o ouro dos escravos: metÁforas de expropriaÇÃo de
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O OURO DOS ESCRAVOS: METÁFORAS DE EXPROPRIAÇÃO
DE TERRITÓRIOS NEGROS NO LITORAL NORTE DO RIO
GRANDE DO SUL.
RODRIGO DE AZEVEDO WEIMER
Doutor em História pela UFF, pós-doutorando em História na Unisinos.1
Introdução
Fantasmas misteriosos. Potes de ouro miraculosos. Maldições. Redenções.
Consistiriam tais assuntos domínio do historiador? A constatação, ou não, de sua
veracidade, deixemo-la aos parapsicólogos. Os significados sociais investidos por uma
comunidade negra sobre o universo do além, porém, constitui, não há dúvida, um fértil
terreno para o historiador curioso por aproximar-se do universo simbólico, das crenças
religiosas e até mesmo da história política e econômica dos atores em questão. Segundo
François Dosse, “a lenda, por sua capacidade de provocar a cristalização da crença e
organizar o domínio das representações, é por si mesma um acontecimento histórico”.
(DOSSE, 2009, p. 147-148)
Nesta comunicação, procede-se à análise comparativa de duas lendas acerca de
potes de ouro encontrados por integrantes da comunidade negra de Morro Alto, no
litoral norte do Rio Grande do Sul. Tais episódios, narrados por familiares daqueles que
supostamente localizaram os tesouros, podem ser lidos como uma metáfora dos
processos de expropriação de terras a que a dita comunidade foi submetida ao longo do
século XX (Corrêa, 1978, Barcellos et al., 2004, Weimer, 2013).
A fazenda do Morro Alto situava-se onde hoje é a divisa entre os municípios de
Osório e Maquiné, no entroncamento de um braço morto da BR-101 e da estrada RS-
407. Abarca diversas pequenas localidades – Faxinal do Morro Alto, Ramalhete, Morro
Alto, Barranceira, Aguapés, Ribeirão do Morro Alto, Borba, Despraiado, Prainha –
1 Pesquisa financiada com bolsa FAPERGS / CAPES DocFix. Sou muito grato à antropóloga Rosane
Rubert, já que a hipótese inicial sobre a qual se ampara esta comunicação – de tais relatos como metáforas
dos processos de expropriação fundiária – foi por ela proposta em seminário em dezembro de 2013 em
Pelotas. Constatando sua adequação aos meus dados empíricos, a desenvolvo, não sem creditar a autoria
da ideia inicial.
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interligadas entre si por laços de parentesco e compadrio, práticas culturais e religiosas e
pelo projeto político comum de recuperação de terras expropriadas amparados na
identidade coletiva de “remanescentes de quilombos”. 2
Por todo território são comuns
memórias de fantasmas, aparições, figueiras mal-assombradas.
Seus moradores descendem de antigos escravos que habitavam aquela fazenda –
na maior parte das vezes, os mesmos que “aparecem” para os moradores atuais.
Dedicando-se, entre outras atividades, ao plantio e beneficiamento de cana-de-açúcar, à
criação de gado vacum e aos serviços domésticos – no caso das mulheres mais bem
situadas nas redes de relações que hierarquizavam os cativos entre si – grande parte
daqueles seguiu ocupando o território da fazenda depois de 1888, seja por meio de
posse, do consentimento da antiga família senhorial, da aquisição de terras ou mesmo da
doação de uma parcela pela senhora Rosa Osório Marques.
Uma destas escravas herdeiras de Rosa, Tereza, nasceu no dia 26 de maio de
1856, neta de uma africana homônima.3 Pertencente ao senhor Thomaz Osório Marques
(irmão de Rosa), por ocasião do inventário de seu amo (1883), anexou-se a relação de
escravos efetuada em virtude da lei de 28 de setembro de 1871.4 Nela, Tereza figurava
como costureira. Teve diversos filhos, dentre os quais assinalo Maria, por sua família
estar envolvida nas duas lendas aqui estudadas. Há um registro de seu nascimento em 7
de fevereiro de 18875 – durante, pois, a vigência da lei do ventre livre –; todavia, há que
desconfiar deste dado uma vez que seu centenário foi comemorado por seus
descendentes na aurora da década de 1980. De resto, tudo na vida da “rainha” está
envolvido em névoas que fundem mito e história.
Digo “rainha” porque ela cumpriu um papel ritual no auto afro-católico do
“maçambique” entre fins da década de 1950 e inícios da de 1980, no qual dançantes
negros, ao som de tambores e cânticos padronizados, homenageiam um rei e uma
rainha, igualmente negros, em louvor a Nossa Senhora do Rosário. Maria Tereza reinou
nesta congada entre o fim dos anos de 1950 e inícios dos de 1980, sendo até hoje
2 Reconhecimento como tal por parte do Estado Nacional Brasileiro já obtido, em 2004. 3 Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Centro de História da Família. Microfilme 1391101,
Item 4, Livro 2 de batismos de escravos de Conceição do Arroio, f. 60v. 4 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Cartório de Órfãos e Ausentes – Conceição do
Arroio, estante 159, caixa 027.0338, auto n. 883, inventário de Thomaz Osório Marques, ano de 1883. 5 Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Centro de História da Família. Microfilme 1391101,
Item 4, Livro 2 de batismos de escravos de Conceição do Arroio, f. 60v. Microfilme 1391100 Item 5,
Livro 14 de batismos de Conceição do Arroio, f. 85v.
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lembrada com respeito e devoção como modelo ideal de rainha a que todas as
sucessoras deveriam almejar se assemelhar.
Segundo Antônio Francisco e Manoel Francisco Antônio, dois irmãos, sobrinhos
da “rainha Maria Tereza”, almas de outro mundo indicaram para sua tia a localização de
um tesouro enterrado perto de sua casa, no Ribeirão do Morro Alto, junto às ruínas de
uma casa-grande que até hoje lá estão. Isto ter-se-ía dado em fins da década de 1920. A
outra lenda foi relatada apenas pelo segundo narrador, que afirma que o cunhado de
Maria Teresa, Manoel Felipe, estava arando em terras que arrendara ao fazendeiro L.B.
– de origem italiana –, quando seu arado trancou em uma panela. Avisando L.B., este
lhe disse que marcasse a localização da panela com seu casaco, e na calada da noite
apropriou-se da panela encontrada por Manoel, constatando estar cheia de moedas de
ouro.
Mais do que avaliar a veracidade destes relatos – seja contestando-lhes, seja
dando-lhes aval –, cabe ao estudioso interpretar os significados a eles implícitos.
Conforme veremos, o paralelo entre a destinação dada aos beneficiados por cada um
destes tesouros permite-nos perceber uma maneira cifrada de se narrar um sentimento
histórico de expropriação. A comunicação pretende, portanto, analisar a percepção de
“perda” como uma referência aos territórios expropriados que são parte constitutiva da
memória de uma comunidade que hoje almeja sua reparação, por meio da reivindicação
coletiva como “remanescente de quilombos”.
O território como legado dos escravos
Conforme dito, dentre as atividades econômicas a que se dedicava a fazenda do
Morro Alto no século XIX estavam a lavoura de cana-de-açúcar e a criação de gado. A
partir de meados do século, os proprietários reorientaram suas atividades produtivas
para a pecuária em outros municípios, constatando-se a decadência da Fazenda do
Morro Alto (BARCELLOS et al., 2004). Uma possível explicação para isto está no fim
do tráfico atlântico de escravos, já que a aguardente produzida em Morro Alto, moeda
de troca com os traficantes de escravos, perdia seu mercado consumidor (WEIMER,
2013). O fato é que o final da escravatura encontrou uma grande massa de escravos
ocupando terras pouco proveitosas aos seus proprietários. Esta situação se intensificou
após a guerra civil de 1893-1895, que devastou a região.
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Muitos senhores as alienaram aos antigos cativos, seja por meio de doações, seja
através vendas. Muitos outros descendentes de escravos, porém, seguiram ocupando a
região em que foram escravos (ou seus pais) mediante diversas modalidades. O início
do século XX assistiu, assim, o desenvolvimento na região de uma intensa trama
territorial de um campesinato negro oriundo do cativeiro vinculado por laços de
parentesco reiterados ou diversificados ao longo das gerações; até o presente momento,
em que seus descendentes organizam-se no sentido de reivindicar o território que
presumem lhes pertencer.
Na comunidade de Morro Alto, tal como em outras comunidades tradicionais, o
território não adquire somente expressão como meio de produção, mas também como
espaço no qual estão inscritos memórias, símbolos, lendas, referenciais culturais. Em
suma, este território é organizado e percebido como uma territorialidade; através de
laços afetivos que dão sentido e inteligibilidade à organização espacial. A importância
destes vínculos espaciais estabelece a diferença de suas reivindicações com aquelas da
reforma agrária stricto sensu, dado que não são quaisquer terras capazes de viabilizar a
reprodução de um modo de vida.
Dando alguns exemplos: as diferentes parcelas do território são referenciadas
por meio do nome dos ancestrais escravos que as ocuparam; sua localização é
identificada através de árvores por eles plantadas ou pelas ruínas das senzalas onde
trabalharam; o percurso traçado pelos maçambiqueiros antigos, partindo da Prainha,
atravessando o território de Morro Alto, rumo à cidade de Osório, faz parte dos
referenciais culturais inscritos no território; os “umbigos enterrados” das crianças são
outro referencial, já que por ele se acredita no retorno ao local de nascimento; as casas
dos pais, sobre cujo terreno nada pode ser construído ou plantado, também constitui
uma referência por meio da qual o território é organizado pela cultura.
Todos esses referenciais ajudam a compreender o entendimento do território
como legado dos escravos, para além, simplesmente, da doação de terras aos cativos por
uma senhora generosa. O passado escravista e os vínculos ancestrais, constituintes da
identidade grupal, estão incrustados nas terras ocupadas. Levam a uma percepção mais
aguda, também, do significado daquela luta territorial, na qual não estão em jogo apenas
recursos econômicos, mas também aspectos cruciais uma identidade grupal.
Nesse sentido, os locais onde ocorrem as aparições de assombrações e onde se
acredita haver sido desenterrados tesouros escondidos cumprem, também, o papel de
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referenciais de territorialidade, e muitas vezes eles estão associados à escravidão. O
percurso pelo território oportuniza o relato de diversas lendas e “causos”. No caso
específico de Morro Alto, não há aparições de senhores. Os fantasmas, via de regra, são
negros, e frequentemente explicitados como escravos. Isso se dá porque a gênese dos
tesouros é associada a uma situação de dor e sofrimento. Em primeiro lugar, o “ouro
antigo” teria sido enterrado pelos senhores em períodos de guerras e revoluções.
Rodrigo – E naquela época, tinha muito o hábito de enterrar pote de ouro?
Manoel – Ah, tinha, pois naquele tempo não tinha. Naquele tempo, todo
dinheiro... Não existia banco, não é. Quando vinha aquela revolução, o
dinheiro pra eles não.. Eles vinham... e levavam! A revolução vinha, aquele
povo que vinha pegam, não é. Pegam o que eles acham e levam, então eles davam, pegavam aquele dinheiro e enterravam. O dinheiro, depois de
enterrar, às vezes o cara perde e não acha mais. O dinheiro.6
Porém, uma relação social de dominação estava presente na armazenagem dos
ouro escondido, já que eram os escravos quem cavava os buracos para guardar o ouro e
depois, mortos e sepultos junto ao tesouro.
Francisco – Enterravam a pessoa, faziam fazer o buraco, enterravam e depois
colocavam em cima pra cuidar daquilo ali.
Rodrigo – E quem ficava em cima?
Manoel e Francisco – O morto!
Francisco – Aquele morto, matavam!
Manoel – O senhor matava... matavam a pessoa, enterravam, faziam a cova e
depois matavam a pessoa e tu fica, tu fica cuidando aqui. Por isso que diz que assusta a pessoa aquilo ali que viesse sem ser o dono que deve, que é, que dá
praquilo ali. Eu acredito que deve ser.
Rodrigo – E o senhor matava esse que ele botava, que ele matava e botava ali
pra cuidar, era o escravo?
Manoel – Era escravo! Os escravos! Claro que era escravo!7
Percebe-se, portanto, que estas lendas8 estão inscritas no território e, tal como
outros referenciais, identificam aquele grupo étnico com sua terra e comunicam
demandas presentes com um passado que, a um só tempo, é reconstituído e investido de
fundamento para as lutas do presente.
O ouro dos escravos como etnotexto das comunidades remanescentes de quilombos
A noção de etnotexto foi proposta pelo historiador oral Philippe Joutard. Ela
vem sendo desenvolvida por historiadores brasileiros, particularmente por aqueles
6 Entrevista com Manoel Francisco Antônio por Rodrigo de Azevedo Weimer em Osório, no dia 10 de
outubro de 2013. Na ocasião, o entrevistado tinha 93 anos. 7 Entrevista com Manoel Francisco Antônio por Rodrigo de Azevedo Weimer em Osório, no dia 10 de
outubro de 2013.
8 Não me proponho, neste artigo, a uma análise dos significados simbólicos das lendas no que toca à
relação entre vivos e mortos; isso já foi feito em Weimer (no prelo).
6
dedicados à história da escravidão e do pós-Abolição. O autor propôs a noção, em lugar
de “tradição oral” ou “cultura oral”, por encontrar potencial heurístico mais fértil: “Por
etnotextos, deve-se entender antes de tudo os textos orais, literários ou não, dialetais ou
em francês, que tenham um valor de informação etnológica, histórica, linguística.”
(JOUTARD, 1980, p. 176).9 Assim, a abordagem de textos orais com base nesta noção
possibilita a apreciação de seu valor etnológico – no caso, a relação comunitária com o
território e sua expropriação.
A proposta de pesquisa em torno dos etnotextos é mais modesta do que a
pretensão estruturalista de dar conta de estruturas invariantes: ela é flexível o suficiente
para dar conta da diversidade humana e, ao mesmo tempo, mais rigorosa do que relatos
sem pretensões de generalização. Parece, em suma, um conceito em construção, mas
com potencial explicativo que não pode ser desprezado. Neste ponto, portanto,
verificaremos que a presença de relatos sobre tesouros escondidos e assombrações não é
uma exclusividade dos narradores do quilombo do Morro Alto.
Para Joutard, os documentos orais são produzidos pelos pesquisadores e, como
tal, a crítica das fontes não deve se dar “somente sobre o texto obtido, mas sobre o
procedimento que permitiu sua obtenção, pois a intervenção do arquivista oral é
evidente” (JOUTARD, 1980, p. 179). Mas, como destaca Hebe Mattos (2005, p. 40),
em projeto de história oral abarcando o sudeste brasileiro, ainda que informados pelo
interesse dos historiadores pela temática da escravidão, são impressionantes as
coincidências narrativas entre entrevistados de lugares diferentes: “faz emergir, de fato,
uma memória coletiva regional, produzida historicamente nas antigas áreas cafeeiras do
sudeste”. Joutard assinalou, ainda, que o registro escrito de textos orais pode ser
considerado uma modalidade etnotextual, e nesse sentido Mariza Carvalho Soares
analisou a documentação referente a irmandades de negros no Rio de Janeiro colonial
como “um texto étnico”, que configurou um trabalho verdadeiramente inovador sobre
etnicidade no século XVIII (SOARES, 2000).
A entrevista com o falecido Antônio Francisco10
foi realizada no dia 22 de
fevereiro de 2002, pelas antropólogas Miriam Chagas, Cíntia Müller e Mariana
Fernandes no contexto de elaboração do relatório de reconhecimento histórico-
antropológico de Morro Alto – de cuja equipe o autor deste texto foi partícipe. Ainda
9 Tradução minha. 10 Ignoro sua idade na ocasião, porém “Antônio Chico” era mais novo que seu irmão Manoel Francisco
Antônio. Ele já é falecido.
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que isso pudesse sugerir uma maior predisposição para se falar do passado escravista
que se acreditava dar embasamento às demandas territoriais, este não parece ser o caso
deste entrevistado. Com efeito, ele não estava envolvido diretamente com a mobilização
política, sendo, inclusive, bastante desconhecedor de vários aspectos dela. As
referências à escravidão estão subordinadas às referências ao “mundo do além”, estas
sim priorizadas pelo entrevistado. Antônio era autoridade eminente no maçambique e
pai-de-santo. Supondo haver uma “divisão familiar de atividades”, ele certamente
preocupava-se com as dimensões místicas e religiosas, e não políticas – estas, com
maior envolvimento pelo seu irmão Manoel. Desta maneira, falou muito sobre sua tia
Maria Tereza, pelo seu lugar de destaque no grupo de maçambique, e na interface deste
aspecto com sua inclinação a observar o mundo do além, veio à tona o relato do pote de
ouro.
Ao contrário do seu irmão, Manoel Francisco Antônio sempre foi politicamente
engajado. Participou de mobilizações brizolistas nos anos 60, foi preso pela ditadura
militar e nos dias de hoje é o Presidente de Honra da associação comunitária que
encabeça a luta pelos direitos étnicos de Morro Alto. Ele está predisposto a encarar o
mundo sob uma ótica bastante secularizada. Ainda assim, ambos narraram com
seriedade e convicção suas histórias. Manoel, por exemplo, confessou acreditar nesse
tipo de narrativa, por já ter visto espíritos – note-se, porém, sempre a crença do ponto de
vista da experiência empírica. Mais do que superstições, o que uma leitura etnocêntrica
poderia sugerir, temos significados compartilhados cuja densidade cumpre tentar
penetrar. Enfim, parte de um “etnotexto”.
Sua entrevista, feita por mim em 10 de outubro de 2013, foi realizada em um
contexto bastante distinto: uma pesquisa de pós-doutorado visando a escrita de uma
biografia de sua tia e, portanto, com um questionário relacionado a alguns apontes sobre
sua vida. De certa forma, a entrevista foi simétrica à de seu irmão. Se Antônio
desenvolveu seu raciocínio sobre aspectos religiosos em uma entrevista motivada por
motivações políticas, Manoel frequentemente procurou direcionar a entrevista para as
mobilizações étnicas ou faccionalismos comunitários, ainda que tenha, também, falado
sobre sua tia. Especificamente, o relato sobre o pote de ouro reproduziu fala que tivera,
espontaneamente, sobre o assunto na véspera da entrevista.
Narrativas sobre tesouros enterrados não são raros entre as comunidades
remanescentes de quilombos no Rio Grande do Sul. Anjos (2004) constatou, por
8
exemplo, na comunidade de São Miguel (município de Restinga Seca), a existência de
narrativas referentes a tesouros enterrados. Há recorrência, ainda, do relato sobre o
depósito de cadáveres de negros junto ao ouro; no entanto, na narrativa analisada o
escravo foi bem-sucedido ao fugir no momento em que sofreria aquela violência. Por
essa razão, o autor propôs o dinheiro como um mediador “entre os dois tempos de
cativeiro, o tempo enterrado do cativo negro, submisso, desse que adere à maldade dos
senhores, e o outro tempo ainda de cativeiro, mas em um outro tipo de relação essa que
permite a fundação do processo de emancipação: a aquisição de terras próprias”.11
Ainda que em outros relatos não exista esse aspecto, o vínculo simbólico entre o ouro
enterrado e uma territorialidade que remete ao cativeiro converge com os exemplos a
seguir. O mito relatado por Anjos é simétrico aos encontrados por outros pesquisadores;
bastante similar, ainda que com sinais trocados.
Rubert (2010 p. 2) propõe que relatos colhidos em quilombos da região central
do Rio Grande do Sul “abordam em um outro plano de linguagem a experiência do
cativeiro”, na medida em que a condição cativa implicava em uma vida “enterrada” a
fim da satisfação da riqueza material de outrem. Essa interpretação vem ao encontro dos
dados aqui apresentados, referentes à perda da vida do escravo visando conservar
intacto o tesouro senhorial.
Da mesma forma, Rubert, Rosa e Monteiro (2011), em seu estudo acerca da
comunidade de Rincão dos Negrinhos, atentam para os tesouros enterrados como
símbolo da escravidão inscrito no território. Da mesma forma, a “desistência dos ‘de
fora’ em arrancar o tesouro indica claramente para o reconhecimento externo de que o
território está fragilizado e amputado, mas ainda resguardado por uma autoridade
coletiva difusa”. No entanto, voltando ao caso aqui analisado, em Morro Alto não há
essa renúncia em expropriar o território simbolizado pelo tesouro.
Na comunidade de Cambará, no limite entre Caçapava e Cachoeira do Sul,
Marcelo Moura Mello (2012, p. 237) também constatou a presença de mitos referentes a
tesouros enterrados, zelados por um escravo. Ocorre que o autor também assinala que
estas lendas não remetem apenas ao passado e à realidade escravista; pelo contrário, sua
presença vem à tona de forma constante, quando a cobiça material implica tentativas de
desenterrá-lo. Portanto, a apropriação do ouro está associada à ambição material –
11 A comunidade estudada pelo autor estabeleceu-se a partir da aquisição de terrenos pelos ex-escravos.
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substancializada, inclusive, no presente –, convergindo com a interpretação que aqui se
assume.
A perda do ouro de Maria Tereza
Agora que já vimos os vínculos simbólicos entre o ouro enterrado e a
territorialidade, vamos nos deter com mais vagar sobre os mitos. Existem dissonâncias –
os mitos não são uniformes e comportam variações12
– entre as versões de Antônio e
Manoel. Mais que isto, porém, existe um pano de fundo comum que as conecta: o
tesouro é indicado por um fantasma, encontrado pela futura rainha, que era considerada
merecedora disto porque a ela ele estava predestinado. A principal diferença reside na
maneira pela qual a “assombração” apontou a localização do tesouro. Segundo Antônio,
sua tia ouvia muitos barulhos aterrorizantes – particularmente louça quebrada – vindos
da direção das ruínas. Assustada, planejou partir, mas um dia ouviu uma batida na porta,
quando “aquele moreno” lhe chamou, dizendo:
Maria, eu tô esses anos todos sem descanso na minha vida, se eu ganhei... eu
tô tomando conta de um objeto aqui e tu fez a tua casa quase em cima. Ela
contava. Disse ali do lado da porta casa do lado cerca, casa de madeira,
continue dali pra cima. Então ela aí disse... aí ela ficou, assim, aí falou, não
precisa ter medo de mim. Disse eu tenho objeto, tu não tem marido, tu vive lutando pra sobreviver, eu te achei tu sofrendo tanto, eu tenho um objeto pra
te dar que eu mereço a minha salvação.13
No relato de Manoel, pelo contrário, a localização do tesouro foi indicada em um
sonho recorrente de sua filha Antonieta. Segundo ele, muitos procuraram pelo ouro,
12 Segundo a interpretação lévi-straussiana, o mito constitui uma “máquina para subtrair o tempo” (Lévi-Strauss, 1996a, p. 25). Parece redundante insistir no caráter a-histórico da leitura do estruturalista francês,
crítica que geralmente lhe é dirigida da parte de historiadores; contudo, uma observação mais detida de
seus trabalhos evidencia que a história desempenha seu papel e que os mitos têm uma historicidade e
variações que não são ignoradas – ainda que não tratados com o rigor com que um historiador o faria.
Ainda que sujeitos a variações diacrônicas e espaciais, o que Lévi-Strauss ressalta é que cada
manifestação mítica em particular – inclusive com variações no tempo – opera no presente. Em outros
termos, mitos, digamos, entre 1950 e 2000 certamente apresentam variações; mas o relevante para Lévi-
Strauss é que, antes de mais nada, eles “presentificam” esquemas simbólicos que, naqueles determinados
momentos, adquiriam eficácia simbólica naqueles presentes – 1950 ou 2000. É nesse sentido que se
subtrai o tempo. O antropólogo francês propõe que a mitologia, ao mesmo tempo em que ordena
episódios em um tempo pretérito – “as origens” – opera contemporaneamente, na medida em que define universos simbólicos que extrapolam o tempo primordial. Trata-se de uma “sequência de acontecimentos
passados, mas também esquema dotado de uma eficácia permanente” (Lévi-Strauss, 1996b, p. 241). Mito,
portanto, não representa arcaísmo ou inverdade, mas, pelo contrário, esquemas lógicos que funcionam no
presente e nele adquirem sentido e veracidade. No caso específico do mito observado: ainda que com
variações de narrador – Antônio Francisco e Manoel Francisco Antônio – e no tempo – 2002 e 2013 – o
mito evidencia esquemas simbólicos que funcionavam no momento da entrevista para ambos – e
provavelmente para a comunidade de que fazem parte, ao menos entre as pessoas de sua mesma geração. 13 Entrevista com Antônio Francisco por Miriam de Fátima Chagas, Mariana Balen Fernandes e Cíntia
Beatriz Müller em Osório, no dia 22 de fevereiro de 2002.
10
porém sempre eram rechaçados por chuvas de pedras ou assombrações. Ele destaca que
uma família vizinha de Maria Tereza e que ali vive até hoje não deixa ninguém se
aproximar daquela localização; porém não se atreve a ali escavar. Sabem que a futura
rainha apenas encontrara o tesouro porque “era para ela”: fazia-se merecedora por sua
bondade e vida árdua. Este elemento também está presente no relato de Antônio
Francisco:
E tu não precisa dizer nada pra ninguém, eu tô dizendo pra ti, tu guarda
dentro de ti, logo de noite tu vai mexer ali. (...) Disse, tu cava um pouquinho
ali, dali por diante tu não vai mais precisar trabalhar, eu vou te dar uma ajuda
pra ti, porque eu mereço descanso. E eu foi feito assim, assim pra mim cuidar
disso, meu filho tu tá vencido, eu me lembrei de ti, tu tem coração tão bom, tu ajuda tanto as crianças, vou te ajudar com isso ai. Tu pode mexer, tu pode
mexer que eu vou botar na tua mão.14
Os relatos convergem quando se afirma que ela efetivamente encontrou o pote
de ouro, cavando no local indicado, e partiu para Osório – segundo Antônio Francisco,
“para não se complicar”,15
onde comprou uma quadra inteira, aquela em que na
atualidade localiza-se o corpo de bombeiros.
Já Manoel aponta para um desfecho menos favorável. Segundo ele, sua tia não
sabia o valor que o ouro tinha, e tampouco o que fazer com ele. Sua filha Isabel
trabalhava com “um doutor” em Porto Alegre “que morava perto do estádio do Grêmio”
e dispôs-se a vender aquela fortuna. Ao que consta, ele subavaliou o tesouro achado por
Maria Tereza e ficou com a diferença para si. “A Maria Tereza não conhecia nada.”
“Enganaram ela.” Relata, resignado.
A perda do ouro de Manoel Felipe
Manoel Felipe era irmão de Abel Felipe, marido de Maria Tereza. Tal como a
cunhada, encontrou um pote de ouro – tais informações, todas, constam do relato de
Manoel –, porém, no seu caso não houve intervenção do além e tampouco chegou ele a
saber que havia encontrado ouro. O episódio foi o seguinte: L.B. pediu para Manoel
Felipe para arrendar um terreno dele, contrato este que foi aceito. A narrativa não
esclarece o porquê do arrendador lavrar as terras do arrendatário, mas isto teria
acontecido e enquanto o fazia em terreno de sua propriedade, trancou o arado em uma
14 Idem nota anterior. 15 Idem nota anterior.
11
coisa que se revelou ser uma panela. Como era “muito inocente”16
, foi contar o ocorrido
a L.B.
Manoel [imitando a fala de Manoel Felipe] – “seu L., eu ia lavrando, seu L.,
lá, quando eu tava lavrando trancou, o arado trancou numa coisa e o boi não
podia puxar, não podia e puxou o boi pra trás... E eu ia... É mesmo, seu L.
Aqui embaixo. O senhor viu, mas é uma panela. Uma panela.” Ele dizia
sempre, uma panela. E o velho L., decerto que que ele já cismava que tinha
alguma coisa, não é. Pra ver como é pra ser pra pessoa. Aí ele disse, Manoel, larga isso lá, larga esse boi, e bota o casaco lá em cima, que conforme de
noite nós vamos lá. Pra ver essa panela. Vai num, bota o casaco, lá em cima
desde em cima. O velho Manoel foi lá, descangou o boi, como ele mandou,
gente muito burra, parada, né, ele, quando foi de noite, ele sonhando, isso o
falecido Manoel, que não era de mentir, ele viu o cara ir lá, pegar o casaco,
pegar a panela nas costas e botou o casaco em cima da panela. Por que que os
L. B. tão podre de rico?
Francisco – Os donos das praias tudo.
Este “causo” foi narrado em contraposição ao fato de Maria Tereza “nada
saber”, o que ressalta uma característica bastante valorizada por Manoel Francisco
Antônio, ser “ladino”. Palavra originalmente utilizada para os escravos africanos que já
possuíam algum domínio da língua portuguesa, da cultura e do funcionamento da
sociedade colonial; na acepção dada por Manoel há um quê de esperteza, senso de
oportunidade, conhecimento da realidade, saber no que focar e o que procurar. Portanto,
ao utilizar palavras depreciativas para referir-se ao desconhecimento por parte da tia e
seu cunhado, eles parecem ser responsabilizados pela perda por eles sofrida; enquanto a
exaltação do expropriador como “ladino” oculta uma mal-dissimulada admiração.
Conclusão: a perda do ouro como metáfora de expropriação
Demonstrados os elos entre o ouro oriundo do período escravista com o
território ao qual se conecta por vínculos simbólicos e afetivos, não resta muito difícil
inferir os laços consequentes entre a perda deste ouro e a perda do território. Além deste
vínculo lógico, há bastantes evidências que reforçam este argumento.
Em primeiro lugar, o local onde L.B. se apropriou do pote de ouro eram terras
pertencentes a Manoel Felipe. Em outros termos, a terra, literalmente, aparece como
vetor do processo expropriatório do qual o ouro é alegórico. De onde resulta que, em
um momento posterior L.B. figura como podre de rico e dono das praias; ou seja, às
custas de bens retirados da terra de outrem. Por outro lado, o desenrolar da lenda do
ouro encontrado por Maria Tereza implicou no abandono da terra ancestral por parte
16 Este é o mais favorável dos adjetivos utilizados na narrativa. Também foi qualificado pelo sobrinho da
cunhada – que também era seu primo em quarto grau – de “burro”, “não sabia nada”.
12
desta, ao mesmo tempo em que um terceiro se beneficiava de algo encontrado em suas
terras.
Extrapolando para dados relativos a momentos diferentes de pesquisa de campo,
lembro que em uma ocasião, em conversa informal – durante o trabalho de campo de
minha pesquisa de doutorado – em sua cozinha, a senhora Diva Inácia Marques – cujo
pai era primo-irmão tanto de Maria Tereza quanto de Manoel Felipe – me perguntou,
com uma certa de malícia, se eu não era italiano. Diante da negativa, ela fez a confissão
de que não gostava de italianos porque L.B. apropriara-se de terras de seu pai no
Despraiado.17
Assim sendo, se ainda restar dúvidas sobre o fato do ouro apropriado por L.B.
metaforizar a perda de territórios, há este relato literal e explícito sobre seu papel na
memória coletiva como sujeito expropriador de terras, aspecto que aparece também em
entrevistas gravadas com sua prima e o filho desta.18
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17 Diário de campo de 14 de julho de 2010 em Osório. 18 Entrevista com dona Ercília Marques da Rosa e Wilson Marques da Rosa no dia 26 de agosto de 2001
na Prainha. Entrevista realizada por Cíntia Müller, Mariana Fernandes, Alessandro Gomes e Cíntia Rizzi,
entrevista com Wilson Marques da Rosa e Marilda Aparecida Souza da Rosa no dia 20 de janeiro de 2010
em Capão da Canoa, entrevista com Wilson Marques da Rosa no dia 22 de junho de 2010 em Porto
Alegre.
13
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(c.1847 – tempo presente). Tese de doutorado em História, Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2013.
Fontes orais e cadernos de campo19
Diário de campo de 14 de julho de 2010 em Osório.
19 À exceção das especificadas, todas entrevistas realizadas por Rodrigo de Azevedo Weimer.
14
Entrevista com dona Ercília Marques da Rosa e Wilson Marques da Rosa no dia
26 de agosto de 2001 na Prainha. Entrevista realizada por Cíntia Müller, Mariana
Fernandes, Alessandro Gomes e Cíntia Rizzi.
Entrevista com Antônio Francisco por Miriam de Fátima Chagas, Mariana Balen
Fernandes e Cíntia Beatriz Müller em Osório, no dia 22 de fevereiro de 2002.
Entrevista com Wilson Marques da Rosa e Marilda Aparecida Souza da Rosa no
dia 20 de janeiro de 2010 em Capão da Canoa.
Entrevista com Wilson Marques da Rosa no dia 22 de junho de 2010 em Porto
Alegre.
Entrevista com Manoel Francisco Antônio por Rodrigo de Azevedo Weimer em
Osório, no dia 10 de outubro de 2013.