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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS RELAÇÕES POLÍTICAS KAROLINA FERNANDES ROCHA MENSAGEIRAS DA LIBERDADE: MULHERES, ABOLICIONISMO E RECRUTAMENTO MILITAR (PROVÍNCIA DO ESPIRITO SANTO, 1836-1888) VITÓRIA 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS RELAÇÕES

POLÍTICAS

KAROLINA FERNANDES ROCHA

MENSAGEIRAS DA LIBERDADE:

MULHERES, ABOLICIONISMO E RECRUTAMENTO MILITAR

(PROVÍNCIA DO ESPIRITO SANTO, 1836-1888)

VITÓRIA

2016

KAROLINA FERNANDES ROCHA

MENSAGEIRAS DA LIBERDADE:

MULHERES, ABOLICIONISMO E RECRUTAMENTO MILITAR

(PROVÍNCIA DO ESPIRITO SANTO, 1836-1888)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História do

Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito

Santo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dra. Adriana Pereira Campos

VITÓRIA

2016

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Rocha, Karolina Fernandes, 1991-R672m Mensageiras da liberdade : mulheres, abolicionismo e

recrutamento militar (Província do Espírito Santo 1836-1888) / Karolina Fernandes Rocha. – 2016.

144 f. : il.

Orientador: Adriana Pereira Campos.Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal

do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais.

1. Mulheres - Espírito Santo (Estado). 2. Identidade. 3. Participação política. I. Campos, Adriana Pereira. II. UniversidadeFederal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.

CDU: 93/99

KAROLINA FERNANDES ROCHA

MENSAGEIRAS DA LIBERDADE: MULHERES, ABOLICIONISMO E

RECRUTAMENTO MILITAR

(PROVÍNCIA DO ESPIRITO SANTO, 1836-1888)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social das

Relações Políticas do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade

Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em História.

Aprovada em __ de _______ de 2016.

COMISSÃO EXAMINADORA

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Adriana Pereira Campos - Universidade Federal do Espírito Santo

Orientadora

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Lídia Maria Vianna Possas - Universidade Estadual Paulista Júlio de

Mesquita Filho

Examinadora externa

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Patrícia Maria da Silva Merlo - Universidade Federal do Espírito Santo

Examinadora interna

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Fernanda Pandolffi - Universidade Federal do Espírito Santo

Examinadora interna

Á Alaíde, Antônio, Karine e Karlo,

Aqueles que são, nas palavras de W. H. Auden:

meu norte, meu sul, meu leste e oeste

minha semana de trabalho e meu domingo,

meu meio-dia, minha meia-noite.

minha conversa, minha canção.

AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar e especialmente à minha orientadora, professora

Adriana Pereira Campos, que durante toda a minha trajetória enquanto sua aluna foi

fonte de inspiração, por sua excelência profissional e grandeza pessoal. Apesar de

toda a ansiedade que constantemente me atravanca, você me desafia também

constantemente e faz com que eu queira sempre mais o melhor de mim e, por isso,

sou extremamente grata pela oportunidade e honra de ser sua aluna.

Á Patrícia Maria da Silva Merlo, agradeço não somente pela apresentação à

professora Adriana, mas toda nossa relação desde 2012, na reta final da graduação,

que me faz considerá-la minha “madrinha acadêmica”. Agradeço também pela

participação, juntamente com a professora Fernanda Pandolfi, na banca de

qualificação, pela leitura critica acurada e por todas as sugestões que fizeram.

Agradeço também à professora Lídia Maria Vianna Possas por ter aceitado compor

a banca de avaliação desta dissertação.

Aos professores do Programa de Pós Graduação em História Social das

Relações Políticas: Gilvan Ventura da Silva, Geraldo Antônio Soares e Mikhail

Soubotinik, meu muito obrigado pelo conhecimento transmitido através das

disciplinas ministradas e de indicações de leituras que tanto contribuíram para a

confecção desta dissertação e para minha formação enquanto historiadora.

Aos meus amigos, parte fundamental neste processo, cada um ao seu modo.

A Dayana Tonon, por ter feito o que uma melhor amiga faz: pôr um espelho na

minha frente para mostrar meu coração. A Hugo Ricardo Merlo, pela disposição em

travar todas as discussões teóricas e metodológicas que tanto elucidaram os

imbróglios em que me coloquei. A Natan Henrique Taveira Baptista, me faltam

palavras para retribuir o modo como fui agraciada em sua própria dissertação. A

imagem que você me atribui é meramente a sua própria refletida num espelho de

admiração. Através dela, você foi o verdadeiro responsável por me manter nos

trilhos – algumas vezes fora dos eixos – da trajetória acadêmica que iniciamos e

sonhamos juntos e por isso serei eternamente grata. Amo você também, Dick! Á

Lellison Abreu Souza, por todas as insônias compartilhadas, pelos sambas, pelas

poesias que fazem manter viva nossa idílica “república dos sonhos”. Agradeço à

Livia Sodré Batista, minha psicóloga de formação e coração, a amiga que fiz em

2003 e que levarei para a eternidade. A torcida e a fé inabalável que tem por mim

me enche de orgulho. À Alessandra Carvalho, por provar que amizade de carnaval

sobe a serra e não se finda na quarta-feira de cinzas. Obrigada pelo

companheirismo e pela parceria, sempre. Também por ser responsável muitas

vezes, juntamente com Luis Felipe Souza – a.k.a chato – e Aline Carvalho em me

tirar da reclusão à que me impunha na realização deste trabalho (agora as

desculpas acabaram de verdade!). À Lorena Mataveli Suave, presente mesmo com

um oceano pelo meio e muitas distrações francesas. Agradeço também à Lívia

Caroline Gonçalves, Fernanda Marchiori Damasceno (por favor, vamos continuar

questionando questões), Krystal Tomas Ceccatto, Lara Tonetto Barbosa, José Nilton

Oliveira Santos Filho, Aerton Rosa, Oscar Soares, Julio Morguetti Neto e João

Henrique Laranja Capucho.

Aos integrantes do Laboratório de História, Poder e Linguagens, Jorge

Vianna, Arthur Ferreira Reis, Alynne Cristina, Luana Sampaio, Camila Mydori, Katia

Bandeira, meus agradecimentos por todas as “escapadas” e conversas, as pausas

necessárias para reajustar o foco. Em especial, meu obrigado às doutorandas,

muitas vezes co-orientadoras, além de modelos de brilhantismo acadêmico: Karulliny

Siqueira, pela atenção, pelas sugestões e pelo carinho de sempre; Rafaela Domigos

Lago, pela parceria durante o Estágio de Docência; e Kátia Sausen da Motta, pelos

conselhos e por ser leitora crítica cuja visão iluminou profundamente os rumos finais

deste trabalho. E à Thiara Bernado Dutra, com quem dividi angústias, medos e

risadas durante a produção de nossas dissertações.

À Família Fernandes, extensa demais para nomear um por um, minhas

desculpas pelo meu muito obrigado geral: Vó Nadir, Madrinha Solange, tios e tias,

primos e primas. E a Carlo Cirenza, família não de sangue, mas de coração, o

padrinho que não foi me dado, mas que adotei como meu.

Dediquei esta dissertação às quatro pessoas mais fundamentais na minha

vida. Ao meu pai, com quem compartilho o amor pela História e pelos livros; ao meu

irmão Karlo, the road so far é maravilhosa por ter você do meu lado, saving people's

hunter things, the family business; a minha mãe e a minha irmã Karine, estas, que

enlouqueceram junto comigo a medida que as noites em claro se transformaram em

semanas, a cada crise de insegurança, de choro e de ansiedade, nas vezes em que

as dúvidas falavam mais alto que as certezas – especialmente numa época em que

tudo que tivemos foram incertezas. Vocês são a mais pura expressão da minha

gratidão e do meu amor e, sem amor, eu nada seria. Cada ideia, linha e palavra

deste trabalho pertence a vocês.

Agradeço também à Maitê Cosmi, pela correção e revisão e à Fundação de

Amparo à Pesquisa do Espírito Santo – Fapes – cuja concessão da bolsa de

estudos forneceu as condições materiais para o melhor aproveitamento dos estudos

realizados e permitiu que eu me dedicasse exclusivamente à produção desta

dissertação.

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

-- dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

- Com licença poética, Adélia Prado

RESUMO

O objeto desta dissertação são mulheres brasileiras e sua inserção política na esfera

pública oitocentista. Ao perscrutarmos atos políticos femininos na esfera pública da

sociedade capixaba, percebemos um uso comum – porém não homogêneo – de um

mesmo discurso que performava a identidade feminina vigente no século XIX. Esta

identidade foi definida como a de esposa, dona-de-casa e mãe de família.

Investigou-se a atuação de mulheres contra o recrutamento militar obrigatório na

Província do Espírito Santo e em movimentos civis abolicionistas e buscou-se

discutir o papel desses movimentos na definição do status e da condição feminina.

Utilizou-se como fontes os jornais A Província do Espírito Santo e Folha da Victoria e

documentos constantes na Série Accioly do Arquivo Público do Estado do Espírito

Santo. As solicitações enviadas por mulheres à Chefia de Polícia da província do

Espírito Santo, requerendo a soltura de filhos e maridos, constituíram-se em

intervenção política e o discurso das mulheres esteve em consonância com a

representação desta imagem feminina. Os papéis sociais desempenhados pelas

mulheres como mães e esposas e no modo como essas identidades foram

apropriadas pelos homens e mulheres envolvidas no movimento abolicionista

revelaram as construções femininas da elite usadas politicamente. Ainda que os

movimentos atingissem esferas distintas da sociedade brasileira oitocentista, o uso

comum de uma representação feminina ligada aos papéis familiares evidenciou um

mesmo ideal para as mulheres brasileiras do século XIX.

Palavras-Chave: Mulheres. Identidade. Participação Política.

ABSTRACT

The object of this dissertation are Brazilian women and their political insertion in the

nineteenth-century public sphere. Through analysis female political acts in the public

sphere of capixaba society, we noticed a common use - but not homogeneous - the

same speech and performative of current female identity in the nineteenth century.

This identity was defined as the wife, housewife and mother. The women activity was

investigated against military conscription in the Espírito Santo Province and

abolitionists civil movements and sought to discuss the role of these movements in

defining the status and condition of women. It was used the newspapers A Província

do Espírito Santo and Folha da Victoria and documents in Accioly Series of Public

Archives of Espírito Santo State. Requests sent by women to the Chief of Police of

the Province of the Espírito Santo requiring the release of sons and husbands, were

in political intervention and women's speech was in line with the representation of the

female image. The social roles of women as mothers and wives and how these

identities were appropriated by the men and women involved in the abolitionist

movement revealed the female elite buildings used politically. Although the

movements reached different spheres of nineteenth-century Brazilian society, the

common use of female representation linked to family roles showed the same ideal

for Brazilian women of the nineteenth century.

Keywords: Women. Identity. Political participation.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Gráfico "Requerimentos distribuídos por década (1836-1848)" ............. 3233

Figura 2: Gráfico "Relação familiar solicitante/recrutado" ..................................... 4849

Figura 3: “Requerimentos deferidos e indeferidos" ............................................... 4950

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Requerimentos divididos por sexo dos solicitantes (1836-1848) ........... 3233

Tabela 2: Requerimentos discriminados pelo estado civil das solicitantes ........... 5253

Tabela 3: Associadas á Libertadora Domingos Martins (1883-1888) .................... 7374

Tabela 4: Colaboradoras da Libertadora Domingos Martins (1883-1888) ............. 7475

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Associações Emancipadoras e Abolicionistas no Espírito Santo ......... 7071

Quadro 2: Atuação feminina na Libertadora Domingos Martins (1883-1888) ....... 7677

ABREVIATURAS

Com relação à citação de documentos, optou-se manter a grafia e a pontuação

conforme os originais. A seguinte abreviação foi utilizada para referenciar os

documentos pesquisados:

APEES — ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 16

1. TRIBUTO DOS POBRES, TRIBUTO DAS MULHERES: RECRUTAMENTO E

FEMINILIDADE NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO ........................................ 28

1.1 Sobre as fontes: petições, requerimentos e súplicas ....................................... 29

1.2 O recrutamento no Brasil imperial: os soldados e os homens honrados ......... 33

1.3 O aspecto formal da “fuga para o mato”: o aparato legal do recrutamento...... 40

2.4 Diz a senhora suplicante que o recrutado que a sustenta... ............................ 46

2.5 Um movimento peticionário feminino? ............................................................. 53

2. MENSAGEIRAS DA LIBERDADE, PORTA-VOZES DA FÉ: MULHERES

CAPIXABAS NO MOVIMENTO ABOLICIONISTA DO ESPÍRITO SANTO ............. 55

2.1 As abolicionistas nas páginas de A Província do Espírito Santo e Folha da

Victoria ................................................................................................................... 56

2.2 Sejamos abolicionistas: nosso dever como mãe e esposa .............................. 59

2.3 As excelentíssimas senhoras abolicionistas capixabas ................................... 68

2.4 Após o 13 de maio... ........................................................................................ 81

3. LINGUAGENS DA FEMINILIDADE: PERFORMANCE, DISCURSO E POLÍTICA

.................................................................................................................................. 84

3.1 A feminilidade mascarada e a esfera pública .................................................. 84

3.2 Performativos, performatividade e identidade .................................................. 89

3.3. Linguagens da feminilidade: quando a fala é política ................................... 102

3.3.2. Linguagens abolicionistas: a performance de Adelina Lírio ................... 106

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 119

REFERÊNCIAS....................................................................................................... 123

APÊNDICES ........................................................................................................... 133

ANEXOS ................................................................................................................. 138

16

INTRODUÇÃO

Mulher, mulheres: mães, irmãs, esposas. Sua história é possível? Em 1984, a

historiadora francesa Michele Perrot procurou responder a tal pergunta e expor os

problemas oriundos de uma historiografia centrada no sujeito universal da mulher.

Se uma história das mulheres é possível, como fazê-la? Existiria uma maneira

especificamente feminina de escrever a história? Para estas questões, Michele

Perrot ensaiou que a resposta seria simultaneamente sim e não. O método, as

técnicas, as fontes e a maneira de se abordar o passado não diferenciam um

historiador de uma historiadora. Entretanto, Perrot compreende que há um modo de

interrogação próprio do olhar feminino, uma maneira específica de abordar o

passado, uma releitura da História do ponto de vista feminino.

O olhar feminino para a História corresponde à narrativa convencional do

nascimento do campo de história das mulheres extremamente ligada à política. Na

década de 1960, as atividades feministas reivindicavam uma história que revelasse

heroínas, prova de que as mulheres tinham existido e principalmente, respostas para

a opressão e inspiração para a ação (SCOTT, 1992, p. 64). Para Joan Scott (1991,

p. 65), no entanto, essa explicação linear simplifica muito e representa mal a história

das mulheres, pois não leva em conta sua posição variável na história, seu

protagonismo em diversos adventos da humanidade e a própria disciplina da

História. Michele Perrot (2007) também amplia as razões que possibilitaram a

consolidação do campo para além do que chama de fatores políticos – a relação

entre o aumento dos estudos sobre mulheres e o movimento feminista. As

abordagens historiográficas emergentes, ao expandirem áreas de investigação e

renovarem a metodologia, bem como os marcos conceituais tradicionais, acabaram

por iluminar o caráter dinâmico das relações sociais e propiciaram a abertura para

os estudos da mulher (MATOS, 2006,.p. 11).

A influência mais marcante para esta abertura foi, na concepção de Maria

Izilda de Matos (2006, p. 11), a redefinição do campo político, que deslocou o campo

do poder das instituições políticas e do Estado para a esfera do privado e do

cotidiano. Assim, houve o questionamento acerca das transformações da sociedade,

18

de Maria Odila inaugurou uma série de publicações que pode ser vista a partir de

pontos comuns. A nova produção privilegiava as mulheres marginalizadas e

excluídas, pobres, trabalhadoras ou não, que foram capazes de questionar sua

posição inferior em relação aos homens e sua exclusão da esfera dos negócios e da

política.2 A história das mulheres surgiu dentro de uma perspectiva da história do

trabalho, mas nas décadas subsequentes incorporou novos objetos e elementos de

análise e dimensões da vida social foram privilegiadas pelos estudos da mentalidade

e da sensibilidade. Rago (1995, p. 85) assinala que este foi o momento em que

Michelle Perrot, com sua imagem de “mulher popular rebelde”, teve seu maior

sucesso no Brasil. A historiadora, porém, faz ressalvas ao excesso em provar a

capacidade de luta e resistência das mulheres, pois “seu tom romântico evoca em

alguns momentos a construção de antigos mitos e heroizações da história

positivista” (RAGO, 1995, p. 85).

Na concepção de Maria Izilda de Matos (2006, p. 14), surgiu o gênero como

elemento de análise em resposta a tal crítica e ao uso de uma noção abstrata da

“mulher” como essência feminina única, a-histórica, biológica e metafísica, e ainda

em razão das próprias tensões dos movimentos feministas. Almejava-se pensar as

mulheres enquanto diversidade e historicidade. A categoria mulher remetia a uma

pessoa branca e de classe média, que não levava em conta as multiplicidades e as

diferenças sexuais enquanto construções sociais e culturais. A utilização privilegiada

do termo gênero na opinião de Margareth Rago (1995, p. 88) provocou certo

deslocamento dos estudos feministas. Para Joan Scott (1992, p. 64-65), o desvio

para gênero – naquele momento simplificado como divisão entre os sexos –

demarcou a especialização acadêmica da discussão feminista. Ao mesmo tempo, o

2 Não podemos deixar de citar as obras elencadas por Margareth Rago (1995), como expoentes

desta fase da consolidação do campo da história das mulheres: LEITTE, M. M. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984; RAGO, M. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar, 1890-1930. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1985: CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo. Juquery, a história de um asilo. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986; ENGEL, M. Meretrizes e doutores. O saber médico e prostituição no Rio de Janeiro. São Paulo: Brasiliense, 1988; ESTEVES, M. de A. Meninas perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro de Belle Époque. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989; SOITHET, R. Condição feminina formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1989; MELO e SOUZA, L. de. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; PRIORE, M. del. No sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colonial. São Paulo, 1990. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo; SAMARA, E. de M. As mulheres, o poder e a família. São Paulo - século XIX. São Paulo: Marco Zero/Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, 1988; MEZAN, L. Honradas e devotas; Mulheres da colônia: estudos sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do Sudeste. São Paulo, 1992. Tese (Doutoramento) - Universidade de São Paulo.

19

conceito de gênero propiciou ao campo seu próprio espaço, pois se tratava de termo

aparentemente neutro, desprovido de sentido ideológico e propósito imediato.

O termo “gênero”, em si mesmo, é polêmico e polissêmico. No clássico artigo

Gênero: uma categoria útil de análise histórica – publicado em 1986 nos Estados

Unidos e traduzido no Brasil, pela primeira vez em 1990 –, Joan Scott promoveu um

apanhado dos diversos significados para os quais o conceito já havia sido utilizado

até então. Gênero foi usado por feministas americanas para rejeitar o determinismo

sexual e biológico, concebido como noção relacional entre homens e mulheres

(SCOTT, 1995, p. 72). E depois, de forma mais simples, passou a ser visto como

forma acadêmica de se referir a “sexo” ou a “mulheres” (idem, p.75). O objetivo de

Joan Scott consistiu em desconstruir a dicotomia entre sexo, enquanto natureza, e

gênero, enquanto cultura. Ela rejeitava a imposição de uma categoria social sobre

um corpo sexuado. A definição de gênero de Scott (1995, p. 86) é dada pela

conexão integral entre duas proposições: “(1) o gênero é um elemento constitutivo

das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o

gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”.

Para clarear a primeira proposição de definição de gênero, Joan Scott aplica

quatro elementos inter-relacionados. O primeiro refere-se aos símbolos culturais que

evocam representações contraditórias, como Eva, ocupando o lugar das pecadoras

e desviadas, e Maria, as perfeitas e louváveis. O segundo consiste nas

interpretações destes símbolos, que afirmam, de forma quase sempre binária, os

significados de homem/mulher e masculino/feminino. O terceiro aspecto das

relações de gênero incide em apreender, através da pesquisa histórica, o motivo da

aparente permanência atemporal da representação dual de gênero. E, finalmente, o

quarto aspecto alude à identidade subjetiva, isto porque, ao negar o universalismo

da identidade psicanalítica, Scott (1995, p. 88) afirma que os historiadores precisam

examinar as formas pelas quais as identidades “generificadas” são construídas e em

quais circunstâncias históricas.

A teoria de gênero, no entanto, não cabe em nenhum dos elementos

descritos, mas sim na proposição, segundo a qual, o gênero é a forma primária de

dar significado às relações de poder. Trata-se, portanto, de um campo no qual o

poder pode ser articulado, e “estabelecidos como um conjunto objetivo de

20

referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização

concreta e simbólica de toda a vida social” (SCOTT, 1995, p. 88).

A concepção de gênero de Judith Butler introduziu novos elementos de

análise. Seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, pode

ser visto como uma provocação à tradição feminista e a alguns de seus mais

sagrados postulados. Isso porque a autora inicia sua explanação questionando a

categoria de “mulheres” enquanto sujeito do feminismo. Para ela, a crítica feminista

deve tentar compreender como as mulheres, enquanto categoria, são produzidas e

reprimidas socialmente pelas mesmas estruturas das quais tentam a emancipação

(BUTLER, 2003, p. 19). O problema é agravado pela falta de uma identidade comum

às mulheres e aos múltiplos significados do termo:

Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das intersecções políticas e culturais em que ela é produzida e mantida. (BUTLER, 2003, p. 20)

Apesar de destacar que o gênero não pode ser ou ter significado separado de

um contexto político e cultural, Butler questiona qual o mecanismo dessa construção

cultural, porque se a “cultura” for vista como lei ou um conjunto de leis, o

determinismo deixaria de ser biológico e passaria a ser cultural. Na concepção de

gênero da filósofa americana destaca-se a importância do discurso e da linguagem.

Apesar de não contradizer ou refutar as ideias de Joan Scott, Butler (2003, p. 28) faz

uma provocação ao título do artigo de Scott ao afirmar que “embora os cientistas

sociais se refiram ao gênero como um ‘fator’ ou ‘dimensão’ da análise, ele também é

aplicado a pessoas reais como uma ‘marca’ de diferença biológica, linguística e/ou

cultural”.

Judith Butler utiliza com centralidade, em seu texto, o conceito “metafísica da

substância”, para refletir sobre as categorias de sexo e de gênero. A expressão é

associada a uma crítica de Nietzsche, para quem a formulação gramatical de sujeito

e predicado reflete realidade ontológica anterior, de substância e atributo, mas não

revela a ordem verdadeira das coisas (BUTLER, 2003, p. 42-43). O sujeito, o eu ou o

indivíduo, são transformados em substâncias fictícias porque sua realidade era

21

primeiramente apenas linguística. Como não é possível significar as pessoas sem a

marca do gênero, esta marca afeta os substantivos – e podemos dizer a substância.

Em face da imposição da heterossexualidade, homens e mulheres são

percebidos como portadores dessa identidade sexual. Essa é uma das razões

políticas que Butler (2003, p. 45) alega para a visão do gênero como substância. O

gênero é assim regulado dentro de uma estrutura binária (homem/mulher ou

masculino/feminino) cuja diferenciação entre um e outro é realizada pela expressão

do desejo heterossexual. Mas, o gênero como substância esbarra, ainda, na

viabilidade de homem e mulher como substantivos, como atributos que não se

prendem a modelos causais ou sequenciais de inteligibilidade. Gêneros inteligíveis

“são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e

continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (BUTLER, 2003, p. 38)

dentro, obviamente da norma heterossexual institucionalizada. Judith Butler (2003,

p. 48) define então:

[...] o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero. Consequentemente, o gênero mostra ser performativo no interior do discurso herdado da metafísica da substância – isto é, constituinte da identidade que supostamente é. Neste sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra. [...] Numa aplicação que o próprio Nietzsche não teria antecipado ou aprovado, nós afirmaríamos como corolário: não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias “expressões” tidas como seus resultados.

O que ela chama de performatividade do gênero, e que é um de seus

conceitos mais importantes, faz referência ao caráter ativo da relação entre o sujeito

e a sociedade, enquanto esta última é organizada dentro de normas e de leis que

funcionam pelo discurso. É impossível, neste sentido, ser “generificado”, ou seja,

sofrer os efeitos do gênero fora do discurso, mesmo porque, conforme já vimos não

há como significar o indivíduo fora do gênero. Pois não há gênero sem discurso, e a

construção discursiva colabora com a definição do gênero.

Há uma distinção entre dizer que o gênero é performado e que o gênero é

performativo. Gênero performado define-se pela maneira como o indivíduo se

apresenta ao mundo. A autora admite ser controverso falar em gênero performativo,

pois nenhum indivíduo pertence a um gênero desde sempre, pois esse fenômeno é

constantemente produzido e reproduzido.

22

Como apreender, então, todo o alcance do conceito de identidade de gênero

defendido por Judith Butler? Para tal, é necessário maior aprofundamento no

conceito de identidade em si mesmo. Tomas Tadeu da Silva (2000, p. 73) destaca a

ausência de uma teoria da identidade – e da diferença. À primeira vista, identidade

pode ser definida simplesmente como mulher; brasileira, jovem, heterossexual.

Como tal, a identidade se constrói como autoreferencial, autocontida e

autossuficiente. Da mesma maneira, a diferença existe de forma independente. A

diferença acaba por ser “o que o outro é”. Identidade e diferença são, portanto,

dependentes (TADEU DA SILVA, 2000, p. 73-75). A identidade é – assim como o

gênero – relacional e marcada pela diferença, ainda que algumas sejam vistas como

mais importantes, especialmente, em lugares e momentos particulares.

(WOODWARD apud Tadeu da Silva, 2000, p. 9; 11).

A concepção de identidade é, intrinsicamente, ligada à noção de

representação. Próximo dos conceitos de ideologia e imaginário social, o conceito de

representação busca romper com a dicotomia entre a objetividade das estruturas e a

subjetividade das concepções e visões de mundo. Partindo desta premissa, “são

autênticas instituições sociais, com visibilidade e capacidade de intervenção direta

sobre a realidade por intermédio de um conjunto de práticas das quais são ao

mesmo tempo determinantes e determinadas” (VENTURA DA SILVA, 2004, p. 14).

Assim, os sistemas simbólicos configuram-se como elementos fundamentais

na apreensão do conceito de identidade. De acordo com Pierre Bordieu (1989),

sistemas simbólicos permitem instrumentalizar processos de comunicação e de

estruturação do conhecimento. Bordieu (1989, p. 8-16) discorre acerca de três tipos

de sistemas simbólicos: estruturas estruturantes, estruturas estruturadas e

instrumentos de dominação. Estruturas estruturantes correspondem aos

instrumentos de conhecimento e de construção do mundo objetivo. A linguagem –

meios de comunicação – cultura e meios de conduta são as estruturas estruturadas

agregadas. Os instrumentos de dominação talvez tenham de maior peso dentre os

sistemas simbólicos de Bordieu: “um poder de construção da realidade que tende a

estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular,

do mundo social) [...]” (BORDIEU, 1989, p. 9). Através das ideologias, constitui-se

um poder ideológico como contribuição específica da violência simbólica para a

violência política (dominação).

23

Para Kathryn Woodward (in Tadeu da Silva, 2000, p. 17), “a representação

inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os

significados são produzidos”. De acordo com tais significados é que damos sentido à

nossa experiência e àquilo que somos. Deste modo, a representação é um processo

cultural que estabelece identidades coletivas e individuais e o processo de fixação

destas identidades depende sempre do modo com que um grupo concebe, interpreta

ou representa o seu mundo, e daí advém a interdependência entre os conceitos de

representação e identidade. Ainda, para Tomas Tadeu da Silva (2000, p. 91), a

representação é uma forma de atribuição de sentido e como tal, arbitrário,

indeterminado. É através da representação, assim compreendida, que a identidade e

a diferença adquirem significado e sentido e passam a existir. Neste caso,

representar significa afirmar que identidade é isso ou aquilo.

Na opinião de Kathryn Woodward (2000, p. 12), o conceito de identidade é

também marcado pelas perspectivas essencialistas e não essencialistas. Uma

abordagem essencialista de identidade privilegia um conjunto claro e inquestionável

de características que todo um grupo compartilharia, inalterável ao longo do tempo.

Já os defensores de uma visão não essencialista enfatizam as diferenças, assim

como as características comuns ou partilhadas numa perspectiva histórica, atenta às

variações temporais. O essencialismo fundamenta suas afirmações tanto na história

quanto na biologia, tendo o corpo como “[...] um dos locais envolvidos no

estabelecimento das fronteiras que definem quem nós somos, servindo de

identidade para a identidade – por exemplo, para a identidade sexual"

(WOODWARD in Tadeu da Silva, 2000, p. 15). Conforme já dito, o conceito de

gênero pode ser visto como uma resposta teórica da epistemologia feminista, que

objetivava o rompimento com o determinismo biológico sobre o sexo, as mulheres e

as relações de poder daí provenientes.

O arcabouço teórico que construímos até aqui, conceituando gênero,

identidade e representação é o amálgama que nos permite investigar o objeto desta

dissertação: mulheres brasileiras e sua inserção política na esfera pública

oitocentista. Ao perscrutarmos atos políticos e de fala femininos na esfera pública da

sociedade capixaba do século XIX, percebemos um uso comum – porém não

homogêneo – de um mesmo discurso. Baseado no arquétipo de mulher como

“esposa-dona-de-casa-mãe-de-família” (RAGO, 1995, p. 62), pensamos tal estrutura

24

familiar como uma identidade compartilhada pelas mulheres brasileiras do

Oitocentos.

Especialmente nas décadas finais do século XIX, grande efervescência

política e cultural marcada, sobretudo, pelo desenvolvimento da imprensa de

opinião, serviu de veículo para a difusão das grandes discussões sobre a crise do

Império brasileiro e permitiu a ampliação na esfera das discussões políticas Entre os

principais debates, constava a defesa do abolicionismo que ganhou as páginas dos

periódicos e das principais obras do período, demonstrando suas múltiplas

expressões e significados. Considerado o primeiro grande movimento social

brasileiro (ALONSO, 2002) e de autêntica participação popular (CARVALHO, 2003),

o abolicionismo foi responsável por trazer a lume setores da sociedade

tradicionalmente alijados da política, como, por exemplo, as mulheres e os escravos.

Neste sentido, o discurso feminino em prol da liberdade ganhou destaque na

sociedade oitocentista. A presença feminina foi de tal monta no movimento

abolicionista, que o historiador Roger Kittleson (2005a; 2005b) estabeleceu que o

mesmo não podia ser dissociado das identidades de gênero que fomentou. A

participação das mulheres na campanha abolicionista foi, também, considerada por

Lúcia Barros Mott (1988, p. 62) como a primeira experiência de militância política das

mulheres no Brasil. A retórica que endossou e difundiu a inserção das mulheres no

abolicionismo foi marcada por um caráter cristão, moral e pelo uso das

sensibilidades, principalmente a feminina. Neste cenário, houve a universalização da

figura da mãe e dos papéis por parte de homens e mulheres envolvidos na luta pelo

fim do cativeiro no Brasil.

Entretanto, pensar a participação das mulheres no movimento abolicionista

como a primeira inserção das mesmas na política revela o estreitamento no

significado do que é o campo político. Recentemente, a historiografia tem

apresentado diversos trabalhos acerca das várias dimensões de cidadania e vida

política no Império, que não restringem a participação ao exercício dos direitos

políticos como o de votar e o de ser votado. Autores como José Murilo de Carvalho

(2006) e Vantuil Pereira (2010), demonstraram formas distintas de experiência e

participação política no Brasil império. A obra de José Murilo de Carvalho traça os

diversos momentos, que configuraram o caminho da cidadania no Brasil.

Estabelecendo-a como uma imposição de um governo central forte, uma “cidadania

25

de cima para baixo”, o autor postula que, por muitas vezes, a população

apresentava uma cidadania reativa, especialmente quando medidas estatais

interferiam em seu cotidiano. Foi o caso, por exemplo, das manifestações populares

conhecidas como a Revolta do Quebra-Quilos (1875), contra o estabelecimento do

sistema de pesos e medidas, e do Vintém (1880) em resposta a um imposto sobre

as passagens dos bondes no Rio de Janeiro. Um dos aspectos que Carvalho afiança

também como movimento reativo diz respeito ao recrutamento para o Exército

imperial. Realizado de modo forçado, o recrutamento era considerado como medida

de controle e coerção social e recaía, principalmente, sobre a camada de população

dos estratos mais baixos da sociedade. Fugas e evasões eram comuns na tentativa

de se escapar das Forças Armadas. Os sujeitos ao recrutamento também contavam

com um aparato legal, entre habeas corpus e petições endereçadas às autoridades.

De fato, o direito de peticionar, representou, na opinião de Vantuil Pereira (2010) um

aspecto fundamental na construção da sociedade durante o Primeiro Reinado.

Homens e mulheres utilizaram-se deste recuso objetivando a liberação do

recrutamento para si ou para outrem. Foi comum, em petições de autoria femininas,

a presença de um discurso que apelava à unidade da família e estabelecia conexões

com os papéis sociais do contexto familiar: mães, esposas, irmãs.

Por esta razão, consideramos que tal representação, ilustrada numa

concepção de “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família” (RAGO, 1995, p. 62), pode ser

estabelecida como uma identidade comum3 às mulheres brasileiras do século XIX.

Identidades são diversas e cambiantes e principalmente, contestáveis, nos contextos

sociais em que são vividas. De acordo com Kathryn Woodward (2000, p. 25), “a

afirmação política da identidade exige alguma forma de autenticação. Muito

frequentemente, essa autenticação é feita por meio da reivindicação da história do

grupo cultural em questão”.

3 Para efeitos de análise, consideramos neste trabalho, que a identidade relativa aos papéis ligadas à

extensão da família como parte do repertório da época. Isto, de acordo com a definição de repertório proposta por Angela Alonso (2002, p.39- 40): “Um repertório é o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo. É composto de padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de linguagem; metáforas (Swindler, 1986). Não importa a consistência teórica entre seus elementos. Seu arranjo e histórico e prático.”; “Repertórios funcionam como ‘caixas de ferramentas’ às quais os agentes recorrem seletivamente, conforme suas necessidades de compreender certas situações e definir linhas de ação”.

26

Stuart Hall (1990) examinou diferentes concepções de identidade cultural.

Uma delas estabelece que uma determinada comunidade busca reparar a verdade

sobre seu passado, através de uma história e cultura compartilhadas, que reforçam

e reafirmam a identidade. A segunda concepção de identidade cultural se vê como

uma questão tanto de “tornar-se” quanto de “ser”. O passado não é negado, ao

contrário, ao reivindicar uma identidade, ela é reconstruída e assim, o passado sofre

uma constante transformação. A identidade é, portanto, fluida. Ao entendê-la como

uma questão de “tornar-se”, aqueles que a reivindicam a identidade não se limitam a

ser posicionados por ela: são capazes de posicionar a si próprios.

Assim, nosso objetivo é demonstrar como as mulheres, através do uso de um

ideal pautado nas figuras familiares de mãe, esposa, filha e irmã, construíram uma

identidade comum que lhes permitiu a inserção na esfera política. A identificação, ou

seja, o processo pelo qual nos identificamos com os outros ou pelos outros

(WOODWARD, 2000, p. 18), posicionarem a si mesmas. Ainda, esta identidade é

performativa, se considerarmos “performance” em seu sentido ampliado, utilizado

por Judith Butler na produção da identidade. Uma repetida enunciação pode ser

performática no sentido em que produz o que meramente deveria descrever. No

caso, ao contrário de simplesmente estabelecer a posição das mulheres no âmbito

familiar, contribui para definir e reforçar a identidade que estamos descrevendo

(TADEU DA SILVA, 2000, p. 93).

Nosso estudo foi circunscrito à província do Espírito Santo durante os anos de

1836 e 1888. O recorte se justifica pela data inicial das petições e requerimentos

acerca do recrutamento na província – inseridas no que Vantuil Pereira (2010)

nomeia como “movimento peticionário” – e pela data da extinção da escravatura no

Brasil, que naturalmente pôs fim ao movimento abolicionista. Os 52 anos

comtemplados nesta dissertação revelam tanto a permanência do discurso e da

performance da maternidade como a relação da própria história das mulheres com a

longa duração. O conceito braudeliano de longa duração é concebido como recurso

de divisão do tempo dos historiadores. No campo da história das mulheres, a relação

torna-se um tanto mais complexa, dado que num primeiro olhar a relação entre os

sexos inscreve-se numa história de longa duração. Em um balanço historiográfico

publicado na Revista dos Annales em 1986, dois níveis de análise foram propostos:

as condições politicas, econômicas e sociais das mulheres dependeriam do tempo

27

curto e a simbólica, a maneira como os dois sexos pensam suas relações ao tempo

longo. Entretanto, a analogia apresenta falhas e levou a uma constatação por parte

das autoras do artigo de que nenhum estudo conseguiu apoiando-se na longa (ou

longuíssima) duração, evidenciar historicamente as diferenças entre o masculino e

feminino. De tal maneira, este estudo – apesar do recorte temporal extenso – insere-

se numa perspectiva de curta duração, visto que analisamos condições politicas,

econômicas e sociais das mulheres.

Estruturamos nossa análise da seguinte forma: no primeiro capítulo, serão

analisadas como as petições enviadas por mulheres à Chefia de Polícia da província

do Espírito Santo, requerendo a soltura de filhos e maridos, constituíram-se em

intervenção política e como discurso das mulheres esteve em consonância com a

representação de certa imagem feminina definida de maneira tripartite: esposa,

dona-de-casa, mãe de família (RAGO, 1985, p. 62); no segundo capítulo,

investigaremos as construções femininas da elite, centrando a análise nos papéis

sociais desempenhados pelas mulheres como mães e esposas e no modo como

essas identidades foram apropriadas pelos homens e mulheres envolvidos no

movimento abolicionista. Buscar-se-á ainda como essas identidades se tornaram

imprescindíveis à compreensão do movimento abolicionista e como este processo foi

realizado na província do Espírito Santo; e finalmente, no terceiro, realizamos a

análise comparativa das duas expressões políticas femininas abordadas, de modo a

entender como, mesmo distintos em origem e práxis apresentaram um repertório e

um vocabulário comum que nos permitem considerá-las como exemplos de inserção

e posicionamento político das mulheres no século XIX.

28

1. TRIBUTO DOS POBRES, TRIBUTO DAS MULHERES:

RECRUTAMENTO E FEMINILIDADE NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO

SANTO

O recrutamento para o exército foi problemático durante todo o Brasil Imperial

(IZECKSOHN, 2011, p. 368). As práticas que regulavam o sistema obedeciam à

complexa trama de negociações, resistências e compromissos, configurando

questão potencialmente explosiva (MENDES, 2004, p. 111-112). Devido às

condições das acomodações nos quartéis, aos baixos soldos e a permanência de

castigos físicos, o Exército não atraía voluntários para os seus quadros. O

recrutamento, assim, recaía sobre desocupados, migrantes, criminosos, órfãos e

desempregados – os pobres desprotegidos (IZECKSOHN, 2011, p. 368) – o que

contribuía com a imagem do serviço militar como castigo e degradação.

Funcionando como mecanismo coercivo de última instância para manter as

hierarquias de classe (KRAAY, 1999, p. 115), nos Oitocentos, o engajamento militar

significava recrutamento forçado, fato iluminado por sua própria linguagem, pois as

autoridades falavam em prisões e apreensões dos recrutados (KRAAY, 1999, p.

114). As resistências ao alistamento foram diversas, desde fugas e deserções

individuais às revoltas, que, por vezes, envolveram vilas inteiras (KRAAY, 1999).

Houve, ainda, o aspecto legal de contestação, conforme demonstram as centenas

de requerimentos e petições enviadas às autoridades provinciais responsáveis pelo

recrutamento. Consideradas em conjunto, as petições revelavam desejos individuais

e aspiração por direitos civis, bem como o anseio de participar da vida política do

país (PEREIRA, 2010, p. 9-10). Neste capítulo, serão analisadas como as petições

enviadas por mulheres à Chefia de Polícia da província do Espírito Santo,

requerendo a soltura de filhos e maridos, constituíram-se em intervenção política e

como o discurso das mulheres esteve em consonância com a representação de

certa imagem feminina definida de maneira tripartite: esposa, dona-de-casa, mãe de

família (RAGO, 1985, p. 62).

29

1.1 Sobre as fontes: petições, requerimentos e súplicas

No Espírito Santo, a dinâmica do recrutamento militar serviu – como nas

demais províncias do império – como instrumento capaz de organizar o mundo do

trabalho livre e impor aos extratos mais pobres da população as hierarquias políticas

e sociais (LOSADA, 2013, p. 67). A resistência da população capixaba ao ingresso

no serviço militar e à precariedade das instalações, tal como no restante do Brasil,

dificultaram o preenchimento do efetivo mínimo e preocuparam as autoridades

provinciais.

O Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Espírito

Santo, em 1862 (referente ao ano de 1861), pelo presidente José Fernandes da

Costa Pereira Junior, oferece panorama geral acerca do recrutamento militar na

província. O presidente afirmou que a população tinha “invencível aversão ao serviço

militar, e se foge do alistamento na Companhia de Polícia muito mais nas fileiras do

Exército”, e que “só se lembram das vantagens que a lei concede ao soldado

voluntário quando se acham presos e sem esperança de soltura” (Relatório

apresentado á Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo, 1862, p. 13-14).

Existia distinção bastante significativa entre ser um “voluntário” ou ter sido

“recrutado”, principalmente em relação ao tempo de prestação do serviço militar.

Embora variável durante o Império, o recrutado podia chegar a servir mais que o

dobro do tempo estipulado para o voluntário.

Deste modo, o sistema de recrutamento militar na província do Espírito Santo

operou sob as mesmas diretrizes do restante do Brasil4. A população capixaba,

4 De acordo com a historiadora Vânia Maria Losada Moreira (2013, 2006), os alistados à força

correspondiam no Espírito Santo, principalmente aos índios e caboclos. De acordo com o Censo de 1824, a província contava com uma população de 35 mil habitantes, dos quais 22.165 mil eram pessoas livres. Os índios civilizados recenseados contabilizavam 5.778 indivíduos e correspondiam, no início do século XIX, a aproximadamente um quarto dos livres e a 16, 5% da população total (MOREIRA, 2005, p. 4). Assim, além de ter sido um meio de controle social e de coerção ao trabalho, o recrutamento militar entre os indígenas da província também teria funcionado como mecanismo de integração forçada à ordem social dominante. A associação entre caboclismo e vadiagem resultou na transformação dos índios em alvos preferenciais do recrutamento forçado, pois estes eram relativamente independentes do main-stream provincial, o que inquietava as autoridades (MOREIRA, 2005, p. 5). Para Vânia Maria Losada Moreira (2005, p. 6), a perseguição ao “caboclismo” foi particularmente intensa na administração de José Bonifácio Nascentes D’Azambuja , presidente da província do Espírito Santo entre julho de 1851 e novembro de 1852, momento em que a cultura do café provocou certo dinamismo econômico e estendeu a colonização para o centro e o sul da província. A incorporação de novas áreas produtivas necessárias à expansão cafeeira se deu sobre as terras indígenas, como foi o caso da sesmaria do antigo aldeamento da Missão de Nossa Senhora

30

reconhecidamente avessa ao serviço militar, utilizou as táticas comuns para se

evadir do Exército: fugas, substituições e a recorrência, através das petições, à

autoridade do Chefe de Polícia e demais órgãos responsáveis pelo recrutamento.

As Instruções de 1822, que regulavam as práticas de recrutamento do Império

e mesmo a Lei n° 2.5565, foram organizadas de modo a não afetar diretamente a

de Reritiba – mais tarde a Vila Nova de Benevente e atual município de Anchieta, no sul do Espírito Santo – (MOREIRA, 2005, p. 6). Ainda, por muitas vezes, os aldeamentos dos índios estavam situados em locais de posição estratégicas para obras públicas provinciais. Entretanto, consideramos os dados apresentados pela autora insuficientes para concordarmos com a tese de que os índios e caboclos consistiam um grupo de interesse especial para o recrutamento na província. Na documentação consultada, tampouco foi possível aferir quantitavamente a presença de índios e caboclos como alvo do alistamento obrigatório que corroborariam a argumentação apresentada. 5 Em 1874, por conta da necessidade de modernizar o sistema de alistamento e de tornar mais

atrativo o serviço de armas, a Lei n° 2.556 alterou significativamente as práticas tradicionais do odioso recrutamento forçado. A legislação previu para 1° de agosto de 1875 o primeiro alistamento para o Exército e a Marinha do Brasil realizado através de sorteio universal, fruto de diversos debates parlamentares e de pelo menos uma dúzia de projetos de lei que não foram aprovados. Ficou estabelecido o engajamento militar e o sorteio para homens livres e libertos entre 19 e 30 anos, que serviriam durante seis anos. As juntas de alistamento seriam formadas pelo juiz de paz, pelo subdelegado e pelo pároco local; os contingentes anuais seriam estabelecidos em razão dos indivíduos apurados e o sorteio realizado com o triplo do contingente estabelecido (MENDES, 1999, 268). Como a lei visava também ao recrutamento de homens de status social mais alto do que os antigamente alistados, apresentava cláusulas que melhoravam o serviço, como a proibição do castigo corporal, dos privilégios de cadetes e do uso de soldados como camaradas; também se prometeu a preferência na admissão a empregos no governo para veteranos (KRAAY, 1999, p. 138). As isenções permitidas por lei foram drasticamente reduzidas e não se manteve a tradicional proteção aos homens casados – ainda que o número de homens excluídos do serviço militar por isso fosse consideravelmente pequeno, dado ao alto número de uniões ilegítimas e relações de concubinato nas camadas mais pobres. A historiadora Eni de Mesquita Samara (1988, p. 98) levantou a hipótese de que as uniões ilegítimas entre a população se deviam aos altos custos das despesas matrimoniais. O casamento implicava em direitos e obrigações recíprocas de fidelidade e assistência, o que provocava a relutância dos homens pobres livres, que preferiam viver concubinados. A ameaça foi suspensa por um decreto do Executivo para o primeiro sorteio, o único, possivelmente, que incluiria muitos casados (KRAAY, 1999, p. 137). Contudo, o alcance da medida foi limitado e, ao invés de demonstrar o sucesso da longa campanha de reforma, tornou-se letra morta. A emenda esbarrou tanto na inépcia do estado em executá-la frente à oposição dos beneficiados pelo arranjo quanto pela reação popular contrária à lei, que surpreendeu o governo (KRAAY, 1999, p. 115-116). Os revoltosos foram acusados de ignorância por àqueles que defendiam que a nova lei, considerada por eles de modernizante e civilizatória, bem como sua implementação tornaria mais igualitário e suave o serviço das armas (MENDES, 1999, p. 269). Em várias províncias, especialmente em Minas Gerais (MENDES, 1999, p. 278), grupos de homens e mulheres, os rasga-listas invadiram as igrejas durante as reuniões das juntas e destruíram os papéis do alistamento (CARVALHO, 1996; MENDES, 1999). Na concepção do historiador Fábio Faria Mendes (1999), as revoltas contra o alistamento foram movimentos reativos à imposição da presença do Estado. A nova lei do sorteio representava perda fundamental para o controle local sobre o recrutamento. O sorteio reduzia drasticamente as possibilidades de negociação e a barganha características da dinâmica do recrutamento forçado, e ameaçava eliminar as linhas de demarcação entre protegidos e desprotegidos (MENDES, 1999, p. 275). Além disso, a lei n° 2.556 alterava as redes de parentes, clientes e amigos que comumente ofereciam proteção contra as ameaças do alistamento e que já haviam sido postas em suspenso pela mobilização para a guerra ainda recente na memória popular. A equidade almejada pelos idealizadores era justamente o motivo de ódio da população, principalmente entre os “pobres honrados” que não podiam admitir o tratamento igual com aqueles que consideravam fundamentalmente desiguais (MENDES, 1999, p. 275). O engajamento militar reduziria inclusive, os horizontes de invisibilidade da população (MENDES, 1999, p. 271), garantia fundamental de proteção

31

ordem econômica ou social. Em um discurso, José Fernandes da Costa Pereira

Junior (Relatório apresentado á Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo,

1862, p. 13), afirmou que a província, pouco povoada e carecedora de braços, não

poderia fornecer grande contingente para o Exército. Do mesmo modo, a legislação

previa garantias à manutenção das famílias por ventura atingidas pelo recrutamento,

daí as isenções dos filhos de viúvas, dos irmãos mais velhos responsáveis por

órfãos menores, dos homens casados. No entanto, nem todas as isenções eram

respeitadas, fosse pela interpretação dos responsáveis pelo recrutamento ou porque

ao recrutar homens não sujeitos ao serviço das armas e contar com sua posterior

liberação – principalmente através das vias legais – o Estado imperial via sua

autoridade presidencial e monárquica fortalecida, pois afirmava um ideal de justiça

imperial (KRAAY, 1999, p. 122).

A documentação é profícua de requerimentos e petições de recrutados ou

seus familiares solicitando a soltura ou dando mostras das boas condutas morais

dos indivíduos. As petições e requerimentos que compuseram nosso escopo de

fontes encontram-se no Livro 34, intitulado Correspondências do Recrutamento,

pertencente à Série Acioly do Arquivo Público do Espírito Santo – APEES. O

universo total das fontes utilizadas compreendeu 287 petições e requerimentos entre

os anos 1836 e 1848, enviados à Chefia de Polícia, órgão responsável pela

efetivação do recrutamento militar na província, ou ao Presidente da Província.

frente às demandas do Estado, vistas como invasivas. De acordo com José Murilo de Carvalho (1996), a resposta da população ao alistamento– juntamente com as reações à instituição do registro civil e à introdução do novo sistema de pesos e medidas – significou a negação a uma cidadania imposta de cima para baixo. A população buscava garantir direitos tradicionais, o que não deixava de ser cidadania, ainda que em negativo, devido ao rompimento de um pacto não escrito, que estabelecia que o governo não possuía o direito de interferir no cotidiano e nas tradições populares.

32

Figura 1: Gráfico "Requerimentos distribuídos por década (1836-1848)"

Fonte: Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, Série Accioly, APEES.

O historiador Vantuil Pereira (2010) situou o movimento, que nomeou de

“peticionário”, no Primeiro Reinado (1822-1831), e o definiu como característico do

processo de implementação das estruturas políticas do Brasil recém-independente.

A proposta do autor é aplicável à análise dos requerimentos do recrutamento na

província do Espírito Santo. Os números elevados das décadas de 1830 e 1840

caíram drasticamente, a partir de 1850. De fato, nem o contexto da Guerra do

Paraguai ou da consolidação da Lei n° 2.556, que alterou significativamente as

práticas tradicionais de recrutamento, produziram petições e requerimentos em

número tão elevado como em outras províncias do Império.

Dentre estas, selecionamos aquelas que, assinadas por mulheres,

demonstraram o ideal de esposa, dona-de-casa e mãe de família (RAGO, 1985, p.

62), e, ao mesmo tempo, evidenciam certa ruptura com a passividade que

comumente se esperava delas.

Tabela 1: Requerimentos divididos por sexo dos solicitantes (1836-1848)

Sexo: Números:

Homens 210

Mulheres 77

0

20

40

60

80

100

120

140

160

180

200

1830 1840

33

Total 287

Fonte: Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, Série Accioly, APEES.

A estrutura das petições constituía-se de maneira similar (conferir Anexo Um).

O documento era iniciado por meio da identificação do peticionário ou peticionária e

em nome de quem ou por quem este ou esta solicitava o pedido de dispensa. Em

seguida, estabelecia-se o motivo da demanda: isenções previstas em lei;

rompimento com o código informal do recrutamento; posição do recrutado como

responsável ou de extrema importância na manutenção da família, sua boa conduta

moral, a menção ao exercício de profissões, de fundamental importância para que o

recrutado se diferenciasse da categoria dos vadios. Notamos que, diferentemente

dos documentos analisados por Vantuil Pereira (2010), não havia exaltações às

autoridades. As autoridades mencionadas nos requerimentos eram os diretamente

responsáveis pelo recrutamento: o Chefe de Polícia ou Inspetor de Quarteirão e, em

alguns casos, o Presidente de Província.

Ao analisar o movimento peticionário do Primeiro Reinado, Vantuil Pereira

(2010, p. 256) estabeleceu duas hipóteses explicativas para as petições

encaminhadas à Assembleia Constituinte com a mesma caligrafia. A primeira seria o

analfabetismo dos requerentes, e a segunda, que não excluía a primeira, a

existência de um funcionário responsável por receber e registrar as demandas

enviadas ao Legislativo. Na impossibilidade de corroborar o primeiro pressuposto, o

autor reforçou a segunda hipótese. Em nossa análise, conseguimos determinar a

existência de um funcionário responsável pelos requerimentos, tanto por que

algumas vinham assinadas, tanto pela semelhança entre as caligrafias. O

analfabetismo de pelo menos uma das requerentes foi também aferido. A petição de

Theresa Maria de Jesus (APEES, Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do

Recrutamento, fl. 556), trouxe “A rogo da requerente”.

1.2 O recrutamento no Brasil imperial: os soldados e os homens honrados

O recrutamento para o Exército no Brasil nos séculos XVIII e XIX contou com

certa rede de privilégios, imunidades e isenções, e sua prática atendeu a outros

objetivos além de preencher o efetivo militar. As estruturas militares instituídas pela

Coroa Portuguesa obtiveram novas nuances na Colônia para se adequar à imensa

34

extensão territorial e às limitações materiais e humanas, e tornaram imprescindível o

recurso aos notáveis locais para a consolidação da autoridade real. No reino e na

América Portuguesa, o recrutamento era utilizado pelos notáveis para seus próprios

fins e a teia de isenções e privilégios constituíram-se nas principais dificuldades

enfrentadas pelos recrutadores (MENDES, 2004, p. 115-116). Tal conjuntura, aliada

à repugnância da população pelo serviço de armas, que desde o final do século XVII

já deixara perplexas as autoridades coloniais (MENDES, 2004, p. 123), tanto

atravancaram o alistamento militar no Brasil quanto compuseram sua dinâmica

própria.

Na perspectiva de Hendrik Kraay (1999), o recrutamento no Brasil imperial

correspondeu ao sistema de tração triangular, cujos vértices eram representados

pelo Estado, pela classe de senhores de terras e proprietários de escravos e por boa

parte dos pobres livres, cada qual obtendo para si resultados expressivos.

Competência das autoridades civis provinciais, o engajamento militar era realizado

pelo aparato policial, judicial e administrativo, e o papel desempenhado pelo Exército

foi deveras limitado. Assim, o recrutamento somente pode ser entendido em nível

local, por conta de sua própria organização e por sua relação com os laços de

clientelismo e patronato. A trama que ligava os três grupos consolidou informalmente

um código de recrutamento “legítimo” em tempos de paz, cuja oposição foi

praticamente nula, exceto por aqueles alistados nas Forças Armadas (KRAAY, 1999,

p. 115).

A principal legislação que regulou o recrutamento durante o Império, até a

promulgação da Lei n° 2.556, em 1874, foi o conjunto das Instruções de 10 de julho

de 1822. Nela foi estabelecido um sistema de recrutamento no qual foi dado amplo

reconhecimento à preeminência social e demonstrou a intenção de proteger aqueles

entendidos como essenciais à manutenção do bem estar da sociedade e da

economia (MENDES, 2004, p. 122; KRAAY, 1999, p. 117). As Instruções também

consolidaram gradativamente, até o final do Império, todas as categorias que

estavam isentas do alistamento, de tal maneira que em 1888, um delegado elencou

mais de 100 categorias que eram imunes ao serviço militar (MENDES, 2004, p. 122).

Entre as isenções e a proibição de se recrutar 60 dias antes e 30 dias depois das

eleições, os recrutadores reclamavam que não encontravam homens sujeitos ao

recrutamento, tornando-o completamente impossível (KRAAY, 1999, p. 118).

35

Eram isentos do recrutamento os envolvidos em atividades consideradas

economicamente úteis: feitores, tropeiros, artesões, cocheiros, marinheiros,

pescadores, mestres de ofício, pedreiros, carpinteiros, canteiros, aprendizes da

Imprensa Régia, estudantes e eclesiásticos. Também eram desobrigados os homens

casados, o irmão mais velho de órfãos, o filho único de lavrador, os maridos e filhos

de amas dos expostos, entre outros. O ideal do recrutamento aliou garantias aos

prováveis desamparados à manutenção dos interesses da lavoura, da mineração e

das artes; era primordial que o recrutamento se realizasse sem perturbações à vida

econômica e social. Entretanto, por mais minuciosas que fossem na enumeração

dos isentos, as Instruções de 1822 eram ambíguas no que dizia respeito aos

critérios a que os recrutáveis deveriam satisfazer. Mesmo as restrições às isenções

instituíam apenas que os indivíduos devessem cumprir efetivamente seus ofícios e

apresentar bom comportamento, o que deu aos responsáveis pelo recrutamento,

ampla margem de liberdade na interpretação da lei (MENDES, 2004; KRAAY, 1999).

Através desse livre-arbítrio, os alistadores operaram um delicado sistema de

recrutamento, que deveria atingir os interesses de cada um dos três grupos

envolvidos no processo: Estado, os senhores de terras e escravos e a população

sujeita ao recrutamento (KRAAY, 1999).

A consequência do alargamento das isenções foi um processo de

“desuniversalização” (MENDES, 2004, p. 122) do serviço militar que tornou o

engajamento militar, sinônimo de recrutamento forçado e atingiu uma de suas

finalidades, pela perspectiva do Estado e dos senhores de terras e escravos. Além

da obtenção de um número adequado de soldados, o recrutamento constituiu-se em

arma de controle social e um instrumento de coerção do trabalho (KRAAY, 1999, p.

117). A mensagem era explícita: vadios, por natureza fora das relações de

patronato; ladrões de gado e escravos, ameaçadores da estrutura econômica;

libertos que não respeitavam seus antigos senhores e assim quebravam a ordem

moral da escravidão; homens que violavam a moral sexual e viviam em concubinato

ou cometiam crimes de defloramento, tornaram-se alvos comuns para o ingresso por

força no exército (KRAAY, 1999, p. 124). As forças policiais utilizavam o

recrutamento para se livrar de criminosos e desordeiros, principalmente quando os

tribunais não os condenavam. Um forte grau de politização também marcava o

recrutamento, pois, em tempos de paz, era comum alistar adversários políticos, o

36

que se tornava ainda mais dramático no período das eleições, em que a competição

eleitoral poderia culminar em confrontos armados entre as facções políticas locais

(IZECKSOHN, 2011, p. 404) – daí a proibição de recrutar em períodos

imediatamente antes e após as eleições.

Por sua vez, parte da população pobre e livre, via no recrutamento – e nas

relações intrínsecas ao mesmo, como o patronato – algo natural, necessário, uma

boa maneira de organizar as relações sociais e de se diferenciar dos excluídos da

sociedade, daqueles considerados a escória. O historiador Ricardo Salles (1990, p.

79-80), defendeu que a camada da população alvo do recrutamento era totalmente

marginal, política e economicamente ao sistema escravista dominante6, de modo

que estavam sujeitos ao recrutamento de acordo com as vontades e os interesses

das autoridades e dos senhores de terras. No entanto, para Hendrik Kraay (1999, p.

126) os pobres livres constituíam uma categoria social extremamente diferenciada,

dinâmica e ativa, capazes de operarem no sistema de recrutamento sem a sujeição

aos proprietários de terras e escravos. . De fato, Joan Meznar (1992), destacou a

relevância daqueles considerados “pobres honrados”, os pequenos agricultores que

cumpriam seus deveres na Guarda Nacional, que satisfaziam suas obrigações

familiares e, por isso, viam o Exército com desprezo, como atividade bruta e

perigosa, indicada aos indivíduos tidos como socialmente indesejáveis

(IZECKSOHN, 2011, p. 398).

6 Para o historiador Ricardo Salles (1990), a população livre de baixa extração social, no campo, era

subordinada social, política e ideologicamente aos grandes proprietários por laços de mandonismo e dependência; na cidade, formavam uma multidão de prestadores de serviços, biscateiros, pequenos comerciantes e artesãos, vagabundos e mendigos, marginalizados e excluídos do sistema administrativo. Social e politicamente, tais grupos formavam a turba, “[...] tipicamente um fenômeno pré-capitalista, característico de uma sociedade não integrada pelo mercado econômico e pelos meios de comunicação, pelas organizações de massa e pelos canais institucionais de expressão da cidadania” (SALLES, 1990, p. 79). Para Salles, estes grupos, participantes das comoções sociais, estavam sempre atentos às alterações bruscas em seu modo de vida, pois não tinham acesso à cultura política europeia, eram analfabetos e não tinham noção do funcionamento e do significado do aparato institucional construído no país. Entretanto, conforme Vantuil Pereira (2010, p. 34-39), alguns autores que buscaram compreender os entendimentos sociais, as estratégias e os comportamentos dos visto como “de baixo”, sugeriram manifestações em contrário, como Michelle Perrot (1988), Natalie Zemon Davis (1990) e em diversas obras de E. P. Thompson. Para o caso brasileiro, pode ser citado como exemplo o próprio Vantuil Pereira (2010) em sua análise das petições enviadas ao Congresso Nacional pela população como uma tentativa de conquistar a cidadania que almejavam (as proposições de Pereira [2010] no tocante as petições, dentro do recorte temático do recrutamento, serão analisadas ainda neste capítulo). Citamos ainda as abordagens de José Murilo de Carvalho (1996; 2006) sobre a cidadania no Brasil, especialmente os cidadãos em negativo, que demonstram a atuação de setores da população fora do aparato político tradicional.

37

As condições da caserna contribuíam para a imagem do serviço militar, visto

como degradante, um castigo e uma condenação. No ano do início da Guerra do

Paraguai, a remuneração era a mesma de quarenta anos antes, quando a moeda

valia o dobro, a tropa recebia apenas uma refeição por dia, as acomodações nos

quartéis eram péssimas e o armamento antiquado (DORATIOTO, 2002, p. 111).

Além disso, permaneciam as punições corporais para as faltas dos soldados. Os

Artigos da Guerra, expostos aos recrutas em 1865, na opinião de Hendrik Kraay

(2004, p. 248), apresentavam mais pontos em comum com as punições físicas do

Antigo Regime do que com a disciplina moderna dos exércitos europeus, que

inspiravam a organização militar brasileira. Os Artigos estipulavam a pena de morte

para as faltas que iam da deserção e do motim ao roubo e venda de equipamentos,

ameaçavam penas de prisão (que incluíam trabalhos forçados), castigos físicos e

avisavam que a embriaguez dobraria a repreensão. Ainda que a penalidade máxima,

apesar de sua importância na legislação, não tenha sido largamente utilizada, os

castigos físicos eram comuns7. Pancadas de espadas de prancha, períodos de

prisão a pão e água, ou amarrar os soldados com dois mosquetes, o tornilho

(KRAAY, 2004, p. 250). As punições físicas foram gradativamente restritas pela

legislação, embora só tenham sido finalmente abolidas pela Lei n° 2.556, de 1874,

que visava, entre outras coisas, modernizar a organização militar brasileira. Os

oficiais passaram a contar com medida providencial para lidar com soldados

problemáticos: o de transferi-los para a Marinha, cuja disciplina era bem mais rígida

(KRAAY, 2004, p. 251-252)8.

Outro aspecto controverso no serviço militar do Brasil imperial diz respeito ao

tempo em atividade. Apesar do efetivo brasileiro nunca ter sido de grande monta –

em tempos de paz, a partir de 1830, oscilou entre 15.000 e 20.000 homens (KRAAY,

1999, p. 117) – os problemas de recrutamento eram tais que anualmente era

necessário repor um quarto do número total (MENDES, 2004, p. 124). Por conta

7 Na análise do historiador brasilianista Hendrik Kraay (2004) sobre os soldados da guarnição da

Bahia entre 1850 e 1889, a pena de morte não foi nenhuma vez imposta aos recrutas. No entanto, como o próprio autor afirma (2004, p. 238) os historiadores sociais brasileiros não deram aos soldados à mesma atenção do que as demais classes baixas da sociedade brasileira: os escravos, as mulheres e os pobres livres; e assim, faltam estudos que nos permitiriam comparar os índices de pena capital em outras províncias. 8 Para maiores informações sobre o cotidiano e a disciplina na Marinha, conferir Álvaro Nascimento

(2004; 2013). A abordagem do autor permite inclusive, uma melhor compreensão do contexto da Revolta da Chibata em 1910, contra os castigos corporais ainda remanescentes.

38

disso, o Estado por muitas vezes aumentou ilegalmente o tempo de adesão dos

recrutas, que normalmente eram previstos entre seis e nove anos. Para manter o

Exército em patamares mínimos, era necessário reter as baixas (MENDES, 2004, p.

124), e essa demora constituiu uma das principais causas das deserções. Estes

homens não se transformavam em soldados de carreira, o serviço militar era para

eles uma fase (às vezes relativamente longa) de suas vidas (KRAAY, 2004, p. 243),

o que denota o nível pouco profissional do Exército imperial. Em 1851 e 1852, nas

intervenções do Prata, a insuficiência de homens alistados levou a contratação de

tropas mercenárias (DORATIOTO, 2002, p. 112) e nas duas guerras externas do

Império, a Cisplatina nos anos 1820 e a do Paraguai nos anos 1860, tornou-se claro

que o a instrução militar precária a que voluntários e recrutas eram submetidos não

lhes dava condições de combater um exército organizado.

Problemático em tempos de paz, no decorrer da Guerra do Paraguai o

recrutamento complicou-se ainda mais, devido à longa e morosa campanha, ao

despreparo do Exército brasileiro, aliado aos sérios problemas de infraestrutura, ao

grande número de baixas por doenças e ao desamparo das famílias dos soldados.

Nos estágios iniciais do conflito, houve comoção nos setores populares para compor

os corpos de Voluntários da Pátria (DORATIOTO, 2002, p. 116), que Vitor Izecksohn

(2001, p. 87) nomeou de “corrente de fogo elétrico”. Criados por decreto em sete de

janeiro de 1865, os corpos dos Voluntários da Pátria compuseram a estratégia do

governo imperial de tornar o Exército mais aceitável para brasileiros de todas as

classes, os diferenciando do recrutamento regular (IZECKSOHN, 2011, p. 399). As

condições oferecidas aos voluntários eram vantajosas: além do soldo normal de 500

réis diários, receberiam 300 mil réis ao dar baixa no final da guerra e terras de

49.500 metros quadrados em colônias militares e agrícolas (DORATIOTO, 2002, p.

114). Para Francisco Doratioto (2002, p. 115-116; 264), mesmo que a população

visse em tais vantagens financeiras a perspectiva de melhoras nas condições em

que viviam, porém, fora o entusiasmo patriótico e o desejo de derrotar o ataque

paraguaio, tido como traiçoeiro e injustificável, que promoveu o alistamento de dez

mil voluntários. Uma figura expressiva desse entusiasmo foi Jovita Alves Feitosa,

que aos 18 anos cortou o cabelo, se vestiu como um homem e se voluntariou para

“vingar as mulheres brasileiras injuriadas pelos paraguaios” (CARVALHO, 2006, p.

38). Após ter a identidade descoberta, Jovita acabou por ser aceita no Exército,

39

ainda que seja dúbia a posição que ocupou, se de sargento (D’ARAÚJO, 2004, p.

443) ou encaminhada a um hospital militar (DORATIOTO, 2002, p. 115)9.

No decorrer da Guerra do Paraguai, o recrutamento alterou as relações

tradicionalmente articuladas em torno do processo entre Estado, senhores e

proprietários de terras e escravos e a população livre. Um dos principais focos de

conflito foi o fato dos guardas nacionais, que até então eram isentos, terem sido

designados para o Exército. Ser membro da Guarda era sinal de prestígio e uma das

melhores desculpas que um homem livre podia oferecer para escapar ao

recrutamento. Ao modificar a dinâmica tradicional do recrutamento, submetendo a

Guarda Nacional à autoridade do Exército, o governo imperial interferiu na

autoridade dos homens que antes garantiam a proteção dos clientes contra as

táticas brutais de apresamento de recrutas. A massificação do recrutamento também

provocou rusgas entre o Estado e a população, de trabalhadores livres, que tiveram

seu status igualado aos demais recrutas, vistos como a ralé (IZECKSOHN, 2011, p.

403); principalmente no que diz respeito à presença de escravos e libertos no

Exército imperial10.

9 Jovita Alves Feitosa e Maria Quitéria de Jesus foram as mais famosas mulheres incorporadas ao

Exército brasileiro. Jovita foi alcunhada de Joana D’Arc nacional (CARVALHO, 1996, p. 352), ao passo que Maria Quitéria participou das lutas de independência do Brasil e incorporou-se ao Batalhão de Voluntários de d. Pedro I e foi a primeira brasileira a assentar praça em uma companhia militar. Foi recebida pelo imperador e condecorada com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro (D’ARAÚJO, 2004, p. 443). Sobre a participação das mulheres na Guerra do Paraguai, conferir Macedo (2006) e a respeito da incorporação das mulheres às Forças Armadas brasileiras, ver D’Araújo (2004) e Mathias (2005). 10

A dificuldade em preencher os vazios na tropa levou o Império a libertar escravos para batalharem

pelo país na Guerra do Paraguai. Entretanto, diferentemente da guerra de independência na Bahia, os senhores tiveram que libertar seus escravos antes que pudessem ser alistados (KRAAY, 2002, p. 122). Sociedades patrióticas e conventos encarregaram-se da compra de escravos para lutarem na guerra. Embora a propaganda de Solano Lopez caracterizasse o Exército brasileiro como macacuno, soldados negros lutaram em três das quatro bandeiras envolvidas no conflito: Paraguai, Uruguai e Brasil (TORAL, 1995, p. 287). No entanto, afirmar que o Exército brasileiro era um exército de escravos significa confundir brancos com livres e negros com cativos. De acordo com Ricardo Salles (1990, p. 66) os escravos combatentes jamais ultrapassaram 10% do conjunto das tropas, entre libertos pelo governo ou particulares, substitutos – a legislação permitia a contratação de outros para servirem no lugar dos convocados e muitos proprietários enviaram escravos para lutarem em seu nome – ou mesmo aqueles que buscavam no Exército o “abrigo da farda” e cujas fugas as autoridades imperiais fingiam não perceber. Para André Amaral de Toral (1995, p. 293-294), a questão era menos racial e mais de exclusão social, porque dentro do próprio exército em campanha reproduziam-se aspectos da sociedade que o engendrou. Escravos e soldados pobres trabalhavam para os oficiais como camaradas, ou seja, criados. Os cativos, principalmente, trocavam a enxada pelo mosquetão e deixavam de obedecer ao capataz para cumprirem as ordens do senhor oficial (TORAL, 1995, p. 293). Ainda assim, na concepção de Vitor Izecksohn (2004, p. 182), os esforços de guerra e as políticas de emancipação estiveram, nos anos 1860, unidos de uma maneira ambígua. Apesar da igualdade de direitos civis entre os cidadãos garantida pela Constituição de 1824, os homens de cor dependiam do reconhecimento da sua liberdade para não terem questionado até

41

O mecanismo mais comum para escapar ao recrutamento, dentro da

perspectiva legal do Estado, era o envio de requerimentos e petições às autoridades

responsáveis. Dado o caráter local do recrutamento, as petições eram geralmente

endereçadas ao Chefe de Polícia ou ao Presidente de Província. A partir de 1871, os

apelos também poderiam ser feitos aos tribunais, depois que uma reforma legislativa

permitiu aos recrutados o direito de apresentar habeas corpus antes do alistamento,

(KRAAY, 1999, p. 128). A predileção pelo uso das petições como recurso ao

recrutamento militar pode ser explicada pela força que tinham por simbolizar uma

inserção no sistema político. Desde o século XIII, petições já eram enviadas às

Cortes Portuguesas e serviam para legitimar no mundo ibérico, o poder do Rei e ser

um mecanismo de escape do povo diante de diversas situações (PEREIRA, 2010, p.

229-230)11.

Na concepção de Vantuil Pereira (2010), o movimento peticionário do

Primeiro Reinado, foi fruto do constitucionalismo e do processo resultante da

emancipação política brasileira (PEREIRA, 2010, p. 12)12. O autor usou como fonte

principal de sua pesquisa o conjunto de 465 (dentro de um universo de 2.078) e 200

petições, requerimentos, representações e queixas enviadas respectivamente à

Câmara dos Deputados e ao Senado Imperial13. Esses documentos revelaram a

busca da população por direitos civis e políticos e vontades individuais, produzidas

em um momento de mudanças significativas, reflexos de transformações e conflitos.

Contrariando a ideia de que pessoas comuns apenas se submetiam à sua condição

subalterna, os cidadãos obraram sob a noção particular de direitos e cidadania.

Petições, representações, queixas e requerimentos enviados ao Soberano

Congresso no alvorecer do Império do Brasil, evidenciavam a existência de conflitos

11

Durante a Colônia, as petições foram o instrumento mais utilizado pelos colonos para se

relacionarem diretamente com o monarca, fosse por intermédio das Câmaras de suas vilas e cidades, fosse individualmente, para assim solicitarem títulos, privilégios e mercês (BICALHO, 2000, p. 87). 12

O uso de petições como fontes de pesquisa como afirma Vantuil Pereira (2010, p. 45) não são uma

novidade na historiografia, tendo sido utilizadas por autores como Russel-Wood (1995) e Guilherme Pereira das Neves (1997). No entanto, Pereira utiliza outro lócus de poder – a Câmara dos Deputados e o Senado Imperial – e sua proposta de desvendar o cotidiano e a experiência social e política de grupos distantes e assim recuperar a vivência de homens e mulheres nas primeiras décadas do Brasil Império (PEREIRA, 2010, p. 44), corrobora nossas perspectivas de análise. 13

Vantuil Pereira (2010, p. 260) destacou a ausência de petições enviadas à Câmara oriundas de

quatro províncias do Império, entre elas o Espírito Santo, juntamente com Goiás, Mato Grosso e Piauí. O autor oferece como explicação o fato de que o maior número de petições advinha das principais províncias do Império, nas quais estava presente grande número dos funcionários públicos da burocracia imperial, especialmente, após a crise econômica de 1829, que levou o governo a extinguir cargos, principalmente, administrativos.

42

já antigos, que passaram a ser expressos utilizando novo discurso. Os cidadãos

faziam a leitura política da realidade, propagada pelo discurso e pela capacidade de

enxergar nos poderes instituídos lócus para o exercício de seus direitos de cidadão

(PEREIRA, 2010, p. 25).

Os requerimentos, representações, queixas e petições fomentaram o

movimento significativo de ampliação dos direitos da população (PEREIRA, 2010, p.

241). Embora dirigidos às autoridades, as solicitações da população falavam de

elementos cotidianos da época e expunham o rosto do cidadão em seus aspectos

civil, econômico e social. Portanto, Vantuil Pereira (2010, p. 46), acredita em uma

relação dialética entre a conjuntura política e a entrada de petições no Parlamento.

O binômio direito do cidadão-direito de petição caminhou junto e revelou uma

disposição do cidadão como indivíduo possuidor de direitos. Reclamar, queixar-se e

peticionar não era só um direito, era primordialmente um dever do cidadão,

especialmente se a Lei estava sendo descumprida ou um direito negado (PEREIRA,

2010, p. 277-279). O resultado foi a manifestação de uma variada gama de

entendimentos elaborados por distintos grupos e ajuntamentos políticos e sociais,

que nem sempre correspondiam à direção do Estado. Os cidadãos viviam o

processo histórico, enxergavam-se como membros da sociedade política e

acreditavam que nela poderiam interferir. Através de suas demandas, formulavam

compreensões próprias sobre liberdade, sobre o viver em sociedade e

entendimentos acerca do direito, da justiça, do poder e das práticas legítimas

(PEREIRA, 2010, p. 242-243).

As petições revelam a expansão da gama de atores políticos no Brasil.

Entretanto, para Roberto Nicolas Puzzo Ferreira Saba (2010), a atividade

peticionária em vigor no Brasil em tal momento não rompeu significativamente com o

padrão do Antigo Regime. O caráter das mesmas permaneceu, e eram, em grande

parte, pedidos de um grupo ou individuo aos representantes da nação: as petições

“suplicatórias” (SABA, 2010, p. 43). A partir das primeiras décadas do Segundo

Reinado, um grupo de petições começou a se destacar. Inseridas no debate público,

procuravam influenciar e participar no aprimoramento das leis e instituições do

Império. O efeito foi tão significativo que, mesmo nos casos de petições que

buscavam favores específicos, o discurso que as legitimava era baseado no ideal de

interesse nacional (SABA, 2010, p. 46).

43

Dentro da dinâmica do recrutamento militar de modo geral e também em

nossa documentação, as petições podem ser classificadas como suplicatórias, mais

próximas do movimento peticionário analisadas por Vantuil Pereira (2010) do que

por Roberto Nicolas Puzzo Ferreira Saba (2010). Além de ilustrarem aspectos do

cotidiano e da vida social e política dos requerentes, evidenciam, também, o impacto

do recrutamento na vida da população. A leitura política feita pela população sujeita

ao recrutamento fazia com que em seus requerimentos, os recrutados enfatizassem

sua decência com base de posse de bens, no casamento legítimo, na moralidade

sexual e no respeito à autoridade, e demonstravam sua distância daqueles que, na

falta destas qualidades, eram considerados possuidores das características de

soldados. Hendrik Kraay (1999) encontrou na província da Bahia petições que

deixavam nítidas as diferenças entre os pobres honrados e os recrutáveis. Assim,

um pai solicitou a liberação de seu filho, recrutado à força, alegando possuir meios

que lhe permitiria “‘dar a seu filho uma educação, que o tornaria mais útil à

sociedade’ do que como soldado”; outro peticionário afirmou que era pedreiro

honesto, guarda nacional submisso, homem que vivia em paz com seus vizinhos e

não flagelava a sociedade; um terceiro estranhou ser recrutado enquanto “vadios,

sem modo de vida conhecido, vagavam por toda parte”, ao passo que ele era

proprietário e cidadão laborioso (KRAAY, 1999, p. 127).

A análise de Marcos Vinícios Luft (2013), sobre os requerimentos de dispensa

durante a Guerra da Cisplatina na província do Rio Grande do Sul, demonstrou outro

discurso comum. Pelo disposto na legislação de 1822, um filho de cada lavrador era

isento do recrutamento, entretanto, devido às resoluções um tanto quanto ambíguas

e ao fato da interpretação da lei caber diretamente aos responsáveis pelo mesmo,

nem sempre todas se seguiam as isenções. Ainda mais em tempos de guerra,

quando o número de recrutas necessariamente aumentava, o sistema tradicional – e

em geral aceitável – do recrutamento sofria mutações que elevavam as reclamações

por parte dos recrutados. Como já dito, durante a Guerra do Paraguai, um dos

principais focos de conflitos foi a designação de membros da Guarda Nacional para

o Exército, que anteriormente eram tradicionalmente isentos do recrutamento. No

Rio Grande do Sul, durante a Guerra da Cisplatina, capatazes e estudantes foram

recrutados para as tropas de linha, categorias que de acordo com as Instruções de

1822, eram desobrigadas do serviço militar (LUFT, 2013, p. 55). Esses capatazes e

44

estudantes conseguiram mobilizar seus contatos para maior legitimidade e força em

seus pedidos, fazendo funcionar as redes de sociabilidade e de privilégios em que

estavam inseridos. No conjunto das 31 petições analisadas por Luft (2013, p. 53-55),

a categoria com maior incidência de suplicantes foi a de lavradores e criadores, que

não apresentaram em anexo nenhum documento ou relato que atestasse a

veracidade de seus pedidos.

Assim, afora as questões de honra e decência, os recrutados também

apelavam à manutenção de sua subsistência e da de sua família, especialmente nos

casos em que o peticionário – ou peticionária conforme veremos – buscava a

intercessão por seu filho. Os prováveis desamparados pelas levas do recrutamento,

as viúvas, os órfãos, os casados, os filhos únicos, os irmãos menores dos filhos mais

velhos, sabiam que nem sempre suas garantias seriam concedidas apenas pelas

isenções previstas em lei. Foi o caso, por exemplo, dos pedidos de dois lavradores

analisados por Marcos Luft (2013, p. 50-52) que se anteciparam ao recrutamento de

seus filhos. José Francisco, que teve seu pedido atendido, já tinha “oferecido os

ditos dois filhos” que lhe haviam solicitado por conta da campanha da Cisplatina, e

solicitou que conservassem o mais novo, que trabalhava para a sustentação de oito

filhas e filhos menores. Miguel Felix de Vasconcellos também pediu pela

permanência de seu filho mais novo, que “ajudava o suplicante na agricultura”

(LUFT, 2013, p. 51). Em ambos os casos, como o autor ressaltou, os filhos estariam

isentos do recrutamento, por serem menores de idade, porém, devido às

circunstâncias especiais em tempos de guerra, o receio dos suplicantes era

justificado.

Desse modo, o acesso às petições funcionava mais como mecanismo para

que a população distinguisse entre os homens honrados e os desqualificados,

sujeitos ao tributo de sangue. Conforme já dito, o recrutamento recaía sob aqueles

que não podiam contar com este aparato legal, aqueles a quem faltavam os meios

de preparar os requerimentos e os patronos e aliados necessários para apoiarem

suas petições com atestados e outros documentos (KRAAY, 1999, p. 129).

Entretanto, mesmo que os suplicantes que não contassem com o respaldo de algum

patrono, possuíam algum conhecimento das normas que regiam as práticas do

recrutamento, fosse por experiência própria, de família ou de conhecidos. Assim, os

requerentes destacavam justamente os aspectos que, pela letra da lei, garantiriam a

45

isenção, além de enfocar outros que não estavam que auxiliariam na hora de pedir a

baixa do serviço, como a alegação de moléstias (LUFT, 2013, p. 57).

Ao apelar à presidência da província e aos tribunais, os homens recrutados

agiam com base em direitos que julgavam ter ou que violados, buscavam sua

garantia. Também se aproveitavam dos conflitos entre as facções rivais do aparato

estadual, dos conflitos que dividiam os homens abastados e da garantia do Estado

de legitimar – e ao mesmo tempo abrandar – o recrutamento. Porém, estes conflitos

podiam, muitas vezes, ser a razão pela qual os homens eram recrutados. Dado o

alto teor político do recrutamento, da mesma maneira que a elite local podia proteger

seus clientes fiéis, podia também definir os infiéis como vadios ou criminosos. Em

alguns requerimentos para a soltura dos homens recrutados, a disputa pelas

características atribuídas a esses homens demonstravam que as avaliações opostas

eram resultado de conflitos políticos locais. Ou de clientes infiéis, como Manoel

Joaquim Custódio, da província da Bahia, que em 1867 deixou de cumprir as

instruções eleitorais dadas por seu comandante da Guarda Nacional e por isso, foi

mandado para a guerra (KRAAY, 1999, p. 128). O recrutamento era uma ameaça

para aqueles que não cumprissem as obrigações para com seus patronos.

Os requerimentos e petições que versavam sobre o recrutamento não são

exemplos apenas da apropriação política e da tentativa de garantir direitos por parte

da população. Além de refletir os conflitos políticos, envolvidos no processo de

recrutamento, também serviam como instrumentos de fortalecimento das

autoridades imperiais. O recrutamento de alguns homens sabidamente isentos era

recurso indispensável ao sistema de recrutamento forçado, pois a liberação

subsequente dos mesmos fornecia à população a garantia de seus direitos pelo

Estado.

O movimento peticionário é de extrema importância para a compreensão de

como se deu a construção da noção de cidadania e o entendimento de que os

homens têm direitos perante a Lei, ainda que estes não tenham sido os mesmos

para todos. As petições e requerimentos foram um dos mecanismos na luta pela

afirmação dos direitos civis e políticos que durante todo o século XIX, partes da

sociedade procuraram garantir. A população buscou construir mecanismos que lhes

garantissem a participação política e instrumentos que as protegessem dos abusos

46

do poder político. Para Vantuil Pereira (2010, p. 376-377), o movimento peticionário

foi um capítulo – no que concorda com José Murilo de Carvalho (2002) - do longo

caminho da construção da cidadania brasileira.

2.4 Diz a senhora suplicante que o recrutado que a sustenta...

As mulheres representaram o contingente de 87% dos autores de petições,

solicitações e requerimentos com o tema de recrutamento na província do Espírito

Santo. O percentual configura a existência de um grupo que apresentava

características comuns que podem ser vistas especialmente através do repertório de

uma identidade social e cultural centrada no gênero, e através dos papéis sociais

familiares. Dentre estes, a figura da mãe é a que mais se destaca e consiste na mais

utilizada, curiosamente, por homens e mulheres para definir uma identidade coletiva

e, para se posicionar e posicionar outros em relação a ela.

Desde o século XVIIII, por meio, principalmente, das ideias de Rousseau

acerca da educação das crianças e da participação e responsabilidade das mulheres

neste processo, a figura da mãe adquiriu importância cada vez maior e foi até

mesmo investida de certo aspecto sagrado. Outro aspecto determinante para a

divulgação – e a aceitação – deste ideal de mãe foi a medicalização. Devido aos

avanços científicos dos séculos XVIII e XIX, a medicina passou a versar e

repreender o corpo das mulheres. Nesse contexto, surgiu a figura do médico

profissional, “aquele que transforma em especialidade a sua tarefa de dizer às mães

o que fazer” (EHRENREICH&ENGLISH, 2003, p. 213).

No Brasil, um dos aspectos da medicalização foi a intensa discussão acerca

do aleitamento materno. Alguns médicos atribuíam à vaidade das mulheres o motivo

pelo qual recorriam ao “aleitamento mercenário”, extremamente comum no país,

especialmente pelas amas-de-leite escravas. De acordo com Margareth Rago

(1985, p. 76), “o poder médico criticava asperamente o comportamento das mães de

todas as classes sociais que não amamentavam seus pobres filhinhos”. Assim, a

maternidade adquiriu caráter universal, à qual estavam sujeitas todas as mulheres,

sem exceção14.

14 Conforme veremos no capítulo dois, no contexto do movimento abolicionista, o ideal materno foi

utilizado como recurso retórico que propagou e respaldou a inserção das mulheres na campanha. E

47

Para Margareth Rago (1985, p. 75), o discurso médico produziu dois

caminhos que conduziram a mulher ao território da vida doméstica: o instinto natural

e o sentimento de sua responsabilidade na sociedade. Ainda que a tenha conduzido

para a esfera privada, nossa argumentação demonstra que o discurso não restringiu

a mulher ao lar. É justamente a consciência da responsabilidade social que impele a

mulher à esfera pública de modo a representar melhor seu “papel”. É neste sentido

que analisamos o alto número de peticionárias suplicando a dispensa do exército em

favor de seus filhos. Em mais de 85% dos requerimentos, as mulheres argumentam

em prol de seus filhos. Vale ressaltar, porém, que o vínculo com o recrutado e o

apelo aos filhos não eram exclusividade feminina. Como nas petições analisadas por

Marcos Vinícios Luft (2013), a menção à subsistência da família compreendeu o

cerne do discurso de muitos homens e mulheres que endereçaram seus pedidos à

Chefia de Polícia da província do Espírito Santo. Em 1847, Joaquim de Santos

Braga, alegou que tinha dez filhos menores e rogou às autoridades que não “lhe dê

o incômodo de ver soldado”, seu filho de 18 anos, pois, além da lei do recrutamento

proibir, este era o único filho que o auxiliava na lavoura (APEES, Série Accioly, Livro

34 – Correspondências do Recrutamento, fl. 538).

No entanto, no caso das mulheres peticionárias, a subsistência e a

manutenção das famílias exibiam contornos ainda mais fortes e a percepção das

mulheres estritamente limitadas ao ambiente doméstico pode ser desmistificada.

Para cumprirem o papel de mãe e garantirem o sustento de sua família, tornava-se

necessário que elas ocupassem a esfera pública e fizessem uso dos aparatos

político e administrativo, sem que isso significasse uma subversão da ordem moral

vigente.

ao aproximar escravas e ex-escravas de mulheres da elite, o mesmo princípio foi capaz de romper com paradigmas de classe e de raça.

48

Figura 2: Gráfico "Relação familiar solicitante/recrutado"15

Fonte: Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, Série Accioly, APEES

Francisca Clara de Azevedo pediu pela liberação de seu filho Epifânio Martins

Meirelles, e endossou que este a ajudava em seu próprio sustento e no de sua filha,

menor de idade. O pedido foi deferido, mas a solicitante teve de apresentar

justificativa que comprovasse a veracidade do seu requerimento (APEES, Série

Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl. 18-22). Longe de

demonstrar insensibilidade aos apelos de uma senhora, o pedido, por parte da

autoridade provincial, nos leva a pensar que Francisca Clara de Azevedo,

provavelmente estava fora de uma rede de clientelismo e não contava com a

proteção de um patrono. A requerente alegou que “não poder tirar testemunhas” e

assim estava “o seu negócio paralisado cuja demora lhe é prejudicial” (APEES, Série

Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl 22).

Isso porque, de acordo com a perspectiva de Hendrik Kraay (1999), faltava à

parcela da população pobre os conhecimentos necessários para elaborar os

15

Tanto no Gráfico Dois: Relação familiar solicitante/recrutado quanto na Tabela Três: Requerimentos

discriminados pela estado civil das solicitantes, os termos “marido” e “estado civil” foram utilizados como critério de análise, visto que, devido aos elevados custos dos arranjos matrimoniais, era alto o número de uniões ilegítimas entre a população dos estratos mais baixos da sociedade. Portanto, consideramos como estado civil de “casadas” inclusive aquelas mulheres que alegaram “viver em casamento” e disso deram provas.

0

10

20

30

40

50

60

70

Filhos Maridos e/oucompanheiros

Netos Irmãos Outros

49

requerimentos e aliados que apoiassem as petições com atestados e demais

documentos. Nossa documentação corrobora tal assertiva. Os requerimentos

atendidos pelas autoridades estiveram essencialmente ligados ao enriquecimento

dos pedidos tanto retórico quanto em profusão de documentos anexados, conforme

se vê abaixo:

Figura 3: “Requerimentos deferidos e indeferidos"

O requerimento de Thereza Maria de Jesus (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl. 556-560) corrobora tal assertiva. Ela

pleiteava a liberação de seu filho do recrutamento. Nos documentos agregados à

sua petição, há a comprovação dos argumentos que compõem seu pedido. Em

atestados, o chefe de seu filho, Joaquim Pinto confirmou que o mesmo era aprendiz

de marceneiro, bem como foi comprovado, que, sendo viúva e com dois filhos já

tendo assentado praça, seu sustento provinha de Joaquim e seu ofício. Em

comparação, a petição de Maria da Rocha, (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl.564), feita em 1844, mostra-se mais vazia

retoricamente. A solicitante encontrava-se na mesma situação de desamparo de

Joaquina, após o recrutamento do filho que lhe ajudava na manutenção dos filhos

menores. Entretanto, Maria da Rocha se limitou a estabelecer que o recrutado seria

responsável pela manutenção da família.

Não Informados 33,33 %

Indeferidos 14.28%

Processos 64, 70%

Petições 35, 29%

Deferidos 40, 47

50

Apesar do discurso comum nos requerimentos das mulheres de que os

recrutados eram responsáveis pela subsistência de suas famílias, isto não significa

dizer que essas mulheres não trabalhavam, mas que talvez sozinhas, não

conseguissem arcar com seu próprio sustento. As mulheres das camadas mais

pobres da população sempre precisaram trabalhar e exerciam as mais diversas

profissões: atividades de parteiras, quitandeiras, doceiras, cozinheiras, lavadeiras,

engomadeiras, vendedoras de rua, amas de leite e o seu ganho, por pouco que

fosse, era fundamental no orçamento familiar. De acordo com o Censo de 1872, na

província do Espírito Santo as mulheres livres exerciam as funções de parteiras,

professoras, comerciantes, costureiras, operárias em tecidos, lavradoras e criadoras

e serviços domésticos.

A abordagem das requerentes em suas solicitações, recorrendo à

subsistência de suas famílias, demonstra a leitura política das mulheres. Elas

estavam integradas à esfera pública e à política da sociedade brasileira oitocentista,

portanto, tinham conhecimento da linguagem política vigente. Conheciam

minimamente as regras que normatizavam o recrutamento militar no Brasil e tendiam

para a manutenção da unidade familiar. Consequentemente, elas utilizavam o

argumento para atingir seus objetivos. A petição de Maria das Neves Pereira

(APEES, Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl.519), que

intercedia em favor de seu filho Benedito, pescador, demonstra o conhecimento da

legislação do recrutamento:

“[...] O documento que a suplicante tem a honra de oferecer à consideração de Vossa Excelência, provam quanto se alega e a vista da exceção nona das Instruções de 10 de julho de 1822, espera a suplicante ser atendida”.

Entretanto, princípios de moralidade influíam positivamente o despacho dos

requerimentos e tais argumentos podiam virar o jogo. Em 1837, Teresa Maria da

Boa Morte solicitou a soltura de seu marido, com quem vivia em harmonia havia

mais de cinco anos. Porém, seu pedido foi negado pelas autoridades policiais

porque ele “não lhe dá bom tratamento e é de péssimos hábitos” (APEES, Série

Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl.101)16. O discurso

16

Apesar de constituir uma isenção prevista nas Instruções de 1822, muitos homens casados foram

recrutados para o Exército imperial. De fato, no “Alistamento da nova companhia de cavalaria das vilas de Itapemerim e Benevente” (APEES, Série Accioly, Livro 35 – Correspondências do

51

utilizado pela autoridade revela que ainda que a honra das mulheres solicitantes não

estivesse em questão, aqueles por quem elas intercediam continuavam a precisar do

reconhecimento da honra, distintos dos demais recrutas.

Francisca Maria do Rozário solicitou em 1836, a soltura de seu filho, preso

para recrutamento e remetido pelo Juiz de Paz da Vila de Almeida. Sendo Francisco

José da Silva, o responsável pela manutenção de sua mãe e de seus irmãos

menores, ele era isento do recrutamento. Como seu pedido não foi atendido, ela

enviou um novo ofício, alegando que (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl. 42):

[...] viúva de José C. da Silva, que ela suplicante vive pobremente em companhia de quatro filhos, todos menores de dezessete anos, sendo o mais velho de nome Francisco José da Silva, que com o produto de seu

trabalho de pescador a ampara [...]17

.

O caso de Francisca Maria do Rozário apresenta a particularidade de sua

viuvez. Nesta situação, a honra do recrutado e a da solicitante eram passíveis de

questionamentos. Para Lídia Maria Vianna Possas (2009a, p.148), a viuvez trouxe

para as mulheres, posicionamentos novos, e exige explicações de vivências e

comportamentos herdados e muitas vezes estereotipados. As viúvas continuavam

sujeitas aos mesmos padrões de comportamento das mulheres casadas e à

reclusão e ao luto, muitas vezes utilizados como forma de disciplinamento do corpo.

A tradição popular também produziu (e ainda produz) representações da viuvez que

colocavam as mulheres em posições de questionamento e dubiedade moral

(POSSAS, 2009b, p. 96-97). A própria feminilidade ficava fragilizada com a condição

de viúva e podia ocorrer até mesmo a perda da função na família, ao contrário do

que aconteceu com Maria do Rozário. Sua condição de viúva possivelmente

reforçou o seu papel de mãe e de mantenedora do lar, pois dela e de Francisco José

da Silva dependiam os demais membros da família.

Recrutamento, fl.2), quase dez homens casados foram listados. O requerente Antônio Gomes atestou que era casado com Jacinta Monteiro e deste modo, era isento do recrutamento. No entanto, dado que nosso objetivo é investigar o discurso utilizado pelas mulheres de forma política, restringimos nossa análise às petições nas quais elas eram as solicitantes. 17

O caso de Francisca Maria do Rozário foi um dos utilizados por Vânia Maria Losada Moreira (2006,

p. 116) na construção da tese de que os índios eram o alvo principal do recrutamento na província do Espírito Santo, ainda que: “embora Francisca não tenha sido identificada como índia, é bem possível que fosse uma. Aldeia Velha era, nesse período (e hoje permanece sendo), um lugar tipicamente indígena. Aliás, muitos índios que perdiam suas terras na Vila de Nova Almeida iam justamente formar roças em Aldeia Velha, pois ali as autoridades municipais costumavam tolerar a formação de novos sítios”.

52

Tabela 2: Requerimentos discriminados pelo estado civil das solicitantes

Viúvas Casadas e/ou amasiadas

Solteiras Não Informado

14 9 2 52

Total: 77

Fonte: Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, Série Accioly, APEES

Na conjuntura das mulheres viúvas, a identidade evocada através da

performatividade dos papéis sociais familiares adquire contornos ainda mais fortes.

É significativo que a condição de viuvez seja a mais veiculada. A identidade é

marcada pela diferença, no caso, entre mulheres e homens e suas respectivas

posições na sociedade capixaba oitocentista. As viúvas representavam a diferença

dentro da diferença, pois se distinguiam das demais mulheres que, por ventura,

poderiam ser respaldadas por uma figura masculina. Desta maneira, sua posição é

singularmente mais frágil do que as das demais mulheres casadas ou amasiadas. O

arquétipo feminino de “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família” (RAGO, 1985, p. 62)

era construído de maneira dependente entre os três papéis. Viúvas e alijadas de um

dos vértices do triângulo, elas faziam referência não às esposas que foram, mas à

nova condição. Em todos os documentos em que a solicitante era viúva, o nome do

falecido marido foi mencionado, a exemplo do procedimento de Francisca Maria do

Rozário.

Convém destacar que as duas solicitantes solteiras procuraram interceder por

seus irmãos. Enquanto solteiras, as mulheres estavam sujeitas a rígidos padrões de

moral e conduta e qualquer comportamento tido como desviante, especialmente de

caráter sexual, contribuía para a sua exclusão e estigmatização. Nesse cenário, as

solicitantes reforçaram o denominador comum da estrutura familiar que formavam

com o irmão. Interessante que não foram feitas menções aos pais das requerentes e

dos recrutados. A petição de Joaquina Maria de Jesus (APEES, Série Accioly, Livro

34 – Correspondências do Recrutamento, fl. 65-66) é uma delas. Juntamente com

sua irmã, a solicitante requereu a soltura de irmão que, através do ofício de capataz,

era o responsável pela subsistência de ambas e de uma sobrinha das duas, órfã e

menor de idade. O fato de seu irmão ter sido feito soldado a deixou “no mais alto

grau de consternação”, pois as reduziu a um estado de indigência, levando-a “a

53

mendigar o diário pão”. Joaquina e sua irmã afirmaram que a situação era

“notoriamente sabida e melhor comprovam o documento que junto oferecem”.

Contrariando a aversão popular ao recrutamento ou, talvez, utilizando um recurso

retórico, as irmãs afirmaram que sentiam lisonjeadas de que “este seu irmão fosse

útil ao país”. Ainda, a petição de Joaquina Maria de Jesus, apesar da semelhança do

discurso, é muito mais elaborada quando comparada á outros requerimentos. Além

da comprovação em documento da precariedade de sua situação, a descrição do

caráter e da honra de seu irmão foi feita de modo a exaltar a ele, as duas irmãs e as

próprias Forças Armadas do país.

A cultura política manifesta pela população sujeita ao recrutamento,

demonstra neste contexto, a compreensão de entendimentos múltiplos da sociedade

e dos valores partilhados por ela (PEREIRA, 2010, p. 45). Por exemplo, o fato de ter

sido Tereza Maria da Boa Morte a solicitar a liberação de seu marido, observa-se a

leitura que faziam das regulamentações do recrutamento. Quando um homem

casado era recrutado, bastava que provasse o casamento ou mesmo que vivia em

regime de casamento para que fosse dispensado do serviço militar. No entanto, a

prática do recrutamento também servia para impor padrões de conduta e de

moralidade. No caso de Tereza, é possível que o casal tenha imaginado que o

discurso da mulher, solicitando a manutenção da família e declarando a harmonia

em que viviam, tivesse mais chances de sucesso.

2.5 Um movimento peticionário feminino?

O ideal feminino vigente no século XIX, que representava as mulheres como

esposa, dona-de-casa, mãe de família (RAGO, 1985, p. 62) normatizava a conduta

das mulheres. Observamos que nas petições encaminhadas às autoridades

provinciais, mais que discurso comum, pode se constatar modelos pré-

estabelecidos, um cânon. A historiadora Vânia Losada Moreira (2006, p. 14), supõe

que, tratava-se de um conjunto de argumentos que a cultura política da época

entendia como dignos de serem mencionados para livrar um homem do

recrutamento forçado. Assim, primeiramente, os homens destacavam o caráter, o

bom comportamento, o exercício de uma profissão e, só depois de estabelecida a

sua condição de honrado, apontavam as ilegalidades ou os abusos cometidos no

recrutamento. As mulheres, por outro lado, manifestavam a importância do recrutado

54

para si próprias e para a estrutura familiar e se colocavam na posição de

responsáveis pela própria subsistência.

Os requerimentos e petições das mulheres capixabas se distanciam dos

movimentos de mulheres reativos à intervenção direta do Estado em suas vidas

cotidianas, como foi o caso da revolta contra a lei da reforma do recrutamento. O

episódio das cinquenta mulheres de Papari, na província do Rio Grande do Norte e

dos grupos de mulheres que, em toda a província de Minas Gerais, dissolveram as

juntas e deram fim aos documentos do alistamento (CARVALHO, 1996, p. 353)

podem ser considerados exemplos de cidadania negativa, resposta espontânea a

medidas impopulares. Entretanto, ainda que consideradas em conjunto, forçoso

notar que as petições não possuíam caráter de movimento organizado, apesar de

apresentarem teor político mais apurado do que as revoltas com a Lei n° 2.556. Por

mais que nem todos gozassem dos direitos políticos, com as petições, a população

enxergava um lócus para exercer seus direitos de cidadão (PEREIRA, 2010, p. 25).

A opção de peticionar contra o recrutamento possibilitava às mulheres, que

poderiam ser consideradas outsiders, a intervenção no jogo político. Para as

mulheres, pelo menos do que se viu neste capítulo, o ato de peticionar representava

a intersecção entre as fronteiras da esfera pública e privada, entre os limites da casa

e da rua. A identidade – e o ideal – de mãe, de esposa e de irmã - garantiu a

legitimidade de suas posições na esfera política, pois a visão de mundo ocidental do

século XIX estabelecia que o destino da mulher era gerar e criar filhos (BARMAN,

2005, p. 168) e sua função enquanto mãe, garantir o bem estar físico e emocional

dos mesmos.

56

tornaram imprescindíveis à compreensão do fenômeno e como este processo foi

realizado na província do Espírito Santo.

2.1 As abolicionistas nas páginas de A Província do Espírito Santo e Folha da

Victoria

O movimento abolicionista – entendido como o conjunto de práticas e ações

por parte daqueles cujo objetivo era a extinção da escravidão no Brasil – foi também,

para Angela Alonso (2002, p. 45) uma das manifestações de contestação ao status

quo imperial. Conjuntamente com outros grupos de oposição, que emergiram a partir

da década de 1870, os abolicionistas diagnosticaram a conjuntura em estavam

imersos, como crise do padrão da sociedade e da organização política. A querela

contra as instituições e o regime imperial teve seu lócus em livros, na imprensa

independente, em associações e eventos públicos. Estes espaços, sem a coerção

do poder estatal ou constrangimento social, formaram “uma esfera pública do

mesmo gênero daquela que se estava constituindo na Europa contemporânea”

(ALONSO, 2002, p. 276).

A esfera pública é, na definição estrita de Jurgen Habermas (1984, p. 42), a

esfera em que pessoas privadas discutem opiniões sobre assuntos comuns entre si.

Habermas (1984, p. 73) considera a esfera da família como cerne da esfera privada,

a que denomina “esfera íntima”. Apesar desse caráter, o filósofo explica que a

família, principalmente a burguesa, constitui-se na institucionalização de privacidade

ligada ao público. Ainda que o círculo familiar pretendesse enxergar-se como

autônomo, como livre de todos os liames sociais, ele está numa relação de

dependência para com a esfera pública, como a de trabalho, de mercado, entre

outras. A ambivalência da família é avaliada por meio da posição de seus membros,

unidos pela dominação patriarcal e pela intimidade humana (HABERMAS, 1984, p.

73). A mesma ambiguidade pode ser notada na esfera pública, conforme as pessoas

privadas usem sua objetividade para a compreensão do discurso literário e do

discurso político. Para o autor, “mulheres e dependentes estão excluídos da esfera

pública política tanto de fato quando de direito; enquanto o público leitor feminino

[...], tem com frequência uma participação mais forte na esfera pública literária [...]”

(HABERMAS, 1984, p. 73).

57

No contexto da campanha abolicionista, acreditamos que as mulheres

transitaram entre ambas as esferas. Ilustram a ambivalência, os papéis que as

mulheres assumiram em público, mas que refletiam suas posições privadas, ou

melhor, familiar. Através da esfera pública literária tomaram posições que as

inseriram na esfera política de discussão19. Entretanto, através da imprensa a

instituição por excelência da esfera pública (HABERMAS, 1984, p. 213) foi que os

abolicionistas efetivaram o chamado às mulheres para a causa da liberdade20.

Portanto, as fontes utilizadas neste capítulo compreenderam os periódicos A

Província do Espírito Santo e Folha da Victoria, entre os anos de 1883 – ano de

criação da Associação Libertadora Domingos Martins, primeira sociedade

abolicionista que mulheres participaram – e 1888, com a extinção da escravatura.

Dentre os jornais em circulação na província, estas folhas se destacaram na

divulgação das atividades das associações abolicionistas analisadas: a Libertadora

Domingos Martins e o Club Abolicionista Dr. João Clímaco.

Para José Murilo de Carvalho (2011, p. 54), o Império foi o período da história

brasileira em que a imprensa esteve mais livre. Entretanto, ela não constituía poder

independente dos partidos ou do aparato administrativo. De acordo com Angela

Alonso (2002, p. 277), a passagem de uma imprensa como veículo de crítica

individual ou partidária para outra independente tornou-se possível graças à

modernização dos processos de impressão que promoveu a diversificação gráfica e

o aumento das publicações, a partir da década de 1870. Para os fins deste capítulo,

utilizou-se como fonte de informações os jornais A Província do Espírito Santo e

Folha da Victoria, que surgiram neste contexto, ambos na década de 1880.

Escolheu-se delimitar o levantamento entre os anos de 1883 – ano de fundação da

Associação Libertadora Domingos Martins – e 1888.

19

O debate acerca da noção de esfera pública e a exclusão feminina da mesma, de acordo com

Habermas (1984), será retomado e ampliado no Capítulo Três. Por ora, entendemos que devido a confluência das manifestações abolicionistas e da imprensa brasileira oitocentista, os periódicos configuraram-se como lócus principal para nossas fontes. 20

A escritora Maria Firmina dos Reis (1825-1917) é um exemplo da confluência da esfera pública

literária e da esfera pública política na conjuntura do movimento abolicionista brasileiro. O romance Úrsula, de 1859 e o conto A Escrava, de 1887, versam sobre a condenação da escravidão e a defesa da liberdade. Ainda que não seja possível aferir a participação de Firmina de forma mais efetiva na campanha, sua produção junta-se à de outras, como Narcisa Amália e Júlia Lopes de Almeida, o que configura outra forma de adesão feminina ao abolicionismo. Sobre Maria Firmina dos Reis, conferir MENDES, 2006.

58

O periódico A Província do Espírito Santo, fundado em 1882, por José de

Mello Carvalho Moniz Freire e Cleto Nunes, foi impresso até 1889. Ambos

destacavam-se como integrantes da política da Província. Moniz Freire elegeu-se

deputado pelo Partido Liberal em 1882 e 1888, e em 1892 tornou-se presidente do

estado; Cleto Nunes ingressou no Partido Liberal e foi eleito deputado provincial na

legislatura de 1879-1880 e secretário do governo da província, do final do Império

até a proclamação da República. No primeiro ano de vida, A Província do Espírito

Santo era publicado três vezes por semana; a partir do ano seguinte, passou a

circular todos os dias, exceto às segundas, com tiragem que chegou, em 1888, a

1.500 exemplares. Seus redatores, sócios da Associação Libertadora Domingos

Martins, divulgavam as reuniões, adesões e eventos da mesma na seção Notícias

Locais, com títulos como “Em prol da redenção” ou “Sobre a Liberdade”, bem como

as atividades do Club21 Abolicionista Dr. João Clímaco. No recorte temporal

escolhido – estendido até os dias 15 e 16 de maio de 1888, por conta das notícias

dos festejos de comemoração do fim da escravidão – foram publicados 1.365

números de A Província do Espírito Santo. Entretanto, a análise qualitativa

compreendeu as edições que circularam entre 1883 e 1884, e em maio de 1888,

correspondentes ao período que a Libertadora Domingos Martins e o Club

Abolicionista Dr. João Clímaco, efetivamente atuaram22.

O jornal Folha da Victoria, redigido por Aristides Freire, foi publicado pela

primeira vez em 1883. Até a data de 17 de maio de 1888, quando foi veiculada a

notícia da promulgação e das comemorações da Lei Áurea, o periódico, publicado

duas vezes por semana, contabilizou 497 números. Assim como A Província do

Espírito Santo, o periódico divulgava a atuação das duas associações abolicionistas

capixabas em atividade à época. Entretanto, apresentou um diferencial em relação

ao jornal A Província do Espírito Santo, pois na Folha, as mulheres tiveram mais

espaço como leitoras e até mesmo redatoras. No que concerne ao próprio

movimento abolicionista, as mulheres não receberam uma seção especialmente

dedicadas a elas, mas o periódico divulgava artigos acerca ou direcionados às

21

Utilizaremos o vocábulo Club em referência ao Club Abolicionista Dr. João Clímaco conforme a

grafia da época, exposta nos periódicos consultados nesta investigação. 22

Para maiores informações acerca da integração do jornal A Província do Espírito Santo com o

movimento abolicionista capixaba ver a dissertação de Mariana de Almeida Pícoli (2009). A autora buscou promover o resgate histórico da campanha antiescravista em Vitória, através dos jornais utilizados para a divulgação da propaganda abolicionista, porém não analisou o jornal Folha da Victoria.

59

mulheres. A professora Adelina Lírio de Castro, uma das sócias mais ativas da

Libertadora Domingos Martins, teve poemas de sua autoria publicados, além de

elogios por parte da redação do jornal à suas aulas.

Para esta investigação, destacaram-se 70 matérias publicadas (conferir

Apêndice 2). Foram selecionadas as que veicularam informações acerca das

reuniões e eventos das sociedades abolicionistas. Além disso, elegemos nos 1.864

exemplares de A Província do Espírito Santo e Folha da Victoria, artigos, poemas e

outros textos sobre escravidão e liberdade, bem como aqueles escritos e

direcionados às mulheres.

2.2 Sejamos abolicionistas: nosso dever como mãe e esposa

A composição da esfera pública de discussão foi expressivamente

transformada pela campanha antiescravista. Os principais atores do movimento

abolicionista foram grupos e associações privadas, sem vínculos partidários, o que

permitiu aos especialistas definirem o movimento como o primeiro de caráter social e

popular do Brasil23. Uma significativa estratégia dos abolicionistas foi buscar a

participação de grupos tradicionalmente fora da política tradicional, como os estratos

sociais médios e baixos, os próprios escravos e mulheres, e dentre estes, as

mulheres foram peça chave (ALONSO, 2011; COWLING, 2006, 2010). Kittleson

(2005b, p. 101) acredita que a feminização do abolicionismo, ou seja, o destaque

dado ao feminino, implicitamente contribui para tornar a abolição menos

ameaçadora, de modo a ampliar o alcance do movimento entre aqueles que

acreditavam que o fim da escravidão poderia ocasionar uma ruptura nas hierarquias

sociais.

O ativismo das mulheres passou a ser justificado e incentivado com uma

intensidade que, até então, não havia sido vista pela sociedade brasileira e ampliou

23

Angela Alonso (2014) aponta três famílias interpretativas na análise da abolição: a primeira, de

caráter marxista, baseada na contradição estrutural capitalismo-escravidão e na qual o movimento abolicionista não aparece como objeto de reflexão (Viotti Costa, 1966); outra corrente privilegiou os anônimos e vencidos da história da abolição, evidenciando os frequentes questionamentos à ordem escravista (Chalhoub, 1990; Machado, 1994; Azevedo, 1999, 2010; Reis, 2003); e uma terceira que destacou as instituições políticas, insistindo no fato de que a abolição foi feita pela via institucional (Conrad, 1972, 1975; Carvalho, 1988, 1980, 2007; Needell, 2006). Somente recentemente trabalhos específicos sobre movimentos sociais abolicionistas começaram a proliferar (Kittleson, 2005; Graden, 2006; Castilho, 2008; Albuquerque, 2009; Machado, 2006, 2009; Silva, 2003), e evidenciaram uma participação mais efetiva do que se imaginava e com atores sociais diversos, porém, continuaram ainda restritos à esfera local.

60

o espectro dos papéis sociais que tradicionalmente eram esperados das mulheres

“decentes”, ou seja, das mulheres da elite. O modelo de feminilidade aceito e

defendido pela elite englobava a delicadeza, a modéstia, a domesticidade e a

identificação exclusiva como esposa ou mãe (COWLING, 2006, p. 92). Essa

construção feminil expressa pelo ideal de “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família”

(RAGO, 1985, p. 62) deu às mulheres protagonismo na esfera privada e promoveu o

reconhecimento de sua importância devido à maternidade. A qualidade de ser mãe,

parte da natureza feminina, passou a ser utilizada para a ampliação do escopo de

atuação das mulheres com a transição do privado para o público. As aptidões

maternas, levadas para fora de casa, possibilitaram às mulheres o exercício de

atividades compatíveis com sua natureza como a assistência social e até mesmo em

questões políticas, identificadas com uma moralidade específica do sexo feminino

(MOTT, 2001, p. 231).

Assim, a retórica abolicionista fez uso do gênero como argumento central, e

com caráter fortemente moral que levava em consideração os papéis “naturais” de

homens e mulheres na família e no trabalho (COWLING, 2006, p. 83). As emoções

atribuídas ao sexo feminino, tradicionalmente concebidas como sinal de sua

fraqueza e inferioridade, passaram a ser vistas por outro lado como uma

sensibilidade especial por natureza, mais identificada com a empatia e a caridade

(KITTLESON, 2005b, p. 107). As identidades de gênero produzidas pela campanha

abolicionista foram significativamente particulares. Mulheres que libertaram os

escravos foram elogiadas pelo seu sentimentalismo e impetuosidade, confirmando

seus papéis familiares como esposas, mães ou filhas, enquanto os homens eram

louvados pelo patriotismo, força ou ousadia (COWLING, 2010, p 289).

A maternidade deixou de ser uma função individual, restrita à família, para ser

social. Era considerada como o papel primordial das mulheres que a viam como um

valor positivo (MOTT, 2001, p. 228). O lugar privilegiado na educação e na formação

do caráter das crianças representava enorme responsabilidade moral para o

engrandecimento da nação (RAGO, 1985, p. 80). É neste sentido que a estudante

de medicina D. Mercedes de Oliveira24 proferiu no Teatro Polytheama Fluminense,

24

Josefa Águeda Felisbella Mercedes de Oliveira, nasceu em Pernambuco no dia 13 de fevereiro de

1864 e teve negada a petição feita por seu pai à Assembleia Provincial de Pernambuco solicitando recursos para que ela estudasse medicina nos Estados Unidos. Recebeu o auxílio posteriormente, se

61

em 1884, um discurso em que procurou responder à questão proposta pela Gazeta

da Tarde: “A mulher brasileira é escravocrata?”. Para ela, a mulher brasileira “em

honra de seu sexo” não poderia ser escravocrata, porque seu coração era dotado

para “compreender as grandes emoções”, assim “a mulher brasileira ou estrangeira,

há de ser sempre a grande inimiga da escravidão”, instituição hedionda que

“despedaça o coração materno porque tira dos braços de uma pobre mulher o filho

para jogá-lo na roda dos expostos” (Gazeta da Tarde, 30/01/1884). Ao finalizar,

conclamou:

[...] representantes do meu sexo, sejamos abolicionistas porque é dever da mulher enxugar as lágrimas das vítimas do sofrimento para provar ás pessoas descrentes da nossa energia mental, que a mulher sabe amar a liberdade dos escravos, como sabe odiar a corrupção que a embota diante da grandeza moral de que ela deve ser a encarnação, como filha, como esposa e como mãe.

Por mais que compreendessem arquétipos distintos do que significava ser

mulher para as mulheres da elite e as das camadas médias e baixas da sociedade –

aqui inclusas as escravas – a maternidade era encarada como fato universal. Desse

modo, para os abolicionistas a escravidão deformava os papéis de gênero, pois

impedia que as escravas exercessem seu papel de mãe (COWLING, 2006, p. 83).

Um dos temas mais abordados pelo discurso abolicionista para denotar a barbárie

da escravidão e impactar sua audiência – principalmente imaginando mulheres como

interlocutoras – foi a separação das famílias escravas, com destaque especial à

separação das mães de seus filhos. A influência desta separação era tamanha que a

Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, além

de atribuir a condição de livres (“ingênuos”) aos filhos das mulheres escravas

nascidos a partir daquela data, estipulou que em caso de alienação de uma escrava,

seus filhos menores de 12 anos deveriam acompanhá-la (MATTOSO, 1988, p. 54).

A libertação do ventre também intensificou o grande destaque dado pelos

abolicionistas à concepção da maternidade e alçou mulheres escravas e seus filhos

a uma posição central na dissolução gradual da escravidão, (COWLING, 2006, p.

83). A lei determinou criação de um fundo nacional de emancipação, com o objetivo

diplomou em 1882, e foi uma das primeiras médicas do Brasil. Defensora dos direitos da mulher, principalmente em relação à educação superior, editou o jornal literário A Mulher em parceria com Maria Augusta Generoso Estrela, também formada médica nos Estados Unidos em 1881 (JULISKA RAGO, 2011), com quem também atuou na sociedade abolicionista pernambucana Ave Libertas (FERREIRA, 1999, p. 74).

62

de reduzir a população escrava brasileira. O fracasso do fundo nacional alavancou a

criação dos fundos de emancipação privados, municipais e estaduais na década de

1880 (CASTILHO; COWLING, 2013, p. 163). Na província do Espírito Santo, a

Assembleia Provincial autorizou, ainda em 1869, a criação de um fundo de

manumissão de escravas de 10 a 16 anos de idade, para o qual 12.000$000 foram

destinados (PÍCOLI, 2009, p. 67).

A escravidão feminina representou diversos papéis nas sociedades

escravistas, desde trabalhos pesados a posições que lhes eram exclusivas, dentro

da esfera doméstica: de amas-de-leite até prostitutas. A variada gama de funções

sociais permitiu às escravas oportunidades vedadas aos homens escravizados, mas,

ao mesmo tempo restringiu fórmulas conhecidas para reagir à escravidão

(CAMPOS, 2006, p. 154). Os fundos de emancipação representaram uma nova

perspectiva para as escravas reagirem e tentarem pôr fim à sua escravidão. As

mulheres – libertas ou escravas – foram as principais beneficiárias dos fundos locais

de emancipação e estes, concebidos para priorizar a libertação especialmente de

mulheres mais novas e com filhos, possibilitaram às mulheres escravas maneiras de

realizarem o próprio processo de financiamento de sua liberdade e a de seus

familiares (CASTILHO; COWLING, 2013, p. 164; 177)25. Camillia Cowling (2010, p.

287-288), afirma que a preferência dos fundos de emancipação em libertar mulheres

escravas seguiu também critérios menos humanitários. No Brasil, ainda de acordo

com o principio romano partus sequitur ventrem “a escravidão seguia o ventre”, ou

seja, o estatuto jurídico da criança advinha da mãe, não do pai. Além disso, as

mulheres escravas eram consideradas trabalhadoras agrícolas menos valiosas (a

desestruturação da lavoura era o grande receio dos contrários à abolição) e menos

ameaçadoras à ordem social após sua emancipação.

Os fundos tinham caráter claramente emancipacionista, ou seja, compunham

política de libertação gradual, mas foram, também, uma resposta dos abolicionistas

à morosidade do governo imperial em promover o fim da escravidão. As ideias sobre

a feminilidade e maternidade da elite e das escravas permitiu que mulheres

25

Nos fundos de emancipação analisados por Celso Castilho e Camillia Cowling (2013), na Corte e

no Recife, a taxa de mulheres libertadas representou respectivamente, 76% e 90% do total de manumissões. Para a província do Espírito Santo, ainda não foi realizado nenhum estudo específico sobre as libertações do fundo de emancipação local. Entretanto, as notas veiculadas pelo periódico A Província do Espírito Santo, informando sobre as manumissões particulares, demonstram também maior número de mulheres alforriadas.

63

escravizadas encaminhassem petições aos fundos de emancipação, nas quais

adotavam um tom de súplica e apelavam para o status de mãe. Foi o caso de Maria

Rosa, que clamou à imperatriz Teresa Cristina para que sua filha fosse liberta na

próxima cerimônia promovida Livro de Ouro do munícipio da Corte (COWLING,

2010, p. 284) e o de Maria, que solicitou à Sociedade Nova Emancipadora do Recife

a quantia que lhe faltava para adquirir sua liberdade por conta dos abusos de seu

proprietário com suas três filhas.

O aspecto ritual representou um papel fundamental no desempenho dos

fundos de manumissão. As prodigiosas solenidades de emancipação do Livro de

Ouro, realizadas no Paço Municipal, nos aniversários dos membros da família

imperial promoviam a abolição, a Câmara (responsável pelo fundo) e a monarquia

(CASTILHO; COWLING, 2013, p. 179). De fato, os fundos de emancipação atraíram

a atenção da Princesa Imperial D. Isabel como eventos de caridade pública. Eram

pessoais, pois interferiam diretamente no destino dos indivíduos contemplados e

acima de tudo, valorizavam os atributos do cristianismo, sendo assim aprovados

pela Igreja (BARMAN, 2005, p. 237). A partir de 1885, a princesa Isabel se associou

deliberada e visivelmente à campanha abolicionista, ao comparecer em todas as

cerimônias do Livro de Ouro da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, mandando

uma mensagem pública e provocativa ao parlamento sobre seu apoio ao

abolicionismo popular (COWLING, 2010, p. 289).

Mas o apoio da princesa imperial não se limitou à sua presença simbólica nas

cerimônias do Livro de Ouro. Em Petrópolis, Isabel promoveu a libertação de

inúmeros cativos como sinal de ‘caridade grande’ (BARMAN, 2005, p. 246) além de

acolher escravos fugidos no Palácio, fato que às vésperas da abolição tornara-se

público (SILVA, 2003, p. 29). Os filhos da princesa publicavam um jornal

abolicionista de dentro do Palácio de São Cristóvão, que noticiava tudo o que havia

sido feito pela emancipação dos cativos na cidade (CARVALHO, 2011, p. 235;320;

BARMAN, 2005, p. 246). Com o intuito de arrecadar fundos para os propósitos

abolicionistas, Isabel promoveu as denominadas “batalhas de flores”, que consistiam

num verdadeiro cortejo da princesa, do conde d’Eu e de seus filhos, (SILVA, 2003, p.

35). Suas ações arregimentaram a participação de outras damas da corte como

Maria de Avelar Tosta, baronesa de Muritiba e Maria Amanda Paranaguá Dória,

baronesa de Loreto, ambas amigas íntimas de Isabel. O tom moderado das opiniões

64

da princesa, que considerava a escravidão um atentado e seu fim uma causa

humanitária, moralizadora e generosa (BARMAN, 2005, p. 249), não a impediu de

manter relações com abolicionistas mais radicais, ligados ao quilombo do Leblon,

principal produtor das camélias que se tornaram um símbolo do movimento

abolicionista brasileiro e que Isabel ousou ao ostentar publicamente em seu vestido

(SILVA, 2003, p. 35).

Isabel pode ser considerada um símbolo do abolicionismo brasileiro, não tanto

pela assinatura da lei que, em 13 de maio de 1888, extinguiu a escravidão em todo o

território nacional - não cumpre atribuir à princesa o protagonismo da ação de modo

a desconsiderar a campanha empreendida no país, nem a heroicizar como

“Redentora” - mas pelo caráter feminizado do movimento. Ela representava o ideal

feminino do movimento abolicionista e da elite brasileira oitocentista: católica (tão

devota que a religiosidade da princesa era vista como excessiva, e duramente

criticada), educada e culta, filha, esposa e principalmente, era mãe, o que para as

mulheres ocidentais do século XIX, era seu principal destino.

Tanto a princesa quanto sua mãe a Imperatriz Teresa Cristina eram descritas

como “mãe dos brasileiros” (COWLING, 2010, p. 289). Para Isabel, tal título,

valorizando deliberadamente o aspecto feminino da maternidade, era sumamente

importante: configurava uma maneira de responder às criticas republicanas e de

membros do próprio governo de que a princesa não deveria empregar suas virtudes

em assuntos de Estado, porque suas qualidades, femininas por excelência, eram

restritas à esfera privada (BARMAN, 2005, p. 238). O Barão de Cotegipe, afirmou

que Isabel se colocara escandalosamente à frente dos abolicionistas (CARVALHO,

2011, p. 320). O incremento do discurso feminizado dos valores abolicionistas e das

causas humanitárias, bem como as imagens de mãe e esposa, foram utilizadas para

transformar suas desvantagens em qualidades (COWLING, 2006, p. 100).

As militantes abolicionistas efetivaram, como se viu, a inclusão política do

gênero. O movimento abolicionista produziu o fenômeno associativista (ALONSO,

2011). Com o objetivo de propagandear os ideais emancipatórios e manumitir

escravos, visando o fim da escravidão no Brasil, foram fundadas sociedades em pelo

menos 15 das 20 províncias do Império. As principais associações abolicionistas

foram congregadas sob uma mesma, denominada Confederação Abolicionista,

65

criada no ano de 1883, num esforço conjunto de André Rebouças e José do

Patrocínio. Na medida em que o movimento abolicionista se consolidava, houve

expansão tanto no número de associações quanto no alcance geográfico da

campanha.

O número de sociedades femininas foi de grande monta. Angela Alonso

(2011, p. 187) levantou 26 associações abolicionistas femininas, 18 delas

unicamente de mulheres, formadas em 10 províncias26. Muitas das associações

abolicionistas exclusivamente femininas foram fundadas considerando um caráter

benemérito e filantrópico ou uma manifestação de apoio aos familiares homens

abolicionistas, mesma razão pela qual as mulheres integraram associações mistas.

As atividades desempenhadas pelas mulheres, no contexto das associações

abolicionistas, compreendiam a arrecadação de donativos, a doação de brindes para

quermesses e bazares, na manumissão de seus próprios escravos. No ato de

fundação da sociedade Amazonenses Libertadoras, em 1884, cujo objetivo era “a

rápida libertação dos escravos do Amazonas”, as senhoras prometeram contribuir

com a doação de uma peça de joalheria (CONRAD, 1978, p. 243).

Algumas dessas associações obtiveram vultoso êxito nas campanhas

antiescravistas locais, das quais destacamos a Associação Cearenses Libertadoras,

fundada em 1882 e liderada por Maria Thomázia Figueira Lima. A província do

Ceará logrou libertar todos os seus escravos em 25 de março de 1884, quatro anos

antes da extinção total da instituição escravista no Brasil, e serviu de detonador de

explosões abolicionistas em todo o país. A ascensão das mulheres no movimento

abolicionista deu-se de três formas: artística, filantrópica e por intermédio de pais,

maridos ou irmãos abolicionistas (ALONSO, 2011, 187). O movimento abolicionista

cearense relaciona-se com o tráfico interprovincial de escravos entre o norte e o sul

do Brasil, comércio deflagrado após a Lei Eusébio de Queiróz (1850) que extinguiu o

tráfico de escravos africanos para o Brasil. Nas praias cearenses embarcavam para

o sul também escravos das províncias vizinhas. Apesar de contar com uma

26

O levantamento das associações abolicionistas feito por Alonso (2011, p. 188) é provavelmente o

primeiro sobre as sociedades femininas de caráter nacional na literatura especializada. A própria autora reconhece que, por uma limitação das fontes utilizadas, compostas principalmente por jornais abolicionistas da Corte, os dados acerca das demais províncias podem estar subrepresentados, o que de fato é verdadeiro para a província do Espírito Santo, cujas associações abolicionistas que as mulheres capixabas integraram não foram contempladas pela socióloga. Para informações sobre associações abolicionistas femininas em outras províncias do Império, conferir: FIGUEIROA, 2007; FERREIRA, 1999; KITTLESON, 2005a, 2005b; MOTT, 1988; SCHIMMELPFENG, 1984.

66

escravaria quase reduzida, uma forte seca, em 1877, elevou o preço dos escravos

destinados ao tráfico interno. Em 1881, líderes da sociedade emancipacionista

“Perseverança e Porvir”, com o objetivo de acabar com o comércio escravista, se

associaram aos jangadeiros do porto e os convenceram a não embarcar mais

escravos. O episódio tornou conhecida a figura do líder dos jangadeiros cearenses,

Francisco José do Nascimento, o “Lobo” ou o “Dragão do Mar”, e sob o lema “No

porto do Ceará não se embarcam mais escravos!”, transformou o abolicionismo

cearense num movimento de massas. A campanha abolicionista criou um programa

sistemático de libertação por áreas, depois utilizado em todo o país: em ruas,

bairros, vilas e municípios, capitais provinciais e finalmente, províncias inteiras

(CONRAD, 1978, p. 226).

A atuação das mulheres cearenses se fez notória através da Cearenses

Libertadoras, fundada em 1882. Sua principal líder, alcunhada “Libertadora”

(SCHIMMELPFENG, 1984, p. 53) foi Maria Thomázia Figueira Lima (1826-1903),

oradora constante nos eventos abolicionistas cearenses. Ela esteve presente nas

cerimônias de libertação dos municípios de Acarape (hoje Redenção) juntamente

com José do Patrocínio, que observou “o papel que nesse drama da Humanidade

representava a mulher cearense. Em nenhuma outra parte foi tão expressivo o

testemunho, nem tão devotada a colaboração do elemento feminino”

(SCHIMMELPFENG, 1984, p. 29).

Alguns autores como Roger Kittleson (2005a), consideram que a presença

das mulheres na causa abolicionista representou uma simples expansão da cultura

feminina estabelecida, dado seu foco em assuntos vistos como morais e sociais e

não estritamente políticos. Neste sentido, o abolicionismo brasileiro se distinguiu das

campanhas antiescravistas desenvolvidas nos Estados Unidos e na Inglaterra, cujo

desenvolvimento foi similar ao brasileiro: com mobilização, manifestações públicas,

processos judiciais e boicotes, organização descentralizada e variedade social de

participantes (DRESCHER, 2009 apud ALONSO, 2014). O abolicionismo anglo-

americano também utilizou os papéis sociais das mulheres em sua campanha. De

forma veemente, assinaram petições, condenaram publicamente a escravidão na

imprensa e em discursos públicos, formaram as próprias associações abolicionistas.

Ainda que não se diferenciem na forma, pois as brasileiras realizaram as mesmas

atividades, o abolicionismo feminino das americanas e inglesas apresentou um traço

68

dos homens27. Nísia defendeu a educação feminina e assinalou o atraso do Brasil

em relação ao tema: “Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o brado -

emancipação da mulher -, nossa débil voz se levanta, na capital do império de Santa

Cruz, clamando: educai as mulheres!” (1853 [1989, p. 2]). A educação feminina foi a

principal bandeira das mulheres que durante o século XIX, começaram a defender

os direitos das mulheres.

Nísia condenou veementemente a escravidão. Em 1842, em um movimento

pioneiro, já ousara se declarar a favor da emancipação dos escravos em

conferências (MOTT, 1988, p. 74) e em 1855, veiculou suas primeiras manifestações

antiescravistas no jornal O Brasil Illustrado, ao contar em “Páginas de uma vida

obscura”, a história de um escravo desde a vinda da África até sua morte e defender

um tratamento mais humanitário dos senhores com os escravizados. Em Opúsculo

Humanitário, (1853 [1989, p. 43].), a autora elogiou a obra abolicionista de Harriet

Beecher-Stowe, A cabana do Pai Tomás (1850) e recomendou sua leitura “a fim de

podermos guardar a consoladora esperança de que as gerações futuras farão

apagar, nos que lerem um dia a nossa história, a impressão dolorosa dos crimes

cometidos pelas gerações presentes sobre a mísera raça africana”. Em 1884, o

positivista Miguel Lemos editou O positivismo e a escravidão moderna, uma seleção

de textos que contou com um excerto de uma obra nisiana sobre a escravidão

(ALONSO, 2002, p. 210). Apesar da condenação explícita da escravidão em suas

obras, a autora não parece ter se envolvido diretamente na campanha abolicionista.

Ao contrário dos Estados Unidos, a incipiente luta pelos direitos das mulheres –

principalmente pela educação – no Brasil foi realizada de maneira totalmente

desvinculada do abolicionismo.

2.3 As excelentíssimas senhoras abolicionistas capixabas

A periodização usual do movimento abolicionista brasileiro que marca seu

início em 1879 foi objeto de crítica da socióloga Angela Alonso (2011; 2014). A data

corresponde à estreia de Joaquim Nabuco na política e à de José do Patrocínio na

27

Nísia Floresta adaptou o texto de Mary Wollstenacraft à realidade cultural brasileira, “justamente

com nossas peculiaridades culturais, já que nosso ponto de partida situava-se em uma coordenada completamente distinta da europeia” (ARAÚJO, 2010, p.3). Direitos das mulheres e injustiça dos homens foi como “uma resposta brasileira ao texto inglês; a nossa autora se colocando em pé de igualdade com a Wollstonecraft e até com o pensamento europeu, e cumprindo o importante papel de elo entre as ideias europeias e a realidade nacional” (DUARTE, 1997, p.2)

69

direção da Gazeta da Tarde, bem como da criação da Associação Central

Emancipadora e da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, respectivamente

dominadas por Patrocínio e Nabuco (ALONSO, 2014, p. 116). A autora investe em

uma abordagem que considera o abolicionismo enquanto movimento social e

argumenta que este surgiu quando foram fundadas associações civis em seu nome,

a partir de 1840 (ALONSO, 2011, p. 171). Por este critério, o movimento

abolicionista na província do Espírito Santo teve início em 1869, com a fundação da

Sociedade Abolicionista do Espírito Santo (PÍCOLI, 2009).

Na província do Espírito Santo, o movimento abolicionista não apresentou um

caráter radical nem nos estágios finais da campanha. O abolicionismo capixaba foi

marcado pela intensa propaganda nas páginas de A Província do Espírito Santo e

Folha da Victoria, que veiculavam transcrições dos impressos da Corte, dos

discursos públicos e das manumissões realizadas por particulares. A elite mais

abastada e educada liderou as manifestações antiescravistas, e elementos das

camadas médias de estratos populares da sociedade participaram da campanha

apenas como espectadores que compareciam aos eventos realizados pelas

sociedades abolicionistas da província (PÍCOLI, 2009, p. 59; 87).

Entre 1869 E 1888, com a expansão da Sociedade Abolicionista do Espírito

Santo, foram criadas no estado diversas associações abolicionistas, de caráter

variado. Algumas, como a Associação Emancipadora 1° de Janeiro, de 1874,

substituída pela Associação de Beneficência em 1877, e a Beneficente Libertadora,

última sociedade a surgir na província em 1887, eram ligadas respectivamente à

Irmandade de São Benedito do Convento de São Francisco e à Irmandade de São

Benedito da Igreja do Rosário. Outras congregaram profissionais de uma mesma

classe em favor da abolição, como o Club dos Advogados contra a Escravidão.

Apesar das diferentes trajetórias, as associações libertadoras capixabas

manifestaram elementos comuns. Um deles foi a vida efêmera.

De acordo com Maria Lúcia de Barros Mott (1988, p. 77), as associações

abolicionistas podem ser classificadas em quatro tipos: 1) de homens; 2) de

mulheres como sócias; 3) de mulheres aparentadas dos abolicionistas (esposas e/ou

filhas) e 4) exclusivas de mulheres. Nas associações de terceiro tipo, as mulheres

70

não participavam formalmente das reuniões, mas prestavam serviços como a

arrecadação de verbas para os fundos da sociedade.

Quadro 1: Associações Emancipadoras e Abolicionistas no Espírito Santo28

Associação Ano Composição Tipo

Sociedade Abolicionista do Espírito Santo 1869 Masculina Associações de Homens

Associação Emancipadora 1° de Janeiro 1874 Masculina Associações de Homens

Associação Libertadora Domingos Martins 1884 Mista Associações de Mulheres

Club dos Advogados contra a Escravidão 1884 Masculina Associações de Homens

Sociedade Abolicionista Literária

Pessanha Póvoa (Club Abolicionista Dr.

João Clímaco)

1884 Mista

Associações de mulheres

aparentadas com

abolicionistas

Beneficente Libertadora 1887 Masculina Associações de Homens

Libertadora Rosariense 1887

(?) - -

Fonte: A Província do Espírito Santo; Folha da Victoria; Correio da Victória; Jornal da Victoria

A Sociedade Abolicionista Espírito-Santense foi fundada por estudantes

capixabas no município da Corte, em 1883, razão pela qual não foi indexada na

tabela. A associação representou a província do Espírito Santo na Confederação

Abolicionista, que, também em 1883, congregou todos os clubes abolicionistas

existentes na cidade. Os membros da Sociedade Abolicionista Espírito-Santense

destinavam artigos de propaganda abolicionista para a província e divulgados pelos

periódicos locais. A senhora Leopoldina Espindola se ofereceu para bordar o

estandarte da Abolicionista Espírito-Santense (A Folha da Victoria, 30/03/1884).

Pouquíssimas informações foram encontradas a respeito da associação

Libertadora Rosariense, o que impediu sua classificação. Localizou-se no jornal A

Província do Espírito Santo do dia 27 de novembro de 1887 que a sociedade iria

realizar uma quermesse em certo domingo próximo e a divulgação do

agradecimento de uma escrava alforriada pela sociedade à sua diretoria, que era

28 Por sociedades abolicionistas, entendemos associações civis públicas criadas pelo movimento

abolicionista, cujo objetivo era promover a emancipação e a abolição da escravidão (ALONSO, 2011). Por isso, a Irmandade de São Benedito do Convento de São Francisco e a Irmandade de São Benedito da Igreja do Rosário não foram consideradas em si como associações abolicionistas, somente as que mesmo ligadas às atividades das irmandades, tiveram atuação especialmente destinada à emancipação dos escravos. Sobre a relação das irmandades religiosas com o movimento abolicionista capixaba, conferir: PÍCOLI, (2009).

71

totalmente masculina. Entretanto, nos festejos comemorativos da abolição da

escravidão no Brasil, a Libertadora Rosariense aparece ao lado da Associação

Domingos Martins e do Club Abolicionista Dr. João Clímaco.

A Associação Libertadora Domingos Martins, criada em 1883, teve entre seus

fundadores nomes como o de José de Mello Carvalho Moniz Freire, redator e

proprietário do jornal A Província do Espírito Santo, além de político atuante no

Espírito Santo imperial e republicano; e o de Afonso Cláudio de Freitas Rosa, “o

mais famoso abolicionista do Espírito Santo”. Além de atuar na imprensa e nas

sociedades abolicionistas, Afonso Cláudio defendeu escravos em ações de

liberdade. O objetivo da sociedade era “promover por todos os meios lícitos a

extinção do elemento servil do solo espírito-santense” (A Província do Espírito

Santo, 17/04/1884). A sociedade promoveu conferências públicas, arrecadação de

donativos e concessão de cartas de alforria. O engajamento da Libertadora

Domingos Martins foi reconhecido fora da província e em 1884, a sociedade foi

integrada à Conferência Abolicionista da Corte (A Província do Espírito Santo,

25/04/1884).

Cleto Nunes, redator de A Província do Espírito Santo, e anteriormente

secretário da Associação Emancipadora 1° de Janeiro, foi escolhido para presidir a

reunião de instalação da Libertadora, e propôs “nos estatutos da sociedade

garantisse-se a entrada das exmas senhoras que desejassem concorrer para a

humanitária obra da emancipação” (A Província do Espírito Santo, 07/08/1883). A

concordância com o pedido demonstrou que os abolicionistas capixabas estiveram

em consonância com o movimento nacional, e assim, também operaram pelo

discurso feminizado que caracterizou a campanha antiescravista. O apelo aos

sentimentos femininos foi expresso pelos redatores do jornal A Folha da Victoria

(09/08/1883):

A mulher é sem dúvida o melhor veículo aos grandes cometimentos do coração, por onde ela tem feito as mais alterosas conquistas, e foi por isso que o Sr. Cleto Nunes e teve a sublime e quase que divina inspiração de não esquecê-la [...].

Os membros da Libertadora Domingos Martins proferiram discursos tendo as

mulheres como interlocutoras principais e fizeram uso da retórica abolicionista de

gênero, valorizando os sentimentos e emoções. Afonso Cláudio afirmou que a

abolição tratava-se de uma causa humanitária e se dirigiu especificamente às

72

mulheres da plateia, “[...] a quem pediu que fossem as mensageiras da liberdade

como outrora fossem as porta-vozes da fé” (A Província do Espírito Santo,

22/04/1884). Em outra conferência, Candido Costa exaltou a participação das

mulheres cearenses que ajudaram a libertar os escravos da província em 25 de

março de 1884 e chamou as mulheres para trabalharem em conjunto porque

“Quando as mulheres tomam a si o interesse de certas causas, vencem sempre [...].”

(A Folha da Victoria, 31/07/1884). A presença das mulheres na campanha

abolicionista do Ceará também foi destacada em propaganda abolicionista assinada

por Cunha Werres, destinada ao periódico A Província do Espírito Santo, e veiculada

pelo mesmo em 26 de agosto de 1883:

Quase que já podemos dizer: no Ceará, não há escravos. Nessa terra de luz, não só a massa viril se erguera para suplantar a escravidão; como também esses anjos tutelares, essas criaturas divinas e carinhosas, na obscuridade do lar doméstico; não ovildando os afazeres melindrosos e a suma responsabilidade de mãe e esposa; sentiram bater-lhe de encontro ao coração os sentimentos divinos da Liberdade; e ei-los: nas praças públicas implorando da generosidade de suas irmãs, em favor da santa e acrisolada causa da Liberdade!

Sim, lá vem Maria Thomásia, falando às massas e enchendo com sua voz convincente e arrebatadora, os corações de todos, de zelo pela extinção gradativa da escravidão no nosso solo Americano!

[...]

E vós, oh! Criaturas sublimes! Vós que desempenhais no lar doméstico a missão a mais honrosa; que encheis de alegria o talámo conjugal; é para vós chegado o momento de suavizar as penas dos infelizes, que gemem ao peso monstruoso da escravidão com um sorriso vosso; um pensamento sequer!....

Os apelos às mulheres para que escutassem os sentimentos do seu coração

e integrassem a causa abolicionista sem se eximirem das funções de mãe e esposa

foram atendidos. No mesmo número em que veiculou a criação da sociedade, o

jornal A Província do Espírito Santo deu as boas vindas ao grande número de

senhoras que já haviam aderido à Libertadora Domingos Martins. Na reunião

realizada no Paço Municipal em 15 de agosto de 1883, de acordo com A Província

do Espírito Santo (17/08/1883), a Libertadora já contava com 62 sócios e 12

associadas e até 1888, 75 senhoras capixabas se associaram à Libertadora.

73

Tabela 3: Associadas á Libertadora Domingos Martins (1883-1888)

Nome Ano

Colatina Moniz Freire; Dulcina Isabella de

Cerqueira e Silva; Candida Pitanga; Izabel Maria

de Alvarenga Santos; Maria Brazilina de

Magalhães Tagarro; Alcina Cerqueira Teixeira;

Roza Aguirra Bastos; Maria Albertina Couto;

Adelina Maria Bastos Nunes; Leocádia Ribeiro E.

Araújo; Alexandrina Salles; Eulália Alexandrina N.

de Salles; Eugênia Tesch de Macedo; Maria

Pereira Leitão da Silva; Porcina Goulart; Anna

Candida de Vasconcellos; Roza Nobre.

1883

Aurea Ribeiro de Almeida; Elvira Ribeiro de

Almeida; Anna de Costa; Chrispiana Santos;

Adélia Borges; Fausta Goulart; Mathilde Abreu;

Sophia Abreu; Anna Aleixo de Lima; Francisca

Lirio; Adelina Castro; Philomena Nunes Ribeiro;

Urbana M. Ribeiro; Philomena Manso; Emilia

Vianna; Eliza Araripe Paiva; Mariana Pacheco;

Maria Freire;Anna Bandeira; Adelaide Nunes;

Alípia Fraga; Arminda Netto; Aurélia Nogueira da

Gama; Luduvina Lopes

Maria Silva; Adelaide Silva; Lucia Silva; Adelaide

Espiudula; Guilhermina de Souto Gonçalves;

Anna Santos; Jesuína Lopes; Lydia Manso de

Carvalho; Francisca de Paula Neves Xavier;

Raymunda de Mello e Oliveira; Otília Dentice;

Maria Innocencia Garcia; Dalmácia A. de

Siqueira; Petronilha A. de Siqueira; Adelaide

Caparica de Madeiros; Jacintha Leocádia E.

Ribeiro; Maria Roza da Conceição; Marianna A.

da Graça de Jesus; Maria Domitilia da

Encarnação; Anna Pessoa Pinto; Maria da Glória

do Nascimento; Amélia Octávia de Vasconcellos;

Francisca da Encarnação Lellis Horta; Maria

Cardozo Ayres; Alvina Guimarães; Luiza Adelina

Dias; Maria Alves Peixoto; Josepha Pereira de

Alvarenga Santos; Maria Adelaide Peyveau

Nunes Pereira; Maria S. Couto Aguirra; Carlota

Duarte Pereira; Amélia Poggi; Ottilia Goulart;

1884

74

Candida Abreu Peixoto; Maria Abreu Peixoto.

Total: 75

Fonte: A Província do Espírito Santo; Folha da Victoria

Apesar de ter sido fundada em agosto de 1883, a Libertadora Domingos

Martins só foi efetivamente instalada em abril de 1884. O ano foi o mais profícuo em

eventos abolicionistas promovidos pela associação, razão à qual atribuímos o

grande número de adesões à mesma. Entretanto, a partir do segundo semestre de

1884, as atividades da Libertadora arrefeceram e não houve mais inserções na

sociedade. De acordo com Mariana de Almeida Pícoli (2009, p. 127), o fato talvez

tenha relação direta com a estagnação do movimento abolicionista nacional no

período.

Houve também outro tipo de apoio ou adesão feminina à Libertadora

Domingos Martins: as colaborações feitas por outras mulheres à sociedade. Esta

participação configurou as doações de brindes para quermesse, apoio em

conferências ou donativos.

Tabela 4: Colaboradoras da Libertadora Domingos Martins (1883-1888)

Nome Ano

Adexia Netto 1884

“Menina” Idália 1884

Maria Bandeira de Mello 1884

“Menina” Zizinha 1884

Alzira Pacheco 1884

Honorina Taverne 1884

Elvira de Almeida 1884

“Anônima” 1884

Total: 8

Fonte: A Província do Espírito Santo; Folha da Victoria

Apesar do número reduzido, as mulheres que nomeamos de colaboradoras

apresentam dois aspectos significativos. Primeiro, mesmo não sendo oficialmente

afiliadas à Libertadora Domingos Martins, as colaboradoras participaram dos

principais eventos organizados pela associação. O segundo diz respeito às

“meninas”, que configuram a inserção feminina no movimento abolicionista através

de pais, maridos ou irmãos abolicionistas (ALONSO, 2011, 187). Ao veicular as

contribuições de Idália e Zizinha (de apenas 13 anos) de brindes para a quermesse,

75

o jornal A Folha da Victoria apresentou o nome dos pais de ambas, respectivamente,

João Pessoa Júnior e Guilherme Frederico Almeida. Como era comum a doação de

brindes por parte de homens, o destaque dado as duas revela a apropriação e o uso

da retórica abolicionista das identidades de gênero.

Em relação à Libertadora Domingos Martins, a terceira via foi a principal.

Algumas das senhoras que se associaram à Libertadora eram esposas ou familiares

dos abolicionistas. Os sócios da Libertadora, cônjuges das associadas, ocupavam

cargos de destaque na política e administração provincial, como por exemplo,

Adelina Nunes e Colatina Moniz Freire eram as esposas dos redatores do jornal A

Província do Espírito Santo, Cleto Nunes e José de Mello Carvalho Moniz Freire; e

Cândida Pitanga, esposa do Dr. Antônio Ferreira de Souza Pitanga, um bacharel

que ocupou o cargo de Chefe de Polícia do Espírito Santo e depois foi nomeado

como juiz de direito na província de Pernambuco29.

Conforme já dito, a atuação das mulheres no movimento abolicionista

correspondeu às atividades ligadas aos seus papéis sociais estabelecidos. Deste

modo, as mulheres capixabas sócias ou colaboradoras da Libertadora Domingos

Martins desenvolveram atividades como a arrecadação de donativos, que podem ser

considerados mera expansão da cultura feminina estabelecida (KITTLESON,

2005a). Ainda assim, o número significativo de associadas e colaboradoras da

Libertadora não se traduziu em engajamento por parte de todas elas. A maioria das

sócias não exerceu nenhuma função entre as operações promovidas pela sociedade

– a mesma situação foi observada para os homens membros da associação.

Entretanto, aquelas que adotaram papel mais ativo eram as que tinham maridos ou

pais como sócios ou diretores da Libertadora Domingos Martins.

29

A historiadora francesa Michelle Perrot (2007), afirmou que escrever a história das mulheres é

esbarrar no “silêncio das fontes”. Por terem sido excluídas do espaço público, pouco se falou e se pouco se produziu sobre elas, tornando-as invisíveis. De fato, nos periódicos A Província do Espírito Santo e Folha da Victoria, escolhidos como corpo documental da pesquisa, as informações pessoais encontradas sobre as mulheres envolvidas no movimento abolicionista capixaba foram escassas e fragmentárias, impedindo, por exemplo, uma investigação prosopográfica.

76

Quadro 2: Atuação feminina na Libertadora Domingos Martins (1883-1888)

Atividades Sócias Colaboradoras

Arrecadação de Donativos Amélia Poggi; Adelina Nunes;

Leocádia Escobar; Maria

Albertina Couto; Izabel Santos;

Cândida Pitanga; Maria

Tagarro; Colatina Moniz Freire;

Maria Aguirra; Carlota Augusta

Duarte Pereira; Etelvina de

Souza Gouvêa.

Participação no Sarau-Literário Maria da Glória do Nascimento;

Amélia Figueiredo; Porcina

Goulart; Adélia Borges;

Leocádia Escobar; Maria

Albertina Couto; Colatina Moniz

Freire; Adelina Lírio.

Honorina Taverne*; Alzira

Pacheco.

Doação de brindes para a

quermesse

Maria Adelaide Peyveau Nunes

Pereira; Anna Bandeira; Maria

Bandeira de Mello; Eugênia

Tesch de Macedo; Adélia

Borges; Carlota Augusta Duarte

Pereira; Maria Macedo; Ottilia

Goulart; Mathilde Abreu; Anna

Araripe; Dulcina Isabella de

Cerqueira e Silva; Izabel

Santos; Josepha Santos;

Francisca Dias; Maria Albertina

Couto; Roza Araripe; Dalmácia

A. de Siqueira; Petronilha A. de

Siqueira; Etelvina de Souza

Gouvêa; Colatina Moniz Freire.

“Menina” Idália; Maria Bandeira

de Mello; “Menina” Zizinha;

Anônima; Elvira de Almeida;

Adexia Netto.

Fonte: A Província do Espírito Santo; Folha da Victoria

*A senhora Honorina Taverne emprestou o seu piano para que as sócias e colaboradoras da

Libertadora Domingos Martins pudessem se apresentar na conferência realizada em 27 de julho de

1884 (A Folha da Victoria, 31/07/1884).

Na reunião que teve lugar na casa de Afonso Cláudio, a que efetivamente deu

início às atividades da Associação Libertadora Domingos Martins, foi criada uma

comissão de senhoras formada por Adelina Nunes, Etelvina Gouvêa, Izabel Santos,

77

Cândida Pitanga, Maria Tagarro, Maria Aguirra, Albertina Couto, Leocádia Escobar,

e Colatina Moniz Freire “para ativar na cidade a ideia de libertação, aliciando forças

novas e o concurso de meios que venham dar vigor ao fundo monetário da

sociedade” (A Folha da Victoria, 17/04/1884). A arrecadação de donativos para a

associação foi uma das principais funções desempenhadas pelas sócias. Na ocasião

da primeira conferência pública da Libertadora Domingos Martins, em abril de 1884,

Amélia Poggi, Adelina Nunes, Leocádia Escobar, Albertina Couto e Carlota Duarte

percorreram o salão e recolheram a quantia de 40$000 em favor do fundo social da

associação, “[...] produto da generosidade do povo, a quem não é indiferente a sorte

do escravo” (A Folha da Victoria, 01/05/1884). Ainda Isabel Santos, esposa de

Martinho dos Santos, se ofereceu para bordar o estandarte da Libertadora, com a

“nívea cor dos lírios e das camélias30 e numa faixa rutilante e rubra a legenda

histórica Libertas quae sera tamem” (Folha da Victoria, 01/05/1884), e também da

Sociedade Literária Pessanha Póvoa (Folha da Victoria, 24/04/1884).

A Associação Libertadora Domingos Martins promoveu, durante o ano de

1884, três conferências, um Sarau-Literário e tencionou realizar uma quermesse

com objetivo de angariar dinheiro para a manumissão de escravos. Várias sócias

contribuíram com a doação de brindes para o evento, como Maria Albertina Couto,

que doou um estojo de costura, Rosa Araripe, Eugênia Tesch, Etelvina de Souza

Gouvêa, Colatina Moniz Freire. Contudo, apesar das sucessivas menções e pedidos

de donativos nas páginas de A Província do Espírito e A Folha da Victoria, a

quermesse nunca foi realizada.

A atuação mais efetiva das mulheres na Libertadora Domingos Martins, foi o

Sarau-Literário realizado em 27 de julho de 1884, assemelhou-se à da "matinée

musicale" totalmente feminina, organizada por João Clapp, no Rio de Janeiro, em

seis de fevereiro de 1881(ALONSO, 2011, p. 22). As mulheres foram o destaque do

evento. Maria do Nascimento, Adélia Borges, Amélia Figueiredo, Alzira Pacheco,

Porcina Goulart, Leocádia Escobar e Maria Albertina Couto – professora de piano no

colégio Nossa Senhora da Penha – foram anunciadas como musicistas e Adelina

30 As camélias, conforme já mencionado anteriormente, eram produzidas no quilombo abolicionista

do Leblon, no Rio de Janeiro e se tornaram o símbolo do movimento abolicionista, ficando conhecidas como “camélias da liberdade”. Um dos presentes oferecidos à Princesa Isabel, pela assinatura da Lei Áurea foi um buquê de camélias. Ver SILVA, (2003).

78

Lírio de Castro, como oradora. Na edição publicada no dia 31 de julho de 1884,

após o Sarau-Literário, Aristides Freire, redator do jornal A Folha da Victoria, dedicou

especial atenção às mulheres presentes na “Festa da Libertadora”. O fato de serem

mulheres na execução do programa proposto pela Associação Libertadora

Domingos Martins foi uma novidade que gerou apreensão entre a plateia:

Essa impressão má desapareceu logo aos primeiros da overtura – Semiramide! A satisfação foi geral! Palmas e bravos ecoaram em todos os salões! Daí em diante a execução do programa seguiu-se sem acanhamento, notando-se admirável naturalidade entre as senhoras, que pela primeira vez se exibiam em público.

A apresentação de Adelina Lírio de Castro aconteceu no momento literário do

evento, que teria sido bem simples, não fosse seu “arroubo de entusiasmo”. O

articulista de A Folha da Victoria manifestou seu orgulho em ter Adelina como

representante das capixabas nas festas literárias, por conta de seu talento. A poesia

recitada por ela era de sua própria autoria e “eletrizou a todos que lá estavam” (A

Folha da Victoria, 31/07/1884).

Vai raiando a meiga aurora Aos brados da multidão, A liberdade sacode, Os ferros da escravidão ! [...] Infelizes!... nos suplícios Das dores mais cruciantes, Jamais vereis vossos filhos Passar a miúdos distantes. [...] Ides entrar no direito De que vivias privado [...] Os hinos da liberdade Não interrompe ninguém

As figuras de linguagem empregadas pela autora faziam parte do repertório

comum às literatas que versavam sobre a escravidão, das quais a mais famosa foi a

fluminense Narcisa Amália de Campos (1852-1924), cuja trajetória cruzou com a do

bacharel José Joaquim Pessanha Póvoa, que deu nome a outra sociedade

abolicionista capixaba da qual as mulheres participaram. Pessanha Póvoa prefaciou

o livro de poesias Nebulosas de Narcisa Amália, lançado em 1872 (BERTELLI, 2007,

p.8) no qual a poetisa descrevia e condenava a escravidão. Adelina de Castro

conseguiu falar tanto aos envolvidos com a causa abolicionista quanto aos próprios

escravos – que costumavam compor o público dos eventos da Libertadora, o que

79

gerou criticas por parte dos que eram contra o movimento. Destaca-se no poema a

menção à separação dos escravos e de seus filhos. Mesmo não falando diretamente

da separação mãe e filho, Adelina atingiu com o mesmo propósito, citando a família,

as mulheres do Sarau-Literário. Entretanto, nem a dor da escravidão nem a família

separada constituíram o cerne do seu poema. Adelina Lírio de Castro direcionou seu

pensamento para a liberdade como uma conquista, um processo que garantiria aos

escravos os direitos que lhe eram negados.

O Club ou Sociedade Literária Abolicionista Pessanha Póvoa foi fundado em

abril de 1884. A mudança na nomeação da associação para Club Abolicionista Dr.

João Clímaco ocorreu por conta da divulgação de um editorial de Pessanha Póvoa,

num jornal do interior em que afirmou que “O negro nasceu para ser escravo, dizia

Aristóteles” (A Folha da Victoria, 22/05/1884), pouco tempo depois de o literato ter

exaltado a missão a que se propuseram a Libertadora Domingos Martins e o Club

Abolicionista Dr. João Clímaco. A presença das mulheres não parece ter sido objeto

de discussão, talvez porque já estivessem atuando na Libertadora. Em sua primeira

reunião, a esposa do engenheiro João Cassiano, executou ao piano uma polca

Abolicionista (seu nome não foi citado) e Isabel Santos – que também fazia parte da

Libertadora Domingos Martins – afirmou ao grupo de meninas que realizavam a

arrecadação de fundos: “Anima-me a falar porque também vejo o meu sexo tomando

parte nesta festa em favor da Liberdade; por isso peço-lhes perseverança e se

possível – mais coragem, para nossa glória” (A Folha da Victoria, 22/05/1884). O

próprio Pessanha Póvoa não fez parte da sociedade que contou com membros

como Antônio Ataíde, Castro Bandeira e Candido Freitas.

A primeira atividade abolicionista da associação, ainda denominada

Sociedade Literária Abolicionista Pessanha Póvoa, foi um passeio no primeiro mês

de sua instalação, cujo objetivo era angariar fundos para a causa da liberdade dos

cativos. As mulheres presentes Silvana, Celina, Adélia, Emília e Maria eram filhas de

membros da sociedade, “[...] cujos pais as cederam para tão humanitário fim,

representavam um coro de anjos amparando a fronte dos míseros cativos, que

começam a ouvir de mais perto os hinos da liberdade” (A Folha da Victoria,

24/04/1884). Uma regata foi o maior evento realizado pela sociedade Pessanha

Póvoa e nela as mulheres arrecadaram dinheiro para a associação e meninas

“beneméritas sócias” entregaram aos vencedores da regata buquês de flores. A

80

renomeação do clube parece ter levado à sociedade a uma apatia, como criticado

em julho de 1884, numa nota em A Folha da Victoria, assinada por “Um

abolicionista”.

No Club (sic) Abolicionista Dr. João Clímaco, o envolvimento das mulheres foi

aparentemente inferior ao da Libertadora Domingos Martins. O próprio engajamento

do clube foi menor. As menções encontradas nos jornais se referem às reuniões da

diretoria – da qual as mulheres não faziam parte. O “Club” não organizou mais

nenhuma atividade pública, apenas participou de uma reunião da Sociedade de

Amor às Letras e teve seu estandarte, juntamente com o da Libertadora Domingos

Martins exposto no Bazar do Povo. As mulheres parecem ter sido inseridas apenas

como símbolo dos sentimentos vinculados à causa humanitária, e não como

participantes afiançadas pela moralidade dos mesmos sentimentos, o que pode ser

considerado como outra interpretação do discurso de gênero, produzido pelo

movimento abolicionista, que negou às mulheres participação mais efetiva. Ao

contrário do que acontecia com a Associação Libertadora Domingos Martins, A

Província do Espírito Santo e A Folha da Victoria não informaram as adesões ao

Club Abolicionista, nem de homens nem de mulheres. Em 1885, A Província do

Espírito Santo publicou uma crítica ao livro de Afonso Cláudio sobre a Insurreição de

Queimado, em que seu autor afirmou que o Club Abolicionista Dr. João Clímaco não

logrou êxito. Entretanto, o Club não deixou de existir. Em 1888, foi reconhecido

como uma das sociedades abolicionistas que fizeram parte do movimento em prol da

redenção dos cativos no Espírito Santo.

A Libertadora Domingos Martins e o Club Abolicionista Dr. João Clímaco

operaram de forma conjunta pela abolição na província do Espírito Santo. Além dos

sócios em comum, no dia 12 de junho de 1884, a escrava Glicéria, do senhor

Manoel Pinto Netto, foi redimida pela quantia de 550$000, sendo 400$000

oferecidos por um irmão da Irmandade de São Benedito, 50$000 pelos fundos do

Club João Clímaco e o restante pelos sócios da Associação Libertadora Domingos

Martins (A Província do Espírito Santo, 17/06/1884). E em oito de abril de 1888, o

jornal A Folha da Victoria relatou outra aliança entre as duas sociedades e dessa

vez, também com a Libertadora Rosariense. Os abolicionistas marcaram para vinte e

três de maio de 1888, data que assinalava o descobrimento da província, para a

libertação da capital, utilizando a tática da emancipação geográfica adotada em

81

outras províncias. Com este fim, foi criada uma comissão de senhoras para agenciar

as relações com os proprietários de escravos, “[...] no sentido de se lhes conceder

plena liberdade, com a condição de prestação de serviços por tempo que não

exceda dois anos”. A notícia informou os nomes dos homens, mas das mulheres

limitou-se a fornecer a indicação de serem esposas. No evento que marcaria a

libertação de Vitória, as alunas do colégio Nossa Senhora da Penha e das aulas

públicas do sexo feminino da cidade, entoariam o hino da liberdade composta por

João Azevedo (Folha da Victoria, 08/04/1888).

O projeto foi “atropelado” pela assinatura da Lei Áurea em 1888, mas a

intenção da comissão de senhoras utilizou outra construção de feminilidade. Não

foram feitas menções aos elevados e fortes sentimentos do sexo feminino nem a

comissão era voltada para a caridade. As mulheres foram (ou seriam) colocadas

numa relação de igualdade com os proprietários de escravos e detiveram o poder de

estabelecer condições para as liberdades em negociação. A reunião entre as

associações Libertadora Domingos Martins e Libertadora Rosariense debateu o

evento e não estabeleceu qualquer tipo de diretriz para a atuação das mulheres, que

foram alçadas à posição de protagonistas na relação com os proprietários dos

escravos que pretendiam efetuar as manumissões.

2.4 Após o 13 de maio...

Até o fim, como se viu, as mulheres capixabas estiveram presentes no

movimento abolicionista do Espírito Santo. Nos festejos realizados na província do

Espírito Santo em comemoração à promulgação da Lei Áurea, a Associação

Libertadora Domingos Martins, o Club Abolicionista Dr. João Clímaco e a Libertadora

Rosariense se fizeram presentes. A Libertadora organizou um cortejo cívico, em

frente à Loja Maçônica no qual “A inteligente jovem D. Alice Castro, filha do tenente

Castro, recitou um bonito discurso, exaltando o mérito dos que combateram pela

causa da abolição, sendo ao terminá-lo muito aplaudida” (Folha da Victoria,

17/05/1888). Não faltaram menções ao símbolo da mulher abolicionista, e a Folha da

Victoria (17/05/1988) elogiou a princesa Isabel pelo “[...] coração magnânimo de uma

mulher transformou-se em astro para iluminar a vasta extensão do colosso

americano, adormecido miseravelmente nos braços da escravidão”.

82

No Espírito Santo, como em outras províncias do país, não se formou uma

associação abolicionista exclusivamente feminina, nem por isso as mulheres

estiveram excluídas do movimento antiescravista. No Rio Grande do Sul, as gaúchas

não foram incluídas na diretoria do Centro Abolicionista de Porto Alegre, fundado em

1883, mas ocuparam funções semelhantes às que exerceram durante a Revolução

Farroupilha e a Guerra do Paraguai (KITTLESON, 2005a, p. 130). A inserção das

mulheres no movimento abolicionista capixaba representou a vitória do discurso de

gênero, da retórica abolicionista de caráter feminino, que foi modelar para a conduta

dos movimentos emancipacionistas locais. As mulheres capixabas assumiram seus

novos papéis sociais e se posicionaram em uma esfera de discussão situada entre o

privado e o público, que intercambiava cada vez mais elementos deste espectro,

como demonstram a quantidade de sócias da Associação Libertadora Domingos

Martins e a diversidade das funções exercidas pelas mesmas.

Ao contrário do movimento nacional como um todo, no abolicionismo da

província do Espírito Santo a figura da mãe não foi a única e nem o principal caráter

atribuído às mulheres. Os discursos e ações empreendidos em favor da campanha

compartilharam com o restante do país um caráter feminizado, entretanto, os

abolicionistas capixabas falaram para as mulheres, e não para seus corações. Eram

elas chamadas para integrar a campanha abolicionista e não os sentimentos em si.

A ênfase foi muito maior ao papel de esposa do que ao de mãe. Os nomes das

senhoras capixabas que se destacavam na cena do abolicionismo eram sempre

divulgadas por A Folha da Victoria e A Província do Espírito Santo acompanhados

dos nomes de seus cônjuges, o que não significa tutela ou subordinação. Na

realidade, “ser esposa” permitia às mulheres mobilidade e campo de atuação muito

maior do que “ser mãe”. Das mães se esperava uma total dedicação aos filhos,

quase um sacerdócio (RAGO, 1985, p. 80). Ao acompanharem os maridos em

eventos e debates públicos e políticos, as mulheres estavam cumprindo o esperado

para o papel de esposa, ainda que se posicionar politicamente neste espaço não

representasse ruptura com os papéis tradicionais.

O processo que levou à extinção da escravidão reformulou as identidades de

gênero da sociedade brasileira da época, incluiu novos atores sociais no espaço

público das cidades e da esfera política de discussão. Para as mulheres, a

ingerência no abolicionismo permitiu que acumulassem experiência de militância em

83

outros debates políticos, como na campanha pelo sufrágio feminino na virada do

século XX (MOTT, 1988, p. 82). Um exemplo foi Maria Amélia de Queiroz,

pernambucana e uma das principais líderes da sociedade abolicionista Ave Libertas,

fundada em 1884. Maria Amélia mereceu o destaque de em 1887, discursar ao lado

de José do Patrocínio e incentivar as mulheres a integrarem o movimento. As

atividades da sociedade não cessaram com a assinatura da Lei Áurea, em 1888,

suas sócias continuaram a trabalhar tendo como objetivo a alfabetização e a

profissionalização dos escravos (FERREIRA, 1999, p. 69). Maria Amélia, através do

prestígio obtido na militância abolicionista, após o 13 de maio, passou a dedicar

seus esforços à causa republicana que acreditava ser o resultado natural da vitória

da luta abolicionista, era a libertação moral do país. Em outubro de 1888, ela foi

oradora da Terceira Conferência Doutrinária do Club Republicano Frei Caneca, do

qual fazia parte e afirmou: “[...] queremos uma Pátria regenerada; é forçoso que nós

não nos satisfaçamos simplesmente com aquela reforma [a abolição]” (FERREIRA,

1999, p. 70). O periódico A Folha da Victoria caracterizou Isabel Santos, integrante

tanto da Libertadora Domingos Martins quanto do Club Abolicionista Dr. João

Clímaco, como republicana (A Folha da Victoria, 22/05/1884), porém, nenhuma outra

informação que denotasse o envolvimento de Isabel com o pensamento republicano

e uma possível permanência de mulheres capixabas no debate político após a

abolição foi encontrada.

Há certa lacuna historiográfica sobre a presença feminina em movimentos populares

concomitantes ou posteriores à campanha abolicionista, como a Revolta do Vintém,

em 1880 ou da Vacina, em 1904, que nos permitiriam avaliar o grau de sucesso dos

abolicionistas em colocar as mulheres como partícipes do movimento. Mesmo que

os usos das construções de feminilidade tenham atendido a objetivos específicos

dos abolicionistas e as mulheres não tenham protagonizado o movimento, sua

participação não pode ser vista como apolítica (KITTLESON, 2005b, p. 99). As

identidades de gênero forjadas durante o processo de abolição foram centradas nas

diferenças entre os sexos e não na inferioridade feminina. O sentimentalismo e as

emoções mais exacerbadas passaram a ser vistas como características e não

sintomas da fraqueza das mulheres. Ao adotarem o papel e a identidade social de

mãe e esposa, ao contrário de permanecerem restritas ao lar, as mulheres

estabeleceram uma ampliação da esfera privada e a tornaram pública.

84

3. LINGUAGENS DA FEMINILIDADE: PERFORMANCE, DISCURSO E

POLÍTICA

Os argumentos estabelecidos por mulheres contrárias ao recrutamento militar

do Brasil imperial e comuns ao discurso generificado produzido pelo movimento

abolicionista fortaleceram a imagem feminina marcada pela estrutura mãe, esposa e

dona de casa. Na construção das vias de acesso à esfera pública, as mulheres

utilizaram esta figura como recurso para evitar reações adversas, fazendo da

feminilidade uma máscara (RIVIÈRE, 1929). Deste modo, a feminilidade tornou-se o

idioma fruto do contra discurso das esferas públicas subalternas femininas

(FRASER, 1992; PERLATTO, 2015). As identidades de gênero são performativas,

ou seja, produzidas no e pelo discurso (BUTLER, 2003), assim, a linguagem

apresenta-se como fundamental para seu entendimento. Neste capítulo, analisamos

como as mulheres produziram uma identidade de gênero por meio da linguagem da

feminilidade. Para tal, adotamos a teoria dos atos de fala e da linguagem

performativa de John Langshaw Austin (1962[1990]) e a noção de performatividade

de gênero de Judith Butler (1993, 2003). Através das concepções de Joan Scott

sobre linguagem e experiência e das perspectivas de análise de Quentin Skinner

(2005) e John Pocock (2003), promovemos o estudo do vocabulário empregado

pelas mulheres de maneira a estabelecer se e como os atos e discursos produzidos

por elas eram políticos e o uso que foi feito dos mesmos.

3.1 A feminilidade mascarada e a esfera pública

A formulação de Jurgen Habermas (1962[1984]) acerca das mudanças na

estrutura da esfera pública a partir do século XVIII na Europa sofreu críticas que

viriam a ser posteriormente, incorporadas às obras do próprio autor31. Dentre as

objeções levantadas à conceituação de Habermas, destacamos a elaborada pela

filósofa americana Nancy Fraser em 1992. Um primeiro aspecto é o apontamento

que a autora faz do confuso uso do conceito de esfera pública pelas feministas para

se referir a tudo fora da esfera doméstica ou familiar. Este uso permeia três coisas

que em sua visão são analiticamente distintas: o Estado, a economia oficial de

31

Fernando Perlatto (2015), elenca alguns autores que objetaram quanto às definições habermasianas, a saber: BAKER, 1992; ELLEY, 1992; ZARET, 1992; CALHOUN, 1992; AVRITZER, 2000; COSTA, 2002. O autor afirma que o mérito da primeira critica mais ampla à Habermas pertence à Negt e Kluge (1993), no entanto, quem melhor sistematizou as contestações foi Nancy Fraser (1992), com o conceito de subaltern counterpublics.

86

counterpublics feminino e da esfera pública no Brasil do Oitocentos foi a confluência

do discurso masculino e feminino durante o movimento abolicionista. A intersecção

das mulheres entre o privado e o público (ainda que um público paralelo e

subalterno) foi ambivalente. A historiadora Mary P. Ryan (1992) notou que durante o

século XIX, nos Estados Unidos, as mulheres construíram vias de acesso à vida

política pública. No caso de mulheres da elite burguesa, esta construção esteve

ligada à sociedade civil, com o envolvimento de mulheres em associações

voluntárias e sociedades filantrópicas e morais. Para as mulheres menos

privilegiadas, o ingresso na vida pública ocorreu por meio do apoio em atividades de

protesto dominadas por homens. O estudo de Ryan demonstra paralelo com o

encontrado em nosso objeto. Ainda que não exclusivamente, as mulheres brasileiras

das camadas populares acessaram a esfera pública como uma ação reativa

(CARVALHO, 2006) ou de protesto, enquanto o engajamento das mulheres da elite

permeou as associações de caridade e no contexto abolicionista, esteve ligado à

esfera pública central.

O acesso das mulheres à vida pública concretizou uma esfera separada de

discurso e práticas sociais femininas, marcada pelo “culto à domesticidade”, que

promoveu o distanciamento de preocupações cívicas vitais e de questões de

interesse específico para as mulheres do mundo do debate público (RYAN, 1992). O

“culto à domesticidade” consolidou-se de forma gradativa, na medida em que as

mulheres tornaram-se, em seus lares o lócus da autoridade moral da sociedade. A

interpenetração do político no privado fomentou nova elaboração e consequente

valorização da domesticidade, e assim, o lar adquiriu um conjunto de papéis mais

extenso na ordem social, política, religiosa e emocional (LOURO&MEYER, 1993, p.

48).

No entanto, no processo de acesso à esfera pública, as mulheres utilizaram

criativamente e de forma inovadora expressões privadas da domesticidade e da

maternidade como trampolins para a atividade pública (RYAN, 1992). O emprego

pública e especialmente pela adoção do conceito de gênero. De acordo com Joan Scott (1995, p. 75): “O termo gênero, além de um substituto para o termo ‘mulheres’ é também utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino. Esse uso rejeita a validade interpretativa da ideia de esferas separadas e sustenta a ideia de que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo”.

87

político dos ideais de maternidade e domesticidade pode estar ligado ao que a

psicanalista Joan Rivière (1929[2005]) denominou de “feminilidade como máscara”.

A respeito das mulheres situadas na intersecção entre o espaço privado e o público,

especialmente as mulheres intelectuais ou ativistas, Rivière (1929[2005], p. 14)

afirmou que estas utilizavam a feminilidade como uma máscara para evitar a

ansiedade e a vingança temida dos homens por transgredirem o espaço até então

reservado somente a eles. A máscara da feminilidade também era usada para

disfarçar a posse da masculinidade – ou de características tidas como masculinas –

“tal como um ladrão que revira os bolsos e pede para ser revistado a fim de provar

que não furtou os bens roubados” (RIVIÈRE, 2005[1929], p. 17). Um dos exemplos

citados por Joan Rivière descreve a de uma mulher que embora capaz de exercer

funções tipicamente masculinas sentia-se compelida a ocultar seu conhecimento e

ao lidar com homens, dava sugestões de maneira inocente e leiga. Entretanto,

mesmo desempenhando o papel de mulher sem instrução, tola e confusa, no final

sempre atingia seu objetivo.

Essa máscara, transparente para as mulheres, nos homens se mostraria

como um recurso bem sucedido, pois são atraídos e apaziguados através dela.

Neste sentido, Judith Butler (2003, p. 83-84) considera que para Rivière35 o medo da

retaliação proviria da fantasia da mulher em tomar o lugar do homem, mais

precisamente do pai, não em torno do desejo da mãe, mas em sua posição no

espaço público. Esse desejo, para Butler, pode ser compreendido como anseio de

abandonar o status de mulher-como-signo e aparecer como sujeito no interior da

linguagem. A mulher assumiu a máscara deliberadamente, pois desejava a

masculinidade para entrar no discurso público com homens ao mesmo tempo em

que a ocultava da plateia masculina cujo espaço planejava ocupar.

Conforme argumenta Joan Scott (1995, p. 88), é preciso negar o

universalismo da identidade psicanalítica, para que os historiadores possam

35

Em 1929, Joan Rivière ministrou a conferência Womanliness as a masquerade perante a audiência masculina da Sociedade Psicanalítica Britânica. Devido à descrição da mulher no caso em que examina, alguns autores consideram que fosse autobiográfico. A paciente de Rivière (1929 [2005] p. 14-15) era “uma mulher norte-americana engajada em um trabalho publicitário, que consistia principalmente em falar e escrever. Durante toda sua vida, certo grau de ansiedade, por vezes muito intenso, foi experimentado após qualquer cada apresentação em público, como ao falar para uma audiência [...] Essa necessidade de reconhecimento levava-a compulsivamente a buscar a atenção ou o elogio de um ou mais homens ao final do evento em que participara ou no qual tinha sido a figura principal; [...]”.

88

examinar as formas pelas quais as identidades generificadas são construídas e em

quais circunstâncias históricas. Deste modo, a controversa posição de Joan Rivière

(1929 [2005]), de que em essência a “feminilidade genuína” e a “máscara”, não se

distinguem produziu no mínimo duas interpretações sobre a feminilidade como

máscara. Uma que a entendeu como submissão às normas sociais dominantes e

outra que a encarou como um disruptivo e resistência às normas patriarcais

(WOODWARD, 1989, p. 125). Para Terry Castle (1986 apud Craft-Fairchild, 1993, p.

52) a segunda abordagem propiciou às mulheres do século XVIII uma saída abrupta

do sistema de dominação sexual e modificou as arcaicas relações de gênero

ocidentais. Nos requintados salões de festas, as mulheres se viram livres para se

posicionar de acordo com o seu próprio prazer, fora dos lugares determinados pelos

homens.

Genuína ou mascarada, mas na perspectiva resistente de Terry Castle, a

feminilidade foi usada pelas mulheres capixabas com o mesmo objetivo proposto por

Joan Riviére (1929[2005]): o de evitar reações adversas por parte dos homens.

Modelo de feminilidade aceito pela esfera seletiva e revigorado pelo contradiscurso

da esfera feminina, a figura da mulher mãe, esposa e dona de casa se transformou

também na representação da identidade feminina no século XIX, corroborando o

pensamento de Judith Butler (2003, p. 48) de que a identidade de gênero é

performaticamente constituída pelas próprias expressões tidas como seus

resultados. Neste processo que tanto usou a feminilidade como a construiu, a

linguagem apresentou um papel proeminente, pois é performativa, o que, se tomado

de maneira radical, estabelece que todos os enunciados, todos os atos de fala, tudo

o que dizemos faz (PINTO, 2007, p. 2). Assim, os discursos das peticionárias e das

abolicionistas na província do Espírito Santo no XIX fizeram, realizaram, executaram.

Produziram tanto a consolidação de uma identidade feminina comum e

intrinsecamente ligada aos papéis familiares quanto a transposição das mulheres

para a esfera pública seletiva além de atender a objetivos imediatos. Na medida em

que gênero performado consiste na maneira como o indivíduo se apresenta ao

mundo, a maternidade, como atribuição mais forte destinada às mulheres,

“performa” essencialmente o que era o gênero no Oitocentos.

89

3.2 Performativos, performatividade e identidade

A noção de performance e performatividade que Judith Butler popularizou na

teoria de gênero partiu das concepções do filósofo inglês John Langshaw Austin36 e

das leituras de Jacques Derrida do mesmo. Numa série de conferências realizadas

na Universidade de Harvard em 195537, Austin discutiu sobre as distinções entre

enunciados constatativos e performativos além de postular a teoria dos atos de fala.

Constatativos são enunciados descritivos e sentenças que estabelecem declarações

factuais que relatam um estado de coisas, verdadeiras ou falsas. Por outro lado, por

performativo, entende-se sentenças que nada descrevem, nem relatam nem

constatem e nem sejam verdadeiros ou falsos e cujo proferimento, no todo ou em

parte, realizam ação. Dizer eu aceito esta mulher como esposa; batizo este navio ou

aposto que vai chover amanhã evidenciam que “proferir uma dessas sentenças (nas

circunstâncias apropriadas, evidentemente) não é descrever o ato que estaria

praticando ao dizer o que disse, nem declarar que o estou praticando: é fazê-lo”

(AUSTIN, 1990, p. 24).

A dicotomia constatativo/performativo foi recusada por Austin ainda em suas

conferências. De acordo com Kanavillil Rajagopalan (1989, p. 523), tal construção foi

pensada para ser abandonada em momento oportuno. Para Shoshana Felman

(2003, p. 8) a distinção foi enfraquecida pela impossibilidade de uma diferenciação

clara entre performativos explícitos e implícitos. Assim, Austin concluiu que seria

necessária uma teoria geral dos atos de fala, com a qual buscou determinar quando

dizer algo é fazer algo. A partir disso, o autor definiu três tipos de atos: locucionário,

realização de um ato de dizer algo; ilocucionário, realização de um ato ao dizer algo

e perlocucionário, realização de um efeito sobre o locutor – que poderiam ser

36

A recepção da obra de Austin é deveras diversificada: “encontramos Austin como base teórica em autores dos estudos funcionalistas (Dik, 1995), dos estudos sociolinguísticos (Gumpez, 1982), da análise crítica do discurso (Coulthard, 1985), da linguística textual (Van Dijk, 1981) e é claro, em autores da filosofia da linguagem – nos exemplos famosos de Searle (1969) e Derrida (1990)” (PINTO, 2009, p. 119). Ainda, para Leonardo Grão Velloso Damato Oliveira (2013, p. 17), a filosofia da linguagem, a partir das proposições de Austin e de Ludwig Wittgenstein, fomentou o embasamento teórico da proposta contextualista: “Dentro da Filosofia como campo acadêmico, a linguistic turn (virada linguística) demarcou o pensamento filosófico contemporâneo ao chamar à atenção os limites da comunicação linguística. Ao considerar tanto a recepção da comunicação quanto as premissas que o emissor carrega ao perpetrar um ato comunicativo, a Filosofia abriu novos campos de pesquisa nas ciências humanas. Seu impacto na História foi crítico. Abriu-se a possibilidade de investigar a dimensão histórica da linguagem, tornando-se os estudos históricos privilegiados por levarem em conta a formação da linguagem no tempo”. 37

As palestras de Austin foram publicadas em forma de livro em 1962 sob o título How to do Things with Words e traduzido no Brasil por Quando Dizer é Fazer: Palavras e Ações em 1990.

90

concomitantes ou não. A manutenção do performativo, como consequência de um

ato ilocucionário produz, na visão de Rajagopalan (1989, p. 525) uma mudança

radical em seu sentido anterior. O performativo passa a designar todo e qualquer

enunciado e definir a própria linguagem. Desta maneira, todos os atos de fala são

performáticos, todos os enunciados fazem. No entanto, como alerta Joana Plaza

Pinto (2007, p. 2) fazer é um verbo transitivo que necessita de suplemento para a

continuidade da argumentação. As identidades de gênero conforme Butler (2003)

são produzidas no discurso; assim, o discurso faz a identidade ou a identidade faz o

discurso? Se a identidade é performada e performativa, como os atos de fala a

produzem?

Judith Butler (1993, 1997, 2003) ao incluir o corpo, ponto cego da fala nas

suas citações, altera o performativo sem perder de vista a interação entre o

linguístico e o político (PINTO, 200X, p. 128)38. A materialidade e a simbologia do

corpo na execução do ato impõem uma marca no efeito linguístico. O ato de fala

performativo é de tal maneira operado ao mesmo tempo pelo que é dito, por quem

diz e como é dito – como o corpo diz, como o enunciado diz. Os requerimentos que

analisamos corroboram essa estrutura tripla de um ato performativo marcado pelo

corpo, visto na figura da suplicante, dado que a relação direta dos discursos

evidencia a materialidade do sujeito. Entretanto, num primeiro olhar, é difícil

evidenciar o que o enunciado performativo presente nas petições realmente fez:

Víuva, octogenária e pobre que tendo em sua companhia um neto de nome Manoel Pereira Porto, única pessoa de quem recebe a proteção que tanto necessita em seu estado, porque ele empregado na lavoura como se mostra o documento junto, aplica todos os seus renditos [sic] em benefício da suplicante e fora recrutado na noite de primeiro do corrente mês e como não esteja em caso de assentar praça não só pelos motivos alegados, como pelo de ainda não ter os 18 anos indicados nas Instruções, pelo que a suplicante humilde e respeitosamente,

Pede a Vossa Excelência que há de mandar pôr em liberdade.

38

De acordo com Joana Plaza Pinto (200x), a aproximação da teoria dos atos de fala com as teorias contemporâneas do corpo apresentam três principais marcos regulatórios. O primeiro, com a recepção das ideias de Jacques Derrida no feminismo estadounidense das concepções de Austin sobre o performativo; o segundo, com o livro de Shoshasna Felman The Scandal of the Speaking Body (1980), “uma interpretação de Austin influenciada pelas idéias de Derrida e por uma certa articulação com a psicanálise lacaniana” (PINTO, 200X, p. 122). Finalmente, o terceiro marco teórico é o da produção de Judith Butler, especialmente as obras Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade (2003) e Excitable speech: a politics of performative (1997), na qual aprofundou sua influência austiniana. Dada a influência que Judith Butler ocupa na epistemologia feminista e no fato de sua produção ser notadamente influenciada por Derrida e Felman, optamos por considerar apenas sua produção.

91

(APEES, Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl.458)

O requerimento de Izabel Barboza, enviado à Chefia de Polícia da Província

do Espírito Santo em 1845, visto que não configura um ato ilocucionário, pois não

realiza nenhum ato ao dizer algo, pode ser categorizado como perlocucionário, visto

que a solicitante pretendia realizar um efeito sobre o interlocutor, e assim, obter a

soltura de seu neto. A documentação não informa se a intenção foi de fato atingida,

o que consistiria na situação total de fala concebida por Austin. O mesmo pode ser

observado na petição de Joaquim Cardozo (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl.546):

residente na Freguesia de Vianna deste termo, que tendo sido injustamente recrutado no dia 24 do corrente mês, vem rogar a Vossa Excelência que em consequência de ter menos de 18 anos de idade como comprova o documento junto, mande o soltar pela voz do exposto, alegando igualmente que o suplicante [...] tem a seu cargo duas irmãs órfãs e menores as quais alimenta.

A retórica entre os homens e as mulheres solicitantes era distinta; o pedido de

soltura ou liberação do Exército, o que era dito, alterava o como era dito através de

por quem era dito. Nas petições de Izabel Barboza e de Joaquim Cardozo, ambos os

solicitantes pleiteavam a liberação de um menor de 18 anos, que de acordo com as

Instruções de 1822 estavam isentos do recrutamento e ainda eram os responsáveis

pelo sustento de suas famílias, uma viúva e duas órfãs menores de idade. No

entanto, Joaquim fez menção à arbitrariedade e à injustiça em primeiro lugar,

enquanto Izabel direcionou seu pedido à sua situação precária, além de se dirigir

“humilde e respeitosamente”, de acordo com a exigência da máscara da

feminilidade39.

39

O mesmo paralelo foi observado na distinção aos cumprimentos a homens e mulheres

abolicionistas; estas, elogiadas pelo seu sentimentalismo enquanto aqueles foram louvados pelo patriotismo, força ou ousadia (COWLING, 2010, p 289). Os anúncios de manumissões veiculados pela Folha da Victoria são ilustrativos. As mulheres eram “respeitáveis senhoras”, a quem os redatores louvavam “tão generoso procedimento” (Folha da Victoria, 22/11/1883) e ofereciam “cumprimentos à generosa senhora” (Folha da Victoria, 13/01/1884). Suas ações eram consideradas “ato filantrópico” (Folha da Victoria, 06/07/1884) e um “triunfo para a causa da abolição” (Folha da Victoria, 20/07/1884). Aos homens, a Folha considerava a alforria “digno de louvor tão humanitário procedimento” (Folha da Victoria, 17/02/1884) e os via como “apostolo da propaganda abolicionista” (Folha da Victoria, 01/06/1884), imbuídos de um “rasgo de sentimento humanitário” (Folha da Victoria, 19/06/1884). Outra diferença foi observada entre as libertações concedidas pelos senhores e senhoras capixabas que foram divulgadas pela Folha da Victoria. As mulheres em grande parte libertavam seus escravos sem ônus algum, ou em outras palavras, sem exigirem nenhuma compensação dos mesmos, como verdadeira generosidade. Alguns homens, no entanto, estabeleciam a libertação após alguns anos de serviço. A distinção não passava despercebida e ao

92

Na interpretação de Judith Butler (1997, p. 38-39), um ato de fala pode ser um

ato sem necessariamente ser eficaz. Se um performativo falido – ou ineficaz – é

proferido, como por exemplo, se uma ordem é dada e não é obedecida, o sujeito

segue realizando um ato ainda que com muito pouco ou nenhum efeito. Um

performativo é eficaz quando do ato realizado deriva uma série de efeitos. Enquanto

os atos ilocucionários procedem dando lugar a convenções, os atos perlucionários

produzem consequências. Implícita à esta distinção está a noção de que os atos de

fala ilocucionários produzem efeitos sem necessidade de um lapso de tempo, visto

que a palavra em si mesma é uma ação e que palavra e ação são simultâneas.

Posto isso, estabelecemos que os atos de fala performativos femininos são de fato,

perlocucionários. Por intencionarem um efeito no interlocutor – as autoridades

responsáveis pelo recrutamento militar na Província do Espírito Santo – ou na

audiência – o público das conferências abolicionistas e a sociedade como um todo.

Também por produzirem efeitos e consequências não imediatos. Um dos efeitos

decorrente dos atos de fala perlocucionários femininos em questão foi a da produção

da identidade de gênero feminina. A identidade de gênero não representa posturas,

práticas ou elementos comuns que causem identificação em um indivíduo ou grupo.

Judith Butler defende um arquétipo performativo da identidade no qual nossas

ações, repetidas incessantemente, constituem a identidade como se fosse algo

natural através de um efeito de performances repetidas que reatualizam discursos

histórica e culturalmente específicos (BORBA, 2014, p. 448). O performativo aqui

registrarem a libertação concedida por Aristides Guaraná ao seu escravo Mauricio, o periódico destacou: “Consta, entretanto, que esse escravo acha-se enfermo na Santa Casa da Misericórdia e em perigo de vida” (Folha da Victoria, 05/06/1884). A questão da liberdade a prestação foi discutida por Geraldo Antônio Soares (2006), em um artigo que analisou 43 registros de cartas de liberdade, referentes à alforria de 52 escravos entre 1872 e 1887 na cidade de Vitória e arredores. O autor encontrou dois tipos de cartas, a de liberdade condicional propriamente dita e a de liberdade en causa mortis. Em sua visão, “A diferença entre uma carta de alforria condicional e uma carta de alforria in causa mortis é que na primeira o liberto entra na fruição ou gozo da liberdade de imediato, mesmo tendo de cumprir a condição. No caso da carta de liberdade in causa mortis, a liberdade é de fato apenas prometida. A concessão de uma carta de alforria, em ambos os casos, partia de uma necessidade objetiva de reforço nas relações de poder e de dependência, relações estas que, no caso, não deveriam estar muito consolidadas. O que se pretendia era que o agora liberto ou ainda escravo, no caso das alforrias in causa mortis, continuasse ou se tornasse mais submisso e fiel” (SOARES, 2006, p. 126). Nos anúncios de manumissões que selecionamos para a análise dos cumprimentos e elogios feitos aos senhores e senhoras, a maioria das libertações foram de escravos do sexo feminino. Este ponto também foi levantado pelo autor, mas ao contrário da teoria de Kátia Mattoso (2004) citado por ele, “número de mulheres alforriadas se deve possivelmente ao fato de elas serem consideradas menos produtivas e possuírem menor resistência física, além de seu preço ser menor que o do escravo do sexo masculino”, Soares (2006, p. 119-120) não encontrou dados objetivos que corroborassem tal tese, apesar de suas fontes demonstrarem “uma diferença significativa no preço das alforrias das mulheres escravas em relação aos homens”.

93

não esteve presente no ato de fala, mas no discurso como um todo, que através de

normas sociais, regulava o corpo, o sexo e o gênero de mulheres e homens e

produzia a identidade de gênero performática.

Nas palavras de Judith Butler (1993, p. X) a performatividade não é um jogo

livre nem uma auto apresentação teatral e é distinta do conceito de performance.

Performatividade não é performance, mas sim o que possibilita, potencializa e limita

a performance (BORBA, 200X, p. 450)40. Além disso, a regulação não é

necessariamente aquilo que coloca um limite à performatividade; mas é pelo

contrário, aquilo que impele e a sustenta. De tal modo, para Butler (2002, p. 38), não

é possível teorizar a performatividade de gênero independente da prática reiterativa

dos regimes sexuais reguladores e a capacidade de ação é condicionada pelos

40 A performatividade não é teatral, na realidade, sua aparência de teatralidade se produz na medida

em que sua historicidade permanece dissimulada; a teatralidade adquire o caráter de inevitável devido a impossibilidade de revelar por inteiro sua historicidade. Em alguns cenários, a performatividade pode figurar de modo ambivalente, e condicionado historicamente, como no caso do movimento abolicionista brasileiro. A performance, enquanto apresentação pública ou atuação artística foi parte significativa da campanha antiescravista. Os meetings e conferências abolicionistas em sua maioria apresentavam elementos artísticos e teatrais – ou mesmo de grande apelo visual, como as regatas organizadas pela Libertadora Domingos Martins e pelo Club Abolicionista Dr. João Clímaco. Quando pensadas em consonância com a noção de performatividade do gênero, as apresentações e performances das mulheres se colocam como no discurso: foram produzidas pela identidade de gênero ao mesmo tempo em que a produziam. O maior evento abolicionista da Província do Espírito Santo foi o Sarau-Literário, realizado em 27 de julho de 1884 e organizado pela Associação Libertadora Domingos Martins, no qual as mulheres sócias tiveram papel ativo, como Adelina Lírio de Castro, que foi uma das oradoras do evento. O destaque, no entanto, foi para a performance ao piano das senhoras Maria do Nascimento, Adélia Borges, Amélia Figueiredo, Alzira Pacheco, Porcina Goulart, Leocádia Escobar e Maria Albertina Couto – esta última professora de piano no colégio Nossa Senhora da Penha. Em Goiás, nas “noites abolicionistas”, os recitais ao piano eram atividades disputadas, de acordo com Thiago Sant’Anna (2006, 73). Em 28 de agosto de 1887, o concerto musical foi o momento, por excelência das mulheres abolicionistas goianas (?), e este foi organizado e dirigido por Josephina Bulhões Baggi de Araújo. Assim como fez a Folha da Victória, a imprensa mineira destacou e elogiou o desempenho musical de quatro senhoras no Festival Musical do Club Abolicionista Visconde do Rio Branco, em 1884 (MACENA&MUNIZ, 2012, p. 51). Neste caso, a execução ao piano representava mais do que o acesso ao movimento abolicionista pela via artística, como propôs Angela Alonso (2011, p. 187). De acordo com Diva do Couto Montijo Muniz (1999, p. 132), a partir de 1850, o piano tornou-se o instrumento mais conhecido e desejado por todos. Além de símbolo de status, o piano compôs a estratégia de ascensão familiar com a exigência de demonstrações públicas. Desta maneira, o domínio da arte passou a ser mais um atributo do “dote feminino”, mas, ao mesmo tempo, exigiu uma nova educação das jovens de elite, “a de comportar-se em público, de conviver de maneira polida, educada, recatada e distinta” (MUNIZ, 1999, p. 133). O uso do piano como recurso presente nos atos abolicionistas femininos possibilitou às mulheres fazerem parte do mundo do espetáculo, mantendo a honradez e a distinção, virtudes caras àquela sociedade ciosa de que as mulheres tivessem uma vida social mais recatada (SANT’ANNA, 2006, p. 74). Thiago Sant’anna (2006, p. 70-71), observou como Anna Joaquina da Silva Marques concebia os eventos como espaço de luta abolicionista, ao contrário das expressões utilizadas na imprensa, como festival, espetáculo ou quermesse, em suas memórias Anna registrou os mesmos acontecimentos como “sessão” ou “confederação”. Assim, a máscara da feminilidade pode ser atribuída também à relação das mulheres com o piano (e demais expressões artísticas abolicionistas), ainda que representasse a virtuosidade feminina, sua instrumentalização foi política.

94

mesmos regimes de discurso/poder. O gênero é o mecanismo pelo qual as noções

de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas é também o aparato

através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados

(BUTLER, 2014, p. 253). Assim, a performatividade não deve ser entendida como

um ato singular e deliberado, mas como uma prática reiterada e referencial mediante

a qual o discurso produz os efeitos que nomeia (BUTLER, 2003, p. 18)41.

Para Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (2007), a performatividade é

compreendida a partir de normas impostas aos sujeitos com as quais eles podem

viver ou entrar em conflito, mas que ainda assim são internalizadas e literalmente

incorporadas. Estas normas que regulam o gênero, na opinião de Butler (2014, p.

251-252) “são leis, regras e politicas empíricas que constituem os instrumentos

legais pelos quais as pessoas são tornadas normais”. Mas considerar o gênero

como norma e definido dentro de tais parâmetros é um equívoco, pois as normas

que governam estas regulações superam as instâncias em que são materializadas.

Uma norma não é o mesmo que uma regra ou uma lei e opera no âmbito de práticas

sociais sob o padrão comum da normalização. Ainda que uma norma possa ser

separada das práticas nas quais ela está inserida, também pode mostrar-se reticente

a quaisquer esforços de descontextualização de sua operação. Quando operam

como o princípio normalizador da prática social, as normas ficam implícitas, difíceis

de perceber e dramaticamente destacadas nos efeitos que produzem. Assim, para

que o gênero possa ser uma norma, a autora sugere que ele esteja sempre e

41

A recepção da filosofia de Judith Butler no Brasil, especialmente seu conceito de performatividade, foi discutida por Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (2007). Os autores apontam que apesar da relativa popularidade de conceitos desenvolvidos por Butler, os estudos brasileiros contemporâneos sobre sexualidade e identidades sexuais não-hegemônicas demonstram uma incorporação mecânica e descontextualizada de suas reflexões e procedimentos. Uma das razões para tal fato é o contato tardio e parcial devido às poucas traduções. No Brasil, apesar de alguns artigos publicados em periódicos especializados, dos livros da autora apenas Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, lançado em 1990 e publicado no Brasil pela primeira vez em 2003 e somente o capítulo introdutório de Bodies That Matter, de 1993 foi traduzido com o título de Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”, em uma coletânea organizada por Guacira Lopes Louro no ano de 1999. Outro motivo é a propagação do conceito de performatividade por meio de difusão, entendida como uma aplicação não justificada e casual de conceitos que continua quando um conceito emerge como “moda” sem a busca por um novo significado que deve acompanhar seu novo uso. Entretanto, Miskolci e Pelúcio (2007, p. 259), apesar de depararem-se freqüentemente com estudos que revelam esta recepção parcial e problemática da obra de Judith Butler não os analisam criticamente. Ainda, Rodrigo Borba (2014), apesar de reconhecer a proposta dos autores de discutir a necessidade de avaliar a adequação de um conceito ao objeto de exame, estabelece que ambos esquecem de um conceito central na teoria butleriana: a linguagem, também central em nossa investigação.

95

apenas tenuamente incorporado num ator social específico. No entanto, o gênero

não equivale a um modelo ao qual tal ator social tenta associar, ao contrário “é uma

forma de poder social que produz o campo inteligível de sujeitos, e um aparato pelo

qual o binarismo de gênero é instituído” (BUTLER, 2014, p. 261).

Em Judith Butler (2014), a norma, assim como o gênero, somente persiste

como norma enquanto é atualizada na prática social e reidealizada e reinstituída

durante e ao longo dos rituais sociais cotidianos da vida corporal; ela própria é

produzida e reproduzida na sua corporificação, por meio dos atos que se esforçam

para se aproximar dela, por meio de idealizações reproduzidas nos e por esses atos.

Daí advém na concepção butleriana um paradoxo, “pois se a norma confere

inteligibilidade ao campo social e normatiza esse campo para nós, então estar fora

da norma é continuar, em certo sentido, a ser definido em relação a ela” (BUTLER,

2014, p. 253). As definições de masculinidade e feminilidade vigentes no Oitocentos

podem ser vistas através desta perspectiva. Além de serem reguladas pelas práticas

sociais normativas, as identidades de gênero eram definidas também por sua

oposição ou adequação à norma42. O “gênero é assim uma norma reguladora, mas é

também uma das regulações produzidas a serviço de outras formas de regulações”

(BUTLER, 2014, p. 268). No Brasil oitocentista a população livre sujeita ao

recrutamento compreendia na dinâmica do alistamento militar um modo de

diferenciar entre os pobres honrados e os recrutáveis. Ainda que estivesse fora do

processo de tração triangular, entre o Estado, a classe de senhores de terras e os

pobres livres, esta população era sujeita às mesmas normas de regulações de

gênero. Neste sentido, a imagem feminina evocada nas petições foi ainda mais

singular para reforçar a concepção de que recrutados e seus familiares não

compunham o que era visto como a escória da sociedade imperial. O cânone

estrutural dos requerimentos enviados á Chefia de Polícia da Província do Espírito

Santo pelas mulheres estabelecia que elas apresentassem sua condição e a de sua

família e destacassem a importância do recrutado para sua subsistência. Assim, o

42

Judith Butler (2014, p. 253-255) questiona que práticas ou desvios foram algo distinto de uma desculpa ou justificativa que fortaleceu a autoridade normativa das estruturas de gênero? Que rupturas poderiam alterar o processo de naturalização das identidades de gênero performativas? A historiografia apresenta rupturas das mulheres com a ordem social vigente de maneiras distintas, como por exemplo, as práticas de crimes e delitos femininos. Essa perspectiva foi abordada nos trabalhos de Aríon Mergar (2006) e Alinaldo Faria de Souza (2007), que tendo como fontes autos criminais com mulheres como rés na província do Espirito Santo, no século XIX, demonstraram a ruptura de algumas mulheres com os padrões de submissão e docilidade idealizados.

96

ato peticionário feminino na mesma medida em que pode ser pensado como uma

ruptura com os padrões de feminilidade reforçava a figura masculina de provedor e

mantenedor da casa.

De tal maneira, retornamos aos questionamentos: é o discurso que faz a

identidade de gênero ou a identidade que produz o discurso? Sendo tal identidade

performativa, como ela é produzida neste discurso através dos atos de fala? A

relação identidade e discurso é paradoxal e tanto sua produção quanto sua

compreensão são inerentes uma à outra. Sendo o gênero compreendido dentro do

discurso, ele segue condições de inteligibilidade cultural, específicas e determinadas

historicamente. Os discursos produzidos pelas mulheres do Oitocentos não supõem

a existência de um sujeito que escolhe nem com voluntarismo ou individualismo.

Não é como se o sujeito – estas mulheres – pudessem por simples vontade, decifrar

e moldar a realidade social e histórica segundo seus desejos individuais. Na visão de

Judith Butler é claro o caráter distinto da realidade e o que dela poderia ser criado.

Assim, não se pode inferir destas mulheres, apesar de seus conflitos com a ordem

de gênero vigente, uma intenção nem a capacidade de romper com as normas

socialmente impostas (MISKOCI & PELÚCIO, 2007). No entanto, a análise destes

discursos pode apontar formas de subjetivação e de resistência, de maneira a

constituir sujeitos singulares que produziram diferenças e transformações na ordem

social vigente.

As petições de mulheres enviadas ao Chefe de Policia da Província do

Espírito Santo referentes ao recrutamento de filhos, netos ou companheiros

apresentavam uma estrutura comum. Nelas, as mulheres estabeleciam sua condição

e a importância do recrutado para a sua subsistência e a de sua família. Neste

sentido, as expressões e termos utilizados não foram nem exclusivos nem distintos

dos utilizados pelos homens. A diferenciação estava principalmente na maneira

como as suplicantes se dirigiam às autoridades a quem apelavam. Enquanto os

homens se referiam aos ditames da lei e se colocavam nas isenções previstas pelas

Instruções de 1822, as mulheres se dirigiam diretamente às autoridades. Em sua

petição, Izabel Barboza se colocou “humilde e respeitosamente” perante o Chefe de

Polícia, assim como Sebastiana Maria de Jesus (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl.265). Em seu requerimento, Ana (APEES,

Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl.213) solicitou que

97

seu pedido fosse atendido com “aquela sabedoria e justiça que [Vossa Senhoria]

costuma reger aos habitantes desta província” e Helena Maria de Jesus (APEES,

Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl.2240) se mostrou

“alegre e confiando” no governo de que seu pedido seria atendido.

As menções às Instruções de 1822 – que regularizavam as normas e as

práticas da dinâmica do recrutamento militar no Brasil imperial – não foram raras.

Mas algumas petições se destacaram pelo uso de conceitos e de uma leitura

extremamente política. Este foi o caso do requerimento de Lourença Maria da Boa

Morte, que em 1846 suplicava em favor do filho (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl.480):

Exímio senhor, se o principio universal de justiça e de direito, que assim como todo cidadão em qualquer posição que se ache está sujeito à sanção da lei, também deve gozar das garantias que ela promete; e destruído este principio, os direitos do Cidadão tão proclamados tornam-se uma ilusão e a sociedade abalada em sua base. Ora, o Artigo 9° das Instruções de 10 de julho de 1822 cuja observância é assim recomendada nas de 2 de novembro de 1833 e 12 de abril de 1841diz que as garantias do Artigo se estendem do mesmo modo ao filho único de viúva e quando a lei diz filho de viúva se deve entender não na ordem natural, mas na ordem legal, isto é, filho que pode amparar seus pais e irmãos menores; e a entender-se de outra maneira se cairia no absurdo de dizer que estava sujeito ao recrutamento o filho de viúva que tendo dezoito anos tivesse outros irmãos em puberdade.

Além do notável conhecimento da legislação do recrutamento, a petição de

Lourença se destaca pelo apelo que fez à autoridade, pois pediu o deferimento de

seu pedido como “mais uma prova de sua reta Justiça e prova de sua

imparcialidade” (APEES, Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do

Recrutamento, fl.481). Seu requerimento também demonstrou uma capacidade de

crítica singular ao discorrer acerca do princípio universal de justiça e direito e sobre

as bases da boa sociedade. Outra peticionária ciente das leis e capaz de tecer

críticas a sua aplicação foi Ignácia Maria dos Anjos. Também no ano de 1846, ela

afirmou em seu requerimento que “as leis defendem os pescadores do perigo do

recrutamento” mas ainda assim, seu filho fora recrutado (APEES, Série Accioly, Livro

34 – Correspondências do Recrutamento, fl 499). Do mesmo modo, Angélica Maria

da Conceição estabeleceu que seu filho fora “injustamente recrutado para o

Exército” apesar de não ter a idade mínima exigida (APEES, Série Accioly, Livro 34

– Correspondências do Recrutamento, fl 517).

98

Em alguns requerimentos, como os de Izabel Barboza, Sebastiana e Helena

Maria de Jesus, as mulheres apresentaram seus pedidos como verdadeiras súplicas

em uma posição que pode ser vista como subordinada, mas não submissa. Tal

posição, constantemente referenciada pelas petições como “humilde”,

“respeitosamente” ou “com respeito” era reflexo não de uma submissão feminina ao

masculino, mas ao poder imperial. Entretanto, mesmo a provável consciência de tal

posição não impediu que Lourença Maria da Boa Morte, Ignácia Maria dos Anjos e

Angélica Maria da Conceição tecessem críticas à atuação das autoridades

provinciais no âmbito do recrutamento. Em outros casos, o tom foi ainda mais direto

(APEES, Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl. 130):

Diz Maria Magdalena de Jesus que tendo de legítimo matrimônio um único filho solteiro de nome João Correia que a alimenta com a Pescaria da Barra fora que vive na ausência de seu marido que se acha na Vila de São Mateus há mais de cinco anos fora este preso para o recrutamento e como parece que [...] a Lei o isenta por não estar nestas circunstâncias, ela exige

Que Vossa Senhoria haja por bem deferir com equidade mandando-o soltar da prisão em que se acha a vista [...].

A instituição da família no Oitocentos era ainda forte base da organização das

relações pessoais e a identidade feminina pautada pela posição que as mulheres

ocupavam nela. Além disto, no contexto do recrutamento militar, os “vadios”, aqueles

que a população via como desviantes da norma – e deste modo, verdadeiros alvos

do Exército – não formavam laços nem familiares e pessoais nem políticos, estavam

de todas as maneiras, excluídos da dinâmica de tração triangular entre Estado,

senhores de terra e população livre. Assim é que pode ser compreendida a petição

de Maria da Penha de Jesus, enviada à Chefia de Polícia em 1839 (APEES, Série

Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl. 207), “que seu filho único

na forma do Artigo 9° das Instruções de 10 de julho de 1822, por isso que o mais

velho achando-se casado forma hoje família distinta, como há sabido [sic] por toda

essa Cidade [...]”. Ou seja, o filho de Maria da Penha de Jesus não era apenas

casado, mas formava família de acordo com os padrões estabelecidos que eram

inclusive reconhecidos pela sociedade da cidade.

A identidade de gênero performada na imagem da esposa, dona de casa e

mãe de família pode ser observada na petição de outra Maria da Penha (APEES,

Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl. 442). Maria da

99

Penha em 1845, também fez uso de “família”, porém de forma distinta de sua

homônima:

Diz Maria da Penha viúva, pobre e lavradora residente na Freguesia de Vianna, que ela suplicante acha-se honrada de família, sendo dois filhos crescidos e dois filhos menores, um destes aleijado e um único de nome Manoel Barbosa em estado de alimentar a todos o qual acabada de ser preso para recruta por ordem do Subdelegado de Polícia de Vianna sem atenção que dá a Lei as viúvas lavradoras e ao estado em que se acha a suplicante [...] acaba de ser queimada sua pobre casa e não tem outra pessoa que lhe construa [...] pede a Vossa Excelência que a vista do exposto de que se pode informar se digne a fazer-lhe justiça mandando soltar aquele seu único filho que ampara sua pobre família.

“Honrada” e “pobre”; os adjetivos utilizados para descrição da família de Maria

da Penha estavam de acordo com o ideal de feminilidade a que as mulheres

estavam sujeitas. Se elas eram consideradas – ou estavam começando a ser –

como principais responsáveis pela estruturação e moralização do ambiente

doméstico e familiar, a família deveria refletir as características e a performance

individual destas mulheres. Deste modo, não somente a família de Maria da Penha

era honrada, ela também o era.

Uma postura honrada ou uma boa conduta era exigida das mulheres de

maneira geral, porém, na dinâmica do recrutamento militar, boa conduta ou honra

validavam o argumento e a pessoa do homem ou mulher suplicante. Como no já

citado caso do marido de Teresa Maria da Boa Morte, cuja liberação foi indeferida

por não a tratar bem e ser de péssimos hábitos (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl.101). Conforme analisado no capítulo um, a

anexação de documentos ao pedido em questão além de comum, era fator de

consideração no deferimento das solicitações e pedidos. Geralmente, os

documentos davam conta da idoneidade do recrutado, ou prova de que este cumpria

alguma das exceções feitas pelas Instruções que garantiriam sua isenção, como a

declaração de que eram casados ou daqueles que o contratavam. No entanto, o

caso de Maria Theodora dos Santos (APEES, Série Accioly, Livro 34 –

Correspondências do Recrutamento, fl.483-487) é neste aspecto, distinto:

Diz Maria Theodora dos Santos viúva do cirurgião mor João Antônio Pinto [...] que tendo em sua companhia um rapaz de nome Vidasto das Chagas de Christo [...] que lhe presta todos os serviços ter sido no dia 17 do corrente recrutado e recolhido no xadrez do Quartel da Companhia Provisória onde se acha em prisão. Que privações [...] não terá de sofrer a suplicante se for lhe sacado este individuo, única pessoa que acha-se hoje em sua companhia por quanto os dois filhos que a suplicante tem nenhum

100

existe em seu poder achando-se ambos no Rio de Janeiro, um o Tenente Joaquim Antônio Pinto empregado no Batalhão dos Fuzileiros, outro o Alferes Manoel Antônio Pinto, residindo em São João do Itaborahy. Milhares de observações podia a suplicante fazer a Vossa Excelência [...] de mais a mais muito confiar a suplicante que Vossa Excelência não permitirá que fique sem a única companhia que lhe sirva de arrimo e ampara uma viúva.

Possivelmente pelo fato de que solicitante e recrutado não possuíam

nenhuma relação familiar, os documentos anexos ao pedido de Maria Theodora dos

Santos contaram com a certidão de batismo de Vidasto e com a confirmação da boa

conduta da própria solicitante. As autoridades solicitaram que fossem atestados: “1°

Qual sua conduta e comportamento; 2° Quantos filhos tem em seu poder; 3°

Quantas pessoas que lhe acompanham e o comportamento destas” (APEES, Série

Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl.489). Duas declarações

compuseram o processo de Theodora. A primeira foi feita por Manoel de Couto:

Atesto que a Exímia D. Maria Theodora dos Santos [...] viúva de do cirurgião mor João Antônio Pinto, tem ótima conduta, excelente comportamento, que tem dois filhos, Tenente Joaquim Antônio Pinto e o Alferes Manoel Antônio Pinto mas nenhum vive em seu poder acham-se hoje no Rio de Janeiro e que a única pessoa que lhe serve de companhia é Vidasto das Chagas de Christo o qual tem boa conduta e é um criado aferido e honrado.

O outro atestado veio da parte de Manoel Goulart Oliva, identificado como juiz

de paz, o que corrobora a tese de Hendrik Kraay (1999, p. 129) de patronos e

aliados eram necessários para apoiarem as petições com atestados e outros

documentos. O juiz de paz declarou:

Atesto, 1° que foi viúva de bom comportamento, 2° que não tem filho algum em sua companhia e dois que tem estão no Rio de Janeiro, 3°, que vive em sua companhia um rapaz de nome Vidasto, alfaiate, que a supre [...].

Tanto Manoel de Couto quanto o juiz de paz acabaram por referendar

também o comportamento de Vidasto das Chagas de Christo, porém era

principalmente a conduta de Maria Theodora que estava em questão e é

interessante observar que esta conduta teve de ser respaldada por uma autoridade

masculina.

As mulheres peticionárias não fizeram uso de termos ou expressões que as

definissem pessoalmente. Ao contrário da retórica utilizada pelas mulheres

abolicionistas, bondade, generosidade ou empatia não figuraram como argumentos

dos requerimentos em relação a elas mesmas, o que pode ser explicado pela razão

de que o objeto das petições envolvia terceiros – filhos, maridos, netos ou irmãos. A

101

despeito disso, as petições podem ser consideradas como performativas de pelo

menos uma das facetas da identidade de gênero oitocentista. Conforme visto no

capitulo um, a maioria das solicitantes intercedeu em favor de seus filhos. Ainda que

as expressões não o fizessem, a própria ação do requerimento o fazia: ao peticionar

em favor de um recrutado que era responsável pelo sustento de sua família, estas

mulheres performavam a identidade materna que deveria ser inteiramente devotada

senão ao recrutado, pelo menos aos demais filhos. Francisca Maria das Chagas

(APEES, Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl 545) ilustra

esta assertiva. Em sua petição, ela solicitou que seu filho Fortunato, menor, que

exercia o ofício de carpideiro da ribeira [sic] de cujo salário ela se mantinha, não

fosse recrutado. A petição efetuada antes do recrutamento foi justificada pelo fato de

que o rapaz, por medo do recrutamento, estava recluso em casa “sem poder provir

os meios de vida”. O curioso na argumentação de Francisca é que ao, mencionar

seu outro filho, ela o descreveu como “um pequeno de seis anos, pouco mais, pouco

menos que frequenta a escola pública de Primeiras Letras”. Essa caracterização

pode ser entendida tanto como um modo de estabelecer que sua família não

pertencia ao rol dos sujeitos ao recrutamento quanto como ênfase na importância

que o possível recrutado tinha na manutenção das condições seu irmão mais novo e

não apenas em sua subsistência.

A performance de gênero das mulheres peticionárias foi feita mais pelos seus

atos do que por palavras ou linguagens, mas principalmente, pela imagem que

procuravam desenhar em suas petições e que estavam em consonância com a da

mulher defendida pela sociedade Oitocentista. As mães peticionárias eram zelosas

para com seus filhos e suas famílias, cientes de suas obrigações familiares e por

vezes cívicas e também de seus direitos. As mulheres peticionárias utilizaram

diversos símbolos da feminilidade com o intuito de atingir seus objetivos diretos:

libertação ou impedimento do recrutamento para seus filhos, maridos ou netos.

Deste modo, elas foram capazes de fundamentar a imagem e a identidade feminina.

Como nos mostra o requerimento de Maria Theodora, por vezes ainda era

necessário que outros estabelecessem que elas eram de fato, boas mães ou boas

senhoras. No entanto, é justamente desta maneira que se atinge a performance em

si: ao serem descritas de tal maneira, elas eram referendadas e se tornavam

exemplo de mulheres. A identidade de gênero das peticionárias era constituída não

102

pelas palavras, mas pelos atos. O ato de peticionar em prol da manutenção da

subsistência da família, do bem estar de filhos ou netos, era tanto reflexo da

identidade feminina quanto condição da mesma.

3.3. Linguagens da feminilidade: quando a fala é política

A presença da intencionalidade autoral, contexto e linguagem são

fundamentais no exame dos discursos das identidades generificadas e remetem à

metodologia defendida por Quentin Skinner (2005) e John Pocock (2003). Os

autores, principais expoentes do enfoque collingwoodiano (outrora Escola de

Cambridge) fomentaram uma reformulação na história do pensamento político

ancorada nestes elementos. Skinner (2005) atribuiu demasiada importância em sua

obra à força ilocucionária intencional, ou seja, a intenção do autor ao proferir tal ou

qual ato de fala. A compreensão da intenção autoral proviria do conhecimento de

convenções linguísticas que contextualizam o texto ou o discurso. Tais convenções

são, no entanto, insuficientes para explicar a intencionalidade das autoras em

questão, especialmente a intenção da produção e da naturalização das identidades

de gênero performáticas. É dificultoso apreender, quaisquer que sejam as

convenções linguísticas, o que as autoras pretendiam modificar, alterar, reiterar ou

confirmar com a adoção da identidade feminina baseada no tríduo mãe, esposa e

dona-de-casa. Mesmo levadas em conta separadamente, as falas da peticionárias e

das abolicionistas apresentam objetivos, não intenções ou sentidos que revelem

como e porquê esta identidade era utilizada.

Diferentemente do significado de contexto para os historiadores em geral,

Skinner e Pocock utilizam a concepção de contexto linguístico, que diz respeito aos

elementos históricos da linguagem e as particularidades obtidas quando vista no

tempo de produção e também aos seus distintos usos na constituição do argumento

de atores históricos e à tradução de ideias advindas de terceiros (OLIVEIRA, 2013,

p. 18). Em um primeiro olhar, o idioma da esfera subalterna feminina poderia

compreender um contexto linguístico, especialmente no que diz respeito ao

intercâmbio entre distintos atores políticos e sociais. Neste sentido, a despeito das

distinções entre as mulheres o uso comum da identidade feminina e da máscara da

103

feminilidade compõe o nosso contexto linguístico43. Especialmente utilizando a

expressão de “vocabulários políticos” proposta por Pocock, para se referir aos

vocabulários que são identificáveis numa certa conjuntura e que são constituídos de

conjuntos mais ou menos estáveis de conceito, gramática e sintaxe próprias, com

suas respectivas associações (JASMIN&FERES JÚNIOR, 2006, p. 20).

Pocock deu mais ênfase à linguagem em sua abordagem do que Skinner e

utiliza o conceito de performance na linguagem de maneira radicalmente distinta do

proposto por Judith Butler. O autor diferencia duas noções de linguagem, langue,

para designar as características da língua como um todo e parole, para as

performances particulares empreendidas no seu interior por autores também

particulares (JASMIN & FERES JÚNIOR, 2006, p. 20). De acordo com Leonardo

Grão Velloso Damato Oliveira (2013, p. 19), langue se refere aos limites linguísticos

e ideológicos estabelecidos, denotando um entendimento mais estrutural e

instrumental da linguagem, enquanto parole diz respeito à utilização que o indivíduo

faz dessas balizas contextuais, as opções escolhidas pelo ator histórico e como ele

se valeu dos instrumentos disponíveis. Para Pocock (2003, p.38) a performance do

texto ocorre como parole em um contexto de langue, que pode simplesmente dar

continuidade às convenções atuantes na linguagem. A linguagem, como

argumentamos, tem papel primordial no processo produtivo das identidades de

gênero, porém, não pode ser entendida em termos estritamente textuais ou apenas

na relação autor/texto/público ou audiência.

A obra de Joan Scott é fundamental na transformação da concepção histórica

da linguagem, especialmente no campo da história das mulheres. Para a

historiadora, é preciso evitar confundir palavras e linguagem, pois: “linguagem não

designa palavras, mas sistemas de significação – ordens simbólicas que precedem o

domínio real da fala, da leitura e da escrita” (SCOTT, 1995, p. 81). Estes sistemas

são o meio pelo qual se constroem o significado e se organizam as práticas culturais

43

A noção de momento também se aplica no estabelecimento de um contexto comum às mulheres que investigamos. A partir do pensamento de Pocock, Rosavallon e Elias J. Paltti, Leonardo Grão Velloso Damato Oliveira (2013, p. 16) definiu que: “O momento consiste no tempo em que o historiador percebe confrontos ideológicos, ou significados profundos, os quais mobilizaram a compreensão particular da sociedade e da política por aqueles atores estudados e que não respondem, obrigatoriamente, a questões colocadas unicamente no tempo em que viveram tais atores. Por isso, não pode ser definido por tradicionais balizas temporais, já que não se constituiria numa tentativa de abarcar todas as contradições históricas específicas inseridas no recorte temporal proposto”.

104

e mediante o qual, por conseguinte, as pessoas se representam e compreendem

seu mundo, inclusive quem são e como se relacionam com o mundo. Assim, a

linguagem deve ser o ponto de partida para se entender como se organizam as

instituições e como se estabelece a identidade coletiva (SCOTT, 1992, p. 87). Por tal

razão que se concentramos a indagação histórica apenas nas palavras,

consideradas como simples manifestações literárias perdermos a noção de como se

constroem o significado (CABRERA, 2006, p. 235). Scott afirma que a linguagem

opera não como não como um meio transparente de comunicação, mas como um

discurso, entendido não como palavras ou frases, mas como um inteiro modo de

pensar como o mundo funciona e qual o lugar do sujeito no mundo. Discurso não é

uma linguagem ou um texto, mas uma estrutura específica histórica, social e

institucional de elementos, termos, categorias e crenças. Essa definição apresenta,

na opinião de Miguel Cabrera (2004, p. 34) duas implicações: uma de que a

linguagem não pode ser entendida fora do sentido da experiência, porque ambas

estão inextricavelmente ligadas; outra, de que todo o sentido é construído através de

um processo de diferenciação – não de referenciação – as palavras adquirem certos

significados ao serem confrontadas com outras e estes relevantes contrastes são o

que estabelecem campos de discursos específicos.

Assim, a linguagem constitui um sistema de significação e,

consequentemente, os significados que pertencem à realidade dependem das

particulares categorias discursivas que usamos. Se a linguagem é entendida como

um sistema de significação e não como transparência de fenômenos reais, estes não

possuem significado intrínseco que a linguagem simplesmente registre e oriente e

sobre a qual a consciência meramente reflita. Em vez disso, os significados

emergem quando uma série de concepções discursivas do mundo formam esses

fenômenos. A argumentação de Scott tem profundas implicações para outra noção

imersa em nossa análise, a de identidade. Para a autora, identidade como qualquer

outra noção significativa, emerge através da mediação de suas categorias

estabelecidas, que podem ser derivadas das significações de linguagem. Mas esta

compreensão de identidade presume outro conceito de Joan Scott (1998), o de

experiência. O conceito porém, tem de ser visto não de forma subjetiva, no sentido

de recontar um acontecimento vivenciado no passado, mas sim em referência aos

processos históricos que, através do discurso, posicionam sujeitos e apresentam

105

suas experiências. O que conta como experiência não é evidente e nem direto, e por

ser sempre contestado, é sempre político. Não são os indivíduos que tem

experiência, mas sim os sujeitos que são constituídos por ela, da mesma maneira

que não são as pessoas que possuem uma identidade, mas sim são constituídas por

elas. Scott recusa a separação entre experiência e linguagem e insiste na qualidade

produtiva do sujeito. Os sujeitos são produzidos no discurso, mas este processo

envolve contradições e múltiplos significados possíveis para os conceitos que

utilizam. Experiência é um acontecimento linguístico, não acontece fora de

significados estabelecidos, mas é também a história de um sujeito e a linguagem o

campo no qual a história se constitui, portanto não podem ser separadas.

A questão então é como analisar esta linguagem? Joan Scott (1998, p. 321)

destacou o viés literário, como forma de abrir novas possibilidades de estudo das

produções discursivas de realidade social e política, como processos complexos e

contraditórios. Em nossa análise das falas das mulheres envolvidas na dinâmica do

recrutamento militar e na campanha abolicionista, propomos uma abordagem

levemente distinta. A linguagem foi entendida como um processo de significações,

como proposto por Joan Scott, especialmente pensadas no âmbito das questões de

gênero. Consideramos que estas mulheres estavam inseridas em um contexto

linguístico e que os padrões de feminilidade compuseram seu vocabulário político.

Ainda que não possam ser considerados como discursos políticos, per si,

entendemos o discurso na definição de Scott, pelo qual estas mulheres pensaram

sua identidade e seu acesso à esfera pública central. A instrumentalização feita por

estas mulheres – pensada como parole – demonstrou a conotação política destes

discursos. A linguagem da feminilidade também era performativa, intrinsicamente

ligadas à representação e a identidade destas mulheres que através destas

experiências, foi construída e reconstruída.

As conjunturas nas quais estas mulheres agiram e falaram eram distintas. O

recrutamento militar no Brasil imperial destinava-se à população menos abastada,

enquanto as atividades das sociedades abolicionistas na província do Espírito Santo

foram um fenômeno da elite. De um lado, as mulheres falavam de uma situação

particular e com desdobramentos materiais; de outro, os discursos abolicionistas se

expressavam de maneira mais geral. Ainda assim, a figura feminina constituída era

similar, senão idêntica. As mulheres pobres ou ricas, livres ou escravas, estavam

106

sujeitas as mesmas normatizações de regulação do gênero feminino: maternidade,

matrimônio, generosidade, humildade, de maneira que a permanência desta

identidade feminina pôde ser observada durante o século XIX.

3.3.2. Linguagens abolicionistas: a performance de Adelina Lírio

O discurso produzido pela campanha abolicionista teve um caráter feminizado

devido à visibilidade alcançada pelas mulheres (KITTLESON, 2005a, p. 128; 2005b

p. 99), de modo que o movimento não pode ser compreendido sem a presença

feminina. A imagem feminina foi marcada por um caráter cristão, justificada pela

fraternidade, o amor ao próximo, e empatia com o sofrimento dos escravizados. A

figura da mulher boa, caridosa e justa não poderia concordar com a escravidão, e

ser abolicionista era uma obrigação como filha, como esposa e como mãe, para usar

as palavras de Mercedes de Oliveira. Com o mesmo intuito da propaganda

abolicionista assinada por Cunha Werres, que A Província do Espírito Santo,

publicou 26 de agosto de 1883 e que falava diretamente às mulheres, a Folha da

Victória apresentou em 19 de junho de 1884, um texto da autoria de Etelvina Amália

de Siqueira (1862-1935), intitulado “A escravidão e a Mulher”44. Etelvina integrou a

“Sociedade Libertadora Aracajuana Cabana do Pai Thomaz”, fundada em 1882 por

seu tio Francisco José Alves, na qual proferiu alguns discursos (FREITAS, 2011 p.

2). No artigo publicado pela Folha, a professora sergipana discorreu sobre a

monstruosidade da escravidão que aviltava a sociedade brasileira, a inexistência dos

direitos escravos e, especialmente, sobre a mesquinha atuação feminina diante das

cenas da escravidão. Para Etelvina, a mulher era companheira do homem, tanto no

prazer como na desgraça, e tinha “por dever conservar a harmonia no lar,

espalhando com sua voz benéfica o doce perfume da moral e da religião”, para isso

era necessária uma educação conveniente, só compreendida no seio da família e

somente através de uma mãe solícita e competente. Às mães caberia,

especialmente, a “tarefa de plantar nos corações dos futuros cidadãos a semente do

bom, do justo, e do honesto; [...] de acostumar seus filhos a envergonhar-se do título

infamante de senhor de seus próprios irmãos; de criar em seus espíritos natural

aversão ao – chicote”. Ainda, Etelvina solicitou às mulheres que se envergonhassem

do papel que desempenhavam no drama da escravidão e que misturassem suas

44

O jornal Folha da Victória deu créditos à Gazeta do Aracajú na divulgação do texto de Etelvina Amália de Siqueira, mas Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas (2011) afirma que o artigo foi publicado também pelo jornal A Discussão, de Pelotas-RS, em 17de junho de 1884.

107

lágrimas aos prantos dos infelizes escravos e “lembrai-vos dos vossos deveres para

com Deus, para com a família e para com a sociedade;”.

O texto de Etelvina Amália de Siqueira, confirmou a figura feminina defendida

pela militância abolicionista. Ela era a mantenedora do lar, “anjo da caridade”,

sensível às agruras e às lágrimas dos escravos e especialmente a responsável pela

educação e moralização dos filhos. Foi esta imagem que segundo Etelvina operou a

transformação da posição feminina na sociedade:

A mulher considerada, nos tempos bárbaros, um ente nulo, não mais que o ludibrio do homem, do homem que não via que rebaixava a si próprio, rebaixando aquela que lhe dera o ser! Correram os séculos... e nessa evolução sublime, forte, que regenera os povos, foi se reconhecendo a urgência de aliar a mulher a família. E de fato ela começou a ensaiar, com trêmulos passos, sua nova existência, começou de subir, um a um, extasiada de gozo, os degraus da grandiosa escada que a tem conduzido à sociedade moderna. Surgiu o século XIX guiando com sua luz a companheira do homem, e fazendo- a sentar na grande mesa dos banquetes faustosos da civilização. Reconheceu-se afinal, que sem família não haveria moral, e sem moral era impossível a existência de um povo.

Assim como Etelvina, com o reconhecimento da mulher como fundamental

para a propagação de ideais de luzes e da civilização, as mulheres ensaiaram sua

inserção na esfera política. No Espírito Santo, o discurso teve grande aceitação.

Através da Associação Libertadora Domingos Martins, na qual as mulheres tiveram

uma atuação mais efetiva, sócios como Candido Costa, Afonso Cláudio e Cleto

Nunes fizeram apelos diretos às mulheres capixabas para que aderissem à causa.

Uma delas foi Adelina Lírio, uma das poucas sócias da Libertadora que obteve

destaque nas páginas d’A Província do Espírito Santo e Folha da Victoria. O retrato

da trajetória e da vida de Adelina Lírio – assim como das demais sócias da

Associação Libertadora Domingos Martins – que pudemos traçar através dos jornais

Folha da Victoria e A Província do Espírito Santo, foi deveras fragmentado. Sabemos

que se diplomou no Colégio Nossa Senhora da Penha, a principal casa de formação

de meninas da província do Espírito Santo (A Província do Espírito Santo,

12/12/1884) e foi nomeada em 1883 para a cadeira de educação primária na capital

da Província do Espírito Santo. A escola que dirigia, juntamente com Elisa Araripe

Paiva, era uma das quatro escolas do sexo feminino que existiam em Vitória, mas

também recebia alunos do sexo masculino entre seis e nove anos, remetidos a ela

por um decreto provincial que estipulava o número máximo de alunos em cada

escola em 60 (A Província do Espírito Santo, 18/01/1884; 18/06/1884). Adelina era

109

suas alunas em leitura e aritmética que deveriam prestar os exames definitivos e as

classes que aprendiam pelo 1° e 2° livros de Abílio45. Entretanto, apesar de

“satisfeito com o que observou na escola da inteligente preceptora”, o Inspetor

ordenou que:

de hoje em diante, frequentem a escola as alunas que precisam aprender trabalhos de agulhas e prendas, o que repetir-se-á nas próximas quintas-feiras, declarando que - nenhuma aluna que se apresentar para exames de 1ªs letras, poderá gozar do beneficio da lei sem que, como exige o regulamento, apresente e prove, que aprendeu trabalhos de agulhas e prendas.

As falas dos deputados e a exigência do Inspetor de Instrução confirmavam a

ideia de que a educação feminina era voltada para a manutenção e aperfeiçoamento

do âmbito doméstico. A escola era “a imagem da família e da sociedade” e as

professoras, que as representavam, tinham a mais elevada missão e através de um

coração grande e cheio de amor, elas deveriam distribuir seu saber e bondade (A

Província do Espírito Santo, 21/03/1883). A atuação de Adelina estava em sintonia

com esta percepção. Ela era apontada – junto com outras professoras, como

Candida Marques – “quer na escola, quer no lar, como modelos de verdadeiras

mães de família” (A Província do Espírito Santo, 12/12/1884). Ela recebia menções

elogiosas e constantes tanto de A Província do Espírito Santo quanto da Folha da

Victoria. De acordo com a Folha (13/07/1884), ela era capaz de estimular as alunas

na conquista de prêmios e aprofundar o devotamento no estudo. Assim como a

maternidade, a docência era “espinhosa missão”, e recomendava-se a estima

pública ou seja, o reconhecimento, daquelas que sentiam doçuras na trabalhosa

vida, que para outras era um martírio. Apesar dos elogios, em agosto de 1884, a

45 Os livros de Abílio se referem aos livros e ao método do educador baiano Abílio César Borges, o

Barão de Macaúbas (1824-1891), considerado o precursor do livro didático no Brasil. A mais conhecida das suas produções, também chamada de “Compêndio de Leitura” estava organizado em quatro volumes, (LUCIANO, 2011): “O primeiro volume estava direcionado para o ensino do alfabeto e das vogais, acompanhado de um conjunto de sílabas, cuja intenção era a formação de palavras, frases, sentenças e breves textos, apresentando-se com características de silabário que pode ser explicado como uma categoria de recurso escolar que foi utilizada pelos aprendizes para a iniciação da escrita e da leitura, além de ser consultado pelos professores, em especial os leigos, para a preparação das suas aulas. No segundo volume se encontravam reunidas temáticas superficiais, envolvendo o corpo humano, assuntos relacionados à Geografia e a História (nacional e local), além de cânticos, poesias e informações sobre a vida e obra de personalidades da nação. No terceiro, o rigor dos conteúdos apresentados nos textos era superior se comparado aos anteriores, nos possibilitando inferir, que havia mais exigência no preparo das aulas e no domínio daqueles conteúdos tanto para ser ensinado quanto para ser aprendido. O “Quarto Livro de Leitura” abordava anatomia do corpo humano, geografia, história geral, regional, física, química, biografias de ilustres personalidades brasileiras e universais até poesias nacionais e regionais, diferenciando as eruditas das populares.”

110

Província culpou a Folha da Victória de ter acusado erroneamente Adelina,

juntamente com outra professora de nome Elisa Paiva, de abandonar a Cartilha

Maternal ou Arte da Leitura de autoria do poeta português João de Deus. A partir do

início da década de 1880, a metodologia desta cartilha passou a ser divulgada

principalmente nas províncias de São Paulo e do Espírito Santo, por Antônio da

Silva Jardim, positivista militante e professor de português da Escola Normal de São

Paulo (MORTATTI, 2006, p. 5-6). João de Deus propôs um ensino fundado na língua

viva, apresentando somente um abecedário, que devia ser ensinado por partes,

fazendo com que o principiante se familiarizasse com as letras e os seus valores na

leitura animada de palavras inteligíveis (OLIVEIRA, 1998, p. 50). Ainda mais

fundamental era a noção de que a situação de ensino da leitura e da escrita deveria

se aproximar o máximo possível da forma pela qual a mãe se utiliza no ensino da

fala, na qual se tinha os papéis bem estabelecidos quem ensina e quem aprende46.

Adelina Lírio manteve uma relação próxima com Cunha Werres, poeta

capixaba radicado na Corte, e sócio da Sociedade Abolicionista Espírito-Santense. A

poetisa dedicou a ele um soneto intitulado “Noite de luar” (A Província do Espírito

Santo, 25/01/1883) e ele lhe consagrou “Sons e Tons – Dormindo” (A Província do

Espírito Santo, 07/03/1883). Cunha Werres publicou em A Província do Espírito

Santo (06/01/1883) um longo elogio à pessoa e a obra de Adelina Lírio de Castro:

Adelina Lírio é uma das criaturas que promete erguer bem alto os destinos da literatura pátria! [...] Alma puramente poética, sabe com as centelhas de sua imaginação robusta esboçar o painel magnífico e arrebatador das concepções naturais. [...] com toda a beleza de seu sexo e perfume das flores dos arrebões [sic]; balbucia, mas seu balbuciar é um canto; fala, e sua voz, é um misto de harmonias suaves e divinas das liras inspiradas; canta, e seu canto é tão sublime que extasia a própria natureza. [...] Delicada como a sensitiva, melancólica como os últimos sons da brisa dos leques do palmeiral, quando a lua vai no meio. [...] Nesta terra, onde tudo lhe deve ser ameno, agradável e belo, onde ao toque da Ave-Maria o céu se reveste de vivas cores; ela não pode, por mais tempo, calar em sua alma as comoções saudosas da juventude; [...] Aí, onde as flores se ostentam puramente belas, e as brisas harmoniosas descem aos cabeços dessas verdejantes cordilheiras, que cercam o berço de seus amores a terra natal; aí ela sente, como Casimiro de Abreu, essa harmonia lamartiniana invadir-lhe as ubras setinosas de sua alma de poetisa [...] Adelina Lírio possui um coração afeito aos mais belos sentimentos – naturalismo, motor de todas as suas

46 A aproximação da maternidade e do magistério contribuiu para a feminização desta profissão como

nenhuma outra. O exercício docente não foi apenas tolerado, mas incentivado e promovido, pois como afirma Yannoulas (2011, p. 279), se as mulheres eram definidas como as responsáveis pelas crianças no lar, nada mais razoável do que encomendar a elas a transição para o mundo do público com a atribuição da responsabilidade do ensino das primeiras letras.

111

delicadíssimas concepções. [...] Prossegue, não te atemorizes da impiedade da crítica lodosa e vil; ela não te ferirá, é certo! Foi assim que Lamartine, Gonçalves Dias, Varella e o nosso imortal Castro Alves ergueram-se às sumidades da glória e vivem eternamente gravados no coração da mocidade.

Além de Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias e Castro Alves, autor de “Navio

Negreiro”, Adelina Lírio foi comparada também à escritora Narcisa Amália por

Pessanha Póvoa (A Província do Espírito Santo, 21/03/1883). Delicada; sensitiva;

melancólica; de coração afeito aos belos sentimentos; com voz de harmonia suave e

divina; de canto sublime; a caracterização de Adelina por Cunha Werres

demonstrava que ela era virtuosa em sua face pública, capaz de executar a missão

do magistério, especialmente através do método João de Deus; capaz de “formar

família”. Assim, Adelina Lírio cumpria as exigências feitas às mulheres do Oitocentos

e sua atividade na esfera pública, como poetisa e como militante abolicionista era

vista de modo positivo, pois ela de fato performava uma identidade de acordo com

os padrões de feminilidade em vigor e com “a beleza do seu sexo”.

Em seus poemas, Adelina deu vazão à “delicadeza de sua alma”. Seus

versos falavam de sentimentos, da natureza, da beleza e do amor. Selecionamos

para análise de sua obra os excertos destacados por Cunha Werres em seu elogio47;

os poemas “Noite de luar”, dedicado ao mesmo; “Deus”; “O abolicionismo”; e os

versos destinados a Independência do Brasil dos anos de 1884 e 1886. Segundo

Cunha Werres, a estrofe abaixo era (A Província do Espírito Santo,06/01/1883)

“inspirado canto”, que revelava a “quanta sublimidade de sentimento lhe vai n’alma!

É mesmo um soluçar sentido”:

A rola nos bosques endeixas [sic] soltando Já triste coitada deixou de gemer E as nuvens douradas do triste crepúsculo Na etérea missão, já vão se esconder

No outro trecho destacado pelo poeta, Adelina Lírio se manifestava com

naturalidade, como “a criancinha que adormece no seio de seus queridos pais” e

cujos movimentos eram “esperança de um futuro risonho” (A Província do Espírito

Santo,06/01/1883):

Na primavera é poético Ver passar a meiga brisa

47

O poeta Cunha Werres não fez menção aos títulos dos poemas dos quais os excertos foram extraídos nem das datas de publicação ou veiculação por parte dos periódicos da Província, o que impossibilitou que encontrássemos as poesias na integra.

112

Contemplar a branca nuvem Que em puro céu se desliza

A natureza vista de forma idílica foi frequente nas palavras e poesias de

Adelina Lírio e deste modo, ela utilizou as figuras da “Primavera”; “nuvens”; “brisa”;

“flores”; “luar”. A imagem da lua e do luar foi o tom predominante do poema “Noite de

luar” (A Província do Espírito Santo, 25/01/1883), como o título indica:

I Que noite sublime! Que grato luar! Que horas ditosas! Que passo a cismar! A brisa suspira Brincando com a flor As aves no ninho Estremecem de amor [...] IV Que horas ditosas! Que passo a cismar! Que encantos na lua! No seu divagar! Eu ouço o regato Que doce murmura Une threnos [sic] à Vênus Que longe fulgura V Só o triste arutáu [sic] Que geme na serra, Pertuba o silêncio Que reina na serra. O Vento que move O brando arvoredo E as auras travessas Que falam a medo.

Neste poema, se destacam a presença de referências mitológicas, da deusa

Vênus – a deusa romana do Amor – e especialmente, do aratáu. Acreditamos que a

poetisa estava fazendo referência à ave urutau, espécime noturno, comum na

América do Sul. Envolta em lendas e superstições, a figura do urutau tinha uma

curiosa utilização como modo de coibir o desejo feminino, para que as mulheres e

moças não fossem levadas por paixões sensuais ou desonestas (CASCUDO apud

FORTE DIOGO, 2011). Adelina Lírio utilizou a figura do urutau ou aratáu em

referência ao seu canto, que era considerado mau agouro e amedrontador. No

entanto, a crença popular acerca da ave e das paixões femininas revela o aspecto

da supressão da sexualidade das mulheres. A poetisa era vista como exemplo da

identidade feminina, ligada aos ideais de pureza, inocência e não fosse sua atuação

profissional, talvez até mesmo despersonalizada.

113

No dia 15 de março de 1884, A Província do Espírito Santo publicou diversos

poemas e versos em homenagem ao terceiro aniversário de seu funcionamento. Um

dos poemas foi o de Adelina Lírio, intitulado “Deus”. A religião – especialmente a

católica – era muitas vezes para as mulheres do Oitocentos o espaço fora do lar no

qual elas poderiam atuar, de modo que a filantropia e a caridade cristã foram

utilizadas pelos abolicionistas como modo de inserir as mulheres na campanha. O

tom dos versos de Adelina não foi dado de modo a exaltar a caridade ou doações. A

autora se propôs a questionar aqueles que não acreditavam na existência de Deus.

Para ela, tudo se devia às mãos do Criador: “a luz da vida e o calor”; a lua e a terra e

seus movimentos; “as nuvens formadas das águas dos grandes mares”:

Ousará negar alguém A existência de um Deus! Cujo poder é tão grande Que o mundo cego obedece Os seus sagrados ditames? [...] Não foi Deus, poder supremo! Esse que nos deu razão A quem nós fracos pequenos Nunca buscamos em vão? Não é esse ser supremo (Divino e grande mistério! De quem tentamos em vão Descobrir a pura essência? E que toda a natureza Lhe tributa adoração E a quem contrita eu voto Meu sincero coração?

. A produção de Adelina Lírio também foi política e a presença da temática da

escravidão e da liberdade explicam sua escolha como oradora no Sarau-Literário da

Libertadora. O poema intitulado “O abolicionismo”, foi publicado pelo periódico Folha

da Victoria em 25 de maio de 1884 – apesar de datado do dia 20 do mesmo mês:

Salve, ideia grandiosa No mundo não tens rival Tu quebras, partes grilhões Do feio gênio do mal! Já nos centros populosos, Já no vale, já na serra, Tu pregas a liberdade Que mil tesouros encerra REDENÇÃO – eis o problema Que mostras á[sic?] humanidade! Enxugas o pranto escravo És o símbolo da bondade

114

Luta sempre, e vencerás Á força de seus pregões Há de o Brasil colocar-se Ao lado d’outras nações Salve, ideia grandiosa No mundo não tens rival Calça a feia escravidão Livra o Brasil desse mal

Outro poema de Adelina Lírio com teor abolicionista foi veiculado também

pela Folha da Victoria no dia 07 de setembro do mesmo ano, junto com outros textos

em sobre a Independência:

Em honra do feito ingente Que lembra da pátria a história Rompe o silêncio dos ares Festivos hinos de glória. Levanta brados o povo Á causa da liberdade Que vem soando do norte Desde a floresta á[sic] cidade. Suspira as auras brasileiras Pelos vales com cadência, Murmurando mansamente; Viva nossa independência! Repetem vales e serras O feito dos Aimorés Lembrando as guerras cruentas De seus valentes pajés Mas...desgraça! a[sic] crueldade Inda [sic] reina senhoril, Destas festas não partilham Muitos filhos do Brasil Desperta pátria, oprimida! Torna livres tantos bravos! No solo da pátria livre Não pode viver escravos

Em 1886, também por ocasião da comemoração da Independência do Brasil,

Adelina Lírio publicou outro poema, dessa vez em A Província do Espírito Santo

(07/09/1886). Apesar de compartilharem o mesmo tema – e também o mesmo nome

do publicado dois anos antes pela Folha da Victoria – e a mesma menção à

escravidão, os dois poemas são significativamente distintos. No poema de 1886, ela

foi mais sucinta e fez menos uso do sentimentalismo. Ela notou que uma nova

aurora já despontava no céu brasileiro e que “já se forçam as cadeias, que suporta a

115

escravidão”, a emancipação era “uma luz brilhante”, de “nobre inspiração” que “as

flores nascentes” animavam “grande Regeneração”.

Em todas as poesias, Adelina Lírio usou os ideais da feminilidade. “Enxugar o

pranto do escravo”; “símbolo da bondade”; “suspirar”; “murmurar mansamente”;

“crueldade”; “flores”; todas essas expressões revelaram os delicados sentimentos de

seu coração, e da melancolia de sua alma que Cunha Werres tanto exaltou. Ela

também referenciou com os “brados da liberdade que soavam do norte”, as

províncias do Ceará e do Amazonas, que à época da publicação do poema, já

haviam libertado seus escravos, respectivamente em 25 de março e em 10 de julho

de 1884. A mulher do século XIX era caritativa, era bondosa, e a figura feminina

defendida pela militância abolicionista o era ainda mais, especialmente quanto aos

sentimentos dos escravizados. Deste modo, foi assim que ela se posicionou. Os

suspiros e os murmúrios, e a mansidão eram a forma pela qual as mulheres

deveriam se expressar. Essas expressões no entanto, mascararam o teor político e

crítico de seus poemas. Assim como na declamação na conferência abolicionista da

Libertadora Domingos Martins, em que mencionou a liberdade como um direito da

qual os escravos estavam privados, Adelina reconheceu e criticou a posição do país

frente às outras nações não escravistas e a exclusão dos escravos das festas que

comemoravam a liberdade do Brasil em relação à Portugal; defendeu a redenção

como uma ideia grandiosa e a escravidão um mal do qual o país deveria se livrar, e

provou que mesmo era capaz de “impiedade de crítica lodosa e vil”, assim como já

havia dito o poeta capixaba em seu panegirico.

A máscara da feminilidade permitiu que Adelina Lírio utilizasse elementos em

seus versos que não faziam parte do vocabulário normalmente associado às

mulheres, como “luta”, “força”, “guerra” – especificamente a guerra dos índios

capixabas Aimorés. Diferentemente de Mercedes de Oliveira e Etelvina Amália de

Siqueira, que pensavam a entrada das mulheres no movimento abolicionista como

extensões da natureza de sentimentos feminina, para Adelina o abolicionismo era de

fato uma luta. Em consonância com a natureza não radical do movimento

abolicionista capixaba, a luta a que se referiu era retórica, cuja vitória – na qual

confiava - dependia da força de seus discursos e conferências. Adelina se associou

à Libertadora Domingos Martins em 1884 e sua atuação durante o período em que

as atividades abolicionistas ocorreram foi basicamente restrita ao Sarau-Literário,

116

como oradora e como pianista. Apesar de ministrar em sua escola aulas prendas e

agulhas, ela não contribuiu desta maneira com a quermesse que a Libertadora

pretendeu organizar. A mensagem de seus poemas era assim ainda mais

significativa, pois a despeito da utilização das figuras e imagens da feminilidade, ela

não falou diretamente às mulheres em nenhum momento. Mas a sua linguagem,

tanto com as palavras quanto com as ações, as atingia. Ela era boa filha, boa

esposa – possivelmente boa mãe – boa professora. Suas ações por si só

performavam a identidade de gênero feminina e isso se refletia em seus escritos.

Adelina pode não ter apelado às mulheres de forma incisiva, entretanto,

constantemente referendada pelos homens da sociedade capixaba como exemplo

de mulher, a sua imagem se tornou simbólica e deste modo alcançava outras

mulheres capixabas. Mais do que motivo de adesão ao movimento abolicionista,

Adelina Lírio se tornou o modelo de conduta das “boas senhoras” capixabas.

A identidade feminina e a máscara da feminilidade não foram de uso

exclusivos da elite oitocentista, como demonstram as petições de autoria de

mulheres analisadas. Todos os segmentos da sociedade brasileira estavam sujeitos

às mesmas regulações de gênero. Conforme visto no capítulo anterior, a

maternidade era constantemente utilizada por mulheres cativas em pedidos à fundos

de emancipação e no “bancamento” da sua liberdade e de seus filhos (COWLING,

2010). Se o aspecto materno atingia as escravas, os demais componentes do

repertório feminil também. Deste modo, um poema sobre a liberdade veiculado pela

Folha da Victoria é singular. Em 13 de julho de 1884, a ex-escrava Paulina a quem

“o filantrópico e honrado comerciante desta praça Manoel Pinto Netto” ofereceu “em

sinal de reconhecimento, humildemente” um soneto:

Heide [sic] grata mostrar-me eternamente A quem me conferiu a liberdade E no céu tão grande rasgo de bondade O meu libertador terá presente: Junto ao trono do Deus Onipotente Na presença da Santíssima Trindade Meu digno benfeitor alegre hade [sic] O prêmio receber desse ato ingente Não deveis ofender meu ex-senhor Porque em público eu venho demonstrar Vosso ato todo digno de louvor Satisfeito vossas mãos heide [sic] de beijar

117

Porque delas recebi esse penhor Que minha sorte acaba de mudar

Considerando a linguagem como um processo de significação, a questão da

autoria do soneto, se foi ou não da ex-escrava Paulina é irrelevante. O interessante

é notar nos versos, que Paulina escolheu para agradecer o comerciante Manoel

Pinto Netto, a presença de elementos e expressões utilizadas por Adelina Lírio ou

Etelvina Amália de Siqueira ou Mercedes de Oliveira. Assim como as mulheres dos

estratos mais elevados, o caráter cristão foi evidenciado em seu agradecimento,

além das menções diretas ao Deus onipotente e à Santíssima Trindade, com a

afirmação de que o seu ex-senhor seria recompensado no céu. Em seus versos

também estiveram presentes as noções de “bondade”; “gratidão” e “humildade”,

todas estas presentes no ideário feminino pensado para e utilizado pelas mulheres.

Como viemos argumentando, as mulheres estavam, através dessa imagem

feminina, construindo suas vias de acesso à esfera pública central e o recurso dos

ideais de feminilidade servia para mascarar e evitar represálias ou críticas. No

entanto, Paulina ao pedir que Manoel Pinto Netto não se ofendesse com seu

agradecimento público, não mascarou ou disfarçou este acesso. Ao contrário,

demonstrou uma leitura acurada e a consciência de que estava invadindo um

espaço que tradicionalmente era vedado a ela, por ser mulher e especialmente por

ser liberta.

A presença das mulheres na imprensa brasileira ganhou cada vez mais força

a partir da metade do século XIX, porém, no Espírito Santo, essa inserção, na

década de 1880, ainda era escassa48. De fato, somente Adelina Lírio conseguiu

espaço nos periódicos analisados para publicações próprias e nenhuma de suas

colegas professoras – a despeito das menções elogiosas – ou das associadas à

Libertadora obtiveram o mesmo êxito49. Se nem as mulheres da elite tinham franco

48

De acordo com Lívia de Azevedo Soares Rangel (2011, p. 29): “o registro mais remoto de que se tem notícia pontua a colaboração da mulher capixaba na imprensa somente a partir do ano de 1882, data distante há trinta anos das precursoras que tiveram seus textos publicados em jornais e revistas de outras regiões do Brasil, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais”. Segundo a autora, o caráter esporádico enfrentado pelas primeiras publicações jornalísticas capixabas auxilia na compreensão desse atraso em relação à presença feminina na imprensa. 49

A escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) produziu em Um teto todo seu, publicado em 1929, a partir de palestras realizadas nas faculdades de Newham e Girton em 1928, uma interessante reflexão sobre as condições sociais das mulheres e seus efeitos na produção literária feminina. Para Woolf, uma mulher que desejasse escrever deveria ter um quarto com fechadura na porta e no mínimo 500 libras por ano, ou em outras palavras, uma renda mínima que garantisse emancipação financeira e condições materiais – de moradia, por exemplo – favoráveis. A proeminência de Adelina Lírio na cena literária capixaba pode ser explicada de acordo com condições de Virginia Woolf. Seu

118

acesso à imprensa local, este lócus era ainda mais restrito para Paulina e ela, no

entanto, o conquistou, através da expressão da gratidão e da humildade, mas

especialmente através do uso da identidade e dos ideais de feminilidade que

normatizavam a sociedade capixaba oitocentista50.

trabalho como professora, ainda que não lhe garantisse total autonomia financeira, provavelmente lhe permitiu certa independência que possibilitou seus escritos. 50

Rafaela Domingos Lago (2013, p. 85-87) estudou o parentesco ritual de escravos através do batismo nas regiões central e sul do Espírito Santo entre 1831 e 1888 e verificou a presença de madrinhas em praticamente todos os registros de batismo. Para ela, esta atitude revelou que “mesmo diante das condições impostas pela escravidão, num mundo dominado por homens, a mãe escrava poderia preferir no ritual de renascimento da criança mantê-la no mundo feminino sem, com isso, deixar de almejar uma condição futura melhor e benefício para seus filhos”, o que em nossa visão, denota que o alcance da identidade feminina performada pela maternidade atingiu de fato todos os estratos da sociedade oitocentista.

119

CONCLUSÃO

Em 1969, a militante feminista norte-americana Carol Hanisch publicou um

artigo cujo título, “O pessoal é político”, se tornou o slogan da segunda onda do

movimento feminista. Em termos gerais, Hanisch declarava ter, através de sua

participação em grupos de discussão51, compreendido que os problemas pessoais

das mulheres – por exemplo, a diferença salarial entre homens e mulheres

envolvidos num relacionamento – eram problemas políticos. A concepção de Eleni

Varikas (1996), insistia na interdependência do privado e do público, bem como do

privado doméstico e do privado econômico, e afirmava que a crítica feminista dava

mais atenção ao primeiro do que ao segundo. As feministas, portanto, avaliavam que

o problema da distinção entre privado e público não era acompanhado da reflexão

sobre outros horizontes possíveis, pois não deixava claro se o objetivo era suprimir

ou reformular esta distinção.

O pessoal se tornou político porque se transformou em elemento de

justificação de poder, na medida em que a experiência das mulheres no espaço

privado doméstico deixou de ser uma experiência de dominação, conduzindo à uma

ação política que redefinisse as necessidades e as vontades de homens e mulheres.

O reconhecimento das necessidades particulares das mulheres evidenciaria assim

uma valorização das atividades femininas no domínio privado, constantemente

desvalorizadas por uma visão androcêntrica do espaço público, que o enxergava

como o domínio por excelência da atividade autenticamente humana. Deste modo, o

questionamento da desvalorização do doméstico ou do oikos, como Varikas (1966)

denominou, buscou lhe atribuir um estatuto político e inscrevendo-o no campo das

instituições.

Romper com a dicotomia privado e público, pessoal e político, implica na

consciência da definição de cada um desses campos. De acordo com a filósofa

política Susan Moler Okin (2008, p. 305), especialmente em relação ao privado e

público, os termos são frequentemente confundidos e utilizados de forma ambígua,

de tal maneira que “perpetua-se a ideia de que essas esferas são suficientemente

separadas, e suficientemente diferentes, a ponto de o público ou o político poderem

ser discutidos de maneira isolada em relação ao privado ou pessoal”. Uma das

51

Denominados por algumas militantes pejorativamente de “terapia”, conferir em Hanisch (1969).

120

ambiguidades resulta do uso de público/privado tanto para se referir à distinção

entre Estado e sociedade (como em propriedade pública e privada), quanto para

referir-se à distinção entre vida doméstica e vida não doméstica. Por outro lado,

permanece a questão da divisão sexual do trabalho, na qual os homens são vistos

ligados às ocupações da esfera da vida econômica e política e responsáveis por

elas, e as mulheres como responsáveis pelas ocupações da esfera privada da

domesticidade e reprodução e assim, “naturalmente” inadequadas à esfera pública

(OKIN, 2008, p. 307-308).

Para Okin (2008, p. 314), dizer que o “pessoal é político” significa dizer que o

que acontece na vida pessoal não é imune em relação à dinâmica de poder, vista

como a face distintiva do político. Principalmente, significa que nem o domínio da

vida doméstica, pessoal, nem aquele da vida não doméstica, econômica e política,

podem ser interpretados isolados um do outro. Em nossa visão, é justamente esta a

razão pela qual o pessoal e político podem ser pensados em relação às mulheres do

Oitocentos.

As regulações e normatizações de gênero impostas às mulheres eram as

mesmas para o privado e o público, para o pessoal e para o político. O debate

travado na Assembleia Provincial sobre as qualidades das professoras mencionado

no capítulo três é ilustrativo, pois, além da educação formal, elas deveriam ser

exemplos também em suas vidas privadas e familiares. A mulher era identificada

como esposa, dona-de-casa, mãe de família e em cada um desses atributos deveria

se portar de acordo com os ideais de feminilidade: generosidade, bondade,

sensibilidade. Assim como a maioria das feministas do século XIX e do início do XX

que não questionaram ou desafiaram o papel especial da mulher no interior da

família (OKIN, 2008, p. 312), as mulheres que compuseram nosso objeto de análise

também não o fizeram. De fato, segundo Okin (2008, p. 312), direitos como a

educação ou o sufrágio foram defendidos com o argumento de que “fariam dessas

mulheres esposas e mães melhores, ou que as capacitariam para trazer sua

sensibilidade moral especial, desenvolvida na esfera doméstica, para o mundo da

política”.

O campo político, como afirmou René Remond (2003, p. 442-443), não tem

fronteiras naturais e certas situações podem ampliá-lo, como em tempos de guerra,

121

em que tudo se torna político ou em momentos que discussões acerca do aborto –

pauta tradicionalmente feminista – e que envolve ciência, cultura, religião e vida

privada se torna objeto da crônica política. Apesar da utilização do arquétipo – ou da

máscara – da feminilidade, o acesso das mulheres à esfera pública não foi marcada

por um discurso exclusivamente feminino. Nas petições referentes ao recrutamento,

tanto homens quanto mulheres estabeleciam a importância do recrutado para sua

subsistência e a de suas famílias assim como no movimento abolicionista, a empatia

para com a situação dos cativos não foi argumento direcionado apenas as mulheres.

Mesmo assim, as mulheres promoveram a ampliação do campo político. A definição

mais abstrata do político para Remond (2003, p. 444) é a relação com o poder: “a

política é a atividade que se relaciona com a conquista, o exercício, a prática do

poder”. Da prática do poder político formal, as mulheres da sociedade imperial

brasileira eram excluídas, elas não podiam votar ou ser votadas e muitos de seus

direitos perpassavam alguma autoridade masculina, fosse pai, irmão ou marido. De

que modo a performance das mulheres foi então política?

Em primeiro lugar, a resposta compreende o entendimento de que as esferas

públicas devem levar em conta o fato de que são generificadas, construídas sob a

afirmação de superioridade e dominação masculinas que pressupõem a

responsabilidade feminina pela esfera doméstica (OKIN, 2008, p. 320). Deste modo,

se esperava muito mais das mulheres em seus papéis de mães, esposas ou

responsáveis pelas famílias do que se esperava dos homens em seus papéis

familiares. Assim, a atuação das peticionárias e abolicionistas diferentemente

daquelas mulheres que posteriormente iriam militar pelo sufrágio feminino, não

significou melhoria ou aprimoramento de sua qualidade de mãe, antes foi encarada

como atribuição deste papel. Ainda que por termos diferentes, estas mulheres

aceitaram que a “associação estreita com a esfera doméstica e a responsabilidade

da mulher por essa mesma esfera eram naturais e inevitáveis” (OKIN, 2008, p. 312-

313).

A atuação das abolicionistas e das peticionárias não foi militante. Elas não

almejaram a conquista de direitos políticos ou questionaram a falta destes. No

entanto, ainda assim, suas atividades foram políticas. O âmbito privado e o público

eram espelhos um do outro, da mesma maneira como a posição das mulheres. Um

exemplo diz respeito à honra, fator fundamental no contexto do recrutamento – a

122

distinção entre homens honrados e desonrados era feita justamente pela

diferenciação entre os sujeitos ao recrutamento ou não. Segundo Hunt (2009, p.

143) se a virtude e a honra das mulheres pertenciam às esferas privada e

doméstica, a dos homens era a pública. Assim como a identidade e a performance

são interrelacionados, o doméstico e o público não podem ser compreendidos

separadamente. Nesta dissertação, compreendemos que a atuação política das

mulheres envolvidas na dinâmica do recrutamento militar e do movimento

abolicionista não pode ser vista sem que se leve em consideração seus aspectos

totais: político e pessoal, privado e doméstico, feminilidade como máscara ou como

ideal.

Apesar da esfera pública masculina burguesa, as mulheres acharam lugar

para o exercício da crítica em outros espaços públicos, no caso, o locus do

movimento abolicionista e a dinâmica do recrutamento militar. O subaltern

counterpublics feminino do Oitocentos não produziu um contra discurso que

contestasse a esfera pública dominante, mas deu novo significado a ele. As

mulheres peticionárias e abolicionistas encontraram tal espaço através de atos e

linguagens femininas. No entanto, o feminino aqui não é restrito ao uso do conteúdo

por mulheres e para mulheres, pois, conforme visto, também era utilizado pelos

homens. O discurso não era feminino por que era utilizado pelas mulheres, mas

porque personificava o que eram as mulheres – ou no mínimo, aquilo que as

mulheres deveriam ser: bondosas, caridosas, dóceis. As mulheres do Oitocentos

romperam com os entraves até então impostos à suas atividades porque

naturalizaram, enalteceram e fortaleceram estas qualidades. Ser mulher, ser mãe,

ser esposa começou a ser visto não mais como uma fraqueza, mas como nova

imagem, que permitiu às mulheres a conquista de outros espaços fora da esfera

doméstica e privada: os salões e teatros abolicionistas, os locais administrativos e

jurídicos de exercício de direitos. As mulheres abolicionistas e peticionárias, ao

transferirem seu lado pessoal para o político, seu privado para o público deram os

passos decisivos na transformação do lugar da mulher na esfera pública dominante

masculina desde meados do século XIX até seu final na Província do Espírito Santo.

124

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133

APÊNDICES

134

APÊNDICE A. Requerimentos pesquisados no Arquivo Público do Espírito Santo – APEES, Série Accioly, Livro 34: Correspondências do Recrutamento.

1836

Lucinda Maria de Jesus

Francisca Clara de Azevedo

Joaquina Maria de Jesus

Francisca Maria do Rozario

Margarida Furtado D.

Angélica Maria da Conceição

Francisca Clara de Azevedo

Maria da Conceição de Jesus

Francisca Clara de Azevedo

Joaquina Maria de Jesus e Domitila Maria de Jesus

Victória Mendes

Joaquina Maria de Jesus

Francisca Clara de Azevedo

Fabiana das Dores de Christo

Francisca Clara de Azevedo

Francisca Clara de Azevedo

Thereza Maria de Jesus

1837

Maria do Espírito Santo

1838

Maria Magdalena de Jesus

Vitória Maria de Jesus

Alizovandra Maria de Jesus

1839

Vitória Maria de Jesus

Ama ?

1840

Miquelina Maria

Senhorinha Maria dos Anjos

Helena Maria de Jesus

Sebastiana Maria de Jesus

Luiza Ferreira Nunes

Francisca Maria Nunes

1841

Anna Maria de Sant’Anna

1842

Vitória Maria da Conceição

Catherina Ferreira

1843

Severiana Maria de Albuquerque

Severiana Maria de Albuquerque

Severiana Maria de Albuquerque

1844

Leocádia Maria dos Santos

Joaquina Maria de São José

1845

Maria da Penha

Maria Rosa de São José

Luisa Pinto Rangel

Luisa Isabel da Costa

Isabel Barbosa

1846

Anna Maria da Conceição

Úrsula das Virgens

135

Alexandra Maria da Conceição

Úrsula das Virgens

Úrsula das Virgens

Úrsula das Virgens

Lourença Maria da Boa Morte

Maria Theodora dos Santos

Victória Maria de Jesus

Felicidade Maria da Victoria

Ignácia Maria dos Anjos

1847

Maria Ferreira

Angélica Maria da Conceição

Maria das Neves Pereira

Anna Maria da Conceição

Francisca Maria das Chagas

Theresa Maria de Jesus

Theresa Maria de Jesus

Theresa Maria de Jesus

1848

Maria (?) da Rocha

Fonte: Série Accioly, Livro 34: Correspondências do Recrutamento.

136

APÊNDICE B. Edições referenciadas de A Província do Espírito Santo e Folha da Victoria (1883-1888)

Periódico Número Data

A Província do Espírito Santo 121 06/01/1883

A Província do Espírito Santo 135 25/01/1883

A Província do Espírito Santo 162 01/03/1883

A Província do Espírito Santo 262 07/07/1883

A Província do Espírito Santo 288 07/08/1883

Folha da Victória 10 09/08/1883

A Província do Espírito Santo 293 12/08/1883

Folha da Victória 12 12/08/1883

A Província do Espírito Santo 296 12/09/1883

A Província do Espírito Santo 298 17/08/1883

Folha da Victória 13 19/08/1883

Folha da Victória 14 19/08/1883

A Província do Espírito Santo 302 20/09/1883

A Província do Espírito Santo 304 23/08/1883

Folha da Victória 19 24/08/1883

Folha da Victória 20 13/09/1883

Folha da Victória 22 20/09/1883

Folha da Victória 30 18/10/1883

Folha da Victória 40 22/11/1883

Folha da Victória 55 13/01/1884

A Província do Espírito Santo 416 18/01/1884

Folha da Victória 65 17/02/1884

Folha da Victória 70 09/03/1884

A Província do Espírito Santo 462 15/03/1884

Folha da Victória 76 30/03/1884

A Província do Espírito Santo 484 16/04/1884

A Província do Espírito Santo 485 17/04/1884

Folha da Victória 80 17/04/1884

A Província do Espírito Santo 489 22/04/1884

Folha da Victória 82 24/04/1884

A Província do Espírito Santo 492 25/04/1884

A Província do Espírito Santo 493 26/04/1884

A Província do Espírito Santo 494 27/04/1884

A Província do Espírito Santo 495 29/04/1884

Folha da Victória 84 01/05/1884

A Província do Espírito Santo 499 03/05/1884

Folha da Victória 85 04/05/1884

Folha da Victória 86 08/05/1884

Folha da Victória 87 11/05/1884

A Província do Espírito Santo 506 13/05/1884

Folha da Victória 88 15/05/1884

137

A Província do Espírito Santo 512 20/05/1884

Folha da Victória 90 22/05/1884

Folha da Victória 91 25/05/1884

Folha da Victória 93 01/06/1884

Folha da Victória 94 05/06/1884

Folha da Victória 95 08/06/1884

A Província do Espírito Santo 530 12/06/1884

Folha da Victória 96 12/06/1884

A Província do Espírito Santo 532 17/06/1884

A Província do Espírito Santo 533 18/06/1884

Folha da Victória 98 19/06/1884

Folha da Victória 103 06/07/1884

Folha da Victória 104 10/07/1884

A Província do Espírito Santo 552 11/07/1884

Folha da Victória 105 13/07/1884

A Província do Espírito Santo 556 16/07/1884

Folha da Victória 107 20/07/1884

Folha da Victória 108 24/07/1884

A Província do Espírito Santo 564 25/07/1884

A Província do Espírito Santo 565 26/07/1884

A Província do Espírito Santo 566 27/07/1884

Folha da Victória 109 27/07/1884

A Província do Espírito Santo 587 22/08/1884

Folha da Victória 110 31/07/1884

Folha da Victória 121 07/09/1884

A Província do Espírito Santo 639 23/10/1884

A Província do Espírito Santo 679 12/12/1884

A Província do Espírito Santo 830 02/07/1885

A Província do Espírito Santo 1067 29/04/1886

A Província do Espírito Santo 1074 07/05/1886

A Província do Espírito Santo 1094 01/06/1886

A Província do Espírito Santo 1154 14/08/1886

A Província do Espírito Santo 1174 07/09/1886

A Província do Espírito Santo 1522 27/11/1887

A Província do Espírito Santo 1542 23/12/1887

Folha da Victória 486 08/04/1888

Folha da Victória 497 17/05/1888

138

ANEXOS

139

ANEXO 1. REQUERIMENTO DE MARIA THEODORA DOS SANTOS ENVIADO À

CHEFATURA DE POLÍCIA DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO EM 1846 -

APEES, Série Accioly, Livro 34 – Correspondências do Recrutamento, fl.483-490.

140

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