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METÁFORAS E REPRESENTAÇÕES NA CIDADE DOS MORTOS Clarisse Ismério Marcelo Pimenta Introdução As cidades dos mortos ou os cemitérios caracterizam-se por serem o local da última morada dos seres humanos. Na idade média os mortos eram enterrados fora do perímetro urbano, mas como a Igreja passou a ser definida como “espaço sagrado”, muitos passaram a ser depositados em seu solo. A partir do século XVIII, devido à preocupação com os princípios de higiene que visavam conter as constantes epidemias, os mortos passaram a ser enterrados em lugares mais afastados do perímetro urbano. Neste período cresceu a preocupação com a estética dos túmulos, jazigos e mausoléus, fruto do gosto peculiar da burguesia ascendente. A partir do século XIX passam a ser considerados como “uma instituição cultural [...] um sentido de continuidade histórica e raízes sociais” (FRENCH apud ARIÈS, Philipe. 1982, p. 570 e 579). Muito mais que o último lugar de descanso passa a ser um museu a céu aberto, repleto de significados e representações que nutrem a imaginação daqueles que o visitam. Tanto na Europa como nos EUA, os cemitérios perdem gradativamente o seu aspecto mórbido e desolador para tornarem-se um local de convivência e sociabilidade. Por guardarem os restos mortais de figuras ilustres tornam-se guardiões da cultura e da memória de seu povo. Um fator que auxiliou esta visão foi a difusão das idéias positivistas, pois Comte através da máxima “Os vivos são sempre e cada vez mais governado pelos mortos”, justificava que a memória e os feitos dos heróis e homens notáveis do passado deveria servir de exemplo e inspiração para as futuras gerações.

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METÁFORAS E REPRESENTAÇÕES NA CIDADE DOS MORTOS

Clarisse Ismério

Marcelo Pimenta

Introdução

As cidades dos mortos ou os cemitérios caracterizam-se por

serem o local da última morada dos seres humanos. Na idade média

os mortos eram enterrados fora do perímetro urbano, mas como a

Igreja passou a ser definida como “espaço sagrado”, muitos

passaram a ser depositados em seu solo. A partir do século XVIII,

devido à preocupação com os princípios de higiene que visavam

conter as constantes epidemias, os mortos passaram a ser enterrados

em lugares mais afastados do perímetro urbano. Neste período

cresceu a preocupação com a estética dos túmulos, jazigos e

mausoléus, fruto do gosto peculiar da burguesia ascendente.

A partir do século XIX passam a ser considerados como “uma

instituição cultural [...] um sentido de continuidade histórica e raízes

sociais” (FRENCH apud ARIÈS, Philipe. 1982, p. 570 e 579). Muito

mais que o último lugar de descanso passa a ser um museu a céu

aberto, repleto de significados e representações que nutrem a

imaginação daqueles que o visitam.

Tanto na Europa como nos EUA, os cemitérios perdem

gradativamente o seu aspecto mórbido e desolador para tornarem-se

um local de convivência e sociabilidade. Por guardarem os restos

mortais de figuras ilustres tornam-se guardiões da cultura e da

memória de seu povo. Um fator que auxiliou esta visão foi a difusão

das idéias positivistas, pois Comte através da máxima “Os vivos são

sempre e cada vez mais governado pelos mortos”, justificava que a

memória e os feitos dos heróis e homens notáveis do passado deveria

servir de exemplo e inspiração para as futuras gerações.

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O mesmo processo ocorreu nos cemitérios brasileiros que

formaram, ao longo do tempo, um acervo de grande valor artístico e

histórico, pois colaboram para a preservação da memória familiar e

coletiva; permitem o estudo das manifestações e crenças religiosas,

das idéias e posturas políticas; mostram os gostos artísticos da

sociedade; permitem o conhecimento da formação étnica do

município e da espectativa de vida da população; além de propiciar o

desenvolvimento de estudos genealógicos.

Diante da importância e das possibilidades deste tipo de fonte

propomos, através de nossa pesquisa, refletir a história do município

de Bagé através da arte cemiterial.

História e Representações de Bagé através da Arte Cemiterial

O apogeu econômico de Bagé ocorreu na segunda metade do

século XIX, sendo estimulado pelo ramal ferroviário que ligava Bagé

ao porto de Rio Grande, dinamizando o escoamento da produção. O

desenvolvimento da economia local foi tanto que, entre os anos de

1891 a 1940, existiam cinco charqueadas de grande porte em Bagé.

As charqueadas deste período diferenciavam-se das demais de base

escravista por possuírem mão de obra assalariada, utilização de

maquinário, condições sanitárias e aprimoramento técnico (SOARES,

Fernanda. 2006).

Em 1897 foi fundada por Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães a

Charqueada de Santa Thereza, considerada um símbolo da

modernização para o período. A modernização impulsionada pelo

desenvolvimento das charqueadas proporcionou melhorias no

município, tais como o telefone, cinema, automóvel e feiras de

exposição (LIEMESZEKI, Cláudio.1997), além da construção de

prédios públicos e particulares estilo neoclássico e de suntuosos

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mausoléus de Mármore de Carrara, produzidos por marmorarias de

Montevidéu, Gênova e Porto Alegre.

O município de Bagé construía seu “projeto civilizador” mantido

pelo desenvolvimento da indústria charqueadora, tal crescimento

justifica o título que recebeu de “rainha da fronteira”.

No município de Bagé encontra-se o Cemitério da Santa Casa de

Caridade de Bagé (1858). Nesta cidade dos mortos encontramos um

acervo escultórico composto por mausoléus e túmulos de grande

riqueza, tanto por seu valor artístico como por traduzir a mentalidade

e história de uma época na qual a cidade era chamada de “Rainha da

Fronteira”. Constitui-se como um grande museu a céu aberto e,

através de seu acervo, podemos resgatar a história das famílias

tradicionais, a mobilidade social e sua mentalidade fruto da opulência

econômica do município.

O Cemitério da Santa Casa de Bagé possui um conjunto de

túmulos de invejável valor histórico. Em seu acervo existem túmulos

de figuras notórias da sociedade, envolvendo mausoléus de famílias

tradicionais e de heróis da Revolução Farroupilha e da Guerra do

Paraguai.

A arte cemiterial revela forte influência do culto ao herói,

amplamente difundido pela influência positivista, como destaca Silva:

(...) a doutrina positivista exerceu grande

influência no culto os heróis, o que justifica o

período do surto da arte cemiterial, como este

momento em que os cemitérios passam a ser os

melhores locais de homenagens aos homens que

se destacaram na política, cultura e dentro de

suas próprias famílias. O positivismo no Rio

Grande do Sul, ao utilizar a arte funerária como

veículo de perpetuação de sua ideologia, teve

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como objetivo principal consolidar seus atos para

as futuras gerações (SILVA, Sérgio, 2001:14).

Um exemplo no qual podemos observar essa característica é no

mausoléu de Antônio de Souza Netto. Netto mandou construir seu

mausoléu na Itália, todo em mármore de Carrara, sendo transportado

em blocos para Bagé (BONÉS, Elmar .1995, p. XVIII).

Ilustração 1: Mausoléu do General Sousa Netto (Foto de Diones Alves,

2007).

Souza Netto participou da Revolução Farroupilha e da Guerra do

Paraguai, mas apesar de seu perfil militar é representado

iconograficamente como um herói ilustrado em um brasão em alto

relevo no centro do mausoléo (Ilustração 1). Essa leitura pode ser

visualizada através das representações femininas que o

acompanham, que segundo Silva (2000, p.122) são as alegorias do

heroísmo e do saber.

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Ilustração 2: Detalhe Clio e as duas Guerras; e alegoria do heroísmo,

Mausoléu do General Sousa Netto (Foto de Diones Alves, 2007).

A alegoria destacada, na ilustração 2 a esquerda, pode ser

interpretada como a musa Clio, que apresenta dois livros fechados,

um representado a história da Revolução Farroupilha e outro a

Guerra do Paraguai. A figura feminina ocupa o seu lugar de guardiã

da história e da tradição.

Ao analisarmos as representações femininas através da arte no Rio

Grande do Sul, observamos que essas contribuíram para a divulgação

dos preceitos e da moral positivista, cujo objetivo era consolidar junto ao

imaginário popular o símbolo de perfeição feminina, inspirada em Clotilde

de Vaux1, representação da Religião da Humanidade. A mentalidade

conservadora propiciou a reconstrução de uma simbologia impregnada

de valores moralistas sobre como deveria ser a conduta feminina.

Existem representações de figuras femininas que acompanhavam

os grandes vultos políticos ou muitas vezes a sós em estátuas e

1 Clotilde de Vaux, musa de Comte, tornou-se a representação da mulher ideal, considerando-a íntegra, pura, perfeita. Isso ocorreu porque o filósofo nunca a tocou, tornando-a símbolo de adoração com atributos herdados do arquétipo da Grande Mãe. E sua antítese era representada por Caroline Massin, prostituta com a qual Comte veio a contrair matrimônio, tendo uma relação bastante conflituosa. A primeira foi moldada a partir do arquétipo de Maria, A Virgem, e a segunda no de Eva, A Pecadora (ISMÈRIO, Clarisse. 1995, p. 21)

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monumentos, em formas alegóricas, que evidenciavam o dever da

mulher de guardiã da moral. Na estatuária, foram ressaltadas somente

as virtudes femininas, pois a arte deveria representar uma imagem

ideal a ser seguida, cultivando com isso o aperfeiçoamento humano.

A representação da figura feminina nos emblemas políticos,

ressalta o seu papel de guardiã da nova ordem, detentora de uma moral

elevada e de atributos que a dignificavam. Era um modelo exemplar da

grande mãe-guariã que deveria ser imitado.

Outra figura de destaque é o anjo guardião (ilustração 3) que se

econtra em cima do mausoleu do General Netto. Conforme Vovelle

os anjos eram figuras comuns nas sepulturas de crianças,

simbolizando que estes eram “anjos no céu”. No séulo XIX passou

ater duas representaçãoes sucessivamente, inicialmente como um

jovem que representa o anjo da morte e, logo após a forma mais

frequente, tornou-se uma figura feminina de formas opulentas

(VOVELLE, Michel.1997, p. 330-331).

Ilustração 3: Detalhe Anja Guarda Orante, Mausoléu do General Sousa

Netto

(Detalhe da foto de Diones Alves, 2007).

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Observamos que no decorrer do tempo os anjos sofreram

alterações em sua imagem e atributos, sendo que tais elementos

acrescidos são fruto do imaginário do popular de cada período.

Os anjos são apresentados como intermediários entre Deus e

mundo, tendo o papel de executar as ordens do senhor, transmitindo

os sinais do sagrado, as advertências e punições2. A apresentação

dos arcanjos na Sagrada Escritura e nas obras do período da Contra-

Reforma era a bélica, ou seja, todos possuíam armadura para lutar

contra os inimigos da fé. Essa forma esta dentro da autocompreensão

tridentina que propunha o ideal da guerra santa através da

catequização levando a cristandade para os pagãos. Portanto, o

discurso catequético dos padres jesuítas no período da colonização

dos povos era universalista, dogmático e guerreiro.

A imagem do anjo guerreiro muda com o passar do tempo,

busca-se a postura de protetor e intermediário dos homens perante

Deus. Isso se dá a mudança do pensamento cristão, que deixa de

lado a postura guerreira para ocupar-se da condutora do rebanho. O

arquétipo continua sendo o mesmo, embora a alteração no símbolo

ocorra para acompanhar o discurso do período.

O mesmo vai ocorrer com o símbolo ao construir o modelo de

anjo feminino, por ser a mulher a consoladora, orientadora e guardiã

da sua família.

A metáfora da dor é representada através das alegorias da

saudade ou, ainda, das carpideiras. As carpideiras eram mulheres

pagas para chorar nos velórios e enterros, que através de choro

comoviam a todos. Muito mais que carpideiras, estas imagens passa

a simbolizar a representar a “viúva eterna” consagrada pelo

2 Os três principais arcanjos são: Miguel, vencedor dos demônios; Gabriel, mensageiro e iniciador; Rafael, guia dos médicos e viajantes.Aparece também com uma certa freqüência o nome de Uriel, como um dos príncipes angélicos, sua origem advém do judaísmo tardio.Existem os querubins e serafins que não são originalmente anjos, mas tornaram-se posteriormente. No judaísmo tardio falam também de outros seres celestes, as Virtudes, as Potestades, os Principados, as Dominações e os Tronos.

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positivismo. Mulheres que deveriam guardar a moral do falecido e

chorar eternamente sua ausência (Ilustração 4).

Ilustração 4: Jazigo da Família Riet (Foto de Douglas Lemos de Quadros ,

2008).

Outro jazigo de destaque é o de Francisco Ilarregui (Ilustração

5), um imigrante espanhol que prosperou através de atividades

ligadas ao comércio. Trechos de sua vida são narrados através de seu

obituário:

Aos estragos de cruel enfermidade que há muito o

atormentava, falleceu na manhã de hontem, o

honrado e laborioso commerciante e capitalista

desta praça Sr. Francisco Illarregui. O finado era

um cavalheiro respeitável, de caracter austero e

muito concentrado ao trabalho, conseguindo a

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custa de incessante labor, adquirir honestamente

uma regular fortuna. Era natural de Hespanha,

casado e contava 62 annos de idade. Verdadeiro

homem de bem, gosou sempre de elevado-credito

e da maior consideração na sociedade em que

viveu.Deploramos o seu passamento e a sua

respeitável viúva, filhos e parentes, enviam as

nossas expressões de pezar. Estiveram

extraordinariamente concorridas as ceremonias do

enterramento do corpo do extincto, realizadas

hontem, às 4 horas da tarde. O féretro foi

conduzido a mão da casa mortuária à Igreja

Matriz, comparecendo encorpada a benemérita

sociedade hespanhola de beneficência, com o seu

estandarte coberto de luto. No carro mortuário de

1 classe e em mais três de praça, viam-se ricas

coroas fúnebres, piedosa homenagem da exma.

Família, parentes e amigos do finado (O DEVER,

1905, p. 2).

O mausoléu é todo em mármore, representando um templo

grego, que ao centro tem o busto de Ilarregui sobre um caixão.

Mostra a opulência de um homem que na morte quer ser

representado como um herói letrado entre as colunas de sua acrópole

particular.

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Ilustração 5: Jazigo de Francisco Ilarregui (Foto de Diones Alves, 2007).

O detalhe central do jazigo reflete sobre o tempo que se esvai,

representado pela ampulheta alada e a certeza da morte, destacada

pelas tochas que se apagam (ilustração 6).

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Ilustração 6: Representação da Morte, detalhe do jazigo de Francisco

Ilarregui (Foto de Diones Alves, 2007).

Podemos observar que o jazigo, simbolicamente, foi feito para

preservar e edificar a memória do morto, além de propor a

ponderação sobre a morte e efemeridade da vida.

Considerações finais

A cidade dos mortos guarda múltiplas interpretações da

sociedade, uma vez que resgata a história das famílias tradicionais, a

mobilidade social, a mentalidade local e o desenvolvimento

econômico do município, constatamos que cada família ou vulto

histórico escolhia a forma que pretendia ser eternizado através da

opulência de seus jazigos ou mausoléus ou da releitura dos símbolos

presentes no imaginário social.

Cada vez que nos debruçamos a estudar suas metáforas e

representações desnudamos um universo de símbolos significativos

que nos permitem entender a história de cada cidade.

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