horário alternativo. Cansou-se:

Em 88 dirigi Fernando Sabino, Encontro marcado, com estudantes, horário

alternativo. O espetáculo era bom, sabe? Quem viu, gostou... sabe?

Cansei. Atores precisavam ganhar a vida em TV e cinema – teatro pouco paga.

Acontecia ficarmos esperando para ensaiar e tendo que desistir porque as

gravações atrasavam, filmagens distantes.

Fiquei onze anos sem dirigir no Rio, além das curtas peças do meu Centro de

Teatro do Oprimido (BOAL, 2000, p. 327).

O banimento causa uma ruptura com as referências – políticas, ideológicas,

profissionais – do país de origem e torna o exílio uma lacuna. O retorno, por sua vez, não

preenche esse intervalo e o exilado, mesmo depois de voltar, ainda traz consigo um

conflito entre o passado que viveu e o presente que o recebe. Tenta retomar, no presente,

aquele ponto da vida que foi forçado a deixar para trás e, ao se dar conta da

impossibilidade dessa retomada, depara-se com a sensação de ser um expatriado dentro de

sua própria pátria.

Em 1986, Boal foi convidado por Darcy Ribeiro – à época, Secretário de Estado,

Ciência, Cultura e Tecnologia do governo de Leonel Brizola – para participar do projeto

Fábrica de Teatro Popular, cujo objetivo era desconstruir o elitismo da educação pública,

propondo um modelo educacional pautado na formação crítica e emancipatória, com vistas

a combater as desigualdades sociais. A ideia era formar animadores culturais que atuassem

como multiplicadores do Teatro do Oprimido, por meio dos jogos, exercícios e técnicas, de

modo a levarem uma inovadora proposta de ensino-aprendizagem para os espaços formais

54

A atuação de Boal como escritor, coescritor e diretor está disponibilizada pelo Acervo Digital da Funarte,

no Projeto Brasil Memória das Artes (Cf. em

http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/augusto-boal/a-atuacao-de-boal-no-teatro-de-arena/)

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de educação55

. Em parceria com Cecília Thumin Boal e Rosa Luíza Marques, diretora dos

Teatreros Ambulantes de Puerto Rico, dirige 35 animadores culturais, que passaram por

seminários de dramaturgia, laboratórios de interpretação e ateliês de cenografia.

Entretanto, em 1987, Brizola perde as eleições e Moreira Franco, eleito governador,

interrompeu o projeto, o que abalou intensamente o trabalho do Centro de Teatro do

Oprimido do Rio (CTO-Rio). Diante de um panorama político que encerrava a atuação da

esquerda no governo do Rio de Janeiro, Boal procura o PT, oferece apoio nas eleições de

1992 e recebe o convite para se candidatar a vereador. Com a certeza de que não venceria,

aceitou. E venceu.

A partir de então, exilou-se, durante quatro anos, do teatro profissional; conheceu,

segundo ele, a arena sangrenta da Câmara dos Vereadores e aprendeu que lá era o lugar

onde se brigava por apetites pessoais ou corporativos, nunca pelo povo. Mas criou dezenas

de grupos – de camponeses sem terra a operários sindicalizados – e com eles exercitou o

TO. As necessidades desses grupos eram discutidas e levadas à Câmara em forma de

projetos de lei. De 30 projetos, 13 se tornaram leis municipais.

Apesar disso, ao término de seu mandato, Boal assiste à consolidação da indústria

cultural e de uma política que visa inserir o Brasil no contexto da globalização econômica.

Excluído da grande mídia, forte aliada de parte da elite política que sustentou a ditadura,

experimenta, até o ano de sua morte, em 2009, o que Adorno, em Minima Moralia:

Reflexões a partir da vida lesada (2008), propõe como uma teoria do exílio moderno,

segundo a qual o testemunho/memória das barbáries impostas pelos Estados-Nação trazem

como consequência não se sentir em casa na própria casa, conforme comprova o

prefácio de Aqui ninguém é burro – Graças e desgraças da vida carioca (1996)56

, em que

Boal relata a sua indignação contra uma lei, aprovada pela maioria da Câmara, que

isentava companhias privadas do pagamento dos devidos impostos. Coube a ele, então,

tomar para si sua condição de exilado e fazer dela um meio de continuar o seu ofício:

colocar-se fora de casa, para exercer o pensamento crítico.

55

Em relação a esse projeto, há um texto bastante esclarecedor, intitulado A Fábrica de Teatro Popular e sua

atualidade em tempos de retrocesso – 30 anos depois, disponível no blog do Instituto Augusto Boal, sob o

seguinte endereço eletrônico: https://institutoaugustoboal.org/tag/fabrica-de-teatro-popular/. 56

Livro que conta sua experiência como vereador, uma compilação do que ele chamou de seus

“pronunciamentos-desabafos”.

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Acervo Augusto Boal

Torquemada AB.ETf.BUA.011

SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Não identificada

DATA: [1972] | ANO: 1972 | LOCAL: [Buenos Aires (Argentina)]

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b

DESCRIÇÃO: Cena de tortura em montagem de “Torquemada”.

NOTAS: Peça de autoria de Augusto Boal, montada possivelmente em Buenos Aires ou Bogotá.

ASSUNTOS: Tortura, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas

Acervo Augusto Boal

Torquemada AB.ETf.BER.001

SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Não identificada

DATA: 1973-1974 | ANO: 1973 | LOCAL: Berlim (Alemanha)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, Cor

DESCRIÇÃO: Representação do pau-de-arara durante montagem de “Torquemada” em Berlim.

ASSUNTOS: Tortura, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas

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Acervo Augusto Boal

Murro em ponta de faca AB.EMPFf.019

SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Não identificada

DATA: 1978 | ANO: 1978 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b

DESCRIÇÃO: Bethy Caruso, Othon Bastos e Martha Overbeck (ao fundo) em cena.

NOTAS: Peça de Augusto Boal, escrita durante seu exílio em Paris e encenada pela Companhia de

Teatro Othon Bastos sob direção de Paulo José.

Estreia realizada no Teatro TAIB no dia 4 de outubro de 1978, com elenco: Renato Borghi (Paulo),

Francisco Milani (Doutor), Martha Overbeck (Marga), Bethy Caruso (Foguinho), Othon Bastos

(Barra) e Thaia Perez (Maria). ASSUNTOS: Teatro Brasileiro, Teatro, Exílio político, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes

cênicas

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Acervo Augusto Boal

O corsário do rei AB.ECRf.002

SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Xico Lima

DATA: 1985 | ANO: 1985 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b

DESCRIÇÃO: Ivan Senna, Lucinha Lins e Marco Nan ini em cena da peça “O corsário

do rei”, realizada no Teatro João Caetano. NOTAS: Texto e direção de Augusto Boal com músicas de Edu Lobo e Chico Buarque.

Foto possui carimbo do fotógrafo no verso. ASSUNTOS: Teatro Brasileiro, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes

cênicas

Acervo Augusto Boal

O corsário do rei AB.ECRf.014

SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Xico Lima

DATA: 1985 | ANO: 1985 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b

DESCRIÇÃO: Elenco em cena da peça “O corsário do rei”, realizada no Teatro João

Caetano. NOTAS: Texto e direção de Augusto Boal com músicas de Edu Lobo e Chico Buarque.

Foto possui carimbo do fotógrafo no verso. ASSUNTOS: Teatro Brasileiro, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes

cênicas

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Acervo Augusto Boal

Fedra AB.RFf.002

SÉRIE: Retorno ao Brasil | AUTORIA: Claudia Ferreira

DATA: 1986 | ANO: 1986 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)

TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, COR

DESCRIÇÃO: Fernanda Montenegro em cena de Fedra, peça realizada no Teatro de

Arena do Rio de Janeiro. NOTAS: Foto possui etiqueta da fotógrafa no verso.

ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Espetáculo t eatral, Encenação, Atores, Artes

cênicas

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[...] eles não apenas preferem esquecer esse

passado, apagá-lo da memória e da história,

como também alguns se orgulham de ter

torturado com técnicas que não deixavam marcas

nos corpos das vítimas. O que eles não deixaram

escrito no corpo dessas pessoas foi, no entanto,

escrito a ferro e fogo na carne da sociedade.

Márcio Selligman-Silva, Reflexões sobra a

memória, a história e o esquecimento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu sonho era esse: um dia, eu volto para minha casa, para o meu país, para a

minha caneca, para a minha cama, para os meus chinelos. Só que, quando você

fica pensando que vai voltar para o Brasil que você deixou, quando você volta, o

Brasil já não é o mesmo que você deixou [...] (BOAL, 2009).

A escolha por Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro sob a perspectiva do

testemunho e da memória permitiu identificar um entrecruzamento entre memória e

experiência histórica, em que a questão crucial não se limita aos gêneros aos quais esses

duas obras se filiam, mas sim à práxis: ao analisar a trajetória do artista Boal e suas

experiências de violências, a discussão encontra solo firme no terreno da História e coloca

Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro como obras fundamentais para a

depuração de um movimento estético-político.

Além disso, as posições teórico-políticas de Boal revelam-no um artista capaz de

autoexame, desde a época do Arena, em um momento no qual poucos exercem essa

autocrítica. Em 17 de outubro de 2006, ele preparou um discurso para comemorar a

reeleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Nele, conclama o povo brasileiro a não

repetir os erros do passado político que derrocaram a esquerda:

Nunca mais os erros de 64: nunca mais a divisão.

Como cada um de nós é uma unicidade, é natural que, mesmo quando pensamos

a mesma coisa, pensemos essa mesma coisa de forma diferente. Cada gêmeo,

cada família, cada torcedor de um mesmo time, cada membro de uma mesma

associação antifascista, cada militante de cada partido político de esquerda, por

mais que tenha, com os demais, um sólido denominador comum, pensa de forma

diferente a mesma coisa igual. Isso é maravilhoso, é assim que se avança:

cotejando opiniões, dialogando entre companheiros, manifestando dúvidas e

hesitações.

Mas tem um porém: vezes há em que o combate se dualiza e o mundo se divide

em duas metades: não existe terceira metade, não existe a terceira margem do

rio. É lá ou cá. É este esse momento: ou cá ou lá!

Em 1964, a esquerda se dividiu em ALN, PC do B, Var-Palmares, MR8, PCR e

outros: um mais à esquerda, outro menos à esquerda; um, um pouco mais ou

menos à esquerda, outro menos ou mais; uma esquerda assustada, timorata e

temerosa, outra, afoita, destemida e corajuda. Eram tantas divisões e

dissidências, dissidências das divisões e divisões das dissidências, divisões das

divisões e dissidências das dissidências, que, nós, que éramos a maioria, que

éramos todos contra a ditadura mas estávamos divididos, nós fomos vencidos.

Todos. Perdemos para uma ditadura sólida, que também

tinha nuances, inimizades, conflitos econômicos, mas eram todos ditadores.

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Perdemos e pagamos caro a derrota – no espírito e no corpo. Pagamos caro

BOAL, 2006, s/p).

Hoje o país continua pagando caro: assim como em 1968, ano do golpe dentro do

golpe, em 2014 o Brasil assiste deflagrar a Operação Lava Jato. No grande teatro da

política brasileira, a Lava Jato encena o combate à corrupção, enquanto a elite empresarial

se mobiliza, mais uma vez, para entregar os recursos públicos nacionais ao capital

internacional. Por meio de um golpe institucional – o impeachment da presidente Dilma

Rousseff, em 2016 -, essa elite forja um anseio popular de anticorrupção.

De outro lado, o PT, partido que representou o renascimento dos movimentos

sociais, não rompeu com a hegemonia do capital financeiro e ainda se aliou ao capital

exportador. Ao não superar a dependência clientelista do governo em relação ao “mercado

partidário”, o PT também não enfrentou a temática da corrupção como uma estratégia da

direita para criminalizá-lo, permitindo que os grandes meios de comunicação regidos por

essa direita manipulassem a opinião pública e desenhassem um perfil corrupto de toda a

esquerda.

Assim, uma vez mais, resguardadas as devidas diferenças, a história se repete: de

um lado, tem-se, no Brasil, uma direita que não realiza a autocrítica, até porque dela não

precisa, já que a mesma resistência à autocrítica da esquerda petista desarticulou todo um

projeto de efetiva democratização do país, de menos desigualdades sociais e de uma arte

política. Do mesmo modo que o PCB acreditou na possibilidade de conciliação com o

poder hegemônico e, com isso, desarmou-se ideológica e politicamente, o PT perpetuou

essa tradição conciliatória que culminou em mais um golpe dentro de outro golpe, em

2018, com a prisão do ex-presidente Lula.

Pensar no resgate dessas memórias de prisão, tortura e banimento, levando em

conta o seu teor testemunhal, é uma maneira de colocar o passado vivo no presente, pois,

no Brasil, os impactos causados pela ditadura civil-militar, ao invés de se constituírem

como patrimônio vivo, ao contrário, são considerados traumas superados, uma vez que a

anistia oficializou a cumplicidade do sistema judiciário em relação a esses crimes. É,

também, um modo de não permitir que esse passado seja apagado da memória e da

história. É, ainda, um exercício que abre espaço para refletir por que a arte de resistência

tornou-se, hoje, um legado memorialístico destituído do projeto político que a motivou. E é

pertinente e atual para se discutir a importância da emancipação frente às violências, sejam

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físicas ou simbólicas, bem como para lançar luz, quem sabe, a futuras pesquisas que

possam avançar nas mediações necessárias para problematizar as coincidências entre os

sucessivos golpes políticos desferidos contra a sociedade brasileira, conforme apontei no

início desta tese.

A esse respeito, gostaria de ressaltar, também, a pertinência e a atualidade de

Revolução na América do Sul para o cenário político de hoje. O operário José da Silva não

tomou conhecimento efetivo do que significava a revolução política. Nunca questionou,

por exemplo, o aumento abusivo da sua carga de trabalho, cultivava a crença de que os

deputados lhe proporcionariam comida e emprego e se alienava dos conchavos políticos.

Ao final da peça, véspera de eleição, José vota e, depois de muito sentir fome, vai almoçar.

Na esperança de poder comer todos os dias, resolve até comer uma sobremesa:

Já se ouviu falar em mulher de duas cabeças, em homem de quatro patas, mas

homem do povo que almoça, isto é completamente inverossímil [...]

O homem do povo também vai comer uma sobremesa. Graças às eleições!

(BOAL, 1986, p. 112-113).

Mas não come. Morre engasgado com a marmelada.

A morte de José da Silva, também conhecido como “povo”, demonstra a

intencional ironia do título da peça. Não houve revolução. O que houve foi um golpe, que

ainda culpabilizou o povo por cometer o “erro” de morrer de barriga vazia. A morte é

senão uma metáfora. O que houve foi um apagamento de memória.

Portanto, se Walter Benjamin já adiantou, em 1936, que, contra a estetização da

política, deve-se responder com a politização da estética, é essencial que a literatura seja

despida da lógica aristotélica de forma artística estritamente representacional para

reconhecer a sua importância enquanto uma arte que também produz narrativas cujo

elemento fundante é experiencial;

Quero escrever peças, encenar, dar testemunho, falar do que sei, sinto e sonho. O

Teatro do Oprimido, que pretende libertar o artista que existe em cada um de

nós, me libertou a mim para que eu possa sentir o que sinto, sem remorsos; falar

de mim, sem vaidade (se possível...); dar meu testemunho, veraz (BOAL, 2000,

p. 330).

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Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro deixam claro que o testemunho

deve ser entendido como um componente da literatura que dá vez e voz ao discurso da

memória e amplia as possibilidades de se resgatar um passado político-social violento para

repensar um presente não menos violento. Em suma, essas duas obras não só podem como

devem ser lidas como testemunhos/memórias de uma barbárie, segundo o desejo do

próprio Boal (2000, p. 338): “é preciso brigar contra a rendição fatalista que se alastra

como se não houvesse opção. Escrevendo – palavras! – faço minúscula parte, faço um

passo. Não é tímido, embora curto. Quem tiver perna mais longa dê maiores passos”.

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REFERÊNCIAS

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Boal. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 17-117.

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Janeiro: Revan, 1996.

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BASBAUM, Leôncio. História sincera da república de 1889 a 1930. 4. ed. São Paulo:

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APÊNDICE A – ENTREVISTA COM CECÍLIA THUMIN BOAL

Mariana De-Lazzari Gomes: Cecília, minha pesquisa de doutorado parte do princípio de

que Boal, por causa da experiência de violência com a ditadura, desenvolveu um método

teatral único – o Teatro do Oprimido -, bem como uma extensa obra teórica acerca desse

fazer teatral e que é muito mais reconhecida internacionalmente do que no Brasil,

sobretudo no âmbito acadêmico. Mais que isso, a produção artística de Boal se alarga para

além do TO, ainda que seja para justificá-lo ou explicá-lo. Dentre essa produção, destaco

Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro, em que fiz um recorte dos capítulos que

abrangem a prisão, a tortura, o exílio e o retorno de Boal ao Brasil. Em ambas as obras, o

fio condutor da análise foram as experiências de violências, pois acredito que contribuirá

para reconstituição de parte da nossa história, o tempo do Estado de Exceção após o golpe

civil-militar de 1964, e que têm a dizer muito mais que a historiografia chamada de

“oficial”. Então, minha pesquisa propõe que há uma dimensão da obra de Boal que, mesmo

não sendo estritamente dramática, se articula com sua dramaturgia e com seus

posicionamentos teóricos. Acredito que Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro

ocupam lugar de destaque, são obras emblemáticas, que evidenciam a política, mas que, de

modo algum, se dissociam nem de suas peças nem de sua teoria do teatro.

Cecília Thumin Boal: Concordo. Pode perguntar, Mariana. Se eu souber responder, fico

muito feliz em poder ajudar.

M. D. G: Este breve relato sobre a minha questão central de pesquisa é só para

contextualizar a entrevista, que visa focar na dimensão política que permeia a estética do

Boal, sobretudo no que se refere ao golpe civil-militar brasileiro de 64. Você me autoriza

gravar esse telefonema?

C. T. B: Sim. Depois você transcreve e, se quiser, no final de julho estarei em Belo

Horizonte. Se não for difícil para você, podemos nos encontrar lá e conversamos mais.

Pode perguntar.

M. D. G: Dentre diversas pesquisas sobre o Boal, principalmente aquelas que englobam

sua atuação durante a vigência da ditadura civil-militar brasileira, há informações que

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dizem respeito ao fato de alguns artistas participarem da resistência ao golpe, ajudando

financeiramente algumas organizações ou emprestando suas residências ou espaços nos

teatros para encontros dessas militâncias, à época, consideradas clandestinas. Como se

dava a participação do Boal nessa resistência?

C. T. B: O Boal cedia a nossa casa para encontros dos militantes, em reuniões que,

muitas das vezes, varavam madrugada adentro. Ele era militante da ALN, isso está na

biografia do Marighella. Como viajava muito por causa do teatro, o Boal era um tipo de

apoio para a ALN, porque podia levar mensagens para outros militantes fora do Brasil.

M. D. G: Por ocasião da série de espetáculos Arena conta..., as críticas em relação à Arena

conta Zumbi e Arena conta Tiradentes ficaram polarizadas: de um lado, havia quem

dissesse que Boal não estava fazendo teatro político; de outro, estavam aqueles que viam

em Zumbi um início de apelo à luta armada – já que o Boal era simpatizante a uma

organização que apoiava essa luta - que, posteriormente, se concretizou em Tiradentes...

C. T. B: Vejo Zumbi e Tiradentes mais como um resgate de heróis. O Boal acreditava que,

naquele momento, o Brasil precisava de heróis. O Roberto Schwarz, o Anatol Rosenfeld

criticaram essas peças e, em certa medida, tinham razão, porque o público desses

espetáculos era mais da classe média, eram estudantes. Embora eles tenham viajado e se

apresentado para as classes mais populares, em cima de caminhões, as peças não tiveram

uma entrada tão significativa em meio às grandes massas. Mas, mesmo assim, o Boal via a

necessidade de o povo brasileiro ter heróis. Tem uma professora muito boa da UFRJ, a

Priscila Matsunaga, que falou sobre isso em uma exposição que fizemos sobre o Boal. Ela

falou sobre esse desejo do Boal de resgatar heróis.

M. D. G: Em setembro de 1970, o Arena apresentou seu primeiro espetáculo de Teatro-

jornal. No início do ano seguinte, Boal foi sequestrado por agentes da ditadura,

encaminhado ao DOPS e submetido a sessões de tortura. Posteriormente, foi transferido

para o presídio Tiradentes, onde permaneceu por quase dois meses. Para justificar a prisão,

foi alegado que Boal cometeu crimes previstos pela Lei de Segurança Nacional, porque

fazia parte de uma organização “subversiva”. De acordo com as investigações, ele teria se

encontrado com militantes da ALN em Paris para transmitir recados da organização, bem

como negociado armamentos com representantes norte-coreanos...

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C. T. B: É verdade, mas o Boal não confessou nada. Ele até fala sobre isso em um dos

livros, acho que no Hamlet...

M. D. G: e em Milagre no Brasil também...

C. T. B: ... e olha, é isso mesmo que sua tese tem que reforçar, porque isso é muito pouco

falado. Imagina uma pessoa ser sequestrada no meio da rua e ficar presa sem que sua

família soubesse onde estava. A família saía daqui do Rio para São Paulo, procurava e

nas delegacias diziam que não havia ninguém com o nome de Augusto Boal. Mesmo que

ele não tenha ficado muito tempo preso, isso é uma violência muito grande, estar sozinho,

ser torturado...

M. D. G: E testemunhar a tortura de outros companheiros, como a Heleny Guariba...

C. T. B: A Heleny foi pior ainda, porque ela foi morta.

M. D. G: As experiências de violências acompanham o indivíduo por aonde quer que ele

vá. A prisão estará para sempre dentro daquele que por lá passou. Impossível se libertar

totalmente dela. Podemos dizer que, assim como a libertação do cárcere é impossível,

impossível também é o retorno após o exílio? Porque Em Hamlet e o filho do padeiro Boal

diz: “em 86 fiquei morando e me dei conta do impossível. Ninguém volta do exílio, nunca!

Jamais”.

C. T. B: Dois meses de prisão é um tempo relativamente curto, mas não menos violento. O

Boal não confessou nada, por isso foi solto, mas precisou se exilar. Agora, em relação ao

exílio, o Boal sempre foi um otimista. Mesmo sentindo falta do Brasil, ele acreditava que o

Teatro do Oprimido poderia ser disseminado, porque, se o Arena não atingiu, como

desejava, o público nessa proposta de resistência, de mudança, o Teatro do Oprimido iria

continuar esse legado. O Boal era daqueles que fazia de um limão uma limonada, e uma

limonada muito linda. Então, a meu ver, o que mais doeu nele em relação à volta do exílio

foi a perda do Arena, porque eles se dedicaram muito. Quando o Boal assumiu o Arena,

ele havia voltado de um curso com o Grassner, propôs seminários de dramaturgia, todo

mundo escrevia, tinha que escrever. Isso criou uma leva de autores como nunca o Brasil

teve, foi uma reviravolta na dramaturgia brasileira. Não se tem hoje na dramaturgia

brasileira peças tão bem “costuradas” como as daquela época. Hoje temos grupos, como

o seu aí, o Galpão, como a Companhia do Latão, do Sérgio Carvalho, mas a quantidade

de trabalhos como o Arena não tem hoje. Podem até dizer que o contexto é diferente, mas

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eu estava relendo Revolução na América do Sul e novamente me encantando com essa

peça tão bem estruturada.

M. D. G: Mas, resguardadas as devidas diferenças de contexto, a peça me parece ainda

muito atual para o Brasil de hoje...

C. T. B: Sem dúvida. Inclusive estamos pensando em montá-la nas ruas do Rio de Janeiro

neste ano de eleições, para apoiarmos o candidato que escolhermos, se ele quiser, é claro,

porque no Brasil tudo ainda continua muito difícil. Meu filho, Julián, trabalha com o

Teatro do Oprimido nos movimentos sociais, como os do Sem Terra, por exemplo. Se você

quiser, posso te colocar em contato com ele. Mas fora isso, só vejo o Teatro do Oprimido

trabalhar para um público realmente necessitado de mudanças na Índia, em que eles

fazem um trabalho muito efetivo, andam por estradas de terra, para chegar nas

comunidades mais excluídas e ajudar as mulheres indianas, que ainda são muito

subjugadas e violentadas. O Boal queria muito mais.

C. T. B: Tem mais alguma coisa que você queira perguntar, Mariana? Porque meu

horário está meio apertado, mas, como disse, podemos nos falar novamente ou nos

encontramos em Belo Horizonte...

M. D. G: Só tenho a agradecer em meu nome e em nome do meu orientador, o professor

Luís Alberto, da UFRJ. Acredito que ter a oportunidade de falar com uma fonte tão

fidedigna [rs] irá contribuir muito para a qualidade da minha pesquisa.

C. T. B: Estou às ordens, é só me mandar mensagem e podemos marcar outra conversa.

Também vou enviar a você o contato do Julián. Boa tarde.

M. D. G: Mais uma vez, obrigada pela disposição em me atender. Tenha uma boa tarde.

BOAL, Cecília Thumin. Cecília Thumin Boal: entrevista [mai. 2018]. Entrevistador:

Mariana De-Lazzari Gomes. Ponte Nova/MG, 2018. 1 arquivo mp3 (22m 12s). Entrevista

concedida à tese de doutorado Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro: memória,

testemunho e a literatura de Augusto Boal.

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ANEXO I – QUE PENSA VOCÊ DA ARTE DE ESQUERDA?

Que pensa você da arte de esquerda?

Augusto Boal

Programa da peça I Feira Paulista de Opinião

(5 de junho de 1968)

(TRANSCRITO DE UMA CÓPIA MIMEOGRAFADA DO ACERVO AUGUSTO

BOAL. O ORIGINAL APRESENTA 54 PÁGINAS, S/D)

Os reacionários procuram sempre, a qualquer pretexto, dividir a esquerda. A luta

que deve ser conduzida contra eles é ás vezes, por eles conduzida no seio da própria

esquerda. Por isso, nós – festivos sérios ou sizudos – devemos nos precaver. Nós que,

em diferentes graus desejamos modificações radicais na arte e na sociedade, devemos

evitar que diferenças táticas de cada grupo artístico se transformam numa estratégia

global suicida. O que os reacionários desejam é ver a esquerda transformada em saco de

gatos; desejam que a esquerda se derrote a si mesma. Contra isso devemos todos reagir:

temos o dever de impedi-lo.

Porém, a pretexto de não dividir, não temos também o direito de calar nossas

divergências. Pelo contrário: as diferentes tendências da nossa arte atual serão melhor

entendidas através do cotejo de metas e processos. Isto é necessário, principalmente

neste momento em que toda a arte de esquerda enfrenta a necessidade de recolar os seus

processos e suas metas. O choque entre as diversas tendências não deve significar

predominância final de nenhuma, já que todas devem ser superadas, pois foram também

superadas as circunstâncias políticas que as determinaram, cada uma no seu momento.

Dentro da esquerda, portanto, toda discussão será válida sempre que sirva para

apressar a derrota da reação. E que isto fique bem claro: a palavra “reação” não deve ser

entendida como uma entidade abstrata, irreal, puro conceito, mas, ao contrário, uma

entidade concreta, bem organizada e eficaz. “Reação” é o atual governo oligarca,

americanófilo, pauperizador do povo e desnacionalizador das riquezas do país; “reação”

são as suas forças repressivas, caçadoras de bruxas, e todos os seus departamentos,

independentemente de farda ou traje civil; é o SNT, o INC, é a censura federal, estadual

ou municipal e todas as suas delegacias; são os critérios de subvenções e proibições; e

são também todos os artistas de teatro, cine ou TV que se esquecem de que a tarefa de

todo cidadão, através da arte ou de qualquer outra ferramenta, é a de libertar o Brasil do

seu atual estado de país economicamente ocupado e derrotar o invasor, o “inimigo do

gênero humano”, segundo a formulação precisa de um pensador latino-americano

recentemente assassinado.

Assim, antes que a esquerda artística se agrida a si mesma deve procurar destruir

todas as manifestações direitistas. E o primeiro passo para isso é a discussão aberta e

ampla dos nossos principais temas. Isto, a direita não poderá jamais fazer, dado que a

sua característica principal é a hipocrisia.

O REPERTÓRIO E O MERCADO

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O repertório de obras de arte atualmente servido ao público está deteriorado.

Grande é o número de artistas que finge ignorar este fato: esta ignorância, verdadeira ou

fingida, é crime. Em teatro, são criminosos os elencos cuja preocupação principal consiste

em quitandeiramente ganhar seus cobres servindo aos apetites mais rasteiros das plateias

tranquilas; são criminosos todos aqueles que servilmente ficam atentos à ultima moda

parisiense, ao último lançamento londrino – isto é, aqueles que renunciam a sua cidadania

artística brasileira e se transformam em repetidores da arte alheia; são criminosos aqueles

que apresenta, sempre e apenas as visões róseas do mundo através dos universos feéricos

das peças de boulevard, ou do psicologismo anglo-saxônico que tende a reduzir os mais

graves problemas sociais e políticos a desajustes neuróticos de uns poucos cidadãos.

São criminosos os fabricantes irresponsáveis de comedietas idiotas que, segundo

a publicidade, “até parecem italianas”. Estes são criminosos e não são artistas porque

arte é sempre manifestação sensorial da verdade e não estará dizendo a verdade o artista

que constantemente ignore a guerra de genocídio do Vietnã, ignore o lento assassinato

pela forme de milhões de brasileiros no Norte, no Sul, no Centro, no Nordeste e no

Centroeste – Estas são verdades nacionais e humanas que nenhuma mensagem

presidencial, por mais esperta que seja, fará esquecer.

Por que são tantos os grupos teatrais que se dedicam ao teatro apodrecido, ao

teatro de mentira, corruptor? Tirante os pulhas por convicção, existem também os pulhas

por comodismo. Os primeiros acreditam na conquista do mercado, ainda que para isso

seja necessário produzir “sob medida” para o rápido consumo. Se o mercado consome

cocaína, escreva-se a la Tenessee Williams... O mercado é o demiurgo da arte – este

lugar comum já foi destruído por Roberto Schwarz (teoria e prática, nº 2) onde observa

que entre o artista e consumidor, numa sociedade capitalista, insere-se o mediador

capital, o mediado-patrocinador. O dinheiro, este sim, é o verdadeiro demiurgo do gosto

artístico posto em prática.

O mercado consumidor de teatro é, em última análise, o fator determinante do

conteúdo e da forma da obra de arte, da arte-mercadoria. E esse mercado, nos principais

centros urbanos do país, é formado pela alta classe médica, e daí para cima. O povo e a

sua temática estão aprioristicamente excluídos. Este fato grave tem deformado a

perspectiva criadora da maioria dos nossos artistas, que se atrelam aos desejos mais

imediatos da “corte burguesa” da qual se tornam servis palhaços, praticando um teatro

de classe, isto é, um teatro da classe proprietária, da classe opressora. A consequência

lógica é uma arte de opressão.

Assim, o primeiro dever da esquerda é o de incluir o povo como interlocutor do

diálogo teatral. E, quando falo povo, mais uma vez falo concretamente; “povo” é aquela

gente de pouca carne e osso que vive nos bairros e trabalha nas fábricas, são aqueles

homens que lavram a terra e produzem alimentos, e são aqueles que desejam trabalhar e

não encontram emprego. Nenhum destes frequenta os teatros das cinelândias e, portanto,

é necessário fazer com que o teatro frequente os circos, as praças públicas, os estádios,

os ad(...) descampados em cima de caminhões. A exclusão sistemática dessas plateias

fará mudar o conteúdo e a forma do teatro brasileiro. Não basta que o Teatro de Arena

de São Paulo, e outros poucos elencos se disponham a fazê-lo, como tem sempre feito: é

necessário que toda a esquerda o faça, e que o faça constantemente.

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Este não é um trabalho fácil. Antigamente os Centros Populares de Cultura

realizavam tarefas admiráveis no setor artístico e cultural: espetáculos, conferências,

cursos, corais, alfabetização, cinema, etc. Os reacionários, porém, escandalizaram-se

como fato de que também o povo gostava de teatro, gostava de aprender a ler, etc. Os

CPCs foram liquidados e os responsáveis por esse crime continuam no bem bom.

O teatro é demasiadamente bom para o povo e justamente por isso todos os

governos excluem, cuidadosamente, a verdadeira popularização do teatro dos seus

planos de auxílio. Em geral, dá-se dinheiro para que os preços Caim de 7 para 3

cruzeiros – as chamadas temporadas populares são apenas uma das muitas mistificações

governamentais. São tão hipócritas como as quinzenas populares promovidas por

boutiques de artigos importados. Rouba- se ao povo até mesmo o uso da palavra

“popular”. E o máximo que se tem conseguido fazer é incluir estudantes nas plateias:

está é uma condição necessária para se vitalizar o teatro, mas não é suficiente. Se um

teatro propõe a transformação da sociedade deve propô-lo a quem possa transformá-la:

ao contrário será hipocrisia ou gigolagem.

O BERRO

No dia 1º de abril de 1964 o teatro brasileiro foi violentado – e com ele toda a

nação. Os tanques tomaram o poder. Alguns setores na atividade nacional rapidamente se

acomodaram à nova situação de força. O teatro, por sorte, e durante algum tempo, reagiu

unânime e energicamente à ditadura camufada. A violência militar foi respondida com a

violência artística: “Opinião”, “Eletra”, “Andorra”, “Tartufo”, Arena conta zumbi”, e

muitas outras peças procuravam agredir a mentira triunfante. Variava a força, o estilo, o

gênero, mas a essência era a mesma exortação, o mesmo berro: esta era a única arma de

que dispunha o teatro. As forças populares estavam desarmadas e não puderam assim,

com arte apenas, vencer as metralhadoras

Depois de algum tempo a esquerda teatral pareceu cansar-se e quebrou-se sua

homogeneidade. Uma parte guinou de vez para a direita e surgia uma tendência

francamente adesista: diante da opção de continuar ou desistir, houve gente que preferiu

compor-se. O Grupo Decisão, por exemplo, tinha apresentado uma valente versão de

“Eletra”. Depois desapareceu para surgir modificado na versão acovardada de “Boa

tarde Excelência”, que a terra lhe seja pesada.

Os teatros que, bem ou mal, continuaram, dividiram-se em três linhas principais.

No último ato essas três tendências ficaram bem marcadas, nítidas e evidentes. As três

devem agora ser superadas. Isto deve ser feito não através da luta das três tendências

entre si, mas sim através da luta desse conjunto contra o teatro burguês.

NEO-REALISMO

A primeira linha do atual teatro de esquerda é constituída por peças e espetáculos

cujo principal objetivo é mostrar a realidade como ela é; peças que analizam a vida dos

camponeses, dos operários, dos homens, procurando sempre o máximo de veracidade na

apresentação exterior de locais, hábitos, costumes, linguagem, e interior de psicologia.

Este neo-realismo, tem no

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momento em Plínio Marcos o seu principal cultor. Foi neste gênero também que se

iniciaram em dramaturgia alguns dos nossos melhores dramaturgos, como Guarnieri,

Vianna Filho, Jorge Andrade, Roberto Freire e outros.

O realismo enfrenta, de início um obstáculo principal: o diálogo não pode

transcender nunca o nível de consciência do personagem; e este nada dirá ou fará que

não possa ser feito ou dito na realidade desse próprio personagem. E, como na maioria

dos casos, os camponeses, operários ou lumpens retratados não tem verdadeira

consciência dos seus problemas – daí resulta que os espectadores ficam empaticamente

ligados a personagens que ignoram a verdadeira situação e os verdadeiros meios de

superá-la. Essas peças, portanto, tendem a transmitir apenas mensagens de

desesperos, perplexidades, dores. Anatol Rosenfeld ressaltou que este tipo de peça

tende a criar uma espécie de “empatia filantrópica”: o espectador, por assistir a miséria

alheia, julga-se absolvido do crime de ser ele também responsável por essa miséria. E

isto porque o espectador chega a sentir vicariamente a miséria alheia: o espectador

também sofre terríveis dores morais, embora comodamente refestelado numa

poltrona.

Espetáculos deste tipo correm o risco de realizarem a mesa tarefa de caridade

em geral e da esmola em particular: a mesmo é preço da culpa.

Porém igualmente certo que o dramaturgo pode criar personagens mais

conscientes, ou personagens cuja conduta possa ser classificada de “exemplar”. Isto

muitas vezes já aconteceu, como, por exemplo, ocorre em “Eles não usam Black-tie”, de

Guarnieri, onde o protagonista Otávio se comporta como proletário absolutamente

consciente dos problemas de sua classe.

Na dramaturgia brasileira, porém, esta não é a regra. Mas não se pode, por outro

lado, esquecer que o realismo cumpriu e cumpre tarefa de extrema importância ao

retratar a vida brasileira, ainda que esta importância seja mais documental do que

combativa. E nos dias que correm, o teatro brasileiro carece de combatividade.

SEMPRE DE PÉ

A segunda tendência é caracterizada, especialmente, pelo recente repertório de

Arena e, em especial pelo gênero “Zumbi”. É a tendência exortativa. Utiliza uma fábula

do gênero “lobo e cordeiro”, brancos e pretos, senhores feudais (grileiros) e vassalos

(posseiros), etc., e através dessa fábula se esquematiza a realidade nacional, indicando-se

os meios hábeis para a derrubada da ditadura, a instauração de uma nova justiça, e outras

coisas lindas e oportunas. Insta-se a plateia a derrubar a opressão e até aí nada mal; o

pior, no entanto, é que via de regra essas mesmas plateias são os verdadeiros esteios

dessa mesma opressão. Espetáculos desses tipo, ao enfrentarem plateias desse tipo,

defrontam-se com a surdez. O teatro “sempre de pé”, só tem validade no convívio

popular.

A exortação, os processos maniqueístas, as caracterizações de “grosso modo” as

simplificações analíticas gigantescas, foram também constantes nos espetáculos dos

CPCs. Esta é a linguagem do teatro popular. A verdade não era nunca tergiversada –

apenas a sua apresentação era simplificada.

A técnica maniqueísta é absolutamente indispensável a este tipo de espetáculo.

Os repetidos ataques ao maniqueísmo partem sempre de visões

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direitistas que sejam, a qualquer preço, instituir a possibilidade de uma terceira posição,

da neutralidade, da isenção, da equidistância, ou de qualquer outro conceito mistificador.

Na verdade, sabemos que existe o bem e o mal, a revolução e a reação, a esquerda e a

direita, os explorados e os exploradores. Quando a direita pede “menos” maniqueísmo,

está na verdade pedindo que se apresente no palco também o lado bom dos maus e o

lado mau dos bons – pede que se mostre personagens que sejam bons “e” maus, da direta

“e” da esquerda, revolucionários-reacionários, a favor “mas” muito antes pelo contrário.

Pede que se mostre que os ricos também sofrem e que “the best things of life are free”

como diz a canção (adivinha), americana. Pedem que se mostre que todos os homens são

iguais quando nós pretendemos repetir pela milionésima vez que o ser social condiciona

o pensamento social. Pede que se afirme que, já que todos os homens são

simultaneamente bons e maus, devemos todos entrar para o rearmamento moral e

começar a nossa purificação simultaneamente: torturados e torturadores devem

simultaneamente purificar seus espíritos antes de cada sessão de tortura.

Que isto fique bem claro: a linha “sempre de pé”, suas técnicas específicas, o

maniqueísmo e a exortação – tudo isto é válido, atuante e funcional, politicamente

correto, para frente, etc.; etc., etc,. etc. Ninguém deve ter pudor de exaltar o povo, como

parece acontecer com certa esquerda envergonhada. O fato de Castro Alves ser um

poetinha apenas na base do mais ou menos não anula a validade de versos libertários.

Mas, igualmente, não se deve nunca esquecer que o verdadeiro interlocutor deste tipo de

teatro é o povo, e o local escolhido para o diálogo deve ser a praça.

CHACRINHA E DERCY DE SAPATO BRANCO

A terceira linha é o tropicalismo chacriniano-dercinesco-neo-romântico. Seus

principais teóricos e práticos não foram até o momento capazes de equacionar com

mínima precisão as metas deste modismo. Por esse motivo muita gente entrou para o

“movimento” e fala em seu nome e fica-se sem saber quem é responsável por quais

declarações. E estas vão desde afirmações dúbias do gênero “nada com mais eficácia

política do que a arte pela arte” ou “a arte solta e livre poderá vir a ser a coisa mais

eficaz do mundo”, passando por afirmações grosseiras do tipo “o espectador reage como

indivíduo e não como classe” (fazendo supor que as classes independem dos homens e

os homens das classes), até proclamações verdadeiramente canalhas do tipo “tudo é

tropicalismo: o corpo de Guevara morto ou uma barata voando para trás de uma

geladeira suja” (O Estado de São Paulo, reportagem “tropicalismo não convence”,

30/04/68). O primeiro tipo de afirmação só pode partir de quem nunca fez teatro para o

povo, na rua, e portanto, prisioneiro de sua plateia burguesa, vicifera. Mas ao mesmo

tempo resvala perigosamente para o reacionarismo quando (sem perceber que seus

interlocutores são apenas e tão somente a burguesia) pede ao teatro burguês que incite a

plateia burguesa a tomar iniciativas individuais... Ora, isto é precisamente o que a

burguesia tem feito desde o aparecimento da virtú até Hitler, Mr. Napalm e LBJ. Mr. and

Mrs. São incondicionais e ardorosos defensores da iniciativa individual, ultrapessoal e

privada.

O tropicalismo, dado que pretende ser tudo e pois não é nada, apesar de seu

caráter dúbio teve pelo menos a virtude de fazer com que o teatro

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Oficina deixasse de ser um museu de si mesmo, carregando eternamente seus pequenos

burgueses a quatro num quarto, de fazer surgir a pouco explorada invenções do

portunhol, e teve sobretudo a vantagem de propor a discussão, ainda que em bases

anárquicas.

Ainda assim, por mais multifário que seja o movimento, algumas coordenadas

são comuns a quase todos os chiquites bacanos – e justamente estas características são

retrógradas e anti-povo:

1. o tropicalismo é neo-romântico - todo ressurgimento do romantismo baseia-se no

ataque às aparências da sociedade, agride a usura desumana (o que faz supor a

usura humanizada), agride os burgueses pederastas (excluindo os garanhões) e as

burguesas lésbicas (excluindo as bem-aventuradas). Agride o predicado e não o

sujeito.

2. o tropicalismo é homeopático - pretende destruir a cafonice endossando a

cafonice, pretende criticar Chacrinha participando de seus programas de

auditório. Porém a participação de um tropicalista num programa do Chacrinha

obedece a todas as coordenadas do programa e não às do tropicalista - isto é, o

cantor acata docilmente as regras do jogo do programa sem, em nenhum

momento, modificá-las: veste-se à maneira do programa, canta as músicas mais

indicadas para este tipo de auditório dopado e, finalmente, se essa platéia já está

habituada a ganhar repolhos, o cantor, mais sutilmente, atira-lhe bananas.

3. o tropicalismo é inarticulado - justamente porque ataca as aparências e não a

essência da sociedade, e, justamente porque essas aparências são efêmeras e

transitórias, o tropicalismo não se consegue coordenar em nenhum sistema -

apenas xinga a cor do camaleão. Seus defensores conseguem apenas alegar vagos

desejos de "espinafrar", desejos de elatarem em “abismos vertiginosos” ou mais

moderadamente declaram que "não há nada a declarar".

4. o tropicalismo é tímido e gentil - pretende “épater”, mas consegue apenas

“enchanter les bourgeois”. Quando um ou outro cantor se veste de roupão

colorido, isso me parece falta de audácia. Eu vou começar a acreditar um pouco

mais nesse movimento quando um tropicalista tiver a coragem de fazer o que

Baudelaire já fazia no século passado: andava com cabelos pintados de verde

com uma tartaruga colorida atada por uma fitinha cor-de-rosa. No dia em que um

deles fizer coisa parecida é capaz até de dar uma boa dor de cabeça a algum

policial... (Será sem dúvida uma contribuição para a revolução brasileira...)...

5. o tropicalismo é importado - desde o desenvolvimentismo de JK, quando

apareceu o cinema novo, a bossa nova e a nova dramaturgia brasileira, o Brasil

não importava arte. Agora, em cinema, é comum assistir a filmes dirigidos por

Vincent Minelli (ou quase) para a MGM, coisas do gênero “Garota de Ipanema”;

em teatro, assiste-se à avalancha inglesa misturada com a crueldade provinciana,

copiada de Grotowsky Living Theatre, em música, depois do iê-iê-iê vemos a

maioria dos nossos cantores procurando fantasias e até Roberto Carlos, que já

era símbolo

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acabado da mais burra alienação, voltou da Europa com os óculos e os bigodes de

John Lennon.

Estas são as características do tropicalismo – de todas, a pior, é a ausência de

lucidez. E esta ausência permite que qualquer um fale em nome de todos, chegando

mesmo a aberrações do tipo da reportagem citada. Ora, Che Guevara significa, a um

só tempo, um exemplo de luta e um método de conduzir essa luta. Se alguém afirma

que o corpo do Che é tão tropical como uma barata voando estará apenas revelando o

seu próprio caráter cafageste e reacionário. Mas como dentro do tropicalismo

ninguém define sua própria posição, qualquer imbecil de vista cura, ao balbuciar

cretinices como essa, pretende falar em nome de todo o conjunto de hawaianos – e

estará efetivamente falando até o momento em que algum tropicalista trace os

limites do estilo que adotou.

Esta terceira tendência do teatro brasileiro atual é a mais caótica e é, também,

aquela que, tendo sua origem na esquerda mais se aproxima da direita. Sabemos que

os seus principais integrantes não renunciaram à condição de artistas protavozes do

povo. Mas não ignoramos, também o perigo que corre todo e qualquer movimento

que teme definições.

E AGORA?

Por estas vias tem-se manifestado a esquerda. Os transitórios possuidores

dos canhões abriram seu jogo. Os políticos que ainda não caíram dos seus

respectivos galhos estão compostos com os que mantém o dedo no gatilho. Nenhuma

perspectiva de diálogo se abre, principalmente porque não existe língua comum. As

classes são compartimentos estanques – nunca o foram tanto. Os reacionários

simplificaram seu jogo: todas as aparências de democracia foram desmitificadas por

eles próprios. Sabe-se agora como é fácil para os opressores viverem na legalidade,

defenderem a legalidade, já que são eles próprios os fabricantes da legalidade. Não

Foi o povo que fabricou atos institucionais e leis complementares. Além do arbítrio

de fabricar leis, decretos e outros dispositivos, como se tal não bastasse, decidiu o

governo ser mais sutil e resolver seus problemas estudantis e operários com as patas

dos cavalos, os cassetetes e as balas. Maniqueísta foi a ditadura. Contra lea e contra

os seus métodos deve maniqueísticamente levantar-se a arte de esquerda no Brasil. É

preciso mostrar a necessidade de transformar a atual sociedade; é necessário mostrar

a possibilidade dessa mudança e os meios de mudá-la. E isto deve ser mostrado a

quem pode fazê-lo. Basta de vriticar as plateias de sábado – deve-se agora buscar o

povo.

Os caminhos atuais da esquerda revelaram-se becos diante do

maniqueísmo governamental. Já nada vale autoflagelar-se realisticamente, exortar

plateias ausentes ou vestir-se de arco-iris e cantar chiquita bacana e outras bananas.

Necessário agora, é dizer a verdade como é.

E como dizê-la? E mais: como sabê-la? Nenhum de nós, como artista,

reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social. Conseguimos

fotografar nossa realidade, conseguimos premonitoriamente vislumbrar seu futuro,

mas não conseguimos surpreendê-la no seu

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movimento. Isto nós não conseguimos sozinhos, mas talvez possamos lográ-lo em

conjunto. É necessário pesquisar nossa realidade segundo ângulos e perspectivas diversas:

aí estará seu movimento. Nós, dramaturgos, compositores, poetas, caricaturistas,

fotógrafos devemos ser simultaneamente testemunhas e parte integrante dessa realidade.

Seremos testemunhas na medida em que observamos a realidade e parte integrante na

medida em que formos observados. Está é a ideia da Iª Feria Paulista de Opinião.

O Teatro de Arena de São Paulo sabe ser necessária a superação da

atualrealidade artística: o simples conhecimento verdadeiro dessa realidade estará criando

uma nova realidade. Será um passo muito simples, mas será um passo no sentido certo, no

único sentido, pois o único sentido é a verdade. E a verdade será a Feira.

P.S. – Nós distinguimos, mas a direita não;

São Paulo, 5 de junho (URGENTE) – Elementos A Censura Federal efetuou 84

cortes no texto da “Feira Paulista de Opinião” que consta de 63 páginas. A Policia

Maritma cercou por duas vezes o teatro para impedir a realização do espetáculo.

São Paulo, 18 de Julho (URGENTE) – Elementos não identificados invadiram e

depredara o Teatro Galpão onde vem sendo representada a peça “Roda Viva” de Chico

Buarque de HOllanda julgada atentória à moral e à propriedade privada.

São Paulo, 4 de Agosto (URGENTE) – Interpretes das peças de Pínio Marcos,

DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA e NAVALHA NA CARNE foram

ameaçados de morte por cartas anônimas deixadas à porta dos respectivos teatros.

No restante do documento:

1. Enquanto seu lobo não vem (Caetano Veloso)

2. O Líder (Lauro Cesar Muniz)

3. A tua estória contada (Braulio Pedroso)

4. ME. E. E.U BRASIL BRASILEIRO (Ary Toledo)

5. Animália (Gianfrancesco Guarnieri)

6. Espiral (Sergio Ricardo)

7. A Receita (Jorge Andrade)

8. Verde que te quero verde (Plínio Marcos)

9. Miserere (Gilberto Gil)

Documento incompleto.

Acervo Augusto Boal

SÉRIE: Censura | AUTORIA: Auguto Boal | DATA: jun. 1968 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel

DESCRIÇÃO: Manifesto público contra a censura da peça Roda Viva, de Chico Buarque.

ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Censura, Manifesto.

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ANEXO II – A CLASSE TEATRAL CONTRA O PALAVRÃO

Acervo Augusto Boal

SÉRIE: Censura | AUTORIA: Plínio Marcos, José Celso Martinez Correa e Augusto Boal | DATA: jun. 1968

| LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel

DESCRIÇÃO: Manifesto público contra a censura da peça Roda Viva, de Chico Buarque.

ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Censura, Manifesto.

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ANEXO III – VIVEMOS UM TEMPO DE GUERRA

Acervo Augusto Boal

SÉRIE: Arena | AUTORIA: Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri | DATA: s/d | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel

DESCRIÇÃO: Manifesto sobre ao espetáculo Arena conta Zumbi.

ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Ditadura, Dramaturgia.

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ANEXO IV – TÉCNICAS DE TEATRO JORNAL

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Acervo Augusto Boal

SÉRIE: Censura | AUTORIA: Augusto Boal | DATA: 1971 | LOCAL: São Paulo (SP)

TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel

DESCRIÇÃO: Último capítulo do livro Categorias do teatro popular..

ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Censura, Teatro jornal.

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ANEXO V – INFORMAÇÕES: HELENY GUARIBA

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Disponível em: Acervo Público da Cidade de São Paulo. Departamento Estadual de Ordem Política e Social.

Pasta DEOPS – Santos.

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ANEXO VI - PRONTUÁRIO DE PEDIDO DE PRISÃO PREVENTIVA DE BOAL

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Disponível em: Acervo Público da Cidade de São Paulo. Departamento Estadual de Ordem Política e Social.

Pasta DEOPS – Santos.

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ANEXO VII – SENTENÇA DE ABSOLVIÇÃO: AUGUSTO BOAL

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Disponível em: Sistema de Informação do Arquivo Nacional (SIAN) do Ministério da Justiça. Pasta BR

DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.78114293 - augusto pinto boal – Dossiê.

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ANEXO VIII – EXTRATO DE PRONTUÁRIO: AUGUSTO BOAL

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Disponível em: Sistema de Informação do Arquivo Nacional (SIAN) do Ministério da Justiça. Pasta BR BR

DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.75086952 - augusto pinto boal – Dossiê.

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ANEXO IX – NINGUÉM GOSTOU. PARECE.

Jornal do Brasil. Caderno B/Especial, de 29 de setembro de 1985. Disponível em:

https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19850929&printsec=frontpage&hl=pt-BR.