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    vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 125-140Sala aberta

    Os dois teatros

    Marie-Madeleine Mervant-Roux1

    O presente artigo, publicado no Japo em 20112, foi produzido a partir de umapalestra ministrada na Universidade de Waseda, no dia 14 de dezembro de2007, para o grupo de pesquisa/traduo da obra Quest-ce que le thtre ?(O que o teatro?) de Christian Biet e Christophe Triau3.

    1. Retrospectiva: do teatro amador ao teatro dos amadores

    Quando demos incio presente reflexo, em 1998, havia na Frana uma imagem

    bastante negativa do teatro dito amador. Ele era visto como uma forma degradada,

    como uma plida cpia do teatro profissional. Essa imagem era em parte fundamen-

    tada na definio jurdica deste ltimo, formulada recentemente, em um decreto de

    dezembro de 1953. Esse texto havia sido elaborado em um contexto muito particular,que analisamos a seguir: no perodo imediatamente aps a guerra, as profisses do

    espetculo se reoganizaram. Elas se redefiniram pela diferena, ou at mesmo pela

    oposio, s prticas dos amadores, em plena efervescncia na poca, A palavra

    amador, que at ento era um substantivo soberbo e elogioso (denotando aquele

    que aprecia uma arte e, eventualmente, a pratica), mesmo que a conotao de incom-

    petncia j existisse h muito tempo se tornou um adjetivo, sinnimo de no-profis-

    sional. Pela primeira vez na histria, essa prtica livre, plenamente difundida, do fazerteatral e da representao em pblico, era definida negativamente, ou seja, definida

    pelo que ela no era. Os redatores do decreto de 1953, que aspiravam aprimorar e

    apoiar essa atividade, como o faziam as associaes de educao popular, contribu-

    1 ARIAS/CNRS (Laboratrio de Pesquisa em Intermidialidade e Artes do Espetculo do Centro Nacional de

    Pesquisa Cientfica, Frana)

    2 MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine. "Les deux thtres", in: Theatre and Film Studies 2010, International Institute

    for Education and Research in Theatre and Film Arts Global, Waseda University, Vol 5, 2011, pp. 159-176.

    3 Obra no publicada no Brasil. Referncia da obra original : BIET, Christophe e TRIAU, Christophe. Quest-ce que

    le thtre ?. Paris : Gallimard, 2006. Coleo Folio Essais .

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    ram, na realidade, para sua desvalorizao, mantendo somente o critrio econmico

    para defini-lo; nesse texto o que caracteriza de fato o grupo amador juridicamente

    que ele no remunerado. Nosso primeiro trabalho, fundado nas observaes e nas

    experincias pessoais dos participantes, consistiu em propor e verificar uma hiptese

    bem diferente: que o teatro dos amadores possui originalidade e autonomia. E foi

    procurando reconstituir sua gnese que encontrei o trabalho de lie Konigson sobre o

    caldeiro medieval4 segundo a expresso do jurista-antroplogo Pierre Legendre.

    1.1. Um dado histrico: os dois modos de desenvolvimento iniciais da funo dramtica

    lie Konigson, diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Cientfica

    (CNRS, Frana), especialista em Idade Mdia e Renascimento, relacionou o desenvol-

    vimento de uma importante vida teatral na Europa existncia, nas cidades pr-indus-

    triais ocidentais, de uma funo que ele chama seguindo os historiadores e especia-

    listas em geografia humana de funo dramtica, que ele mostra ser estreitamente

    associada s outras funes genricas que so as funes de troca e de legislao5.

    No perodo que ele estuda (sculos XIV e XV) e no campo europeu, ele distingue

    dois modos de desenvolvimento dessa funo dramtica:

    um teatro profissional, fundamentalmente itinerante, que de imediato um

    teatro de ruptura em relao ao tecido social da urbe. Podemos ilustrar sua

    descrio pelo famoso exemplo da commedia dellarte.

    um teatro amador (termo, em verdade, anacrnico, visto que essa noo s

    aparecer bem mais tarde), que um teatro de centro, de inscrio urbana,

    de reconhecimento recproco entre atores ocasionais e espectadores, todos

    concidados. Ele possui um papel essencial na manuteno dos valores, das

    ordens sociais e dos cdigos comuns. As Paixes encenadas (outro termo

    anacrnico) nas grandes cidades do norte da Frana ou da Sua, estudadas

    por . Konigson em muitas obras6, fazem parte dessa categoria.

    4 Nota da tradutora : A expresso original em francs creuset mdieval, literalmente cadinho medieval.

    5 Ver seu estudo : Marges et lisires du jeu thtral, in: Du thtre amateur. Approche historique et anthropologique.

    Paris : CNRS ditions, 2004, pp. 16-22.

    6 Milagres, a partir do sculo XIV, mistrios nos sculos XV e XVI e, provavelmente de formulao comparvel

    no que diz respeito s relaes com o espao urbano ou domstico e ao status dos intrpretes, os poucos raros

    fazeres teatrais no religiosos de associaes civis do sculo XIII francs. Ver por exemplo: KONIGSON, lie.La place du Weinmarkt Lucerne ; remarques sur l'organisation d'un espace dramatis, in: Thtre, Histoire,

    Modles. Recherches sur les textes dramatiques et les spectacles du XVe au XVIIIe sicle, estudos reunidos

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    Essa proposio, formulada de modo bastante claro em uma palestra para espe-

    cialistas de teatro de rua7, chamou minha ateno: ela fornecia um incio de resposta

    questo da identidade do teatro amador moderno, eliminando um grande nmero

    de ideias preconcebidas. Ela se opunha confuso generalizada, inclusive em meio a

    teatrlogos, entre teatro amador e teatro de feira. Os atores amadores das Paixes so

    evidentemente sedentrios e, portanto, conhecidos por todos. Os errantes, s margens

    do teatro europeu moderno, so os profissionais. Na crtica dos mitos teatrais, . Koni-

    gson vai assim ao encontro de um outro historiador, Ferdinando Taviani, autor de obras

    de referncia sobre a commedia dellarte:

    Por uma ironia da histria, justamente esse teatro fechado [a commediadellarte], produzido de modo bastante econmico por pequenos grupos,atentos s leis de mercado e capazes de combinar com uma grande

    habilidade profissional uma considervel repetitividade com uma aparenteversatilidade de formas, esse teatro capaz de migrar para qualquer cantoda Europa, que se revelou aos pesquisadores modernos (sobretudo e antesde tudo aos no-italianos) como o teatro mais popular de seu tempo, o maiscoral, produto direto dos costumes e da mentalidade da praa pblica,enraizado nos traos originais da cultura nacional italiana8.

    1. 2. Dois grandes modelos antropolgicos

    A histria esclarecia assim nossa reflexo sobre o presente. Encontramos primei-

    ramente, em lie Konigson, a ideia de um duplo desenvolvimento inicial do teatroeuropeu. Entre os fazeres teatrais locais (como os mistrios da Paixo, por exemplo),

    assumidos pelos patrcios das cidades, e as primeiras trupes profissionais, compostas

    por atores de verdade (organizadas no modelo da Commedia), no havia dois modos

    de fazer a mesma coisa, uma paga e a outra no, mas dois modos bem distintos de

    realizao da funo dramtica. Tambm pudemos constatar que os traos essenciais

    da distino original eram os que observvamos entre as realizaes do amadorismo

    moderno e as companhias de profissionais contemporneos. No caso dos espetculosde amadores contemporneos (ou dos mistrios), a atividade dramtica no faz perder

    quele que a exerce o seu status social; ela , ao contrrio, um modo de viv-lo. Uma

    das consequncias desse fato que essa atividade em si no , nesse caso, definida

    e apresentados por . Konigson. Les Voies de la cration thtrale, vol. VIII, Paris: ditions du CNRS, 1980.

    Coleo: Arts du spectacle, pp. 43-90.

    7 Traditions et lisires, in: Les Rendez-vous de Lieux Publics, Marseille, 1993, pp. 14-17.

    8 Positions du masque dans la commedia dellarte , in: Le Masque. Du rite au thtre (dir. Odette Aslan et Denis

    Bablet), Paris: CNRS ditions, 1985, p. 127.

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    socialmente.Aindefinio, ou seja, a ausncia de status de ator amador como tal, a

    ausncia para aquele que interpreta de uma ruptura franca com os cdigos da socie-

    dade, a ausncia de uma inscrio franca na esfera esttica, faz sua diferena real

    em relao atividade, igualmente mimtica e ldica, praticada pelo ator profissional

    (tanto hoje como antigamente), pois este, interpretando, encarna de algum modo o

    teatro oficialmente. evidente que essa diferena de natureza antropolgica e que

    ela no poderia ser reduzida a uma simples oposio entre lucrativo e no-lucrativo.

    Os efeitos disso so bastante impactantes no desempenho do teatro e da relao com

    os espectadores. O ator amador, por exemplo, no pode interpretar qualquer papel,

    pois sua figura social nunca desaparece de sua figura cnica, pelo menos do ponto

    de vista do pblico. Este, dedicando cena apenas parte de seu tempo, no constri

    metodicamente um corpo e um rosto especfico para o teatro.

    Alm do que diz respeito ao indivduo-ator, trs traos maiores do amadorismo

    dramtico primitivo encontram-se claramente refletidos nas manifestaes contempo-

    rneas do amador:

    as razes sociais (no s atravs de praticantes cujo papel principal como

    vimos no o de ser ator, mas tambm atravs de comunidades de interpre-

    tao limitada9 que constituem suas plateias). Encontramo-nos em espaos

    privados, semiprivados, semipblicos;

    a grande homogeneidade e frequente reversibilidade dos atores em especta-

    dores e vice-versa;

    a predileo pela estrutura dramtica, em relao ao trabalho especifica-

    mente cnico, caracterstica de profissionais.

    Desse modo, o que era um dado histrico se tornou uma matriz estrutural, ponto

    de partida de uma evoluo dupla, que reconstitumos parcialmente, com duas formas

    de expresso dramtica, dois tipos de espao cnico (aspecto que desenvolveremos

    mais adiante), dois tipos de relao com o texto e com a fico, dois tipos de inter-

    pretao. Comeamos a perceber nas atuais prticas do amador, no a continuao

    direta do modo dramtico pr-industrial, minuciosamente descrito por lie Konigson,

    (a sociedade e a cidade mudaram. O primeiro amadorismo verdadeiro, o do Sculo das

    luzes, nasceu da secularizao do modelo paralitrgico), mas sim uma nova variao

    9 Expresso de Laurence Allard (aqui traduzida literalmente do francs: communauts dinterprtation restreinte)

    em relao aos clubes de cineastas amadores.

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    dessa outra organizao do evento teatral, fundamentalmente diferente da mais fami-

    liar aos pesquisadores acadmicos, organizada e ministrada por artesos.

    A lio principal dessa ida e volta entre passado e presente terica. E decisiva:

    no estamos em presena de um modelo teatral nico, com uma forma pura e uma

    forma degradada, mas sim de dois modelos diferentes.

    1.3. A cena original dos amadores

    Agora podemos estudar as qualidades em si de um teatro que j foi dito sem

    qualidades. Recentemente, dedicou-se, na Frana, uma pesquisa sua dimenso

    esttica. A expresso dramtica amadora adquiriu de fato caractersticas prprias com

    o tempo, das quais algumas foram descritas e analisadas ao longo de nosso estudo.

    Ela estabeleceu progressivamente um repertrio especfico (muitas comdias, teatro

    narrativo, teatro para dizer); ela se organizou segundo os ritmos temporais que

    no correspondiam temporada profissional (o grupo amador ensaiava ainda

    ensaia no inverno e apresenta no vero); ela se dispersou em salas e lugares

    dspares constituindo espcies de margensinternas nasociedade, esses espaos

    de representao se mostram verdadeiros espaos marginais (desenvolveremos

    este ponto adiante). A noo de margem interna importante: se o adjetivo interno

    sublinha a ausncia de ruptura com os cdigos sociais, o substantivo margem

    restitui a funo ldica e distanciadora do teatro, inclusive do teatro amador.

    realmente necessrio, contra uma tendncia sempre recorrente, no identificar o

    teatro dos amadores, inclusive o mais antigo, com um teatro de festas, procisses,

    desfiles e quermesses simpticas. Nem com uma cena consensual. Uma produo

    amadora pode ser perfeitamente transgressiva, mesmo que a estrutura na qual ela

    se inscreva, como vimos, no o seja.

    Para concluir esta primeira explanao: fazer teatro como amador no fazer

    o mesmo teatro que os profissionais, s que gratuitamente e mais canhestramente.

    , sem dvida, ter menos proficincia pois, estatisticamente, a experincia bem

    menor. , sem dvida, no viver disso e nem mesmo tent-lo. Mas a diferena crucial

    diz respeito natureza do cenrio onde se do as apresentaes, sem ruptura com

    a cena social. Para os praticantes, uma perspectiva bem diferente. A ideia regular-

    mente emitida nos relatrios departamentais desde os anos 90, segundo a qual os

    dois teatros desembocariam um no outro, como vasos comunicantes, despejando

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    magicamente no frasco dos amadores o transbordamento de atores profissionais

    (desempregados), comprova uma ignorncia de suas duas especificidades.

    Pudemos chegar a este resultado porque nossa abordagem se baseou inicial-

    mente na etnografia (observao, prticas, estudos de campo, anlise de arquivos

    locais, incluindo anlises de discurso e de identificao), complementada pela antro-

    pologia histrica praticada por lie Konigson, mas tambm pelo momento decisivo

    que foi o sculo XVIII, segundo Martine de Rougemont ou Marie-Emmanuelle Plagnol-

    -Dival. Pudemos, desse modo, tomar uma distncia crtica em relaao s abordagens

    sociolgicas, as nicas existentes no domnio do amadorismo, que no colocavam

    prova nem a definio oficial do teatro dito amador, nem as imagens dadas. Elas

    foram, ao contrrio, reforadas por elas.

    2. Lugares e espaos dos dois teatros

    Referindo-nos abordagem semiolgica de Anne Ubersfeld, definiremos lugar

    como um elemento concreto topologicamente determinvel. O espao teatral um

    edifcio, sala ou um terreno equipado, ao ar livre, geralmente urbano, no qual se situa

    o lugar cnico, palco construdo ou simples espao cnico. Espao uma categoria

    genrica abstrata. Diferencia-se o espao cnico, organizado simbolicamente, do

    espao do jogo10 (do ponto de vista do ator) e do espao dramtico (do ponto de vista

    do espectador), ou seja, o espao no qual se acredita, ligado fico fundamental. As

    expresses espao dramtico e espao teatral so intercambiveis nesse contexto.

    2.1. A geografia do teatro amador

    Atualmente, como no passado, os edifcios (e de um modo geral os lugares) onde

    se desenvolve o teatro amador, com excees em alguns contextos, no so os mesmos

    onde se desenvolve o teatro profissional. Em vrias pesquisas recentes, as vistoriasregionais ou departamentais encomendadas pelo Gabinete de Prticas Amadoras do

    Ministrio da Cultura e da Comunicao11 vo na mesma direo. Em Paris, cidade

    onde a implantao histrica das salas de espetculo de conhecimento geral, pode-se

    falar de um arquiplago teatral amador invisvel, de uma rede de locais de ensaio e de

    apresentao praticamente desconsiderados pelo mundo profissional e por seus espec-

    10 Nota da tradutora : Espace de jeu ambguo em francs, pois o termo jeu pode ser entendido neste

    contexto como jogo ou interpretao.

    11 Gabinete criado em 1998 pela Ministra da Cultura da poca, Catherine Trautmann.

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    tadores. O mesmo ocorre em toda a Frana. Frdric Fisbach conta que, tendo escolhido

    h alguns anos coordenar cursos para amadores no Departamento da Creuse cursos

    de onde sairia a montagem de O anncio feito a Maria (texto de Paul Claudel), mistu-

    rando atores profissionais e coristas amadores , descobriu uma cartografia cultural

    cuja existncia ele nunca suspeitara. Em grandes cidades ou vilarejos, os lugares que

    acolhem as prticas amadoras so quase sempre modestos: sales de festas, centros

    comunitrios, propriedades rurais, espaos de associaes (semiprivados, semip-

    blicos), escolas, propriedades privadas, ginsios de esportes, pequenos teatros...

    O conjunto desses dados confirma a inscrio da vida teatral do amador nos

    recnditos da vida social, o que constitui, como vimos, uma diferena fundamental

    em relao vida teatral profissional, cujos edifcios, ou abrigos, possuem um certo

    status parte na cidade. No entanto e chegamos aqui ao cerne de nosso processo

    de esclarecimento , mesmo se os lugares concretos utilizados pelas apresenta-

    es amadoras fossem os mesmos dos profissionais (como o caso s vezes),

    eles no funcionariam simbolicamente do mesmo modo. Os espaos desses dois

    teatros no so idnticos. Esse ponto merece que tomemos o tempo devido para

    esclarec-lo: a diferena pode parecer sutil, e aqueles que nunca tiveram a experi-

    ncia pessoal de assistir a uma sesso teatral de amadores podem no perceb-la

    ou julg-la irrisria, coisa que ela no .

    Voltemos primeiramente ao equvoco generalizado que apenas havamos

    evocado rapidamente at aqui: o que distingue fundamentalmente os dois teatros no

    de natureza econmica. Quando falamos de um funcionamento simblico varivel

    dos espaos, no pretendemos sugerir a oposio binria clssica entre sistema de

    mercado e sistema de dom, entre um mundo onde se paga seu ingresso e um mundo

    onde se tem acesso ao espetculo gratuitamente, com o que isso, para o segundo,

    implica sociabilidade, proximidade e comunho espontnea. A primeira razo que

    a realidade, presente e passada, do teatro de amadores no corresponde a essa

    imagem mitolgica: se, de fato, os atores no so pagos pessoalmente, esse teatro

    no imune s leis econmicas e, precisamente, o pblico contribui muitas vezes com

    alguma quantia com as despesas assumidas pelo grupo. Para voltar Histria e aos

    trabalhos dos historiadores, ao contrrio da lenda, os espetculos medievais e renas-

    centistas no-profissionais eram pagos. As tabelas de preos encontradas atestam at

    mesmo a existncia de uma gradao precisa do custo dependendo do lugar ocupado,

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    qual os pobres de verdade no tinham acesso12. Esse lembrete importante. O

    sonho de uma cena medieval popular e gratuita comparvel ao clich atual segundo

    o qual a no-lucratividade constitui o critrio decisivo para a definio da prtica do

    amador. O que, como acabamos de expor, falso.

    A verdadeira diferena simblica entre o funcionamento da cena profissional e

    da cena amadora est ligada ao lugar assumido em cada caso pelo espectador. Sua

    principal funo continua a mesma: ele contribui para a constituio do lugar cnico

    em espao dramtico, ele acredita, ele faz como se. Que a produo seja amadora ou

    profissional, a casa do Caprichos do amor e do acaso (de Marivaux) ou a paisagem

    mental de Esperando Godot (de Samuel Beckett) sero igualmente co-imaginadas

    por aquele que assiste o espetculo. a relao entre o espao dramtico do espec-

    tador e o espao do jogo do ator que se organiza de modo diferente. Na anlise

    minuciosa de Anne Ubersfeld, o estudo do teatro amador faz surgir a necessidade de

    um novo estrato de anlise suplementar, envolvendo a relao entre o pblico e o jogo

    dos atores. Para chegar a isso, proponho que recorramos noo de espao teatral,

    redefinida como espao palco-platia, incluindo as interaes entre os dois polos da

    representao e suas respectivas ligaes com a cidade. neste ponto que nos depa-

    ramos com a dupla noo de teatro de palco e teatro de tablado.

    2. 2. O palco e o tablado. Do descritivo ao estrutural

    Para entender a natureza da variao que afeta o funcionamento simblico do

    espao teatral quando se trata de uma produo de amadores ou de profissionais,

    optamos por usar a oposio sugestiva de duas imagens: o palco inicial dos mist-

    rios (a autora sublinha que a palavra plateau aqui traduzida como palco est

    sendo utilizada no seu sentido medieval deplateia e no no sentido moderno, ou ps-

    -moderno, inspirado pelo cinema ou pela televiso)13 e o tablado inicial dos espet-

    culos itinerantes (a palavra tablado [trteau] tendo seu sentido de estrado mnimo)14.

    12 Ver por exemplo: KONIGSON, lie. LEspace thtral mdival. Paris: ditions du CNRS, 1975.

    13 "Plateau (aqui traduzido como palco) - C. ARTES DO ESPETCULO. 1. TEATRO.Entabuamentoelevadosobre o qualos atoresinterpretam eos cenrios so colocados.TLF (Trsor de la langue franaise), CNRS (online).

    14 Trteau(aqui traduzido como tablado) -No sing. a)Plataforma elevada em relao ao nvel do cho, sobre a qual

    exibia-se um condenado. Sinn.cadafalso[]. b) Plataforma mvel sobre a qual se produzia um nmero de vendedor-

    de-banha-de-cobra,um artista ou uma trupe apresentando um espetculo popular.Sinn.estrado.[]. Idem.2.Plur.,ger.pejorativo. Plataforma rudimentar utilizada por artistas de feira, atores representando peas populares.

    Comdien de trteaux. (lit. ator de tablado) Ibidem.

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    Devo inicialmente indicar que lie Konigson nunca fala de teatro de tablado nem

    de teatro de palco e ainda menos de uma oposio significativa entre duas teatrali-

    dades, j que essa questo no faz parte de seu campo de pesquisa. O que consta

    em seus escritos a comparao entre os dois objetos, enunciada uma nica vez (at

    onde temos conhecimento), em uma nota de rodap do estudo redigido por nossa

    obra Du thtre amateur: Nota-se, para as apresentaes urbanas, a oposio entre

    os espaos no nvel do cho da praa, com plataformas de apresentao, por defi-

    nio estveis e imveis, e o espao do tablado, feito para a viagem e para a trupe

    itinerante.15 Em todos os outros lugares, as evocaes esto separadas. E claramente

    assimtricas. Otablado(trteau) aparece em muitos escritos do autor nos quais ele

    parece ter sido frequentemente uma fonte de inspirao. Nas obras e artigos de tipo

    histrico16, eledesignaum estrado, com ou sem cortina, elevado como um cadafalso

    para que o pblico veja bem os atores. um espao suspeito, preocupante, onde

    o ser apenas falsidade ou morte. A conjuno entre o cadafalso e o estrado no

    est somente na forma: esses dois espaos evocam um ao outro, se atraem.17Em

    certos textos mais recentes, onde a abordagem se fazestruturalista, o tabladose torna

    um dos trs objetos de representao genricas do teatro ocidental, os dois outros

    sendo a cortina e a sedes 18. Encontra-se bem raramente a palavra palco (plateau).

    Essa traduo do termo latino plateiadesignaum tipo de passarela, larga e baixa,

    construda nas praas para servir de suporte para certas sequncias das Paixes,

    a apresentao acontecendo em um espao bem mais largo, no nvel do cho.Se

    otablado dotado de uma funo representativa genrica ele significa por si s o

    teatro , o palcoaparece somente em um contexto de expresso dramtica amadora.

    Ele se inscreve em um conjunto de outros elementos que contribuem para significar

    os lugares fictcios sucessivos ou simultneos.O espao teatral a praa inteira

    convm notar que ela fechada, e de alguma forma privatizada para a durao

    das apresentaes:O cidado-ator, quando seu papel no o envolve na ao repre-

    sentada, vai sentar indistintamente na frente de seus concidados espectadores. Em

    suma, essa unidade espacial tambm define uma unidade que , acima de tudo, uma

    15 Marges et lisires du jeu thtral , nota 3, Du thtre amateur, op. cit., p. 17.

    16 Como LEspace thtral mdival, op. cit.

    17 Marges et lisires du jeu thtral ,loc. cit., p. 19.

    18 KONIGSON, lie. Les objets de reprsentation au thtre (XVe-XVIIe sicles) , in: Nouvelle Revue du Seizime

    Sicle, 1996, n 14/2, pp. 189-199.

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    recusa, uma negao visvel de uma mudana de status que o fazer teatral poderia,

    pelo menos, sugerir 19.

    Nossa contribuio consistiu em estender a oposio esboada por lie Konigson

    entre o tablado porttil dos ambulantes e o palco pesado dos sedentrios, partindo das

    realidades concretas (os lugares) s construes abstratas (os espaos) e em fazer a

    distino material, visvel, entre as duas plataformas cnicas localizadas no tempo, uma

    alegoria da diferena de tempo entre dois sistemas de trans-histricos: um primeiro sistema

    onde os atores forasteiros do origem a uma alteridade radical a partir deseu tablado20,

    uma verdadeira mquina de viajar no espao e no tempo (. Konigson), diante dos espec-

    tadores, que sero os transmissores desse evento na cidade; um segundo sistema em

    que alguns membros da cidade, em cima dessas espcies de palcos instalados no lugar

    onde eles vivem ou no muito longe de onde eles vivem, se tornando momentaneamente

    atores na frente de outros membros da urbe, que se tornam temporariamente especta-

    dores. Ambas as descries genricas permanecem vlidas independentemente do tipo

    de plataforma escolhida para a representao, independentemente do tipo de lugar utili-

    zado. Nas expresses teatro de palco e teatro de tablado, o palco e o tablado adquirem

    um valor alegrico. Na medida em que um verdadeiro tablado (ou qualquer dispositivo

    cnico profissional moderno), usado para uma apresentao de amadores, sempre acaba

    funcionando como palco genrico, e um verdadeiro palco (ou qualquer modesto estrado

    de amadores) utilizado por um grupo profissional se ver dotado do mesmo valor que o

    tablado original e isso para melhor ou para pior, porque esses dotes simblicos no

    prejudicam o talento de ambos. o que vamos ver agora em dois exemplos franceses

    recentes escolhidos por sua complementaridade: um espetculo profissional que desceu

    de seu pedestal cnico, e uma apresentao de amadores em um belo palco.

    2.3. A oficina dos profissionais/o verdadeiro teatro de amadores

    Vamos descobrir rapidamente estes dois espetculos.

    a) Uma Fedra profissional que renunciou ao Teatro

    Em 1995, no fim dos ensaios de Na solido dos campos de algodo, a figuri-

    nista Moidele Bickel diz a Patrice Chreau : Agora voc tem que montar Racine, e do

    19 Marges et lisires du jeu thtral ,loc. cit., p. 18.

    20

    Nota da tradutora: Aqui existe uma ambiguidade criada pela palavra scne, que significa cena e, ao mesmotempo, uma palavra que designa qualquer plataforma destinada representao teatral. Neste contexto, ela

    pode ser interpretada como tablado ou cena.

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    mesmo jeito, precisando que a sua misso agora era a de explorar a lngua de Racine

    desse jeito. O convite, justamente por ser to enigmtico, no seria esquecido facil-

    mente; relendo Racine, Chereau foi percebendo que sentido esse convite passava a

    adquirir para ele. A travessia da obra de Kolts talvez o tivesse preparado para decifrar,

    na clareza dos encadeamentos sintticos,o medo do outro lado da linguagem, fugaz,

    escondido, indizvel, s que fadado a insistentemente ir abrindo brechas rumo luz.21.

    Alguns anos mais tarde, Patrice Chreau decidemontar Fedra. O encenador

    reuniu Pascal Greggory (Teseu), Eric Ruf (Hiplito), Michelle Marquais (Enone),

    Michel Duchaussoy (Termenes), Marina Hands (Arcia), Agns Sourdillon e Nathalie

    Bcue. Ele confiou a Dominique Blanc, depois de anos de trabalho juntos, o papel de

    Fedra. E num lugar e cenografia extremamente prximos ao espao e cenografia

    que utilizara em sua Solido... que escolheu inscrever a tragdia de Racine. O

    espetculo foi criado em Paris em 2003. O lugar? Os antigos depsitos de cenrio da

    Opra Comique, no norte da capitalfrancesa, boulevard Berthier, convertido em uma

    sala de espetculo modulvel com cerca de 500 lugares durante as longas reformas

    do Thtre de lOdon. Mesmo confortavelmente mobiliados, tanto no palco como

    na platia, os Ateliers Bethier assemelhando-se a galpes de oficina como a sala

    reformada do Thtre des Amandiers de Nanterre, escolhida em 1987 para a criao

    da pea de Kolts (com Laurent Mallet e Isaach de Bankole) ou com a da Manufac-

    ture des illets, utilizada em 2005 para a ltima temporada do espetculo (com P.

    Chreau e P. Greggory) pareciam salas transformveis, vazias, neutras, funcionais.

    A cenografia? um dispositivo bi-frontal construdo por Richard Peduzzi no mesmo

    registro que o da Solido...: proximidade, intensidade, dissimetria, toro percep-

    tiva. As filas de poltronas esto frente a frente, dispostas ao longo de uma pistra

    central estreita incessantemente percorrida pelos atores com, em um extremidade,

    uma muralha atravessada por uma porta antiga, e, do outro lado, a nebulosidade de

    uma espcie de passagem aberta, um lugar de espera, algumas cadeiras colocadas

    l, viradas para a cena.

    O desejo de diminuir a distncia com o pblico se manifesta desde a primeira

    cena. Termenes e Hiplito surgem do meio da plateia, Hiplito conta as faanhas

    de seu pai sentado no meio dos espectadores, nos degraus do corredor da plateia,

    em contato direto com seus vizinhos imediatos. Sem elevao, sem separao fsica,

    21 LOAZA, Daniel. Fragmento do livro de imprensa do espetculo.

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    nenhum dos sinais cenogrficos habituais da mquina de viajar no espao e no

    tempo. Sem tablado. Pelo menos aparentemente.

    b) Um Caprichos do amor... amador representado como no teatro

    A ltima seqncia do filme de Abdellatif Kechiche, A Esquiva, lanado em

    janeiro de 2004 (e premiado com vrios Csares em 2005), mostra um pequeno espe-

    tculo de amadores ou melhor, um espetculo cujo status difcil de definir, algo

    entre produo escolar e espetculo de amadores. o ltimo episdio de uma histria

    complexa, contada pelo produtor da seguinte forma:

    Um conjunto habitacional na perferia de Paris. Um anjo passa recitandocom entusiasmo os versos de Caprichos do amor e do acaso. Ldia(Sara Forestier), apaixonada por Marivaux, em pleno ensaio do espetculomontado por sua classe para a festa da escola. Passou um anjo, e Abdelkrim,vulgo Krimo (Osman Elkharraz), no auge dos seus 15 anos, est gostando

    de sua colega de classe. Ele, que arrasta seu tdio pelos labirintos do bairro,acompanhado por seus amigos, de repente, descobre o amor. Krimo no de muita conversa e tem uma reputao a zelar: como declarar seu amorpara a garota sem cair no ridculo? A soluo: subornar seu amigo Rachid,parceiro de cena de Ldia, para fazer o papel de Arlequim. O que Krimono ousa confessar, Marivaux far em seu lugar! Mas a manobra inteligentese transforma em uma corrida de obstculos para Krimo, petrificado pelotamanho do texto e pela professora extremamente exigente. Ser que Krimoencontrar as palavras certas antes que o boato, os cimes e as inimizadesse intrometam na partida? 22

    Depois de algumas peripcias, s vezes dramticas, ocorre a apresentao, sem

    Krimo, substitudo pelo primeiro Arlequim. A representao volta ao contexto pedag-

    gico (a professora sopra o texto dos bastidores), mas no est restrita a ele: o bairro

    inteiro est no centro comunitrio onde o espetculo realizado.

    A Esquiva foi, muitas vezes, comentado como um documentrio, mas no .Apesar de a maioria dos atores no ser de profissionais, apesar de Abdellatif Kechiche

    ter filmado em um conjunto habitacional de periferia real, sua abordagem no etno-

    grfica e ele faz questo de deixar isso claro. O consenso geral diz que o filme possui a

    verdade da fico, sobretudo na rea que nos interessa, o que me permite apresent-

    -lo como uma ilustrao possvel do fenmeno amador hoje. A Esquiva mostra o

    incio to rpido quanto doloroso, sob o influxo de desejos despertados pela escola,

    de uma espcie de crculo nico dentro do bairro, de uma sociedade juvenil muito

    diferente dos grupos e gangues existentes. A festa final, com a participao de muitos

    adultos do bairro, apresenta na sequncia um conto, A Conferncia dos Pssaros,

    interpretado por crianas, e a pea de Marivaux, representada por adolescentes. A

    22 Dossier de imprensa do filme.

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    histria danada pelas crianas, recebida com emoo pelos pais e professores,

    seguida pelo texto de Marivaux, imediatamente percebido como mais difcil (os rostos

    dos espectadores exprimem uma ateno bem diferente, os eventuais risos sero uma

    vitria), uma apresentao na qual os mltiplos contextos individuais e coletivos so

    bastante perceptveis: a cmera mostra Magali vrias vezes com seu novo amante,

    Fahti e os outros garotos no fundo da sala, Krimo do lado de fora, atrs do vidro.

    Enquanto a histria coreografada inspira uma adeso fcil, as frases aparentemente

    inofensivas de Caprichos do amor e do acaso so carregadas pela tempestuosa

    histria do grupo cujos membros esto todos presentes. Sente-se claramente a tenso

    entre o teatro e a comunidade.

    2.4. Estrutura aparente e estrutura de base

    No funcionamento de uma sociedade, instituio ou fenmeno cultural, um modo

    superficial de organizao pode ser considerado como aquilo que estrutura realmente

    essa sociedade, instituio ou fenmeno cultural. Esses modelos artificiais se inter-

    pem como obstculos entre o observador e seu objeto23.

    Vamos rever cada um dos exemplos. No caso de Fedra, o desaparecimeto dos

    signos teatrais, o compartilhamento do espao, o nivelamento do palco com a plateia,

    a proximidade excepcional, tudo isso s refora o sentimento de uma ruptura absoluta

    entre o pblico e espao de jogo dos atores (onde se encontram Eric Ruf, Dominique

    Blanc, Marina Hands...) de um lado e o espao dramtico (ao qual assombram Fedra,

    Hiplito, Arcia...) do outro. Para os espectadores que se pode observar enquanto eles

    escutam os atores falarna gravao audiovisual, para aquele que podemos observar

    quando ric Ruf-Hiplito vem intalar-se ao seu lado, o tablado simblico est mais do

    que nunca presente.

    No caso do Marivaux de A Esquiva, o fato de que o espetculo esteja sendo apre-

    sentado em uma plataforma cnica elevada, em um dispositivo frontal clssico e seguindo

    as regras tradicionais da sessode teatro no altera os fenmenos caractersticos do

    que chamamos de teatro de palco: essas condies de representao conferem uma

    espcie de solenidade ao evento, mas como os espectadores conhecem todos os intr-

    pretes, ou sentem que poderiam conhec-los, o entrelaamento do real com a ao

    dramtica se d continuamente em ambos os lados da fronteira entre espao cnico e

    23 LVI-STRAUSS, Claude.Anthropologie structurale. Paris, Plon, Presses Pocket, 1974, p. 335 (1re

    d. 1958).

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    auditrio. A vida real dos atores se mistura com a fico. Os espectadores o percebem

    e acompanham ao mesmo tempo, em outro nvel, a atuao frgil de jovens cuja profi-

    cincia no garantida. Todos esto conscientes: esse ator, essa atriz, poderia ser ele

    [ou ela] mesmo[a], ou algum conhecido. Pode-se falar de um funcionamento original da

    mimesis: porque aquele que interpreta ainda percebido em sua atividade excepcional

    de ator, o pico estrutural, a distanciao, permanente. A universalidade da expresso

    no desaparece, , pelo contrrio, vivida atravs de uma srie de conotaes e interpre-

    taes locais, interpessoais, privadas, que podem enriquec-la.

    Em Berthier a qualidade de antiga oficina desse lugar no altera o caso ,

    o pblico recebido em um espao artstico, claramente extrado do espao social

    comum. O lugar todo teatralizado. No centro cultural de A Esquiva, um lugar cnico

    foi inserido sem que esse lugar que pretende ser cultural crie uma ruptura com a

    comunidade24. Tanto os espectadores como os atores esto em uma situao interme-

    diria, que do outro colorido ao evento teatral.

    Para concluir. Uma sutil complementaridade

    Explica-se a atual vitalidade do teatro de amadores na Frana por seu modo

    de inscrio na vida social. Encontra-se, s vezes, a hiptese (e a esperana) deuma reconstituio do teatro pblico a partir de seus muitos locais semipblicos, em

    uma espcie de remake da grande dinmica descrita por Habermas (a emergncia da

    esfera poltica pblica a partir do imaginrio literrio e privado). Sugerimos em outro

    lugar que isso era um chamariz25. E muito provavelmente indesejvel tambm: manter,

    promover a variedade de espaos, inclusive os espaos privados e semiprivados, de

    grande interesse. Esclareamos esse ponto com uma comparao. Os especialistas

    da filosofia e da libertinagem do sculo XVII trabalharam sobre o modelo proposto

    por Habermas. Eles se deram conta, pelo menos para o campo deles, do simplismo

    desse modelo progressista e inequvoco, j que os libertinos mantiveram uma relao

    complexa com a abertura ao grande pblico e tm sustentado prticas sobre as quais

    o mnimo que se pode dizer que elas no iam no sentido da futura transparncia

    comunicacional26. Os espaos de debate e desenvolvimento de novas ideias tendem

    24 Nota da tradutora: No original, cit, ao mesmo tempo urbe e conjunto habitacional / bairro pobre.

    25 MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine. Conclusion da obra Du thtre amateur. Approche historique et

    anthropologique, op. cit., pp. 345-347.

    26 Ver Libertinage et philosophie au XVIIe sicle-3. Le Public et le Priv . [Journe dtude organise par A.

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    a permanecer fora da universidade e continuam a se organizar no modelo da conversa

    ou correspondncia entre amigos de confiana. No contexto atual, como naqueles

    estudados por historiadores, por razes diferentes, claro o conservadorismo do

    pensamento no se organiza mais do mesmo modo, e os lugares de reflexo e de

    expresso de natureza privada parecem preciosos, insubstituveis na democracia. E

    isso vale tambm para a vida do teatro amador. Pudemos nos preocupar recentemente

    com o desaparecimento dos grupos estruturados como outrora, surgidos em asso-

    ciaes portanto, em uma esfera semipblica. Seu desaparecimento interpretado

    como um sinal do enfraquecimento da dimenso coletiva, muito importante no teatro

    amador. Constata-se que h algum tempo novos grupos tm emergido por afinidades

    eletivas, por reunies entre indivduos, em uma verso modernizada do amigvel

    primitivo. Na contracorrente do processo que agora ameaa a individualizao da

    prtica do amador pelos workshops, que se proliferam por toda parte, transmitindo

    modelos profissionais (ou pseudoprofissionais), reaparecem, a partir de ncleos clara-

    mente privados ou semiprivados, o que era antes chamado, em um termo bonito e

    significativo, sociedades.

    Quanto aos profissionais, como evidenciado pelo panorama de Hans-Thies

    Lehmann, mas tambm indiretamente por todos os estudos recentes sobre a cenografia

    e estudos de espaos para o teatro, os criadores muitas vezes se sentem bem melhor

    em salas que mantm algo de no pblico: seja dentro de teatros, em locais geral-

    mente fechados para o pblico tais como salas de ensaio, etc. seja fora, em lugares

    que gostamos de enfatizar que no so projetados para o teatro (edifcios reciclados,

    museus, cafs, apartamentos...) mas que tm tambm a caracterstica de no pertencer

    esfera pblica oficial. E quando o teatro (ainda a situao mais frequente) se inscreve

    nessa esfera pblica oficial, os artistas tentam, de dentro, paradoxalmente, reprivatizar

    simbolicamente, claro o espao de sua interveno, e da representao.

    O importante, em cada um desses dois teatros, parece-nos ser a mobilidade

    potencial do lugar, seu carter intermedirio.

    Fala-se regularmente de uma necessidade sentida pela cena de conciliar-se com

    as novas sensaes do espao e do tempo. H um modo superficial de se conci-

    liar com esse movimento: fazendo espetculos movimentados. mais rico, mas mais

    complicado, levar em conta as novas relaes da intimidade, da casa, da vida civil

    McKenna et P.-F. Moreau], Publications de lUniversit de Saint-Etienne, 1999.

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    e poltica, os modos emergentes de fazersociedade: dividir o espao privado em

    espaos de acordo com casos semiprivados, semipblicos; partir do semipblico de

    novo em direo a um espao que talvez possa se tornar verdadeiramente pblico.

    Prestam-se a isso lugares percebidos como transformveis. No se trata, no em

    primeiro lugar, de uma questo tcnica.

    Traduo: Rafaella Uhiara, doutoranda em Estudos Teatrais pela Universit de la Sorbonne Nouvelle,

    sob a orientao de Marie-Madeleine Mervant-Roux.