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MEMÓRIAS DE UM PESCADOR: O QUE TEMOS A APRENDER COM AS NARRATIVAS

Charlene Bezerra do Santos1

IFPA/CRMB

Analisam-se as narrativas e representações de um pescador que, de forma detalhada, vai narrando suas histórias do cotidiano, reportamos os momentos de sua trajetória. Sustentamos a hipótese de que, por um lado, nossas histórias de vida trazem as marcas e as linguagens que nem sempre passaram por um processo de escolarização e isso não desmerece, em nenhum momento, a construção narrativa; por outro, entendemos que as narrativas têm muito a nos ensinar sobre a cultura popular. Os relatos sobre caça, pesca, crenças, trabalho no seringal, expostos pelo sujeito narrador, apontaram as lembranças, as marcas que se tem diante daquele modelo de sociedade que se deseja.

Palavras chave: Narrativas, Memórias e pescador.

MEMORIAS DE UN PESCADOR: LO QUE TENEMOS QUE APRENDER CON LAS NARRATIVAS

Charlene Bezerra dos Santos¹

Se analizan las narrativas y representaciones de un pescador que, de forma detallada, narra sus historias del cotidiano, reportamos los momentos de su trayectoria. Defendemos la hipótesis de que, por un lado, nuestras historias de vida traen las marcas y los lenguajes que no siempre pasaron por un proceso de escolarización y eso no desmerece, en ningún momento, la construcción narrativa; por otro lado, entendemos que las narrativas tienen mucho a enseñarnos sobre la cultura popular. Los relatos sobre la caza, pesca y las creencias, trabajo en el seringal, expuestos por el sujeto narrador, apuntaron los recuerdos, las marcas de aquel modelo de sociedad que se desea.

Palabras llave: Narrativa, Memorias y pescador.

1 Educadora do Campus Rural de Marabá e cursista da Especialização: Currículo,

Cultura, Letramento e Educação do Campo (UFPA).

1 Educadora del Campus Rural de Marabá y alumna de la Especialización: Currículum ,

Cultura, Letramiento y Educación del Campo (UFPA)

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Memories of a Fisher: What we can learn from Narrative

Charlene Bezerra do Santos2

IFPA/CRMB

The focus in this article is one fisher’s representations of his everyday experiences through his narratives. I work with the hypothesis that, first, life stories carry with them various impressions and languages that are not always constituted in formal schooling, and this in no way ought to lead to an invalidation of such narratives. Secondly, I discuss how narratives have a lot to teach us concerning popular culture. Stories on hunting, fishing, belief systems, and extractive activities, as stated by the narrating subject, are impressions and memories with the potential to serve as a desirable model of society.

Keywords: Narrative, Memory, Fisher

MEMÓRIAS DE UM PESCADOR: O QUE TEMOS A APRENDER COM AS NARRATIVAS

Fabricador de instrumentos de trabalho, de habitações,

de culturas e sociedades, o homem é também agente

transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na

história e o da história na vida do homem?

(NORA)

INTRODUÇÃO

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Teacher at Marabá’s rural campus and majoring in, Curriculum, Culture, Writing Studies and Rural Education (UFPA).

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A epígrafe traduz a importância da narrativa a respeito de nós mesmos, da

realidade da sociedade brasileira, do mundo, do saber cheio de perplexidades, dúvidas,

questionamentos, descobertas e ansiedades. O sentido da História é esse movimento

de compreensão de como o sujeito faz a História. Os fatos nascem, quando as

pessoas pensam, vestem problemas antigos com roupagem nova ou problemas novos

com roupagem antiga. A História é uma provocação, porque é a desconstrução de

verdades absolutas, uma rede de interdependências com que o real vai se construindo,

desconstruindo e reconstruindo, mostrando que é sempre incompleto e provisório

qualquer conhecimento. Se invento como assegura Rosito(2008) uma história que tem

conseqüências nas minhas escolhas, podemos nos perguntar: O que é o real? O que

é a imagem? O que é a imagem do real? O que é ficção e o que é real? A Amazônia

brasileira tão permeada de histórias, de imagens e estereótipos, também importante

região de floresta tropical do planeta, sempre despertou um enorme fascínio nos

primeiros homens que realizaram estudos acerca da sua natureza e a relação com o

homem que sempre esteve presente em todas as formas de intervenção.

Neste texto tenta-se discutir a figura do contador de histórias, representados no

caçador, pescador, ribeirinho dentre outros, muitas vezes em nossos dias, ridicularizado

em virtude da descentralização da prática do narrar. Se por um lado contar histórias

nunca foi tarefa fácil, pois exige do contador mecanismos de enlace, sedução,

argumentação e destreza para obter a atenção do expectador, por outro essa prática tão

fluente na oralidade vem desaparecendo, talvez não esteja tão explícita cotidianamente,

todavia estar lá, quase invisível, mas eles não se calam, oh contadores de histórias, eis

que o trabalho com as narrativas viabiliza o contar das histórias, através dos destaques

de saberes daqueles que Academia não permite externar. Pois bem mediante o exposto

visualizamos que o caminho para possibilitar e (re)valorizar tais práticas é na escola,

espaço que reafirme e de repente traga para sua grade curricular a arte de contar e narrar

histórias de todas as temáticas, muitas propostas podem ser pensadas e realizadas neste

contexto.

O QUE OS SUJEITOS FAZEM COM O QUE SABEM

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O homem continuamente esteve imbricado na sua história, naturalmente é

fato afirmar que as palavras têm uma história e, de certa maneira também, as palavras

fazem história, se isso é verdadeiro como anuncia Cuche(1999) é verificável no caso da

palavra cultura, o autor segue a invenção da noção de cultura é em si mesma reveladora

de um aspecto fundamental da cultura no seio da qual pôde ser feita esta invenção. Não

podemos entender cultura numa dicotomia: há uma cultura certa e outra errada, agir

dessa forma é não compreender o outro, simplesmente desconsiderar que os grupos se

assemelham e muito se diferenciam e que o diferente não é deficiente, é apenas outro

modo de olhar os contextos situacionais. Lembremos que na dinâmica de imposição e

colonização de alguns povos, exemplificando frança para com Alemanha, esta resiste

e vai para o enfrentamento, buscam-se mecanismos de perceber que a diferenças não

podem ser tratadas como o intragável, algo inaceitável, ou seja, como nos fizeram crer,

em tempos passados, que não ser como a Metrópole era simplesmente não possuir

civilização. Pergunta-se civilizado para quem? Daí que bebemos numa fonte ocidental

que sempre desenhou e orientou o padrão de segmentos, vestimentas, comportamentos,

dentre outros aspectos, para o resto do mundo.

No entanto, não afirmamos que o resto do mundo tenha aceitado tranquilamente

os ditames da dita civilização; o estranhamento, a resistência, sempre se fez presentes

nas relações entre os povos, é o caso de comunidades indígenas, quilombolas, ciganas,

etc que apesar de todas as circunstâncias tentam manter e continuar com os seus

modos de vida, ensinamentos, tradições, mesmo que para alguns seja piegas, ou

de nenhuma importância. Assim também não diferente com as histórias orais dos

contadores que pertencem a esses grupos, na sociedade letrada, como Rama(1985)

comentou em As cidades das letras, onde as pessoas detentoras da escrita e da escrita

culta são referenciadas em detrimento daquelas que não possuem. Numa sociedade

que antigamente a oralidade prevalecia, lembremos as situações das praças da Antiga

Grécia e os momentos de oratórias tão esperadas pela população.

Notadamente hoje a oralidade para a sociedade capitalista é vista como

desorganizada, fragmentada e sem conteúdo, enquanto a escrita é organizada e,

portanto merece mais apreciação, o que dificulta à atribuição de status às narrativas

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na mesma medida que se atribui a escrita, uma vez que quando transcrita as narrativas

adquirem mais reparos, mas precisam passar para o “papel”, a fim de possuir um lugar

na academia, desse modo entendemos que a Literatura Popular abre caminho para (re)

visitarmos e desconstruirmos alguns conceitos referentes ao trabalho com o ato de

narrar e assim referenciar nossos contadores de histórias. A educação escolar e não

escolar é palco para tal discussão.

Costuma-se pensar a educação do ponto de vista da relação entre a ciência e a

técnica ou, às vezes, do ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o par ciência/

técnica remete a uma perspectiva positiva e retificadora, o par teoria/prática remete,

sobretudo a uma perspectiva política e crítica. De fato, somente nesta última perspectiva

tem sentido a palavra “reflexão” e expressões como “reflexão crítica”, “reflexão sobre

prática ou não prática”, “reflexão emancipadora” etc. Se na primeira alternativa as

pessoas que trabalham em educação são concebidas como sujeitos técnicos que aplicam

com maior ou menor eficácia as diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos

cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na segunda alternativa estas mesmas

pessoas aparecem como sujeitos críticos que, armados de distintas estratégias reflexivas,

se comprometem, com maior ou menor êxito, com práticas educativas concebidas na

maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo isso é suficientemente conhecido,

posto que nas últimas décadas o campo pedagógico tem estado separado entre os

chamados técnicos e os chamados críticos, entre os partidários da educação como

ciência aplicada e os partidários da educação como práxis política.

A dicotomia entre saber científico e empírico sempre afloraram nas discussões

acadêmicas, mas ainda assim há uma relutância em equiparar esses dois conhecimentos

e atribuir valores na mesma proporção. Se voltarmos um pouco mais, observar-se-

á que nas sociedades antigas, pré-capitalista, os contadores de histórias eram muito

respeitados por ser considerados a memória viva da comunidade. A capacidade de

“armazenar” as histórias estava sempre ligada a uma sensibilidade que os diferenciava

das outras pessoas. Essa sensibilidade faria com que o indivíduo apreendesse,

parafraseando Benjamim(1987), o mundo visível com os olhos e o sensível, com os

sentidos e, assim, também transmitisse [isso] às outras pessoas.

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À luz do conceito de cultura popular defendido por Beisiegel(1988), o qual

sofre alterações ao longo do tempo a expressão “cultura popular” talvez encontre

correspondência direta nas realidades sociais no passado, quando uma separação

mais rígida e definida entre os grupos dominantes e as maiorias subalternas também

se exprime sob a forma de uma clara diferenciação entre as concepções e os modos

de vida próprios a cada um desses segmentos da coletividade. Mas, nas condições

de vida geradas na sociedade industrial e urbana, as diferenças então existentes vêm

progressivamente perdendo a antiga nitidez dos contornos. A discussão sobre cultura

popular aproxima-se dos processos de escolarização pensado para o nosso país

espelhado claro nos modelos advindos de fora, ou seja, dos países ditos desenvolvidos,

logo industrializados.

O autor ainda assemelha o conceito de cultura popular com a educação popular,

um projeto de educação diferente dos pacotes prontos, a exemplo, o MOBRAL(

Movimento Brasileiro de Alfabetização)é um exemplo, desconectado da realidade

dos indivíduos que se submetiam a este. O projeto de Educação popular que atenda à

realidade dos sujeitos é aquele pensado e divulgado por Paulo Freire, uma educação

que atente para as tensões sociais e de caráter político, que é semelhante ao projeto de

Educação pensado para o Campo, na perspectiva da Educação do Campo.

Neste sentido é importante ressaltar que permitir aos agricultores, a ida para

a escola, a oportunidade de expressar a sua linguagem no espaço escolar e jamais ser

ridicularizado por isso. Não basta aos agricultores terem escolas no campo, tais escolas

precisam estar comprometidas com as causas defendidas pelos moradores do espaço

campesino, precisa voltar-se para os sentidos que o conhecimento tem para esses povos,

os significados que atribuem para a leitura e escrita. O momento de aprendizagem

precisa considerar que a língua é permeada de valores, e estes tomam a dimensão que

atribuímos á ele, seja quando consideramos que estudar a língua é dividi-la em variante

de prestígio e a outra desprestigiada, portanto, esta última, não merece estar nas práticas

escolares, e assim vai-se perpetuando tal dualidade. Averigua-se que talvez, o grande

dilema é o fato da escola tradicional não considerar que há outros espaços que também

se produz conhecimentos, os chamados, extra-escolares, e na maioria das vezes são

nestes que se encontram os contadores de histórias, são advindas desses espaços as

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narrativas sobre mitos, lendas, assombração, as caçadas, as pescarias entre outras que

só quem as viveu tem respaldo para narrá-las, porém a escola não abre suas portas para

ouvi-las.

E para Beisiegel(p. 57, 1988), a educação extra escolar é parte da cultura popular

como confirma-nos. “Esse tipo de educação, que também recebe a denominação

de popular, pode pressupor e levar em conta os interesses das camadas populares,

interesses estes definidos por e em função destas camadas”. Dessa forma compreende-

se:

Os processos culturais de reprodução do saber- de que a educação agenciada é uma hipótese, uma configuração de sistemas e relações, e em momento- são uma modalidade e um instrumento de realização de poder. Esta foi, naquele tempo, uma primeira denúncia. Uma outra, muito confusa ainda, quando nós a formulávamos há pouco mais de vinte anos a cultura é um processo e, ao mesmo tempo, o substrato de situações de enfrentamento e luta por hegemonia, autonomia, domínio, resistência e, no limite, sobrevivência, a mais recente a ciência não é absolutamente neutra, assim como a pesquisa não é um ato honrado dirigido à pura invenção da verdade, mas um fino instrumento de descoberta e acumulação de saber competente e seu poder correspondente. (BRANDÃO p.105, 2002)

Neste sentido tentar-se-á compreender nas narrativas aqui expostas, como

se (re)constroem os saberes, como que os sujeitos se colocam e se materializam

discursivamente diante de seus espaços de produção, mediante o externar de suas

histórias, representadas no seu processo narrativo.

METODOLOGIA E SUJEITOS DO ESTUDO

O colaborador desse estudo é o senhor Raimundo Bezerra Cazumba, nascido

no Acre e residente no Pará há 47 anos, conhecido como seu Doca, 81 anos de idade,

casado pai de 17 filhos e avô de 33 netos vivos e 1 bisneto, a escolha deste narrador

se deu devido a sua prática de narrar e a vivência nos contextos históricos do ciclo da

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borracha, depois de ter sido o soldado da borracha, tornou-se agricultor e pescador de

profissão, como ele mesmo assegura, grande pescador de jacarés em suas andanças,

caçadas e pescarias nos rios do Lago de Tucuruí, cidade de Jatobal, cidade corroída pela

construção da Hidrelétrica de Tucuruí, que expulsou seu Raimundo e sua família para o

distrito de Cajazeiras,(Itupiranga/PA) sua morada atual.

O nosso corpus se constitui de 1h de áudio, de narrativas coletadas por meio

de gravação e posteriormente transcritas, nem toda usada neste texto, usamos a letra

[P] nos recortes referentes à pesquisadora e [N] para Narrador. Nossa transcrição

é uma adaptação de Preti (1993). Tomamos como categorias para nossas análises o

discurso em torno: da prática da pesca e caça; procurando compreender que concepções

de mundo representações de histórias estão imbricadas na língua(gem) das narrativas

expostas aqui, práticas de identidades que se revelam nas atividades de agricultor,

pescador, camponês. Sendo evidenciadas na análise que segue.

ANÁLISE DOS DADOS: MEMÓRIAS DE QUEM SABE NARRAR

Analisar é antes de tudo deixar claro, que não se trata de um único ponto de

vista, aqui se trata de um, somente um olhar poderá surgir outros a depender da leitura

que cada um faz das mensagens trazidas nas narrativas, é o que tentaremos desvendar

em cada história nos contada neste estudo.

Os saberes dos Sujeitos

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Recorte 1N- aqui no rio Tocantins... eu mariscando ai uma vez eu medi mais o Deuzaniel o Deuzaniel foi que mediu ele tava dentro assim do laguinho ele mediu quatro palmos e meio só o peito dele assim ele tava dormindo no lago eles matam jacaré ai mas nunca mataram ele o pé dele o pé do jacaré é pequeno o pé dele é um palmo e uma chave

P- só pé dele?

N- só o pé dele ele é muito grande esse jacaré ele ta ai no rio nunca mataram ele não

P- e vocês viram ele?

N- vimos é muito grande

P – e como é que faz para saber matar jacaré?

N - a gente arremeda e ele vem quando ele está manso né? ai ele vem que vem ligeiro ai o camarada chega e arpoa

P- arremedar o que arremedar?

N- e esturrar como ele né? a gente esturra e bate na água e bate assim ((faz as batidas com as mãos)) ai esturra se ele estiver perto vem, mas quando ele está bravo ele não aceita você bate e ele se afasta ele faz é se afastar uma vez arpoei um eu tava mais um cara lá Chico do jorge que andava mais nós que quebrou a corda ficou só com arpão corda podre e ai ele quebrou botava pra lá ele ia pra dentro d’ água ai eu disse vambora Chico ai saímos ai ele boiou ai eu disse vamos voltar Chico ai ele disse pra que? ai eu disse vamos voltar me deu vontade de voltar ai voltemos voltemos ai quando cheguei ele debaixo da moita ai afundou vagarzinho ai ele quando ele afunda duma vez ele não fica ali não né? vai embora ai ele vai lá pra longe ai sentou devagarzinho ai botei a canoa ai foi chegando perto me deu na cabeça de ver o tamanho da corda ai eu vi o pedaço da corda ai eu fui ai bem devagarzinho meti a mão e enrolei aqui no dedo ai ele fez força ai o Chico solta solta o jacaré a canoa entrando água ai eu disse não não ta vendo que eu não vou soltar o jacaré rapaz eu vim atrás de jacaré pra pegar no arpão e ele dizendo solta solta e eu não não solto nada ai quando ele viu que não tomava ai ele esmoreceu esmoreceu ai eu disse traz a corda o pedaço ai ele levou e eu emendei ai matamos o jacaré ai eu disse olha ai eu botei ele dentro da canoa e o Chico disse esse jacaré ta vivo eu disse ta nada rapaz tu ta é com medo porque em vez da gente cortar a cabeça assim a gente corta uma parte do pescoço ai eu meti a mão assim no rumo da cabeça mas não apartou do pescoço né? ai eu pensei que tava morto porque ele só morre quando corta aquele osso do pescoço eu botei dentro da canoa a cabeça dele bem aqui um jacaré meio grande quase do tamanho do meus quartos e o Chico dizendo esse jacaré ta vivo e eu ta não rapaz tu ta é com medo e ele ta vivo rapaz sim quando eu olhei para o jacaré ele tava com a boca perto dos meus quartos peguei o machado e taquei no pescoço dele dei umas pancadas ele tava vivo mesmo ai meti a mão e cortei o pescoço dele desse tamanho ai ele disse tava vivo mesmo ai eu olhei o bicho tava com olho deste tamanho ai o cara disse tu tem muita coragem é nada moço eu tenho é muita oração forte eu tenho fé em Deus se eu to lutando com a fera eu não posso facilitar.

A narrativa acima corrobora o saber fazer do sujeito pescador e de quem

tem propriedade para falar do modo de pescar jacarés, pode acrescentar ainda a

característica do herói, aspecto muito presente nas narrativas orais, a coragem “o cara

disse tu tem muita coragem”, a bravura “ai eu disse não não ta vendo que eu não vou soltar

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o jacaré rapaz eu vim atrás de jacaré”, compreendemos então essa narrativa como uma

forma de saber e de representação do grupo social de pescadores, conhecedores dos rios,

dos bichos e também dos modos das feras “to lutando com a fera eu não posso facilitar” .

Queremos enfatizar aqui o espaço, percebe-se que o narrador é eloqüente e possui uma

relação íntima com o rio, este é provedor de alimentos, de trabalho e de mistérios, como

apregoa Amado( s/d, p.4) “os personagens vivenciam ações compondo um relato repleto

de aventuras e emoção”.

Note-se a riqueza de detalhes exposta no narrar, isto é mérito de quem viveu

a história, seria diferente ouvir daquele apenas que leu a história, é sabido portanto o

quão é importante reconhecer as práticas vivenciadas pelos sujeitos, o que nos remete ao

filme Narradores de Javé, a respeito da relação entre o fato narrado e o fato vivido, dois

olhares diferentes da narrativa, mas jamais, com proporção de superioridade entre eles.

Recorte 2

P- quando o senhor ia pescar assim nessas vezes teve alguma vez em que apareceu uma visagem alguma coisa assim dessas histórias?

N- toda vez quando eu mariscava jacaré tinha mariscava eu andava só nesses tempos eu e Deus nunca andava só ai eu arpoei um jacaré o arpão deu num pau andava com dois arpão ai eu fui tirar/pelejar pra tirar não tirou quebrou...quebrou o arpão ai eu fiquei pelejando ali pra ajeitar pra tirar ai eu vi uma canoa descendo era boquinha da noite ai acenei e ela subiu eu já tava ajeitando a ponta da lança né? ai ajeitei ali pequei o remo e vou já ver o que é ai sai atrás não vi mais banzeiro não vi mais nada sei que era uma pessoa na canoa mas bem ali mas não vi ninguém mais não sumiu

P- mas a canoa ia descendo?

N- ia descendo sai pra trás mas não vi debaixo tinha uma prainha assim eu foquei a lanterna mas fui lá mas eu nunca fui muito assombrado fui olha e não era nada não

P- mas o senhor não tinha medo não?

N – não medo mas não pra ficar assombrado

O recorte acima traz um aspecto recorrente nas histórias ribeirinhas,

assombração, visagem, aspectos que numa narração envolvente como a de cima,

prende atenção do ouvinte expectador, nos faz viajar junto com o narrador, sobre isso

Benjamim(1987) discorre sobre a relevância do narrador diante do enredo, a ponto

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de incrementar a magia da veracidade no ato de narrar. Novamente os aspectos de

coragem “pequei o remo e vou já ver o que é ai sai atrás não vi mais banzeiro não vi mais

nada” evidenciam-se neste recorte semelhante ao que acontece no 1. Ao falar sobre o

assunto de assombração o narrador de certa forma se despe para o pesquisador, expressa

seu lado de crenças e muito se expõe, seria natural se não quisesse contar sobre esse

assunto, pois muitas dúvidas assolariam, e se o pesquisador não crê em assombração?

Deste modo reconhece-se que trazer seu repertório de histórias de visagens “eu

mariscava jacaré tinha mariscava eu andava só nesses tempos eu e Deus nunca andava só ai

eu arpoei um jacaré o arpão deu num pau andava com dois arpões ai eu fui tirar/pelejar pra

tirar não tirou quebrou...quebrou o arpão ai eu fiquei pelejando ali pra ajeitar pra tirar ai eu

vi uma canoa descendo era boquinha da noite ai acenei e ela subiu”. Alguém estava na canoa

como o narrador afirma sei que era uma pessoa na canoa mas bem ali mas não vi ninguém mais

não sumiu. Outro fator presente nesse tipo de texto e muito expressado aqui é a presença

da oração, as rezas “eu andava só nesses tempos eu e Deus nunca andava”. As crenças,

a proteção divina é uma força que acompanha este narrador e imprescindível na sua

atividade profissional.

Recorte 3

P- e o senhor já viu onça? topou com alguma nessas suas caçadas?

N- já até matei

P- ah conta ai como foi quando o senhor matou a onça

N- matei a onça porque eu tinha dois cachorros não era quatro cachorros que tinha né? tinha dois ai o homem deixou mais dois lá o Alberto pegou ai nós trabalhava numa ilha e trabalhava na roça na roça mesmo do lote lá ai trabalhava na ilha que era pra plantar as melancias mandioca né? feijão as vezes nós fomos pra lá o Adalberto foi caçar capivara na beira do rio andava mais o filho so seu Sibil chegou lá nós já tinha ido e já tinha matado uma capivara e ficamos dando um tempo por ali e ele foi para uma grota e os cachorros acompanharam ele né? ai ele vinha baixando embora não encontrou nada veio embora ai os cachorros atravessaram lá para o outro lado para comer coisa lá na croeira da farinha né? ai chegaram lá ficaram pra lá a onça foi/ a onça foi e pegou dois cachorros dos que foram pra lá ai chegando em casa cadê os cachorros não apareceram ai eu disse eles foram lá pra ilha comer croeira lá dentro ai eu disse

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vocês vão lá meninos pra reparar se eles estão lá ai chegou um cachorrinho com isso aqui dele inchado assim essa parte ((apontando para a parte perto da orelha)) isso ai foi porção que porção? digo isso ai não foi porção não isso ai foi deixa eu olhar direito eu olhei tava o lugar das unhas certinho onde ela tinha batido furou né? eu disse isso ai foi onça menino e vão lá que os cachorros não estão mais lá não ai eles foram lá e os cachorro não estavam não ai ela pegou dois cachorros pegou um do Alberto e a cachorra que era do marceneiro um velho que tinha lá que a Sebastiana levou pra lá e deu u tapa nesse outro ai eu digo eu vou atrás e vamos atrás meninos e tinha mais dois cachorros ai eu chamei e fui ai o Alberto mais o Deusaniel disse eu vou também mais o senhor... e o Daniel então vambora e fomos... ai chegamos lá ficamos olhando andando por lá ai correram atrás de um bicho não sei o que era os cachorros eram besta ainda... ai não acoou ai eu disse eu vou dar uma volta naquele cerrado ali tinha uns cipós assim ai o cachorro entrou ali e ficou latindo latindo eu disse o cachorro ta vendo um negócio ali ai eu disse tu fica ai que eu vou reparar o que é pro Daniel e sai reparando ai vi aquele negócio no chão uma capivara né tava morta ai eu fui/ P- que ela tinha matado N- sim a onça tinha matado ai eu fui mas nem comeu que ela já tinha comido os cachorros né? comeu o cachorro e comeu os quartos da cachorra ai eu digo é uma capivara Daniel e eu vou matar essa onça que ela vem que ela bebeu só o sangue tu vai lá em casa/tu vai lá em casa e traz a rede que eu vou ficar aqui e vou dormir ai eu olhei ai eu subi cheguei lá fiz um buraco enfiei uns paus pra arquivar deixei lá e desci e disse tu vai lá em casa busca a minha rede e ele disse eu vou trazer a minha também então tu é quem sabe ai ele foi lá trouxe a comida né chegou umas quatro horas trouxe a comida tu fica aqui trepado se a onça vier tu atira nela que ela vai vim e ai vou comer fica ai quando eu chegar tu come ai ele disse não eu já comi então tá bom ai eu sai e ele ficou lá e ela não veio ai eu disse ela vem a boca da noite ai ele tava trepado lá comi e me trepei cheguei lá tá bom se ela vier eu vejo... ai quando deu por volta das sete horas quando ouvi aquele negócio assim eu disse isso não é onça não isso é uma galinha ai mascou quando chegou campeou ai eu disse é a onça ai foquei e vi ela né? ai atirei bem em riba da pá dela atirei ela deu aquele pulo e correu caiu eu tinha botado os cartuchos debaixo de uma blusa tinha levado por causa das capivaras/como é que é por causa das muriçoca e os cartuchos lá debaixo e eu meti a mão ai ela levantou e correu de novo ai quando eu atirei o menino acordou que tava dormindo já ele disse o que foi eu disse a onça já saiu mas não vamos atrás de noite não ela está viva e a bicha é valente mas ela andou assim pouco deu um pulo a caiu quando foi de manhã eu disse agora tu vai lá em casa e traz os cachorros pra ver se nós acha essa onça pra ver se ela ta viva ainda ai ele foi lá trouxe os cachorros Sebastiana veio também ai nós andamos andamos um pouquinho pertinho ela estava morta ai ele botou na costa era até macho ai pelejou pelejou o Daniel tinha força trouxe e botou na canoa ai nós viemos pra casa chegamos tava o:: me esqueço nome dele... o Zé dos Patos lá ai tiramos o couro ai ele disse eu compro o couro acho que vendi por quinhentos cruzeiros acho

A narrativa acima foi escolhida assim com as demais, devido apresentar fatores

que simbolicamente representam a cultura popular, inebria e externa a beleza do povo

que vive da natureza. O contexto situacional da narrativização contribui para atentarmos

o olhar a este modo de vida singular, a prática da caça, da pesca não era vista e muito

menos sentida como extermínio, mas como algo natural e de sobrevivência, bem

como de muito respeito para com a fauna. A mistura entre os espaços de roça “ai nós

trabalhava numa ilha e trabalhava na roça na roça mesmo do lote lá ai trabalhava na ilha que

era pra plantar as melancias mandioca né? feijão as vezes nós fomos pra lá” ora, era a roça,

ora era o rio, pelo narrar a impressão que se tem é que o narrador morava mais nesses

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lugares, rio, mata, a roça e como a conhece tão bem os rastros, a postura dos bichos,

“isso ai foi porção que porção? digo isso ai não foi porção não isso ai foi deixa eu olhar direito

eu olhei tava o lugar das unhas certinho onde ela tinha batido furou né? eu disse isso ai foi

onça”.

O grupo social a que pertence o nosso narrador é explicito: trabalhador rural,

pescador, conhecedor da mata, todavia para o pensamento urbano a matança de onça

pode significar a extinção e o processo de desmatamento, para o nosso narrador é

questão de sobrevivência, caçava para comer, sustentar a família, eis a lógica da vida do

campo, diferentemente da lógica capitalista que utiliza a fauna e a flora para o comércio

desenfreado. E o período histórico também apresenta a sua coerência, se caçava bastante

com o propósito de extrair da floresta o alimento, uma vez que naquela época este

existia em abundância, diferentemente dos dias atuais. Entender esse conceito de cultura

é uma das principais dificuldades na compreensão da lógica da vida social e a dinâmica

de sobrevivência e resistência de alguns povos, comunidades é incompreensível para

a ciência. Assim Brandão(2002, p.121) acrescenta “ de modo geral, as ciências tentam

explicar o social de forma funcional ou dialeticamente, com separações estratigráficas

ou oposições de determinação indevida entre seus subsistemas.”

O processo pelo qual os homens orientam e dão significado à suas ações, seja de

matar onça, ou rezar para chamar caça, manifesta-se por uma representação simbólica,

que é inerente a toda prática humana. Neste sentido, toda análise do expoente cultural, e

especial da cultura popular é processo permanente de reorganização das representações

na prática social, representações estas que são simultaneamente condição e produto de

uma ação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Assim entendemos que este trabalho contribui para pensarmos como a

dimensão de sentido e significado de toda a vida social e, portanto, da diferenciação

e da totalidade de seus processamentos, a cultura não contém o resultado cristalizado

da conduta; não é a sua possibilidade em termos de disposições de comportamentos

sociais, não se restringe a ser, parafraseando Brandão(2002), como vimos, a sua

representação, mas é, antes, a sua própria lógica, assim, aquilo que torna concretamente

possível a relação social.

Portanto a cultura não é produzida como uma superestrutura para estar em uma

região única da sociedade, o sótão de puro valor, mas antes, atravessa o campo de todas

as relações de reprodução material da vida e da ordem social e, desse modo, como o

significado que dá sentido à ação e a torna possível, é tão múltipla e dinâmica quanto

o são as inúmeras possibilidades de trocas entre os homens e a natureza, assim como a

dos homens entre si.

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