memorial roqueiro

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CULTURA 47l Terça-feira, 19 de maio de 2009 l Jornal de Brasília Editor: Guilherme Lobão [[email protected]]. Redator: Gustavo Falleiros [[email protected]. Fone: 3343-8059 Mande sua sugestão de pauta para o Jornal de Brasília: Nosso telefone é 3343-8100 , ou mande para o e-mail [email protected] . Memorial roqueiro Álbum seminal do rock brasileiro, Johnny McCartney, de Leno, vence o veto da ditadura Cristiano Bastos [email protected] E nquanto durou, o regime mi- litar (1964-1985) fez o que pode – e o que não pode – para obscurecer ao máximo a multico- lorida cultura brasileira. A ditadura despachou para o exílio artistas do porte de Gilberto Gil e Caetano Ve- loso, políticos como Leonel Brizola, e intelectuais da estatura do ex-pre- sidente FHC. Censurou músicas, proibiu filmes e sumiu com gente cujo paradeiro jaz sem resposta. Su- miço que, em 1970, também perdeu uma gema do rock verde-amarelo: o álbum Vida & Obra de Johnny Mc- Cartney, do potiguar Gileno Azevedo – melhor reconhecido como Leno, ídolo da Jovem Guarda que formava, com Silvia Knapp, a dupla Leno & Lilian (Pobre Menina e Devolva-me). O vetado disco – co-produzido por um novato Raul Seixas – ganha reedição caprichada, porém limita- da, pelo selo norte-americano Lion Music. No Brasil, a distribuição é feita pelo selo Record Collector. A remasterização de Johnny McCartney, primeiro disco gravado em oito ca- nais em toda a América Latina, foi feita a partir da master tape original. Um livreto de 24 páginas, re- cheado com fotos inéditas de Leno e Raul, que acompanha o relançamen- to, vai fazer a cabeça dos fãs. O brado contestador, que se manifestava em letras como Sentado no Arco-íris (um rock pesado embebido em guitarras fuzz, ao estilo do Cream), desagradou os censores. Os versos falam em reforma agrária e pregam "subver- são": "Tambores gritam guerra em código e fumaça /E os olhos da cidade vigiam cada esquina". Cen- sura, tortura, drogas e repressão são temas que surgem ao longo da obra. A condenação, para Johnny Mc- Cartney, imposta pela ditadura, foi mofar durante 25 anos trancafiado nos porões da gravadora CBS, hoje So- ny&BMG. Sentado no Arco-íris é as- sinada pelo jovem Raulzito. Trata-se, na realidade, da primeira peça po- litizada do futuro ícone Raul Seixas: "Lembro dele me dizendo o quanto orgulhava-se de tê-la escrito", recorda Leno, que prossegue gravando e fa- zendo shows Brasil adentro: "Poucos sabem, mas Johnny foi crucial na car- reira do Raulzito", situa. Leno, é verdade, foi quem en- corajou Raul, à época produtor na linha de montagem da CBS (onde produziu mais de 80 canções jo- venguardianas, para artistas do naipe de Márcio Greyck, Jerry Adriani e Trio Ternura), a gravar sua própria "obra maldita". O resultado disso foi Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, que saiu em 1971. FIM DE FESTA Ao encerrar a dupla com Lilian, em 1968, Leno lançou-se como artista solo e emplacou sucessos: Pobreza , A Festa de Seus 15 Anos, Sha-la-la – essa última, uma pop song escrita sob medida pelo amigo Raul: "Eu vinha de uma sequência de hits. Encon- trava-me no auge, e daí veio a cen- sura: cortou o meu barato", lamenta. Aos 21 anos, em 1970, Leno amar- gava o estigma do cantor romântico: "Eu curtia o romantismo, mas, queria muito assimilar meu lado roqueiro". Para tocar no disco, convidou mú- sicos de rock que nunca tinham gravado antes, como os integrantes do grupo A Bôlha. Também desfilam pelo álbum, os irmãos Renato e Paulo Cezar Barros (dos Blue Caps), Arnaldo Brandão (ex Hanoi-Hanoi), o grupo vocal Golden Boys e os beat uruguaios Los Shakers. Para o presidente do Raul Rock Clube, Sylvio Passos, Johnny Mc- Cartney é um disco fundamental pa- ra o rock brasileiro surgido no Brasil pós-jovem guarda. Na Virada Cul- tural , realizada neste mês em São Paulo, Passos convidou Leno para tocar o álbum para um público de 30 mil pessoas. "A maioria desconhecia o disco, e foi tomada de surpresa tanto com o texto quanto com a sonoridade", elogia. FOTOS: DIVULGAÇÃO Leno: hoje e na época da Jovem Guarda. Ao lado, manuscrito da faixa-título, que divide com Raul Seixas SAIBA + Raul produtor: "Muita coisa que o Raul aprendeu em estúdio foi nesse disco: como se gravava com mais peso, bateria. Raul era muito intuitivo, gostava de criar" Los Shakers: "Os Shakers tinham se separado. Até hoje sou fã. Para mim, a melhor banda de rock latino de todos os tempos" Estrada: "Em 1970, eu já tinha tarimba de estúdio. Fui criado em estúdo, desde os 16 anos. Tinha cinco de estrada" Johnny McCartney: "O título do disco é uma alusão clara aos Beatles, que haviam se divorciado oficialmente, em abril de 1970. Na época do disco, fui conhecer os estúdios da CBS. Fomos eu e a banda Renato & Seus Blue Caps. Tinha um cara lá fazendo um teste, ficou horas tocando uma música. No final, ele veio falar com a gente: era o James Taylor, antes de estourar" Raul cantor: "O Raulzito era um amigo íntimo meu, mas o "Raul Seixas", para mim, na verdade, era um personagem. O Raul era um cara fantástico. Ríamos muito com as brincadeiras dele. Ele era muito musical. E, como eu, adorava rock’n’roll primitivo: Little Richard Elvis, Carl Perkins. Gostávamos muito de filosofia. Nosso gosto literário era muito parecido. Depois ele entrou de cabeça no esoterismo. Culpa Paulo Coelho. Não tive nada a ver com isso" Oito canais: "Johnny McCartney foi o álbum que inaugurou o novo estúdio da CBS. Era o primeiro em oito canais gravado na América Latina. Era o máximo! No período, gravava-se apenas em dois canais no Brasil. A gravadora pediu-me para inaugurar o estúdio porque sabia que eu gostava de testar som" Leno (C) posa com a banda, que contava com Raulzito (de branco)

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Álbum seminal do rock brasileiro, Johnny McCartney, de Leno, vence o veto da ditadura. Jornal de Brasília.

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Page 1: Memorial roqueiro

C U LT U R A47l Terça-feira, 19 de maio de 2009 l Jornal de Brasília

Editor: Guilherme Lobão [[email protected]]. Redator: Gustavo Falleiros [[email protected]. Fone: 3343-8059

Mande sua sugestão de pauta para o Jornal de Brasília:

Nosso telefone é 33 43 - 8 1 0 0 , ou mande para o e-mailc u l t u ra @ j o r n a l d e b ra s i l i a . c o m . b r .

Memorialro q u e i roÁlbum seminal dorock brasileiro,Johnny McCartney,de Leno, vence oveto da ditadura

� Cristiano Bastoscristiano.bastos @jornaldebrasilia.com.br

E nquanto durou, o regime mi-litar (1964-1985) fez o que pode– e o que não pode – para

obscurecer ao máximo a multico-lorida cultura brasileira. A ditaduradespachou para o exílio artistas doporte de Gilberto Gil e Caetano Ve-loso, políticos como Leonel Brizola, eintelectuais da estatura do ex-pre-sidente FHC. Censurou músicas,proibiu filmes e sumiu com gentecujo paradeiro jaz sem resposta. Su-miço que, em 1970, também perdeuuma gema do rock verde-amarelo: oálbum Vida & Obra de Johnny Mc-Cartney, do potiguar Gileno Azevedo– melhor reconhecido como Leno,ídolo da Jovem Guarda que formava,com Silvia Knapp, a dupla Leno &Lilian (Pobre Menina e Devolva-me).

O vetado disco – co-produzidopor um novato Raul Seixas – ganhareedição caprichada, porém limita-da, pelo selo norte-americano LionMusic. No Brasil, a distribuição éfeita pelo selo Record Collector. Aremasterização de Johnny McCartney,primeiro disco gravado em oito ca-nais em toda a América Latina, foifeita a partir da master tape original.

Um livreto de 24 páginas, re-cheado com fotos inéditas de Leno eRaul, que acompanha o relançamen-to, vai fazer a cabeça dos fãs. O bradocontestador, que se manifestava emletras como Sentado no Arco-íris (umrock pesado embebido em guitarrasfuzz, ao estilo do Cream), desagradouos censores. Os versos falam emreforma agrária e pregam "subver-são": "Tambores gritam guerra emcódigo e fumaça /E os olhos dacidade vigiam cada esquina". Cen-sura, tortura, drogas e repressão sãotemas que surgem ao longo da obra.

A condenação, para Johnny Mc-

Cartney, imposta pela ditadura, foimofar durante 25 anos trancafiado nosporões da gravadora CBS, hoje So-ny&BMG. Sentado no Arco-íris é as-sinada pelo jovem Raulzito. Trata-se,na realidade, da primeira peça po-litizada do futuro ícone Raul Seixas:"Lembro dele me dizendo o quantoorgulhava-se de tê-la escrito", recordaLeno, que prossegue gravando e fa-zendo shows Brasil adentro: "Poucossabem, mas Johnny foi crucial na car-reira do Raulzito", situa.

Leno, é verdade, foi quem en-corajou Raul, à época produtor nalinha de montagem da CBS (ondeproduziu mais de 80 canções jo -venguardianas, para artistas do naipede Márcio Greyck, Jerry Adriani eTrio Ternura), a gravar sua própria"obra maldita". O resultado disso foiSociedade da Grã-Ordem KavernistaApresenta Sessão das 10, que saiu em1971.

FIM DE FESTAAo encerrar a dupla com Lilian,

em 1968, Leno lançou-se como artistasolo e emplacou sucessos: P o b re z a , AFesta de Seus 15 Anos, Sha-la-la – essaúltima, uma pop song escrita sobmedida pelo amigo Raul: "Eu vinhade uma sequência de hits. Encon-trava-me no auge, e daí veio a cen-sura: cortou o meu barato", lamenta.Aos 21 anos, em 1970, Leno amar-gava o estigma do cantor romântico:"Eu curtia o romantismo, mas, queriamuito assimilar meu lado roqueiro".Para tocar no disco, convidou mú-sicos de rock que nunca tinhamgravado antes, como os integrantesdo grupo A Bôlha. Também desfilampelo álbum, os irmãos Renato ePaulo Cezar Barros (dos Blue Caps),Arnaldo Brandão (ex Hanoi-Hanoi),o grupo vocal Golden Boys e os beaturuguaios Los Shakers.

Para o presidente do Raul RockClube, Sylvio Passos, Johnny Mc-Cartney é um disco fundamental pa-ra o rock brasileiro surgido no Brasilpós-jovem guarda. Na Virada Cul-tural , realizada neste mês em SãoPaulo, Passos convidou Leno paratocar o álbum para um público de 30mil pessoas. "A maioria desconheciao disco, e foi tomada de surpresatanto com o texto quanto com asonoridade", elogia.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Leno: hoje e na época daJovem Guarda. Ao lado,manuscrito da faixa-título,que divide com Raul Seixas

SAIBA +Raul produtor: "Muitacoisa que o Raulaprendeu em estúdio foinesse disco: como segravava com mais peso,bateria. Raul era muitointuitivo, gostava decriar"

Los Shakers: "Os Shakerstinham se separado. Até hojesou fã. Para mim, a melhorbanda de rock latino detodos os tempos"

Estrada: "Em 1970, eu játinha tarimba de estúdio.Fui criado em estúdo,desde os 16 anos. Tinhacinco de estrada"

Johnny McCartney: "O títulodo disco é uma alusão claraaos Beatles, que haviam sedivorciado oficialmente, emabril de 1970. Na época dodisco, fui conhecer osestúdios da CBS. Fomos eu ea banda Renato & Seus BlueCaps. Tinha um cara láfazendo um teste, ficouhoras tocando uma música.No final, ele veio falar com agente: era o James Taylor,antes de estourar"

Raul cantor: "O Raulzitoera um amigo íntimomeu, mas o "RaulSeixas", para mim, naverdade, era umpersonagem. O Raul eraum cara fantástico.Ríamos muito com asbrincadeiras dele. Ele eramuito musical. E, comoeu, adorava rock’n’rollprimitivo: Little RichardElvis, Carl Perkins.Gostávamos muito defilosofia. Nosso gostoliterário era muitoparecido. Depois eleentrou de cabeça noesoterismo. Culpa PauloCoelho. Não tive nada aver com isso"

Oito canais: "J ohnnyMcCar tney foi o álbum queinaugurou o novo estúdio daCBS. Era o primeiro em oitocanais gravado na AméricaLatina. Era o máximo! Noperíodo, gravava-se apenasem dois canais no Brasil. Agravadora pediu-me parainaugurar o estúdio porquesabia que eu gostava detestar som"

Leno (C) posa com a banda, que contava com Raulzito (de branco)