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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS VERNÁCULAS MESTRADO ACADÊMICO EM ESTUDOS LITERÁRIOS JOELIZA LAMARÃO BEZERRA SOARES DE OLIVEIRA A METÁFORA LITERÁRIA E DO COTIDIANO EM NARRATIVAS MÍTICAS INDÍGENAS PORTO VELHO 2015

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Page 1: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA …. A metafora... · uma extensão contínua entre as metáforas literárias e as metáforas cotidianas;

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS VERNÁCULAS

MESTRADO ACADÊMICO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

JOELIZA LAMARÃO BEZERRA SOARES DE OLIVEIRA

A METÁFORA LITERÁRIA E DO COTIDIANO

EM NARRATIVAS MÍTICAS INDÍGENAS

PORTO VELHO

2015

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JOELIZA LAMARÃO BEZERRA SOARES DE OLIVEIRA

A METÁFORA LITERÁRIA E DO COTIDIANO

EM NARRATIVAS MÍTICAS INDÍGENAS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Orientadora: Profa. Drª. Wany Bernardete de Araujo Sampaio. Linha de Pesquisa: Literatura, Artes e outros Saberes. Bolsa: Capes

UNIR

PORTO VELHO

2015

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO ACADÊMICO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

JOELIZA LAMARÃO BEZERRA SOARES DE OLIVEIRA

A METÁFORA LITERÁRIA E DO COTIDIANO

EM NARRATIVAS MÍTICAS INDÍGENAS

Banca Examinadora:

Aprovado em: 09 /11 /2015

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RESUMO:

O presente trabalho propõe a análise de metáforas literárias e do cotidiano em narrativas indígenas escritas em língua portuguesa por professores indígenas. A análise se apoia na Teoria Cognitiva da Metáfora (LAKOFF & JOHNSON, 2002), segundo a qual o elemento metafórico permeia todas as nossas ações e pensamento além da linguagem, pois está infiltrado no nosso cotidiano; existe uma extensão contínua entre as metáforas literárias e as metáforas cotidianas; as ocorrências da metáfora nas obras literárias acontecem não exclusivamente porque a literatura contém a linguagem cotidiana, mas porque mesmo que haja um desvio das formas mais comuns de expressão e de pensamento, a linguagem é realizada a partir de explorações criativas e inusitadas de mapeamentos metafóricos enraizados em nossos sistemas conceptuais. Como metodologia de trabalho foram utilizadas as pesquisas bibliográfica, documental e webgráfica, para a realização dos estudos teóricos e da seleção das narrativas. O procedimento de investigação das construções metafóricas foi realizado a partir da Teoria Cognitiva da Metáfora e da elaboração de esquemas imagéticos. Os resultados revelam que as narrativas indígenas míticas apresentam aspectos literários e estéticos, como o uso de metáforas conceituais e de personificação. Os resultados foram também discutidos pelo viés do perspectivismo ameríndio, considerando-se a visão integradora de mundo do pensamento mítico ameríndio.

Palavras-chave: Metáfora. Narrativa mítica. Literatura. Literatura indígena contemporânea

ABSTRACT:

This work proposes the analysis of literary and everyday life metaphors in

indigenous narratives written in Portuguese by indigenous teachers. The analysis

is based on the Metaphor Cognitive Theory (Lakoff & Johnson, 2002), according to

which the metaphorical element pervades all our actions and thinking beyond

language, infiltrated in our daily lives; there is a continuous extension of the literary

metaphors and everyday metaphors; the metaphor of events in literary works take

place not only because literature contains everyday language, but because even if

there is a deviation of the most common forms of expression and thought,

language is carried out by creative and unusual explorations metaphorical

mappings rooted in our conceptual systems. The used methodology was the

bibliographic, documentary and web research, to the theoretical studies and the

selection of narratives. The investigation procedure of the metaphorical

constructions was based on the Cognitive Theory of Metaphor and on the

development of imagery schemes. The results show that indigenous mythical

narratives have literary and aesthetic aspects, as the use of metaphorical

conceptual constructs and personification. The results were also discussed by the

bias of the amerindian perspectivism, considering the integrated vision of the world

of the mythical amerindian thought.

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Keywords: Metaphor. Mythic narrative. Literature. Contemporary indigenous

literature.

AGRADECIMENTOS

Ao Grande Arquiteto do Universo, Deus, pela saúde.

À querida professora Wany Sampaio, pela amizade e orientação.

Aos colegas e docentes do MEL, pela caminhada juntos.

Às professoras Cynthia Barros , Carla Martins, Élcio Fragoso e Hélio Rodrigues

pelas sugestões.

Aos meus pais amados, Antônia e José, por todo o incentivo e suporte durante

anos.

Aos meus irmãos José, Leandro, Rodrigo, Emilly e Alexandre, pelo carinho e

amor fraternal.

As minhas cunhadas Bia e Paula, pelas palavras amigas.

Aos meus sobrinhos amados Ester, Victor e Ian.

A minha melhor amiga, Tyciana, que, mesmo longe, sempre se fez presente.

Agradeço em especial ao meu companheiro Walace que, desde o primeiro

instante, esteve ao meu lado com seu apoio incondicional.

Á Capes, pela concessão da bolsa.

E a todos que torceram por meu sucesso acadêmico e busca pelo capital cultural

e científico.

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Dedico este trabalho ao mestre e

amado companheiro Walace Soares de

Oliveira, que me fez compreender que

o mito não narra a “origem”; o mito é a

origem.

Grata pelos momentos de inspiração.

Aqui tem um pouco de você.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................ 08

1 O MITO COMO METÁFORA.................................................................... 12

1.1 O estudo do mito.................................................................................. 13

1.1.2 O mito e a metáfora........................................................................... 18

1.2 A estrutura do mito e sua universalidade: tempo, espaço e metáfora......................................................................................................

22

1.2.1 Estrutura narrativa do mito: tempo mítico...................................... 25

1.2.2 Estrutura narrativa do mito: espaço mítico.................................... 28

1.2.3 Espaço literário: percursos e conceitos......................................... 36

1.2.4 Estrutura narrativa do mito: metáfora............................................. 41

1.3 A metáfora literária e metáfora do cotidiano..................................... 42

1.3.1Teorias sobre a metáfora................................................................... 42

1.3.2 Teoria cognitiva da metáfora.......................................................... 48

2 LITERATURA ORAL, PRÁTICA ESCRITURAL INDÍGENA E A

LITERATURA CONTEMPORÂNEA INDÍGENA.........................................

51

3 ANÁLISE DE CONSTRUÇÕES LINGUÍSTICAS METAFÓRICAS......... 60

3.1 A metáfora literária e do cotidiano em narrativas míticas amondawa...................................................................................................

60

3.2 Construções linguísticas metafóricas em narrativas indígenas de cunho mítico escritas em língua portuguesa..........................................

67

3.3 A atitude literária do narrador e a arte de narrar............................... 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 89

REFERÊNCIAS............................................................................................ 93

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INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho é analisar ocorrências de construções

linguísticas metafóricas literárias e do cotidiano no domínio do espaço em

narrativas míticas indígenas, com base na definição de metáforas orientacionais,

de acordo com os postulados de Lakoff e Johnson (2002). As metáforas

orientacionais se referem à orientação espacial do tipo: para cima/para baixo,

dentro/fora. Tais orientações surgem do fato de termos os corpos que temos e do

fato de eles funcionarem da maneira como funcionam no nosso ambiente físico

(LAKOFF e JHONSON, 2002, p.59).

A partir da Teoria da Metáfora Conceitual, é possível reavaliarmos a noção

comumente estabelecida de que a metáfora é parte constituinte apenas de textos

poéticos e de cunho imaginativo. O pensamento metafórico tem seu foco na

linguagem cotidiana. Assim, bem diferente do que é apresentado, por exemplo, na

escola, temos a metáfora não apenas como um recurso linguístico, mas sim como

um processo cognitivo, pois é a metáfora que estrutura nossos pensamentos e

nossas ações.

Este trabalho é oriundo do subprojeto de pesquisa Descrição e análise de

construções metafóricas literárias e do cotidiano em textos narrativos Amondawa

(AGUILAR e BEZERRA, 2006),1 em que analisamos construções linguísticas

metafóricas que evidenciam as noções de espaço e movimento no âmbito das

Metáforas Orientacionais, bem como Metáforas Ontológicas do tipo espacial em

uma narrativa presente na coletânea Mitos Amondawa (SAMPAIO, SILVA e

MIOTELLO (Orgs.), 2004). Na ocasião, abordamos o aspecto estrutural das

construções linguísticas metafóricas, fato que nos permitiu uma reflexão crítica

sobre a questão cultural evidenciada em imagens metafóricas do espaço/tempo

no domínio do ficcional e, especificamente, sobre a relação espaço e movimento,

1 A pesquisa foi financiada pelo PIBIC/UNIR/CNPq. O subprojeto, inserido nas áreas de tipologia

linguística e metáfora conceptual, fez parte do Projeto de Pesquisa Espaço, Movimento e Metáfora

em Amondawa (SAMPAIO et al., 2003-2006), do Grupo de Estudos em Culturas, Educação e

Linguagens-GECEL/UNIR/CNPq. O subprojeto foi desenvolvido pela autora, sob a orientação da

Profª. Ms. Ana Maria Aguilar.

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na língua e na cultura amondawa, investigando construções metafóricas que

envolvem o espaço, o tempo e o movimento. Desta forma, a descrição do uso das

metáforas literárias e/ou do cotidiano em narrativas míticas nos possibilitou iniciar

a investigação em construções metafóricas que envolvam o espaço, o tempo e o

movimento.

O desenvolvimento do citado subprojeto nos permitiu, ainda, uma

discussão inicial acerca da chamada “arte de narrar”, a partir do pressuposto que

trata da “atitude literária” do narrador, conforme nos sugere Bentes (2000). Tal

pressuposto discute que o narrador, ao enunciar seu texto, deixa transparecer

uma “atitude literária” e conceitos culturais de seu povo, pois conta a estória2 que

o povo conta. Nesse aspecto, os elementos ficcionais utilizados para contar a

estória, fazem com que a narrativa mítica compartilhe com outros textos ficcionais

de natureza literária algumas características, como, por exemplo, as construções

linguísticas metafóricas do espaço real/imaginário.

A escrita dos mitos é de suma importância para os povos indígenas, no que

se refere às iniciativas de preservação e revitalização da língua e cultura; além

disso, é uma das maneiras de divulgar significativamente o legado cultural do

povo na comunidade indígena e também para a sociedade não indígena.

Nosso trabalho de iniciação científica foi muito estimulante, despertando-

nos o desejo de aprofundar as discussões por nós iniciadas. Compreendemos a

importância política da pesquisa no que se refere ao fortalecimento da literatura

de resistência indígena, a promoção de seus costumes e as formas de enxergar o

mundo. A presente pesquisa prioriza o respeito, a valorização e a defesa dos

povos indígenas e por tais motivações intentamos fazer ouvir a voz do indígena

através das suas produções e formas de expressões de sentido.

No presente trabalho, abordamos narrativas escritas em língua portuguesa

pelos próprios autores indígenas, tomando-as como uma forma de ação poética e

política, pois sentimos a necessidade de trabalhos acadêmicos com esta

perspectiva literária. É importante salientar que sempre compreendemos a

2 Utilizamos o termo “estória” conforme Bentes (2000).

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relevância da nossa pesquisa para os estudos literários, uma vez que

pretendemos contribuir cada vez mais para a compreensão e valorização das

culturas indígenas, bem como para novas perspectivas da própria literatura

brasileira.

A proposta aqui apresentada tem um longo caminho a ser realizado, pois é

um tema pouco explorado no mundo acadêmico. Nosso intento é também

contribuir para solidificar, através da análise de construções linguísticas

metafóricas literárias e do cotidiano, uma nova discussão sobre a concepção de

metáfora literária.

Nossa atual pesquisa tem por objetivo geral, analisar as ocorrências de

construções linguísticas metafóricas literárias e do cotidiano no domínio do

espaço em narrativas míticas indígenas.

A partir do objetivo geral, delineamos os seguintes objetivos específicos:

Investigar dados que constituam construções linguísticas metafóricas

literárias e do cotidiano que evidenciem noções de espaço.

Descrever as construções metafóricas literárias e do cotidiano

evidenciadas em imagens metafóricas que envolvam espaço.

Neste trabalho buscamos, ainda, uma análise mais aprofundada do caráter

literário da metáfora em narrativas míticas indígenas, escritas em língua

portuguesa, a partir da discussão já levantada sobre a metáfora de cunho

conceitual. Refletimos, também, sobre a atitude literária do narrador indígena,

privilegiando o papel e a voz do narrador, a fim de contribuir com a valorização

dos estudos estético-literários de narrativas indígenas.

Assim, nosso estudo se volta para a análise de um grupo de narrativas

indígenas com temática mítica, escritas em língua portuguesa por professores

indígenas - com autoria individual e coletiva-, bem como outras narrativas míticas

indígenas retiradas da web.

A presente Dissertação está organizada em três seções:

(i) a primeira seção apresenta a revisão bibliográfica, abordando os

conceitos e a estruturação do mito, por haver necessidade de relacionar o mito e

a metáfora, uma vez que mito é por essência a representação dos saberes

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metafóricos de determinada cultura. Ao tratarmos da estrutura mítica se faz

imprescindível abordarmos a categoria espaço, aqui de maneira distinta, em

espaço mítico e espaço literário. Nesta seção são apresentados também estudos

e abordagens referentes à metáfora, essenciais para a compreensão da temática

explorada no trabalho como um todo. O aporte teórico explanado nos dará

suporte para a análise crítica dos dados que serão apresentados na segunda

seção;

(ii) a segunda seção compreende uma reflexão sobre a transição da

literatura oral para a literatura escrita, bem como sobre o processo da prática

escritural indígena em língua portuguesa e, por fim, apresentamos um breve

relato sobre o surgimento da chamada literatura contemporânea indígena.

(iii) a terceira seção é dedicada à análise de dados. Apresentamos

inicialmente alguns resultados obtidos durante a execução do subprojeto A

metáfora literária e do cotidiano em narrativas míticas amondawa (AGUILAR,

BEZERRA, 2007), pois tais resultados se mostraram como suporte relevante para

a análise das construções metafóricas nas narrativas escritas pelos indígenas em

língua portuguesa. Em seguida, considerando as narrativas escritas pelos

indígenas, analisamos e ilustramos construções linguísticas metafóricas com

esquemas mentais (cf. SAMPAIO e BEZERRA, 2014), ou seja: para melhor

compreensão de conceitos abstratos via domínios concretos, usamos esquemas

imagéticos para aprofundar a análise crítica. Finalmente, a partir das ocorrências

de construções linguísticas metafóricas encontradas nas narrativas míticas

indígenas, consideramos o processamento da atitude literária do narrador ao

construir e esquematizar sua narrativa; refletimos na observância da postura do

narrador (autor) ao elaborar o texto (aqui transitando da memória oral -mito- para

a fixação escrita), revelando elementos que fazem parte da grande atividade

humana de narrar.

Após as seções, tecemos algumas considerações acerca dos aspectos

mais significativos discutidos na pesquisa, bem como o nosso posicionamento

crítico ante o objeto estudado.

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1 O MITO COMO METÁFORA

- A palavra mito significa mentira. Mito é uma mentira – começou ele.

- Não, um mito não é uma mentira. Uma mitologia completa é uma organização de imagens e narrativas simbólicas, metafóricas das possibilidades da experiência humana e da plena realização de uma dada cultura num dado momento. (...) estou dizendo que é uma metáfora.

Joseph Campbell

Nesta primeira seção abordamos os conceitos e a estruturação do mito,

intentando relacionar o mito e a metáfora, uma vez que mito é por essência a

representação dos saberes metafóricos de determinada cultura. Trazemos uma

discussão sobre a categoria espaço (espaço mítico e espaço literário).

Apresentamos também estudos e abordagens referentes à metáfora.

As narrativas de origem mítica são muito características quando tratamos

do processo de escrita indígena e desenvolvimento da literatura indígena; por

isso, o corpus de análise deste trabalho é constituído de textos com temática

mítica, em que ocorre a interação entre o mito e a literatura. Neste sentido,

consideramos importante dedicar esta seção inicial para o estudo do mito, pois

entendemos o quanto o mito agrega enquanto material cultural e literário. Cremos

que, através da compreensão dos aspectos e características do mito, seja

possível uma análise bem fundamentada das narrativas indígenas com temática

mítica.

Há uma grande quantidade de estudos relacionados ao mito,

desenvolvidos ao longo dos anos e não pretendemos abordar todos. Para este

trabalho, utilizamos autores relevantes na pesquisa dos mitos, cujos estudos se

mostraram mais apropriados para nossa discussão específica, visto que o objetivo

da nossa pesquisa não é o estudo do mito em si, mas, a partir deste estudo,

propiciar uma melhor fundamentação para a análise das narrativas indígenas.

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1.1 O estudo do Mito

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfície das águas (Gênesis 1, 1-2).

Bem no princípio durante a criação do universo, Olofim-Olodumaré reuniu os sábios do Orum para que o ajudassem no surgimento da vida e no nascimento dos povos sobre a face da Terra (Mitologia Iorubá).

Há muito tempo questionamentos acerca da definição de mito são temas

de pesquisas que abrangem várias áreas do conhecimento, pois o mito está

presente na humanidade há milhares de anos como parte integrante da formação

cultural de cada povo. Por isso, não há uma resposta única para o conceito de

mito; o que temos são abordagens de natureza diferentes e com várias

perspectivas.

Os estudos do mito foram desenvolvidos durante séculos por poetas,

filósofos, antropólogos, psicólogos, linguistas e também por críticos literários. As

pesquisas passam por nomes desde Aristóteles e Platão até Frye. Almeida Júnior

(2014), em sua obra Introdução à Mitologia, busca mostrar ao leitor um guia de

estudos sobre as concepções dos principais estudiosos do mito e da mitologia.

Apresenta-nos, sobre Mitologia, pelo menos, dois significados.

1) O primeiro significado é: “coletânea de narrativas de um povo”, assim

temos a “mitologia hindu”, “mitologia asteca”, “mitologia grega”,

“mitologia yourubá”, dentre outras.

2) O segundo significado é: “estudo das narrativas míticas”; daí o termo

mitólogo ser utilizado para definir os estudiosos que se debruçam sobre

o conhecimento dos mitos.

Segundo Turchi (2003, apud CAVALCANTE, 2013, p. 14), a palavra mito

provém do grego mytos e significa falar, contar algo. Para os gregos, mito tinha

também o significado de mentira, engodo. Mito era sinônimo de coisa absurda,

enganosa, pois se constituía de narrativas inverossímeis, geralmente atribuídas

às façanhas dos deuses; o termo também era usado como argumento falacioso,

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corrompendo assim o logos, a razão. Platão considerava o mito uma visão

utopista da alma e Aristóteles, na Poética, concebe o mito como uma fábula,

invenção. O Iluminismo no século XVIII enxergava o mito como fruto da

ignorância e uma forma de engano.

Para Eliade (1972), é difícil encontrar uma definição para mito, pois a

aceitação por parte dos “eruditos” e dos “não especialistas” será contraditória. O

autor usa uma definição particular:

A definição que para mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento. (...) O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. (...) Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a sobrenaturalidade) de suas obras. (ELIADE, 1972, p. 9)

De modo sintético, Almeida Júnior (2014) afirma que o mito é uma narrativa

que conta uma história sagrada. É narrativa, pois descreve acontecimentos que

se deram com determinadas personagens e é sagrada por desvendar a

sacralidade, como nos diz Eliade (1972). É importante complementar tal

pensamento com a afirmação: “O mito é uma realidade cultural extremamente

complexa que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas

e complementares” (ELIADE, 1972, p. 9), pois isto revela que a interpretação do

mito é de caráter subjetivo. Eliade (1972) tem seus estudos voltados para a área

das religiões, portanto o mito é uma narrativa de caráter sagrado que ocorre em

um tempo primordial e que valida leis, costumes, ritos e crenças.

Considerando-se a subjetividade na interpretação do mito, Durand (apud

Santos 2012, p. 36) sugere que, a cada releitura de uma narração mítica, um

novo olhar surge frente ao mito que, enquanto narrativa, é um texto de leitura e

uma leitura é sempre uma criação subjetiva do mundo. Santos (2012) define o

mito como “narrativas que se movem no tempo e no espaço e ressignificam

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através da linguagem simbólica e das imagens que transmitem conhecimento

desde os primórdios ao homem contemporâneo” (SANTOS, 2012, p. 36,37).

Santos (2012) se reporta a Joseph Campbell, pesquisador da literatura e

mitologia, como um estudioso que contribui para o estudo do mito. Campbell

afirma que “os mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de

significação, através dos tempos”. O crítico literário Frye, também utilizado no

trabalho de Santos (2012), defende que o mito é um tipo de história que une o rito

e as imagens para compor a comunicação verbal.

Há ainda a visão tradicional e amplamente difundida em que o mito é

considerado como uma explicação para a origem das coisas: o mundo, os

homens, os animais, as doenças, as práticas culturais e medicinais e as relações

entre os homens, mulheres e animais. Logo, nessa vertente, o mito tradicional é

uma maneira de explicação ontológica, pois é uma maneira de entender e

principalmente justificar a existência de algo.

A fim de esclarecer ainda mais a proposta de análise deste trabalho, cabe

considerar que, para as sociedades indígenas, o mito expressa sua essência. Ao

compreendermos o mito como narrativas que explicam a gênese das coisas e sua

maneira de relacionar o real ao divino e sagrado, é possível afirmar que o mundo

indígena e sua visão são míticos.

Silva (apud GUESSE, 2014) formula algumas características fundamentais

sobre o pensamento mítico. Tais características seguem os estudos de Cassirer

(1963) e consistem, de modo bem sintético, em: (i) visão subjetiva do mundo; (ii)

visão sintética do mundo; (iii) adesão ao concreto e imediato; (iv) visão dinâmica

do mundo. Sobre estas características, voltaremos a algumas, de maneira mais

específica, para dialogar com as análises apresentadas neste trabalho.

As atividades cotidianas dos povos indígenas são intrinsecamente míticas

e isso é perceptível em algumas narrativas por nós analisadas ao longo desta

pesquisa, as quais se referem a ritos praticados pelos indígenas até hoje.

Conforme Almeida Júnior (2014), o mito conta uma história sagrada; o rito é o

mito vivo, a revivificação da narrativa mitológica. Almeida e Queiroz (apud

GUESSE, 2011) afirmam que a tradição mítica de cada povo constitui um esforço

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no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e

do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se

nessa mitologia. Eliade (1972) reforça este pensamento ao focar o estudo dos

mitos de sociedades tradicionais e não, por exemplo, de grandes civilizações,

como a grega, a egípcia ou a romana. A justificativa é que, nas sociedades

tradicionais, o mito está contextualizado no sentido sócio religioso original.

(...) os mitos dos “primitivos” ainda refletem um estado primordial. Trata-se, ademais, de sociedades onde os mitos ainda estão vivos, onde fundamentam e justificam todo o comportamento e Vida a atividade do homem. O papel e a função dos mitos ainda podem (ou podiam, até recentemente) ser minuciosamente observados e descritos pelos etnólogos. Interrogando os indígenas a respeito de cada mito, bem como de cada ritual das sociedades arcaicas, foi possível apurar, ao menos em parte, o significado que lhes atribuem (ELIADE, 1972 p. 8).

A abordagem estruturalista do mito desenvolvida por Claude Lévi-Strauss,

na obra Mito e Significado (1978), reflete sobre o pensamento “primitivo” e a

mente “civilizada”, referindo-se ao fator discriminatório que essa terminologia

apresenta; por isso, Lévi-Strauss denomina como “povos sem escrita” aqueles

povos chamados de “primitivos” e procede a discussão sobre o modo de pensar

dos povos sem escrita dando enfoque à interpretação do seu modo de pensar. O

antropólogo afirma que os mitos despertam no homem pensamentos que lhe são

desconhecidos.

Lévi-Strauss (1978) discute, inicialmente, a interpretação de que o modo de

pensar dos povos sem escrita era ou é determinado a partir de suas

necessidades básicas. O autor considera tal concepção funcionalista, ou seja,

entende-se que estes povos movidos tão somente pela subsistência, satisfação

das necessidades sexuais e demais necessidades básicas e, desse modo, não

são capazes de explicar as suas instituições sociais, as suas crenças e mitologia.

Lévi-Strauss discute também a interpretação de que o modo de pensar

“primitivo“ é apenas um tipo diferente do nosso e, a fim de concretizar tal

interpretação, usa o postulado apresentado por Lévy-Bruhl, que conceitua o

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pensamento “primitivo” determinado pelas representações místicas e emocionais

em face ao pensamento moderno.

Para Lévi-Strauss (1978), os povos considerados “primitivos” para alguns e

por ele denominados “povos sem escrita”, possuem a capacidade de um

pensamento desinteressado, que abrange a necessidade de compreender o

mundo em que estão inseridos, a natureza e a sociedade da qual participam, não

são totalmente movidos pela necessidade de sobrevivência. Para executar esse

processo, agem por meios intelectuais, do mesmo modo que faz um filósofo e até

mesmo um cientista.

A partir de exemplos tirados de suas experiências na escrita de suas obras,

Lévi-Strauss (1978) discorre acerca da originalidade do pensamento mitológico,

cuja função é desempenhar o papel do pensamento conceptual. Explica, ainda,

que sua intenção não é pôr em igualdade o que conhecemos como explicação

científica e explicação mítica; o que ocorre é que o avanço científico tem

promovido a superioridade (tecnológica?) ante a explicação mítica.

É interessante expor aqui a relação que Lévi-Strauss (1978) faz acerca do

mito e da música: o autor considera que entre mito e música existam as relações

de similaridade e de contiguidade. Ou seja, quando se trata da similaridade, só é

possível compreender o mito em sua totalidade tal qual uma partitura musical; faz-

se necessário ler os mitos como um grupo de acontecimentos, buscando o

significado básico e total e o que se refere à contiguidade. Para o autor, a música

surgiu como elemento que assumiu o lugar do mito, logo as estruturas musicais

são derivadas das estruturas mitológicas. Tanto a música quanto o mito têm sua

origem na linguagem, no entanto cada um teria um aspecto diferente, ou seja,

enquanto o mito privilegia o aspecto do significado, a música tem como foco o

aspecto do significante, o som. A música e a mitologia seriam duas irmãs geradas

pela linguagem que seguiram caminhos diferentes, escolhendo cada uma a sua

direção (LÉVI-STRAUSS, 1978, p.50).

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1.1.2 O mito e a metáfora

A relação entre mito e metáfora é condicionada pela concepção de que o

mito é, por si só, uma representação metafórica dos saberes, valores, princípios

de uma determinada cultura, ou seja, é uma produção que possui uma

representação simbólica. O crítico canadense Frye (1957), na obra Anatomia da

Crítica, apresenta o mito como uma arte de identidade metafórica implícita. Nessa

vertente, a respeito do mito e da metáfora, o autor explica que:

As metáforas, por seu turno, tornam-se as unidades do mito ou princípio construtivo do argumento, pois enquanto lemos, tomamos consciência de uma série de identificações metafóricas; quando terminamos, temos consciência de uma configuração estrutural organizadora ou mito de que se formou conceito (FRYE 1957, p. 344).

Tal explicação surge a partir do que é posto pelo crítico acerca dos dois

aspectos das estruturas verbais discursivas:

As estruturas verbais discursivas têm dois aspectos, um descritivo, o outro construtivo, um conteúdo e uma forma. O que é descritivo é sigmático: isto é, estabelece uma cópia verbal de fenômenos externos, e seu simbolismo verbal deve ser entendido como um grupo de signos representativos. Mas tudo o que for construtivo em qualquer estrutura verbal parece-me ser invariavelmente alguma espécie de metáfora ou identificação hipotética, quer seja estabelecida entre diferentes sentidos da mesma palavra, quer pelo uso de um diagrama (FRYE, 1957, p. 344).

Wellek e Warren (1976), teóricos dos estudos literários, apresentam os

termos metáfora e mito relacionando-os conjuntamente aos termos imagem e

símbolo. Para os autores, os quatro termos - na sequência imagem, metáfora,

símbolo e mito- se interpenetram semanticamente. Ao tratar da imagística, os

autores afirmam ser ela um elemento que pertence tanto à psicologia quanto aos

estudos literários. Para a psicologia, a imagem tem o significado de:

reprodução mental, uma recordação, de uma passada experiência

sensorial ou perceptual, não necessariamente visual. Em seu

discurso, afirmam que a imagem pode ser visual, auditiva, ou

inteiramente psicológica (WELLEK e WARREN, 1976, p. 230).

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Já para o leitor de poesia, segundo os autores, o que há é uma distinção

entre a chamada “imagística ligada e a imagística livre”; a imagística ligada

provoca nos leitores, mesmo que individualmente, a imagística denominada como

auditiva e muscular; a imagística livre, composta de imagens visuais restantes,

ocorre de maneiras variadas de pessoa para pessoa ou de tipo para tipo.

O símbolo, assim como a imagem, apresenta-se em variados contextos e

com finalidades distintas. Cita-se o uso do simbólico em expressões da

matemática, lógica, semântica e semiótica, além da epistemologia, poesia e

belas-artes e não se pode deixar de referir ao uso na teologia, uma vez que,

símbolo é um sinônimo de credo.

Ao discorrer sobre o aspecto metafórico das imagens, Wellek e Warren

(1976) dizem que a analogia e a comparação não são meras representações

pictóricas; o que há é uma unificação de ideias diferentes. De acordo com os

teóricos, a analogia e a alegoria são mais importantes do que o aspecto sensorial.

A imagem pode, neste caso, aparecer como descrição ou como metáfora, que

podem ser simbólicas. Conforme os autores, os teóricos da linguagem, em

especial, deram atenção à metáfora, compreendendo-a de distintas maneiras, no

que diz respeito ao gramático e ao retórico:

a metáfora como “omnipresente princípio da linguagem”

(Richards) e a metáfora especificamente poética. George

Campbell diz que a primeira pertence ao “gramático” e a segunda

ao “retórico”. O gramático julga as palavras pela etimologia; o

retórico, consoante elas produzem “o efeito da metáfora no

ouvinte” (WELLEK e WARREN, 1976, p. 242).

Sobre símbolo, imagem e metáfora, uma questão abordada por Wellek e

Warren (1976) é sobre a existência de sentido que confronte estes três

elementos. Os autores, no intuito de responder a tal questão, na recorrência e

persistência do símbolo, afirmam que:

(...) uma “imagem” pode invocar-se uma vez como metáfora, mas,

se se repete persistentemente, quer como apresentação, quer

como representação, torna-se um símbolo, pode até passar a

fazer parte de um sistema simbólico (ou mítico) (WELLEK e

WARREN, 1976, p. 233).

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Wellek e Warren dizem que o mito é tido como um ponto de estudo com

certa predileção pelo criticismo moderno, pois é uma “(...) zona compartilhada

pela religião, pelo folclore, pela antropologia, pela psicanálise e pelas belas-artes.”

(WELLEK e WARREN, 1976, p. 235) além de ser, em determinados momentos,

confrontado com a história, a ciência, a filosofia, a alegoria e, ainda, à verdade.

Durante o chamado “Século das Luzes”, o mito era concebido como “ficção”, no

entanto, a partir da “Ciência Nova”, de Vico, surge a concepção de mito “(...) como

sendo uma espécie de verdade ou equivalente da verdade; não um concorrente

da verdade histórica ou cientifica, mas sim um suplemento desta” (WELLEK e

WARREN, 1976, p. 236).

Destaca-se, ainda, a ideia concebida por muitos autores de que o mito é

uma espécie de “denominador comum entre poesia e religião” (WELLEK e

WARREN, 1976, p. 238). Em termos de comparação, a religião é pautada como

uma espécie de “mistério maior” e a “poesia, o menor”. Neste sentido, ao tratar do

mito e religião e também do rito, Almeida Júnior (2014) explicita que para o homo

religiosus, mito, rito e religião estão ligados, uma vez que o rito se configura como

um elemento de ligação entre o imanente e o transcendente, entre matéria e

espírito.

Wellek e Warren (1976) discutem o fato de que imagem, metáfora, símbolo

e mito sejam considerados por muitos como elementos de puro ornamento; no

entanto, atualmente alguns estudos têm chamado à atenção quanto ao significado

e a função da literatura que se encontram presentes na metáfora e no mito.

Importa-nos ressaltar que o mito tem sido objeto de estudo de áreas como

antropologia, linguística e psicologia; no entanto, os estudos literários voltados ao

mito seguem, geralmente, uma linha de pesquisa que aborda o modelo mítico na

literatura. Nossa pesquisa busca o caminho inverso: evidenciar aspectos literários

em narrativas míticas.

Frye (1957) afirma que, na crítica literária, mito significa um princípio

organizador estrutural da forma literária e explica:

O modo mitológico, as histórias sobre deuses, nas quais as personagens têm a maior força de ação possível, é o mais abstrato e convencionalizado de todos os modos literários, tal

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como os modos correspondentes nas outras artes – a pintura religiosa bizantina, por exemplo. Por isso, os princípios estruturais da literatura relacionam-se tão estreitamente com a mitologia e a religião comparativa (FRYE, 1957, p. 136).

Scholes e Kellogg (1977) explicitam que, no sentido etimológico da palavra,

a literatura não ocorre sem escrita, ela é por definição a arte das letras. Para Frye

(1957) a literatura é uma arte de palavra.

Graúna (2013) afirma que, para os indígenas de várias partes do mundo, a

palavra é um elemento sagrado. Cita, por exemplo, que, para os índios Guarani, a

palavra tem alma. Sobre a importância da palavra, Graúna (2013) diz que:

Palavra e identidade se confundem; palavra que passa de pai para filho, dos avós para os netos; palavra carregada de água, palavra vinda da terra, palavra aquecida pelo fogo, palavra tão necessária quanto o ar que se respira; palavra que atravessa o tempo (GRAÚNA, 2013, p. 173).

Outra importante contribuição sobre a concepção de mito é a apresentada

por Borges (2013). O autor, sob a perspectiva da análise do discurso, afirma que:

O mito é, em suma, o espelhamento discursivo que reflete/refrata o imaginário e a ideologia de um povo. Com isto, quero dizer que toda realidade é atravessada pela linguagem que, num movimento simultâneo, transparece e opacifica essa mesma realidade. Sendo, por sua vez, uma forma discursiva que possibilita compreender o complexo cultural, histórico e cognitivo de um povo, o mito medra no território da ideologia (BORGES, 2013, p. 25).

Importa-nos salientar o legado oral do mito, pois, como afirma Barthes

(1987), mito é uma fala. Conforme explicam Scholes e Kellogg (1977) sobre a

fala, o objetivo não é discutir e descrever a sua origem, uma vez que a nós não é

possível determinar de maneira eficiente quando o homem começou a falar. O

que podemos pressupor é que a linguagem é anterior ao próprio homem. Os

autores sugerem que a invenção da literatura pode ter ocorrido há milhões de

anos, quando o homem repetiu pela primeira vez uma expressão vocal que

acabou por dar prazer a si mesmo ou a outro. Consideram que, de certa maneira,

foi assim que se deu início à arte narrativa no ocidente.

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Desse modo, as raízes da literatura se encontram na oralidade e, ao

tratarmos do mito, não podemos ignorar sua relação com a prática oral. Borges

(2013) afirma que “É nessa relação necessária e constitutiva com a ordem do oral

que o mito se faz materialidade e elemento indispensável no processo de

formação pedagógica e ética em sociedades indígenas” (BORGES, 2013, p. 23).

Lembramos que o corpus de nossa pesquisa é constituído por narrativas

escritas e de cunho mítico, por isso é necessário fazer uma ressalva a fim de que

não haja equívocos para a análise. Não se trata tão somente de mera

transposição para a escrita de um texto da literatura oral. Consideramos que tais

narrativas escritas indígenas, assim como as africanas e as de todos os outros

povos do mundo, têm como objetivo a preservação da memória de um povo e seu

legado cultural, por isso a seleção de textos produzidos em língua portuguesa e

que evidenciem características míticas como transmissão e rememoração.

Procuramos até aqui abordar algumas questões primordiais que são

relevantes ao(s) conceito(s) de mito e ressaltar a relação fronteiriça que há entre

oralidade, mito e literatura para fins de sustentação da nossa análise, bem como

dialogar com o próximo tópico, que trata especificamente da estrutura da narrativa

mítica.

1.2 A estrutura do mito e sua universalidade: tempo, espaço e metáfora

Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana.

(Joseph Campbell, in: O poder do Mito, 1991).

A perspectiva teórica de Mircea Eliade (1972) acerca da estrutura dos

mitos, no capítulo inicial da obra Mito e Realidade, propõe que o contraste no

modo de concepção do termo mito, a partir da visão que lhe era dada no século

XIX, é o ponto de partida da reflexão sobre a estrutura do mito. Até aquele

momento, tinha-se como mito uma forma de “fábula”, “invenção”, um modo de

“ficção” e era, para as sociedades primitivas, sagrado, exemplar e significativo ou

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uma “história verdadeira”. Ainda hoje, a concepção de mito é usualmente

colocada como “ficção” ou “ilusão”.

Para Eliade (1972), o interesse da investigação de mitos em sociedades

primitivas se dá no fator de tais mitos refletirem ainda um estado original, em

comparação, por exemplo, à mitologia grega, que sofreu modificações ao longo

do tempo. O autor afirma que, nas sociedades primitivas, os mitos ainda estão

vivos e as pesquisas assim conduzidas poderão revelar muito mais a respeito dos

rituais das sociedades tradicionais.

Uma questão central leva-nos ao desenvolvimento do tópico seguinte:

como é possível compreender os textos míticos indígenas? Uma pista é a

compreensão de sua estrutura. A estrutura dos mitos revela e narra não somente

a origem do mundo, dos animais e das plantas e principalmente do homem, mas

refletem em especial a influência que estes fatos primeiros promoveram no

homem que há hoje, ou seja, a existência do homem e do mundo só ocorreu a

partir da atividade criadora dos Entes Sobrenaturais no “princípio”. O homem de

hoje é consequência, resultado dos eventos míticos de sua criação. Para este

homem, o mito é de suma importância, pois tais narrativas estão diretamente

relacionadas com sua existência.

Eliade (1972) passa a discutir, então, que a “história” narrada pelo mito

compõe um conhecimento de ordem esotérica, isso porque tal conhecimento tem

incutido um poder mágico-religioso. A esse respeito, reportamo-nos ao que nos

fala Cassirer (1992), citando Codrington (1981), que afirma que a raiz de toda a

religião reside na crença de uma “força sobrenatural”; a explicação dada é que, a

partir desta ótica, a existência das coisas e as atividades dos homens parecem

inseridas, de algum modo, em um “campo de forças” mítico. Eliade (1972), em

sua explicação, afirma que o ato de “viver” o mito expressa, então, uma

experiência religiosa que difere de sua experiência cotidiana.

A partir da vivência das sociedades arcaicas, Eliade (1972) assim sintetiza

a estrutura e a função do mito:

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1) constitui a História dos atos dos Entes Sobrenaturais;

2) essa História é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidades) e sagrada (porque é obra dos Entes Sobrenaturais);

3) o mito se refere sempre a uma “criação”, contando como algo veio à existência, ou como um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar foram estabelecidos; essa razão pela qual os mitos constituem Os paradigmas de todos os atos humanos significativos;

4) conhecendo-se o mito, conhece-se a “origem” das coisas, chegando-se, consequentemente, a dominá-las e manipulá-las à vontade; (...)

5)de uma maneira ou outra, “vive-se” o mito.

(ELIADE, 1972, p.18)

Lévi-Strauss (1958), ao tratar especificamente sobre a estrutura do mito, na

obra Antropologia Estrutural I, afirma que num mito tudo é possível. A sucessão

dos eventos não está regida sob uma lógica de continuidade bem como o sujeito,

suas características e toda e qualquer relação concebível é possível, no entanto,

mesmo que não haja uma regularidade, os mitos se desenvolvem em várias

regiões do mundo com as mesmas características e mesmos detalhes. É desse

ponto que surge o questionamento: “se o conteúdo do mito é inteiramente

contingente, como explicar que, de um extremo a outro da terra, os mitos se

pareçam tanto?” (LÉVI-STRAUSS, 1958, p. 223).

Na análise do mito proposta por Lévi-Strauss (1978), a discussão diz

respeito ao ponto em que os mitos devem ser tomados como pertencentes a uma

totalidade, daí o seu caráter universal. Lévi-Strauss (1978) cita, por exemplo, que

um significado não encontrado em um mito específico pode ser pleno de

significado em outro. Por esse motivo, para a pesquisa que ora apresentamos, foi

realizada a escolha de narrativas míticas indígenas de várias etnias e não

somente as de uma etnia em particular.

A fim de abordar o caráter universal do mito, Lévi-Strauss chama a atenção

para o fato de que apenas aproximar o mito da linguagem não é suficiente para a

análise comparativa, pois o mito faz parte da linguagem. É através da palavra que

ele aparece e está inserido no discurso; nas palavras do autor, “Se quisermos dar

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conta das características específicas do pensamento mítico, devemos, portanto,

estabelecer que o mito está ao mesmo tempo na linguagem e além dela” (LÉVI-

STRAUSS, 1978, p.224).

Com base nas leituras realizadas para o desenvolvimento desta seção,

consideramos que são três os elementos estruturantes da narrativa mítica e que

estão presente nos mitos de várias regiões: o tempo, espaço e a metáfora. Por

isso, esses três eixos estruturantes serão explanados individualmente nos tópicos

seguintes.

1.2.1 Estrutura da narrativa mítica: tempo mítico

Os mitos apresentam características muito particulares em sua estrutura

narrativa. Uma das características da estrutura mítica apresentada por Lévi-

Strauss é a questão temporal, pois o mito sempre se refere a eventos passados,

acontecimentos que ocorreram “há muito tempo”, “antes da criação do mundo”,

“nos primórdios”. Importante ressaltar que, sobre os elementos básicos da

narrativa, conforme Labov/Valetsky (apud Hanke, 2003, p. 3) a exigência mínima

para se caracterizar uma narrativa é uma ligação temporal com pelo menos duas

sentenças ou elementos que a compõem, como por exemplo, espaço e

personagens.

Silva (1995) pondera que os mitos ocorrem em tempos definidos em uma

sucessão plena de sentidos. Para a autora, “o mito constrói e reconstrói a história

do mundo, da sociedade, da humanidade, das origens até as primeiras criações;

da ordem do caos inicial até a separação de espaços, momentos e seres tal como

se encontra, hoje, o mundo” (SILVA, 1995, p.331).

Durante a seleção de narrativas para a análise, foi possível verificar este

caráter universal do mito, o aspecto temporal. A seguir, apresentamos um recorte

de trechos das narrativas que refletem tal aspecto:

Na antigamente os mais velhos, gostam de caça para se alimenta os seus filhos e suas mulheres. Segundo os mais velhos contam que á sua principal arma é arco e flecha, para se defender dos

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inimigos e para á caça também. Os mais velhos contam, que no antigamente os bichos não tinham medo.

(Rosinaldo Ora Não e Antenor Oro Waram)

Antigamente os mais velhos se reunião para bater o timbó no igarapé, para pegar peixe, para sua alimentação.

(A Pescaria. Clenilda Alcio)

Antigamente a festa tradicionais é organizada pelo cacique da aldeia.

(As festas tradicionais. Edmilson Oro Waram Xijein e Silvano Oro Waram Xijein)

Era uma vez, que não tinha mais nada para comer na aldeia, os povos na aldeia fiaram com muita fome.

(Jeremias Oro Não)

Observe-se que, nos trechos em destaque, os autores utilizam o vocábulo

antigamente com a intenção de marcar os eventos enquanto acontecimentos

ocorridos no passado. Temos ainda a utilização da expressão era uma vez tão

comum em fábulas e contos de fadas. Desse modo, verificamos que os

narradores/autores são conhecedores dos fatos, mas estão temporalmente

distantes deles. A partir desse elemento, é possível compreender, conforme diz

Lévi-Strauss, que o mito não é linear cronologicamente; é uma estrutura

permanente que comporta passado, presente e futuro simultaneamente.

Rodrigues (2013), a partir do pensamento teórico de autores como

Meletínsk (1987), Eliade (1992) e Gusdorf (1953), elabora um tópico referente ao

elemento estruturante da narrativa mítica: o tempo. A autora afirma que, para

Meletínsk (1987), o passado mítico é a época da criação primeira, é o supratempo

dos tempos iniciais que antecederam o começo da contagem do tempo empírico.

Explica, ainda, que este passado mítico é reatualizado com a ajuda dos rituais e

por isso é possível atribuir a concepção cíclica do tempo mítico com o tempo

empírico. A reflexão sugerida por Melétinsk, citado por Rodrigues (2012, p. 36) é

que “tempo mítico e histórico interpenetram-se, assim como as diferentes

perspectivas sobre o mito no que diz respeito à representação do tempo e do

espaço nas narrativas míticas”.

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Quanto ao pensamento de Eliade (1992) sobre o tempo mítico, Rodrigues

(2013) esclarece que, para o autor, o tempo está configurado como uma forma de

recusa do tempo histórico, embora não o exclua de sua configuração total.

A partir dos postulados de Gusdorf (1953), que confere ao tempo mítico o

status de herdeiro do tempo primitivo, Rodrigues (2012) explica que ambos os

tempos valorizam a sensação do tempo e não sua passagem; que a “consciência

do tempo” é originada na memória e é formada através de estruturas formadas a

partir de tempos particulares provenientes de sensações individuais, ou seja, o

tempo mítico possui uma duração específica. Tal duração é realizada pelas

sensações dos seres diante dos acontecimentos.

Rodrigues (2013) utiliza os estudos de Eliade (1992), uma vez que o autor

revela ser o tempo mítico uma oposição do tempo sagrado ao profano. É um

tempo primordial que se faz presente e dá indícios da eternidade. Para o autor

não há acontecimento que seja irreversível, que não possa ser transformado.

Nesse sentido, o que há é uma repetição e esse movimento repetitivo tem a

função de conferir realidade ao acontecimento, bem como é necessário

esclarecer que essa repetição nada mais é que uma imitação de um arquétipo

tido como um modelo exemplar. É neste contexto que os rituais vão se

estabelecer, pois o ritual é a configuração de um tempo concreto projetado em um

tempo mítico.

Algumas narrativas selecionadas neste trabalho apresentam a descrição de

rituais que são “praticados até hoje” pelos povos indígenas e revelam a repetição

desses rituais na busca da materialização do mito, conforme se pode verificar nos

trechos abaixo, extraídos das narrativas A pescaria, Os Paiterey e Aldeia Palhal:

Os Kaxarari ainda praticam a cultura deles de fazer uma grande pescaria.

(A Pescaria. Marinês Canoé) Eu moro na aldeia Palhal vou contar um pouco da história dos povos Tupari que ainda preserva sua cultura.

(Aldeia Palhal. Arlene Tupari, Edna Aruá, Misma Canoé, Valmir Makurap e Maurício Tupari)

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Nós povo Paiter (Suruí) vivem em sociedade na aldeia. Até hoje guardamos e praticamos nosso costume e crença.

(Os Paiterey. Diori Suruí, Idevaldo Suruí, Ferrari Suruí, Rubem Suruí, Eclesio Arara)

Lévi-Strauss afirma que, como todo ser linguístico, o mito é formado por

unidades constitutivas; pondera também que o mito é pertencente à ordem da

linguagem e faz parte dela, por isso a linguagem utilizada na narrativa mítica

abarca propriedades específicas. Inferimos, então, dos exemplos extraídos das

narrativas, o aspecto temporal projetando a repetição e a continuidade.

Nas narrativas A pescaria e Aldeia Palhal, o advérbio temporal ainda dá o

caráter de continuidade do acontecimento, pois é uma prática do tempo

primordial, mas que neste tempo atual ocorre entre os indígenas. A seleção

vocabular do narrador reflete a preocupação de colocar o leitor a par da história

contada em uma interseção temporal: passado e presente, ou seja, o tempo

mítico. Também na narrativa Os Paiterey a locução adverbial até hoje abarca a

função de demonstrar um tempo mítico inserido no tempo histórico.

1.2.2 Estrutura da narrativa mítica: espaço mítico

O campo simbólico se baseia nas experiências das pessoas de uma dada comunidade, num dado tempo e espaço. Os mitos estão tão intimamente ligados à cultura, a tempo e espaço, que, a menos que os mitos e as metáforas se mantenham vivos, por uma constante recriação através das artes, a vida simplesmente os abandona.

(Joseph Campbell. In: O poder do Mito, 1991).

A variabilidade das noções do espaço materializa inúmeras discussões em

diversos campos de conhecimento e com diferentes propósitos. Importa para a

discussão aqui exposta, a apresentação do espaço na narrativa mítica e, mais

adiante, a configuração do espaço no campo literário.

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Silva (1995) expõe que os acontecimentos míticos podem ocorrer em

espaços imaginários, concebidos, como por exemplo: domínio do cosmos,

povoados, mata, céus, o subterrâneo e assim por diante.

Rodrigues (2013) delineia seu trabalho sobre o espaço mítico a partir do

exposto por Georges Gusdorf (1953), para quem a categoria espacial se

apresenta como “a dimensão do mundo e do pensamento e indica abstração do

mundo ou invenção do espírito” (GUSDORF, 1953, apud RODRIGUES, 2013, p.

38). O espaço mítico, conforme a afirmação do autor é oposto ao espaço vazio e

formal em que estão situados nossos pensamentos e atividades, bem como é

também um espaço primitivo. A denominação dada pelo estudioso ao espaço

mítico é “Grande Espaço” e dá ênfase ao aspecto sagrado da categoria.

Esclarece ainda que, assim como o tempo mítico, o espaço mítico:

(...) não depende do conhecimento objetivo, de uma realidade dada, ele é imaginado e se constitui no interior, pelas percepções e sensações dos seres, o que lhe concede a ideia de espaço indefinido porque o esse espaço não condiz com a organização de uma existência possível, é o local de uma existência real a qual lhe dá sentido (GUSDORF, 1953, p.53 apud RODRIGUES, 2013, p.39).

O elemento espaço e o aspecto sagrado ocorrem na própria estrutura do

mito, “pois ambos constituem um horizonte transcendente de uma atividade que

se implanta como liturgia cósmica, constituindo o grande espaço ontológico,

princípio de orientação dos seres em que se valha da consciência e dos sentidos”

(GUSDORF, 1953, p.59 apud RODRIGUES, 2013, p. 39). Interessante ressaltar

que, para esse estudioso, as festas, comemorações e os sacrifícios são os

eventos que fazem florescer autenticamente o tempo e o espaço mítico, ou seja,

são nestes rituais que a realidade humana é transfigurada. No espaço mítico

existem lugares que são privilegiados e exclusivos ao sagrado. Por exemplo, o

caso da montanha que representa a ligação entre o céu e a terra e também a

morada humana que é constituída como um espaço existencial e sagrado, pois é

capaz de refletir o mundo. Os trechos abaixo, retirados de uma das narrativas de

nossa pesquisa, podem ilustrar tal afirmativa:

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Primeiramente entramos na floresta para tirar os esteios e os caibo, tiramos e colocamos para o local, onde vai ser feito a casa.

O dono da casa não trabalha sozinho, ele pede para a mulher fazer chicha para as pessoa da comunidade ajudar.

Depois de tanto trabalho, comemoramos, fazemos a festa, bebemos chicha, comemos mbiako, peixe, etc.

(A construção da casa indígena. Catiucia Adaila)

Na narrativa escrita por Catiucia Adaila, A construção da casa indígena,

podemos perceber o sagrado que aparece neste evento, uma vez que o processo

de construção da casa obedece a rituais. Mais do que prover os materiais,

retirados da floresta, a construção da casa é um trabalho coletivo: necessita da

ajuda de todos os homens, é preciso que a mulher faça a chicha -bebida típica,

para ser servida aos trabalhadores- e a finalização desse acontecimento é

comemorada pela comunidade através de uma festa.

Consideramos ainda que, para o nosso estudo, a importância da categoria

espaço está relacionada aos tipos de metáforas apresentadas por Lakoff e

Johnson (2002): as metáforas orientacionais e ontológicas. As metáforas

orientacionais são construídas a partir da observação do funcionamento do corpo

humano em relação ao meio em que o indivíduo vive. Referem-se principalmente

às sensações e orientações espaciais ou temporais como: para cima, para baixo;

frente, atrás. As orientações espaciais decorrem do modo como o corpo humano

funciona no ambiente físico que o rodeia. Sobre as metáforas ontológicas, as

experiências com objetos físicos em relação ao corpo dos indivíduos oferecem

como base a noção espacial, onde é possível conceber eventos, ideias, emoções,

atividades como entidades e substâncias.

A discussão leva-nos a afirmar que o espaço tem a capacidade de revelar

particularidades da narrativa. Conforme postulam Oliveira e Silva (2012, apud

BARBIERI, 2009, p. 105) o espaço está impregnado de diversas informações

culturais, além de apresentar as características físicas e geográficas.

Com base nas narrativas que compõem o corpus do trabalho aqui

apresentado, constata-se claramente como o espaço da mata (floresta) é

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importante para os povos indígenas. Em algumas narrativas míticas analisadas, é

possível postular que as construções linguísticas metafóricas têm como domínio

de origem espacial a mata (floresta/sagrado).

A hipótese é que o espaço da mata tem significado de vida, uma vez que é

dali que os povos indígenas tiram seu sustento, sua sobrevivência. A importância

fundamental da floresta pode ser inferida na narrativa de criação escrita pelo

indígena Frederico:

Quando Deu criou o mundo. Deu colocou nos índio na floresta para cuida. Só que os branco estão destruído a floresta isto é grande tristeza para nos Por que nos precizamo dela para sobrevive. e dali onde nos tira nosso alimento. O rio e muito importante para nos por que nos pressiza da água para beber, toma banho pesca. Nos índio somo dono da floresta e do rio, por que foi Deu que colocou para nos cuida.

(A criação do mundo. Frederico)

A análise também revela a importância do rio para os povos da floresta; na

narrativa “O Rio”, os autores descrevem a relevância desse recurso natural para

os indígenas.

O Rio

O rio é muito importante, para a existência da vida. É nele que encontramos grande quantidade de água, e de onde retiramos os peixes para a nossa alimentação. O rio é um ecossistema, que possibilita a reprodução de várias espécies de peixes, além de servir para banharmos e nos divertirmos. Também é um meio de locomoção, onde viajamos, ou buscamos recursos que necessitamos para realizar outras atividades. Um exemplo é a busca de timbó, que utilizamos para pescar nos lagos, ou nos igarapés, o cipó possui uma substancia que mata os peixes, assim os recolhemos, e os levamos para comer. O rio todo ano passa por um processo, e muda constantemente. No período da chuva o rio enche e assim possibilita que outros peixes cheguem até os locais, onde anteriormente foi realizado a pesca com o timbó. É no período da seca, que realizamos essa atividade. Destas formas utilizamos, o rio e seus recursos. Porém deve haver conciência humana para que esse bem possa existir para as gerações futuras.

(Edmar Aruá, Morais Tupari, Edmar Oro Mon, Edson Oro Mon, Juari Tupari, Carlos Tupari, Inacio Oro Mon)

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Com a finalidade de mostrar a relação do indígena com os espaços

geográficos, elaboramos, através de um apanhado geral em variadas narrativas

indígenas, dois quadros apresentando informações sobre os espaços da floresta

(mata/mato) e do rio (água, lago, igarapé, igapó). O espaço da floresta é

demonstrado no Quadro 1, a seguir:

QUADRO 1 – O ESPAÇO DA FLORESTA

Interior do Espaço

Trechos das narrativas

Rio:

água, lago,

igarapé

Reuniram varias pessoas para irem fazer timbó; Depois foram no mato: colheram muitas folhas e cipós: Encheram os paneiros e foram embora. Ao chegar na aldeia machucaram todas as folhas e cipós. Depois de machucados as folhas foram até o lago onde desejavam colocar as folhas que eles tinham machucado.

(O Timbó. Liliane Cujubim)

Alimentos

Os Kaxarari ainda praticam a cultura deles de fazer uma grande pescaria. O cacique reúne o povo e marca um dia para fazer esse tipo de pescaria. As mulheres vão para a floresta colher frutos outras vão pegar a mandioca e o milho.

(A pescaria do povo Kaxarari.Marinês Canoé)

A caçada realizada na nossa Aldeia Gamir é assim o cacique tradicional reune os homens da comunidade de manhã para fazer a caçada eles saem juntos pela estrada se separam, ou se espalham no mato quem matar algum bicho tras para o cacique e as esposas dele cozinham na panela depois de pronto chama os homens que foram caçar e eles repartem a carne e tem que ser sem a presença de mulher.

(A caçada. Edna e Geovane Suruí)

Elementos

para a construção das casas

Em primeiro lugar construímos a casa desta forma. Sabemos que é um trabalho muito pesado. Primeiramente entramos nas floresta para tirar os esteios e os caibo...Entramos novamente na floresta para retirar as palha para cobrir a casa.

(Construção da casa indígena. Catiucia Adailo)

Cipó para o

timbó

As mulheres vão para o mato buscar o cipó que e chamado timbor e um tipo de veneno para o peixe.

(A festa do peixe. Marcílio Oro Não)

Remédios

Nós povo arara usamos ervas medicinais do mato, esse remédio é usado para a criança de 8 a 10 mêses para a criança andar rápido.

(Angela, Rute, Adão, Mariza, Bené)

Fonte: Elaboração da autora a partir das narrativas escritas pelos professores indígenas

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Os recursos provenientes do espaço do rio são demonstrados no Quadro

2, a seguir:

QUADRO 2 – O ESPAÇO DO RIO

Recursos

Trechos das narrativas

Alimento Eles vão para o rio e começa a pescaria de lavagem do produto pisado, os peixes começam morrer. Quando os estiver mortos eles pegam os peixes, eles voltam para suas casas com muito peixes para suas famílias.

(A pescaria. Olinda Edinar Oro Waram)

Transporte Também é um meio de locomoção, onde viajamos, ou buscamos recursos que necessitamos para realizar outras atividades. Um exemplo é a busca de timbó, que utilizamos para pescar nos lagos, ou nos igarapés, o cipó possui uma substancia que mata os peixes, assim os recolhemos, e os levamos para comer.

(O rio. Edmar Aruá, Morais Tupari, Edmar Oro Mon, Edson Oro Mon, Juari Tupari, Carlos Tupari, Inacio Oro Mon)

Fonte: Elaboração da autora a partir das narrativas escritas pelos professores indígenas

Quando nos referimos ao espaço mítico, é mister salientar que se trata de

um espaço que não abarca as mesmas leis da natureza do mundo real. O

processo de produção do espaço mítico está intimamente ligado ao sagrado. Tal

premissa pode ser discutida a partir do que Eliade (2010, apud BRANDÃO, 2013)

nos explana na obra O Sagrado e o Profano, pois ali temos a relação que o Homo

religiosus estabelece com o espaço.

Para o homo religiosus o espaço não é homogêneo, ele apresenta roturas: há porções no espaço que são mais “fortes” ou “significativas”, porque ali ocorreu uma hierofonia: manifestou-se o sagrado. Tendo sido o cosmos criado pelos deuses, é ele uma grande hierofania... Tal perspectiva encontra sua formulação na filosofia panteísta: tudo é manifestação divina e, portanto, sagrada.

(ELIADE, 2010, apud BRANDÃO, 2013, p.35)

Nas narrativas míticas indígenas, é possível verificarmos que o espaço da

floresta é um dos espaços sagrados onde ocorrem manifestações que somente ali

são possíveis e realizáveis, pois fazem parte deste espaço sacralizado. Os

espaços geográficos da floresta (mata) e das águas (igarapé) revelam ainda a

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relação com o sagrado. Para mostrar tal relação, trazemos exemplos retirados de

duas diferentes narrativas míticas amondawa, onde temos o mito de criação e

origem da mulher.

Narrativa 1

A mulher do índio

Tangip Amondawa (1997)

Antigamente nós não tinha mulher. Era o índio mesmo que tirava e fazia chicha. Tinha um índio velho, mas que entendia de tudo...Ele ficou pensando, pensando até que teve uma ideia. Aí ele foi no mato e conseguiu trazer a mulher. Ele trouxe a mulher para casa, escondeu a mulher e não mostrou pra ninguém. Daí era a mulher que fazia a chicha na casa. Um dia um rapaz foi lá na casa do velho e tomou chicha. O rapaz viu que a chicha do homem era diferente. Aí perguntou pro velho: - Como que tu fez a chicha? O velho jurou que era ele mesmo que tinha feito a chicha e não contou pro rapaz que ele tinha ido no mato fazer mulher. O rapaz não acreditou e desconfiou do velho: - Não!!! Acho que não!!! Acho que ele mesmo não isso daí. Não tava assim a chicha dele... Aí o rapaz chamou outros índios e falou: - Vamos lá ver escondido, ver se ele mesmo que fez a chicha. Aí foram lá olhar escondido, né? E viram a mulher fazendo a chicha pro homem. Foram lá com ele e disseram: - Tu tem mulher sim !!! - Aonde tu viu? Eu vi aqui na sua casa. - Não !!! Eu não tenho mulher não!!! - Não!!! Tu tem sim. Como é que tu fez mulher? Aí o rapaz queria mulher, outro rapaz também queria mulher, aí endoidaram pra fazer mulher também. Aí o velho contou como tinha feito a mulher. Daí o outro rapaz foi no mato jogou a casca do pau e voltou sem pau e não conseguiu trazer a mulher. Voltou lá com o velho e perguntou de novo como que fazia a mulher. O velho perguntou pro rapaz. - Como é que tu fez lá? - Eu fiz assim, assim, assim, foi assim, assim. - Não, tu fez tudo errado. Agora tu vai lá outra vez e joga no mato. Tu não olha primeiro pra trás, não! Tu fica lá sentado, só corta e joga. Na hora que mexe aí tu olha pra trás. - Tá bom. Aí o rapaz voltou lá outra vez na mesma hora, sabe? Aí, conseguiu fazer mulher. Aí ficaram duas mulheres.

(In: SAMPAIO, SILVA E MIOTELLO (Orgs.), 2004, p.15)

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Narrativa 2

A origem da mulher Tari Amondawa (1998)

É... sei que igarapé tem peixe, né? Tem muito Mandi por aí. (Acho que

Mandi mesmo). Aí não tinha mulher nada! Um dia um homem foi pescar, aí vai, vai lá, ele vai pescar no igarapé, né? Quando ele puxou o peixe, ih!...tão bonita era a mulher!

(In: SAMPAIO. SILVA E MIOTELLO (Orgs.), 2004, p. 29)

A partir da leitura da narrativa 1, é possível verificar primeiramente que, na

cultura indígena amondawa, a produção da bebida típica chicha é feita pela

mulher; no entanto, antes de sua criação era o homem quem fazia. Nota-se que a

bebida produzida pelo ser feminino é diferente é melhor. A mulher é criada na

floresta, o espaço que tem intrínseca relação com o sagrado, pois é o espaço que

torna possível a atividade de criação do feminino. Neste espaço natural e

sacralizado, é possível ao homem realizar a façanha de mudar a estrutura social

com a inserção da mulher na comunidade.

Na narrativa 2, temos o espaço do igarapé (que se encontra no interior da

floresta), em que a origem da mulher é atribuída ao peixe, que vive na água; a

mulher, de maneira simbólica, é pescada no igarapé pelo próprio homem. Estes

exemplos podem demonstrar o que Lévi-Strauss afirma sobre a narrativa mítica:

tudo pode acontecer num mito.

Buscamos neste trabalho as construções linguísticas metafóricas que

evidenciam as noções de espaço, pois questões culturais acabam por

transparecer nas construções metafóricas de ordem espacial, revelando como os

povos indígenas estabelecem sua relação com o ambiente em que vivem,

comprovando, deste modo, que as metáforas estão presentes em nosso cotidiano

através de nossa experiência com o meio que nos circunda.

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1.2.3 Espaço Literário: percursos e conceitos

Mas a função da linguagem não é o seu ser: se sua função é o tempo seu ser é o espaço.

Michel Foucault

A partir do livro Teorias do Espaço Literário, do professor, pesquisador e

escritor Luís Alberto Brandão (2013), realizamos um apanhado breve e geral

acerca do conceito de espaço literário, a fim de relacioná-lo ao que já foi exposto

em relação ao espaço mítico, bem como dialogar na análise com as narrativas

míticas indígenas. A escolha se deve ao fato de Brandão dedicar sua pesquisa a

demonstrar as variações da categoria espaço na literatura, na teoria literária e na

crítica ao longo do século XX e início do século XXI.

Pelo viés diacrônico, Brandão (2013) discute o espaço através de duas

perspectivas relacionadas. Uma se refere à “história do espaço” ou, como o autor

afirma, o registro das transformações do espaço no decorrer de determinado

período e a outra diz respeito às transformações do espaço enquanto conceito. A

primeira é discutida pelo autor a partir do levantamento das variadas formas de

percepção espacial, as quais incluem os sentidos do corpo humano e ainda os

sistemas tecnológicos rudimentares ou complexos, de observação, mensuração e

representação. A segunda diz respeito ao conceito de espaço enquanto construto

mental usado para a produção do conhecimento humano seja de natureza

científica, filosófica ou artística.

Do ponto de vista da cartografia, já é possível perceber as variações que

as representações espaciais sofreram em cada período e em cada cultura. Como

possibilidade para tais variações, podemos elencar os condicionantes

econômicos, sociais e políticos. Brandão (2013) nos informa também que uma

outra forma de organização espacial humana determinante foram as cidades.

Concomitante à historiografia do espaço, temos também as transformações

históricas do conceito de espaço nos diversos e mais importantes campos do

conhecimento. O autor afirma que o espaço possui distintas histórias, mas que há

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um cruzamento entre os campos obrigando uma abordagem transdisciplinar. Por

esse motivo, Brandão mostra-nos como é apresentado o conceito de espaço.

No campo das ciências sociais, Brandão (2013) questiona a relação

espaço e tempo, pois considera que não há mais possibilidade de priorizar o

tempo em detrimento do espaço. Na Física, cita dois personagens principais e

determinantes para o conceito de espaço, Newton e Einstein, ou seja, a noção de

espaço absoluto e a noção de espaço relativo. No campo da filosofia, cita as

premissas de Kant no que se refere ao espaço e tempo como categorias

apriorísticas; Heidegger, que propõe uma ontologia dos espaços e Bachelard ao

tratar da imaginação poética. Por fim, são destacados os postulados de Michel

Foucault, para quem “o espaço é fundamental em qualquer forma de vida

comunitária; o espaço é fundamental em qualquer exercício de poder”; e Deleuze

e Guattari no que se refere à geofilosofia e à concepção de pensamento como

série de movimentos de “territorialização” e “desterritorialização”.

Em seguida, Brandão indaga sobre o papel desempenhado pela categoria

do espaço na história da teoria da literatura e a partir de sua consolidação, no

início do século XX. Segundo o autor, a busca por um objeto específico, bem

como uma definição para literariedade é que provocam a concretização da teoria

literária. Segundo Brandão (2013):

Essa busca exige, do estudioso, distanciamento em relação à estética (como ramo da filosofia), recusa das análises de cunho impressionista ou de decodificação simbólico-metafísica, e questionamentos de abordagens - de natureza historicista, psicológica, biográfica ou sociológica - cuja ênfase recai em aspectos “extrínsecos” ao texto (BRANDÃO, 2013, p. 22).

Com a difusão do estruturalismo, a partir dos anos 60, e sua ênfase na

“gramaticalidade” do texto literário, o espaço, enquanto categoria dentro da teoria

da narrativa, segundo Brandão, desempenha papel secundário, pois os focos são

direcionados às vozes, temporalidades e ações. No entanto, Brandão (2013, p.

25) afirma que:

No cerne do pensamento estruturalista, porém, ganha força a ideia de que é a partir da prevalência da sincronia sobre a diacronia que as questões sobre gênese e filiação, ou seja, vinculadas ao “determinismo temporal”, cedem lugar à análise das

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relações responsáveis pela coerência interna das obras, isto é, ao “determinismo espacial”, nas palavras de Gérard Genette.

A explicação dada é que a categoria espacial passa a ser tratada não

somente de maneira identificável nas obras, mas sim como um sistema

interpretativo, modelo de leitura e orientação epistemológica. Passa-se então a

designar de maneira metafórica o “espaço da linguagem”. Genette (apud

BRANDÃO, 2013, p.25) declara que:

Hoje a literatura - o pensamento - exprime-se apenas em termos de distância, de horizonte, de universo, de paisagem, de lugar, de sítio de caminhos e de morada: figuras ingênuas, mas características, figuras por excelência, onde a linguagem se especializa a fim de que o espaço, nela, transformado em linguagem, fale-se e escreva-se.

Brandão (2013) elabora proposições para a discussão acerca dos

conceitos do espaço e afirma que uma delas se refere ao atual momento em que

há um interesse pelos problemas e também potencialidades do conceito de

espaço. Para o autor, o interesse é motivado a partir das mudanças operadas

pela mecânica quântica e pela física relativística sobre os fundamentos da física

newtoniana. Em síntese, o autor afirma que o espaço deixa de ser o pano de

fundo absoluto do universo e passa a assumir e ser aceito como categoria a priori

da percepção.

Brandão considera importante acrescentar que, por ser usado em vários

campos de conhecimento e com diversificadas funções, o termo espaço

apresenta problemas de limitação que devem ser explicados:

O verbete espaço consta de obras de referência - dicionários, enciclopédias, glossários - de filosofia, arquitetura, linguística, geografia, semiótica, física, sociologia, teoria literária, símbolos, comunicação, urbanismo, teoria da arte, obras nas quais é comum se ressaltar a variedade de acepções associadas ao vocábulo, mesmo nas áreas em que este possui valor de preceito. (BRANDÃO, 2013, pp. 49-50)

Ao utilizar como alvo os estudos literários ocidentais do século XX, o autor

define quatro modos de abordagem do espaço na literatura: (i) representação do

espaço, (ii) espaço como forma de estruturação textual, (iii) espaço como

focalização e (iv) espaço da linguagem.

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Por representação do espaço no texto literário, o autor nos informa ser este

provavelmente o mais recorrente e explica que o espaço é abordado como uma

categoria que existe no universo extratextual, principalmente nas tendências

neutralizantes, pois ao espaço são atribuídas características físicas e concretas. É

nesta abordagem que o espaço é tido como “cenário”, ou seja, são “os lugares de

pertencimento ou trânsito dos sujeitos ficcionais, recurso de contextualização da

ação” (BRANDÃO, 2013, p.59).

A representação do chamado “espaço urbano” no texto literário é a

abordagem mais difundida nos estudos literários da atualidade. Outra abordagem

é a que está em conformidade aos estudos culturais e que, segundo Brandão

(2013, p.59), utiliza um léxico espacial que possui termos como: margem,

território, rede, fronteira, passagem e cartografia. Esta última tendência visa à

compreensão das variadas formas de espaços representadas no texto literário,

pois tais formas espaciais se unem a identidades sociais específicas.

Brandão explicita ainda o contraste entre os efeitos gerados por

procedimentos descritivos e procedimentos narrativos em que a categoria

espacial é principalmente descritiva. Finaliza a explicação, complementando:

“Outra estratégia é o reconhecimento de polaridades espaciais e a análise de seu

uso, tomando-se o espaço como conjunto de manifestações de pares como

alto/baixo, aberto/fechado, dentro/fora, vertical/horizontal, direita/esquerda”

(BRANDÃO, 2013, p. 59).

Seguindo o percurso apresentado por Brandão (2013), há uma segunda

abordagem do espaço na literatura e esta se refere aos procedimentos formais e

de estruturação do texto. Nesta tendência, conforme postula o autor, ocorre a

suspensão ou retirada de noções referentes à temporalidade, em especial as que

fazem referência à natureza consecutiva da linguagem verbal, que possui

característica contínua, linear e progressiva.

Inseridos neste conceito de estruturação espacial, Brandão (2013), cita

dois estudos clássicos: “Spatial Form in Modern Literature”, de Joseph Frank, e O

Espaço Proustiano, de Georges Poulet. A análise feita pelos críticos caracteriza o

texto literário moderno a partir do seu caráter fragmentário; para ambos, há uma

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recusa ao fluxo temporal da linguagem verbal, por sua constituição de

ambivalências físicas e simbólicas. Os autores trabalham em favor de espaços

num lapso (ou perda da noção linear) de tempo, como “série de quadros que se

justapõem”.

O terceiro modo apresentado na categoria espacial é o que diz respeito a

um ponto de vista, focalização ou perspectiva. Tais ideias vêm da premissa de

que a literatura é capaz de promover algum tipo de visão. Neste contexto,

Brandão (2013) afirma que a visão é elaborada como uma faculdade espacial que

tem por base a relação entre dois planos: (i) espaço visto, percebido, concebido,

configurado e (ii) espaço vidente, perceptório, conceptor e configurador.

Finalmente, como quarto modo, temos a compreensão acerca da categoria

espacial em que é feito um afastamento do ponto de vista representacional e

passa-se a propor a linguagem verbal como característica da espacialidade, ou

seja, há uma espacialidade própria da linguagem verbal. A alegação de Brandão

em sua pesquisa é que a palavra também é espaço e acrescenta: “Gérard

Genette, no artigo La Littérature et l’espace, chega a advogar que “a linguagem

[verbal] parece naturalmente mais apta a exprimir as relações espaciais do que

qualquer outra espécie de relação (e, portanto, de realidade)” (BRANDÃO, 2012,

p.63).

Para discutir este ponto de vista, Brandão desenvolve duas linhas de

argumentação: a primeira considera que tudo que é da ordem das relações é

espacial e a segunda considera que a linguagem é espacial, pois é composta de

signos que possuem materialidade.

Na primeira linha de argumentação, o autor discute novamente o contraste

do espaço com o tempo, considerando que “a ordem das relações, que define a

estrutura da linguagem, é espacial à medida que é abordada segundo o viés

sincrônico, simultâneo, e não diacrônico, histórico” (BRANDÃO, 2012, p. 63). Para

explicar a segunda linha de argumentação, Brandão afirma que “a palavra é uma

manifestação sensível, cuja concretude se demonstra na capacidade de afetar os

sentidos humanos, o que justifica que se fale da visualidade, da sonoridade, da

dimensão tátil do signo verbal” (BRANDÃO, 2012, p. 64).

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Para finalizar, Brandão esclarece que o texto literário é considerado

espacial, pois os signos que o formam são corpos materiais e sua função

intelectiva não esquece a exigência da percepção sensível no ato da recepção.

Logo, o texto literário é espacial “quanto mais a dimensão formal, ou do

significante, é capaz de se destacar da dimensão conteudística, ou do significado”

(BRANDÃO, 2012, p. 65).

1.2.4 Estrutura da narrativa mítica: a metáfora

O terceiro elemento estruturante da narrativa mítica é o que diz respeito à

metáfora. Neste tópico, realizaremos apenas uma breve apresentação da relação

entre metáfora e mito, pois o aspecto metafórico será abordado na seção

seguinte.

Cassirer (1992) afirma que a metáfora é o vínculo entre a linguagem e o

mito e é o elemento que promove a unidade mítica. Rodrigues (2013) nos

apresenta a definição que Cassirer (1992) elabora acerca da metáfora. Para o

filósofo alemão, a metáfora não configura tão somente a mera transposição de

uma palavra para outra classe já existente, mas a própria criação em que ocorre a

passagem. Em síntese:

O que para nós aparenta ser uma transferência, constitui, para o pensar mítico, uma autêntica e imediata identidade (CASSIRER, 2009, p.111), originando-se assim a metáfora mítica que é concebida por meio da metáfora linguística, fonte de fertilidade constante (RODRIGUES, 2013, p. 31).

Wellek e Warren (1976) afirmam que o significado e a função da literatura

estão centralmente presentes na metáfora e no mito. Os autores esclarecem que

a metáfora e o mito (assim como imagem e símbolo) eram considerados pelos

antigos estudiosos literários apenas como elementos decorativos, de ornamento e

destacáveis das obras literárias.

Consideramos o quão importante é o estudo das metáforas nas narrativas

míticas para a literatura, por isso na próxima subseção serão apresentadas

algumas das diferentes abordagens sobre a questão da metáfora no que se refere

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às perspectivas clássica e cognitiva, com base em estudos disponíveis na área

dos estudos literários e da linguística cognitiva, visando apresentar os

fundamentos teóricos que serviram de base para o objeto de estudo deste

trabalho.

1.3A METÁFORA LITERÁRIA E A METÁFORA DO COTIDIANO

1.3.1 Teorias sobre a metáfora

“Todas as coisas são metáforas”. Tudo o que é transitório não é senão uma referência metafórica. Eis o que todos somos.

Goethe

Neste tópico temos como finalidade expor as considerações que julgamos

mais relevantes acerca das teorias sobre a metáfora. A pretensão é fazer um

panorama geral que nos possibilite fundamentar com maior precisão as análises

propostas neste trabalho.

Antes de tudo, é conveniente realizar um recorte dos postulados clássicos

de Wellek e Warren (1976) no que se refere ao estudo realizado sobre a Teoria

da Literatura, a fim de que seja possível fazer a relação entre o Mito e a

Literatura. Segundo os autores, o que constitui o material da literatura é a

linguagem e uma clareza sobre o uso literário, diário e científico da linguagem

deve ser posto em evidência. Os estudiosos afirmam em sua obra, acerca da

linguagem científica, que “a linguagem científica ideal é puramente “denotativa”:

visa uma correspondência de um para um entre o signo e a coisa significada” e

sobre a linguagem literária, posta em comparação à cientifica “... é uma

linguagem altamente conotativa” (WELLEK e WARREN,1976, p. 24). E mais, ao

realizar a distinção entre a linguagem científica e a linguagem literária, os autores

avaliam também a dificuldade em fazer tal distinção entre a linguagem literária e a

linguagem diária. Tal dificuldade se configura no que diz respeito originalmente ao

conceito de linguagem diária. A linguagem diária, conforme dizem os autores:

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não é uniforme: inclui largas variedades, como a linguagem

coloquial, a linguagem do comércio, a linguagem oficial, a

linguagem da religião, o calão dos estudantes. (...) Assim, a

linguagem de todos os dias também tem a sua função expressiva,

embora esta possa variar - desde uma incolor comunicação oficial

até a uma apaixonada veemência suscitada por um momento de

crise emocional (WELLEK e WARREN, 1976, p. 25).

Wellek e Warren (1976) afirmam, ainda, que a linguagem literária está

longe de ser apenas referencial, uma vez que apresenta um lado expressivo,

comunica o tom e a atitude do orador ou do escritor e ainda pretende influenciar a

atitude do leitor, persuadi-lo e, em última instância, modificá-lo.

A primeira visão apresentada sobre a metáfora pertence ao campo da

Retórica e, neste contexto, a metáfora não se apresenta como um ornamento ou

enfeite, visão que será apresentada na Poética, mas é vista como uma arte de

dizer ou persuadir. Lakoff e Johnson (2002) afirmam que a tradição retórica trata a

linguagem figurada como um desvio da linguagem usual o que, em consequência,

a torna própria de linguagens especiais, como a poética e a persuasão. A tradição

coloca que a ciência se fazia através do literal, ou seja, a compreensão do mundo

só podia ser realizada mediada pela linguagem literal.

Houve um processo de transição entre esta arte de persuadir o interlocutor

para uma fase em que a metáfora é concebida como um adorno, a partir da

Poética de Aristóteles. Paul Ricoeur (2000), em sua obra A metáfora viva,

apresenta seu ponto de vista elaborado a partir de seu vasto estudo acerca da

metáfora, tratando-a em três níveis. O primeiro nível que é o da palavra, parte do

proposto pelo filósofo Aristóteles.

Quando discorre acerca da metáfora ao nível da palavra, Ricoeur (2000)

faz um percurso iniciado a partir de Aristóteles, já que o filósofo é colocado como

o primeiro a discutir sobre a metáfora. O filósofo a define em A Poética como: “A

metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do

gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para

outra, por analogia.” É importante colocar que tal definição ainda é dominante no

meio acadêmico, embora haja uma gama de estudos referentes ao estudo da

metáfora na atualidade.

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Segundo Ricoeur (2000), há três conceitos principais sobre a metáfora

conforme a visão aristotélica: o desvio, o empréstimo e a substituição. Desse

modo, a metáfora se configura como uma forma de desvio do uso habitual da

palavra; um empréstimo de sentido; uma substituição de uma palavra (ausente)

por outra (metafórica). Tal descrição nos permite compreender sob a ótica de

Aristóteles, a metáfora a partir dos padrões da palavra e através das relações de

semelhança. Assim, sua função, seja através de um desvio, um empréstimo ou

substituição, consiste no uso de um termo em lugar de outro e mais, se a

pensarmos como uma figura de linguagem, a metáfora pode se assemelhar a

uma imagem. Sobre a imagem, Aristóteles afirma:

A imagem é igualmente uma metáfora; entre uma e outra a diferença é pequena. [...] Podemos empregar todas estas expressões quer como imagens, quer como metáforas. Todas as que saborearmos como metáforas servirão também manifestamente como imagens e as imagens, por sua vez, serão metáforas a que não falta senão uma palavra (ARISTÓTELES, 1959, p. 201).

Ricoeur (2002) agrega ao estudo da metáfora no nível da palavra a Teoria

dos Tropos, a partir das considerações de Pierre Fontanier (1830). Este último

também propõe a metáfora como palavra e como um desvio em relação a uma

significação primeira. Conforme salienta a Teoria dos Tropos, a metáfora se

configura como um sentido impróprio, usado sem necessidade - isto é, mesmo

havendo a palavra “adequada” a ser empregada, opta-se pela metáfora- em que

não lhe é acrescentado nenhum dado novo, com pura função decorativa, sendo

um ornamento à linguagem.

Desse modo, Aristóteles e Fontanier defendem a metáfora como um desvio

ou transgressão de sentido e, ao analisar a metáfora ao nível da palavra tal como

desvio, compreende-se a linguagem de forma taxionômica e classificatória. Por

esse motivo, é possível então concluir que a relação de referência se dá de forma

linear e de maneira codificada, que as variantes de uso (como as metáforas)

encontram-se no âmbito do desvio e não abrangem a produção de significação.

Para Ricoeur (2000), a persistência da teoria de Aristóteles se deve, em

especial, ao fato do estudo da palavra colaborar para os demais estudos; a

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diferença é que não se pode reter somente no nível da palavra, mas prosseguir

nos demais níveis. Ricoeur argumenta que “[...] é da palavra que se diz tomar um

sentido metafórico; eis porque a definição de Aristóteles não é abolida por uma

teoria que não se refere mais ao lugar da metáfora no discurso, mas ao próprio

processo metafórico” (RICOEUR, 2000, p. 108).

O segundo nível apresentado por Ricoeur (2000) se refere à metáfora ao

nível da frase; o autor utiliza os argumentos de Benveniste (1995), que trata os

níveis de sentido de maneiras diferentes e organiza a separação entre as ordens

semiótica e semântica ao ressaltar a distinção que é própria ao discurso. Salienta

também a dicotomia entre a função identificante (nominal) e a função predicativa

(verbal), em que define a metáfora como um fenômeno de predicação e não

somente de denominação. Diferenciar o semiótico do semântico implica uma nova

organização do paradigmático e do sintagmático, ou seja, a metáfora se insere

em duas categorias: (i) Semiótico - ao nível da palavra, a metáfora pode ser

discutida nas relações de substituição; (ii) Semântico - no nível do discurso, a

construção de sentido da metáfora depende das relações de sentido criadas entre

as palavras do enunciado, que cria o todo significativo do discurso.

Segundo Riccoeur (2000), Benveniste (1995) postula que as palavras não

têm um sentido próprio, mas sim que seu sentido é produzido no discurso e pelo

discurso. A linguagem é colocada como metafórica e a metáfora não é uma forma

de desvio, mas sim uma parte constituinte da linguagem. Tal premissa leva-nos a

conceber a metáfora seguindo um caminho que sai da classificação e é colocada

na significação, ou seja, sai da referência e é posta na transcendência. A

existência da metáfora ao nível da frase é configurada como interpretação, em

que há uma desconstrução de um sentido literal e o surgimento de uma palavra

com um sentido novo, interpretativo.

Como o objeto de estudo deste trabalho consiste em narrativas de cunho

mítico, objetivamos prover o entendimento da metáfora não como uma

determinada tendência da linguagem, mas como uma condição constitutiva da

linguagem. Referindo-se à correlação entre linguagem e mito, Cassirer (1992)

afirma que:

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(...) a linguagem e o mito se acham originariamente em correlação indissolúvel, da qual só aos poucos cada um vai se desprendendo com membro independente. Ambos são ramos diversos do mesmo impulso de enformação simbólica, que brota de um mesmo ato fundamental de elaboração espiritual, da concentração e elevação da simples percepção sensorial. Nos fonemas da linguagem, assim como nas primitivas configurações míticas, consuma-se o mesmo processo interior; ambos constituem a resolução de uma tensão interna, a representação de moções e comoções anímicas em determinadas formações e conformações objetivas (CASSIRER, 1992, p.106).

No nível da frase, Ricoeur (2000) reporta-se à semelhança que, segundo

ele, é um fator de grande significação enunciativa, uma vez que a semelhança é

condição para a existência da metáfora. Para o autor, a semelhança é o

fundamento da substituição posta em ação na transposição metafórica dos nomes

e, mais geralmente, das palavras, ou seja, é a partir da semelhança que é

possível gerar um novo sentido e que, por mais que haja diferenças entre os

sentidos aproximados pela metáfora, ainda haverá uma ligação de semelhança

que permitirá o nascer de um novo sentido. E a semelhança acontece em todos

os níveis: da palavra, da frase e o do discurso.

Ricoeur (2000) insere a metáfora em um terceiro nível: o do discurso.

Como uma estratégia do discurso, afirma que a metáfora libera o poder que

algumas ficções possuem de redescrever a realidade: “Ligando dessa maneira

ficção e redescrição restituímos sua plenitude de sentido à descoberta de

Aristóteles, na Poética, de que a poíesis da linguagem procede da conexão entre

mythos e mímesis” (RICOEUR, 2000, pp. 13-14). Nesse sentido, Barbosa (1973)

trata a metáfora enquanto um elemento mediador entre o texto literário e a

realidade.

Cassirer (1992), em sua obra Linguagem e Mito, nos mostra que o homem

foi obrigado a falar metaforicamente, não no sentido de um falar poético, mas sim

como uma forma de se exprimir de maneira adequada às necessidades de seu

espírito. O pensamento de Cassirer sintetiza a metáfora não somente com um

processo pertinente ao poeta, mas a atividade poética executada de maneira

consciente: “Esta é a moderna metáfora individual, que é um fruto da fantasia,

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47

enquanto a metáfora antiga era mais frequentemente uma questão de

necessidade” (CASSIRER, 1992, p. 103). A definição de metáfora, conforme o

autor, pode ser assim compreendida:

Pode-se tomar este conceito no sentido em que seu domínio

abrange tão somente a substituição consciente da denotação por

um conteúdo de representação, mediante o nome de outro

conteúdo que se assemelhe ao primeiro em algum traço, ou tenha

com ele qualquer “analogia” indireta (CASSIRER, 1992 p.104).

Cassirer (1992) propõe que há um estreitamento entre o pensar mítico e o

linguístico. É a partir desse ponto de vista que Cassirer dedica, na obra

Linguagem e mito, um capítulo sobre o poder da metáfora; segundo ele, em

vários momentos a estrutura dos mundos mítico e linguístico é determinada e

dominada pelo mesmo motivo espiritual. A relação, entre mito e linguagem só

será passível de entendimento se for possível explorar uma “raiz” comum em que

tenham surgido. Portanto, por mais que haja diferença entre si, dos conteúdos do

mito e da linguagem, ambas executam a mesma forma de concepção mental e a

esta forma, denomina-se “pensar metafórico”. Para compreender tal processo,

segundo Cassirer (1992, p. 102), “devemos partir da natureza do significado da

metáfora, se quisermos compreender, por um lado, a unidade dos mundos mítico

e linguístico e, por outro, sua diferença”.

A premissa de que a metáfora constitui o vínculo intelectual entre a

linguagem e o mito gera muita discussão, uma vez que não seja possível

determinar precisamente o processo de origem da metáfora. Conforme Cassirer

(1992, p.102):

a autêntica fonte da metáfora é procurada nas construções da linguagem, ora, na fantasia mítica; ora, é a palavra que, por seu caráter originariamente metafórico, deve gerar a metáfora mítica e prover-lhe constantemente nos alimentos, ora, ao contrário, considera-se o caráter metafórico das palavras tão somente um produto indireto, um patrimônio que a linguagem recebeu do mito e que ela tem como um feudo dele.

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1.3.2 Teoria cognitiva da metáfora

Por que estudar a metáfora? Uma possível resposta para a complexidade

desta pergunta pode ser formulada a partir de estudos sobre a teoria da metáfora

de cunho conceitual, fundamentada nos postulados de Lakoff e Johnson (2002);

esperamos esclarecer o conceito de metáfora conceitual, que servirá de base

para o estudo/discussão mais amplo da metáfora literária. A justificativa para

nossa escolha teórica pode ser suportada pelos pressupostos de Lakoff e

Johnson (2002) ao afirmarem que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana e

que as metáforas não constituem meras questões do intelecto.

Os princípios desta tese foram apresentados na obra Methaphors we life by

(LAKOFF e JOHNSON, 2002). Tal publicação possui valor representativo no

estudo sobre metáforas, pois apresenta uma ruptura paradigmática, iniciada na

década de 1970, com a tradição retórica principiada por Aristóteles no século IV

a.C. Sua representatividade e consequente impacto nesse campo de pesquisa

encontram-se inseridos na mudança provocada na história consolidada há mais

de dois milênios. Seu valor significativo também se encontra no pioneirismo que a

obra propiciou aos estudos posteriores no campo da linguística, da psicologia e

dos estudos literários e a contribuição para uma nova forma de expressão do

pensamento através da linguagem.

Em seus estudos sobre metáfora conceitual, Lakoff e Johnson (1980)

demonstram que sistematicamente conceituamos muitos domínios da experiência

através de metáforas conceituais, isto é, projetando neles outros domínios. Os

teóricos adotam, desse modo o caráter experencialista da metáfora. Conforme

afirmam, através da metáfora, geralmente conceituamos domínios abstratos em

termos de domínios concretos e familiares, o que quer dizer que a conceituação

de categorias abstratas se fundamenta, em grande parte, na nossa experiência

concreta cotidiana. Os autores sustentam a premissa de que as metáforas,

chamadas por ele de conceitos metafóricos, regem nosso pensamento e também

as atividades mais comuns que realizamos em nosso cotidiano, por isso tais

sistemas conceptuais são responsáveis por estruturar e definir a nossa realidade

cotidiana:

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(...) a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação (...) faz parte de nosso sistema conceptual. (...) O modo como pensamos, o que experienciamos e o que fazemos todos os dias são uma questão de metáfora. (LAKOFF e JOHNSON, 1980, p. 45-46)

Sobre o nosso sistema conceitual, Lakoff e Johnson (1980) afirmam

também que as metáforas não ocorrem de maneira consciente, uma vez que

durante grande parte de nossas atividades cotidianas as fazemos e pensamos de

maneira quase automática. Por isso consideram que uma das formas de descobrir

as construções linguísticas metafóricas é através da língua e dizem que a

comunicação tem por base o mesmo sistema conceptual que utilizamos a fim de

pensar e agir. Consideram a linguagem como fonte de evidências de como se

realiza este sistema.

A análise das evidências tem base linguística e desse modo é possível

verificar a natureza metafórica da grande maioria do nosso sistema conceptual. A

partir disso, os autores puderam identificar de maneira detalhada quais são as

metáforas responsáveis por estruturar nossa maneira de perceber, agir e pensar.

Os fatores culturais são expressos pela língua; portanto, eles devem ser

considerados nos estudos linguísticos. Por essa razão, as metáforas conceituais

desempenham um papel crucial na conceituação de muitos termos (domínios).

No que diz respeito às influências culturais, toda a nossa experiência é

totalmente cultural, pois experienciamos o mundo de tal maneira que nossa

cultura já está presente na experiência em si (LAKOFF e JOHNSON, 1980 p.

129). As metáforas se apresentam como próprias de cada língua e é isso que

permite ocorrer variações nas construções metafóricas entre povos e

comunidades.

A fim de esclarecer como um conceito pode ser metafórico e estruturador

de nossas atividades cotidianas, Lakoff e Johnson (2002), apresentam diversos

exemplos de metáforas conceptuais presentes em nossa linguagem cotidiana. Um

dos exemplos demonstrados pelos autores consiste em tomar o conceito

DISCUSSÃO e por metáfora conceptual DISCUSSÃO É GUERRA. Para tal

metáfora conceitual, na linguagem cotidiana podem ser realizadas expressões

como:

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Seus argumentos são indefensáveis.

Ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação.

Suas críticas foram direto ao alvo.

Destruí sua argumentação.

Jamais ganhei uma discussão com ele.

Você não concorda? Ok atire! / Ok, ataque!

Se você usar essa estratégia, ele vai esmagá-lo.

Ele derrubou todos os meus argumentos.

A análise realizada pelos autores mostra que não somente falamos sobre

discussão em termos de guerra, conforme as expressões acima elencadas;

podemos ganhar ou perder uma discussão; durante uma discussão, podemos

atacar, defender, planejar e usar estratégias; não há uma batalha física, mas

ocorre uma batalha no nível verbal que acaba por refletir na estrutura de uma

discussão. Desse modo, para os autores DISCUSSÃO É GUERRA mostra uma

metáfora conceitual que vivemos em nossa cultura.

Lakoff e Johnson (2002), através desse exemplo, afirmam que um conceito

metafórico é capaz de estruturar, mesmo que parcialmente, o que se faz quando

discutimos, bem como o modo pelo qual se compreende o que fazemos. Os

estudiosos afirmam que “A essência da metáfora é compreender e experienciar

uma coisa em termos de outra.” Concluem, então, que o “conceito é

metaforicamente estruturado, a atividade é metaforicamente estruturada e, em

consequência, a linguagem é metaforicamente estruturada” (LAKOFF e

JHONSON, 2002).

A partir dos estudos de Lakoff e Johnson (2002) podemos extrair duas

importantes contribuições para o estudo literário da metáfora:

(i) As metáforas literárias são extensões, combinações ou elaborações de

projeções metafóricas mais básicas sugeridas pela Teoria Cognitiva da

Metáfora. Então, os poetas e escritores conseguem nos falar porque se

utilizam de modos de pensamento que todos nós possuímos. Portanto, para

se entender a natureza e também o valor da criatividade poética, temos que

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entender as formas comuns pelas quais pensamos e concebemos o mundo a

nossa volta.

(ii) As metáforas literárias são em grande parte extensões, combinações ou

elaborações das metáforas ontológicas, estruturais e orientacionais, que

governam, em um nível básico e de forma geral, a nossa linguagem,

pensamento e ação.

A Teoria Cognitiva da Metáfora discute a dicotomia linguagem cotidiana

/linguagem literária. Lakoff e Johnson (2002) argumentam que os processos de

pensamento são em grande parte metafóricos. Podemos concluir que a metáfora

se mostra primariamente como uma questão de pensamento e derivadamente

como uma questão de linguagem.

Consideramos, portanto, que a abordagem proposta pela Teoria Cognitiva

da Metáfora se configura como uma importante base teórica para os estudos da

metáfora na literatura, visto que a língua(gem), enquanto instrumento de

organização e expressão do pensamento, é o objeto concreto de manifestação,

realização e constante atualização da arte literária.

2 LITERATURA ORAL, PRÁTICA ESCRITURAL INDÍGENA E LITERATURA

CONTEMPORÂNEA INDÍGENA.

Esta seção tem como foco traçar o percurso estabelecido entre literatura

oral, prática escritural indígena e literatura contemporânea indígena. Trazemos,

aqui uma reflexão sobre a transição da literatura oral para a literatura escrita, bem

como sobre o processo da prática escritural indígena em língua portuguesa.

Apresentamos, também, um breve relato sobre o surgimento da chamada

literatura contemporânea indígena.

Conforme Almeida e Queiroz (2004)

Os indígenas brasileiros, através da aquisição e do domínio da escrita, passam a fazer história, enquanto produção de sentidos para a própria ressubjetivação. Não há história sem discurso. E a escrita e seus meios são instrumentos que os índios estão utilizando para configurar suas identidades. Identidades, não como essência, mas resultantes de processos de identificação do

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sujeito ao complexo de formações discursivas historicamente (ideologicamente) determinadas.

As narrativas indígenas analisadas no presente estudo apresentam

temática mítica. Conforme as contribuições de Guesse (2014), tais narrativas

estão inseridas em uma modalidade denominada temática direta, onde um tema

mítico é usado por um autor para o desenvolvimento literário, dada a sua

interação com a literatura.

Sobre as particularidades dos mitos, já as abordamos anteriormente,

mesclando com exemplos de narrativas de temática indígena. Sabemos que os

mitos indígenas chegaram inicialmente ao nosso conhecimento através de

trabalhos coletados por antropólogos, etnógrafos ou linguistas e muito da sua

poética foi perdida, configurando, assim, por vezes, narrativas confusas e sem

sentido a um leitor comum.

Agora, nosso ponto de partida serão as considerações sobre a literatura

escrita indígena. Por isso, vamos começar tratando do nascimento e do processo

da literatura escrita indígena, pois percebemos que a escrita de narrativas

apresenta uma preocupação estética, tais como a metáfora.

Conforme já mencionado, as construções linguísticas metafóricas utilizadas

para ilustrar e subsidiar nossa análise são oriundas de textos produzidos pelos

próprios indígenas, escritos em língua portuguesa, a partir do domínio por eles

adquirido na escrita ortográfica dessa segunda língua. Por outro lado, o conteúdo

por eles lhes foi transmitido oralmente no seio de suas comunidades. Assim, as

marcas da oralidade são muito presentes, visto que a escrita não é fruto de sua

tradição oral, mas sim de suas relações com outras culturas letradas. Foram

utilizadas também narrativas da coletânea Mitos Amondawa (SAMPAIO, SILVA e

MIOTELLO, 2004), as quais foram transcritas literalmente, conservando a forma

de expressão oral do indígena na língua portuguesa. Consideramos que tais

produções provenientes da oralidade e transformadas em escrita podem nos

fornecer objetos de investigação literária.

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Freitas (2010), ao traduzir os textos do pesquisador francês Jean Derive,

discute as considerações do autor sobre os níveis de literarização da oralidade,

em que sua reflexão primeira recai sobre a denominação dada pela crítica para a

produção verbal da oralidade publicada como literatura oral e explica que

“oralidade e literatura são dois domínios culturais que dependem da expressão

verbal e que se definem por um repertório de obras mais ou menos identificáveis

produzidas dentro de um quadro institucional” (DERIVE, apud FREITAS, 2010, p.

8). O professor Derive dedicou sua pesquisa aos povos africanos e afirma que,

para estes povos:

(...) a oralidade é, para além de uma prática, um fundamento essencial da cultura que determina todo um sistema antropológico. Assim percebida, a oralidade não é somente o fato de se expressar oralmente, é uma escolha cultural para assegurar a perenidade do patrimônio verbal de certas sociedades das quais, sabe-se, ele é um fator essencial da consciência identitária. (DERIVE, apud FREITAS, 2010, p. 7)

Em nossa pesquisa, utilizamos produções textuais de professores

indígenas. Conforme Guesse (2011), os povos indígenas podem ser classificados,

de acordo com a categorização fornecida por Calvet (2001), em sociedades nas

quais se introduziu recentemente a prática alfabética e sociedades de tradição

oral:

(3) As sociedades nas quais se introduziu recentemente a prática alfabética, em geral pela via de uma língua diferente da língua local, é o caso dos países que foram colônia na África e na América Latina, aos quais se impôs uma picturalidade (o alfabeto latino) proveniente da herança cultural colonial. (4) As sociedades de tradição oral. [...] a ausência de tradição escrita não significa, de maneira alguma, ausência de tradição gráfica. Em muitas sociedades de tradição oral, existe uma picturalidade muito viva, nas decorações de potes e cabaças, nos tecidos, nas tatuagens e nas escarificações etc., e mesmo que sua função não seja, como no caso do alfabeto, registrar a fala, ela participa da manutenção da memória social. (CALVET, 2001 apud GUESSE, 2011, p. 4).

Segundo Freire (2011), o processo histórico sobre o português e sobre as

línguas indígenas no Brasil revela que, no litoral brasileiro, havia uma porção

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considerável da população que falava tupi, tupinambá e o português dos

colonizadores que foi gradualmente sendo imposto. Até meados do século XVIII,

convivia-se com o bilinguismo. Já na Amazônia, até meados do século XIX,

grande parte da população não falava o português, mas sim a Língua Geral, de

base Tupi, que ficou conhecida como Nheengatu. Metade da população de

Manaus, em 1850, não era usuária da língua portuguesa.

Sobre o Nheengatu na Amazônia, vale registrar os dados apresentados

pelo Comandante Militar do Alto Amazonas, Lourenço Amazonas, que registrou,

em 1850, os usos e funções do Nheengatu. O comandante cita que:

A Língua Geral é a universal intérprete em toda a Província do Pará. Fala-a toda a nação indígena, que se relaciona nas Povoações. Nas Cidades, fala-se da porta da sala para dentro; e nas Vilas e demais Povoações, excetuada Pauxis no Baixo-Amazonas, é a única, não por se ignorar a portuguesa, mas porque, constrangidos os indígenas e os mamelucos em falá-la, pela dificuldade de formarem os tempos dos verbos, do que os dispensa a Geral, respondem por esta se lhes pergunta por aquela. (Freire, 2011, on-line)

Os povos indígenas do Brasil só tiveram contato com a escrita denominada

alfabética após a colonização europeia; porém, a escrita, enquanto um processo

comportamental da comunicação entre os seres humanos e como meio de

transmissão e troca de signos, não necessariamente como registro da palavra

falada ou de sons, sempre esteve presente nas comunidades indígenas do Brasil.

Os indígenas, na tentativa de estabelecer comunicação com o “civilizador”

português, passaram a utilizar a língua dominante; tal situação foi reforçada pelo

fato do colonizador que aqui chegava também não demonstrar interesse em

aprender a língua nacional. No final da década de 1980, o fenômeno da escrita

escolar indígena permitiu nascer um grupo de autores/escritores indígenas,

sobretudo, por meio das “experiências de autoria”. Podemos citar, como exemplo

dessa experiência, “As escolas da floresta”, que é parte de um projeto de

educação iniciado em 1983. O projeto de educação voltado para as populações

indígenas é fruto do trabalho da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC) e dos

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professores índios do Acre. E foi a partir deste momento que se intensificou o

processo da prática escritural indígena.

Neumann (2007, on-line) ressalta o grande interesse nas últimas décadas

em relação aos textos escritos ameríndios por parte de historiadores. Afirma que

o grande interesse e investimento da alfabetização indígena tinham como objetivo

a evangelização e proporcionaram ao povo guarani grande destreza na prática

escritural indígena. Assim, proporcionou-se a estes povos a elaboração de obras

de cunho devocional, tais como livros, na sua maioria com finalidade litúrgica ou

catequética participando diretamente na elaboração de vocabulários, catecismos

e gramáticas. O autor pondera que a escrita serviu, em um primeiro momento,

para a reprodução dos dogmas e cânone religioso, ou seja, durante muitos anos a

escrita tinha a finalidade de tradução ou adaptação de textos religiosos e não era

usada como uma forma criativa de expressão.

Conforme o autor, a instrução alfabética acabou por criar grupos seletos

entre os Guarani. Assim, havia grupos que trabalhavam em atividades

administrativas e também professores.

Na contemporaneidade, a oferta de uma educação diferenciada aos povos

indígenas está ligada à Constituição Federal de 1988. Conforme Guesse (2011),

neste momento da história e após 500 anos de desvalorização das autoridades

ante os grupos indígenas, o governo demonstra preocupação em garantir, através

das leis, os direitos das comunidades indígenas de preservarem suas culturas,

costumes e tradições por meio da educação. Sobre este episódio histórico, é

importante rememorar tal processo, mesmo que de maneira sucinta.

Oliveira (2008) afirma que “O Capítulo dos Índios na Constituição Federal

é, indubitavelmente, expressão do avanço da sociedade brasileira rumo à

efetivação democrática”. A antropóloga narra que, a partir do momento em que

houve a aprovação da proposta de realização de uma Assembleia Constituinte,

em 1985, organizações indígenas, instituições de apoio à causa indígena e

juristas se reuniram para debater a questão. Como resultado, foram produzidas

propostas de estudos no campo do Direito Internacional Comparado; inovação de

leis; documento com propostas apresentado ao governo brasileiro por meio do

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Ministro da Justiça e ao Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais,

Afonso Arinos, nomeado na época pelo Presidente da República. Documentos

que sintetizavam as demandas das populações indígenas também foram

elaborados e enviados ao Congresso Nacional, além da promoção de intensa

discussão no âmbito da sociedade civil organizada em conjunto com o movimento

indígena, juristas, academia e mídia. Conforme Oliveira (2008,on-line):

Durante o processo constituinte, o INESC e o IBASE realizaram, em março de 1988, uma pesquisa sobre o perfil dos parlamentares constituintes em temas de interesse dos movimentos sociais e ONGs engajadas em processos de transformação social. Quando perguntados sobre se a demarcação das terras indígenas deveria ser assegurada, a resposta foi: 53% favoráveis à demarcação; outros 27, 8% favoráveis a que os próprios povos indígenas fossem responsáveis pela definição de seus territórios. O ambiente era, então, bastante favorável à causa indígena, a despeito dos setores militares ou ruralistas que queriam impedir a discussão e aprovação do tema. Na mesma pesquisa, 46% dos constituintes entrevistados queriam que a Constituição garantisse aos índios a posse permanente e usufruto das riquezas naturais do solo; outros 29,8% consideravam importante garantir o usufruto exclusivo das riquezas naturais, do solo, subsolo, cursos fluviais e todas as utilidades nelas existentes. O foco da tensão eram as riquezas minerais do subsolo.

Assim, dadas as fortes tensões enfrentadas pelos povos indígenas e seus

aliados para garantir um capítulo na Constituição Federal, a estratégia política

adotada -e bem sucedida- foi buscar aliados nos setores da direita e, dessa

forma, constituir um bloco de parlamentares pró causa indígena, suprapartidário,

que enfrentasse as dificuldades do processo.

Conforme Guesse (2013), na década de 90, as escolas indígenas

diferenciadas começaram a ser criadas no Brasil. Logo, o que temos, em

consequência, é uma produção de materiais escritos para as escolas indígenas e

o incentivo dado aos indígenas a fim de atuarem como discentes ou docentes no

sistema educacional dentro e fora das aldeias.

O percurso do processo escritural indígena tem como característica o

aprimoramento e domínio da língua portuguesa, bem como a criação de sistemas

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alfabéticos próprios para as comunidades anteriormente sem escrita alfabética.

Daí surge o profundo enraizamento da literatura indígena com a tradição oral.

D’Angelis (2007) nos explica que a opção pela literatura indígena associada à

escrita se dá no fato de essa literatura em processo de escrita possuir dois focos

de tensão que delimitam as condições de surgimento de uma tradição escrita em

língua indígena. Conforme o autor, os focos são: o conflito entre oralidade e

escrita e o conflito entre o desejo de autonomia e a inseparável existência de

modelos de escrita de tradição europeia. É “sobre este último foco que Souza

(2003) chama-nos atenção quanto ao termo “literatura menor” utilizado por

Deleuze e Guattari (1977) em que “Uma literatura menor não é a de uma língua

menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”. A afirmação dos

teóricos dialoga com o questionamento feito por D’Angelis (2007): “É possível

falar em autonomia e trajetória livre para uma literatura indígena quando seus

praticantes/iniciantes adotam modelos da língua dominante?”.3

Guesse (2011) afirma que a língua do branco, antes usada como uma

maneira de dominar e manipular os saberes, quando passa ao domínio no nível

do escrito para o indígena, este a utiliza como um meio de expressão

comunicativa e criativa, bem como um modo de promover a valorização de seus

costumes e, em especial, a manutenção de sua identidade cultural.

No entanto, a produção escrita indígena se apresenta de modo variado em

nossa sociedade: encontramos textos nas línguas indígenas e também textos em

língua portuguesa. Há produções apenas na língua indígena, outros apenas em

língua portuguesa; há também disponíveis narrativas em língua indígena com

tradução para o português e materiais que apresentam as duas versões (e não

traduções) das histórias: uma em língua indígena e outra em língua portuguesa.

Guesse (2011) trata das narrativas míticas não somente de origem

indígena, mas também as de autoria indígena. Tal distinção é necessária, uma

3 Sobre a temática “autoria indígena” ver também: BEZERRA, J. L. Estudos da Narrativa

ameríndia do Brasil: a concepção da anaconda segundo Lynn M. Souza. In: RODRIGUES, H. e CAVALCANTE, E. (Orgs). Amazônia e Heterotopias: estudos literários. Curitiba: CRV, 2014, Cap. 3, p. 39.

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vez que temos muitos materiais indígenas que sofreram alterações ou adaptações

pelos não indígenas e, consequentemente, não reproduzem a autoria indígena

nos textos. Partindo do princípio de autoria indígena, é possível fazer

compreensão do fenômeno da escrita indígena no Brasil e também como tais

narrativas apresentam elementos de caráter literário. De acordo com a autora, no

momento em que o próprio indígena se posiciona como um autor/criador do seu

legado cultural a partir da escrita, ele se coloca como a voz da própria narrativa.

Embora o processo da prática escritural indígena já esteja estabelecido em

nosso país e já exista uma significativa produção literária, através da autoria

coletiva ou individual, tais publicações ainda não têm atenção e exploração

acadêmica, uma vez que há uma tradição de pesquisas na linha antropológica e

linguística e não quanto aos aspectos literários ligados às teorias oficiais. Souza

(2003) afirma que esta literatura, em especial a produzida em língua portuguesa,

nasce e é vista pela academia e instituições literárias de maneira local, nacional,

marginal e canônica.

É considerada local, pois as produções oriundas de projetos acabam tendo

a comunidade como produtor/autor e consumidor/leitor de seus próprios textos. É

considerada nacional, uma vez que a política da escola indígena é federal e faz

surgir um público consumidor/leitor potencial da escrita indígena em todas as

escolas indígenas do país, fazendo com que esses livros possam circular para

fora de suas comunidades produtoras. Nasce marginal, pois ainda não mereceu o

interesse das academias, que a classificam como literatura popular ou de massas,

sem grande valor literário e, por fim, é canônica porque se trata de uma escrita

que, ao nascer na instituição escolar, apresenta seus mecanismos de inclusão e

exclusão curriculares que, em várias culturas, formam a base para a construção,

destruição ou transformação dos cânones literários.

No entanto, sobre o caráter canônico, temos a partir de 2012 ,a inserção da

literatura de autoria indígena na academia, como prevê o edital do Programa

Nacional de Biblioteca Escolar Indígena-PNBEI/2015 cujo texto disponível no

portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação-FNDE, dispõe que:

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59

Este edital tem por objeto a convocação de editores para o processo de inscrição e seleção de obras de literatura sobre a temática indígena que, por meio das artes verbais, divulguem e valorizem a diversidade sociocultural dos povos indígenas brasileiros, bem como suas diversas e amplas contribuições no processo histórico de formação da sociedade nacional, no âmbito do PNBE.

O Ministério da Educação e Cultura-MEC, intermediado pela Secretaria de

Educação Básica-SEB e o FNDE, em cooperação com a Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão-SECADI, lançaram edital com

a finalidade de aquisição de obras de literatura com temática indígena para os

anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio das escolas públicas

pertencentes às esferas federal, estadual, municipal e do Distrito Federal.

Tais obras de literatura poderão ser inscritas nos seguintes gêneros

literários: poema, conto, crônica, novela, teatro, texto de tradição popular,

romance, memória, diário, biografia, relatos de experiências, obras clássicas da

literatura universal, livros de imagens e histórias em quadrinhos, traduções de

obras literárias e antologias, todas conforme critérios estabelecidos no edital.

Segundo o edital, as obras deverão contribuir para que a escola pública

brasileira proporcione aos alunos uma leitura emancipatória através do acesso de

textos literários de qualidade, a fim de que tais experiências levem aos alunos a

reflexão e participação criativa na construção de sentido do texto, bem como não

apenas despertar aos alunos leitores o caráter estético, mas levá-los além, para a

reflexão de si mesmo, do outro e do mundo em que está inserido. De acordo com

o edital, “É objetivo do PNBEI/2015 que os alunos possam apropriar-se de

práticas de leitura e escrita de forma a interagir com a cultura letrada disseminada

socialmente, promovendo o pleno exercício da cidadania” (PNBEI/2015, p. 29).

A proposta do MEC para a aquisição de literatura com temática indígena

compreende autores indígenas e não indígenas, pois preconiza a divulgação e

valorização dos povos indígenas brasileiros, com o intuito de promover a ruptura

dos estigmas impostos na história, na cultura e identidade do povo indígena

brasileiro. A partir dessa iniciativa é possível fomentar material de pesquisa na

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área dos estudos literários, bem como a inscrição de uma poética própria das

comunidades indígenas.

3 ANÁLISE DE CONSTRUÇÕES LINGUÍSTICAS METÁFORICAS

A terceira seção é dedicada à análise de dados. Primeiramente,

apresentamos alguns resultados obtidos durante a execução do subprojeto A

metáfora literária e do cotidiano em narrativas míticas amondawa (AGUILAR,

BEZERRA, 2007), pois tais resultados se mostraram importantes para a análise

das construções metafóricas nas narrativas escritas pelos indígenas em língua

portuguesa. Em seguida, analisamos as narrativas escritas pelos indígenas em

língua portuguesa, enfocando construções metafóricas, ilustrando-as com

esquemas mentais/imagéticos e aprofundando a análise crítica, para melhor

compreensão de conceitos abstratos via domínios concretos. Finalmente,

discutimos a atitude literária do narrador.

3.1 A metáfora literária e do cotidiano em narrativas míticas amondawa

Para a análise dos dados estudados durante a execução do subprojeto A

metáfora literária e do cotidiano em narrativas míticas amondawa (AGUILAR,

BEZERRA, 2007), baseamo-nos nos estudos de Lakoff e Johnson (2002),

considerando as concepções de metáfora conceptual ontológica do tipo

orientacional e de metáfora conceptual orientacional.

As metáforas ontológicas de tipo orientacional esclarecem que as nossas

experiências com objetos físicos (especialmente com nossos corpos) fornecem a

base para uma variedade extremamente ampla de metáforas ontológicas, isto é,

formas de se conceber eventos, atividades, emoções, ideias, etc. como entidades

e substâncias (LAKOFF e JHONSON, 2002, p. 76).

As metáforas orientacionais têm a ver com a orientação espacial do tipo

para cima, para baixo, dentro-fora. As orientações espaciais surgem do fato de

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termos os corpos que temos e do fato de eles funcionarem da maneira como

funcionam no nosso ambiente físico (LAKOFF e JHONSON, 2002, p.59).

Tomamos como foco de estudo a descrição dos eventos de movimento e

espaço no texto narrativo, com base em construções linguísticas metafóricas

literárias e/ ou do cotidiano, e investigamos os mapeamentos metafóricos em que

o domínio de origem, espaço e as construções linguísticas relevantes são

contentores. Os verbos selecionados para investigar esses mapeamentos

metafóricos foram os verbos IR, MORAR, FICAR, ENTRAR em português.

Como objeto da análise selecionamos a narrativa Tandaua (TANGIP

AMONDAWA, 1997), por apresentar, em sua forma e conteúdo, uma quantidade

significativa de construções linguísticas metafóricas que manifestam eventos de

movimento, espaço e tempo (vamos lá na pedra, ficou lá dentro, mora lá, entrou

na pedra) e conectores discursivos temporais (agora, lá, direto).

A fim de ilustrar a análise das construções, utilizamos como suporte os

esquemas imagéticos, que são estruturas abstratas e genéricas formuladas a

partir das nossas experiências com o mundo que nos rodeia (TEIXEIRA, 2003

apud MONTEIRO, 2009, p. 23). Para Almeida (1999), “os esquemas imagéticos

são noções conceptuais fundamentais, padrões dinâmicos que funcionam como

uma estrutura abstrata de uma imagem, e que, consequentemente, ligam um

leque vasto de diferentes experiências dotadas da mesma estrutura” (ALMEIDA,

1999, p. 5)

Na narrativa analisada, temos o esquema imagético pré-conceptual do

CONTENTOR -em que estão subjacentes os conceitos de DENTRO e FORA- e o

esquema da TRAJETÓRIA-em que as imagens remetem, necessariamente, para

alteração da posição dos elementos no espaço da ORIGEM (ponto de partida)

para o ALVO (ponto de chegada); da separação entre esses dois pontos temos o

PERCURSO.

Há uma quantidade significativa de imagens metafóricas presentes no texto

Tandaua. Nele, o imaginário e o real estão estreitamente interligados, isto é, ao

lado do espaço mítico (PEDRA-espaço sagrado na floresta/TANDAUA-

personagem mítico) coexiste a orientação objetiva do mundo enquanto tal, o

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espaço da realidade (CASA na aldeia/NARRADOR-Tangip Amondawa, índio da

aldeia). Abaixo, segue a transcrição do mito Tandaua:

Tandaua

Tangip Amondawa (1997)

Existe um rapaz que mora na pedra e a gente não pode chegar perto. Ele fica sozinho lá, porque é ruim demais, sabe? Ele era casado, mas já matou a mulher. Mata qualquer bicho e come, caça sozinho, come, se vira sozinho. Se a gente passar lá, ele mata nós também, porque uma vez já aconteceu assim com a mulher dele, né? Um dia ele foi sozinho pescar e a mulher dele foi atrás; ele não gostou e falou mal com a mulher. Ela voltou para casa e ficou lá chorando, então ele voltou, chegou lá e perguntou pra ela assim: - O que tu tem?!!! Alguma coisa te mordeu?!!! - Não, porque tu falou mal de mim lá na água. Aí ele falou pra ela assim: - Uuuh!!! Eu trouxe um bocado de peixe, sabe? Tu te vira e cozinha peixe pra nós comer, agora!!!!! Aí ela foi cozinhar e comeram. Depois ele falou pra ela: - Agora nós vamos no mato atrás de fruta. Então ela foi junto. Ele era muito mau, mesmo, sabe? Tem uma fruta no mato que a gente chama de indajá. Então, quando chegou no pé de indajá, o rapaz falou assim, pra ela: - Tu fica aí embaixo, eu subo lá e corto e tu segura. - Tá bom! Ela disse, acreditando nele. O rapaz subiu lá e derrubou primeiro uma casca de pau. Ela segurou, sabe? Então ele disse: - Tu segurou? - Segurei. - Tu segura esse aqui agora! Ele cortou um cacho grande mesmo de indajá. O cacho caiu em cima dela machucou ela todinha e ela morreu. Aí ele desceu, nem teve dó dela. Pegou um pouquinho daquela indajá e se mandou embora. Ele voltou para casa e lá encontrou um outro rapaz que tinha ficado cuidando da casa e disse: - Deixa eu raspar tua cabeça? - Eu deixo, ta bom. O cara era ruim mesmo, sabe? Pegou, não sei se era uma faca, sei lá! Aí pegou o cabelo do rapaz, assim... doeu, doeu! Deixou bem raspadinho mesmo, sabe? Agora vou passar sal. Sempre dói. Eu já fiz muitas vezes !!! Ele disse para o rapaz, mas isso nunca foi feito assim, sabe? Aí pegou sal passou na cabeça do rapaz. Doeu, doeu, doeu mesmo, doeu tanto!!! Ele dizia; - Tu não pode ficar chorando muito assim não!!! Passou o tempo e sarou tudinho. Então ele disse pro rapaz: - Agora nós vamos lá na pedra morar lá.

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Ele entrou na pedra, ficou lá dentro e mandou o rapaz da cabeça rapada ir caçar. O rapaz não conseguiu trazer nada. Ele outra vez mandou o rapaz pra ver se conseguia matar algum bicho, e nada. Mandou outra vez, outra vez, e nada. Então ele disse: - Agora nós vamos lá e caçar, pegar bicho. Aí foram pro mato e ele matou o rapaz que não conseguia matar caça. Agora ele tá morando sozinho lá na pedra. Diz que o braço dele é igual ferro, assim. Diz que ele passa a mão e mata. Mata tatu, anta, qualquer bicho ele mata no braço. Ele mora lá direto na pedra. Nós passamos muitas vezes lá na frente dele, mas nós nunca vimos ele. Ninguém pode ir lá, nem branco, nem nós, se passar lá ele mata. Ele vive sozinho, porque matou a mulher dele e matou o parente dele. Ele mora na pedra e não fica mais velho, porque é ruim mesmo, sabe? Ele se chama Tamandauá ou Tandáua.

In: SAMPAIO, SILVA e MIOTELLO (Orgs.). Mitos Amondawa. Porto Velho: EDUFRO, 2004.

Com base nos estudos de Almeida (1990) sobre esquemas imagéticos, foi

possível elaborar, a partir da narrativa amondawa Tandaua, esquemas imagéticos

pré-conceptuais em que são destacadas as metáforas ontológicas do tipo

orientacional.

Abaixo, a Figura 1 ilustra o esquema pré-conceptual de trajetória, presente

na imagem metafórica da construção (1), onde se destaca a ausência de

delimitação espacial do ponto de partida.

(1) Agora vamos lá na pedra morar lá.

FIGURA 1 - ESQUEMA PRÉ-CONCEPTUAL DE TRAJETÓRIA

Fonte: Elaboração da autora

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A construção (1) apresenta uma extensão da metáfora ontológica do tipo

direcional; essa metáfora nos permite dar sentido a fenômenos do mundo, em

termos de espaço, os quais podemos entender com base em nossas próprias

motivações, objetivos, ações e características. A metáfora ontológica nos fornece

um meio de nos referirmos à experiência de IR, demarcando um espaço entre um

ponto e outro.

Sentenças metafóricas como essa nos permitem compreender uma grande

variedade de experiências concernentes a espaço, neste caso temos um espaço

sagrado e maldito, simultaneamente, que é a PEDRA, em termos de motivações e

atitudes humanas.

A Figura 2 ilustra a orientação espacial dentro-fora presente na construção

(2), a seguir, designando o lugar no interior do qual está o trajetor. O movimento

para o interior é evidenciado pelo verbo ENTRAR. O esquema imagético ilustra a

metáfora conceitual PEDRA É UM CONTENTOR/RECIPIENTE.

(2) Ele entrou na pedra, ficou lá dentro.

FIGURA 2 - PEDRA É UM CONTENTOR/RECIPIENTE

ORIENTAÇÃO ESPACIAL DENTRO-FORA

Fonte: Elaboração da autora

Neste esquema fica evidente que os outros objetos físicos do mundo são

delimitados por superfícies. Dessa forma, concebemos esses objetos como

recipientes, com um lado de dentro e outro de fora. Portanto, quando o narrador

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diz (1) Agora vamos lá na pedra morar lá, depreende-se que o trajetor NÓS

movimenta-se da aldeia até a floresta onde está a pedra: é o mesmo que se

movimentar de um recipiente para outro, isto é, movimentar-se para fora de um e

para dentro de outro. Na construção (2), a pedra é um contentor/recipiente, pois é

possível entrar e ficar dentro dela.

A Figura 3 ilustra a orientação espacial frente-trás presente na construção

(3), a seguir:

(3) Nós passamos muitas vezes lá na frente dele, mas nós nunca vimos

ele.

FIGURA 3 - PEDRA É UM CONTENTOR/RECIPIENTE

ORIENTAÇÃO ESPACIAL FRENTE-TRÁS

Fonte: Elaboração da autora

O esquema imagético da construção (3) denota a orientação espacial

dentro-fora, considerando-se que ELE está dentro da pedra. Ele é a própria

pedra (no sentido denotativo); assim, temos, mais uma vez, argumentos para

acatar a metáfora conceptual A PEDRA É UM RECIPIENTE.

A metáfora orientacional com base na orientação espacial frente-trás

acontece na medida em que a corporificação da pedra é baseada na experiência

corpórea orientacional do trajetor NÓS, bem como do seu ponto de vista em

relação ao conteúdo (ELE), que representa o próprio contentor (PEDRA). A pedra

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passa, então, a ser um espaço delimitado por orientações espaciais dentro-fora,

frente-trás.

A narrativa selecionada revela uma “arte de narrar” e uma maneira cultural

do povo amondawa estar em relação com o mundo. Nesse sentido, no âmbito dos

pressupostos teóricos que sustentam esta pesquisa, o narrador, ao enunciar seu

texto, deixa transparecer uma “atitude literária” e conceitos culturais de seu povo,

pois conta a estória que o povo conta: “Diz que ele passa a mão e mata”. Quem

diz? A resposta parece ser: Quem diz é o povo. Logo temos o povo amondawa

como o “dono” ou “autor coletivo” da estória de Tandua. Nesse aspecto, os

elementos ficcionais utilizados para contar faz com que essa narrativa amondawa

compartilhe com outros textos ficcionais de natureza literária algumas

características, por exemplo, as construções linguísticas metafóricas do espaço

real/imaginário.

Sob esta perspectiva, a metáfora não é uma mera extensão (ou

transformação) semântica de uma categoria isolada para outra categoria de um

domínio diferente, mas envolve uma analogia sistemática e coerente, entre a

estrutura interna de dois domínios da experiência e, consequentemente, todo o

conhecimento relevante associado aos conceitos e domínios em causa. Por

exemplo, o significado da palavra PEDRA, no texto estudado, está revestido de

um significado novo. Mas esse novo conceito só ocorreu por causa da

continuidade e do caráter motivador da relação entre a experiência corporal e a

cognição. É possível compreender que PEDRA, além de significar mineral sólido

e duro, nesse contexto, tem o significado de lugar onde alguém pode morar,

assim, temos o esquema imagético do contentor: PEDRA É UM RECIPIENTE,

PEDRA É UM CONTENTOR. Os termos PEDRA e CASA são, em um dado

momento, intercambiáveis. Disso decorre a instabilidade do narrador na escolha

de um ou outro termo para denominar moradia.

Com base nos pressupostos da Teoria Cognitiva da Metáfora, nossa

análise nos permitiu concluir que a abordagem cognitiva, contrariando a tradição

milenar (objetivista) da epistemologia ocidental, sustenta-se numa visão do

significado linguístico que emerge com o nome de experiencialismo (LAKOFF E

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JOHNSON, 1980). Por outras palavras, pressupõe-se que a compreensão

humana opere através de estruturas decorrentes da interação do organismo com

o meio ambiente.

3.2 Construções linguísticas metafóricas em narrativas míticas indígenas

escritas em língua portuguesa

A fim de aprofundar nossa análise das construções metafóricas, foram

selecionadas narrativas escritas em língua portuguesa por indígenas de várias

etnias participantes do Projeto Açaí, um curso de formação de professores

indígenas promovido pela Secretaria de Estado da Educação do Estado de

Rondônia. Os textos escritos foram produzidos em grupos, em língua portuguesa,

após uma discussão coletiva com o tema “Saberes Indígenas”, durante aulas de

técnicas de produção de textos, na disciplina de Estágio Supervisionado,

ministrada pelas professoras Ms. Maria de Fátima Molina e Dra. Wany Bernadete

de Araujo Sampaio, no ano de 2011 na cidade de Ji-Paraná, Rondônia. As

narrativas fazem parte do acervo documental do Grupo de Estudos em Culturas,

Educação e Linguagens – GECEL/UNIR/CNPq.

Dentre as narrativas, selecionamos, para ilustrar nossa análise, o texto

“Aldeia Palhal”, a seguir transcrito:4

Aldeia Palhal

Eu moro na aldeia palhal vou contar um pouco da historia do povos Tupari que ainda preserva a sua cultura. Quando o casal tem filho tem cumprir o resguardo do filho recem-nascido é obrigado os pai fazer esse resguardo do filho, logo que a criança nasce no outro dia o pajé e convidado pela família para fazer o ritual. Então o pajé chega e senta no banquinho e pede para a mãe com a criança, no colo e o pai, do lado sentarem na frente do pajé para receber o ritual, o pajé também vai fazer a cura dos alimento, porque tem vários alimento que os pai não podem comer por causa da criança. Se o pai ou a mãe comer certo alimento vai prejudicar a saúde do seu bebê. E por isso

4 Sobre a análise da narrativa “Aldeia Palhal” ver também: BEZERRA, J. L e SAMPAIO, W. B. A.

Estudos literários em narrativas míticas indígenas escritas em língua portuguesa. Estudo apresentado pela autora no X Encontro Nacional sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas – ELESI, realizado na Universidade Estadual do Amazonas em fevereiro de 2015 e também no I Congresso Métodos Fronteiriços: objetos míticos, insólitos e imaginários, na Universidade Federal de Rondônia em abril de 2015.

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que a cultura do povo Tupari ainda mantem essa tradição e daí pai ou a mãe que comer alimento antes do tempo os mais velhos o avô ou avó até mesmo o pajé podem ir no mato atrás de raízes para fazer sumo da raiz para os pais beberem. O remédio tradicional e muito importante para os indígenas, tomando essas raízes e também tomando banho de folhas os indiozinhos crescem saudável e forte.

(Autores: Arlene Tupari, Edna Aruá, Misma Canoé, Valmir Makurap, Mauricio Tupari)

Da narrativa transcrita, destacamos a seguinte construção metafórica

orientacional:

(4) Então o pajé chega e senta no banquinho e pede para a mãe com a

criança, no colo e o pai, do lado sentarem na frente do pajé para receber o

ritual.

Para esta construção, propomos duas possíveis interpretações:

(i) Observa-se nesta construção (4) a metáfora conceitual RITUAL É UMA

SUBSTÂNCIA FÍSICA; é possível conceituar o abstrato com base no concreto, a

partir da experiência com objetos ou substâncias físicas permitindo-nos conceber

um evento como substância material.

Baseadas em Lévi-Strauss (1976), temos aqui a discussão sobre o

pensamento concreto, em que o autor afirma ser o pensamento dos povos tribais

e se configura carregado de riquezas. A construção deste pensamento concreto é

realizada através de características mais sensíveis e, portanto, mais concretas.

Segundo Lévi-Strauss (1976),

(...) os mitos e os ritos oferecem, como valor principal, ter preservado, até nossa época, de uma forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e continuam sem dúvida) exatamente adaptados a descobertas de um certo tipo: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativas do mundo sensível em termos de sensível. Esta ciência do concreto (...) não foi menos científica e seus resultados não foram menos reais. Afirmados dez mil anos antes dos outros,

eles são sempre o substrato de nossa civilização (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 31).

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Assim, a elaboração do aspecto experiencial da metáfora permite a

compreensão da imagem metafórica RITUAL É UMA SUBSTÂNCIA FÍSICA e

conceitualiza corpo como um RECIPIENTE, o que revela principalmente o corpo

humano tomado, metaforicamente, como um CONTENTOR, visto que recebe o

ritual. Tal conceito se dá em decorrência de que o nosso contato com a realidade

cotidiana nos revela o corpo como um depósito onde recebemos/depositamos

comida, bebida e também expelimos para o exterior outras substâncias que não

nos servem. O esquema imagético de contentor é imprescindível para esta

análise, uma vez que a conceitualização de RITUAL como uma substância física

reflete a noção dentro-fora com relação ao corpo humano.

(ii) A construção metafórica (4) possibilita também a conceitualização do

RITUAL enquanto TRAJETOR, pois o evento se movimenta dentro de um espaço:

tem como ponto de origem o pajé e como ponto de chegada a criança e sua

família; o ritual é direcionado para frente. Temos, na construção (1), a descrição

da posição dos corpos humanos no espaço:

(4) Então o pajé chega e senta no banquinho e pede para a mãe com a

criança, no colo e o pai, do lado sentarem na frente do pajé para

receber o ritual.

Nesta segunda interpretação da construção (4) pode-se inferir como

metáfora conceitual que o RITUAL É UMA SUBSTÂNCIA FÍSICA EM

MOVIMENTO.

Com base no exposto, podemos propor o esquema imagético de

contentor e o esquema imagético de trajetória, conforme representados nas

Figuras 4 e 5, a fim de ilustrar essas duas possíveis interpretações, conforme

demonstrado a seguir:

INTERPRETAÇÃO (I): Esquema imagético do CONTENTOR

(4.1) Então o pajé chega e senta no banquinho e pede para a mãe com a

criança, no colo e o pai, do lado sentarem na frente do pajé para receber o

ritual.

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FIGURA 4 - ESQUEMA IMAGÉTICO DO CONTENTOR

RECEBER

RITUAL

Fonte: Elaborado pela autora com utilização de imagens disponíveis na web

- Imagem metafórica: RITUAL É UMA SUBSTÂNCIA FÍSICA.

- O Corpo é um RECIPIENTE. O Corpo é um CONTENTOR.

INTERPRETAÇÃO (II): Esquema Imagético da TRAJETÓRIA.

(4.2) Então o pajé chega e senta no banquinho e pede para a mãe com a

criança, no colo e o pai, do lado sentarem na frente do pajé para receber o

ritual.

FIGURA 5- ESQUEMA IMAGÉTICO DE TRAJETÓRIA

RITUAL

PERCURSO

Fonte: Elaborado pela autora com utilização de imagens disponíveis na web

- Imagem Metafórica: RITUAL É UMA SUBSTÂNCIA FÍSICA EM MOVIMENTO.

- Progressão do RITUAL dentro de um ESPAÇO: o Ritual é o trajetor, que se

desloca num percurso, movimentando-se no espaço.

- O Pajé é a origem, o ponto de partida do Ritual.

- A família (especialmente a criança) é o alvo, o ponto de chegada do Ritual.

DENTRO

FORA

A

ORIGEM ALVO

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A análise propõe tanto o esquema imagético pré-conceptual do

CONTENTOR -em que estão subjacentes os conceitos dentro/fora- como o

esquema da TRAJETÓRIA, em que as imagens remetem, necessariamente, para

alteração da posição dos elementos no espaço da ORIGEM (focagem do ponto

de partida) para o ALVO (focagem do ponto-final); e no espaço (distância) entre

esses dois pontos tem-se o PERCURSO.

O RITUAL, além de se configurar como uma substância física, por esse

mesmo motivo é capaz de se movimentar em um espaço determinado. A

disposição dos corpos no espaço também sugere a relação de respeito à figura

do pajé, pois ele fica “na frente” da família para transmitir o ritual; do mais velho

para o mais novo.

O texto revela o quão é importante para esta cultura indígena o ritual, pois

é o primeiro evento da criança e é determinante para sua saúde física. Como a

metáfora conceitualiza o ritual como substância física, podemos compreender o

ato de receber o ritual como o ato de receber um presente do mais velho para o

mais novo.

Na construção linguística metafórica (4) ocorreu a seleção da palavra

receber, reforçando a ideia do ritual como uma substância física, material, pois

significados referentes ao verbo receber são: aceitar algo que lhe é oferecido ou

dado, ganhar, adquirir e herdar.

Compreendemos que, através da escolha do verbo receber, seja possível

perceber a intencionalidade do narrador/escritor ao produzir o texto, pois, ao

estruturar a narrativa, o narrador faz as relações com a palavra escolhida a partir

do seu léxico e de sua intenção. A utilização do verbo é capaz de esclarecer e

transmitir o sentimento da ação. A partir da construção linguística metafórica é

possível concretizar uma experiência abstrata e de valor social. Podemos pensar

o ritual, substância física, como uma espécie de “presente” na cultura indígena,

pois a escolha do verbo receber (aceitar algo que é dado) nos permite isso como

interpretação.

Mito e ritual são termos correlativos, pois o mito é a parte falada do ritual,

ou, como postulam Wellek e Warren (1976), o mito é a história do ritual. Na

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narrativa analisada, configura-se o que os teóricos tratam acerca do ritual, uma

vez que ele é executado para uma determinada sociedade (grupo indígena) pelo

seu representante (o pajé) cujo objetivo é evitar ou propiciar alguma coisa (para a

criança crescer forte e saudável).

Eliade (1972) explica claramente que vivenciar os mitos é viver a

experiência religiosa, reiterar, reatualizar os eventos fabulosos. Nas palavras do

autor: “Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma

origem e uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e

exemplar” (ELIADE, 1972, p. 18)

A experiência ritualística narrada revela uma especificidade cultural do

povo indígena Tupari, apresenta uma forma de iniciação da criança no mundo.

Eliade (1972 apud Guesse) afirma sobre a iniciação que:

Os mitos e ritos iniciatórios de regressus ad uterum colocam em evidência o seguinte fato: o “retorno à origem” prepara um novo nascimento, mas este não repete o primeiro, o nascimento físico. Especificamente, há uma renascença mística, de ordem espiritual – em outros termos, o acesso a um novo modo de existência (comportando a maturidade sexual, a participação na sacralidade e na cultura; em suma a “abertura” para o Espírito). A ideia fundamental é que, para se ter acesso a um modo superior de existência, é preciso repetir a gestação e o nascimento, que são porém repetidos ritualmente, simbolicamente; em outros termos as ações são aqui orientadas para os valores do Espírito e não para os comportamentos da atividade psicofisiológica (ELIADE, 1972, p.76)

Nossa busca por construções metafóricas de cunho conceitual nas

narrativas em estudo evidenciou outras construções linguísticas, revelando a

riqueza que há em nosso sistema conceptual e, principalmente, contribuindo para

a discussão acerca dos aspectos estético-literários em textos de autoria indígena.

Como exemplo, podemos tomar algumas construções encontradas nas narrativas

“A pescaria do povo Kaxarari” e “Pesca Tradicional”, que trazemos a seguir.

As construções nos mostram características humanas atribuídas ao peixe

(pensar-ficar tonto) revelando que o autor/narrador busca elementos que

traduzam a sua atitude literária, ou seja, recorre a recursos temáticos,

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enunciativos e discursivos compartilhados com outros textos ficcionais de

natureza literária. Segue a transcrição da narrativa “A pescaria do povo Kaxarari”:

A pescaria do povo Kaxarari

Os Kaxarari ainda praticam a cultura deles de fazer uma grande pescaria. O cacique reúne o povo e marca um dia para fazer esse tipo de pescaria. As mulheres vão para a floresta colher frutos outras vão pegar a mandioca e o milho

E alguns homens que não vão pescar, ficam na aldeia para limpar o arroz. Que hoje em toda aldeia faz parte da nossa alimentação. Eles pegam bastante peixe que dar de alimentar a comunidade toda. No meio dos Kaxarari tem um flamenguista que está com a camisa preta e vermelha.

Eu tenho certeza que e por causa dessa cor vermelha que chama a atenção dos peixes, porque os peixes quando estão no fundo do rio eles gostam dessa cor pensam que e sangue.

Penso assim porque em toda aldeia o peixe está ficando cada vez mais difícil. Os Kaxarari pegam bastante peixes mesmo que fazem um grande Moquém para assar os peixes. Quem assa os peixes e o flamenguista. Depois de assado reúne o povo divide-se de acordo com quantidade de família.

Todos comem tomam chicha e ficam satisfeitos e felizes. (Autora: Marines Canoé)

Nesta narrativa, chama-nos atenção a seguinte construção linguística

metafórica:

(5) Eu tenho certeza que e por causa dessa cor vermelha que chama a

atenção dos peixes, porque os peixes quando estão no fundo do rio eles

gostam dessa cor pensam que e sangue.

Mediante tal construção linguística metafórica, reportamo-nos a Lakoff e

Johnson (2002), que afirmam que os conceitos metafóricos podem ser

ontológicos e dentre tais conceitos está inserida a personificação5. Para os

autores a personificação na linguagem cotidiana ocorre quando “objetos físicos

são tidos como pessoas” (LAKOFF E JOHNSON, 2002, p. 87).

5 Sobre a temática “personificação”, ver também: SAMPAIO, W. B. A. e BEZERRA, J. L. Metáfora

ontológica: a personificação na narrativa mítica e nos processos de formação de palavras tupi. Trabalho apresentado no Encontro Internacional Metáforas nas línguas indígenas: Abordagem Empírica, Linguística e Cognitiva. Brasília, UnB, setembro de 2014.

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O uso da personificação consiste na atribuição de características e

qualidades humanas a seres não humanos (animados ou inanimados); a

personificação é capaz de cobrir uma gama enorme de metáforas e cada

metáfora de personificação seleciona um aspecto humano ou modos diferentes

pelo qual se considera a pessoa. De acordo com Lakoff e Johnson (2002) o que

há em comum entre tais metáforas, “é o fato de serem extensões de metáforas

ontológicas, permitindo-nos dar sentido a fenômenos do mundo em termos

humanos, como base de nossas próprias motivações, objetivos, ações e

características” (LAKOFF E JOHNSON, 2002, p. 87-88).

Assim, a construção linguística (5) revela claramente a metáfora ontológica

de personificação: neste caso tem-se a personificação do peixe, visto que ele é

dotado de características essencialmente humanas; nesse tipo de metáfora são

reveladas experiências relativas a seres não humanos que demonstram, como se

fossem humanos, suas motivações, características e atividades.

Podemos inferir que, na narrativa analisada, o peixe revela

comportamentos e ações (gostar, pensar) que fazem parte das nossas ações e

sentimentos enquanto seres humanos. Este tipo de recurso é comum em

narrativas míticas, em que os animais, ao assumirem características e até formas

humanas, na verdade refletem os sentimentos e emoções do próprio homem. O

mesmo ocorre nas fábulas que consideram seus personagens, os animais, como

seres capazes de agir como seres humanos, com a intenção de apresentar uma

lição moral aos homens.

Neste ponto, reportamo-nos à segunda característica fundamental do

pensamento mítico, apresentada neste trabalho através das pesquisas de Guesse

(2014), em que a autora nos informa que, ao contrário de uma visão analítica, o

mito é caracterizado por uma visão sintética do mundo; logo, no pensamento

mítico não há divisão de classes e subclasses, mas existe uma solidariedade

fundamental e indelével da vida.

Assim, tal característica se torna semelhante à visão de mundo

integradora, ou seja, para as sociedades ocidentais há o pressuposto de uma

organização composta por hierarquia, com distinções claramente expostas entre

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os seres e suas funções sociais, enquanto que na visão de mundo integradora

ocorre o desaparecimento dessa hierarquia e cada indivíduo será considerado a

partir da relação com seus semelhantes diretos e com tudo que compõe o mundo

que o circunda.

Para Carvalho (apud GUESSE, 2014), nas sociedades indígenas não há o

conceito de propriedade sobre a natureza e nas sociedades do homem branco

também não havia; isso se deu, conforme a antropóloga, após a criação de

animais, pois os homens criadores os transformam em objetos sem alma. No

entanto, para o índio todo animal tem alma. Desse modo, a compreensão da

visão indígena integradora de mundo revela que há um único princípio a todos os

seres, tal princípio os integra e não os separa, pois a visão de mundo é como um

todo e não fragmentado.

Interessante ainda complementar, a visão de mundo integradora da

realidade, dialogando com os postulados de Viveiros de Castro e Campbell, em

especial no tocante à relação entre o índio e a natureza. Para Campbell (apud

GUESSE, 2014), a relação dos índios com os animais é diferente da nossa visão

e relação com eles, pois vemos os animais como forma inferior de vida. Já os

indígenas se dirigem a todos os seres viventes como “vós”, árvores, pedras, tudo.

Nas palavras de Campbell, há o exemplo de um índio Pawnee que afirma “No

início de todas as coisas, a sabedoria e conhecimento estavam com o animal. [...]

E que o homem deveria aprender com os animais” (CAMPBELL, apud GUESSE,

2014, p.206). Assim, a visão integradora ocorre, pois os indígenas assimilam que

há um princípio comum a todos os seres, que não os distingue, mas sim os

unifica.

Neste sentido, os estudos referentes ao relativismo ocidental e o

perspectivismo ameríndio fornecem um diálogo para a análise destas

construções, considerando-se que:

Nas cosmologias indígenas o mundo é povoado por muitas espécies (humanos e não humanos) e o mundo está dotado de consciência e cultura, e cada espécie se vê como humano e as demais como não humanas, e nesta relação às espécies atribuem sentidos diferentes que dialogam entre si e com todos os

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acontecimentos. Este é um circunstancialismo, onde todo mundo é humano de antemão (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, on-line).

Viveiros de Castro (2012) se distancia do antropomorfismo e estabelece

que todos os seres veem o mundo da mesma maneira, o que muda é o mundo

que eles veem. Os aspectos temporais e espaciais do trecho exemplificado fazem

refletir o universo mítico presente até hoje na narrativa, pois o uso do advérbio

temporal quando denota uma condição espaço-temporal, ou seja, só é possível

ao peixe gostar e pensar quando está condicionado e delimitado ao espaço do

fundo do rio. É neste espaço (fundo do rio) que o peixe pode assumir aspectos de

caracterização humana e somente durante a prática de uma atividade tradicional

da comunidade indígena, a pescaria.

Também Viveiros de Castro (2011), compartilha da visão de que o mundo é

habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-

humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. De maneira

sintética, o modo como os seres humanos veem os animais e outros seres do

universo é completamente diferente do modo como esses seres veem a si

mesmos e aos humanos.

Guesse (2013) elabora em seu trabalho uma proposta de organização das

diferentes perspectivas dos seres. No Quadro 1, abaixo, reproduzimos o que a

pesquisadora apresenta acerca do perspectivismo ameríndio:

QUADRO 1 - DIFERENTES PERSPECTIVAS DOS SERES PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO

Seres que veem Como veem a si mesmos

Como veem os outros seres

Humanos Humanos (em condições normais)

Animais como animais (em condições normais)

Espíritos (usualmente invisíveis) são vistos apenas em condições não normais

Animais predadores e os Espirítos

Humanos Humanos, como animais de presa

Animais de presa Humanos Humanos, como espíritos ou animais predadores

Fonte: Guesse, 2014, p. 207.

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Através desse principio, podemos explicar por que os animais

(especificamente o peixe) apresentam características humanas (pensar, gostar).

A leitura de Viveiros de Castro revela que os animais se veem como pessoa,

portanto são dotados de tais capacidades psicológicas. Vale ressaltar que, para o

autor, o perspectivismo não é aplicável a todos os animais, ele ocorreria de

maneira mais frequente com as espécies dos grandes predadores e carniceiros

(jaguar, sucuri, urubu, etc.) e também com as presas típicas dos humanos

(macaco, peixe, veado e anta), isso ocorre porque as diferenças de perspectivas

ocorrem justamente entre presa e predador.

Podemos inferir, portanto, que a personificação ocorre nas narrativas

míticas indígenas, apresentando uma noção universal do pensamento ameríndio

em que, no estado originário, não havia a distinção entre humanos e animais,

como é comumente descrito nos mitos. Viveiros de Castro defende que o universo

das narrativas míticas é composto por seres cuja forma, nome e comportamento

misturam inextricavelmente atributos humanos e não humanos. Segundo o autor:

Nesse discurso absoluto, cada espécie de ser aparece aos outros seres como aparece para si mesma – como humana –, e, entretanto age como se já manifestando sua natureza distintiva e definitiva de animal, planta ou espírito. [...] Ponto de fuga universal do perspectivismo, o mito fala de um estado do ser onde os corpos e os nomes, as almas e as ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo. Meio cujo fim, justamente, a mitologia se propõe a contar (VIVEIROS DE CASTRO apud Guesse, 2014 p. 209).

Desta forma, podemos dizer que a personificação do peixe é possível, pois

evidencia a visão integradora de mundo indígena, ao enxergar a realidade de

maneira integrada e não fragmentada, veem o mundo como um todo universal em

que é possível um ser (peixe) apresentar-se como outro (humano), pois apresenta

os resquícios do estado original (todos os seres tem alma).

Podemos também, a partir da análise na narrativa em estudo, discutir

alguns aspectos quanto à seleção das palavras utilizadas pela narradora/autora, e

que revelam muito sobre os indígenas. Como exemplo inicial, tomemos a cor

vermelha atribuída, no texto, à cor do sangue. Vemos aí a atração dos peixes pela

cor vermelha da camisa utilizada pela personagem (indígena flamenguista) que se

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encontra no meio do rio. É possível verificar a importância da cor usada por este

indígena na prática da pesca: a escassez de peixes a torna difícil, mas a

utilização desse recurso (usar vermelho) facilita a pescaria. No decorrer do texto,

verificamos que essa mesma personagem indígena também é a responsável por

cozinhar os peixes pescados.

Outro exemplo se refere aos aspectos temporais e espaciais, refletindo o

universo mítico presente até hoje nas narrativas. O uso do advérbio temporal

quando denota uma condição espaço-temporal, ou seja, somente é possível ao

peixe gostar e pensar condicionado ao espaço do fundo do rio. É neste espaço

(fundo) inserido em um macro-espaço (rio/floresta) que o peixe pode assumir

aspectos da caracterização humana e isso tudo ocorre durante a prática de uma

atividade tradicional da comunidade indígena: a pescaria.

Na construção linguística metafórica (5), consideramos, ainda, de grande

importância a noção espacial: existe uma sobreposição de espaços, ou seja, a

partir do contexto e da descrição da autora, temos os seguintes espaços:

FLORESTA (MATA) - RIO - FUNDO DO RIO:

(5) Eu tenho certeza que e por causa dessa cor vermelha que chama a atenção

dos peixes, porque os peixes quando estão no fundo do rio eles gostam

dessa cor pensam que e sangue.

A Figura 6, a seguir, ilustra o esquema imagético de sobreposição espacial

presente na construção (5):

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FIGURA 6: ESQUEMA IMAGÉTICO DE SOBREPOSIÇÃO ESPACIAL

Fonte: Elaboração da autora

Ao descrever tais espaços, salientamos sua relação com o que já foi

exposto anteriormente em relação aos espaços sagrados e míticos nas culturas

indígenas, ou seja, em um primeiro plano há o espaço da FLORESTA (MATA). O

espaço da floresta ou mata é o espaço em que a comunidade retira seus

alimentos e de onde provém sua sobrevivência; temos muitas narrativas de cunho

mítico que nos revelam o caráter sagrado da floresta com o desenvolvimento de

mitos que mostram o sobrenatural ocorrendo neste espaço.

Citamos como exemplo, alguns mitos retirados da internet e outros

transcritos do livro Mitos Amondawa (SAMPAIO, SILVA e MIOTELLO (Orgs.)

2004) que destacam a floresta enquanto espaço mítico:

Anhangá - Mito dos índios brasileiros, a alma errante (tupi ang), que tomava o aspecto de fantasma ou de duende, vagando pelos campos e florestas. Há vários tipos, como mira-anhanga, tatu-anhanga, suaçu-anhanga, tapira-anhanga e até pirarucu-anhanga - isto é, aparição de gente, de tatu, de veado, de boi e de pirarucu. Sua simples lembrança trazia pavor ao silvícola e ao homem simples do campo. Era a própria corporificação do medo informe, do pavor do desconhecido e do mistério da noite. É um dos mitos mais antigos do Brasil. O Anhanga, segundo a tradição, metamorfoseava-se mais em veado. (Fonte:

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http://cantinhodosdeuses.blogspot.com.br/2011/03/mitos-indigenas-brasileiro.html)

Caipora - Um dos gênios da floresta na mitologia tupi. É representado como um pequeno índio, negro, ágil, que fuma cachimbo e reina sobre tudo o que existe na mata. (Fonte: http://cantinhodosdeuses.blogspot.com.br/2011/03/mitos-indigenas-brasileiro.html)

A mulher do índio - Antigamente nós não tinha mulher. Era o índio mesmo que tirava e fazia chicha. Tinha um índio velho, mas que entendia de tudo...Ele ficou pensando, pensando até que teve uma ideia. Aí ele foi no mato e conseguiu trazer a mulher. (Fonte: SAMPAIO, SIVA e MIOTELLO (Orgs.). Mitos Amondawa. Porto

Velho, Edufro, 2004)

O outro espaço descrito é o espaço do RIO. Nas sociedades indígenas, e

em variados textos, visualizamos também a relevância deste recurso natural para

a sobrevivência da comunidade.

Por fim, temos o espaço do FUNDO DO RIO, que será analisado fim de

discutir a construção metafórica associada à personificação. Mais uma vez, temos

um espaço que deixa transparecer em alguns mitos o seu papel de extrema

importância na composição de várias narrativas míticas. Como exemplo, temos os

seguintes textos, disponíveis na web:

Texto 1: Na nascente do rio Nhamundá, há um lago denominado Iaciuaruá, que quer dizer Espelho da Lua. Dizem que esse lago foi consagrado á lua e que em determinadas épocas, em noite de lua cheia, as ICAMIABAS que habitavam as margens do grande rio, faziam uma festa dedicada a lua e a mãe do muiraquitã que habitavam no fundo do lago. Quando a superfície do lago estava serena refletindo a lua, as Icamiabas lançavam-se á agua e mergulhavam até o fundo, onde recebiam das mãos da mãe do muiraquitã os preciosos talismãs. Esses amuletos lhes era entregue ainda mole e se solidificavam tão logo entrassem em contato com o ar . Com esses muiraquitãs elas presenteavam os homens com quem tivessem relações intimas. As Icamiabas não admitiam homens em suas tribos, só os procuravam quando sentissem desejos de ter relações sexuais, seus parceiros ocsionais eram os índios Guacaris. Se da conjução carnal entre elas e os Guaracis nascessem filhos varões, estes eram sacrificados ou entregues ao pai para criar. As Icamiabas cavalgavam com desenvoltura, eram mulheres guerreiras que, segundo dizem, amputavam um dos seios para melhor manejo do arco e flecha.

(Fonte:http://luciabragapoema.arteblog.com.br/r15779/ LENDAS-E-MITOS-DA AMAZONIA/)

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Texto 2: Anaconda Yube- Segundo o mito fundador, Yube era o homem que, ao se apaixonar por uma mulher-anaconda, se transforma em anaconda e passa a viver com ela no mundo profundo das águas; nesse mundo Yube descobre a bebida alucinógena e os poderes curativos e de acesso ao conhecimento que a bebida propicia. Um dia, sem avisar a esposa-anaconda, Yube decide voltar à terra dos humanos e volta a se transformar em homem, retornando para a sua família humana. Um dia, ao caçar na floresta, Yube se depara com membros de sua família-anaconda, que tentam convencê-lo a voltar às águas. Yube se recusa e passa a ser atacado pelas anacondas. Sofre ferimentos graves, mas sobrevive; antes de morrer, Yube ensina a seus filhos e conterrâneos humanos os segredos e benefícios da bebida alucinógena instaurando assim o ritual Kaxinawá de nixipae.

(Fonte:http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/7Sem_16.html)

A partir das narrativas míticas acima, é possível traçar uma descrição do

espaço do fundo do rio. Temos um espaço em que é permitido, apenas através do

mito, se desenvolver ações, um espaço em que as personagens podem MORAR:

(6)... mãe do muiraquitã que habitavam no fundo do lago.

O espaço do fundo do rio é também um outro “mundo” e lá nas profundezas é

possível morar e viver tal qual no “mundo externo” ou mundo fora do rio:

(7).... e se transforma em anaconda e passa a viver com ela no mundo

profundo das águas.

Nestas narrativas de cunho mítico, bem como em várias narrativas em

outras culturas, temos presente em sua forma de estruturação a chamada “tópica”

(BELLEI, 2000). A tópica se refere a um tema comum que se apresenta em

variadas narrativas ao longo dos tempos.

Na narrativa A pescaria do povo Kaxarari, podemos considerar a tópica

fundo do rio revelada como outra forma de apresentação do mundo, presente na

construção metafórica (5), em estudo, que aqui retomamos:

(5) [....] os peixes quando estão no fundo do rio pensam que e sangue.

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Neste universo, o fundo do rio, é possível a personificação do peixe.

Somente neste espaço, considerado divino e sagrado (mundo em que é possível

morar e viver) o peixe, animal não dotado de racionalidade, é capaz de “pensar”.

A autora mostra, ao compor a narrativa, o aspecto temporal (advérbio de tempo

quando) e espacial (fundo do rio) denotando que é somente neste contexto

temporal e espacial que o peixe pode assumir características humanas.

Outra narrativa intitulada “A pesca tradicional”, dos autores Edilson Tupari

e Bismarque Cujubim, nos revela mais uma característica humana atribuída ao

peixe, conforme destacado na construção (8), abaixo:

(8) Depois que termina a batição todos saem do lago e volta a beira e

espera os peixes ficarem tonto.

A construção (8) explica que o peixe, ao estar em contato com o veneno da

substância usada na batição do rio, fica privado de oxigênio e por isso “fica tonto”,

ou seja, o peixe apresenta um sintoma que, para nós, seres humanos, pode ser

ocasionado por falta de circulação sanguínea no cérebro.

As construções linguísticas metafóricas analisadas nos mostram

características humanas atribuídas ao peixe (pensar, gostar, ficar tonto),

revelando que o autor, ao escrever seu texto, busca elementos que traduzam a

sua atitude literária.

Com base no exposto até aqui, verificamos que os autores indígenas

utilizam recursos específicos na elaboração de seus textos, elementos que não

são arbitrários, mas que buscam revelar muito de sua cultura aos leitores. Por

isso, na próxima seção trataremos da arte de narrar e, principalmente, da

chamada atitude literária do narrador indígena nos textos de cunho mítico.

3.3 A atitude literária do narrador e a arte de narrar

O presente tópico se desenvolve a partir do seguinte questionamento:

como é possível identificar a atitude literária no narrador em produção escrita

indígena? A resposta se formula a partir dos estudos realizados no presente

trabalho, com base nos conceitos extraídos da linguística cognitiva e também dos

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estudos literários. Só assim será possível fazermos a reflexão e discussão acerca

da metáfora de cunho literário a partir da metáfora de cunho conceitual.

O ato de narrar apresenta, conforme Bentes (2011), uma reflexão meta-

discursiva sobre o que está sendo narrado e a narrativa possui um

“esquematismo” que mantém a ordem do paradigma narrativo. Cabe ressaltar que

a autora, em sua pesquisa, utilizou como corpus narrativas orais populares da

Amazônia paraense e o nosso trabalho utiliza narrativas indígenas escritas em

língua portuguesa. No entanto, os princípios teóricos de Bentes (2011), no que

concerne à arte de narrar e as narrativas, são esclarecedores para a constituição

da base teórica desta pesquisa.

Bentes (2011) leva em consideração duas perspectivas que dizem respeito

ao fenômeno da narratividade. A primeira é conferida a Toolan (1988), que diz: (i)

o ato de narrar é indissociável daquilo que é narrado; (ii) há um “trabalho” do

narrador em relação ao que ele enuncia; (iii) as narrativas necessariamente

apresentam uma trajetória;(iv) as narrativas exploram com propriedade o traço da

linguagem chamado “deslocamento” (forma de construir discursivamente eventos

distantes, no espaço e no tempo, tanto do narrador quanto da audiência). A

segunda é a perspectiva de Ricoeur (1995) que afirma que (i) a narrativa de ficção

possui a propriedade de se desdobrar em enunciado e enunciação, o que significa

dizer que narrar já é refletir sobre os acontecimentos narrados; (ii) a implicação da

narrativa da própria narração permite que os estudos sobre este fenômeno deem

lugar à subjetividade; (iii) o mundo narrado caracteriza-se por uma atitude de

“distensão” entre os interlocutores (BENTES, 2000 p. 81).

O trabalho de Bentes (2000) objetiva fazer a compreensão da “atitude

literária” dos narradores, na medida em que enunciam seus textos. O

entendimento de tal processo faz com que tais narrativas compartilhem algumas

características com textos ficcionais de natureza literária. Desse modo,

pretendemos buscar essa chamada atitude literária nas narrativas indígenas de

caráter mítico, uma vez que ela pode ser vista como um elemento responsável

pela forma como os textos foram elaborados.

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Uma das premissas da pesquisa de Bentes relaciona-se à chamada “arte

de narrar”, em que as narrativas, ao revelarem tal arte, só o fazem em razão de

os narradores terem estabelecido, em conjunto com quem os ouve, um “acordo

ficcional”, termo utilizado por Coleridge (1994) e citado por Bentes (2011). O

acordo ficcional é quando o público sabe que o que está sendo narrado é uma

estória imaginária, no entanto não pensa que o narrador está faltando com a

verdade.

Guesse (2103), em sua dissertação, elabora um tópico intitulado Narrar é

(re)viver, e mais uma vez temos sua grande contribuição para as pesquisas

voltadas à temática indígena. A autora discute a importância do ato de narrar,

bem como sua relação com a literatura. Para a pesquisadora, os povos indígenas

valorizam bastante a arte de narrar e isso acaba por transparecer em sua

literatura. Como vimos anteriormente, considera-se que a literatura indígena tem

sua fonte na tradição oral, portanto é importante a figura do narrador oral nas

comunidades indígenas.

Walter Benjamin (1987), no capítulo intitulado O narrador: considerações

sobre a obra de Nikolai Leskov, afirma que esta arte de narrar está em vias de

extinção, ou seja, pessoas com a capacidade de narrar estão cada vez mais

limitadas. Para Benjamin, a arte de narrar consiste na possibilidade de trocar

experiências e esta, de algum modo, está desprovida do homem. Como causa,

aponta que os próprios atos de experiência do homem estão “em baixa”. Nas

palavras de Benjamin (1987), “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a

fonte que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as

melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos

inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, 1987, p. 198).

Eliade (1972) considera que o mito revela e narra não somente a origem do

mundo, dos animais e das plantas e principalmente do homem, mas revela como

o homem de hoje é consequência, resultado dos eventos míticos de sua criação.

Para este homem, o mito é de suma importância, pois tais narrativas estão

diretamente relacionadas com sua existência.

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Quando tratamos de narrativas míticas indígenas, o fazemos a partir da

concepção de que seus escritos são provenientes de uma sociedade de tradição

oral; segundo Guesse (2011), nesta esfera o texto está excepcionalmente na

memória do contador/narrador. Em contrapartida, na escrita das narrativas, os

indígenas abrem mão da performance do ato de narrar oralmente, produzindo,

assim, uma obra reflexiva, com preocupação estética e que ainda reflete um

produto com a identidade da comunidade.

Segundo Benjamin (1987), o senso prático é uma característica de muitos

narradores natos, ou seja, a narrativa apresenta uma dimensão utilitária. Para o

teórico, tal utilidade pode apresentar-se na forma de um ensinamento moral, uma

sugestão prática, um provérbio ou uma norma de vida. Em qualquer um destes

contextos, o narrador se impõe como alguém que sabe dar conselhos.

Eliade (1972) considera que o mito é configurado não somente como um

modo de explicar o mundo, os seres, mas também intenciona explicar valores, de

modo a integrar o real/cotidiano com o mágico ou divino. As próprias atividades

possuem significado mítico, tais como a dança, a caça, a pesca e a agricultura.

Tais ações foram reveladas ao homem através de um deus ou herói no tempo

primordial e são repetidas pelos homens que os conhecem através dos mitos.

Benjamin (1987) afirma que a narrativa floresceu num meio de artesãos, ou

seja, a narrativa é, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Para

Benjamin, o narrador imprime suas marcas na narrativa:

Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1987, p. 205).

Walter Benjamin insere o narrador na categoria entre os mestres e os

sábios. E explica: o narrador sabe dar conselhos. O narrador usa a sua

experiência e a do próximo para constituir sua base; nas palavras do autor: “Seu

dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. (...) O narrador é a

figura na qual o justo se encontra consigo mesmo” (BENJAMIN, 1987 p. 221). Nas

comunidades indígenas, os mais velhos se dispõem a narrar as histórias de seu

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povo, histórias de um tempo primeiro e que, ao serem escritas, expressam e

documentam todo o seu acervo mítico, fortalecendo culturalmente sua identidade.

Importa neste momento uma reflexão e questionamento: Em qual

categoria, o narrador indígena estaria inserido? No caso, o mais adequado seria

propor uma terceira categoria, algo próximo ao “Xamã”, uma vez que as

características do narrador indígena não se encaixam nas propostas por

Benjamim. Tal categoria “xamânica” se justificaria, segundo os estudos de

Guesse (2013), porque a escrita indígena produz um desvio na literatura

brasileira, ao propor uma nova estética, um novo estilo e, portanto, um novo

narrador. Neste caso, soma-se o fato de que algumas narrativas estudadas em

nosso trabalho foram produzidas de forma coletiva.

É importante refletir sobre a autoria coletiva, pois, diferente da narrativa

oral, não temos evidenciado um autor individual. No caso das narrativas

analisadas na presente pesquisa, temos os professores indígenas como os

responsáveis pela escrita das histórias em um processo que envolve a

transposição de uma ideia coletiva, a transposição do oral para o escrito, a

seleção de um vocabulário e um trabalho com a linguagem.

Assim, a escrita de autoria coletiva representa as vozes de seus

representantes, há um comum entre estas vozes que são passadas para as

narrativas, portanto o texto produzido apresenta também uma característica

política, pois é resultado de um consenso.

Retomamos, aqui, o questionamento feito pelo linguista D’ Angelis (2007):

“o que vamos entender por literatura indígena (aqui associada, obviamente, à

escrita)?” Como nosso trabalho abarca produções literárias de comunidades que

transitam da oralidade para a escrita6, e esta é a escrita na língua dominante,

importa-nos realizar um diálogo com a premissa de Ricoeur (2000) no que se

refere ao conceito de texto: o texto é todo o discurso fixado pela escrita.

6 Ver também: BEZERRA, J. L. Estudos literários em narrativas indígenas: a voz do indígena na

literatura. Trabalho apresentado no VIII Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental/VII Colóquio Internacional “As Amazônias,as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia. Universidade Federal do Acre, 03 a 07 de novembro de 2014.

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Lima (2014), ao tratar do assunto da escrita literária indígena no Século

XXI, chama-nos atenção ao realizar a análise do posicionamento do enunciador

no interior do poema narrativo; segundo a autora, a postura assumida pelo autor

no trecho: “tudo isso que escrevi no processo de letramento da língua portuguesa

são longas histórias de um mundo muito antigo” (LIMA, 2014, p. 139) denota a

fixação, através da escrita, de um aspecto importante da tradição oral: a memória.

Araújo (2010) diz que “Os povos indígenas, ao contarem suas histórias,

escrevem, pois percebem na permanência da palavra escrita o lugar da memória”.

Sobre o papel da literatura indígena, Daniel Munduruku (2008) afirma que:

A escrita é a demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro. O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re) encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral. (MUNDURUKU, 2008,p. 2)

Conforme Campbell (apud SCHEINER, 1993, p. 59) “os mitos são a forma

mais geral de se perpetuar a consciência de um outro mundo - o mundo divino

dos antepassados, o mundo das realidades absolutas. Entrar em sintonia com o

universo e permanecer neste estado é a principal função da mitologia”.

Conforme a análise de Lima (2014), o poema narrativo apresenta um

tempo em que “os animais falavam”; tal afirmativa nos remete à análise da

construção linguística metafórica que apresenta características antropomórficas

realizada na seção de análise, pois a construção analisada apresenta um espaço

em que o peixe “pensa”. Nesse contexto temporal e espacial mítico, temos a

configuraç Ao analisar o poema, O Acre no mundo parece um pouso de

borboleta do autor Tene Kaxinawa, Lima (2014) argumenta que as metáforas

elaboradas pelo autor indígena têm por objetivo alcançar o receptor,

transformando conceitos abstratos em representações mais concretas, usando

elementos conhecidos de seu entorno. Logo, a atitude literária independe da

tipologia textual: seja em prosa ou em verso, a atitude literária se revela nas

escolhas da língua (gem) que o autor/narrador faz para expressar em produzir

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sentidos aos personagens das narrativas como seres dotados de capacidades

humanas.

Estes exemplos, assim descritos, nos reportam à questão da literariedade;

em conformidade ao pensamento de Bentes (2011), podemos discutir que a

narrativa de cunho mítico e as construções linguísticas metafóricas por nós

analisadas compartilham com outros textos ficcionais escritos, de natureza

literária, algumas características, sendo uma destas a metáfora, dado que todos

os seres humanos possuem a capacidade de conceituar, o que nos dá o poder do

pensamento abstrato.

Além disso, o texto narrativo é produzido pela/na experiência. Para Bentes

(2011), uma das características do discurso ficcional é necessariamente a

capacidade de articular diferentes campos de referência que resultem em uma

“transgressão dos limites” de forma a valorizar o imaginário de um modo que

possibilite o alcance da realidade de outro modo inacessível.

Dessa maneira, a prática escritural das narrativas míticas acaba por

instaurar/revelar uma poética que ainda não está enquadrada aos padrões

estabelecidos pela tradição ocidental, mas que requer estudos e pesquisas

direcionadas à literatura indígena. É um assunto que não se esgota aqui, por isso

a necessidade de continuidade deste trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudos e pesquisas que tomam como foco as produções indígenas (mitos,

poesia e contos) são pouco executados no meio acadêmico dos estudos literários.

Há quem defenda, por exemplo, que as criações indígenas necessitam de uma

teoria literária específica e uma metodologia particular (CORTAZZO 2001 apud D’

ANGELIS, 2007 p. 21). Essa especificidade seria influenciada inicialmente pelo

fato de a chamada literatura dos povos indígenas possuir uma estreita relação

com a literatura de tradição oral e sua prática a partir da apropriação de língua

que não é a sua nativa.

Durante muitos anos, as narrativas míticas indígenas foram coletadas nas

comunidades de maneira oral (por vezes na língua nativa e também em língua

portuguesa) e transcritas para a língua portuguesa, proporcionando algumas

perdas da originalidade, riqueza e cultura presentes, visto que a adequação para

a língua portuguesa influenciou o produto final. Outra característica de tais

narrativas é sua atribuição à categoria de literatura infantil ou infanto-juvenil.

As adaptações dos mitos, que mais atendiam ao público infanto-juvenil,

resultam em uma barreira para a análise literária, pois não conferem ao próprio

indígena revelar suas características enquanto narrador e autor.

Neste trabalho abordamos o conceito de mito -ainda que de maneira

panorâmica- dada a sua importância como fonte e princípio norteador da

Literatura. Com base na teoria literária, é possível afirmar que o mito é a primeira

manifestação literária do homem. Muitas pesquisas atuais são voltadas para a

análise do mito presente na literatura, mas pouco há sobre estudos literários do

mito e, quando tratamos de narrativas sagradas míticas indígenas, nos

deparamos também com a concepção de que são obras literárias do gênero

mítico.

Visando contribuir com os estudos literários do mito, dedicamo-nos a uma

abordagem mais minuciosa acerca da estrutura mítica, constituída por aspectos

presentes em todas as narrativas míticas em qualquer sociedade, conferindo-lhe,

assim, um caráter universal. Os três elementos estruturantes -tempo, espaço e

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metáfora- comportam as unidades constitutivas do mito e são aspectos de

extrema relação e relevância para o estudo e compreensão do mito.

Vimos, neste trabalho, que o tempo mítico se apresenta inicialmente como

o tempo primordial, aquele que aborda a origem; no entanto, as narrativas míticas

têm a capacidade de compreender os três tempos: passado, presente e futuro. É

tempo passado, pois narra histórias que se passaram em um tempo que não é o

seu; é presente, pois com a manutenção e repetição do rito, o mito ainda se faz

presente nas comunidades; e é futuro, pois o mito tem a capacidade de ser

revivificado cada vez que é narrado e, assim, alcançar as gerações futuras.

O espaço mítico é um espaço em que o sagrado se manifesta. Não é um

espaço como qualquer outro, mas é um espaço revestido de sacralidade e que

permite que as ações ocorram porque estão inseridas em um determinado

contexto que não é tão somente geográfico. Em contrapartida, temos o espaço

literário, cujo percurso histórico foi apresentado neste trabalho, o qual possui uma

variedade enorme de conceitos.

O terceiro elemento estruturante do mito é a metáfora que, de maneira

conclusiva, consideramos elemento essencial: o mito é uma metáfora.

Temos uma variedade de concepções acerca da metáfora que podem ser

apresentadas de maneiras divergentes ou sobrepostas, mas que individualmente

revelam sua importância para a narrativa mítica. Nossa proposta foi apresentar a

metáfora em sua gênese, os estudos de Retórica e Poética, até chegarmos aos

estudos contemporâneos que permeiam a linguagem e a cognição.

Os estudos literários atribuem que a linguagem é o objeto de investigação

literária. Por tal motivo, nossa pesquisa buscou a análise com base linguística

para discutir as metáforas nas narrativas de cunho mítico. Para a análise,

tomamos como foco, os estudos voltados à Teoria Cognitiva da Metáfora

(LAKOFF E JHONSON, 2002). Compreendemos, ao longo de nossos estudos e

de nossa pesquisa, a compreensão da metáfora conceitual é fundamental para a

compreensão da metáfora literária.

Conforme a Teoria Cognitiva da Metáfora, o elemento metafórico permeia

todas as nossas ações e nossos pensamentos além da linguagem, pois está

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infiltrado no nosso cotidiano. Lakoff e Johnson (2002) afirmam que existe uma

extensão contínua entre as metáforas literárias e as metáforas cotidianas; as

ocorrências da metáfora nas obras literárias acontecem não exclusivamente

porque a literatura contém a linguagem cotidiana, mas porque, mesmo que haja

um desvio das formas mais comuns (cotidianas) de expressão e de pensamento,

a linguagem é realizada a partir de explorações criativas e inusitadas de

mapeamentos metafóricos enraizados em nossos sistemas conceptuais.

Em nossa análise, privilegiamos metáforas em que o domínio de origem é

o espaço, considerando a ocorrência de expressões espaciais disponíveis nas

narrativas através de construções linguísticas metafóricas de ordem

orientacional/espacial. Identificamos, nas narrativas analisadas, construções

metafóricas orientacionais com base espacial, a partir da orientação que o ser

humano possui no meio ambiente em que vive.

Além das metáforas orientacionais espaciais, foi possível a identificação de

metáforas orientacionais de ordem ontológica, pois, conforme a Teoria Cognitiva

da Metáfora, há outro tipo de percepção que habilita o pensar metafórico, visto

que em nosso cotidiano nos habilitamos a lidar com objetos e substâncias de

maneira metafórica. As metáforas decorrentes desse tipo de experiência são

chamadas metáforas ontológicas.

Intentamos, também, nesta pesquisa, através da análise de ocorrências de

construções linguísticas metafóricas literárias e do cotidiano no domínio do

espaço em narrativas com temáticas míticas indígenas, discutir a atitude literária

do narrador. A análise com base linguística serviu de subsídio para revelar o

caráter de literariedade nas narrativas míticas indígenas. Podemos afirmar que as

metáforas expressas através dos esquemas imagéticos elaborados e

apresentados neste trabalho, configuram-se como metáforas literárias novas,

produzidas e trabalhadas de maneira criativa pelos autores indígenas.

A análise das construções metafóricas de cunho conceitual, como base

para a análise das metáforas literárias, revela a riqueza literária presente nos

mitos indígenas e, por isso, avaliamos que esses textos necessitam urgentemente

de um olhar voltado aos aspectos literários, visto que é possível, mediante o

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fenômeno recente da escrita, ouvir a voz do indígena e partilhar um pouco mais

dos seus saberes.

Os resultados aqui apresentados demonstram uma das premissas

fundamentais da Teoria Cognitiva da Metáfora: a que diz respeito ao elemento

metafórico permear todas as nossas ações e pensamento além da linguagem,

pois está infiltrado no nosso cotidiano. As construções analisadas revelaram

modos de “ver” através dos olhos do autor, conforme o contexto em que ele está

inserido e o ambiente de que compartilha. As expressões metafóricas, como

vimos, deixam transparecer modos de conceber eventos de grande importância

para as comunidades indígenas, bem como espaços sagrados e divinos próprios

da experiência destes povos.

Foi um grande desafio, mas ao mesmo tempo um trabalho motivador,

poder trazer à academia uma reflexão acerca da abertura para estudos literários

em narrativas míticas e, principalmente, poder proporcionar a divulgação das

produções escritas indígenas -através de nossa participação em diversos

eventos, com apresentações do trabalho- contribuindo para uma nova e

diferenciada visão do indígena ante a História e na Literatura, uma vez que os

indígenas se tornam os verdadeiros autores de sua história.

Por fim, é importante salientar que não chegamos ao final do caminho. Este

trabalho representa apenas o começo de uma longa caminhada no que se refere

aos estudos literários em narrativas indígenas. Pretendemos continuar

pesquisando futuramente e esperamos que este nosso trabalho inicial seja uma

motivação para que outros pesquisadores também sintam a necessidade e o

desejo em contribuir para o aprofundamento dos estudos da literatura

contemporânea indígena.

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