memórias da minha terra - iraquara - bahia · agradecimentos a organização desta coletânea de...

84
E Muitas Histórias Anos... Memórias da Minha Terra Iraquara 2012

Upload: trinhlien

Post on 27-Sep-2018

227 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

E Muitas Histórias

Anos...

Memórias da Minha

Terra

Iraq

uar

a 2

01

2

Se bem me lembro...

“ Todo amanhã se cria num ontem, através

de um hoje. Temos de saber o que fomos,

para saber o que seremos.”

Paulo Freire

Agradecimentos

A organização desta coletânea de memórias literárias não seria possível sem o

apoio e a colaboração de muita gente que faz parte da história de Iraquara, a quem

dirigimos nossos sinceros e estimados agradecimentos, por aceitar nosso convite e

permitir que adentrássemos em suas vidas de uma forma tão profunda, mexendo com

suas emoções e lembranças.

Sabemos que as lembranças evocam uma diversidade de sentimentos, trazendo ao

coração muitas experiências e emoções guardadas na memória. Nosso objetivo, assim, é

resgatar histórias de nossa acolhedora cidade, NOSSA Cidade das Grutas, muitas vezes

esquecidas pela ação do tempo, pois precisávamos brindar, com todos e todas as pessoas,

os cinquenta anos de Iraquara.

Queremos agradecer, ainda, a maneira como todos abraçaram este trabalho:

alunos, professores, coordenadores, diretores e, principalmente, os protagonistas desta

história – os entrevistados, que deram prova de seu amor incondicional por nossa cidade,

pequena no tamanho, mas repleta de pessoas que a amam.

Por fim, agradecemos a Prefeitura Municipal de Iraquara e a SEMEC, que muito

contribuíram para que pudéssemos colocar em circulação parte da história de Iraquara

para todos os cidadãos iraquarenses, entrelaçando as novas vidas com as heranças

deixadas pelas gerações anteriores, na perspectiva de perpetuar nossas memórias.

Equipe Técnica

Apresentação

A história de cada indivíduo traz em si a memória com base nas lembranças de

pessoas que, de fato, viveram esse tempo. Representa o resultado de um encontro, no qual as

experiências de uma geração anterior são evocadas e repassadas para outra, dando assim

continuidade à formação do grupo social ao qual pertence.

Preservar a memória local sempre foi um desafio para os educadores comprometidos

com a disseminação e construção do conhecimento histórico. Assim, a elaboração da

antologia Memórias da Minha Terra tem como objetivo colaborar com a disseminação e

construção da memória histórica da cidade. Pretende ainda contribuir para a melhoria do

ensino da leitura e da escrita, no município, pelo desenvolvimento de ações de formação

continuada para diretores, coordenadores e professores, pois defendemos ser possível fazer

da escrita na escola uma prática forte, interessante, que possibilite a todos os envolvidos na

arte de educar pensar mundos transformados pela força da palavra escrita.

Com esse trabalho buscamos conferir ao texto o prazer, sentido, alma e emoção,

possibilitados pela interação de educandos e educadores com a realidade em que vivem.

Assim, para escrever as memórias, os atores resgatam histórias, estreitam vínculos com a

comunidade e aprofundam o conhecimento sobre o seu lugar, sobre sua cultura.

Nesse processo, o escritor posiciona-se como um pesquisador que busca recuperar a

memória coletiva de sua cidade e, por meio do seu texto, possibilitar que os leitores possam

experimentar, através da escrita, as histórias e vivências de Iraquara.

Prefácio

Ler esta antologia de memórias é viajar por todos os corações do nosso povo, um

povo que tem imensa consideração por nossa terra. É se emocionar com cada história, suas

alegrias, aventuras, descobertas, lembranças, ora tristes, ora alegres, mas que marcaram

definitivamente o coração destas pessoas.

Neste passeio, a emoção aflora em cada história lida, ao percorrer as linhas de puro

sentimento, que nos transportam ao passado, reproduzindo as cenas e cenários que

constituem a identidade iraquarense. É impossível não se emocionar com muitas delas, pois

você terá oportunidade de vivenciar, através destas escritas, um pouco das experiências

compartilhadas, que restituem o diálogo entre passado e presente, tornando visíveis as

trajetórias de Iraquara. É uma leitura MARAVILHOSA!

Trilhar em cada uma dessas memórias é conhecer um pouco da vida e mergulhar em

muitos segredos guardados nas lembranças de cada um, que aos poucos são desvendados,

sentindo a cada linha escrita o doce e a delícia de valorizar um passado que faz parte de

nossas vidas, pois, sem ele, não há lembrança, não há povo, não há história.

Enfim, cabe recuperar a memória coletiva da nossa cidade, possibilitando que os

leitores “tragam para o coração” um passado que, mesmo não tendo sido vivido por

eles, foi decisivo para a construção de nossa identidade.

Simone Neves Pinto

Secretária de Educação

Sumário

A EDUCAÇÃO DE ONTEM E DE HOJE......................................................................... 08

TEMPOS INESQUECÍVEIS............................................................................................... 09

A FEIRA LIVRE: “UM LAZER PARA AQUELA ÉPOCA”........................................... 11

SACRÍFICIO X GRATIDÃO ............................................................................................. 13

UM SONHO REALIZADO................................................................................................. 15

MEUS SAUDOSOS ANOS SESSENTA!............................................................................ 17

UMA VIDA DE LUTAS E RECOMPENSAS.................................................................... 19

DA CANETA DE PENA AO COMPUTADOR.................................................................. 21

LEMBRANÇAS DE UMA PEQUENA............................................................................... 23

IRAQUARA NA VISÃO DE UMA PEQUENA ................................................................ 24

UMA VIDA ASSISTIDA DE LONGE................................................................................ 26

UMA MÃE DE MUITOS FILHOS..................................................................................... 27

PERCURSO DE UMA PEQUENINA CIDADE............................................................... 29

CENÁRIOS DE MINHA INFÂNCIA................................................................................. 30

NEM O TEMPO FOI CAPAZ DE ME FAZER ESQUECER......................................... 32

ÁGUA DE REGA: COMO TUDO COMEÇOU.............................................................. 34

BAILES INESQUECÍVEIS................................................................................................ 37

RETALHOS DE UMA VIDA............................................................................................... 39

UM TEMPO QUE NÃO VOLTA MAIS............................................................................ 41

MUDANÇAS QUE CHEGAM COM O TEMPO...............................................................42

PARTOS, QUANTAS MUDANÇAS! ................................................................................. 44

MINHA VENDINHA DE OUTRORA................................................................................ 46

O EXCEPCIONAL AUTOMÓVEL ................................................................................... 47

DA LATA D’ÁGUA A ÁGUA ENCANADA....................................................................... 48

LEVA E TRAZ: SONHOS E ESPERANÇAS....................................................................49

REMINISCÊNCIAS DE MENINO.................................................................................... 51

VIVÊNCIAS DE UM POLÍTICO APAIXONADO.......................................................... 52

UM ILUSTRE MORADOR DE CANA BRAVA............................................................... 54

FEIRAS QUE RECONTO................................................................................................... 55

A ALEGRIA DE UM PASSADO QUE NÃO PREVALECEU.......................................... 57

TEMPOS PARA RECORDAR............................................................................................ 59

CAATINGA DO POÇO....................................................................................................... 61

IRAQUARA, UM GRITO DE INDEPENDÊNCIA .......................................................... 63

LEMBRANÇAS DE UM TEMPO QUE SE FOI............................................................. 64

BONS TEMPOS QUE NÃO VOLTAM MAIS.................................................................. 65

VELHA INFÂNCIA............................................................................................................. 67

POR ENTRE BOMBAS DE COCO, TRAQUES E ROJÕES......................................... 68

UM PEQUENO DOUTOR EM HISTÓRIA...................................................................... 70

MINHAS LEMBRANÇAS... MINHA VIDA ..................................................................... 73

SAUDOSO POÇO DE MANOEL FÉLIX......................................................................... 74

TEMPOS DE MENINA........................................................................................................ 75

UM AMOR DE ESCOLA......................................................................................................76

AS TERRAS POR ONDE PASSEI...................................................................................... 77

TERNOS DE REIS............................................................................................................... 79

A EDUCAÇÃO DE ONTEM E DE HOJE

José Pedro Alves do Nascimento¹

¹ Coordenador pedagógico da Escola Rui Barbosa

“É com um aperto de saudade no peito que lembro dos meus tempos de escola.

Eu gostava de estudar. Frequentei escola municipal e particular. A derradeira em que

estudei tinha o nome Escola Municipal de Riachão. Gostava delas, principalmente pelos

momentos divertidos, como: “agrumento”, dar lição, receber notas e prêmios.

A gente estudava o dia inteiro. Até meio dia era de graça e à tarde os pais pagavam. Os

professores eram rígidos, se o aluno não prestasse atenção, se fizesse “se besta” recebia

reguadas. Já nas primeiras escolas batiam com palmatórias. Mas não cheguei a apanhar. Sorte

a minha!

Haviam brincadeiras, marchávamos e nos dias de missa fazíamos passeatas em Água de

Rega. Cantávamos nos sábados, dias em que tinham “agrumento” até meio dia. Assim, uns

cantavam a tabuada, e outros cantavam o “bê-á-bá” – ABC.

Tudo no tempo dos professores Moisés e seu Pedro Bispo era feito para ganhar nota.

Outra hora ganhava prêmio que valia quatro notas. A lição era feita por aluno, e valia uma

nota, ou seja, o estudante recebia uma fichinha de papel que na hora do “agrumento”, caso

errasse a resposta, poderia devolvê-la para não levar “bolo”. Mas se não entendesse o

assunto, podia perguntar que o professor explicava tudo sem problema. Agora, não usa dar

lição como antes! No entanto, os professores são mais estudados, sabem mais para dar

explicação.

Naquele tempo era duro! A gente tinha que estudar o dia todo, não tinha recreio, não

tinha carro escolar, ia caminhando, só vinha em casa almoçar, tomava banho, arrumava e de

tarde voltava para escola.

O estudo não era voltado para o mercado de trabalho, mesmo assim, os mestres

ensinavam História, Geografia, Ciências, Matemática, Português, Gramática e Civismo,

tendo como atividades mais comuns a cópia, o ditado e a conta com as quatro operações. As

contas eram grandes, como divisão com quatro letras (números)! Mas para muitos da

comunidade o objetivo era aprender ler e escrever cartas, como tio Félix dizia quando eu

estava no 4º ano: “Pra que mais menino? Pra que tanta leitura? Já está no 4º ano, pra que

mais?”

Os filhos, às vezes, perdiam de estudar para ajudar os pais nas roças. Quer dizer, faltava

oportunidade. Quando a pessoa formava podia saber que era para médico ou alguma coisa.

Hoje, todo mundo pode estudar e até formar em universidade. Tem merenda, transporte e

“facilidade”, mas muitos não querem estudar.

Texto produzido com base na entrevista com João Marques, 71 anos,

morador da comunidade de Riachão de Água de Rega - Iraquara-BA

TEMPOS INESQUECÍVEIS

Naqueles tempos, a gente morava no povoado denominado Varginha. Assim como

Lagoa Seca, era um arruado de poucas casas e não havia escola. Eu com meus poucos

anos de idade, em um abrir e fechar de olhos, da minha memória recordo-me com

saudade da primeira professora, D. Maninha. Não me lembro do seu nome completo,

mas, as idas e vindas para esta escola tão querida do Vira Mão, que ficava próximo da

Varginha, hoje município de Seabra , cidade esta em que nasci e fui criado , fazia com

que eu me interessasse pela escola.

E a partir daí, as lembranças que vem à minha cabeça parecem direcionar-me para

as experiências marcantes que vivi como aluno e das escolas que frequentei durante a

minha infância e que eu nunca mais consegui esquecer. Lembro-me como se fosse hoje,

nós saíamos da Varginha, onde morávamos, caminhávamos mais de um quilometro pelas

ruas de terra esburacadas, para ir à escola. Eu me sentia feliz. Ah! Como era maravilhoso

estudar!

Naquela época, a garotada brincava alegremente sem se preocupar com o sol

quente ou com a chuva que caia, estudava e trabalhava na roça também, para ajudar os

pais. Meu comportamento na escola era de dar orgulho. Esforçava- me para escrever e

ler bem. E foi por causa deste comportamento, que ganhei um inesquecível presente da

minha adorável professora, uma preciosa cartilha, “Cartilha na Roça”. Tinha o título com

letras grandes, páginas cheias de figuras, histórias de aventuras que chamavam a atenção

e o despertar para a leitura e pro meu desejo obscuro de aprender. Ah! Como era boa essa

cartilha! Com suas lições e gravuras maravilhosas, encantava-me completamente e com

a certeza de que o futuro era possível.

Assim, como tudo que é bom, dura pouco, a escola também não durava tanto e

quando as aulas terminavam era uma tristeza de dar dó! Não havia mais àquela magia e

acabava transformando em muitas situações difíceis para quem queria mais e mais e uma

delas estava no fato de sair ainda sem aprender muitas coisas. Como era difícil continuar

os estudos. Entretanto, lembro-me da minha mãe, do cheirinho que impregnava o ar com

aquele feijão, arroz e galinha caipira que só ela sabia fazer. Mesmo com tantos afazeres

domésticos, Dona Dalu, não media esforços para me ensinar as lições, o “ABC e a

junção das sílabas” com tamanha paciência e motivação.

Lá pelos idos, surgiu a Tia Guilhermina que tinha o dom de Deus de possuir uma

caligrafia bonita e tão desenhada que mais parecia uma obra de arte. Então pegamos uma

base melhor para escrever. Com ela, nós tínhamos uma missão a cumprir: Ler e escrever

corretamente manuscritos e cartas embaraçosas. Com estas tarefas escolares, sempre

vinha a sua observação: “Muito bom”, “Parabéns”, “Ótimo”. Isso me alegrava

profundamente e fazia com que eu me apaixonasse mais e mais pela escola.

Com o passar do tempo, saímos da Varginha para vir morar definitivamente em

Lagoa Seca. Passamos, então, a frequentar a escola de Dona Adelaide. Minha vida

escolar era um turbilhão de emoções.

Marinalva Alves Neves ¹

¹Coordendora Pedagógica da Escola Municipal Julião de Souza Braga

Recordo desta escola, simples, de enchimento, numa sala de residência, mas muito

acolhedora. Era situada nas margens da estrada, acima da rua de Val de Sinésio. Não é como

hoje que tem ônibus e vans para transportar alunos. Tínhamos que andar mais uma vez a pé,

porém, era com grande satisfação.

Ainda hoje, ao passar, vejo os torrões desta escola e da casa da professora e me faz

lembrar a vida escolar que tive, das alegrias de menino que corria velozmente pelo arruado,

das festivas e tão esperadas datas comemorativas, das diversas modalidades de hinos que

prazerosamente cantávamos ao som das nossas marchas pela estrada de terra, repleta de

poeira , no sol ardente ou na chuva fria. Todos marchando em fila até chegar à Praça

Sinésio Paulo de Oliveira, atualmente, povoado do Val. Ah! Tempo que não volta mais.

Se bem me lembro, um dos acontecimentos que também me marcou profundamente de

uma maneira sedutora foi um drama realizado entre os alunos nesta escola. Da forma como

essa saudosa professora nos ensinava as poesias, não era difícil decorá-las e repeti-las. Os

versos poéticos eram decorados e bem ensaiados para a apresentação com os pais e

moradores. Isso fazia com que os pais ficassem orgulhosos de seus filhos. Eu sentia o

coração pular de alegria ao perceber minha mãe na plateia e isso me trazia uma paz e

coragem para fazer a apresentação em público. E para alegrar a professora, toda dificuldade

era pouca. Quando ela me elogiava eu ficava com vergonha por fora, mas por dentro, não

me aguentava de tanta felicidade. Guardava tudo de cor sem esforços, e, tenho até hoje

gravado em minha memória os seguintes versos, “Baiana olhe para mim, tu és uma

tentação! Quantas ilusões aqui na cidade, lá no meu sertão é que eu tenho saudade!”

Como era bom ser aluno durante estas atividades e poder perceber os pais cheios de

orgulho, respeito e dedicação aos professores e aos seus filhos! Eu não acreditava que podia

existir coisa melhor além da nossa sala de aula. Mas hoje, só saudade...

Os valores daqueles idos, que minha memória tenta resgatar, comparados aos de hoje,

são totalmente diferentes. Construir uma família e educar não é fácil. Hoje, o aluno tem tudo

do bom e do melhor e poucos agradecem e reconhecem o que estão tendo. Queria eu que no

meu tempo existisse pelo menos metade dos benefícios que temos hoje e que naquela época

não existia. Mesmo assim, olhando para o que passou, constato que fui um bom aluno e

frequentador das aulas, com chuva ou com sol.

Talvez por conta da falta de escola e das condições financeiras, os professores daquela

época eram leigos, apenas possuíam o ensino fundamental. Hoje tem grande mudança para

melhor, tudo atualizou. Na parte dos professores principalmente, quem sonhava que nas

famílias pudesse ter filhos universitários? Eu me emociono quando vejo na minha família

um grande número de pedagogos. Isso é um grande avanço para a educação. Apesar da

saudade daqueles tempos, vejo com grande satisfação as mudanças desta cidade.

De repente, não sei por que eu ainda sinto meus olhos encherem de lágrimas e, mesmo

com tantas mudanças boas na educação iraquarense, enquanto vida eu tiver, vou sentir

saudades da minha vida escolar, das brincadeiras, das famílias reunidas, mesmo com toda

dificuldade daquela época. Não sei por que ainda vivo. Sei que, enquanto viver, as minhas

lembranças nunca irão se apagar.

Memória literária produzida com base na entrevista com Jaime Oliveira Belo,

71 anos, morador da comunidade de Lagoa Seca.

A FEIRA LIVRE: “UM LAZER PARA AQUELA ÉPOCA”

Serafina Ribeiro¹

Como era divertido ir a feira livre dessa singela cidade! Recordo-me com saudades de

muitos acontecimentos que a nossa pequenina cidade vivenciou. Fui um daqueles que teve a

oportunidade de fazer parte desses fatos e o privilegio de guardar na memória muitas das

cenas, que ao fechar os olhos ainda as vejo como se fosse hoje.

Lembro-me da Praça Manoel Teixeira Leite sem calçamento, com as casas de estruturas

antigas, as quais, ainda estão lá para confirmar o dito, nesta praça era realizada a feira livre

toda quinta-feira. Há mais de 60 anos atrás não era uma feira tão grande com a de hoje, eram

poucas barracas e tudo que era vendido não tinha separação, todos os produtos no mesmo

espaço, era uma verdadeira embolança. Pessoas tropeçavam nas “broacas”, nos feixes de

cana, nos cabos para as ferramentas, nas vassouras, sacos de farinha, feijão etc... e tudo isso

era exposto ao sol e chuva. Quando chovia era uma correria só para tampar as “broacas”,

cobrir com couro e esteiras os alimentos que não podiam molhar. Hoje, além de um grande

espaço coberto, temos um mercado de carne bem estruturado, muitas barracas protegidas com

modernas lonas de plástico, cada uma com seu tipo de mercadoria à escolha do freguês. Uma

variedade tão grande que a gente fica indeciso entre o que é essencial e aquilo que pode ficar

para o luxo.

Ah! Que saudades! Não me esqueço que quando era criança, eu, meu pai e meus irmãos

esperávamos chegar as quintas-feiras que eram super mal dormidas, aguardando na ansiedade

o primeiro cantar dos galos para levantar, arrumar e ir a feira vender nossos mantimentos.

Como todo barraquista, saíamos do Mato Preto muito cedo, no romper do dia, a pé, tocando

os animais de cargas com os produtos que iam ser comercializados. Íamos também comprar

as novidades que os comerciantes da cidade traziam de outros lugares para serem vendidos

aqui como, as panelas de ferro, os esmaltados, os tecidos, os cobertores trazidos do sertão e

não posso me esquecer das peças de cerâmic,a em seus mais variados estilos, vindos de

Macaúbas.

Os produtos vindos das roças como as verduras e as frutas eram vendidos por dúzia ou

unidades, a civilização desses alimentos por quilograma não existiam como hoje. Apenas a

farinha, a carne e o café eram vendidos no peso, a tapioca, o milho, o feijão o sal era

vendidos por volume “litro” ou o “prato”, que equivale a três litros, medidos em vasilhas de

madeira que eram padronizadas para todos os feirantes e conferidos sempre pelo fiscal e se

estas medidas não correspondessem com a medida padrão eram quebradas na praça tornando

constrangedor para o vendedor. As barracas eram todas no chão, apenas algumas eram sob

uma mesa, como a barraca de cafezinho e a barraca do pau da balança, na qual trabalhava o

fiscal da feira livre.

No centro da Praça Manoel Teixeira Leite ainda existe uma roda de cimento que há

muitos anos pesavam as arrobas de carnes e toucinho que eram trazidos para vender na feira.

Neste mesmo lugar eram aferidas as medidas e cobrados os impostos de cada barraquista, as

carnes e toucinhos que sobravam das arrobas, os chamados contra- peso eram dados ao fiscal

da feira, que ficava muito contente com a oferta.

¹ Coordendora Pedagógica da Escola Municipal Pequeno Sabidinho.

O transporte desses feirantes (compradores e vendedores) era o animal, que servia para

muitos virem montados e/ou levar suas despesas. Naquele tempo, nem as carroças eram

comuns por aqui e quando tinha um com um poder aquisitivo maior, transportava seus

familiares e suas compras num carro de boi. No lugar destes rústicos transportes,

convivemos hoje com os vários carros e motos a perder de vista que lotam as ruas da nossa

evoluída cidade.

Os alimentos como o feijão e outros eram comprados a granel. Não existiam

embalagens como existem agora. O solo era menos poluído, portanto as mulheres mais

cuidadosas da época faziam um jogo de saco de Valença bordado para cada tipo de alimento,

que os maridos usavam para comprar os mantimentos na feira. As mulheres quase não

vinham à feira, pois ficavam em casa cuidando dos filhos e da casa, cozinhando para seus

esposos, que, como recompensa levavam o bolo sovado, chamado de pão doce, e o pão

gigante de sal. Hoje, é tudo bem diferente, a mulherada vai a feira, compra roupa, sapato e

ajuda o marido a fazer a feira, quando não é ela mesma a responsável pela feira e sustento

da família.

A feira era muito animada! Curioso que, ao mesmo tempo em que era desordenada em

alguns pontos, era muito organizada em outros. Por exemplo, na época os meios de

transporte (animais) dos feirantes recebiam um certo cuidado, bem diferente da falta de

cuidado com os veículos hoje. Há uns cinquenta anos atrás existia o curral do conselho,

onde todos os feirantes podiam deixar seu animal em segurança, o qual ficava na

responsabilidade do filho do fiscal da feira. Para colocar esses animais neste espaço, o dono

precisava pagar uma taxa ao fiscal ou apresentar o talão de impostos confirmando o

pagamento.

Fica aqui, guardadas para sempre as minhas saudosas recordações que naquele tempo

tudo era muito bom e cheio de novidades! Para nós moradores dos lugarejos desse

município tudo que aparecia era novidade, dia de feira, então, era dia de alegria e de

muitas expectativas que no começo da semana já tomava conta do corpo, e no inicio do

amanhecer das quintas-feiras era um reboliço, era animais de cargas, as prosas dos

feirantes que seguiam estrada a fora contando causos de livusias (fantasmas) , os latidos dos

cachorros ao ouvir o trote dos animais. A animação eram sem tamanho para todos nós que

vínhamos a caminho do Poço de Manoel Felix para vender ou comprar o necessário de

acordo com a condição de cada um. A feira era o lugar que vínhamos também para divertir,

passear, reencontrar os amigos, paquerar e arrumar até casamento. Quanta saudade...

Texto produzido com base na entrevista com o Srº Domingos

Ferreira de Menezes, 65 anos, professor aposentado.

Lilian Teles¹

Lembro-me com saudade de quando nasci e de momentos inesquecíveis que tive em

minha infância. Nasci na comunidade de Zabelê II, município de Iraquara, lugar pequeno e

aconchegante. Lá vivi com meus pais toda a minha infância. Viver naquela época era muito

difícil, porque a condição financeira das pessoas era precária e a da minha família não era

diferente das demais. Meu pai trabalhava na roça para sustentar minha mãe e meus irmãos.

O pior é que ele não tinha roça, trabalhava para os outros e ganhava uma mixaria, o que mal

dava para vivermos. Para comer tínhamos que nos contentar com o que meu pai

conseguisse comprar com os seus míseros trocados. Não tinha essa de ficar escolhendo

prato: “disso eu não gosto; isso eu não quero”. Tínhamos que comer o que tivesse. Ou

comia ou ficava com fome.

Ainda me lembro do período em que ia à escola. Naquela época, as pessoas davam

pouca importância para o estudo, talvez por não haver pessoas preparadas para o cargo de

professor. Professor era raro, e quando aparecia algum, era particular. Então, as crianças,

cujos pais não tinham uma boa condição financeira ou não se importavam, ficavam sem

estudar. Mas graças a Deus, meu pai foi uma exceção! Ele, por ser um homem humilde,

bondoso, dedicado e muito preocupado com a educação dos filhos, mesmo com dificuldade,

pagou uma escola para mim e meus irmãos. Estudar na minha época, tinha apenas um

objetivo: aprender a fazer o nome, a ler e escrever. Isso porque não tínhamos outro meio de

comunicação além da carta, que demorava vários dias para chegar ao destino. Hoje, a

notícia chega é na hora, podemos até ver a pessoa que está distante, do outro lado do mundo.

São tantas mudanças que até causa assombro na gente! Naquele tempo quem soubesse ler e

escrever uma carta era uma pessoa muito requisitada, respeitada e feliz.

Recordo-me com saudades do meu primeiro livro. Sinto como se estivesse com ele nas

mãos... Tinha uma capa marrom e o nome do autor em destaque “Erasmo Braga”. As

gravuras eram poucas, mas mesmo assim, era um valioso tesouro para nós, pois era com ele

que o professor Ezequiel Pacheco tomava nossa lição e nos ensinava a ler e escrever. Eu

estudava de segunda a sábado. Nossa! Quanto sacrifício! Pensou que o sacrifício fosse

estudar? Não! O problema é que antes de sair de casa tomávamos apenas café, como o povo

gosta de dizer: tomávamos “café com língua” e assim ficávamos das oito ao meio dia sem

merendar, porque os pais mal conseguiam pagar o professor.

Ah! Como a vida mudou com o passar dos anos! Hoje, vejo a molecada indo para a

escola de ônibus, tendo merenda, livro e professor, sem pagar um tostão!

Guardo ainda nas minhas lembranças como era engraçada a licença. O professor

pregava na parede uma pequena tábua que recebia o nome de tabuleta, escrita dos dois

lados: de um lado a letra S, que significava sair e do outro lado a letra E, que significava

entrar. Sempre que uma criança fosse à licença tinha que virar a tábua com a letra S para que

os colegas soubessem que tinha alguém lá fora e não podia demorar.

¹Coordendora Pedagógica da Escola Municipal Altino Rodrigues.

SACRÍFICIO X GRATIDÃO

Havia até um castigo para quem ficasse enrolando, demorando a voltar (e eu que

gostava de sair da sala com frequência quando estava frio para ficar um pouquinho no sol).

A turma não queria nem saber do castigo, pois era muito humilhante, era cruel mesmo.

Talvez vocês não saibam, mas na época todos usavam um chapéu, aquele que aprontava,

desobedecia ao professor, ou ficava enrolando na licença era condenado a usar os chapéus

de todos os colegas ao mesmo tempo e para completar tinha que ficar em frente à porta para

que as pessoas que por acaso passassem por ali, soubessem que aquele aluno estava de

castigo. Quanta crueldade!

Hoje, recordo com orgulho e com saudade do meu pai, que mesmo com muita

dificuldade não deixou nenhum filho sem estudar, pois percebia a importância do estudo na

vida de um cidadão. Ele, naquela época, sabia e reconhecia o valor da educação, diferente

de alguns pais de hoje que se preocupam apenas com o dinheiro oferecido pelo governo,

sem se dar conta do quanto é valioso o estudo. Meu pai, com muito sacrifício, nos ofereceu

estudo. Graças ao seu esforço, hoje sei ler e escrever. Não posso esquecer o único registro

deixado por ele, que não sabia ler, mas conseguia escrever algumas palavras. Ainda guardo-

o com muito carinho. Ele deixou no seu livro de oração a escrita do meu nome e a data em

que eu nasci. Meu primeiro documento!

Baseado na entrevista com D. Maria Pequena

UM SONHO REALIZADO

Cristiane Oliveira dos Anjos¹

Sinto muita emoção ao lembrar dos meus cinco anos quando comecei a conhecer as

primeiras letras junto com meus irmãos em casa. Naquela época, não era fácil estudar. Aos

sete anos, ausentei-me do aconchego da minha família, indo estudar em uma comunidade no

município de Seabra, hoje conhecida popularmente como Carne Assada. Todos os dias era

aquela saudade: da minha casa, de meus irmãos, das brincadeiras de final de tarde, a

conversa com minha mãe... mas, tinha que continuar... este era o preço que teria de pagar

para realizar meu grande sonho de ser professora. Naquela pequena comunidade, conheci

uma pessoa brilhante que mais tarde iria ser minha primeira professora, com o seu jeito doce

e cativante, sempre carinhosa com todos, a inesquecível Otília Brandão.

Tempos mais tarde, com o coração em profunda alegria, voltei para estudar no meu

amado município. No meu primeiro dia de aula foi aquela emoção, queria muito chegar à

casa da professora, pois lá seria a minha tão esperada sala de aula. Ao entrar, foi muito

emocionante, avistei uma varanda enorme, linda... com um piso de lajota. O quintal era uma

maravilha, um espaço bastante amplo. Lembro-me com satisfação e saudade das

brincadeiras na hora do recreio, lá sentia-me em casa.

Na minha longa trajetória de estudante, recordo com satisfação dos professores

maravilhosos que marcaram minha singela vida: professor Edivaldo Neris, o qual me

inspirei para ser a profissional que sou hoje e Auristela Socorro Andrade, mestre e amiga.

Meus olhos lacrimejam ao lembrar de suas orientações, de seu carinho, de sua atenção e de

seu incentivo ao me aconselhar: “Nunca desista de seu sonho, vá sempre em busca dele,

você é capaz”.

Naqueles tempos, tudo era diferente e emocionante! Lembro-me com gratidão da

Escola Julião de Souza Braga, na comunidade de Lagoa Seca. Como são boas as minhas

lembranças dos professores, dos colegas... lá brincávamos de jogo de base, de jeribita com

pedrinhas, o jogo de peteca, de cantigas de roda, de amarelinhas e uma inesquecível e

grandiosa atividade lúdica, chamada de perfil: uma produção textual, na qual teríamos de

descrever as características de um colega. Esta mesma produção era socializada sempre na

sexta-feira, em um espaço amplo, ficávamos em círculo formando uma roda de leitura,

onde, com muita dedicação e prazer, líamos as nossas produções, com emoção e também

com um quê de mistério, teríamos de falar as características contrárias ao que foi escrito

escolhendo em seguida um colega para adivinhar quem era o “perfilado”. Se não acertasse,

pagaria prenda. Tudo era muito divertido e gratificante, aprendíamos brincando. Como eram

boas e inocentes nossas brincadeiras.

Guardo lembranças de uma difícil época, em que os professores contavam apenas com

um quadro de giz e uma palmatória sobre uma mesa. Era com estes simples

materiais que buscavam ministrar suas aulas. Lembro-me dos materiais dos alunos,

naqueles tempos eram basicamente lápis comum e de cor, um pequeno caderno e livros

¹ Coordendora Pedagógica da Escola Municipal Artemizia Rodrigues Nogueira.

Didáticos! Isso quando os pais faziam alguns esforços para comprar o material dos filhos,

pois eles eram muito caros. Não posso esquecer-me do ABC, da Cartilha do Povo e dos

livros Infância Brasileira, de Olga Pereira Mettig que, afinal, eram muito bons. Suas

ilustrações... ah, que tristeza! Tudo era sem graça, em preto e branco. Nos dias atuais, as

coisas mudaram, as escolas estão amplas, com salas para todas as séries, alunos se deliciam

com computadores, televisão, vídeo, quadro branco, em fim, tudo para uma ótima

aprendizagem.

Se bem me lembro... tempos atrás, os professores e alunos tinham um convívio

diferente e difícil. Alunos passivos, ouvintes atentos, submissos... que doloroso! E os

professores: autoritários, detentores do saber, a voz da verdade... Do meu tempo de infância

até os dias de hoje, muita coisa mudou, pois tornou-se necessário acompanhar os

conhecimentos tecnológicos e a globalização. Contudo, na educação não poderia ser

diferente. Antes, permitia-se que professores leigos ensinassem uma grande quantidade de

alunos. Nos dias atuais, só se tiver nível superior ou a caminho de conclusão.

Nesta longa trajetória de vida, já me deparei com muitas coisas, ora boas ora ruins,

que se tornaram marcos em minha vida. E, aqui, neste dia tão importante, gostaria que todos

os alunos tivessem interesse para uma nova aprendizagem, como eu tive, que tenham sonhos

e lutem por eles, com toda dedicação necessária para realizá-los. Como professora peço, a

meus caros colegas que ensinem por amor e não por falta de opção e, desta forma, com

certeza tudo que fizerem será bem feito e terá sucesso.

Texto escrito com base na entrevista com Maria Áurea de Oliveira,

56 anos, nascida na comunidade de Lagoa Seca neste município.

MEUS SAUDOSOS ANOS SESSENTA!

Claudia Fernandes Rocha¹

Não foi difícil cair nas graças das lembranças de Maria Ribeiro. Com aquele jeito

tranquilo, especial como quem vai montando uma sequência de cenas em nosso pensamento.

Ela foi logo relatando a época dos seus catorze anos, ainda meio menina e meio moça

quando o prefeito da época o Sr Walter de Azeredo Coutinho foi ao encontro do seu pai em

uma manhã ensolarada na roça de mamona, para pedir que ela fosse lecionar na escola da

comunidade da Quixaba.

“Foi nesse lugarejo pintado por matizes e contrastes: pobreza, belezas rústicas e

sonhos esfumaçados nos olhos de jabuticaba da maioria dos alunos que ela pôde ensinar e

aprender, aprender e ensinar.

É partir dessas lembranças que vem a tona os saudosos anos sessenta, época

inesquecível quando comecei o oficio de ser professora.

“No começo deu um misto de alegria e ao mesmo tempo aquele friozinho de medo,

pois era algo novo. Naquela época, a escola era apenas duas salas, uma sala de aula e uma

sala pequena que era para o professor morar. A sala era sombria, paredes sem vida, um

quadro esburacado cor de folha de palmeira, os alunos levavam bancos de casa ou a

comunidade emprestava. Material didático? Isso nem se fala! Era relíquia! Lembro me

muito bem das folhas ou cadernos que eram usados pelos irmãos mais velhos e meus alunos

levavam para fazer a lição na escola. Hoje, a escola tem muito material para estudar,

atividade xerocada, livros e cadernos de todos os formatos e tamanhos que ajuda a garotada

aprender ler e escrever.

Recordo-me ainda que para o aluno entrar na escola bastava apenas uma conversa com

a professora e anotava o nome do aluno em um caderno com folhas amareladas devido o

tempo, e pronto! Estava matriculado. Tinha alunos de todos os tamanhos, ou seja, desde

alfabetizando a séries mais adiantadas a sala era abarrotada com mais ou menos 65 a 70

alunos todos enfileirados em cadeiras ou bancos. Eram 8 horas de aula diária momentos que

eram alternados por prazer e inquietação. Prazer pela alegria que via nos olhos dos

estudantes que tinham sede de aprender o ABC e inquietação misturada com medo pela falta

de experiência de uma professora iniciante.

Guardo com alegria as lembranças de quando explicava aos meus soldados do saber,

que o sol é uma estrela de quinta grandeza e a lua é um satélite. Surpreendentemente,

aprendi com uma garotinha magricela e cabelos decorados com tiras de pano coloridas o

seguinte provérbio: Círculo longe da lua, chuva perto, círculo perto, chuva longe. Lembro-

me ainda quando cantava para os meus alunos: “Mariana conta um, um conta Mariana. É

um, é dois, é um, é Ana. Viva Mariana! Viva Mariana”! (...) mas meus encantadores alunos

me provavam que sabiam contar as mangas e as espigas de milho quando ajudavam os pais

na labuta diária.”

¹Coordendora Pedagógica da Escola Municipal Nilda Maria Carvalho.

A escola mudou bastante. Hoje oferece uma educação de qualidade e parceria. Os

professores são preparados para o ensino e não ficam mais sozinhos, no meio do nada, como

outrora fiquei.

Diante dessa incrível experiência, em um lugarzinho aparentemente no meio do nada,

sem sabor de chocolate e carente de muitas coisas, aprendi a maior lição da minha vida.

“ensinar é como a feitura de uma cesta de vime ou um chapéu de palha. Os cipós do

conhecimento devem ser delicadamente bem entrelaçados, com paciência habilidade e

acima de tudo amor por parte do artesão.”

Texto escrito com base na entrevista com

a Professora Maria Ribeiro.

UMA VIDA DE LUTAS E RECOMPENSAS

Célia Maria de Souza¹

Tarde fagueira, sol se pondo no horizonte, e eu ali sentada na varanda, olhos e ouvidos

atentos para o que ele me contava... Em seu semblante, o sorriso de alegria ao perceber a

minha total entrega aos seus causos e casos. Nada mais sublime do que perceber a alegria

daquele contador de histórias, meu avô... Só ele conta e encanta.

Em sua sabedoria de contador de histórias ele contou-me causos que não tenho o

direito de guardá-los só pra mim. Assim, nesse momento, peço emprestada sua memória e

ofereço minha “voz” para revelá-la.

“Cinquenta anos atrás... Meu filho mais velho, ainda menino, e eu carregávamos nosso

jegue e íamos pra Iraquara vender manga e laranja. A vida era dura, a gente ia de jegue,

porque não tinha estrada de automóvel. Ao chegar em casa à noite, o pequeno quase não

dormia gemendo com dor nas pernas de tanto andar atrás do animal.

Estrada não havia, era apenas um „carreiro‟... Água, então! Tinha que buscar na

cabeça. Eram três ou quatro caminhos pra passar o dia. Quem tinha animal, ia de animal,

quem não tinha, era lata d‟água na cabeça mesmo. Eu via aquele povo naquele sofrimento e

dizia pra mim mesmo: “um dia encano água pra esse povo”. Então quando Iraquara teve seu

primeiro prefeito comecei a lutar por esse fim. Conversava aqui, ajeitava ali e falei na

comunidade:

- Nós vamos ter água encanada, pode escrever. Alguns descrentes comentavam:

- No dia que tiver água encanada aqui na Zabelê, eu compro escova e pasta pra escovar

os dentes de minhas galinhas.

Há anos temos água encanada, e aquelas galinhas continuam sem dentes. Mas

deixemos de lengalenga e voltemos à narrativa. Depois de muita luta, olha o sonho se

realizando. Primeiro abrimos uma estrada, essa mesma que passamos hoje em direção a

Seabra, em seguida veio a água. No dia que a danada chegou, abri um cano e a vi descer em

cachoeira como se fosse uma cascata de diamantes, e o povo sem acreditar naquele milagre

da vida... Foi um dia inesquecível e inacreditável, o povo me agradecia e me carregava no

colo e ela lá... Limpa e doce chegando aos canos de nossas casas, nossas mulheres não

precisariam mais levantar as quatro da matina para ir à fonte, enfrentando cachorros, bois e

até assombrações de outro mundo.

A vida não é vida, se não corremos atrás de nossos sonhos, e eu sempre busquei

melhorar a vida de todos da minha comunidade. Por isso, após ter conquistado a benção da

água encanada pensei: “As crianças precisam estudar”. Comecei uma nova luta, junto ao

prefeito de Iraquara. – Quero uma professora para ensinar a molecada da Zabelê. Não

desisti, e depois de muito pelejar, consegui com apoio do prefeito trazer uma professora para

ensinar as crianças deste lugar. Mas queria mais, eu não queria somente uma professora,

queria uma escola. Um lugar onde as crianças pudessem aprender, pois para mim não existe

nada mais importante que a educação. E foi depois de muita correria que vi mais um sonho

¹Coordendora Pedagógica da Escola Municipal Arthur Da Costa e Silva.

realizado. A escola Hostílio José de Souza, nome em minha homenagem, foi inaugurada em

nossa pequena comunidade. Meu Deus, que orgulho! que alegria!... Não há palavras que

cabe o tamanho da emoção deste dia.

Durante muito tempo observei com satisfação os meus sobrinhos, netos estudando ali

naquela sonhada escola e se preparando para um futuro mais digno. Hoje, passo por aquele

prédio, o vejo largado, deteriorando com o tempo e sinto um aperto no coração a imaginar

que os esforços de muitos anos estão sendo desgastados e esquecidos: - Estão querendo

reformar e mudar o nome para sede da associação de Zabelê e tirar meu nome, mas em

minhas lembranças ficará para sempre que “foi naquela escolinha que meus netos, hoje

professores, coordenadores, fisioterapeuta deram os primeiros passos rumo à

educação”.Dou muito valor á educação. Fui professor por um curto período de tempo e sei o

quanto é importante ensinar e aprender.

Hoje, passo horas aqui nessa varanda, sentado nesse “coxo” e me perco a imaginar no

quanto batalhei por esse lugar. Lembro-me de como eram difíceis as coisas, mas dávamos

muito mais valor. Hoje tem escola, transporte, água, luz, igreja, graças ao nosso pai do Céu e

fico satisfeito por ter contribuído para a melhoria do meu lugar, e mais satisfeito ainda

quando olho meus filhos, netos e bisnetos e vejo que são pessoas do bem, honestos e

solidários como eu sempre fui. Já estou um pouco velho e continuo apaixonado por

histórias, quando não posso contar as minhas, fico horas a viajar nos livros de ficção que

meus filhos e netos sempre trazem pra mim, pois sabem eles, que uma boa leitura é um

alimento para a alma. ”

Texto produzido com base nos relatos de memória de seu avô

Hostílio José de Souza, morador da comunidade de Zabelê

DA CANETA DE PENA AO COMPUTADOR

Leni Maria Pereira¹

O meu final de semana foi muito interessante. Conversei com alguém muito especial,

a minha primeira professora. Comecei a constatar como foi difícil o seu processo de

escolaridade, pois pude perceber que não teve a oportunidade de estudar em instituições

como temos hoje. Escola bem estruturada, aulas com data show, leitura de contos de fadas,

ambiente acolhedor, infocentro, grama verdinha...

“Como foi difícil estudar em uma escola que nada oferecia de conforto! Lembro-me

que precisávamos ficar amontoados em uma sala da casa humilde do professor. Não tinha

piso, tampouco banheiro. As necessidades fisiológicas eram feitas atrás das moitas. Era o

maior alvoroço.

Considerava-me privilegiada por estudar numa escola particular, pelo menos era

assim que eu pensava. Aprendi a ler e escrever por meio de caneta de pena e cartilhas

produzidas a mão, pois não tínhamos esferográficas e muito menos livros didáticos e

literários, mas estudávamos o dia todo. Lembro-me bem das primeiras lições da escola! Um

bando de papagaios repetindo o bê-á-bá. Começávamos pelas palavras de uma sílaba, para

identificar a monossílaba, depois para duas sílabas, e assim por diante. Estas eram as

chamadas cartas de nome.

Recordo-me, com tristeza, daqueles momentos de passar a lição. Ainda, hoje, estão

gravados em minha memória. Era um verdadeiro terror! O professor iniciava a aula fazendo

uma pergunta, caso o aluno não soubesse iria passando para o outro. Se chegasse nele

novamente, apanhávamos por não sabermos responder com precisão “os argumentos” que

aquele professor ranzinza almejava. Toda turma era punida. Batia-nos com a palmatória. O

“bolo” era dado com tanta força que a mão ficava toda marcada. Tristes crianças de mãos

doloridas, castigadas por não conseguir decorar e recitar a lição.

O tradicionalismo reinava naquela época. Os estudantes que entravam na escola só

continuavam quando aprendiam com facilidade. A maioria desistia e acabava indo ajudar os

pais em seu ofício diário: lavoura, engenho, casa de farinha... Era assim que ajudávamos no

sustento da família.

Hoje, o avanço na educação tem se mostrado tamanho, como um fermento na massa.

Quem de nós, naquela época, ouvia falar em faculdade, computadores, internet?

Atualmente, a maioria dos professores do município de Iraquara já cursou uma faculdade,

podem ensinar por meio de recursos tecnológicos. Nossos pais e avós? Coitados! Cresceram

e morreram analfabetos. Que geração sofrida!

Poucos conseguiam continuar os estudos. Ao concluir o 2º grau, já se consideravam

formados. Para demonstrar os conhecimentos adquiridos, muitos eram testados, tinham por

obrigação saber “tudo”, principalmente se estavam pensando em seguir uma profissão.

Com a passagem dos belos anos, surgiu o concurso público para professores. Logo depois,

olha que surpresa! Apareceu o Projeto Chapada para continuar formando professores e, pelo

o que se vê e se comenta, parece ser muito bom.

Se na década de sessenta só existia uma simples escolinha com quatro paredes nas

¹Coordendora Pedagógica da Escola Municipal Anísio de Souza Marques.

comunidades do município de Iraquara, hoje existem escolas tão belas que desejo até voltar

a ser estudante, pois se encontram nelas professores capacitados para melhor ensinar, diretor

escolar, coordenador pedagógico, secretários, faxineiras, merendeiras e até segurança. Além

disso, temos biblioteca, computador com internet e tantas outras tecnologias. É um outro

mundo.

Naquele tempo, não tínhamos banheiro, água tratada, merenda escolar, canetas

esferográficas... Nem sequer sonhávamos com computador, biblioteca, sala de recurso

multifuncional, jardins para alegrar o ambiente. Hoje, tudo isso é uma grande glória!”

Memória produzida com base em uma entrevista realizada com sua primeira professora,

hoje aposentada, dona Nirací Neves de Oliveira, 69 anos.

LEMBRANÇAS DE UMA PEQUENAEliene Abreu¹

Retornar aos tempos de infância é dar sentido ao incompreendido no momento vivido. Para

mim o silêncio era minha melhor companhia. Enquanto minhas duas irmãs ganhavam os quintais, os

rios, as roças... contentava-me em isolar dentro de casa. No meu mundo não tinha nada fantástico,

não havia espaço para brincadeiras de criança, gostava mesmo era de ouvir as conversas de minha

mãe e vizinhos.

Vivíamos naquela época num período de muita seca. A chuva demorava a cair, as roças não

produziam e muitas famílias viviam de ajuda dos mais favorecidos. No período de dificuldade era o

assunto do momento, perdia horas ouvindo as lamentações dos vizinhos. Na inocência de criança, me

orgulhava por ter comida em minha casa, mas ao mesmo tempo percebia as dores e sofrimentos a

minha volta. Eram pessoas queridas como vizinhos, parentes, além de outras da comunidade. Mas,

para a minha família era diferente.

Não éramos considerados pobres, pois meu pai era tropeiro. Carregava mantimentos no lombo

de burros para abastecer o comercio local, como os caminhões cargueiros que hoje abastecem os

supermercados das cidades. Mesmo tendo em casa o feijão, rapadura, a farinha, o meu coração

angustiado sentia uma grande necessidade: a de compreender porque nem todas as pessoas do meu

lugar poderiam comer as mesmas comidas, vestir as mesmas roupas, calçar os mesmo sapatos. Era

um sentimento de aflição o qual não sabia, expressar, compartilhar, não sabia ajudar.

Ah, como sofriam as pessoas daquela época! A nossa pequena comunidade era regida

praticamente por duas famílias: a família Mariano e a família Munduruca, donas de muitas terras. O

povo, humilde e trabalhador, “derramava” seu suor por poucas moedas de centavos para garantir os

mantimentos necessários, os quais não poderiam faltar. Os mais necessários mesmos! Era o

querosene, o toucinho, a rapadura, a farinha.

Recordo-me que um dia, em meio a um sol escaldante, acompanhei meu pai à feira da

comunidade e ali diante dos seus olhos um homem se desaba ao chão. A multidão se aproxima com

água adoçada a rapadura, na tentativa daquele corpo magro, se levantar e reunir forças para continuar

sua batalha. Foi impressionante para mim. Fiquei imóvel, de olhos arregalados. Meu pai, com seu

jeitinho doce e sereno leu em minha face o quão espantoso foi para mim. Na tentativa de me acalmar

disse que bastava ele comer um pouco e logo ficaria bem. Não poderia imaginar que a fome pudesse

causar um desmaio, quase uma morte. Do meu jeito me importava com o sofrimento alheio, e

também vivenciei diversos momentos de privacidades.

Era uma época seca, com um longo período de estiagem, os rios secaram. Não havia água para

os animais viajarem a longa distancia para todos os lugares costumados: Irecê, Torrinha, Barra da

Estiva... Então minha família passou a sobreviver de mantimentos armazenados pelo meu avô

materno, pequeno produtor. Na hora do almoço, a comida era tão racionada que não tinha como

dividir para todos. Em uma gamela, meus irmãos e eu devorávamos aquela pequena porção: pirão de

costela de boi. Durante o dia e antes do jantar o único alimento era escaldado de chá feito com

capim-santo adoçado com rapadura. Era uma delícia! Uma festa! Como os alimentos se tornavam

valiosos e gostosos quando não se tinha outra coisa para comer!

E hoje, os tempos são outros, as comidas são outras, os valores e sabores, também são outros...

Mesmo com a seca que aí está, não falta a comida na mesa.

Texto baseado na lembranças de Judite da Costa Silva, 60 anos,

Vila de Iraporanga –Iraquara-Ba

¹Coordendora Pedagógica do Grupo Escolar Odilon Torres e da Escola Jandira Pinheiro.

IRAQUARA NA VISÃO DE UMA PEQUENA

Célia Emília¹

Por um instante olho em direção à pracinha principal da cidade, e como uma luz que

ilumina qualquer relance de memória, brota as mais lindas e inesquecíveis lembranças.

Recordo a pracinha linda, toda calçada com pedras lisas, bem esculpidas, brilhantes ao sol e

tão mais brilhantes em dias de chuva. Para aumentar ainda mais o meu fascínio e certamente

o de qualquer pessoa da época, essa maravilha toda subia forrando o chão em direção às

ruazinhas principais (rua das palmeiras e sete de setembro). Ainda ouço os ruídos do meu

tamanquinho vermelho, que ganhei de presente do meu padrinho Silvalino, quando

completei sete anos de idade. Zoava barulhento, estralando, cocando, gritando

gigantescamente naquelas pedras maravilhosas que me fascinava. Quase sempre, subia e

descia, desfilando junto com um bando de coleguinhas no momento do recreio da escola.

Indo em direção à casa do senhor Pacífico para comprar os geladinhos de dona Morena e os

doces deliciosos de Dona Tinuca ou ainda, as balas coloridas na venda de dona Antônia de

Pedro Canela. Ah, minha pracinha querida! Quantas lembranças! Dá uma sensação de

tristeza tão profunda quando vejo hoje os melhores eventos sendo feitos tão longe de sua

magnitude!

Mágico também é quando relembro daquelas casas lindas que despertavam tanto

desejos e curiosidades aos visitantes, todas abraçadas umas às outras reverenciando a bela

pracinha. Generosas nas mais diferentes formas, cheias de janelas fornidas, pintada de azul

ou verde, com portas grossas e batentes largos. A gente, sem cerimônia nenhuma, batia

disfarçadamente nas portas daquelas que eram escolhidas a dedo, pedindo água sem sede

alguma, com interesse somente de entrar pelos corredores sem fim indo em direção às

cozinhas. Entretanto, assim como quem não quer nada, dava uma espiadinha nas frutas dos

quintais, e se desse um jeitinho saía com alguma delas escondida na capanga a tiracolo, para

depois, lá adiante fazer figa às coleguinhas no caminho de volta pra casa.

As brincadeiras nas gangorras improvisadas, feitas com as madeiras dos andaimes da

construção do hospital Américo Chagas, era diversão garantida no momento do recreio.

Recordo a voz do senhor Roca dando gritos estridentes para não esparramar a areia. Só via

menino sair correndo feito doido, em direção às salas de aulas. A sorte é que era dar somente

algumas passadas, entrar e fechar a porta (a sala de aula naquela época era onde hoje se

localiza a Secretaria de Educação). Pouco tempo depois, todo mundo estava de volta às

gangorras num vai e vem sem limites, até ser incomodados com o toque da maldita campa.

As crianças divertiam sempre com brincadeiras simples, como pular macaco, pular

corda com cipó, jogar giribita, etc. Mas, de todas essas brincadeiras tem uma que até hoje

basta fechar os olhos, que vejo a cena nítida e ouço até o som da voz da criançada descendo

em desabalada carreira pela rua da fonte, brincando de “mela não me mela, se mela me

melasse eu também melava mela, como mela não me mela, eu também não melo mela.‟‟

Como adorava essa brincadeira!

¹Coordendora Pedagógica da Escolas do Núcleo do Mato Preto.

Quase sempre estou observando as crianças brincarem de pega-pega e vejo semelhanças

com a brincadeira do mela. No entanto, o sentimento e prazer que senti outrora, esse era sem

igual.

Das várias coisas que costumava observar, uma delas era a loja de tecidos de Dué

(Genelício Costa Teixeira ex-prefeito municipal) e de Dona Zirota (diretora escolar), em

frente à pracinha. Porque deixava qualquer um ficar de queixo caído ao presenciar tanta

beleza. Tinha peças de diversos tipos, cores e marcas. Por isso, era impossível não sonhar

com uma delas cobrindo o corpo, num mais belo e cobiçado dos estilos da época. A loja

continha panos ou fazendas (como diz os antigos), escolhidos através de olhares minuciosos,

bem pensados com sabedoria para agradar todo tipo de clientela, sem distinção de classe

social. O atendimento era para toda população iraquarense e adjacências. Bons tempos

aqueles! Porém, como num passe de mágica a tecnologia apareceu, com um festival de

facilidades e moda pronta nas vitrines tornando o que era belo outrora, em cafonice hoje.

Enchia-me de curiosidade também, quando observava o curral nas quintas-feiras (dia

de feira livre na cidade). Tinha tanto animal amarrado nas estacas do curral nesses dias, que

daria para perder a conta. Aproveitava sempre esse momento e apostava freqüentemente

com meu primo, para ver quem conseguia contá-los sem saltar nenhum. Perdia horas e horas

sem pressa alguma e contava o mundaréu de animais, muitas vezes quase centenas deles:

Jumentos, burros, cavalos de todos os tipos e raças. Uma verdadeira exposição que

embelezavam a cidade e a vida daquela pequena. Naquele momento nem poderia imaginar

que aquela cena um dia seria tão marcante a tal ponto de proporcionar um sentimento tão

único. E pensar ainda, que os animais eram o único meio de transporte que as pessoas da

zona rural tinham para se locomover e muito raramente algumas delas possuíam uma

bicicleta. Para tanto, o mais interessante é que diante de aparente dificuldade, elas

demonstravam ser muito felizes.

É maravilhoso relembrar fatos tão vivos do passado. Contudo, o que também me

fascina é que quando nasci, Iraquara tinha três anos de emancipada, por isso cresci junto

com ela, observando de perto todo seu crescimento. Porém, por ser muito pequena, não

entendia direito o que estava acontecendo e temia muito pelas mudanças que eram

anunciadas como: derrubar igreja, cemitério, mudar campo de futebol, abrir estradas,

construir hospital, etc.

Tão logo o progresso chegou trazendo a delegacia bem na entrada do antigo cemitério,

muitas ruas em cima do campinho de futebol, casas novas com outra arquitetura e a cidade

cresceu. Cresceu... Cresceu... Senti extasiada, preocupada, comovida, com tanta revolução.

Mas com o tempo acabei aceitando o progresso e as mudanças.

Hoje a cidade evoluiu. Aplaudi e reverenciei cada degrau da sua subida para o futuro, com

muito orgulho. Sei que os tempos são outros e que as mudanças foram muitas. Tanto aquela

pequena, como aquela cidade, cresceram e, sem sombra de dúvida, indiscutivelmente, têm

algo em comum. Entretanto, não somos mais as mesmas.

Texto baseado na memória da autora, Célia Emília.

UMA VIDA ASSISTIDA DE LONGEAlaíde Emília Dourado¹

O que o terreiro de casa proporciona em uma tarde ensolarada de Sábado? Para seu

Jaime, sentado à sombra preguiçosa do pé de tamarindo, a família já criada, reunida, os netos

a fazer bagunça, uma onda de lembranças que povoam à memória, quando remexida pela

curiosidade insistente de quem vem relembrar um passado que ainda machuca, mas, que

também consola.

“Tudo começou lá pela década de 50, quando desta terra me afastei pela primeira vez.

Era apenas um rapazola, de 21 anos, saindo daqui para construir o meu sonho na cidade

grande. Se bem me lembro, tudo aqui era apenas um vilarejo, e São Paulo naquela época, era

um canteiro de obras, o sonho de uma metrópole que ainda estava nascendo. E eu estava lá,

ajudando a construir.

Recordo que a maior alegria para um rapaz era a festa da padroeira, Nossa Senhora do

Livramento. Setembro era o mês do baile no clube social, um ano inteiro para comprar um

terno para o baile. Eram os excessos dos jovens de outrora: para entrar no clube tinha que

estar a rigor. A festa era para poucos, nem todos podiam entrar. A música, a dança os amores,

tudo encantava. Com o casamento e os primeiros filhos, as festas e os passeios foram ficando

raros. Só restava a missa, os batizados, que aconteciam aos mutirões, na igreja matriz.

Está gravado em minha mente como hoje. Iraquara era apenas duas ruelas: a Rua do

Carreiro e a Rua da Parnaíba. Sempre amei o meu lugar. Terra generosa quando molhada, boa

para se viver, mas, na estiagem, as condições para um pai nutrir sua família não se ofereciam.

O cheiro de terra molhada, da chuva que caia à noite me tirava da cama, mesmo em

terra distante, sonhando em guardar a semente no chão.

Se contadas as vezes que para àquelas bandas eu viajei, mais de duas dezenas eu

calculei, neste vem e vai, e vai e vem. O coração doía a cada despedida da família que ficava

e dos filhos que cresciam, dos amigos que deixava, da terra mãe querida, que molhada dá

bons frutos, mas, seca afasta seus filhos dos seus.

Saía na escuridão da noite, para que ela pudesse encobrir as lágrimas que brotava nos

olhos, e não precisar ver o choro no olhar da esposa e dos filhos que deixava para traz.

Ao longo destes anos eu vi as distâncias encurtadas, e as diferenças igualadas. Antes eu

levava 09 dias daqui a São Paulo no pau de arara. No desconforto da viagem, os apuros que

passava, os pés inchavam tanto que não cabia nem nas velhas alpercatas. Hoje é possível

fazer o mesmo trajeto, de ônibus, em dia e meio, e de avião, quem diria, em apenas duas

horas. O que se via, comia, vestia na capital era coisa só de capital. Nos tempos de hoje, o

que se vê lá, também se encontra aqui.

Nesta vida de labuta outras cidades frequentei – Rio de Janeiro e Goiás, trabalhando,

construindo o sonho e o crescimento econômico em terra dos outros. Era um erguer de

arranha-céus, prédios e sobrados, como formigas trabalhadeiras. Hoje, só assisto o

desenvolvimento econômico e o crescimento do meu lugar, já não trabalho, trabalhei demais.

Assisto aquele mesmo canteiro de obras dos anos 50, na Terra da Garoa, numa Nova Iraquara

que desabrocha.

Texto escrito com base no depoimento de Jaime Francisco Dourado,

77 anos, morador do Povoado de Queimada Iraquara- Bahia.

¹Diretora da Escola Odilon Torres.

UMA MÃE DE MUITOS FILHOS

Ana Paula Viana¹

Lembro-me bem dos grandes momentos que deixava o prato de comida em cima do

banco para atender um chamado... “Dona Maria!!!!! Dona Maria!!!!”

Aquele chamado já andava martelando em minhas ideias. O interessante é que este

chamado era feito exclusivamente pelo marido, “o pai da criança”. Recordo-me da emoção

que sentia, toda vez era a mesma coisa, meu coração batia acelerado, mas permanecia firme,

para não passar às mulheres o meu friozinho na barriga... como era gratificante ver diante dos

olhos das centenas de “filhas”, as lágrimas, o pedido de socorro, os sorrisos, os olhares que

brilhavam, a felicidade de ouvir o choro da criança, como também a tristeza de não ter

conhecido o choro e o sorriso daquele menino ou menina que padeceu antes de nascer...

O prazer de realizar o parto era igual para todas. No entanto, o parto das minhas amigas

eu realizava com mais amor, acariciava-a, dizia palavras de carinho e conforto, mas quando

precisava falar bravo, eu também falava.

Em todo parto, em minhas fervorosas orações feitas à Santa Rita e Nossa Senhora,

suplicava por sabedoria, pedia pela a saúde do menino e da mulher, e graças a Deus, apenas

uns poucos não vingavam... Ai como doía! Doía muito, ver o desespero da mãe, quando seu

filho falecia... Mas, eu me mostrava intolerante, e dizia “Deus sabe o que faz!”. Esse era o

modo que eu achava para não me sentir frustrada pela vontade de Deus.

A correria e o pavor dos entes da família muito atrapalhavam o decorrer daquela

missão. O pai nervoso, a mãe da moça em desespero, era uma emoção só. Mas, eu sempre

pedia “Saiam todos, se não podem ajudar, não atrapalhem”. Às vezes, eles me consideravam

“braba", mas era o jeito de mostrar que a situação estava controlada. Até que muitos pais

ajudavam, era evidente o desejo de estar perto da mulher amada, ouvindo o som estonteante

dos gritos e choros, consolando-a com o anseio de ver seu pequenino filho e sua esposa bem.

Era essa demonstração de amor que reinava! Hoje, o pai leva para a sala de parto a máquina

de gravar e tirar fotos, esse é o modo que eles acham de mostrar o mesmo sentimento do pai

do meu tempo.

Tempos bons aqueles em que eu era considerada “Mãe” por todos os meninos que

nasciam. Até hoje é gratificante ouvir de muitos que ajudei vir ao mundo o apelido carinhoso

“Mãe Maria”. E meu sentimento é de mãe mesmo... Amo todos, amo-os mesmo, com o mais

puro sentimento de ternura e amor maternal.

Ah, que tempo triste também, quando era a época dos meninos que não vingavam, era

um, dois, três na mesma temporada, o desespero abarcavam todos. Mas não me deixava levar,

em cima da oração conseguia afastar os tempos ruins e começava a época da terra farta.

Com a vinda do hospital de Dr. Reinaldo, passei a realizar poucos partos. Isso porque

para ganhar freguesia, muito se falou sobre as condições oferecidas por nós parteiras, e foi aí

que nossa missão foi chegando ao fim... Hoje tem hospitais! Os partos são realizados através

de aparelhos, há médicos e enfermeiros, anestésicos e remédios para aliviar as dores e os

sofrimentos de um parto. Acho que dessa maneira, é possível dar mais assistência à mulher e

socorrer muitos meninos que dão mais trabalho para nascer. Mas não há recurso e nem

¹ Diretora da Escola Municipal Julião de Souza Braga.

médico algum que seja mais forte que Nossa Senhora e a vontade de Deus!

Mas, antes que tudo se apague, agradeço todos os dias à Nossa Senhora, que me

permitiu exercer minhas atribuições... e a vocês que nunca vão deixar cair no esquecimento, o

que muitas como eu, chamadas de parteiras, fizemos pela história do crescimento de

Iraquara. São vocês, filhos desses tempos aqueles que devem perpetuar na memória de seus

filhos, netos... as lembranças dessa época, desse modo de ser e viver no mundo.

Texto escrito com base na entrevista com Dona Maria Mendes dos Santos, 97 anos.

PERCURSO DE UMA PEQUENINA CIDADE

Eliana Almeida Carvalho¹

Ainda muito jovem, cheguei a esta pequena cidade. Naquela época, tudo era

diferente, havia poucas ruas e casas simples, ainda sem energia elétrica. Mesmo assim nos

sentíamos felizes com o pouco que tínhamos.

Lembro com muitas saudades desta época, na década de 70, quando Iraquara era uma

cidadezinha esquecida no interior da Bahia. O povo, humilde, sobrevivia com poucos

recursos e muito esforço.

Foi aos quinze anos que nos mudamos para cá, movidos pela transferência de meu

pai, que era policial militar. Aqui vivi minha adolescência, longe de minha terra natal,

Itaberaba, terra do abacaxi, cidade com um clima muito quente e com poucas chuvas, cidade

que naquela época já era muito desenvolvida comparada a muitas cidades do interior.

Aos poucos fui me adaptando a essa nova cidade. Lembro que a energia vinha de um

gerador, que era desligado ao soar de um sinal às 10 horas da noite. Aí então, era a luz da lua

que iluminava o céu estrelado dando um ar de mistério e graça às nossas longas e tranquilas

noites.

Como não havia televisão e tampouco telefone, as noticias vinham através das ondas

do rádio. Com a chegada da energia, as famílias mais abastadas se apressaram em comprar

os primeiros aparelhos de televisão, ainda em preto e branco. Com a novidade da TV, muitas

casas passaram a servir de cinema.

Como as pessoas se divertiam reunidas em volta daquele aparelho, de onde surgiam

notícias e programas que encantavam a todos! Mas o que todos mais gostavam mesmo era

das novelas, que até hoje prendem a nossa atenção.

Graças a Deus, água de beber nunca nos faltou, porque sem energia elétrica todo

mundo sobrevive, mas sem água é impossível. Esta cidade foi abençoada nos recursos

naturais, pois apesar dos períodos de seca, sempre tivemos o que beber. Mas, não era nada

fácil ter água em casa. Em minhas lembranças, recordo quando buscávamos água em uma

nascente, conhecida até hoje como fonte, descendo e subindo uma enorme ladeira, com

baldes que pesavam na cabeça.

Nesse tempo, algumas pessoas ganhavam o sustento buscando água para famílias

mais favorecidas, utilizando animais, bicicletas, carro de boi ou até mesmo buscando latas

d‟água na cabeça.

Hoje não temos mais esse problema, pois temos água tratada e encanada, facilitando o

dia a dia da nova e antiga população. Acompanho atentamente o percurso de minha cidade

e, enquanto eu viver, sempre terei uma história para contar.

Texto escrito com base no depoimento da Srª Geraldina Félix de

Almeida Carvalho, 57 anos.

¹ Diretora da Escola Municipal Pequeno Sabidinho

CENÁRIOS DE MINHA INFÂNCIA

Gislaine Félix Brandão¹

As recordações são sempre gratificantes. Os cenários que pintaram a minha infância,

aparentemente adormecidos na memória, surgem muitas vezes de forma tão clara e

saudosista, como que um convite a materializá-los para não mais serem esquecidos.

E é com estas lembranças que ansiosamente volto ao “útero” da minha pequena e

querida cidade, Iraquara. Antes, um pequeno vilarejo chamado Poço de Manoel Félix que

pertencia ao município de Seabra. Por aqui vivi meus tempos de criança, e apesar de

algumas privações fui criada com muita liberdade, ao lado de meus irmãos e irmãs, primas e

amigas que até hoje convivem comigo e são pessoas muito especiais.

Em dias de domingo, podíamos dormir um pouquinho mais, pois não tínhamos

obrigações a fazer. O aroma do cuscuz de milho junto ao irresistível cheirinho de café

preparado para o desjejum fazia-nos despertar com alegria para o belo e imenso dia que

estava por vir. Neste dia, a casa enchia, havia reunião dos familiares, às vezes visita de

amigos, e nós, crianças, correndo para lá e para cá, como se o tempo fosse imóvel.

A vida era muito tranqüila, felicidade era uma coisa que nem passava pelo nosso

pensamento, mas, dentro de nós, ela não saía um só instante. Planejávamos o que iríamos

fazer e logo estávamos com o grupo de colegas na rua em direção a casa de Dona

Maximiniana, conhecida como “Mãe Véa”. Íamos lá só para ouvir o “Deus te abençoe,

minha filha”, naquelas mãos fininhas, calejadas e enrugadas pelo tempo; e assim,

abençoadas, voltávamos para nossas casas.

A mesa posta com cuidado, na singularidade do dia de domingo, esperava-nos para o

almoço em família onde partilhávamos naquele espaço singular, de uma comunhão de

sentires e emoções. À tarde gostávamos de ir para a igreja com mãe. Ela nos arrumava com

vestidos rodados, laços de fita na cabeça e fazia cachos nos nossos cabelos. Nesta época,

não havia missa semanal, só acontecia no mês de setembro quando era a festa de Nossa

Senhora do Livramento. Na época, a Igreja atual ainda não existia, a sua localização era na

Praça Manoel Teixeira Leite. Aos sábados aconteciam as rezas, e no domingo a catequese,

ministrada pelas professoras do lugar (Dona Guió, Mãe, Nita de Haroldo etc.).

Durante a semana estudávamos e, em outro período, brincávamos. As brincadeiras

não eram tão diferentes das de hoje, mas brincar de casinha era a nossa preferida. Lembro

que no quintal de nossa casa tinha um poleiro que meu irmão mais velho, Robinson, fez para

vender galinha, costume comum daquela época. Mas bom mesmo, foi quando ele parou com

as vendas e transformamos o poleiro em um lugar para brincar. Como era bom limpar e

arrumar a casinha, pegar os lençóis de mãe e fazer forquilhas para dizer que era telhado. Até

em cima de árvore tinha casinha (eram as casinhas de sobrado). Eu adorava morar em

sobradinhos!

Outra brincadeira que adorávamos era nos fantasiar de ciganos, vestir as saias

rodadas, cheias de babados, colocar lenços estampados nas cabeças, pulseiras brilhantes e

imitar as vozes que eram bem engraçadas (ôoh gajano!). Pegávamos os cabos de vassoura e

saíamos pela estrada da roça de Vovô Dumba como se estivéssemos montados em cavalo

¹ Diretora do Centro Integrado de Educação Infantil Leolino José Fernandes.

como os ciganos passando pelos lugarejos e cidades.

E brincar de circo!! Que saudade! Sempre que vinham grupos de ciganos para cá ou

passava circo na cidade, nosso prazer era passar horas imitando palhaços, malabaristas.

Lembro que Zala, professora Rosalina (minha irmã), sempre teve o corpo mole como se

fosse de borracha e adorava fazer estripulias com o corpo, pulando e plantando bananeiras

(ficar de pernas para o ar e cabeça pra baixo).

Já os meninos brincavam de carrinho de madeira, de esconde-esconde, de futebol. As

bolas eram feitas de meia, confeccionadas pelos próprios meninos que adoravam brincar até

o céu ficar azul escuro e estrelado, quando, empurrados pelo cheirinho de comida na mesa,

todos entravam e iam tirar o barro do corpo, preparando-se para a última refeição. Só

alguns anos mais tarde é que a bola chegou aqui.

Hoje, os tempos são outros, muita coisa mudou. Perdi-me na imaginação e redescobri,

após uma longa viagem no tempo, as imagens já envelhecidas. É lá que mora a

simplicidade, a felicidade verdadeira, que muitas vezes, nós, adultos, esquecemos. Muitas

saudades sinto daquela época! Mas é bom saber que vivi a minha infância com todos os

direitos que uma criança pode ter, com a alegria encontrada nas pequenas coisas que,

somadas, me faziam a criança mais feliz do mundo.

Texto escrito com base no depoimento de Roseli Santos Félix,

60 anos, professora aposentada, moradora de Iraquara .

NEM O TEMPO FOI CAPAZ DE ME FAZER ESQUECER

Cinelândia Alves dos Santos¹

Quanto tempo já vivemos e quanto ainda desejamos viver... O tempo é algo infalível é

o senhor de todas as dores, dos sofrimentos, das feridas, das alegrias, da saudade e dos

amores. Tempo é algo marcante, inquieto, silencioso. No tempo de minhas memórias,

muitas recordações se encontram guardadas adormecidas, outras avivadas, trazidas á tona de

maneira emocionante. Escrever este texto me fez sentir como se estivesse realizando uma

viagem mágica ao túnel do tempo, revivendo as recordações da vida de uma certa menina

do interior, nascida em uma cidade tranquila no coração da Chapada Diamantina.

Apesar dos anos vividos, trago na memória recordações de outrora, de uma infância

ingênua, permeada por momentos marcantes, como os inesquecíveis festejos religiosos

compartilhados com familiares e amigos, lembranças boas de um passado que posso reviver

intimamente apenas pela saudade gostosa de fatos e entes queridos que hoje se encontram

distantes ou já partiram.

Recordo com emoção como o pequeno vilarejo se preparava, em regime de

cooperação, para a realização dos preparativos dos lindos festejos religiosos e receber, de

forma calorosa, os visitantes. Caprichosamente a igreja e as casas do centro eram pintadas

de branco, ruas e terreiros limpos e enfeitados com palhas de coco licuri e bandeirolas

coloridas.

Os festeiros do ano, acompanhados pelos representantes das comunidades vizinhas,

responsáveis pelas noites festivas, organizavam os alegres leilões com doações ofertadas

pelo povo.

Como prova de devoção e para garantir a saudação à santa padroeira, os foguetes não

podiam faltar, assim como as lindas flores e toalhas bordadas para enfeitar o altar e o andor

que levava a tão adorada Nossa Senhora do Livramento a percorrer as ruas de terra batida e

casas simples do pequeno vilarejo durante as procissões.

Como estas festas eram esperadas... Ao se aproximar esta data, mal conseguia dormir,

tamanha era a ansiedade. Como naquele tempo não havia muitas igrejas pelas redondezas,

padres e bispos costumava vir anualmente visitar os lugares mais longínquos, por ocasião da

festa da padroeira local.

Minha euforia para participar das comemorações religiosas era imensa. Íamos felizes

acompanhados dos familiares. Naquele momento, o principal objetivo era fortalecer os laços

fraternos e o amor entre as pessoas, através das raras celebrações destinadas a dar assistência

aos fiéis e aos enfermos, realizar confissões, oferta da comunhão (hóstia), casamentos,

procissões, batizados e crismas.

As pessoas que moravam mais distantes vinham no lombo dos animais e montavam

suas barracas de palha ao lado do largo próximo á igreja e ali permaneciam por cerca de

nove dias, participando fervorosamente de todas as celebrações.

Quanta saudade... Que passagem maravilhosa de recordar... Nestas oportunidades, tudo

era festa... Afinal, isso movimentava imensamente nossa monótona vila. Nos preparávamos

¹ Diretora da Escola Manoel Félix da Cruz.

para esta data durante todo o ano, e ali, acampados por estes dias tão felizes, encontrávamos

os amigos que residiam em outras comunidades e parentes que moram longe.

O tempo passava em ritmo acelerado, e assim, nossa vidinha pacata ia ficando para

trás. Junto à outras famílias amigas, cozinhávamos nossos alimentos e, bem cedinho, ainda

escuro, íamos até a fonte buscar água para preparar as refeições e realizar nossa higiene

pessoal. Afinal, o dia prometia ser longo e emocionante, com lindas alvoradas, missas,

batizados, casamentos, procissões e divertidos leilões...Não podíamos perder um instante

desta tão aguardada festa.

Ainda hoje, tantos anos se passaram e trago em meu peito muita saudade! Em

especial, das festas que participava com meus familiares para aprender os cânticos, os

louvores novos que os missionários iam cantando durante as celebrações. Eu aprendia e

ensinava a todos como que por um dom divino.

Nestes tempos modernos, tudo é muito diferente. Não se vê mais aquela euforia entre

as crianças e os jovens para a chegada das festas religiosas, não se faz mais barracas e não

há acampamentos durante as novenas. Nestas datas não há mais tanta reverência e quase

nada é mais como antes.

Podemos ir à missa várias vezes na semana, não há mais leilões, os cânticos das

igrejas evangélicas e católicas são os mesmos e são tocados até no carnaval. Raramente

vemos pais e filhos juntos, acompanhando uma missa ou procissão e parece que, até mesmo,

aquela alegria no olhar das pessoas durante as celebrações religiosas não é mais a mesma.

Quem não viveu tudo isso, como eu, não pode mensurar o tamanho da saudade que sinto ao

recordar os costumes e fatos pitorescos de minha infância.

Apesar de saber que na vida nem tudo é maravilhoso, aqui me reservo ao direito de

registrar lembranças inesquecíveis, fatos e histórias que nem o tempo apagou, momentos

herdados graças à educação doméstica que recebi. Hoje, posso dizer que sou fruto de um lar

religioso e humilde, mas muito acolhedor.

Sei que o tempo não volta mais... Porém, nem mesmo ele é capaz de apagar tantas

lembranças felizes, apesar dos anos passados e da distância que me separa dos entes

queridos, permanecemos unidos em pensamentos e emoções, nas lembranças e nos

sentimentos sinceros presentes em nossos corações.

Texto escrito com base no depoimento da professora

Maria Ribeiro Sousa Alves, 63 anos.

ÁGUA DE REGA: COMO TUDO COMEÇOU

João Fernandes Braga¹

O meu pai sempre me dizia que um dos primeiros moradores de Água de Rega foi seu

avô, que se chamava Domingos Martins dos Santos (Domingão), e que ele veio dessa região

do Poço de Manoel Félix, Palmeiras..., veio à procura de um lugar que tivesse água.

Chegando aqui, ficou maravilhado com a paisagem do lugar, matas verdejantes cobrindo as

serras e os vales, rios brotando no pé da montanha..., e resolveu ficar. Mas quando meu

bisavô Domingão chegou aqui, já existia uma família morando nessa região. Essa família

criava uma “indinha” por nome Thomasa, que foi tomada dos índios (os tapuias) que

moravam aqui na Serra do Rapa. Meu bisavô era solteiro. Pegou uma área de terra, fez sua

casinha e começou a cultivar a terra e criar umas vaquinhas e, mais tarde, acabou casando

com a índia Thomasa e daí surgiu a nossa Família Martins. Essa história minha irmã achou

escrita em um livro no museu de Lençóis “A Família Martins, os primeiros habitantes de

Água de Rega”.

Com o passar dos anos foram chegando novos moradores, entre eles, o meu outro

bisavô por parte da minha mãe, que se chamava Flugêncio Martins de Jesus, foi ele quem

construiu a primeira casa aqui na praça de Água de Rega, onde é hoje a casa de Santinha.

Por ser uma região rica em águas, os moradores daqui tinham o costume de construir açudes

nos rios para irrigar as terras, que eles falavam de regrar a terra. Tinha um açude no rio dos

Morrinhos construído pelo meu bisavô Domingão, outro açude onde é hoje a fazenda de Zé

de Cesar que era do “veio” Macilinão e tinha outro açude no Sonhem, no Poço da Vaca,

feito de madeira e barro de telha “barro bom”.

Naquela época, tudo era difícil. Meu pai contava que, para batizar um filho ou fazer

um casamento, os moradores dessa região tinham que ir até o Campestre, a pé ou de animal

pelos carreiros, que era a comarca que comandava essa região, só tinha padre lá uma vez no

ano. Certa vez, meu bisavô Flugêncio foi lá levar um menino para batizar e ficou

entusiasmado com o que viu. Quando ele voltou, chamou uns velhos amigos para fazer uma

igreja, através de adjunto. Ele doou as terras para fazer a rua e a igreja. Juntaram todo

mundo para fazer a rua, onde é hoje a praça da feira e, depois da praça pronta, foram

construir a igreja que ficou pronta em 1917. Depois da igreja pronta, eles disseram: “nós

temos que colocar um santo aqui” e escolheram São José como padroeiro. Reuniram

algumas pessoas e foram conversar com o padre lá em Campestre, informando que já

tinham feito a igreja, mas faltava o santo. O padre se encarregou de comprar e disse: “O

santo é só na Itália, vocês arrumam o dinheiro e eu mando trazer de lá, mas são seis meses

pra receber”. Ninguém tinha o dinheiro pra comprar o santo, então falaram com Manoel

Vicente (Manoel Bandeira), que era um homem de coragem, disposto, esperto,... para

arrecadar o dinheiro para comprar o santo. Ele aceitou, fez uma caixa igual a essas de cantar

reis e uma bandeira com o nome de São José e saiu batendo a caixinha. Rodou em várias

comunidades. Bateu caixa um bocado de mês até conseguir o dinheiro pra comprar o santo e

levou para o padre. Quando foi com seis meses, o santo chegou aqui em Água de Rega,

sendo recebido com uma grande festa.

¹Diretor da Escola Municipal Ruy Barbosa.

Uma coisa comum naquele tempo era os conflitos armados. Aqui mesmo em Água

de Rega tinha um grupo de jagunços apelidado de “os mosquitos” que eram comandados

por Manoel Fabrício, do Campestre, meu pai era um desses jagunços, mas ele dizia que

nunca matou ninguém. Eles construíram um forte aqui com uns 20 metros de altura onde

ficava um sempre de sentinela para dar o aviso com um tiro pra cima, caso viesse algum

inimigo pelos carreiros. No Poço, tinha outro grupo de jagunços conhecido como “os

mandiocas” que eram inimigos dos daqui e tinha como chefe um jagunço por nome

Antonhão. Meu pai contava que, certa vez, Antonhão mandou avisar que vinha numa

quarta-feira para dar uma pisa nos frouxos daqui e tomar suas mulheres. Quando ele

chegou aqui, com sua cambrueira, foi atacado e morto numa trincheira antes de alcançar a

Serra do Rapa, onde os moradores daqui estavam escondidos. Anos depois, vieram os

revoltosos no comando de Luís Carlos Prestes em busca de apoio contra o Governo

Federal. Chegando aqui, eles foram atacados por jagunços comandados por Luís Pé de

Serra, então eles se revoltaram e começaram a fazer badernas nos lugares que passavam.

Antes, toda essa região pertencia a Seabra e cada lugar tinha seus representantes.

Aqui tinha como representantes Sr. Petú, Manoel Marques, Quintílio, Sílvio Almeida,

Cardoso, que eram pessoas que tinham melhores condições financeiras. Anos depois, foi

eleito o primeiro vereador de Água de Rega, Sr. José Catolé, tendo como prefeito o Sr.

Fabrício Oliveira, só que o vereador não recebia salário. No mandato seguinte, no ano de

1962, veio à emancipação de Iraquara e novamente o Sr. José Catolé foi eleito como

vereador, tendo como o primeiro prefeito o Sr. Walter Coutinho. Durante as eleições, o

vereador costumava acompanhar o eleitor na hora de votar para dizer em quem ele deveria

dar seu voto.

As escolas, antigamente, eram particulares, meu pai falava que o primeiro professor

de Água de Rega foi Joaquim Miguel. Depois, muito mais tarde veio outro professor por

nome Petró. Já no meu tempo, foi Manoel Correia e Dona Lúcia, foram eles que “abriram o

olho” de todo mundo de Água de Rega, eram professores inteligentes, inteligentes... se

fosse hoje o povo ficava “besta”! Até coisa de militar, de música, eles ensinavam a gente.

Ensinavam cantar, brincar, faziam drama comparado com as novelas de hoje, botava nós

para marchar no 7 de setembro... Nessa época a escola já era pública, mas eles, às vezes,

recebiam dinheiro só uma vez no ano, passava fome mas, nossos pais ficavam com dó e

ajudavam para eles não sairem de Água de Rega. As aulas eram dadas nas próprias casas

dos professores, até que no ano de 1948 o prefeito de Seabra, Manoel Leite, construiu uma

escola aqui. Era uma sala de aula com uma casa para o professor e uma área no meio, onde

a gente brincava durante o recreio e fazia apresentações. Com o passar dos anos essa escola

foi se modificando até se transformar na escola que temos hoje.

Uma das coisas que até hoje sinto saudades é das festas dançantes, na época que eu

era rapaz, sempre tocadas com a sanfona e violão. Todo mundo lorde, começava cedo da

noite, oito horas, e ia até amanhecer o dia. Ninguém mexia com ninguém, não tinha

malandragem.

Contemplando a nossa vila hoje, percebemos no olhar dos mais velhos, na fachada

das casas, nas montanhas que a cercam quanto o tempo imprimiu suas marcas. Hoje,

há uma grande escola, quadra de esportes, ruas calçadas, praças, casas comerciais, posto de

saúde, energia elétrica, telefone, internet... coisas que simbolizam o progresso. Ao seu redor,

sítios, chácaras e roças nos oferecem o pão de cada dia e abastecem as feiras de nossa

região. Nossas pinturas rupestres e a fonte de água doce enriquecem nosso lugar. Mesmo

com saudades do tempo de menino, de rapaz festeiro, gosto de ver como Água de Rega hoje

se encontra, orgulho-me em dizer que sou descendente dos primeiros moradores dessa vila,

tão cheia de encantos e lembranças de um passado que o tempo não foi capaz de apagar da

memória do seu povo.

Texto escrito com base no depoimento de Lélio Martins dos Santos, 64 anos,

morador de Água de Rega, Iraquara-BA.

BAILES INESQUECÍVEIS

Antônia Ribeiro dos Anjos¹

Vivi toda a minha juventude na zona rural. Rapaz elegante e sedutor, guardo na

lembrança, com muita emoção e saudade, os bailes de sanfona, que eram muito “lordes” e

faziam bater forte meu coração. Recordo-me, de como meu olhar vibrava, envolvia, cantava

e encantava. Íamos aos bailes a pé ou a galope todo final de semana em toda região de

Iraquara, sempre acompanhado pelo sanfoneiro Tio Massar, Chico de Nega e Pedro de

Zifinha, que moravam bem pertinho da minha casa.

Era um grande privilégio, uma alegria imensa, pois éramos vistos como intrigantes,

prepotentes e mandões. A sanfona de Pedro era pesada, com 80 baixos e sete registros, cores

da esperança e da paz, era a sua paixão e ele não parava de gabar o quanto gostava, pois

sentia como se fosse parte dele.

O seu amor pela sanfona e o desejo de ser tocador, veio logo após o seu casamento,

homem apaixonado e dedicado, aprendeu muito com Dija que era considerado o melhor

sanfoneiro da região. Oh! Que saudades do tempo dos meus amigos, da voz aguda e das

gargalhadas de Joaquim Possinio, amigo fiel e apreciador das canções.

Eram bailes animados que aconteciam em varandas rodeadas de palha, tão verdes que

sentíamos o cheiro do licuri. Em batizados, casamentos e festa escolar, crianças e idosos,

moças e rapazes dançavam agarradinhos, mas com muito respeito, pois percebiam os

olhares de todos os lados. Tudo bem diferente de hoje, pois as bandas eletrônicas vêm

diminuindo esses espaços com jovens que não sabem o que é realmente uma festa de

verdade.

Naquele tempo, Tio Massar, também como hoje, cobrava ingresso dos bailes em sua

casa. Em uma dessas festas, meu amigo Diolino, muito espertalhão, tinha levado um

“mirreis”. Então, nos reunimos em um cantinho do lado de fora para organizar a nossa

entrada na festa. Como sabia que tio Massar não tinha troco para nos voltar Diolino

combinou de entrar primeiro e passar a nota para o que estava na frente, que devia fazer a

mesma coisa com os outros. Assim, acabou que todos entraram com a mesma nota sem

pagar nada. Pulamos de alegria e dançamos a noite toda.

Quando chegávamos à varanda, a fúria de outros rapazes despertava, e ali mesmo

começava uma confusão. Às vezes, precisava ir embora, deixando a festa para trás. Saíamos

com muita raiva, dizendo: „‟Como vou agora ganhar aquela moça?” O certo era deixar para

a próxima semana. Esses momentos vividos aquecem a minha memória, tornando-se assim

inesquecíveis.

Naquele tempo, os bailes ferviam, subia a poeira no ar com as batidas de violão, do

triângulo, tambor e pandeiros. As pessoas não resistiam e caiam na folia. Os sanfoneiros

cantavam as canções de Luis Gonzaga, xote, xaxado, valsa e forró, também o suingue. Era

uma loucura, o sangue fervia nas veias e ninguém via a noite terminar.

Quando vínhamos do Mato Preto, no escuro, sempre tinha um que usava calça de

mesca (tecido que fazia barulho), que era pra fazer medo a quem passava por ali. Lembro-

me um dia que um grupo de rapazes passava por esse caminho, tão assustado e apavorado de

¹ Vice diretora do Núcleo do Mato Preto.

medo, que gritava com toda força: “Se vir, eu corto a cabeça! Não vem não‟‟, sumindo no

meio da mata escura. Risos vinham de todos os lados. Era muito divertido, bom demais!

Hoje, não vejo mais a alegria e diversão daqueles tempos. Os jovens, espalhados nos

grandes clubes e salões, não aproveitam a vida de forma agradável. Não vejo nas festas com

bandas, o entusiasmo de antes, com a famosa e inesquecível sanfona.

Texto escrito com base na entrevista com Virgilio Gonçalves da Silva,

86 anos, morador do povoado de Quixaba.

RETALHOS DE UMA VIDA

¹ Terezinha Miranda Chaves

Ao pé da íngreme serra da Pedra Ume, equilibrando-se vertiginosamente sobre o

“barreirão” ficava o meu “São José”, povoado pequeno, mas de gente muito hospitaleira.

Nasci e me criei naquelas terras.

Naqueles tempos, lá pelo final da década de 1930, eu era uma menina de mais ou

menos oito anos de idade. Sendo a mais velha dos sete filhos, sobrou desde cedo para mim,

a responsabilidade de ajudar minha mãe a criar os irmãos menores. Ainda me lembro muito

bem, da lida dentro de casa e das idas e vindas todos os dias para a roça. Meu pai, Pedro Sié,

homem de muita fibra, matava porco e vendia nas feiras da região. Minha mãe, tia Lode,

como eu a chamava, era uma mulher magrinha, muito inteligente, e, diga-se de passagem,

muito brava.

Tinha resposta para tudo, não importando qual era o assunto. Sempre muito ativa, se

preocupava, principalmente, com a comida na hora certa, “pra quando Pedro chegar”. A

comida era farta, feijão com perna de boi (Humm! O tutano era bom demais!), arroz

vermelho, cortado de palma, maxixe, abóbora. Tudo vindo da roça e o que não podia faltar,

torresmo e costela de porco que de longe já sentia o cheiro da “graxa” estalante, que me

fazia “lamber os beiços!”

Naquele tempo não era como hoje, que você compra tudo na feira, no mercado, ou

você tinha da roça ou não comia, pois não tinha o costume de vender e de comprar verdura

na feira. O que se comprava lá era pão, biscoito, isso quando tinha dinheiro. Nem o sabão

meu pai comprava na feira, pois tia Lode fazia em casa com banha de porco, mamoninha e

soda cáustica. Ficava preto que só vendo! Ela fazia em forma de bolas bem grandes, era com

ele que lavava as roupas, os pratos e tomava banho.

Mas como tudo para criança é festa, eu também gostava de brincar, mas nunca

brinquei. Tia Lode na sua rigidez de mãe, não deixava. A brincadeira era de fazer comida em

pequenos fogões (buracos abertos na encosta das elevações de barro muito comum na

caatinga chamadas de “murundus”) e quando eu conseguia colocar minha panelinha no

fogo, ela me chamava, “Silvalina, venha pra casa!”. Eu entrava (não era louca de

desobedecer!) e de vez em quando conseguia chegar à porta e gritar: “ei as meninas, acende

o fogo na minha panela!”

Quando cheguei aos oito anos, fui matriculada na escola de minha madrinha

Constancia para estudar o ABC. A escola ficava na rua principal, no salão perto da igreja de

São José. Como mobília, havia apenas uma mesa grande, rodeada de bancos, onde

sentávamos para escrever. Me recordo com orgulho da nossa farda que era saia azul de

preguinha, blusa branca com gravata borboleta. O sapato era “conga” preta e a meia era

branca, até os joelhos. Como me sentia importante dentro daquela roupa!

Teve também Dona Joaninha, outra professora. Mas o que eu mais me lembro é do

professor Chico Mulato. Com ele aprendi a ler “corrido”, “por cima”, ou seja, primeiro

soletrava e depois lia a palavra toda. Li a cartilha toda soletrando e depois “recordava”. A

¹Diretora da Escola Municipal Professora Zélia Ribeiro Coutinho.

tabuada era “cantada”. No dia do “argumento”, (um aluno perguntando a tabuada ao outro)

sentávamos todos na calçada da igreja, enfileirados, (parecia mendigos) e ali ecoava o canto

melancólico; dois mais um, três! Três mais dois cinco! Seis mais três nove! E a palmatória

impiedosa como um carrasco, não perdoava quem errava!

Também tinha o “Paliogra,” que era um livro que ensinava como escrever as palavras

abreviadas. Doutor era “dr”, obrigado era “obr”, janeiro era “janr” e assim por diante. Este

era só para os alunos mais adiantados. Eu estudei nele. Até hoje ainda escrevo muitas

palavras assim reportando-me a esse ensinamento de outrora. Vejo dizer que hoje em dia se

escreve abreviado na “tal” internet, (nem sei o que é isso) será que o “paliogra” tá de volta?

Com o passar dos anos fui ficando mocinha, crescendo naquele rincão, longe das

cidades, ou seja, uma típica moça “da roça”. E, como tal, comecei a ter vontade de sair para

me divertir. Como sempre tive as minhas dificuldades com o rigor de meus pais. Tia Lode só

me deixava ir para as rezas com pessoas mais velhas. Ia com “Sá Bitu”, mãe de minha

amiga Eulina, ela ia vender bolo e nós íamos junto, para “espiar” os rapazes nem que fosse

de longe, com o maior medo.

Foi assim que conheci meu marido. Com ele namorei e me casei. Namorar é modo de

falar, pois naquele tempo um rapaz não podia encostar na moça senão ela ficava falada. Ao

contrário de hoje que o namoro está muito avançado e perigoso. No meu tempo, ficava na

janela, do lado de dentro da casa e ele do lado de fora. Não tinha beijo, furtivamente se

pegava na mão e mesmo assim, quando chegava uma pessoa mais velha soltava

rapidamente.

Esse foi meu primeiro e único namorado. Tivemos o consentimento de meus pais para

nos casar. Eu era “doida” por ele, se não casasse com ele “endoidecia”! Nos casamos nos

festejos de São José, em março de 1956. Para a festa, meu pai matou porco, minha mãe

matou galinha, panelão de feijão, de arroz, de angu, muita fartura. Veio muita gente de

Iraquara e a festa rompeu a madrugada.

Como éramos pobres, pouca coisa de móveis e utensílios eu levei. Uma mala forrada

de pano com minhas roupas, quatro panelas de ferro, um armário feito de caixote de sabão e

forrado de papel de embrulho. Mas minha casa era linda! Eu tinha muitas plantas. Colocava

dentro e fora da casa e o verde das plantas enchia a casa de alegria e a paz tomava conta de

mim!

Revirando um pouco das minhas lembranças, vejo nelas um rastro de felicidade,

retalhos de uma vida que o tempo deixou como marca, a certeza que tudo valeu a pena,

mesmo nas maiores dificuldades. Percebo que hoje em dia tem tanta riqueza, tanta vaidade,

mas pouca gente feliz. Naquele tempo não precisava de muita coisa pra ser feliz e talvez

seja esse o segredo: Viver a essência da simplicidade!

Texto escrito com base no depoimento de Silvalina Miranda

Chaves, 83 anos, moradora de Iraquara-Ba.

UM TEMPO QUE NÃO VOLTA MAIS...

Sonizete Maria de Oliveira¹

Passei os melhores anos da minha infância na Fazenda Sena do Norte, onde nasci.

Naquele tempo, as crianças não dispunham de brinquedos, nossa diversão era curtir a

natureza que nos cercava, nadar, correr, subir em árvores... tempos bons que não voltam

mais.

Tecnologia era raro, carro só existia um em toda região. O avião era tanta novidade

que quando passou pela primeira vez não sabíamos o que era, ficamos esperando, ouvindo

aquele barulho, pensando que era carro. Santa inocência! Nosso olhar ficava direcionado

unicamente para a estrada, esperando o carro passar, e só no outro dia ficávamos sabendo

que tinha sido avião.

O tempo passava tão devagar! Haja criatividade para tantas brincadeiras! A liberdade

era grande, o que não faltava era energia para gastar. Ah! Como tenho saudade, muita

saudade, desta época que não volta mais.

Lembro com muito carinho quando aos doze anos de idade entrei na escola pela

primeira vez. A professora era leiga e se chamava dona Júlia, uma senhora que transmitia

muita confiança, porém autoritária. Infelizmente, nem todas as crianças tinham acesso a

escola, pois não era prioridade naquela época. Por ter sido meu pai quem trouxe a professora

para ensinar, eu e meu irmão éramos privilegiados e todos os nossos anseios eram atendidos.

Contudo, procurávamos agradá-la sempre que possível, levando frutas e verduras da nossa

fazenda para nossa estimada professora.

Deslize por parte das crianças, nem pensar! Lembro que certa vez, ela me pediu uma

vara fina e grande, achei estranho, mas no outro dia levei. Essa vara era para bater na cabeça

dos alunos que não prestassem atenção na aula de onde ela estivesse na sala. Eu e meu

irmão ficamos imunes porque fui eu que atendi ao seu pedido.

Aos 24 anos, tive a influência do meu pai para ingressar na política. Ser político era

um orgulho, estava no sangue, me sentia muito importante. Tenho orgulho de ter sido

vereador e depois prefeito, o título mais importante da minha cidade. Era um tempo

diferente, o povo nos procurava mais para orientação. Nessa época, pensávamos sempre no

bem para todos. Orgulho-me, de como político, ter feito obras importantes em minha cidade

natal.

Hoje, os tempos são outros seja na política, na educação, nas brincadeiras. Sinto

saudades daqueles tempos, mas vivo feliz por fazer parte dessa história.

Texto baseado na entrevista com o senhor

Raimundo Cézar Solon de Oliveira.

¹Diretora da Escola Artemízia Rodrigues Nogueira.

MUDANÇAS QUE CHEGAM COM O TEMPO

Ivaneide Teixeira de Souza¹

Em tempos antigos, na pequena comunidade em que nasci, cresci e vivo até hoje –

minha pequena Zabelê - roupas, calçados e até alimentos não eram fáceis de conseguir, e

com a saúde não era diferente.

Não existiam hospitais nem postos de saúde por perto, nem mesmo no Poço

(Iraquara). Quando alguém adoecia o tratamento era à base dos variados chás caseiros que

aliviavam um pouco as doenças. Quando o caso era mais grave, eu ia lá no Cochó (Seabra)

buscar remédio, na pequena farmácia de Fabrício.

Nessas idas e vindas ao Cochó, aprendi um pouco da profissão de enfermeiro. Lembro

que vinha gente de todos os povoados vizinhos para eu aplicar injeções. Naquele tempo,

não havia os procedimentos de higiene como hoje, e as pessoas corriam risco de pegar

muitas outras doenças, pois a seringa era de vidro e a agulha era a mesma para várias

pessoas. O único cuidado era o uso da água fervente entre uma aplicação e outra, ou uso do

álcool, colocando fogo. Mas nem todos faziam assim, pois era muito alto o preço do álcool.

Com o passar do tempo veio Zezinho, que trouxe uma pequena farmácia para o Poço

(Iraquara). Mas mesmo assim quem receitava os remédios era Ângelo, homem muito

inteligente. Ele salvou muita gente. Acho que o que valia também é a fé daqueles que não

tinham outros meios para recorrer. As pessoas tinham muita fé era nele. Recordo de um livro

grande que ele usava para receitar remédios de farmácia. O mais interessante é que, na

maioria das vezes, ele não cobrava, as pessoas que podiam davam um agrado. No fim das

contas, eu acabei comprando esse valioso livro, que me servia de guia para ajudar as

pessoas.

Doença sempre existiu, mas naquela época não tinham tantas registradas. As mais

faladas e temidas eram a pneumonia, o sarampo e a febre Tifo. Eu mesmo tive febre, sofri

muito e quase morri. Antigamente, parece que nossa saúde era mais forte. A gente não

quebrava osso como agora e quando quebrava não precisava sair pra fora, intarava

(imobilizava) por aqui mesmo. Raimundo, Zé de Vitório e Joaquim Lopes eram os mais

procurados para “intarar” osso. Faziam umas talas de madeira, amarravam com cordão e

juntavam os remédios: breu e enxofre.

Lá por meados de 1972, o hospital veio para Iraquara. Antes, somente os casos mais

graves eram levados para Wagner (Ponte Nova). Recordo o caso de meu padrinho Beato,

que adoeceu, creio que pela falta de circulação do sangue, e teve que ser transportado para

Wagner. Como não tinha carro por aqui, pegou dois burros, botou arreio e amarraram dois

paus, forraram de pano, de modo que ficou uma padiola e colocaram meu padrinho no meio.

Lá foi submetido ao tratamento e precisou cortar a perna.

O tempo passou e com ele vieram as mudanças que melhoram a vida de quase todos.

O “Poço” virou Iraquara, com um grande hospital “Américo Chagas”, que atende a todos,

desde os casos mais fáceis até os mais difíceis. Hoje, há postos de saúde em várias

comunidades, com médicos das mais variadas especialidades. Contamos com várias

¹Diretora da Escola Municipal Altino Rodrigues.

farmácias, com uma grande variedade de medicamentos. Mas não foi somente lá na cidade

que ocorreram mudanças, aqui na comunidade de Zabelê temos um grande posto de saúde

com médico, dentista, enfermeiro e outros profissionais. Podemos nos prevenir com vacinas

contra sarampo e outras doenças e ser auxiliado pelos agentes de saúde. Temos também

carros da saúde, que estão à disposição para levar os doentes aos hospitais, até para a

capital.

Percebemos que em nossa comunidade, a saúde vem sendo melhorada a cada dia e

isso se deve a maiores esclarecimentos da população, melhores hábitos de higiene e de

condição econômica mais satisfatória. A evolução acontece em todos os setores e na área da

saúde as grandes tecnologias fazem verdadeiros milagres.

Texto escrito com base em depoimentos do senhor Daniel

Francisco Lopes, 78 anos, morador de Zabelê.

PARTOS, QUANTAS MUDANÇAS!

Nelson Nede¹

Assim que me formei em medicina, retornei à pacata Iraquara e logo percebi que nada

mudara. Iraquara havia parado no tempo, as tranquilas e poucas ruas eram as mesmas e do

mesmo jeito. Matei as saudades! Lembro-me, como se fosse hoje, daquele março de 1974.

Com muita felicidade, orgulhando de mim mesmo e da minha família que tanto fez para que

eu estudasse, cheguei trazendo o coroamento de quase 20 anos de estudo, o meu diploma

médico. Com a felicidade transbordando pelos poros, pensei: “feliz o homem que consegue

trabalhar na terra que quando criança brincou”.

Naquele tempo não existia o Hospital Américo Chagas. Até mesmo os partos que,

hoje em dia são coisas tão naturais, eram tidos como algo preocupante. Os partos eram

realizados por parteiras, nas residências das parturientes. Ainda cheguei a realizar muitos

partos a domicílio. Quanta carência!

Logo assim que cheguei, fui procurado para fazer um parto na Matinha do Cerco,

povoado pequeno e distante da sede. Chegar lá foi uma verdadeira odisséia! Fui procurado

pelos positivos (pessoas encarregadas de fazer uma missão). Vieram numa velha rural (carro

antigo), para a época até que era luxo ter uma, e eu fui pegando os meus equipamentos de

médico e embarquei. Era perto da meia-noite, quando passamos pelo São José da Tia Otília,

outro pequeno povoado, cuja simplicidade de vilarejo se fazia presente no povo, na

arquitetura e nas estradas de barro. Naquela viagem, tudo ao nosso redor era poeira. Ainda

em São José da Tia Otília, após uma trepidação, uma pancada, um susto: o carro parou.

Saltamos da velha rural e vi os pneus dianteiros acoplados no eixo virados para trás, colaram

na traseira, e a rural velha mergulhou a frente na terra. Quanta terra! Um dos companheiros

da viagem assim se expressou: “Doutor, a mulher está mal, e agora”?

Bravos homens éramos nós. Guerreiros e heróis que fomos, saímos caminhando numa

noite de escuridão plena pela estrada estreita com muita terra solta e buracos também. Eu

seguia o companheiro Antônio que parecia ter olhos de vaga-lume e conhecer cada palmo

daquela extensa estrada e que me deixava guiar pelo vulto branco da caixa de

medicamentos, que o mesmo levava sobre sua cabeça. Recordo-me que o mesmo tropeçou e

quase deixou a caixa de medicamentos cair sobre o solo, mas equilibrou habilmente

evitando outro acidente.

Era uma da manhã, quando, finalmente, chegamos à Matinha. Ao passar debaixo de

umas enormes árvores de vilão que até hoje lá existem, sentimos o frio da madrugada

enrijecer nossos ossos. O vento gélido vindo dos gerais fazia as copas das árvores se

movimentarem, provocava um ruído típico, era o atrito dos galhos das árvores.

Chegando à casa da gestante, esperava por mim aquele povo simples e aflito. Parto

resolvido, o pipocar dos foguetes e o cheiro pólvora queimada anunciavam para os vizinhos

e familiares a boa nova. Quanta alegria se expressava no semblante de todos! A minha

¹Vice diretor da Escola Municipal Professora Nilda Maria Carvalho.

também era imensurável. Missão cumprida era hora de retornar à Iraquara, na certeza de que

outros partos viriam, em condições adversas, mas que não haveria omissão de socorro.

Outro dia, dormia na casa onde funcionava a farmácia do meu pai quando fui

acordado por outro positivo, para fazer um parto na Lapinha. Ao chegar lá encontrei alguns

moradores, todos apreensivos. Parto realizado um desses moradores perguntou-me: “posso

soltar os foguetes? Tudo resolvido?” Confirmei que sim e mais uma vez os foguetes e

cheiros de pólvora dava o aviso à comunidade que tudo terminou bem. E durante o retorno a

Iraquara, ouvindo aqueles estampidos naquela meia noite, é que percebi a apreensão que

provocava uma gestante em trabalho de parto. Os foguetes eram, portanto, o aviso

tranqüilizador para os presentes e a comunidade da gestante. Foi quando tomei a decisão de

apressar urgentemente a construção de um hospital em Iraquara, e o primeiro parto

cesariano que ocorreu em toda região de Seabra foi em 1976 na nossa Iraquara.

Devido à falta de condições técnicas para realizar os partos, o índice de mortalidade

infantil não era animador. Quantas crianças perdemos, mas salvamos também e mais ainda

estamos salvando com o auxilio de técnicas mais avançadas. Sem todo o aparato atual o

índice de mortalidade infantil era muito alto e por sua vez a mortalidade das gestantes

também representava índice bastante elevado.

Hoje todas as parturientes dão a luz no hospital, onde são bem assistidas com uma

equipe especializada e os diversos recursos, sendo prioridade o parto natural pela sua boa

recuperação. Em segunda opção o parto cesáreo que em muitas ocasiões salva as vidas de

mãe e bebê. Com todo esse aparato os índices de mortalidade são muito baixos não

chegando a 1%.

Tenho muita satisfação quando me recordo do passado, vejo o quanto contribui para

garantir às gestantes de Iraquara e região a segurança que hoje é garantida. Quanta alegria

ver nos rostos de gestantes e familiares alegrias, ao invés de angústia. Antigamente quando

uma mulher incomodava para ter criança todos os familiares e vizinhos ficavam muito

apreensivos, pois não sabiam como o parto iria evoluir. Quanta preocupação para um

momento que deveria ser de pura alegria! Quando se ouvia o choro da criança e a mãe

estava bem, nossa! Davam-se então o sinal do sucesso que fora o parto: muitos foguetes.

Atualmente os partos em todos os lugares do mundo são vistos de uma forma muito natural

e simples, com menores taxas de mortalidade materna. Quantas mudanças!

Texto baseado na entrevista com Dr. Reinaldo Azevedo Viana.

MINHA VENDINHA DE OUTRORAWilson Neves de Souza¹

Nasci e me criei na pequena comunidade de Queimada. Foi lá onde passei parte de minha

saudosa juventude. Era um ambiente de muito movimento, o tempo todo era gente chegando ou

saindo... não importava se ao sol raiando ou à luz da lua, se em dia de trabalho ou aos finais de

semana. Eram muitas as pessoas que por ali passavam, procurando a venda de Joaquim de

Cidália para comprar os produtos que precisavam para o sustento do dia a dia.

Desde menino tive que trabalhar na roça para ajudar a minha família a enfrentar as

dificuldades daquela época. Casei-me muito jovem, algo normal para aquela geração. Com o

tempo, descobri que além de lavrador poderia desenvolver bem o ofício de vendedor.

Naquele pequeno espaço de pau a pique, chão batido, coberto com a antiga telha de

barro, feita no São José, se encontrava quase tudo de que necessitava o povo da Queimada,

desde os alimentos, até bebidas, produtos de limpeza. O querosene, com seu cheiro forte, ficava

nas latas, vendido a retalho, era muito procurado, pois não havia energia elétrica naquele

tempo.

O que se vendia na minha vendinha de outrora era comprado no Poço, como era

conhecida Iraquara, no comércio do Senhor Otacílio Durães e Seu Zé Lebeta. Dessa forma,

facilitava a vida dos moradores, encurtando o caminho para chegar na cidade. Empolgado, eu

fazia desse ofício de vendedor um meio de ajudar as despesas da família que, por sinal, era

muito grande.

O tempo passava depressa em meio às prosas sem fim com os amigos que frequentavam

para fazer suas compras. A vida era esquecida, às vezes as conversas eram tantas que se

estendiam até dentro de casa ou pelo meio do terreiro, mas nada era vão.

Aquela lida diária de abrir e fechar porta, pesar mamona e mantimentos, medir querosene

era muito cansativa. Mas a alegria chegava, quando os frutos do trabalho daqueles que iram

para São Paulo aqui chegavam – era o dinheirinho suado que ajudava muitas famílias se

manterem. Ou quando caía a chuva, garantindo uma boa colheita. Era a certeza de receber os

fiados que se acumulavam nos velhos cadernos de páginas amareladas.

Herdei do meu sogro, Anísio, a importância da boa relação com as pessoas e a

solidariedade com o povo do lugar onde agente vive. Além disso, confiava nos fregueses

porque reconhecia que as coisas eram muito difíceis.

O meu pequeno comércio atendia os moradores de toda a Queimada e comunidades

vizinhas, pois eram poucas as pessoas que possuíam uma vendinha.

Hoje as vendas foram substituídas pelos mercados que geralmente se encontram em

ambientes distantes das casas das pessoas que ali trabalham. As mercadorias são embaladas e

organizadas de forma que facilita o trabalho tanto do vendedor como do consumidor. É tudo

muito simples, nada trabalhosos como naquela época!

Me recordo um pouco aliviado desse passado. Sei que hoje não é tão fácil a vida dos

pequenos comerciantes, devido a concorrência e a falta de honestidade dos compradores que

deixam de quitar suas dívidas. O que ficou de bom na lembrança e na minha vida foram as

amizades construídas ao longo de todo o tempo que trabalhei na venda.

Texto escrito com base no depoimento de Joaquim José Pereira,75 anos, morador do povoado

de Queimada.¹Escola Municipal Anísio de Souza Marques

O EXCEPCIONAL AUTOMÓVEL

Amanda Silva Santos¹

Naqueles tempos, na comunidade Água de Rega, onde nasci e cresci, a vida era muito

simples e tranquila. Ainda me lembro, como se fosse hoje. Mas os tempos mudaram e logo

surgiu uma grande novidade nesse pequeno povoado, a chegada do senhor José Bento todo

contente dentro de um extraordinário jipe azul de duas portas, o qual contribuiu bastante

para o desenvolvimento da nossa maravilhosa comunidade.

Recordo ainda os comentários das pessoas, a admiração e, principalmente, a

curiosidade para certificar-se de perto aquele belo automóvel, que causou na população uma

grande insônia, pois não se falava em outro assunto madrugada adentro. Então, a notícia se

espalhou e foi chegando pessoas da comunidade local e circunvizinhas para ver de perto

algo tão inusitado como o jipe do senhor José Bento. Percebendo que cada pessoa que se

aproximava do carro tinha que tocá-lo para verificar se era de verdade e se não estava

sonhando, logo o dono tratou de fazer uma brincadeira com aquelas pessoas. Ele soltou um

pequeno fio do carro e quem tocava no mesmo tomava um pequeno choque, o que era

motivo de alegria e diversão para todos nós.

Os divertimentos existentes na época, para as famílias como a nossa, eram coisas

pequenas coisas, as quais dávamos tanta importância, mas o melhor acontecimento com o

carro na comunidade foi à preocupação da população e do dono do carro em abrir estradas

que davam acesso a outras cidades vizinhas, sendo umas delas à magnífica cidade de

Iraquara, antigo Poço de Manoel Félix.

Os tempos mudaram e aquela vida pacata ficou só na lembrança, pois, carros e motos

do ano se tornaram cada vez mais presentes nessa comunidade. Mais uma vez, volto as

minhas lembranças e recordo dos sons existentes naquele tempo no carro. Era o ranger dos

parafusos velhos e enferrujados, mas para nós não passava de uma bela melodia tocando nos

nossos ouvidos. Hoje, quando olho e vejo carros e mais carros com sons potentes e cada vez

mais caros, sinto saudade daquela vida simples e tranquila que ficou para trás.

Memória escrita a partir da entrevista com o Sr. Claudiano Raimundo de Souza

¹Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil.

DA LATA D’ÁGUA A ÁGUA ENCANADAMarta Deane¹

Recordo-me das histórias que ouvia nos meus tempos de criança. Dentre tantas, a que mais me

fascina é a origem da minha adorada cidade. Ouvia os mais velhos falando do grupo de tropeiros,

guerreiros que desbravaram essa região, que sempre apareciam por essas bandas. Eles costumavam

descansar da viagem embaixo das refrescantes sombras das árvores nativas desse lugar. Um dia, ao

término do almoço, um dos tropeiros conhecido como Manoel Félix, possuído por uma curiosidade

avassaladora, começou a observar em torno das árvores e percebeu umidade. No mesmo instante,

iniciou uma escavação próxima a raiz de uma das árvores e deu-se, então, a confirmação da sua

desconfiança. Encontrou um poço que doravante passou a ser chamado Poço de Manoel Félix.

Lembro-me das primeiras construções, casinhas de enchimento cobertas de palhas de licuri,

que surgiram ao pé do morro, dando origem ao povoado do Poço de Manoel Félix, que foi crescendo

a passos largos. A fonte era o único poço com água própria para o consumo, e, aos poucos, foi se

tornando o ponto de encontro do povoado. Ela abastecia toda população, pois não havia canalização,

as pessoas carregavam água da fonte para vender aos que possuíam um poder aquisitivo maior. Os

homens carregavam a água nos carotes que eram colocados nos lombos dos animais, as mulheres

carregavam na cabeça, colocando apenas uma rodilha de pano para amenizar a dureza da lata.

O poço, além de fornecer água e renda, era um local de lazer, pois mesmo tendo que carregar

e equilibrar uma lata d‟água na cabeça, para nós era uma diversão. Nesses momentos, encontrávamos

com as amigas e era aquela farra, brincávamos, contávamos histórias, brigávamos, víamos as brigas

dos outros, tomávamos banho e, quando mocinha, aproveitava para paquera no caminho da fonte.

Além de tudo isso, o caminho da fonte era como se fosse uma espécie de jornal da cidade, onde

sabíamos de tudo que estava acontecendo, marido que traía a esposa, esposa que traía marido, quem

estava namorando quem, quem foi para São Paulo, na época grande desejo de muitos jovens, e, entre

uma fofoca e outra, de tudo havia na fonte.

A partir do ano de 1962, o povoado do Poço de Manoel Félix passa a ser emancipado. Nasce,

então, a cidade de Iraquara, nome que significa em tupi guarani buraco de mel. Algum tempo depois,

o prefeito Genelício Costa Teixeira, apelidado de Dué, murou ao redor do poço e construiu uns

degraus para facilitar o acesso da população.

Os anos passam, e a pequenina cidade vai crescendo e se desenvolvendo cada vez mais. Com

isso, vem à necessidade de canalizar a água, fato que mudaria definitivamente toda a rotina da

cidade. Muitos moradores foram contra, pois, essa era a sua única fonte de renda, e, além disso, ia

acabar com o “point” da cidade, mas o desenvolvimento traria certa comodidade, porque não

precisaria mais subir aquela enorme ladeira com uma lata d‟água.

Hoje, a fonte tão visitada está destinada ao isolamento e solidão, sem nenhuma visitação. Nas

rodas de conversas não se ouve falar mais na badalada ladeira da fonte. Com a correria do

desenvolvimento, não há tempo para nada. A água, agora canalizada, chega a todos, pois é só abrir a

torneira sem nenhuma emoção, simplesmente água que utilizamos em nosso cotidiano, sem nenhuma

história para contar, findando a nossa liberdade de estar na rua e em companhia das colegas, como

também a movimentação existente na ladeira da fonte.

Passados cinquenta anos da sua emancipação, fecho os olhos e percebo o acelerado

desenvolvimento que, em tão curto tempo, fez um poço descoberto por um viajante virar uma

admirável cidade.

Memória elaborada a partir da entrevista com a senhora Maria das Graças.

¹Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil.

LEVA E TRAZ: SONHOS E ESPERANÇAS

Didácia Costa¹

Do meu tempo de criança, lembro-me de uma situação que muito marcou a minha

infância. Não foi uma boneca gigante que ganhei, nem tampouco uma roupa da moda, mas

uma grande novidade que iria nos tirar da escuridão, a tão esperada energia elétrica

finalmente chegaria a minha querida comunidade de Quixaba, lugar onde eu morava na

época. Nesse povoado pequenino e acolhedor, cerca de 50 casas ainda usavam o “fifó”, o

lampião, ou velas para clarear a noite quando a lua estava meio preguiçosa.

Mesmo sendo uma criança de 12 anos de idade, nunca me esqueço do grande do

impacto que essa notícia causou entre os moradores. Quanto contentamento! Ríamos à toa

diante de tamanha emoção. A tão esperada energia elétrica estava chegando, o sonho

finalmente se tornaria real, iríamos ter lâmpadas, liquidificador, televisão... Que luxo! E,

uma vez que aquele ano era político (eleitoral), os moradores estavam apostando todas as

suas fichas, não restavam dúvidas, acreditávamos verdadeiramente que a promessa seria

cumprida. Faltava pouco para concretizar o nosso grande desejo.

Um belo dia, a Quixaba acordou diferente. Um monte de homens fardados, em

caminhões e carros pequenos, trazia o material. Eram postes, quilômetros e mais

quilômetros de fios e cabos, e muitas outras peças que seriam utilizadas. Afirmaram que a

luz chegaria ao meu povoado. A emoção contagiava todos os moradores. Foi uma alegria

só! E eu, totalmente, ansiosa, tinha muitas expectativas, sonhava acordada, com esse grande

sonho. Não víamos a hora de acendermos as luzes dentro de casa. Tinha gente planejando

até comprar televisão, uma coisa que na época era luxo.

Os dias se passaram e aqueles homens que trouxeram a novidade, como num passe de

mágica, simplesmente desapareceram, levando embora o nosso sonho. A tristeza pairou

sobre nossa comunidade. Dias e mais dias se foram, meses, anos, ninguém mais voltou para

erguer os postes, ligar os cabos, puxar os fios...

Depois de dois anos, chegou na comunidade outro grupo de homens também fardados

reacendendo em nossos corações a esperança da chegada da energia elétrica. Outra

decepção! Como diz o ditado, alegria de pobre dura pouco. Eles vieram buscar os postes e

todo o material lá deixado tempos atrás. Lembro de como desacreditados ficamos, sofríamos

calados. Naquela época, não era como nos dias de hoje, que a comunidade tem como

reivindicar seus direitos.

Depois de um ano, a turma voltou com os postes. Não tínhamos mais esperanças, a

desilusão fez morada em nossos corações, não acreditávamos mais em promessas,

achávamos que seria como da outra vez. No entanto, o inesperado aconteceu. Para nossa

alegria, os homens iniciaram os trabalhos. Existia ainda em nós a desconfiança, a descrença,

mas, finalmente eles colocaram os postes, ligaram os cabos, puxaram os fios.

Recordo-me da emoção que sentíamos ao simples ato de tocar no interruptor e ver o

brilho da luz acesa iluminando cada cômodo de nossas casas. Hoje é tudo tão comum, essas

pequenas coisas não provocam nenhum sentimento. Naquela época, contávamos as horas, os

¹Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil.

minutos e até os segundos para chegar o final do dia para irmos à casa de Dona Geralda,

Nedina ou de Tia Ana, assistir televisão depois de tanto leva e traz de postes e fios.

Hoje, lembro-me deste fato, e percebo que, mesmo com tantas dificuldades que

passávamos na época, éramos felizes. Como pequenas coisas eram capazes de tocar o mais

profundo de nossos sentimentos. As coisas mudaram muito, todas as casas do povoado têm

energia, a maioria dos moradores dispõe de vários aparelhos e eletrodomésticos. Sinto falta

daquele tempo, pois havia mais proximidade entre os moradores. Hoje, todos estão fechados

em suas casas e não temos mais as rodas de conversa, a risada em conjunto durante os

programas de TV. Também ficamos distantes uns dos outros, uma distância causada pela

chegada da energia elétrica que tanto queríamos e precisávamos.

Memória escrita com base em uma entrevista com as

professoras Rosana Ribeiro e Walterlice Ribeiro.

REMINISCÊNCIAS DE MENINO

Raimunda dos Anjos Sá Teles¹

Era na alvorada do amanhecer que minha mãe e eu nos deliciávamos com o orvalho no pasto

da fazenda Senna, a sete quilômetros de Iraquara. Era lá que tirávamos o suculento leite das vacas

para o agradável café da manhã, antes de ir para a escola. Quanta emoção! Ainda me lembro, com

muita nostalgia, da tortuosa estrada em que meu irmão e eu andávamos com o balde de leite na

cabeça e uma bacia com algumas folhas de couve para vender na vila “Poço de Manoel Félix. Sim,

pois nós aproveitávamos do fato de estarmos indo para a escola para comercializar.

E o dinheiro? Ah! O dinheiro!!! Meu irmão e eu ganhávamos apenas migalhas, mas também

não precisávamos de muito, pois naquela época não se ouvia falar em cantinas na escola.

Brinquedos???. Nem pensar! Na verdade, não tínhamos muito o que comprar. Eu quase não me

lembro o que fazia com o dinheiro que ganhava do meu pai, mas me lembro com saudades daquela

época em que precisávamos de tão pouco para sobreviver, até mesmo os materiais da escola eram o

mínimo, comparado aos tempos atuais.

Ainda me lembro com muito amor da primeira vez em que fui à escola. Era o ano de mil

novecentos e quarenta e seis (1946). Eu tinha apenas 11 anos de idade. A escola ficava na pequena

e exuberante vila, onde andávamos no meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato

rasteiro, algumas crianças brincando em uma casinha, onde era a escola. Sim! Apenas algumas

crianças. Naquela época, eram poucos aqueles que tinham o privilégio de estudar, apenas os filhos

dos tão considerados coronéis, que tinham condições de mantê-los na escola.

Quanta saudade eu tenho da minha primeira professora Dona Júlia! A quem chamávamos

carinhosamente de Julinha. Meu pai a trouxe de uma cidadezinha para ensinar na Vila do Poço.

Neste tempo, era muito difícil encontrar alguém capacitado para ensinar. Na verdade, eram poucos

aqueles que sabiam lecionar, e como as condições financeiras não eram das melhores, ainda me

recordo que a prefeitura pagava metade do salário da professora e os pais arcavam com o restante,

pois a escola funcionava o dia todo.

Não posso esquecer a hostil educação daquela época, em que os professores de maneira cruel

acostumavam se utilizar de elementos dolorosos como uma vara fina e comprida para bater nos

alunos, caso fizesse algo considerado errado, além do castigo por não saber ler e escrever. Éh! A

tabuada, a cartilha do povo e o ABC eram nossos companheiros na luta a favor do aprendizado

decorado. Digo isso, por que éramos obrigados a decorar a leitura para o dia seguinte. E pensar que

a gente não compreendia o porquê de tanto tradicionalismo, tanta rigidez, no entanto hoje, já

compreendo que aquela educação era consequência das instruções obtidas na sociedade. O que se

observa é que com tantas dificuldades, tanta correria para tirar e vender o leite, toda preocupação

em decorar o texto solicitado pela professora para não ficar de castigo, tornou inesquecível o meu

tempo de estudante.

Apesar de tudo, ainda tenho saudades daquele tempo. Que tempo! Quando penso, recordo da

simplória condição da escola. Hoje, carrego comigo apenas lembranças de um passado que deixei

para trás. Penso que dias melhores virão, a educação é o caminho e ela está mudando a cada dia.

Memória escrita a partir da entrevista com o Sr. Raimundo Cézar Solon de Oliveira.

¹Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil.

VIVÊNCIAS DE UM POLÍTICO APAIXONADO

Raquel Barbosa dos Santos¹

Recordo-me com muita alegria dos meus inesquecíveis momentos na política da

minha bela Iraquara. Nasci e me criei em uma família de políticos. Sempre vivi rodeado

deles por toda parte, pessoas absolutamente deslumbradas pelo poder. Meu pai, Simpliciano

Lima, e seus companheiros, continuamente, reuniam-se em nossa residência para decidir as

questões políticas daquela época. Foi nesse universo que, ainda menino, nasceu minha

paixão pela política.

Aos vinte anos de idade, fui convidado a adentrar nesse mundo tão sonhado, repleto

de complicações e anseios. O apoio de minha família foi determinante para eu aceitar tal

convite e ingressar definitivamente na política. Foi quando tudo começou.

No ano de 1962, iniciei minha carreira política, que vitória! Para minha alegria, fui

eleito vereador por duas vezes consecutivas e não parei mais. Minha querida mamãe, mulher

de muita garra e fibra, apesar de ter pouca instrução e nunca chegar a se candidatar, foi

quem ajudou a me eleger como vereador e prefeito. Ela me preparava, me estimulava e

noticiava a minha campanha.

Apesar de candidatar-me por várias vezes a prefeito, venci as eleições apenas uma

vez, exercendo o mandato por seis anos (quatro por eleição e mais dois prolongados). Nesse

período, empreendi vários projetos que contribuíram para o crescimento dessa cidade.

Um dos momentos mais marcantes de minha trajetória foi por volta dos anos 70. Para

minha decepção, o grupo político do qual eu fazia parte articulou um nome para candidato

que não me agradou. Indignado, fui à luta, procurei o presidente do partido e criei minha

própria chapa política. Para isso, contei com a ajuda de um grande parceiro. Que sufoco!

Tivemos que correr contra o tempo, pois precisaríamos de vinte nomes para compor a

equipe, num curto prazo de 24 horas. A estratégia encontrada para esse impasse foi dividir o

grupo e cada um sair, incansavelmente, a percorrer as mais diversas comunidades do

município. A busca foi muito sofrida e cansativa. Nesse dia, andamos muito e até me perdi

pelo caminho. O tempo esvaía-se como um punhado de água, a tristeza me assolava, a

esperança me abandonava. Mas eis que a vida me reservava uma surpresa para o último

instante daquele dia: quando faltavam apenas cinco minutos para meia-noite, meu parceiro

de luta chegou trazendo os nomes que faltavam para compor a chapa. Concretizava parte de

um grande sonho - minha busca fora realizada com sucesso.

No dia seguinte, o meu adversário, indignado com a minha candidatura, fez um

discurso ofensivo. Procurei meus direitos e mais uma vez fui vitorioso. Ele foi punido e, a

partir daí, fui nomeado vice-presidente e delegado do partido.

Tempos depois, candidatei-me ao posto de prefeito desta cidade. Ao findar a eleição,

realizei meu grande sonho: tornei-me prefeito da minha tão amada Iraquara.

Hoje, quando olho para trás, vejo toda a minha trajetória política e percebo o quanto

contribuí para progresso desta cidade. Como gestor, trouxe o primeiro carro-pipa de água

para abastecer a população, alguns professores qualificados de outros municípios. Pensando

¹Coordenadora da Educação Infantil

na melhoria da educação, implantei o curso APROL, para professores leigos, garantindo

assim a formação continuada. Mudei o campo de futebol, que antes era no centro para o

bairro do Morumbi. Transferi o cemitério da cidade e coloquei mais no recanto. Busquei ter

todo o cuidado necessário com os restos dos nossos entes queridos que já se despediram

deste mundo.

Hoje, olho para a nossa Iraquara e vejo o quanto as pessoas estão mais politizadas,

conscientes dos seus direitos e deveres, buscando exercer sua cidadania. Não sou mais

aquele garoto ativamente engajado no universo político, mas tenho orgulho de minha

família sempre ter sido muito bem representada no contexto da política local.

Memória escrita a partir da entrevista com o Sr. Raimundo Solon.

UM ILUSTRE MORADOR DE CANA BRAVA

Soraia Cléia Barros Ferreira¹

O lugar onde nasci, minha Cana Brava pequenina, de grande aconchego, tem muitas

histórias maravilhosas, como a que vou contar. São lembranças de um tempo distante,

guardadas em minhas memórias. Ao longo dos anos, vi minha comunidade crescer até tornar-

se como se encontra nos dias de hoje.

Recordo-me da construção da santa igreja, como se estivesse acontecendo nesse

instante. Devido à influência da construção, não queríamos nem trabalhar. Sentávamos nas

portas para ver a grande movimentação. Quantas saudades tenho da nossa intensa devoção!

Lembro-me que por aqui só existia mato, as casas eram singelas, feitas de “adobos”, com

forquilhas de madeiras e chão batido. Hoje, com a sofisticação, a maioria das casas são bem

mais luxuosas.

Naquela época, os alimentos não eram acessíveis como hoje. A garantia do sustento da

família vinha de muito suor derramado, das nossas mãos sofridas e cheias de calos. O pão de

cada dia era fruto daquilo que plantávamos. Abatia-se o gado e conservava a carne, com o

maior cuidado, para comer durante vários meses. Tudo era muito diferente de hoje em dia,

que compramos carne fresca, frango, peixe... e conservamos na geladeira para comer durante

a semana. Há açougues e mercados que comercializam carne durante todos os dias da

semana.

Lembro-me ainda, que quando pequena, minha mãe Joana me falava dos primeiros

moradores daqui, os quais estão em minhas lembranças: João Félix Alves, Joaquim

Raimundo Barros (o capitão Quim), Delfino Alves de Araújo, Manuel Messias Novais,

Roberto Rodrigues e Manoel Félix, sendo este, o principal responsável e de suma importância

na “descoberta” de Iraquara.

Certo dia, quando saiu à procura de animais perdidos, Manoel Félix ia abrindo picadas

e à medida que ia andando, ele encontrava objetos no caminho, deixados pelos índios, coisas

como cabaças e panelas. Depois de muita caminhada, avistou um poço e encontrou uma

minação. Em sua homenagem, esse poço recebeu o nome de Poço de Manoel Félix.

Percebendo as terras férteis existentes ao redor daquela minação, ele começou a recrutar

várias pessoas para ajudá-lo a desmatar aquela gigantesca mata e, assim, foram feitas as

primeiras roças para o plantio. O tempo foi passando, o povoado foi crescendo ainda mais,

formando as primeiras ruas: Rua do Carreiro e Rua de Baixo, o que depois de muito tempo

deu origem a uma vila. Alguns anos mais tarde, a feira que acontecia em Cana-brava foi

transferida para Iraquara, ampliando o comércio e acelerando o desenvolvimento do lugar.

Antigamente eu trabalhava na roça, hoje sou aposentada e tenho 71 anos. Sinto muitas

saudades daqueles tempos de minha infância, mas guardo em meu coração boas lembranças

que o tempo não foi capaz de apagar. Ainda moro aqui, nesta adorável comunidade, nossa

pequena Cana Brava, um lugar muito importante na história da querida Iraquara.

Memória baseada a partir da entrevista com a srª Nivalda Barros de Araújo.

¹Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil.

FEIRAS QUE RECONTO

Joelma da Silva Pires¹

Vivi minha juventude numa época de muita dificuldade, tive que trabalhar desde muito

cedo, mas mesmo assim passávamos necessidade, tendo pouca comida para por na mesa.

Mas a alegria era encontrada em detalhes simples da vida como frequentar a feira do poço.

Este sempre foi o meu maior divertimento.

Quando era rapaz costumava fazer aquele trajeto a pé de minha casa – Queimada dos

Guedes – até o centro da cidade chamada Poço acompanhado de meus amigos e minha irmã.

Encontrava na feira o suficiente para fazer daquele instante um momento de prazer.

Lembro-me quando nossa cidade se resumia aquele pequeno espaço da praça da feira

que dava acesso a três ruas: Rua Parnaíba, Rua do Carreiro e Rua da Fonte. O que se

formava ali podia ser observado e visitado em poucos minutos, mas o gosto de pertencer

aquela pequena vila chamada Poço era de uma grandeza inigualável.

Em volta da praça, onde acontecia a feira livre, podíamos encontrar um pequeno

comércio. A sapataria de Epaminondas que além de fazer sapato produzia também fogos de

artifício; a loja de Dué que vendia cortes de pano; a alfaiataria de seu Gutembergue; a

barbearia de Haroldo e a venda de Lió Cruz que vendia ferragem, alumínio e todos os

outros produtos que se imaginassem e sentisse necessidade de comprar. Esses espaços

ficavam muito movimentados no dia da feira. As pessoas aproveitavam esse dia para

comprar o que necessitavam e aqueles mais lordes cuidavam também da beleza. Os outros

dias da semana o trabalho intenso seguia de sol a sol na roça dos grandes proprietários de

terra que tinham condição de pagar trabalhador.

O mais gostoso mesmo era chegar na padaria do Bolivar, homem admirado pela

moçada daquele tempo. Era lá que toda rapaziada se reunia, envolvidos com o que era

vendido naquele lugar e atraídos também pela alegria e disposição do dono do

estabelecimento, que sempre encontrava tempo para organizar times de futebol com aqueles

jovens cheios de vida que ali frequentavam. A paixão pelo esporte era tanta, que em época

de copa do mundo ficávamos todos atentos ao jogo que era assistido pelo rádio. Era uma

festança quando a seleção brasileira fazia um gol. A sensação era a mesma de estar num

estádio de futebol, vendo Pelé com seus dribles e chutes mirabolantes.

Nesse passeio de toda semana sempre achava um jeito de galantear uma moça bonita

e ficar horas de prosa e paqueras com essas meninas na casa de Anísia ou de Maria de Véi,

habitações que eram localizadas mais afastadas da praça, lugares propícios para namoricos.

Quando casei tinha outras obrigações, a feira, além dos meus divertimentos do tempo

de rapaz. Arriava o jegue logo cedo, colocava nas bruacas um pouco de milho, feijão ou

fava e partia para a feira do poço. Chegava lá, vendia os mantimentos da roça e comprava

tocinho, arroz, carne, cebola, alho e café em caroço para ser torrado e pilado em casa. Essa

lida era vivida por todo aquele povo da época. A praça ficava forrada de tanta bruaca, quase

tudo que se vendia naquele espaço estava dentro desse artefato de couro de boi. As poucas

barracas que existiam eram apenas para as carnes, que eram pesadas em balanças de dois

¹Coordenadora Pedagógica da Escola Municipal Anísio de Souza Marques.

pratos. Os outros alimentos eram vendidos no prato (medida de madeira que corresponde a 3

litros).

As minhas idas na feira do Poço foram tantas que ainda me lembro quando a praça era

de chão de terra. Quando chovia eram uma lamaceira só e gente escorregando naquele

terreiro inclinado localizado no alto da ladeira da fonte. Era preciso procurar os lugares mais

enxutos para arrumar as bruacas. Isso durou pouco, porque a praça foi logo calçada por

Manoel Teixeira Leite.

Os tempos foram mudando e meus companheiros de estrada rumo a praça da feira

também. Agora era acompanhado pela minha esposa e uma bicicleta, meio de transporte

mais sofisticado. O que ainda permanecia era o gosto que me levava àquele lugar para

encontrar os amigos, bater um papo, fumar meu cigarro e tomar minha pinguinha. No

entanto, os encargos de chefe de família não eram esquecidos. Quando a esposa chamava

para ir embora, amarrava o saco na garupa da bicicleta e pegava o caminho de casa.

Hoje, a cidade se estendeu e o espaço da feira é um mundaréu comparando-o com

aqueles tempos. O transporte também ficou mais sofisticado, agora ando de carro. Já não

frequento mais a velha praça. Encontro meus amigos do lado do mercadão na Praça Périclis

Gama. O divertimento foi reduzido às conversas, pois a saúde já não permite a esbórnia de

velhos tempos. Mas o prazer dessa visita semanal ainda continua o mesmo.

Texto produzido em abril de 2012, baseado na entrevista feita com

o Sr. Jaime Franscisco Dourado, 76 anos.

A ALEGRIA DE UM PASSADO QUE NÃO PREVALECEU...

Aline Novaes¹

Tempos que não voltam mais! Essa é uma das certezas que não me deixam nem um

pouco triste. Às vezes, sentada em um banquinho de madeira na cozinha de minha casa,

não consigo controlar algumas lembranças que não tenho nenhum prazer em revirar. Todas

essas lembranças estão intimamente ligadas a pior condição que um ser humano pode

chegar: ser privado de alimentar.

É muito difícil olhar para trás e não deixar que essas nuvens negras de lembranças

não sobressaia aos demais momentos que eram imperceptíveis, pois como pode haver boas

recordações quando se vive por um período no qual prevalece ao seu redor é a extrema

miséria.

Tudo começou nos anos de 1931, é possível fazer uma relação entre o ano do meu

nascimento e uma das maiores crises nordestinas “ A fome de 32” , quem merece vir a esse

mundo em um ano que não deixou saudade para muitos? Quando penso nas histórias que

ouvi dos meus pais acerca das condições em que vim ao mundo, às vezes chego a pensar se

não era realmente melhor não conseguir lembrar, pois chego a sentir calafrios e uma tristeza

que chega a “inublar” os meus olhos.

Fui uma sobrevivente da fome de 32, mas uma protagonista ativa da fome de 39, onde

presenciei como a minha mãe fazia para garantir que não morrêssemos de fome (eu e meus

irmãos), saía logo de madrugada para catar folha de juá, mandioca e palmas. Esse era o

cardápio constante. E o tempero? Apenas o sal. Quando penso nisso, sinto uma angústia tão

grande que chega me faltar ar, pois, o sofrimento fez parte da minha infância.

Ao pensar nos momentos felizes da minha infância... Será que aconteceu? E eu não

consegui perceber pelo sofrimento, ou realmente não houve, porque o alimento, a principal

condição para o ser humano conseguir perceber o mundo a seu redor. Sei lá, acabo não

tendo muitas respostas para essa pergunta. Assim, cresci no povoado de Vai-Quem-Quer,

nome esse recebido pelo fato de ficar em um lugar onde apenas havia a casa dos meus pais

era um lugar bastante isolado.

Assim, o tempo foi passando e a infância como não espera, também passou... e chega

o dia mais sonhado por qualquer mulher, mesmo que todos outros os sonhos tenham dado

errado “ O casamento”. Aos 19 anos de idade, antes de acordar do sonho veio o pesadelo “

A fome de 52”, talvez uma das mais crueis, talvez por nesse momento já ter o primeiro filho

e esperando a chegada do segundo, e por já conhecer o resultado dessa terrível peste “ a

fome”. O sentimento que tomou meu coração é impossível descrever, ficará na imaginação e

sensibilidade de cada um de nós povo sofrido, mas guerreiro frente as amarguras impostas

pela vida .Oxalá, pudesse esquecer de todo o sofrimento que passei!

Fico a pensar como hoje estamos “no céu”, já que 2012, novamente, a seca assola

nossa terra, e ainda assim, as pessoas não sofrem tanto como antigamente, graças às

melhores condições de vida.

Também não posso ser injusta com meu passado, tive nove filhos

maravilhosos,

¹ Coordenadora Pedagógica da Escola Municipal Zélia Ribeiro Coutinho.

presentes de Deus. Apesar de tanta angústia e sofrimentos, houve alguns momentos que vale

lembrar. No entanto, para falar a verdade, não sei dizer direito quais são, pois os ruins

cuidaram de embaralhar os bons.

Mas hoje sou feliz! Sou feliz por hoje... tudo é muito bom. Os programas do governo

não tem deixado faltar o que é necessário para alimentação, houve melhorias na saúde... e

assim a vida continua de uma maneira que deveria ter sido durante todo esse tempo. O bom

mesmo é que sou uma sobrevivente de tantas tragédias, que não prevaleceram sobre minha

vida.

Texto produzido com base na entrevista da Srª Augusta Rosa da Encarnação, 84 anos.

TEMPOS PARA RECORDAR

Luciana Gonçalves dos Santos Rocha¹

Nasci e cresci na cidade de Iraquara, antigo Poço de Manoel Félix, um lugarzinho

pacato e cheio de encantos, recordo com muito carinho os inesquecíveis desfiles que

contagiavam e embelezavam a Praça Manoel Teixeira Leite, vi e participei de muitos desses,

imensidões de pessoas desfilavam radiantes em seus blocos, eram difícil de acreditar no que

os olhos viam. Cada qual com uma beleza particular. Estes blocos representavam todas as

datas comemorativas do ano. Eu sempre saia nos pelotões de São João, pois eram os blocos

que estavam dentro do orçamento de minha família. Lembro-me das saias de bramante que

usávamos para dançar quadrilha.

Recordo-me ainda das feiras livres, nas quintas- feira na praça em frente ao grande

salão azul e a bela Igreja de Nossa Senhora do Livramento que hoje deu lugar a uma

lanchonete.

Naqueles tempos a vida era simples. Não tínhamos acesso a rádio, televisão, então

nos reuníamos nas casas dos vizinhos para ouvirmos as belas histórias, deitávamos sobre as

esteiras espalhadas no terreiro contemplando o céu azul repleto de estrelas, elas pareciam

que se comunicar com a gente. Os finais de semana eram ansiosamente esperados para os

nossos divertimentos, eram grandes e fazíamos maravilhosas paneladas com as amigas

embaixo das árvores de umbuzeiros e juás. Que delícia! À noite, o meu pai e seus amigos

incorporavam um belo e simpático padre para realizar os batizados das nossas bonecas, e

alegravam a festa com violão e sanfona. As mínimas diversões nos enchiam de emoções e

nossa imaginação transformava tudo em festa. As tardes inesquecíveis estão guardadas em

minha memória. Recordá-las é trazer de volta a alegria da minha meninice, num misto de

saudade e contentamento, pois, muitas dessas amizades continuam e, quando encontro

minhas comadres daqueles tempos, parece que o tempo não passou, recordamos doces e

memoráveis lembranças.

Hoje, vivo em Afrânio Peixoto, município de Lençóis, mas sou cidadã ativa de minha

eterna Iraquara. Vivo com meus netos e conto para eles muitas das minhas lembranças,

principalmente sobre as escolas. São lembranças maravilhosas da minha eterna professora

Dona Lolina. Vejo como se fosse hoje os alunos sentados, enfileirados, e a professora

escrevendo o dever em um quadro de cimento. Não tinha merenda, cada qual levava o que

tinha em casa. Nos tempos de escola, morava com minha avó Severa, ela era uma doceira de

mão cheia que caprichava no meu lanche, com muito carinho: bolo de milho, pão caseiro,

brevidade feita no forno à lenha. Hoje, a merenda é de fartura, os meninos comem que é

uma beleza.

E os uniformes? Como esquecê-los? Blusa branca e saia azul de preguinhas.

Costumava ir à escola com a minha professora, pois ela morava ao lado da casa de minha

avó. Também estão presentes em minhas lembranças outras inesquecíveis professoras que

contribuíram para o meu aprendizado, Maria Ribeiro e Griselda. Lembro como se fosse hoje

as lições que os alunos liam e reliam, pois tinham que decorar tudo o que a professora

¹Coordenadora pedagógica da Escola Artemízia Rodrigues Nogueira.

falava. Hoje, fico imensamente feliz ao ver meus netos reunidos com os colegas, fazendo

trabalhos escolares, pesquisando, discutindo sobre temas variados: bulling, preconceito,

entre outros, e fico boquiaberta com a conversa deles. Muitas vezes questiono: O que vocês

estão falando? Eles me explicam e fico a pensar o quanto a educação mudou e mudou para

melhor. Não se vê mais os terríveis castigos, o que o aluno aprende ele não esquece, pois o

conhecimento foi construído e não imposto de maneira autoritária e sem sentido.

Recordo dos cadernos pequenos, papéis pautados para fazer os exames com desenhos

nas capas, a Cartilha de Alice, cheia de figuras onde soletrávamos as letras e falávamos o

nome do desenho, a inesquecível tabuada e os velhos castigos que acredito que muitos já

ouviram falar. Lembro-me também das histórias de Branca de Neve e Chapeuzinho

Vermelho. Eram livrões da capa dura e vermelha. Nas sexta feira, líamos cada um a sua

história na hora do recreio, enquanto os meninos iam jogar bola, pois eles não brincavam

com as meninas como hoje.

Ao chegarmos à escola, rezávamos e cantávamos o Hino Nacional, depois a

professora ia fazer o dever nos cadernos dos alunos. Enquanto isso, íamos estudar “ler o

livro”, também me lembro dos momentos de tomar a lição. Ainda tenho uma breve

lembrança do livro paliogra (manuscrito histórico antigo), que era todo escrito à mão, com

os nomes todos abreviados. O aluno tinha de ser capaz de identificar as abreviaturas usadas

no texto do registro. Para quem terminasse de ler esse livro valia como uma formatura hoje.

Também tinha o momento de ler de cor, a professora ficava com o livro e a gente ia lendo e

o professor observava se estava correto. Caso conseguíssemos ler de cor poderíamos ensinar

os colegas, tomar lição, fazer dever no caderno do aluno, ensinar abc, pois já estávamos

adiantados como costumava dizer.

Hoje convivo com a imensa saudade daqueles tempos, e vejo o quanto a cidade

cresceu.Aos sábados, quando vou a Iraquara, vejo a enorme feira, totalmente diferente, e

lembro-me do meu pai vendendo rapadura, café, toucinho dos porcos que criava. Orgulho-

me de dizer que sou filha da cidade das grutas, pequena no tamanho, mas grande nos

corações do povo iraquarense.

Entrevista realizada com Maria Aparecida Silva Santos, 58 anos.

CAATINGA DO POÇO

Elaine Martins¹

Guardo em minha memória lembranças de momentos vividos na minha terra querida.

Eu era traquino, traquino e traquino mesmo, são lembranças que me fazem rir da barriga

doer. Impossível esquecer também dos tempos difíceis de seca que marcaram minha vida no

pequeno povoado da bela Iraquara, onde fui criado junto com meus oitos irmãos.

Tempos de sofrimento aqueles, que estão vivos em minha memória: a casa era um

bangalô de taipa, toda esburacada, as camas de varas que mais pareciam um giral de colocar

sacos, mas tínhamos uma cozinha acolhedora, com um fogão comprido que aquecia nossos

corpos nas noites frias de inverno. Ah! Como eu sinto saudades. Hoje as cozinhas são frias

e aquele fogão a lenha que me aquecia não existe mais.

Lembro-me com saudade do pouco tempo que estudei, da minha professora Dona

Benzinha, e dos meus colegas. Íamos todos badocando Chorró com fruta de quiabento.

Quando chegávamos a escola a adorável professora dizia assim: “Ô Alencar vai na Lapa

Doce buscar uma água e Renato mais Reinaldo vai catar umas vagens de andu pra mim

botar no fogo”, logo chegava a água debulhávamos o andu e a professora dizia: “ Vamos os

meninos estudar agora”. Sei que a escola de hoje é bem diferente, mais o pouco que sei

agradeço a boa vontade da minha adorável mestra.

As lembranças nem sempre são boas. Vivíamos em uma época difícil, sofremos muito,

meu pai era um homem muito trabalhador que nunca deixou faltar o pão na mesa, mas

passamos por momentos complicados que angustiavam meu pai e afligia o coração de

minha mãe, mulher carinhosa e inteligente.

Meus irmãos e eu catávamos muita mamona para ajudar na despesa de casa, éramos

muito unidos, um comprava o peixe, outro o toucinho e o outro a farinha, era uma alegria

só! Pois sabíamos que o angu de meio-dia não iria faltar, logo após a refeição estávamos

prontos para voltar à roça. Notava a tristeza nos olhos do meu pai e a angústia que apertava

seu coração ao ver seus filhos na roça dos outros catando mamona.

Além da mamona catávamos também uns caroços de fava, um, dois anos que tinha

estalado naquele chão, em casa separávamos a fava para cozinhar, o gosto não era bom,

disso lembro-me bem, pois ficava meio esturricada e para cozinhar só mesmo na panela de

barro e muito fogo.

Passamos por períodos difíceis o feijão e o milho que plantávamos não produziam por

que a chuva mal caia, perdíamos tudo que havíamos plantado. Não é como hoje que produz

alguma coisa, naquele tempo não produzia nada.

Poucas vezes me lembro de ter comido carne, era fato, carne de cabeça, que era

barato. Arroz, só quando tinha visita em casa, que minha mãe logo providenciava, pois o

pão de cada dia era angu ou feijão com toucinho.

Fui muitas vezes a feira de Palmeiras comercializar o milho que preparávamos na

ponta da faca, saía ainda de madrugada a pé com a carga no jegue, vendia o milho todo, pois

nossos produtos eram os melhores e os compradores da região gostavam da simpatia dos

¹ Coordenadora Pedagógica da escola Julião de Souza Braga.

caatingueiros do poço, como éramos conhecidos. Comprava os mantimentos da semana e no

finalzinho da tarde antes do sol se pôr estava de volta ao aconchego do lar.

No ano de 1952, meu pai precisou ir pra São Paulo por que a seca estava castigando

demais nossa família, lá ficou por um ano, mas veio com as mãos abanando, e o pouco que

trouxe pagou o Sr. Manoel Teixeira Leite, que costumava vender pro meu pai pra pagar no

outro ano.

A coisa ficou preta nesse ano... Meu pai em São Paulo, meu irmão mais velho

trabalhando na construção da BR -242 para ajudar no sustento da família, recebia em troca

um “boró” pedaço de papel para trocar por comida. Na sexta feira, meu irmão mais novo

buscava esses alimentos em Palmeiras, quanto sofrimento e quanta força ele precisava para

chegar até em casa com aquela cesta na cabeça.

Eu e meus irmãos trabalhávamos a troco de farinha e rapadura, parecíamos um trator

pra trabalhar sob o sol escaldante, contudo isso me orgulhava, pois apesar da seca nunca

deixamos faltar nada em casa.

Era uma tristeza pegar água no tanque, e quando secavam o coração chegava apertar,

pois sabíamos que teríamos que buscar água fora ainda bem que tinha o poço de Artêmio e o

Escôncio dos Morais.

Mais chegou um tempo de seca brava como essa que está ocorrendo agora, a seca foi

montando e as águas acabando, a coisa era tão feia, que o povo começou a invadir o Rio

Pratinha, com seus jegues e barris para buscar água, saiamos ainda de madrugada, era

animal brigando, barril de água quebrando... Mas difícil mesmo, era para quem não tinha

animal, que buscar água “de meia”, pra não passar sede.

A coisa começou a melhorar no ano de 1963 a 1965 quando pegamos umas roças de

meia, foi um ano de grande fartura, e nunca mais precisamos trabalhar um só dia na roça de

seu ninguém o que muito me alegrava.

Como era bom ver a chuva caindo, terra molhada, tanques cheios, era uma alegria

saber que as dificuldades dos tempos de seca estavam se esvaindo.

Naquela época, a seca era tão grande, que eu nem comparo com a de hoje, hoje tudo é

mais fácil: água encanada, aposentadoria, ajuda do governo, apesar das dificuldades de hoje

considero que estamos no céu.

Aprendi a lidar com a terra e gosto muito, é um trabalho pesado mais a gente que é

acostumado, não sente o peso.

Essa terra é abençoada, a riqueza que encontro aqui em lugar nenhum do mundo tem,

aqui eu aprendi a viver, plantei minha raiz, construí minha família e esses frutos são para

vida toda.

Texto baseado na entrevista feita com o Sr. Reinato Joaquim de Oliveira, 73 anos.

IRAQUARA, UM GRITO DE INDEPENDÊNCIA

Marlane Rosa de Sousa¹

Tanto tempo se passou, mas o encantamento das belas recordações de minha juventude

segue invadindo o meu ser. E com esse sentimento, acomodado em meu interior, lembro-me,

como se fosse hoje, o ano de 1958. Marco importante! Chegava eu, aqui nessa terra, que hoje,

considero minha pátria.

Naquele tempo, ainda muito jovem, fiquei na casa de uma senhora, na qual servia de

pousada, a tão acolhedora "pensão" de Dona Pipita e acabei casando com sua filha, Helenita

Pereira Matos, moça bonita que meus olhos ao mirá-la pela primeira vez, fez meu

apaixonado coração bater mais forte. Os anos passaram e decidi fixar morada neste

maravilhoso lugar, porque ouvia dizer lá em Lençóis, cidade em que habitava antes, que era

uma vila, muito boa de morar, povoada por pessoas tranquilas, ordeiras e hospitaleiras, onde

todo mundo conhecia todo mundo. Um bom lugar para se viver! Era um local muito atrasado,

e não tinha praticamente nada. As ruas eram esburacadas, quando chovia o lamaçal se tornava

um lugar atrativo para nossas brincadeiras, para os passeios de bicicletas. A cidade não tinha

praças estruturadas e organizadas como hoje. Mas, mesmo assim, tenho saudades, pois eram

nestes locais esburacados, “feios”, que eu costumava, junto com meus amigos, passar as mais

gostosas horas de lazer. Para mim era o melhor lugar do mundo, o lugar mais aconchegante

que poderia existir.

Foi aqui nessa terra que tive o prazer de ocupar, anos mais tarde uma cadeira na

câmara de vereadores, por quatro mandatos consecutivos. Recordo que naquele tempo, quase

não se via automóvel por estas bandas, o meio de transporte utilizado era cavalo, jegue e

bicicleta, onde pedalava ofegante indo em direção às casas das pessoas que necessitavam de

ajuda, para tentar contribuir com alguma coisa fazendo um favor aqui outro acolá, ajudando

com um remédio, trazendo benefícios para o nosso povo.

Quando a memória aquece com esse assunto, o coração se alegra em lembrar uma ação

que merece destaque nesta minha trajetória. A emancipação desta cidade, que além de bela,

ansiava por uma independência administrativa. Por isso, nessa ocasião reunimos algumas

pessoas influentes e formamos uma comissão que iria até a Cidade de Salvador pedir ao

Deputado Estadual daquela época, André Cruz, que intermediasse este nosso pedido junto ao

governador Juracy Magalhães. A expectativa foi tamanha! E o que para muitos parecia

utopia, virou realidade. Nossa cidade foi emancipada e com isso ficou independente do

município de Seabra. Parecia sonho, a nossa querida cidade seria administrada por um fruto

desse lugar. Valter Coutinho, nosso primeiro prefeito, homem inteligente, culto e também

muito amigo. E para não dizer que é um conto de fadas, confesso que tivemos algumas

desavenças política claro! Mas, nada que interferisse em nossa amizade. Às vezes me perco

em pensamentos e lembranças daquele tempo bom que não volta mais.

Hoje, a nossa Iraquara comemora seus 50 anos, parece que foi ontem a nossa luta.

Posso dizer que ainda ecoa em meus ouvidos o grito de independência.

Texto produzido com base na entrevista com o Senhor Ângelo Matos

¹Coordenadora Pedagógica da Escola Manoel Félix.

LEMBRANÇAS DE UM TEMPO QUE SE FOI

Jose Neto Lopes dos Santos¹

Sinto emocionada ao lembrar meu passado, os bons tempos de garota e de muitas

dificuldades. Considero-me uma mulher guerreira, que muito batalhou desde a mais tenra

infância para sobreviver e realizar o sonho de ser professora. Tinha apenas 13 primaveras,

quando comecei a lecionar. Vi e vivi muitas transformações na educação no decorrer dos anos.

Aluna de Lúcia Correia, na década de 40, sempre gostei de estudar, mas só tive a

oportunidade de viver esse mundo brilhante que é a escola já com 8 anos de idade e ainda

com material ganhado, pois uma pobre criança órfã naquele tempo não tinha dinheiro algum

para comprá-lo. Assim, vencendo as dificuldades impostas pela vida, continuei estudando até

chegar, como hoje se diz, à 4ª série ou 5º ano, tornando-me professora. Primeiro, lecionei em

Campos de Fora, município de Souto Soares, depois no Riachão, na casa de Moisés e no

Sonhém, na casa de Aristides. Toda essa minha trajetória foi vivenciada como professora de

escola particular. Somente no final da década de 60, por intermédio do morador Raul Antônio

Teixeira, numa feijoada no Minador, o senhor Walter Coutinho apresentou Dué “Genelício

Costa Teixeira” como futuro candidato a prefeito e prometeu construir uma escola no povoado

de Sonhém. Quanta esperança tomou conta de nossos olhos naquele momento! A partir

daquela tarde memorável, passamos a sonhar com o dia que nossa escolinha fosse erguida.

Anos depois, a promessa foi cumprida. Era início da década de 70, quando o prefeito Dué,

inaugurou nossa tão almejada escolinha. Pequenina, mas aconchegante, que nesses mais de

quarenta anos tem acolhido tantas crianças, semeado tantas esperanças. Em 1974, comecei a

ensinar nessa tão sonhada escola, a qual recebeu o nome de Anísio Teixeira. Até hoje, ninguém

sabe ao certo, mas acredita-se que esse nome era uma homenagem a seu irmão, outros dizem

que era uma referência ao secretário de educação da Bahia daquela época.

Tempos difíceis aqueles! Estudar era um privilégio de poucos. As famílias não

valorizavam tanto a escola como deveriam. Pensavam que aprender se resumia a ler uma carta

e escrever outra. Naquele tempo, ensinava-se o catecismo, os bons costumes da vida e outras

matérias. Hoje é tudo mais fácil. Há escolas públicas que nada custam a quem quer estudar.

Material escolar é comprado pelo preço que cabe no bolso de cada um. Há merenda, livros,

transporte, professores com boa formação... Infelizmente, a garotada não dá valor a tudo isso

que muitos sonharam conquistar.

São essas lembranças que guardo em minha memória. Lembranças de uma professorinha

que viu erguerem-se as primeiras paredes daquela escola que ainda hoje, reúne todos os dias os

filhos de nossa comunidade. Infelizmente, a vida de uma dedicada mãe de família, senhora do

lar, tomada por tantos afazeres domésticos, levou-me a desistir da profissão. Mas, não me

arrependo, já que tenho uma família unida e feliz.

Texto produzido com base na entrevista com Maria Lima.

¹Coordenador Pedagógico da Escola Municipal Rui Barbosa.

BONS TEMPOS QUE NÃO VOLTAM MAIS...

Iuldes Ferreira¹

Nasci na década de 30, mais precisamente no ano de 1932, ano de muito sofrimento,

miséria, muita necessidade, pois, segundo meus pais, a falta de chuva e fome maltratava o

povo daquela época. Sobrevivi ao tempo ruim, graças aos esforços de meus pais, gente

trabalhadora, pessoas de bem. Criei-me na comunidade de Jacu Mago, hoje conhecida pelo

nome Rio Verde pertencente à nossa cidade, conhecida atualmente como Iraquara, a antiga

Poço de Manoel Félix.

Depois de crescido e casado recebi uma proposta de trabalho. Me emociono ao

lembrar de pessoas como dona Artemísia e seu Simpliciano que me forneceram suas terras

para o meu labuto . Tive que me mudar para uma pequena fazenda de nome Ingazeira,

localizada em Iraquara. Ah! Velha Ingazeira, que me trouxe muitas felicidades... Sinto o

gosto da saudade, quando me invade o peito essas doces recordações.

Terra boa, tudo que se plantava, colhia com fartura, pois, as chuvas não eram tão

escassas como agora. Já trabalhei muito em minha vida. Só em Ingazeira foram trinta e

cinco anos de luta, trabalhando de ”meia”, para não faltar o pão de cada dia, na mesa dos

meus filhos que eram muitos.

Graças a Deus, nunca nos faltou nada. Feijão, milho, mandioca, fava, batata doce,

aipim, a tão famosa macaxeira, etc., sem contar as frutas que durante as estações do ano

eram de muita fartura. O cheiro das frutas misturava-se com o cheiro do mato verde e

incendiavam os ares. Debaixo das goiabeiras, jabuticabeiras, jaqueiras, mangueiras,

laranjeiras, ingazeiras, umbuzeiros e tantas outras árvores frutíferas, que hoje não existe

mais, crianças e adultos se lambuzavam ao degustar as frutas fresquinhas tiradas do pé.

Hoje tudo está mudado, as frutas não têm o mesmo sabor, o único cheiro que sentimos

é o cheiro dos agrotóxicos, tirando o gosto natural. Devido à falta de chuva, tudo que se quer

tem que comprar, sem muita opção de escolha.

Estimava muito os dias de chuva, bastava olhar para o céu, perceber nuvens

carregadinhas, meu olhar brilhava de alegria, pois chuva era e continua sendo, sinal de

muita fartura. Tanto para as pessoas, como para os bichos.

Recordo, com imensa saudade, os tempos de cheia. Os pingos de chuva começavam

a cair vagarosamente e, num passe de mágica, transformava-se em poças d‟água, depois em

cachoeira, que descia ladeira abaixo e transbordava tudo. O volume d água era tamanho que,

um rio nascido na região de Água de Rega descia pelos vales do terreno da Ingazeira,

acabava inundando o terreno, permanecendo por alguns dias, para a alegria da criançada.

Sofro muito ao perceber que, com o passar dos anos, aquele lugarzinho tranquilo

onde construí minha casinha, criei meus filhos, hoje já não existe mais. O pomar virou

pasto, as terras não são mais utilizadas para plantações, o rio há anos , não desce mais, por

causa das represas e da falta de chuva. A casa velha que morei com minha família foi

destruída pelo tempo e a casa grande dos patrões. Hoje, algumas paredes ainda resistem de

pé, servem para dar sombra aos animais.

¹Coordenadopra Pedagógica da Escola Municipal Emídio Pereira Evangelista.

Lamento não ter nascido muito antes para poder desfrutar mais daquela fazendinha,

que embora não sendo minha, cuidava com carinho e tanto mimo que sentia como se fosse.

Que pena! Muitos não terão a oportunidade de viver um tempo como aquele, tempos

difíceis, porém de muitas alegrias e encantos. Fica apenas a saudade dos bons tempos,

impossível de voltar atrás, a não ser através das lembranças guardadas na memória.

Texto baseado na entrevista feita com o senhor Joaquim Alves da Silva, 80 anos.

VELHA INFÂNCIA

Aline Gunes Vieira e Vieira¹

De volta ao passado, chegando ao presente, fechei os olhos e pronto!!! Lá estou, com

meus treze anos, na Canabravinha, este lugar que era lindo e simples.Tinha a casa de frente

para o leste, com suas janelas altas e largas, piso de ardósia e, claro, o fogão a lenha, grande

e alto, do jeito que minha mãe gostava. Ah! Sem esquecer do pé de burguevilha rosa escuro,

quase roxo, que ficava no canto da cerca, em formato de toca. Minha mãe, toda tarde

estendia sua esteira de palha de licuri, pegava seu rádio e fazia seu crochê ou bordado em

sua sombra tão grandiosa.

Toda manhã, ouvia aquele barulhinho do gado preso no curral, e logo, o leite fresco

chegava. Sentada no banco, tomando sol, a terra úmida da chuva da noite anterior. Lampiã,

que morava e trabalhava com meu pai, chegou e sentou-se ao meu lado.

– Vamos pegar umbu, pião? falei já sabendo o que iria responder.

– Deixa o gado bater o ruivai (derrubar o orvalho)!

– Lá para as oito e meia, vamos todos.

Eu, Lampião e meus irmãos, que já podiam trazer a lata ou outro vasilhame com os

umbus, fomos para o lado da Lapa do Salitre que tinha os maiores umbuzeiros . Ah! O

umbuzeiro é uma das coisas mais maravilhosas do sertão. Sua sombra protege o sol

abrasador, seu fruto é uma das coisas mais saborosas do sertão. O gado até se alimenta de

suas raízes quando a seca é “braba”. Mas, tem coisa mais incrível do que um umbuzeiro em

época de seca? A gente acha que ele está morrendo, que nunca mais irá dar os deliciosos

frutos e ele, pacientemente, espera a época das águas para voltar a produzir com fartura,

como se fosse um passe de mágica, uma vida que recomeça.

Hoje, não existe nem os escombros da casa velha que me faz encher os olhos de

lágrimas. Talvez, os melhores anos, a meninice, brincadeiras nos terreiros, traquinagens com

meus irmãos, os banhos no riacho do São José . Lembro-me do oratório de minha avó,o

velho fogão a lenha, um pote emborcado no canto da parede, um candeeiro encarvoado com

o velho pavio de algodão gasto pela metade, estas figuras tão marcantes que me ajudam a

atiçar, com mais propriedades, o sentido que traz de volta ao mundo fantástico da infância,

que guardo em minha memória.

Memória escrita com base na entrevistada com Wanderlina Gunes, 69 anos.

¹Coordenadora Pedagógica do Educandário Roberto Figueira dos Santos.

POR ENTRE BOMBAS DE COCO, TRAQUES E ROJÕES

Flávia Alves de Souza Silva¹

Naquele tempo, lá pelos idos da década de 60, a vida era muito difícil, principalmente

para famílias como a nossa: pobres lavradores da zona rural, recém chegados à cidade, sem

nome importante, apenas um monte de filhos para criar. Menino tinha que trabalhar para

ajudar os pais no sustento da casa. Foi assim que, desde muito cedo, aprendi a trabalhar na

roça, nos fornos de cal; fazer esteiras, balaios e até cachimbo (muito usado na época) para

vender. Também era vendedor de velas e doces de banana, às vezes até pedaços de

requeijão. Tudo isso era para ganhar o meu próprio dinheirinho, poucos tostões para ajudar

nas despesas da casa e comprar o caderno e o lápis, nutrir o desejo ardente de estudar.

Recordo-me com saudades das festas juninas do meu tempo de menino. Aquilo que

era folia! Fogueiras em pé, festas animadas por sanfoneiros que tocavam na praça e na casa

dos moradores. Fogos e chuva de prata competiam com as estrelas no céu, iluminando as

noites de São João da nossa pequenina Iraquara. Um verdadeiro espetáculo!

Desprovido de qualquer vaidade, eu não tinha como comprar fogos, as bombinhas

para soltar nos animados festejos juninos. Admirava os meninos, filhos de famílias

abastadas, que vinham da capital, soltando foguetes pelas ruas, causando inveja em nós,

pobres moleques que não tinham um centavo furado para comprar uma bombinha e

participar daquela algazarra.

Aos treze anos de idade, impulsionado por essa vontade ardente de soltar fogos,

traques, chuvinhas... e a necessidade de ganhar uns trocados, comecei a trabalhar com a

venda de fogos de artifícios.

Vendia-os para seu Epaminondas, aquele que ainda hoje tem um ponto comercial na

Praça Manoel Teixeira Leite (lá inda se vê nas prateleiras os fogos de artifício que o

consagrou como Epaminondas fogueteiro). Foi esse senhor que, pacientemente, ensinou-me

a arte de manipular os explosivos. Ele dava uma pequena comissão para que eu revendesse

aquela maravilhosa mercadoria.

Ah! Não sabem os moleques, que hoje compram bombinhas em minha mão, o quanto

eu naquele ano (1970) sentia-me feliz. Não era só porque eu estava ganhando uns trocados.

Eu era o próprio vendedor de fogos de artifício! Coisa que só seu Epaminondas e Haroldo

faziam. Eu não necessitaria mais espiar os garotos que brincavam no São João. Sentia-me

importante, era o dono da barraca que podia (com minha pequena comissão, depois que

tirasse o necessário para ajudar em casa), soltar quantas bombinhas quisesse.

Por cinco longos anos segui trabalhando para Epaminondas até conquistar minha

independência. Como os fogos vinham de Santo Antonio de Jesus, aqui mesmo na Bahia,

esperto como eu era, fui, aos poucos, conhecendo os vendedores que, naquela época, faziam

pronta entrega, e juntando uns poucos tostões para ser dono do meu próprio negócio. Eram

explosivos fabricados artesanalmente. Limitavam-se a três tipos: fogos, traques e chuva de

prata.

¹Diretora Pedagógica.

Comecei a vender nas feiras da região. Fazia presença em Parnaíba (Iraporanga), Água de

Rega, Lagoa de Santa Rita, Souto Soares, Várzea do Cerco, Mulungu do Morro e Canarana.

Chegava a revender até para comerciantes de Barro Alto e Barra do Mendes, ganhando 2% da

firma para a qual eu vendia.

Naquela época, aqui em Iraquara ainda havia algumas fabriquetas de fogos, como a de um

senhor lá dos Araçás que fazia bombinhas de coco licuri, rojão de vara e bombas de choque. Às

vezes, movido pela curiosidade, eu ia até lá, ver como se fazia aqueles explosíveis que, por mais

obsoletos que fossem, causavam em mim uma paixão arrebatadora. Com o tempo, o acesso aos

explosivos foi ficando cada vez mais difícil e os poucos que sabiam manipulá-los se foram sem

deixar outros no lugar. Hoje, tudo é muito diferente, não há mais aquela magia daqueles tempos.

Em lugar das fabriquetas caseiras das cidades pequenas como era a nossa Iraquara, há fábricas em

grandes centros, onde químicos manipulam a fabricação desses produtos de acordo com normas

técnicas e as mais modernas tecnologias.

Outrora, a venda de fogos ocorria somente na época das festas juninas. Com o passar dos anos, as

pessoas foram melhorando de vida e começaram a comprá-los para comemorar os mais diversos

motivos como os festejos religiosos, políticos; a chegada de um parente, o nascimento de um filho,

a chegada dos romeiros que fazem peregrinação à Bom Jesus da Lapa... a vitória do time de

futebol favorito...

Antigamente, a concorrência não era desleal como agora. Aqui em Iraquara, somente eu e

Epaminondas comprávamos os fogos diretamente da fábrica. Hoje, continuo comprando produtos

de ótima qualidade, pagando os impostos devidos na compra das mercadorias. Meus produtos vêm

de Minas Gerais, onde há o maior pólo pirotécnico da América Latina. Somente os traques, ainda

vêm de Santo Antonio Jesus. A cada ano, novos produtos são lançados. Porém, o mercado vai

sendo invadido pelos produtos chineses, de má qualidade, sem informação sobre o uso e o

armazenamento, com preço muito inferior aos brasileiros.

Vi, no decorrer dos tempos, as vendas melhorarem bastante. Além de minha barraca, meus

irmãos e sobrinhos também trabalharam comigo, nas épocas em que a venda era mais rentável.

Cada um com sua própria barraquinha, numa profusão na praça. Esta era a forma que eu tinha para

ajudá-los a ganhar seu próprio dinheirinho, ter também uns trocados para gastar durante as festas.

Sempre fui muito cuidadoso, tanto no vender como no armazenar as mercadorias. Acredito

que por isso, nunca aconteceu acidentes comigo. Mas, recordo-me de um que ocorreu em

Parnaíba, há uns vinte anos atrás, com um pobre rapaz a vender bombas em um carrinho de mão.

Alguém mal intencionado, furtivamente, jogou um cigarro aceso entre a mercadoria. Em instantes,

ouviu-se um terrível estrondo. Não houvera tempo nem para pegar o extintor. Tudo explodiu.

Gritos, choro, correria! Isso me fez ser ainda mais cauteloso, ter sempre a mão um extintor,

observar atentamente quem se aproxima e tomar todo cuidado para evitar o mínimo acidente.

Hoje em dia, não sou mais aquele menino de quatro décadas atrás, uns quatro garotos me

ajudam. Vou ensinando-os aquilo que aprendi ao longo dessa vida. Confesso, que exerci outras

profissões, trabalhei em escolas e na Delegacia, mas nunca abandonei a paixão daquele menino,

que agora já não vê as festas animadas como dantes, mas ainda mantém viva, no coração das

crianças e dos adultos de nossa cidade, a tradição de soltar foguetes, bombinhas, rojões de vara...

fogos de São João.

Memória escrita a partir da entrevista com o Sr. José Soares dos Santos, 55 anos.

UM PEQUENO DOUTOR EM HISTÓRIA

Sirleide Neves de Souza Bispo¹

Nessa tarde de segunda feira, sentado no sofá de minha casa, fecho os olhos e volto ao

meu tempo de infância, vejo um menino pequenino, sem forças para o trabalho pesado,

porém de admirável inteligência. Guardo em minhas lembranças, o aconchego e carinho no

qual fui criado. Recordo-me de minha família humilde e batalhadora, sempre lutando para o

sustento do lar. Meu pai, homem de garra, preocupado com o futuro dos filhos, sempre me

incentiva estudar, pois me achava franzino demais, fraco fisicamente para desempenhar o

trabalho rural. Insistia que o meu futuro viria através dos estudos.

Ao completar meus oito anos de idade, apoiado pelo incentivo de meus pais, os

grandes responsáveis por eu me tornar o homem que hoje sou, ingressei na escola. Minha

primeira professora foi Dona Enedina, professora leiga que lecionava as crianças desde o

ABC até a quarta série numa mesma sala, fato que existe ainda hoje em escolas de pequeno

porte, as turmas multisseriadas. Tempos difíceis aqueles. Tinha que andar a pé em pleno sol

ardente do meio dia, boca seca de sede, e o suor molhando o meu rosto, ou embaixo de

chuva, lama pesada sobre os pés, mas, simplesmente feliz no trajeto da comunidade de

Quixaba, lugar onde morava, até o centro da cidade, sempre motivado pelo prazer em

estudar e aprender cada dia mais.

Naquela época, Iraquara era uma cidade pequenina, recém emancipada, recordo-me

que a escola funcionava entre a casa de Roca e a de Haroldo, em um salão improvisado para

dar aulas, onde hoje se encontra o Fórum da cidade. Tempos depois para inserir o ginásio

(ensino de quinta a oitava série), o prefeito Genelício Costa Teixeira construiu o Grupo

Escolar Luis Viana Filho, não me lembro bem se eram duas ou quatro salas de aula.

Para minha decepção não fui bem acolhido na escola. Até hoje meus olhos lacrimejam

de tristeza quando recordo. É indescritível a discriminação que sofri, pois, um menino

oriundo de uma família humilde, “da roça”, não era valorizado nem pelo professor, muito

menos pelos colegas. Eu era um dos primeiros alunos da classe, mas devido ao preconceito,

não conseguia ser promovido. É com muita angústia que relembro a professora dizendo:

“você não pode passar.” Isso aconteceu por dois anos consecutivos, meus pais foram os

principais responsáveis em não me deixar desistir. Mesmo sendo uma família sem recursos,

esforçou-se para morar na cidade, para que eu pudesse prosseguir em meus estudos.

Naquele tempo, iniciei sem nenhum caderno, não dispunha de nenhum recurso para

estudar, apenas a força de vontade, a qual não era pouca. Mesmo sendo um menino esguio,

não medi forças à procura de algo para fazer para ganhar algum dinheiro, visando satisfazer

minha vontade de continuar estudando. Lutei e alcancei o privilégio de poder comprar

minha farda e um caderninho de doze folhas. Só escrevia o que era necessariamente

importante para não acabar rápido. Mesmo vítima de muitos preconceitos que me causaram

tanto sofrimento, insisti!

Em meu terceiro ano de escola tive a oportunidade de estudar com um novo professor, José

Ferreira Lima, um docente que veio da cidade de Lençóis para lecionar em Iraquara. Este

sim valorizou meu potencial, sempre fui o primeiro da classe, aprendia mais rápido do que

¹Supervisora Técnica da Educação Infantil.

os meus colegas, sempre tive muita facilidade em aprender. Prestava bastante atenção nas

aulas, esforçava-me para guardar na cabeça os assuntos passados pela professora. Ouvia

atentamente cada palavra lida, para gravar na memória a lição do dia e graças a Deus fui

reconhecido pelo meu mérito. Consegui a tão sonhada promoção que já era de direito pelo

conhecimento, mas, que não chegava devido à discriminação. Daí pra frente foi só sucesso

escolar. Fui aprovado com a maior nota da classe ao final do 4º ano, nem precisei passar

pelo temido exame de admissão, uma espécie de provão que servia para avaliar os

conhecimentos acerca de todas as matérias. Só quem era aprovado nesse exame poderia

seguir para o ginásio.

Aos 18 anos de idade, saí do banco dos alunos para a mesa de professor. Essa

profissão em minha vida, não foi uma escolha e sim uma consequência. Ao terminar o

magistério, o município era carente de professores, a maioria vinha de outras cidades, a falta

de professor era grande, e, desse modo, ingressei na profissão para ter uma renda. Depois de

três anos de experiência de trabalho como professor municipal, fui aprovado no concurso do

estado, passando a ser professor estadual.

Em minha trajetória profissional, iniciei como professor de inglês, e em pouco tempo

consegui realizar meu maior desejo, “lecionar história”. O meu amor por essa disciplina

iniciou ainda no meu tempo de estudante. No ginásio, tive um excelente educador de

história, pelo qual passei ter uma grande admiração. Hoje, um grande amigo, Fernando

Teixeira. Em pouco tempo deixava de ser seu aluno para transformar em seu colega de

trabalho “professor de história”, quantas vezes, discutíamos diferentes assuntos dessa

disciplina, discordávamos de alguns pontos de vista, confirmávamos ou não os fatos

defendidos, enfim foi o mentor dessa minha facilidade nessa matéria.

Sempre me identifiquei com essa disciplina, tinha prazer em estudar, não cansava

nunca de ler livros e mais livros, assimilava com bastante facilidade, e o estudo em casa não

parava nunca. Para ministrar as aulas, não precisava de livros, pois no meu “chorar

escondido”, lia e memorizava tudo o que eu necessitava saber, estava tudo guardado na

cabeça, eu não dava aulas, eu viajava no tempo, com a minha tão íntima história, no simples

ato de dialogar com meus alunos. Tinha uma sede insaciável de aprender sempre mais, e até

tive a oportunidade de fazer um curso de capacitação pelo estado. Como esse curso

significou para mim! Na ânsia de saciar meu desejo de aprender, investi mais duas vezes em

cursos de capacitação, um em Feira de Santana outro em Salvador. Como eu era fascinado e

admirava discutir esses conteúdos, era a minha vida, minha razão de ser. Dediquei-me a essa

paixão durante 29 anos.

Sempre defendi a educação para aqueles que querem. Nunca fui a favor de notas

graciosas a alunos desinteressados. Sou contra o aluno que não estuda, que vai a escola

apenas para bagunçar e ser promovido nos conselhos de classe. Eu não participava, pois ia

contra os meus ideais. Eu só faço aquilo que acredito.

Hoje, minha grande satisfação em ter sido professor, é o sucesso de muitos que já

foram meus alunos. Emociono-me ao ver quantos deles progrediram nos estudos e se

tornaram bons profissionais nas mais diversas áreas, médicos, advogados, professores, entre

outros... Isso não tem preço, esse é um fato em que agradeço em ter sido professor, como é

gratificante ver que pude contribuir na formação de muitas pessoas.

Atualmente, em pleno século XXI, já estou afastado da educação, mas percebo que ela

tem muito a avançar para conseguir a democratização. Houve melhoras e mudanças? Sim.

Mas, infelizmente, é uma melhora insignificante, diante das mudanças da sociedade que

muda frequentemente, o homem muda a toda hora, a sociedade é outra, os alunos são outros.

A escola? Continua a mesma, ainda não conseguiu adequar às mudanças. As coisas hoje são

bem mais fáceis do que naquele tempo. Diferente daquela época, os alunos tem excelentes

professores na zona rural, transporte de casa para a escola, recursos como lápis, caderno,

livros, merenda, entre tantos outros e muito alunos não valorizam o estudo e os recursos que

lhe são acessíveis.

A educação do Brasil está atrasada em relação a outros países, precisa democratizar o

sistema de ensino. O problema do nordestino não está na seca que enfrenta e sim em mudar

a realidade da educação.

Memória escrita a partir da entrevista com o Sr. José Soares dos Santos, 55 anos.

MINHAS LEMBRANÇAS... MINHA VIDA

Elaine Cristina Alves Ferreira Souza¹

Não dá para esquecer o meu tempo de menina moça, pelas andanças nos caminhos de

Iraquara que nos levava até o poço. Ah, lugar que deixa saudade! Menina de vestido

bordado e pés descalços, descia a ladeira correndo com aquela força e coragem que a

mocidade nos permitia. Suada e morrendo de sede, avistava lá no fundo do poço o reflexo

da minha juventude, menina bonita, porém desleixada, pois as condições vividas não

permitiam aflorar a vaidade da mocinha recatada que trabalhava carregando água.

Ajeitava o cabelo com as mãos molhadas e com uma cuia despejava jatos d‟água no

meu rosto, matava a minha sede, sentia o cansaço indo embora como um milagre, como se

aquela água pura, cristalina e saborosa fosse benta, pois aliviava as dores do subir e descer a

ladeira da fonte,onde matava a sede de quem aqui em cima ficava. Às vezes vendia por

dois tostões, outrora trocava por um punhado de feijão ou cuinha de farinha. Não importava,

só a vontade de chegar em casa, onde minha mãe cozinhava e nós íamos para o quintal fazia

uma roda, todos acocorados, em volta de uma gamela, como se fosse panelada, feijão, arroz

e farinha, pra gente aquilo era uma bela feijoada. A meninada enfiava a mão, comíamos até

o último grão, saímos ainda lambendo os beiços de barriga cheia, agora era brincar a

vontade e só no outra dia a aventura recomeçava.

Agora, tudo é tão diferente... A água chega às casas sem nenhuma dificuldade. Basta

abrir a torneira e lá está ela, o líquido precioso que outrora era tão difícil chegar. Hoje, tudo

é mais fácil. Pena que as pessoas não valorizam, desperdiçam essa fonte de vida, não se

preocupam em preservar um bem tão importante para humanidade.

Das minhas lembranças daquele tempo ainda sinto saudade, mas sinto-me feliz e

realizada por ter conseguindo vencer todas essas batalhas. Hoje, no meu recanto, fechos os

olhos e ainda sinto o frescor daquela água, a emoção de saber que sobre esses braços, hoje já

tão fracos, levantaram infinitas latas d‟água, que um dia deu de comer e beber a tanta gente.

Naquele tempo, o poço que era fonte de vida e encantamento, que deu origem a essa cidade,

não sei mais como está. O que será que aconteceu depois de muito tempo? O peso de um

século de vida, que deliciosamente está grudado ao meu corpo, não permite que eu possa

reviver esses momentos. Prefiro aqueles que ainda moram nas minhas lembranças,

intensamente vividas e aproveitadas.

Ao passo que relembro esta história, perco na imaginação e ponho-me a redescobrir,

após uma longa viagem no tempo, as lembranças quase esquecidas e por um triz apagadas

de minha memória. Elas vêm através de imagens envelhecidas, ofuscadas pela muita idade.

Essa é apenas uma bela parte de minha história, pois as muitas lembranças não caberiam

nestas poucas folhas de papel...

Texto baseado na entrevista com Mãe Marieta, 100 anos.

¹ Supervisora Técnica do Ensino Fundamental II.

SAUDOSO POÇO DE MANOEL FÉLIX

Cleide Lina de Oliveira Cerqueira¹

Vivo a recordar aqueles velhos tempos, onde a vida era dura, verdade, mas tudo que

fazia tinha um sentido especial. Recordo-me dos meus tempos de criança nas primeiras

ruelas do poço de Manoel Félix, hoje a nossa estimada Iraquara, cidade das grutas. Naquele

tempo, trabalhávamos para sobreviver, como não tinha muitas opções, nos restava os

trabalhos caseiros, como fazer doces e costurar para ganhar o sustento. Não restava tempo

nem para aprender o ABC.

Com o passar dos anos, foram muitas as mudanças. Recordo-me que aqui só existia

mato, as casas eram mais simples, feitas de madeira, as ruas eram cheias de valas, causadas

pelas enxurradas das chuvas que, naquela época, eram constantes. Energia elétrica, nem em

sonhos! Usávamos, naquele tempo, um candeeiro – uma lata com um fio de algodão e óleo

de mamona. Água para beber e para a labuta diária era só na fonte, na qual íamos

diariamente, descendo e subindo a ladeira, ainda hoje, conhecida como ladeira da fonte.

As idas à fonte eram uma aventura! Tínhamos que passar em um curral que ficava

pelos lados de onde hoje é o hospital. Às vezes, tínhamos que correr dos bois e chegávamos

em casa com a lata vazia. Que tristeza! O jeito era fazer todo aquele caminho de volta.

Tenho um sentimento muito grande por não ter estudado. A condição para ir à escola

era pegar duas viagens de água no poço. Quando eu chegava à escola com meu banquinho

em baixo do braço, os colegas já estavam indo embora. Ainda recordo da voz carinhosa da

professora: “Senta aqui, linda, que vou tomar sua lição”. Quando estava muito ocupada

colocava um colega para eu não voltar para casa sem dar a tão valiosa lição. Mas o sonho de

aprender a ler e escrever, ficou só na vontade. Não consegui aprender nem mesmo o meu

nome. Aprendi foi a conviver com a tristeza de marcar a minha existência com um borrão de

tinta nos dedos.

Da cidade, lembro-me muito bem das mudanças: da igreja, onde hoje é a padaria

“Princesa da Chapada”; do salão azul pelos lados da outra padaria “A Padoca”; do cemitério

lá para as bandas de onde hoje é a delegacia; a calçada da casa onde morava, hoje, já não tão

alta, próximo a farmácia São Paulo; e as ruas cheias de estrume, produzido pelos inúmeros

animais que ali viviam nas portas de seu donos.

Hoje, todos esses lugares estão apenas na memória. Como já disse, muita coisa

mudou, a cidade cresceu, temos água encanada, luz elétrica e televisão, as ruas estão

calçadas, as pessoas se dizem mais sabidas e eu vivo com minhas lembranças, morando em

uma das mais novas ruas do Poço de Manoel Félix, que há cinquenta anos se transformou

nesta promissora cidade.

Memória literária baseada na lembranças de Carlinda

Moreira de Oliveira - 86 anos Iraquara-Ba

¹Supervisora Técnica do Ensino Fundamental I.

TEMPOS DE MENINA

Vaneza Oliveira de Souza¹

Em minhas lembranças de menina recordo as longas viagens no lombo do jumento,

quando saíamos em marcha, das claras terras do Brejo de João Alves rumo ao Capão de

Madeira, povoado hoje conhecido como Santa Rita. Naquela época, o pão de cada dia

custava quilômetros de caminhada e o suor sofrido derramado pelo labor nas terras

arrendadas da família de Seu Simpliciano. O trabalho era duro! Assisto em minhas

lembranças meu pai carregar toras de madeira, arrastar enxada, cultivar o chão que de tudo

dava.

Os tempos de fartura chegavam quando a chuva nos brindava com os brotos da terra.

Dessa terra fértil surgia vida e pão, os mais variados frutos, com os aromas e sabores da

minha infância.

Tudo nesse tempo, há mais de 50 anos, era fruto do trabalho manual – os alimentos, as

vestes, os materiais de construção... desde a farinha de mandioca, até cada utensílio do lar,

roupas, casas. Não era como hoje, que tudo se compra pronto, industrializado.

A riqueza da vida simples só acabava em tempo de seca. Aí era tudo escasseado.

Lembro-me que o cheiro do café preto e puro nos acordava já de madrugada para ir até a

roça. Para ajudar a família, os filhos, do pequeno ao grande, trabalhavam na roça, e na volta,

quando o sol lá de longe se deitava, voltávamos para o banho de meia sola. Naqueles meses,

que se arrastavam longamente, toda economia era pouca pra não desperdiçar o pouco de

água buscada longe, em cargas no lombo do jumento ou em latas na cabeça. Ainda recordo

que meu pai fazia uma enxadinha, que mais parecia brinquedo e os irmãos capinavam como

gente grande.

Muita gente, para garantir o sustento da família, viajava dias e mais dias para as

cidades grandes procurando o emprego que aqui não encontrava.

Mesmo assim, a vida aqui era boa, tinha sabor de tranquilidade e de paz. Não se via

essa maldade. E quando Deus mandava chuva, a vida floria de repente, como um sorriso

calmo da natureza, devolvendo as cores, formando lindas paisagens.

Lembro que minha alegria era brincar nas moitas de cipó, recheadas de galhos e

folhas, cantar ciranda, ouvir histórias e dançar arrasta pé no terreiro de casa, levantando

poeira com as modas que Tato, meu irmão, tocava em sua sanfona. Se meus netos pudessem

ver!!

Hoje, os pais saem de casa, trabalham o dia inteiro por salário no fim do mês. O

trabalho é mais leve, o dinheiro maior, compram de tudo para seus filhos, mas muitas vezes

falta tempo e atenção. Tem mais conforto e tecnologia, mas não tem aquela paz.

Daqueles tempos, restaram lembranças, histórias, causos, que recordo com carinho,

saudosa da vida simples que não se vive mais e da tranquilidade que outrora nos acarinhava.

Texto escrito baseado na entrevista com Maria de Lurdes Oliveira,

58 anos, moradora do povoado de Santa Rita.

¹ Diretora Pedagógica

UM AMOR DE ESCOLA

¹ Mileni Alves de Oliveira

A primeira vez em que me sentei em um banco de escola foi em Cachoeira dos

Mosquitos. A professora era minha madrinha, Dona Almerinda, que ensinara-me com

simplicidade as primeiras letrinhas do ABC. Passado algum tempo, mudei-me para o Riacho

do Mel onde ganhei uma linda cartilha e comecei a estudar com a professora Jandira

Pinheiro, que tão dedicadamente me ensinava a lição.

Logo ao alvorecer, grupos de crianças passavam em disparada em direção à escola, a

qual conhecíamos apenas como prédio, desejosos de mais um dia de estudo. Recordo-me

das nossas peraltices na hora do recreio e na sala de aula. Quando era o momento de fazer as

tarefas, aquele aluno que não fizesse ficava de castigo, longe de todos os outros.

As aulas da professora Jandira eram como ouvir músicas. Aprender, não era um

suplício, mas um momento de passagem para um mundo de fantasia e ternura. Não existia

em suas aulas a famosa “varinha”, utilizada nos castigos. Como disse, o isolamento de todos

era o mais comum castigo que os alunos recebiam. “Meus colegas”, porque eu, nunca recebi

castigo, nem mesmo quando obtive nota baixa em uma prova e a rasguei dentro da sala, e

ela, carinhosamente, apenas me aconselhou, não sei se por ser um aluno comportado ou pela

amizade que havia entre nós.

Ao final da aula, aguardava que ela encaminhasse a lição de cada aluno e, ao sairmos

de lá, nos aproximávamos sorrateiros durante o trajeto para casa. No caminho, ela distribuía

beliscões nos curiosos que de nós se aproximavam. Os dias seguiam lentos até chegar a hora

da aula, e eu, um garoto de 14 anos, sonhava com a meiga professora de estatura avantajada,

magra, que me desmoronava ao aproximar-se e sutilmente convidar-me a ir até a sua casa.

Rapaz simples, maravilhado com tamanha delicadeza, eu sempre estava com ela e sentia

meu carinho retribuído quando uma bala doce, em meio a tantos “meninotes”, era dividia

apenas comigo. Por estes gestos, diziam os outros, sermos um casal de namorados.

Assim, o meu pouco tempo de escola se passou muito velozmente. A bela professora

logo partiu, deixando saudades. Hoje, vejo escolas grandes, professores bem formados e

alunos espertos, porém, mal comportados, o que em outros tempos lhes renderia um

punhado de castigos bem dolorosos.

E por fim, fica a saudade e as boas lembranças do tempo de escola, constituindo um

baú de maravilhosas recordações.

Texto escrito com base na entrevista com Antônio Coelho de Novais, 65 anos,

morador da comunidade do Riacho do Mel, Iraquara – Ba.

¹ Diretora da Escola M. Jandira Pinheiro.

AS TERRAS POR ONDE PASSEI

¹ Gerivaldo Alves Nascimento

Passagem de Januário, foi terra onde eu nasci, com suas lindas palmeiras e um

pequeno riacho que corta a chácara majestosa do meu encanto. Quando criança, vivia

correndo entre as plantações e me banhando no riozinho que passava a poucos metros da

minha casinha de tijolos crus. Hoje, lembro-me com saudades das brincadeiras que nós

fazíamos no meio do cafezal e de outras plantações. Lembro-me, também, do meu querido

pai nos reclamando para não machucarmos uns aos outros e não estragar as suas lindas

plantas. Nessa época, como era bom viver... eu não imaginava nada, pois vivia com meus

pais e todos os meus irmãos. Para mim, era só felicidade!

Quase todos os dias, eu e meus irmãos corríamos até a chácara para colher as mais

deliciosas frutas. Era aquela alegria! E voltávamos com a boca e as mãos todas lambuzadas

de frutas. Não me esqueço também das gargalhadas e travessuras do meu irmão Joaquim.

Minha mãe vivia com ele na “chincha”, para não fazer suas traquinagens. Assim, nós

vivemos essa vida maravilhosa até mais ou menos os meus 13 anos, quando migramos para

a Ingazeira da Várzea, lugar onde havia apenas umas três casinhas, feitas de enchimento, as

quais pertenciam aos meus parentes.

Na Ingazeira, nem senti falta da minha amada Passagem, pois além dos irmãos

maravilhosos, tinha os meus primos queridos para conversar e sorrir das brincadeiras e

malinesas. A felicidade era a mesma ou até maior, por que estávamos perto dos meus

amados pais e tios, tudo com muita fartura, como na minha terra natal. Sempre, no final de

semana, nós passeávamos nas casas de outros parentes, na Várzea, lugar de belos e

frondosos jatobás, rio e cacimbas de águas limpas e cristalinas.

Com o casamento do meu irmão mais velho, Firmino, a alegria aumentou. Logo ele

construiu sua moradia na Várzea e as lindas missas, com belas festas aconteciam na sua

casinha simples e acolhedora. Nessa época, tudo era maravilhoso! Até que veio o

falecimento do meu pai amado, Ângelo, um momento de muita tristeza..

Depois de algum tempo, por birra do meu irmão Joaquim, também já casado, nos

mudamos para a Baixa da Juriti, terra de sol avermelhado, matos retorcidos e muitas

lavouras, um cenário todo diferente, sem rios, sem palmeiras, sem jatobá. Lá, se avistava

mandioca, bananeiras, canavial e matos por toda parte. As únicas casinhas eram as nossas,

de pau a pique, cobertas com palha de licuri.

Antigamente, aqui era duro! A água avermelhada dos tanques de barro, buscada com

lata na cabeça e rodilha de pano para amenizar o peso das longas caminhadas, repetidas dia

após dia. Quando faltava essa água, os pobres dos meus sobrinhos entravam em cena:

cangalha no lombo dos jumentos, pés descalços, chapéu de palha na cabeça, facão afiado

amarrado à cintura, e partiam em busca desse bem precioso, fosse à luz do dia, no calar da

noite ou no sereno das madrugadas, no vai e vem da vida.

¹Vice diretor do Núcleo Baixa da Juriti.

Hoje, temos água encanada, que maravilha! Os jovens de hoje não sabem o que é uma

lata pesada de água sobre sua cabeça ou um tropeço e, por fim, um banho indesejado na

hora do tombo.

Decidimos nos firmar por aqui, por essas terras de grande escassez de água, mas de

grande fartura de alimentos. E não demorou muito, os padres estavam novamente

celebrando missas na casa de meu irmão. Para minha alegria, dessa vez, ele construiu um

salão de dança. Aí então, começaram os bailes de sanfona, animados por Júlio de Alzira,

quase todo final de semana, nos casamentos e nos batizados.

Hoje, som é de dar dor de cabeça, nos carros, nas caixinhas nas mãos das crianças.

Antigamente, um baile de sanfona era a coisa mais linda que existia, todo mundo dançava

com alegria e respeito, não com essa malandragem das músicas e danças de hoje.

São tantas lembranças do passado que me fazem pensar o quanto tudo mudou. Hoje,

não tenho mais os meus pais amorosos, meus irmãos queridos, nem vivo naquela doce terra

da minha infância. Mas tenho minha irmã Maria e meus sobrinhos que são quem me

devolvem a paz e a alegria para viver muitos anos.

Memória produzida com base na entrevista com Ana Rosa de Jesus.

TERNOS DE REISMarco Aurélio Oliveira Bispo¹

Do meu tempo de rapazinho, tenho boas lembranças na minha Parnaíba. Lugar de

casarões com suas fachadas decoradas de lindos desenhos arquitetônicos, feitos

minuciosamente por pedreiros, que usavam e abusavam da sua criatividade para construir

formas perfeitas que hoje causam inveja a muitos arquitetos; de ruas calçadas com pedras

cuidadosamente encaixadas uma às outras, dispensando o que hoje usam para uní-las: o

cimento.

Lembro-me também dos banhos com os meus amigos nos rios do Gato, do Lobato e

do Rochedo, onde também pescávamos com varas improvisadas de São João ou São

Caetano, planta comum da nossa região. Gostava de ir à missa na Igreja de Santo Antonio,

onde ficava extasiado com as imagens perfeitas dos santos, com mais de séculos,

imaginando como as pessoas conseguiram erguer aquela grandiosa casa de Deus.

Agora, o que vem à minha mente, dilacera meu coração como se fosse atingido por

um fio cortante de mil facas, e que faz meus olhos encherem de lágrimas de saudades,

escorrendo por meu rosto cansado e já cheio de marcas deixadas pelo tempo, que teima a

passar, é a maravilhosa lembrança de quando chegavam os dias de Reis. Ah, como eu

suspirava, quando o nosso bondoso sol ia dormir sobre o travesseiro verde de nossa serra!

Seis horas mais ou menos, corria e olhava pela janela discreta de minha casa simples, de

piso de chão batido e telhado de ardósia, aqueles seis homens bem vestidos, com uma toalha

branca cuidadosamente entrelaçada no pescoço, como o braço de uma belo jovem

envolvendo seu namorado. Portavam um lindo chapéu de palha trançado, todo enfeitado

com flores lindas e perfumadas, fitas coloridas costuradas uma a uma na aba, fazendo uma

linda cortina em volta. Na parte superior, pequenos espelhos no formato oval que as

donzelas e os rapazes usavam na bolsa ou na carteira, colados também com muito carinho,

de forma a reluzirem o brilho dos lampiões e velas que iluminavam as ruas da nossa velha

Vila. Bem diferentes de hoje, que a maioria das localidades é iluminada pela luz elétrica ou

pelas fachadas brilhantes e decorativas de alguns comércios.

Lembro-me daqueles seis reiseiros, imponentes, dando a idéia dos reis magos de Jesus

Cristo nosso salvador. Recordo ainda o nome da cada um deles: Roventino, Zuzu, Chico

Balão, Teodoro, Olegário e Marcolino. Atrás deles ia se juntando uma multidão para escutar

as chulas que eles cantavam de casa em casa.

Pedia a meu pai para poder acompanhá-los, e ele com a voz forte, dizia: “Pode ir, mas

olhe lá! Cuidado, heim?! Não vá arranjar confusão e nem chegar muito tarde”. E, com sua

mão cheia de calos da lida dura da roça, tocava levemente a minha cabeça, dizendo: “Vá

com Deus, meu filho.” Parecia que ele também não estaria lá. Saía correndo para juntar-me

aos meus amigos e ficávamos apreciando as lindas meninas que estavam lá, com seus belos

arrumados, vestidos rodados e bem floridos de chita, bem maquiadas e com um doce cheiro

de alfazema, perfume famoso nessa época. Acompanhava, de casa em casa, os reiseiros a

cantar as músicas, ganhando galinhas, outra hora dinheiro, cachaça. Quando chegavam

¹Diretor do Educandário Roberto Figueira Santos.

numa casa onde tinha lapinha, aí a demora era certa: ficavam em volta do presépio,

cantando e adorando. Porém, quando dava meia noite, eles já cansados de tanto cantar e

tocar, iam dormir para no outro dia recomeçarem a jornada.

Nos dias de irem a outra localidade, como Santa Rita, Lagoa Seca, Mulungu dos

Pires, só saiam os seis, a pé ou montado em jumento bem arreado e enfeitado. Que

diferença! Nos dias de hoje vão de carro ou ônibus. Quando lá chegavam, eram recebidos

como se fossem os reis magos. A grande maioria os deixava entrar em suas casas, para

cantarem e alegrarem a todos. No retorno, traziam dinheiro e várias galinhas amarradas

pelos pés, que quase não agüentavam de tanto peso. A festa final, do dia 06 de janeiro, era

uma maravilha! Logo de manhãzinha, eu escutava os pipocos dos foguetes que ecoavam na

imensa serra da nossa Chapada Diamantina e, mais que depressa, pulava da cama e ia ver

aquele belo festejo que durava o dia inteiro.

A festa acontecia na casa de Rosentino Barros, homem alegre e dono do terno de reis.

As lapinhas mais bonitas eram da casa de Lora de Marcelino e na casa de Mariquinha.

Mariquinha, por sinal, fazia uma bela compra para os comes e bebes dos seus convidados,

mandando ainda buscar os músicos lá no Gerais, na Serra. Chegando, ficavam maravilhados

com uma bela mesa de madeira de lei, coberta com uma linda toalha branca toda em renda,

com vários tipos de comida e uma variedade grande de bebidas, tanto para adultos como

para crianças. Ela, com a voz doce e muito alegre, por ter tanta gente em casa, dizia: “Chega

os meninos, e se assentem nas cadeiras. Pode comer até não agüentar mais.

Hoje, aqui sentado, olho o tanto que a festa mudou. A rua do Lobato se tornou Bairro

Lobato, pois, de uma única rua de poucas casas, e muito mato, formaram-se muitas ruas,

algumas calçadas com belos jardins gramados e com luminária. Na minha casa, recebo os

reiseiros de hoje. Já não têm a mesma beleza e encantamento de outrora. Muitos ternos de

reis, com quinze participantes, entre homens e mulheres, usam instrumentos que, no meu

tempo, não eram usados. Eu fecho os olhos e revejo a beleza das apresentações de ternos de

reis que não mais encontramos.

Texto produzido em 2012, baseado na entrevista com João

Francisco dos Santos, 84 anos, apelidado de João Preto.

HINO À IRAQUARA

Encravada no alto sertão,

Sob um céu de anil ressurgia

Numa trilha de bravos tropeiros,

Iraquara, o coração da Bahia.

Solo fértil, se a chuva não falta,

Nos dá cana, mamona e feijão,

Produz milho, sisal e café,

Nos orgulha os calos nas mãos.

Tem ardósia que abriga e encanta,

Tem as grutas mais belas também;

Iraquara é o nosso tesouro,

Porto e festa dos filhos que tem.

Minha terra, meu berço sagrado,

Onde Deus me fez ver lindo sol,

Um manto de estrelas brilhantes,

Um poente e o mais belo arrebol.

De Manoel Félix, até nossos dias,

Com trabalho o progresso se faz;

Sob as bênçãos de Nossa Senhora

Construímos o futuro em paz!

Letra: Raymundo Azevedo Viana

14/06/1996

Prefeito Municipal

Edimário Guilherme de Novaes

Secretária Municipal de Educação

Simone Neves Pinto

Equipe técnica

Cleide Cerqueira

Elaine Cristina

Flávia Alves

Sirleide Bispo

Vaneza Oliveira