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Memorial do Inferno A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden Autor:

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História do escritor Valdeck Almeida de Jesus e família, que enfrentou fome, miséria e doenças, mas venceu. Lázaro Ramos leu e gostou.

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Memorial do InfernoA Saga da Família Almeida

no Jardim do Éden

Autor: Valdeck Almeida de Jesus

AGRADECIMENTOSAos meus pais, João Alexandre de Jesus e Paula Almeida de Jesus,

falecidos, que foram o alicerce e os principais pilares de minha vida.Aos meus irmãos, Valquíria, Valmir, Valdecy, Valdir, Vitório,

Vivaldo e Ivonete, minhas únicas e raríssimas jóias.Aos meus sobrinhos, Murilo, Rodrigo, Ramon, Roberto Junior,

Vítor, Tiago e Pedro.Às minhas sobrinhas, Delma, Jéssica, Amanda (em memória) e

Paula Fernanda.Ao meu filho, Valdeck Almeida de Jesus Junior, que sempre me dá

motivos para evoluir.Aos amigos que passaram por minha vida deixando grandes e

indeléveis marcas. A todos os que, de forma anônima ou não, ajudaram minha família

a sobreviver neste país chamado Brasil.

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APOIO:

Ivan RamosLázaro RamosVanise Vergasta

CAPAJorge Cravo(artista plástico baiano)

PREFÁCIODomingos Ailton Ribeiro de Carvalho(escritor, poeta e jornalista)

Valdeck, muita sorte em seu caminho.BBBeijos.Jean Wyllys, 18 de abril de 2005

(Dedicatória no livro Aflitos, de Jean Wyllys, publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado, COPENE, Salvador, 2001).

Eli, Eli, lamá sabactâni: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

Mateus, Capítulo 27, Versículo 46

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Memorial do Inferno por Lázaro Ramos

O livro narra a vida de um brasileiro que nunca parou de lutar por seu lugar ao sol. Valdeck, rapaz pobre, cuja mãe era paralítica e o pai portador de várias enfermidades que o impossibilitavam de trabalhar, nasceu no interior da Bahia. Sua família não tinha casa própria nem renda suficiente para o sustento de um casal pobre com oito filhos. Viveram precariamente em casas de aluguel, sem móveis, sem conforto, sem sequer água encanada e energia elétrica.

O grande amor de uma mãe sofrida, Paula Almeida de Jesus, manteve essa família unida, até que cada um dos filhos pudesse sobreviver por si só. Órfão de pai, Valdeck, protagonista desta obra, viu-se obrigado a assumir a família aos 16 anos de idade, tendo vivido e trabalhado para sustentar e educar os irmãos. Contra todas as apostas, estudou, venceu na vida e hoje ocupa um cargo federal, tendo seus esforços reconhecidos.

Essa família de brasileiros e lutadores continuou unida, como era da vontade de uma mãe valente, mesmo após sua morte, em junho de 2000. E hoje todos os membros da família Almeida, apesar de suas vidas atribuladas ou da distância que os separa, encontram sempre uma data no calendário para se visitar e estar juntos, compartilhando momentos de alegria e tristeza.

Mais do que uma história real, esta obra relata um exemplo de vida que pode servir de espelho, inclusive, para muitos jovens das nossas grandes cidades brasileiras, que, ao invés de estudar e acreditar em seus sonhos optam por se enveredar pelos caminhos das drogas e da violência.

Espero que vocês se vejam um pouco neste livro assim como eu me vi nele. Tenham uma boa leitura e saúde a todos.

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Lázaro RamosAtor e Diretor

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APRESENTAÇÃO

Para que melhor se compreenda a referência que aqui se faz ao "Jardim do Éden", é necessária uma prévia explicação. Minha família iniciou-se praticamente a partir das figuras de minha mãe e meu pai. Não tive avôs nem avós, primos, tios etc. Assim, tracei um paralelo imaginário entre minha história e a história mitológica contada na Bíblia.

Este é um livro autobiográfico, onde assumo o papel do narrador, para contar a história de minha vida e a de minha família, que compreende: mãe, pai e sete irmãos. Uma saga protagonizada por uma família de baixa renda, residente em cidade de médio porte no interior da Bahia, que expõe, ao longo de vários tópicos, toda a ordem de dificuldades que essas pessoas enfrentaram: crises financeiras, falta de habitação, de alimentação, de escola básica, de tratamentos médicos-odontológicos e tanto mais. Ao contrário do que costuma ocorrer com esse tipo de gente, esta família não mediu esforços para superar as muitas barreiras que lhe foram impostas, vencendo os mais diversos obstáculos. Sem perder a fé no futuro, sempre incerto e duvidoso, a Família Almeida conseguiu, com sua luta, atingir os objetivos almejados e marcar seu lugar ao sol.

Estas páginas, que contam o duro dia-a-dia desta família, têm por fim incentivar outros sofridos brasileiros a acreditar em seu país e a lutar por seus ideais.

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PREFÁCIO

Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho (*)

A memória individual assume uma dimensão grandiosa ao apresentar aspectos marcantes da memória social. Essa é uma das características do livro autobiográfico de Valdeck Almeida de Jesus. Com um título atrativo e carregado de senso de humor (uma das marcas da personalidade de Valdeck, mesmo nos momentos mais difíceis de sua vida), Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden revela a trajetória de uma vida sertaneja que comprova a frase que se tornou célebre no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha: "o sertanejo é antes de tudo um forte".

Para enfrentar os desafios que Valdeck e sua família sofreram em Jequié, sertão baiano, é preciso muita força de vontade e determinação. E estes são atributos inerentes à sua vida.

Conheci Valdeck nas lutas estudantis que realizamos no Instituto de Educação Régis Pacheco (IERP), o maior colégio de ensino médio de Jequié. Na época em que fui eleito presidente do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, do IERP, Valdeck fazia parte da diretoria, na qualidade de diretor de Imprensa, onde foi coautor do jornal Jornada Estudantil. Nossa gestão ficou marcada na história, uma vez que, além dos movimentos que fizemos em prol da melhoria do ensino e do acesso à cultura e ao esporte, foi esta a primeira diretoria de grêmio estudantil livre após o regime militar e a redemocratização do país. Já no período de estudante do IERP e ativista do movimento estudantil, Valdeck despontava como um poeta criativo e como um artista em busca de seu espaço.

Antes mesmo do advento da Internet, ele já entrava em sintonia com o mundo globalizado, como membro ativo do campo literário, fato que lhe possibilitou participar de antologias como: Poetas Brasileiros de Hoje, lançada pela Shogun Editora, Rio de Janeiro, 1984; Transcendental, Art’Labor Eventos e Produções Artísticas Ltda.,

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Salvador, 1998; Heartache Poems, iUniverse, New York, 2004; Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - 14º volume e Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - 15º volume, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2005; Ensaios Poéticos, Academia Virtual Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2005. Publicou ainda outros trabalhos literários em jornais de grande circulação na capital e no interior do estado da Bahia, além de ter sido colaborador do jornal A Prosa, de Brasília/DF. Publicou, em 2005, o livro de poesias Feitiço Contra o Feiticeiro, dezenove anos após ter divulgado no Jornal de Jequié notícia sobre o breve lançamento do referido livro. Mais recentemente, lançou Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys, pela Casa do Novo Autor, São Paulo, 2005, e fundou o fã-clube do jornalista e escritor Jean Wyllys.

Neste livro, Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden, Valdeck Almeida de Jesus narra, com detalhes, a história de sua família, abrangendo sua mãe, seu pai e seus sete irmãos, onde conta passagens de momentos difíceis, como aquela onde diz que "a comida variava de pão seco com café preto a pirão de farinha com água fria. Muitas vezes dormíamos com fome, acreditando no que minha mãe dizia: ‘amanhã Jesus vai trazer comida’. Eu me irritava e xingava muito, pois todos os dias eu ouvia a mesma história e Jesus nunca chegava com a comida prometida". Mas não é só. O autor se reporta também a momentos de sucesso, como o fato de ter sido aprovado em concurso do Tribunal Regional do Trabalho, em decorrência da sua boa capacidade intelectual, e de ter sido, desde criança, um aluno exemplar.

Valdeck Almeida de Jesus é exemplo para todos que sonham e procuram concretizar seus sonhos. Ele tem um pensamento fascinante: devemos ter sempre uma atitude positiva diante da vida e deixar esta imagem transparecer aos outros. Por este e mais tantos ensinamentos, e pela edificante trajetória de vida do autor, vale a pena a leitura deste extraordinário livro.

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Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho

Poeta, escritor e mestre em Memória Social e DocumentoFundador e Membro da Academia de Letras de Jequié

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MEU PAI, MINHA MÃE

Eu devia ter meus cinco anos de idade, mais ou menos. Ao entardecer, surgia ele ao longe, com um machado nas costas, roupas surradas e rasgadas pela ação do mato. As primeiras lembranças que tenho dele são de quando eu e Quira ficávamos na porta da casa (casa alugada de Nazinha), esperando por sua chegada no final da tarde. E ele nunca esquecia de passar na venda de Seu Júlio para nos comprar bombons.

Semianalfabeto, trabalhava em fazendas, cortando madeira. Não sei muito de sua vida, pois, além de trabalhar muito e estar sempre fora de casa, na época em que convivi com ele eu era muito criança; além disso, em minha adolescência, meu pai vivia doente e não tinha um espírito conversador como o de minha mãe. Antes de se casar com ela, teve um outro casamento, que lhe deu seis filhos, até ficar viúvo.

João Alexandre de Jesus era um pai do tipo rígido, que batia de cinto quando necessário. Mas também sabia ser amigo, dar bons conselhos e fazer carinhos, ao seu modo. Lembro-me, uma vez, já morando na casa de Amanda, de uma ocasião em que ele queria me bater, por uma travessura, da qual não me recordo bem. A porta da rua era muito alta, para descer havia uma espécie de escada. O terreiro era de cascalho. No afã de fugir das cintadas certeiras, joguei-me porta abaixo, caindo e esfolando toda a barriga no cascalho. Meu tórax e abdome sangravam, eu chorava de dor. Então ele disse: "Vem!". Eu relutei, com medo de apanhar. E ele continuou já com a voz mais mansa: "Não vou te bater mais". Eu fui e ele não bateu... Esta cena se inscreveu para sempre em minha memória.

Era um homem de pouca saúde. Sobretudo, pelas más condições de seu tipo de trabalho. Lembro-me de que minha mãe contava sobre uma tora de madeira (uma árvore) que havia caído em cima de meu pai, em uma das roças onde trabalhou. Ele também sofria de uma sinusite crônica, que o deixava atordoado. Vivia a queixar-se de dores de cabeça.

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Com a velhice, tudo foi se acumulando, e ele acabou morrendo, vitimado por uma série de problemas de saúde.

Ao final da vida, havia momentos em que perdia a memória. Ficou violento e, por segurança, minha mãe passou a mantê-lo trancado no quarto, para evitar que se ferisse ou que saísse pela rua sem rumo. Nessa época, início dos anos 80, criou o hábito de pedir comida às pessoas que iam visitá-lo. Dizia sentir fome, porque os filhos comiam tudo e nada deixavam para ele. As pessoas acreditavam no que ele dizia e lhe levavam comida, mas não sem antes advertir-nos para não mais agirmos daquela maneira com o nosso próprio pai. Para resolver o assunto, minha mãe, um dia, pediu aos que traziam comida a meu pai para ficarem escondidos e observá-la enquanto lhe dava a comida; ele comia tudo. Depois, chamava a visita para vê-lo novamente. Como ele não reconhecia ninguém, nem os próprios filhos, repetia a mesma história de que teríamos comido tudo, sem deixar nada para ele.

Meu pai foi aposentado por invalidez. Recebia um salário mínimo por mês. Quando morreu, esta pequena renda se extinguiu e minha mãe se viu com oito filhos menores, sem condições financeiras de sustentá-los.

O velho João - como costumávamos chamá-lo - sofreu muito durante a vida e, quando esteve doente, de cama, quase à beira da morte, seu sofrimento foi muito maior. O sofrimento dele era também o nosso sofrimento. No dia de sua morte, Albérico, um parente distante, tirou fotografias de meu pai na cama, na hora em que agonizava. Eram seus últimos momentos de vida. Assisti a tudo e ajudei, inclusive, a colocar uma vela em sua mão. Para ser franco, devo dizer que não me comovi com sua partida, não senti sua falta, não fiquei triste. Ao contrário, senti mais alívio por vê-lo partindo do que a dor de perder um ente querido. Vim chorar sua falta somente dez anos depois. Era um domingo de Dia dos Pais, e neste dia senti profundamente a sua ausência. Fiz até um poema em sua homenagem.

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Paula, minha mãe, costumava falar demais. Sempre contava muitas histórias de sua vida, mas, na maioria das vezes, nós, os filhos, não levávamos muito a sério o que ouvíamos. Na maior parte do tempo, simplesmente fingíamos ouvir suas histórias, e, em outras ocasiões, corríamos, deixando-a a falar sozinha.

Ela contava que a mãe tinha morrido de parto e que fora criada pelo pai até os doze anos de idade; que sua avó paterna era uma índia "pega a dente de cachorro". Segundo ela contava, seu pai era um ambulante, louro e de olhos azuis. Essa história foi confirmada, após sua morte, por uns primos, descobertos por minha irmã Valquíria lá perto do Frisuba - cerca de 15 quilômetros de Jequié -, local onde minha mãe passou boa parte da infância e juventude.

Cabe dizer aqui que nossa ideia de família remonta praticamente à figura de minha mãe e de meu pai, já que não tínhamos conhecimento da existência de outros parentes.

O fato de meu avô materno ter sido loiro e de olhos azuis explica o fato de quase todos nós termos nascido com cabelos loiros, que mais tarde teriam sua cor modificada para preto ou castanho claro, pelos efeitos do tempo. Explica também os olhos claros com que alguns de nós fomos contemplados. Antenor, um de nossos recém-descobertos primos, afirma que esse avô materno era descendente de italianos. Diz que ele vivia pelas bandas de Santo Antônio de Jesus e que era, realmente, um ambulante. Trabalhava com confecção artesanal de cestas e produtos feitos com palha.

Minha mãe sempre teve problemas sérios de saúde. Contava que, quando criança, sofria de uma espécie de doença, que nunca entendi bem do que se tratava, se um problema de coração ou de ordem espiritual. Dizia que, durante uma época, ficava presa num quarto, amarrada em algo semelhante a uma camisa-de-força, por não ter controle dos movimentos do corpo. Ficava a se debater todo o tempo, a ponto de os parentes precisarem amarrá-la à essa camisa de força improvisada, feita com couro de boi, para que não se machucasse. Essa

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situação deve ter durado muito tempo e marcado bastante sua vida, pois frequentemente voltava a tocar no assunto.

Quando já tínhamos mais consciência da vida, presenciamos muitas de suas crises: sistema nervoso, asma, coração. Costumava ficar, por boa parte do tempo, sem os movimentos dos membros inferiores, praticamente paralisada. Arrastava-se pelo chão, sem qualquer sensibilidade nas pernas. Não sentia a parte inferior de seu corpo nem mesmo ao fazer suas necessidades. Era um sofrimento só, tanto para ela quanto para as crianças. Precisava de cadeira de rodas. Conseguimos uma, depois que tive a ideia de enviar uma carta ao programa apresentado por Geraldo Teixeira, na Rádio Baiana de Jequié. Nesta oportunidade, foi-nos doada uma cadeira de rodas usada, que serviu à minha mãe até ela apresentar melhoras e poder substituí-la por um par de muletas. Após muitos anos, finalmente, voltou a andar.

Essa foi uma das fases mais marcantes para a vida de minha mãe, e também para a nossa. Ficávamos mortos de vergonha por termos de empurrar aquela cadeira rua acima e rua abaixo, para que ela conseguisse as esmolas que ajudariam a gente a comer, beber, se vestir, estudar, sobreviver. A cadeira era imensa, minha mãe pesada, e nós franzinos e fracos para aguentarmos todo aquele peso; além da questão, é claro, da timidez e vergonha de sermos vistos empurrando a cadeira de rodas. Mas não tínhamos escolha. Ou empurrávamos a cadeira para pedir esmolas ou morríamos de fome. De minha parte, sentia uma vergonha enorme ao ser visto conduzindo aquela cadeira de rodas pelas ruas, sob o sol quente.

Durante todo o tempo passado ao lado de minha mãe, o que mais me recordo, além das constantes mudanças de endereço, já que não morávamos em casa própria, eram as idas e vindas ao Hospital Geral Prado Valadares, onde ela permanecia internada por grandes intervalos de tempo. Durante essas fases, cada um dos filhos ficava na casa de um vizinho, até que ela retornasse e mostrasse condições de reassumir a casa e as crianças. Esses vizinhos chegavam a lhe propor que doasse os filhos, alegando que as crianças poderiam ter vida mais digna e

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confortável, mas ela jamais admitiria tal hipótese. Dizia: "Onde come um, comem dois". Passava apertos, privações, necessidades, mas jamais seria capaz de doar qualquer um de seus filhos. Era uma experiência sem igual, já que na casa do anfitrião tínhamos tudo o que não tínhamos em nossa casa: comida, cama, banho, televisão. Mas o desejo maior era de que minha mãe pudesse voltar do hospital e todos retornássemos ao aconchego do lar e do colo materno. Era uma grande festa quando recebíamos a notícia de que nossa mãe tinha tido alta médica e que estava voltando para casa.

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CENAS DE UMA INFÂNCIA

Primeira residência - Casa de Nazinha A casa ficava num local que hoje se chama "Banca", no bairro

Jequiezinho, em Jequié. Na época em que moramos ali, não havia água encanada, linha de ônibus nem calçamento nas ruas. Cabe aqui ressaltar que, passados mais de quarenta anos, esta e outras ruas do bairro permanecem ainda sem calçamento e sem linha regular de transporte coletivo. Apenas uma linha de ônibus circula nos arredores.

Os esgotos ainda correm a céu aberto e as casas mantêm o aspecto da pobreza e da miséria que ainda ronda o antigo bairro. Vivi ali boa parte de minha infância. Passei fome e brinquei por entre os lixos, catando ossos para vender. Frequentemente pedia comida na casa de um e de outro. Este fato rendeu a mim e à minha irmã Valquíria (Quira) alguns apelidos do tipo "Gordurinha" (Quira) e "Paquira" (eu), pois, quando íamos à casa de Seu "Santin" pedir comida, eu costumava dizer: "Minha mãe falou pro senhor mandar um pedacinho de carne PAQUIRA", enquanto Quira vivia pedindo "uma gordurinha". Seu "Santin" matava porco e era tido como rico, pois em sua casa não faltavam comida, energia elétrica e sanitário (com uma fossa no quintal).

Lembro-me de uma vez que eu estava catando ossos nos fundos do quintal dele, quando, ao pular sobre um esgoto, caí, atolando as duas pernas dentro das bostas e cortando o pé direito nos cacos de vidros alojados no fundo do lamaçal. Foi um horror. Um drama. Corri para casa aos prantos e minha mãe cuidou de mim. Eu gritava e chorava de dor, desesperado de ver toda aquela inundação sanguínea a jorrar do meu pé.

A casa era de taipa. Dois quartos, uma salinha e uma cozinha minúscula. Foi construída sobre uma encosta, sendo que a parte da frente da casa, que dava para a rua principal, tinha uma escada enorme para descer até o nível da rua. E a porta dos fundos era no mesmo nível do solo, porém dava para uma ladeira, que ia dali da porta da cozinha até a rua que passava atrás. Era casa de aluguel. Acredito que Valquíria

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tenha nascido ali, já que devemos ter morado naquela casa por volta do ano de 1967. Recordo-me bem do momento em que minha mãe entrou em trabalho de parto e foi para o hospital. Ao voltar com o nenê, sua cama foi arrumada com lençóis floridos. Ficava ali deitada o tempo todo com seu bebê, respeitando o resguardo do parto.

Os vizinhos eram os próprios donos da casa: Maria, mãe de Nazinha, que, por sua vez, era mãe de Lúcia e de Domingos. Havia também uma família que morava perto: Maria de Ademário, sua filha Lúcia e mais outros filhos, dos quais não me recordo bem. Atrás da casa havia um beco, onde se guardavam ossos. Durante a noite, os cachorros apareciam para roê-los. Faziam uma algazarra que me amedrontava. Por inúmeras vezes, acordava chorando e gritando de medo. Achava que os cães estavam embaixo de minha cama de lona. Mas logo aparecia minha mãe para me tranquilizar, dizendo que os cachorros estavam do lado de fora. E, como eu não me convencia, ela me levava para dormir em sua cama.

Nossos móveis se resumiam a uma pequena cama de madeira e um armário de cozinha, do tipo cristaleira, porém sem os vidros nas portas. O fogão era de barro e o combustível era lenha. Não havia água nem luz. Saneamento básico, nem pensar. Nenhuma casa, em todo o bairro, possuía esgotamento sanitário.

Eu morava a cerca de 500 ou 600 metros da venda de Seu Júlio, que para mim pareciam quilômetros. Aos olhos de uma criança tudo é imenso, gigantesco... E, para aumentar a sensação de distância, de minha casa até a venda não havia casas nem de um lado nem do outro da rua. O que havia era uma cerca, formando uma estrada, uma passagem chamada de "corredor", por onde passava muito gado. Muitas vezes eu via passar centenas de milhares de animais, guiados por vaqueiros, que advertiam aos moradores do perigo de se aproximar da manada. Era um espetáculo que durava horas e horas, como se fosse um mar interminável de bois e de vacas. Nos dias de hoje, esse espetáculo já não existe. As criações se restringem a lugares mais afastados da cidade e também já não há tantos animais como havia antigamente.

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Quando eu ia à venda de Seu Júlio comprar alguma coisa, tinha sempre que enfrentar um menino que me batia, enquanto o tio dele ficava esperando eu acabar de apanhar. Uma vez, apanhei bastante desse garoto. Quando minha mãe soube que isso acontecia, procurou os parentes dele e se queixou. Desse dia em diante não apanhei mais.

Uma lembrança que até hoje habita a minha mente é a do boato sobre o "fim do mundo" ou "dia da escuridão". Diziam que o mundo ficaria sob as trevas. Minha mãe, muito precavida, tinha várias velas bentas, que seriam as únicas a permanecerem acesas quando o "escuro" viesse, segundo ela. Tinha também água benta e pão bento, que seriam os únicos alimentos permitidos durante os dias de escuridão. Penso que tais boatos eram criados pela igreja católica para amedrontar as pessoas. Quanto à previsão de fim do mundo, minha mãe acreditava piamente que o mundo se acabaria no ano 2000. A passagem desse ano foi quase uma decepção para ela, mas também uma alegria, por saber que viveria um pouco mais aqui na Terra. No entanto, a previsão que fez de sua própria morte, que viria a ocorrer neste mesmo ano de 2000, realmente aconteceu, no triste mês de junho.

Marcaram-me também as folhas de juá, que usávamos como creme dental. A fruta do juazeiro é pequena como uma azeitona, porém redonda e muito doce. As folhas, no entanto, são amargas e, segundo a crença popular, possuem propriedades medicinais, prevenindo cáries e outras doenças bucais. Crença ou não, fato é que, hoje, muitos cremes dentais exibem em suas embalagens, com orgulho, a folha de juá na composição do produto. Uma outra fruta que comíamos muito era a "quixaba", parecida com o juá, porém de cor preta, diferente da outra, que, quando madura, fica amarelinha.

***

Moramos também numa casa na antiga "Rua da Palha", atual Rua Vovó Camila, no Jequiezinho. Era uma pobreza franciscana por todo o bairro. Casas de palha e de "adobões", muita miséria e falta de tudo.

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Recordo-me que nessa época eu e Quira frequentávamos uma escola na casa de Seu Canuto. A casa era imensa aos nossos olhos. Anos mais tarde, voltamos ali e constatamos que a casa não era tão grande assim. Era apenas a impressão dos olhos de uma criança, que amplia tudo. Havia um extenso matagal onde brincávamos. As casas ficavam somente de um lado da rua. Do outro, era mato fechado, onde os moradores jogavam o lixo e onde as crianças brincavam de esconde-esconde. A lenha para os fogões era retirada também dali. Em dias de ventania, o lixo era espalhado pra todo lado, inclusive pra cima das casas. Lembro de uma expressão que aprendi, nessa época, de tanto que os mais velhos repetiam. Quando o vento começava a soprar forte, costumava-se dizer: "Aqui tem Maria Virgem!". Era uma alusão à mãe de Jesus, para que o vento diminuísse sua intensidade e evitasse atingir a casa daqueles que pronunciavam a "santa frase".

Atrás da casa havia também muito mato. Havia sítios, onde os proprietários criavam cabras e onde minha mãe buscava água para abastecer a casa. Um desses sítios pertencia a um "primo" de minha mãe. Mas, como não dispúnhamos de muitas informações a respeito dos familiares dela, sempre achávamos que as pessoas que ela nos apresentava como parentes eram apenas pessoas com as quais tinha alguma afinidade. Esta rua era um prolongamento do "corredor" por onde passava o gado para as fazendas, tocado pelos vaqueiros.

***

Moramos ainda na casa alugada de Amanda, na Rua Professora Virgínia Ribeiro. Era uma casa de meia água, modelo de construção no qual o telhado se projeta em apenas uma direção, da parede mais alta para a mais baixa. Quando chovia, caía água de chuva por cima da parede, e minha mãe ficava morrendo de medo que a parede caísse, já que era feita de "adobões". A casa não tinha água encanada, luz elétrica nem nada.

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Nessa época, a Rua Professora Virgínia Ribeiro também tinha casas somente de um lado. No outro, havia um matagal cheio de planta espinhosa, mandacaru, urtiga, cansanção e arbustos da espécie. Era dali que as pessoas, inclusive a nossa família, tiravam, para o consumo diário, a lenha, que era o combustível dos fogões daquele tempo. O fogão à lenha, marca registrada de todas as casas da época, enorme, feito de adobes, ficava bem no meio da cozinha.

Nossa família costumava ter sempre muitos problemas de saúde. Uma vez, fiquei com o corpo todo ferido. Não sei que doença era aquela, mas lembro que minha mãe me banhava com sumo de folhas de "vassourinha". Eu sentia muita dor quando o sumo entrava em contato com as feridas. Minha irmã Nete também apresentou problemas de ferimentos pelo corpo. Mas, no caso dela, as erupções se concentravam mais no couro cabeludo que, de tão ferido e purulento, acumulava até bicho de mosca em sua cabeça. Era uma nojeira só.

Minha madrinha, Dona Nenê, era uma senhora negra que morava perto de nossa casa. Eu a tratava por Comadre Nenê, exatamente como minha mãe a chamava. Nunca consegui pedir-lhe a bênção nem chamá-la de "madrinha".

Desta época, lembro nitidamente de um episódio em que eu, com meus seis ou sete anos de idade, viajava no ônibus com minha mãe, e um passageiro, sentado no banco de trás, começou a brincar comigo. Como eu não respondia nem participava da brincadeira, o homem protestou dizendo que eu era muito enfezado e que tinha a cara fechada. Hoje, ao lembrar desta cena, percebo o quanto mudei. Atualmente, sou um sujeito brincalhão, que tenta sempre se manter alegre e tirar uma boa lição de tudo o que a vida possa oferecer, seja de bom ou de ruim.

Insere-se também nessa época um outro episódio do qual jamais esquecerei. Sempre via as pessoas pularem dos ônibus antes que eles parassem no ponto. Achava aquilo tão bonito que me senti tentado a fazer o mesmo. Um dia, antes de o ônibus parar no ponto onde eu deveria descer, me joguei. Logicamente, acabei caindo de mau jeito e me

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machucando. Fiquei todo ralado e sujo de terra. Entrevado no chão, todo empoeirado, me apavorei entre arranhões, sangue e lágrimas. Minha mãe ficou desesperada. O motorista e os passageiros desceram para ver o que havia acontecido. Foi uma confusão só. Felizmente, tudo não passou de um susto e de raladuras pelo corpo inteiro. Um desconhecido que passava na hora se ofereceu para me levar de bicicleta até em casa. Mais uma lição aprendida.

Nessa época, meus irmãos Zezé e Édson, da primeira família de meu pai, visitavam meu pai regularmente. E, numa dessas visitas, acharam por bem levá-lo com eles para São Paulo, onde poderiam cuidar melhor de sua saúde. Ficou então decidido que minha mãe, eu, Valquíria, Valmir (Mi) e Valdecy (China) - filhos da segunda família de meu pai - ficaríamos em Jequié, na casa de Amanda, cujo aluguel passaria a ser pago por Édson e Zezé. Ficou acertado que as despesas com a nossa alimentação também correriam por conta deles, que enviariam o dinheiro diretamente para Amanda, dona da casa onde morávamos, e para Preta, dona da venda onde a comida seria comprada.

Todos os meses as despesas eram cobertas, conforme o acordado. Mas, com o passar do tempo, o dinheiro parou de chegar, tanto para o aluguel quanto para a comida, e Preta parou de nos vender fiado. Quanto à casa, Amanda permitiu que continuássemos morando, agora de graça, com pena de mandar embora uma mãe com quatro filhos pequenos. Por falta de comida, minha mãe não teve outra saída a não ser sair para pedir esmolas pelas casas do centro da cidade. Mas sempre dizia que estava trabalhando. Não queria que a vizinhança soubesse que ela era uma pedinte (no interior, pedinte é chamado de "esmoler").

Onde atualmente está erguido o edifício Mansão Avenida, na Avenida Rio Branco, Centro da Cidade, existia um casarão enorme. Era um dos pontos onde minha mãe costumava pedir esmolas, arrastando eu e Quira pela cidade inteira. Não lembro o nome da proprietária da casa, mas lembro claramente que existia em seu quintal um carrinho tipo jipe, com quatro rodas, e que se locomovia por pedais internos. Era um carro todo velho e enferrujado, mas com o qual nos divertíamos muito toda vez

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que íamos lá. Brigávamos para disputar quem iria brincar com o carro. Minha mãe, diante da cena, intervinha para evitar a confusão, dizendo que meu pai traria um Velotrol novo de São Paulo, assim que voltasse de seu tratamento de saúde. Passou-se uma vida inteira e o Velotrol não chegou. Mas ficou a lembrança desta promessa em nossas mentes, que jamais será apagada.

***

Não havia transporte coletivo circulando naquela região. Era uma rua de pobres, e pobres não tinham dinheiro para pagar ônibus. A linha que passava mais perto, a um quilômetro de distância, cortava a Avenida Franz Gedeon. O trajeto até ali tinha de ser feito a pé ou, em caso de emergência, tentava-se arranjar uma carona, coisa muito difícil, uma vez que toda a vizinhança era pobre e mal tinha dinheiro para a comida. Também não existia calçamento. Anos depois, a energia elétrica foi ligada na rua, mas em nossa casa nunca pudemos usufruir deste benefício, pois não tínhamos condições de arcar com a conta mensal. Lembro dos inúmeros buracos que a companhia de energia elétrica abriu na rua para colocar os postes, dentro dos quais a criançada costumava se divertir.

Minha mãe passou a pegar água na casa de Amanda, tão logo ela foi instalada lá. Usava-a para consumo e para lavar roupas e pratos. Nessa época, éramos apenas eu, Quira, Mi e China, os quatro filhos mais velhos. Com o passar do tempo, as coisas foram melhorando. Minha mãe já contava com uma boa quantidade de pessoas conhecidas nos arredores, e muitas dessas pessoas ajudavam regularmente a nossa família. À medida que o tempo passava, minha mãe ia aprendendo a cultivar cada vez mais suas amizades. E, como ficamos muitos anos morando nesta casa, o círculo foi aumentando.

Certa vez, morando ali, fui com minha mãe ao centro da cidade para pedir esmolas. Ao passarmos pela Praça Ruy Barbosa, vi alguns clipes de papel espalhados pelo chão. Achei bonito e parei para catar.

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Quando terminei de pegar todos, olhei em volta à procura de minha mãe e não a vi por perto. Perdi-me dela, fiquei apavorado. Comecei a chorar e a gritar por ela. Aos prantos, lembro de dar voltas e mais voltas no quarteirão onde ficava o antigo Mercado Municipal.

No final, um senhor chamado Seu Nenzinho me pegou pelo braço e me levou para a Rádio Baiana de Jequié. Lá me colocou no ar, no programa de Geraldo Teixeira, e depois me levou para a sua casa, onde permaneci até que minha mãe fosse me buscar. Ela já conhecia Seu Nenzinho e a esposa, Dona Lia; meu pai já havia trabalhado em uma de suas fazendas. Fiquei em sua casa apenas um dia. No dia seguinte, minha mãe já estava lá para me pegar.

Primeira escola

Foi na Escola de Lina que eu e Quira começamos a estudar. Eu com seis anos de idade e ela com cinco. Era uma escola particular, que funcionava dentro da casa da professora, na Rua da Banca. Até hoje a escola existe, no mesmo lugar. Saíamos pela manhã e voltávamos à noite, o turno era em tempo integral. Foi lá que aprendi o ABC. Quando não sabíamos o dever ou esquecíamos o nome de alguma letra, a professora nos batia com palmatórias. Mamãe nos dava dinheiro para a merenda, cinco centavos. Na hora do recreio saíamos para comprar a merenda e brincar dentro de um matagal que rodeava a escola.

Íamos e voltávamos sozinhos, não havia perigo algum. Nessa época, minha mãe sempre me mandava à Venda de Preta (que era branca) para comprar algo. Permanece ainda nítida a lembrança do miolo dos pães, que comia pelo caminho. Outro episódio bizarro foi quando fui comprar um ovo e acabei por esmagá-lo entre os dedos, de tanto cuidado para não deixá-lo cair. Voltei para casa com os fragmentos da casca do ovo na mão, e, quando minha mãe perguntou por ele, abri a mão, que guardava apenas as fraturas de sua casca. Não, ela não me bateu nem me castigou por causa disso. Compreendera o meu dilema.

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A segunda escola foi a de Neuza, onde aprendi a ler e a recordar (ler novamente) o livro Alice. Aprendíamos a ler e a fazer contas com a tabuada. Como eu terminava de ler o livro inteiro antes do final do ano, tinha que "recordar". Chorava muito quando não conseguia ler uma determinada palavra e era colocado de castigo, em frente à professora, até conseguir lê-la corretamente.

Formação ReligiosaNascemos num país católico e, fatalmente, seguimos a religião da

maioria. A vida de minha mãe era nas igrejas. Não faltava às missas dominicais e, nos demais dias da semana, sempre que possível, arrumava um jeito de assistir às missas regulares. Lembro-me, com certa ternura, de uma amiga dela, chamada Anália, mãe de Roxa, Pedro e Dozinho, também muito fervorosa, que, de vez em quando, nos trazia hóstias para colocarmos na sopa. Não eram propriamente as hóstias que eram servidas na missa, mas sim a folha de goma com os furos de onde haviam sido retiradas as hóstias.

Eu e Quira frequentávamos o catecismo, que era coordenado por Isaías, um dos cristãos da Igreja do Convento. Para nós, era uma festa. Ele vinha nos buscar em casa, de carro, levando também várias outras crianças. Era o melhor dia da semana, pois significava a chance que tínhamos de conhecer e interagir com outras pessoas, sem falar na diversão que tudo aquilo nos proporcionava.

Minha mãe adorava a igreja católica e nunca perdia uma procissão. Uma vez, quando acompanhávamos uma dessas procissões, um menino me deu uma vara para segurar. Quando segurei firme, ele puxou a vara, que escorregou por entre meus dedos, deixando minha mão toda suja de bosta. Tive de aguentar a mão lambuzada e o maior fedor até o final da procissão, quando pude ir para casa me lavar. Odiei aquele menino.

Minha mãe tinha feito uma promessa para São Roque, pedindo ao santo que a curasse do problema das pernas: um problema de saúde que a deixava paralítica. Após cumprir a promessa, começou a sentir alguma

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melhora, o que contribuiu para aumentar ainda mais sua fé, motivando-a a fazer uma festa para o santo. Para realizar essa festa, ela se vestia com uma roupa azul, comprida até os pés, pegava a estátua de São Roque, improvisava uma espécie de altar ambulante e saía em direção a todas as casas da cidade, pedindo esmolas para ajudar no evento. No dia da festa, vinham as mulheres rezadeiras e muitos outros fiéis comer o arroz-doce que era servido. A casa, repleta de velas acesas, era toda arrumada para aquela cerimônia. A reza durava horas e mais horas. Era muito divertido ver aquilo tudo. Uma autêntica demonstração de fé e de confiança em São Roque, mais um dos representantes de Deus na Terra.

Foi também nessa oportunidade que tivemos contato com o Centro Espírita Bezerra de Menezes, atraídos por cestas básicas, remédios gratuitos, cobertores e roupas. Houve vezes em que até dinheiro minha mãe recebera daquela instituição. Tornamo-nos conhecidos do pessoal do "Centro", que vinha até nossa casa para trazer doações. A fome nos atraiu para onde a comida era ofertada gratuitamente. Com o tempo, minha mãe passou a assistir às palestras de doutrinação. Levava sempre a mim e a Quira com ela. Acabamos nos acostumando a ouvir a palavra de Deus e acabamos ficando por lá, sem deixar, contudo, de frequentar a igreja católica, que também era uma fonte de alimentos para os pobres.

Em algumas reuniões do Centro Espírita não era permitida a presença de crianças. Nessas ocasiões, minha mãe nos deixava na casa de Dona Laurita, que ficava nas imediações do Centro. Enquanto esperávamos pelo seu retorno, divertíamo-nos imitando o que víamos no Centro Espírita, inclusive os movimentos dos médiuns dando seus passes. As filhas de Dona Laurita morriam de rir do espetáculo que lhes proporcionávamos.

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LUCI VALVERDE MAGALHÃES

Minha mãe sempre teve saúde muito frágil e, após a viagem de meu pai, ficou bastante abalada. E não era para menos. Viu-se sozinha, com quatro filhos para cuidar e sem nenhuma fonte de renda para garantir sustento e habitação. Pouco tempo depois da partida do marido, ela resolveu ir também para São Paulo, mas não conseguiu contar com o apoio de meus irmãos Édson e Zezé. Então resolveu pedir ajuda à Prefeitura Municipal, então comandada por Caribé. O prefeito forneceu-lhe as passagens. Quanto à grana para a comida, minha mãe conseguiu vendendo a mobília que possuíamos. Começou a planejar a ida da família para Sampa: entregou a casa, embalou as roupas e fez pacotes de comida. Porém, um dia antes da partida, ela teve um sonho, no qual via que o ônibus em que viajaríamos sofria um acidente. Eu aparecia no sonho como único sobrevivente, chorando em meio aos corpos dos passageiros e destroços do veículo. Prontamente ela cancelou a viagem. Amanda, por sorte, permitiu que continuássemos a morar na casa. No dia seguinte ao dia da suposta viagem, a Rádio Baiana noticiou um acidente ocorrido com um ônibus da empresa pela qual viajaríamos, e que apenas um bebê de seis meses de idade havia sobrevivido.

***

Meu irmão Valmir tinha frequentes problemas de falta de ar, quando a asma lhe atacava. Ele ficava ruim, quase morto. Eu não compreendia a gravidade da situação, mas percebia o quanto minha mãe ficava preocupada quando Valmir era vitimado por seus ataques de falta de ar. Ela tentava de tudo, sem dinheiro para médico, sem dinheiro para remédio... Dava-lhe cigarros de flor de zabumba para fumar, o que amenizava a situação.

Uma vez, Luci Valverde, frequentadora do Centro Espírita, ao ver meu irmão, pela primeira vez, teve uma crise de choro e disse que Valmir deveria ter sido alguém importante na vida dela em alguma vida

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pregressa. Fez de tudo para que minha mãe entregasse meu irmão para ela cuidar. Com a permissão de minha mãe, Mi foi morar com Luci. Ela sempre trazia Mi para minha mãe ver. Quando ele chegava em nossa casa, trazido por Luci, vinha sempre muito bem vestido e gordo - contrastando conosco -, resultado da vida boa que levava por lá, comendo iogurte e outras coisas que nós, nem em sonho, ousávamos imaginar. Passado o devido tempo, minha mãe resolveu pedir o Mi de volta. E Luci o trouxe definitivamente para casa, já curado da asma, em virtude dos tratamentos médicos caríssimos a que fora submetido, sob os cuidados dela.

Já não tínhamos o que fazer para sobreviver, quando Luci Valverde ofereceu a fazenda dela para que fôssemos lá morar e trabalhar. A viagem foi acertada, após minha mãe aceitar a oferta. Partimos para a fazenda, sem saber nem para que lado ficava. Só sabíamos que se chamava Fazenda Turmalina. E Luci, conhecíamos apenas das reuniões doutrinárias do Centro e da ajuda que ela nos dava. Minha mãe já sabia que ela morava em frente ao Posto Shell, no Edifício Jordan, onde funcionava, até bem recentemente, uma concessionária de automóveis e uma emissora de rádio. Muitas vezes, acompanhei minha mãe quando de suas idas à casa de Luci. Íamos para pedir esmolas e sempre recebíamos alguma coisa, comida ou roupas usadas.

Sem muitas alternativas, fomos todos morar na Fazenda Turmalina, onde minha mãe trabalhava na cozinha de Luci, quando de suas eventuais estadias na fazenda, que ocorriam geralmente a cada dois meses. Ela permanecia por lá durante uma semana ou mais. Da viagem, as recordações são vagas. Lembro apenas que a sede da fazenda ficava a uns quarenta quilômetros de Jequié.

A princípio, ficamos morando numa casinha dentro da sede da fazenda. Era uma casa dividida ao meio, formando dois cômodos menores, mas sem quartos ou espaço destinado a uma cozinha. Tinha uma porta na frente e outra nos fundos. No meio, havia uma janela que dava para um terraço onde, outrora, colocava-se o café para secar. Não havia água encanada ou energia elétrica, mas era confortável. A casinha

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parecia estar fechada há muito tempo, pelo seu estado de má conservação e pela quantidade de mofo em seu interior.

Na fazenda havia energia elétrica gerada por motor a diesel, que era ligado somente durante as visitas de Luci. Não fazia muita diferença para nós, já que estávamos acostumados a viver a vida sem luz e sem água. O motor fazia um barulho infernal, quando ligado, mesmo estando a uma boa distância da sede. Lembro-me que ousei emendar uma ligação de energia elétrica na casinha, certa vez, e tudo funcionou muito bem.

Na frente da casa havia um pequeno pátio, onde ficava uma geladeira velha, que não prestava para mais nada além de depósito de bananas. Colocávamos bananas dentro da geladeira, deixávamos a porta fechada, e as bananas amadureciam com rapidez por causa do calor que as abafava. Certa feita apareceu por lá alguém que precisou dormir em nossa casa. A visita dormiria na cama de China. Por causa do frio, ela não parava de repetir a China: "Chega pra cá, neguinha!". E a resenha pegou. Passamos a perturbar China com essa história por muito tempo: "Chega pra cá, neguinha!".

Brincávamos de vaqueiros fictícios, mas usando nomes de pessoas que exerciam o ofício na própria fazenda. Eu era Calango, Quira era João Grilo, China era Edmundo e Mi era Calixto. Víamos esses vaqueiros como uma espécie de heróis e, por isso, gostávamos de imitá-los em nossas brincadeiras.

Minha mãe trabalhava na cozinha e na limpeza geral da casa de Luci, quando de suas idas à fazenda. Tinha outra mulher, chamada Jovelina, se não me falha a memória, que também fazia o serviço da casa. Eu cuidava das plantas, molhando-as todos os dias, e tomava conta do jardim em frente ao casarão. Uma vez fui ajudar na cozinha e tomei uma bronca enorme de Luci, quando me viu tirando a casca do alho com a unha. Ensinou-me, pacientemente, que aquilo era falta de higiene e me mostrou como fazer o trabalho usando uma faca.

Na casa de Luci, que era enorme, tinha geladeira a gás. Eu achava interessante aquele fogo aceso para gelar comida... A casa tinha varanda em toda sua volta, muitos quartos, escritório, biblioteca, quarto de

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empregada, despensa, sala de estar e de jantar e um jardim enorme. Havia uma TV na sala, que nunca funcionava por falta de energia elétrica. E, quando a energia era ligada, a TV também não pegava, porque a região era muito isolada.

Tinha também um gabinete onde ela guardava centenas de milhares de revistas em quadrinhos, de vários personagens. Eu costumava pegá-las emprestadas, entrando escondido na casa pela janela lateral esquerda, sempre que Luci estava em Jequié. Pegava dezenas de revistas, lia-as todas, voltava, colocava-as onde havia encontrado e... pegava mais. Era uma curtição ler aquelas histórias. A janela tinha um problema que a impedia de ser completamente fechada, deixando-a em falso. E eu, sabendo disso, me aproveitava da situação. Em uma dessas minhas entradas na casa, aproveitei para pegar alguns chocolates, que ficavam sobre uma estante da sala de jantar.

Havia muitos caqueiros de plantas ao redor da casa e um curral no lado esquerdo. Havia o pé de pitanga, que ficava entre o curral e a casa, do qual eu e Quira tirávamos os frutos para comer. E também um galinheiro, muitos coqueiros e um pé de goiaba junto ao muro, onde eu e Quira ficávamos comendo aquelas frutas até enjoar. Havia patos, perus e gansos. Os gansos, irritados, costumavam nos atacar quando atingidos pelas pedras que jogávamos neles. Atrás da casa, havia um enorme galpão que abrigava toras de madeira e uma máquina torrefadeira com ensacadora de café em grão, que já há muito não funcionava. Tínhamos o hábito de brincar no galpão, sobre as toras, ou atrás da máquina abandonada.

Seu Maneca, o gerente, inicialmente, morava em uma estufa antiga, que ainda funcionava quando chegamos à fazenda. Depois ele se mudou com a família para uma casa na sede, junto à estufa antiga. Lembro-me que na casa dele as pessoas sempre ouviam música e a que mais me marcou foi "Estúpido Cupido", que tocava quase todos os dias. Minha irmã Quira logo aprendeu a letra e não parava de cantar e de dançar dentro de nossa casa. Depois de seu Maneca, houve um outro

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gerente, que tinha muitas filhas, mas não consigo me lembrar do nome de ninguém.

Tempos depois foi construída uma nova estufa, que substituiria a primeira que ficou abandonada. Seu Suta, um senhor já de idade, tomava conta da estufa e da secagem do cacau. Muitas vezes eu ficava a observar o movimento dos homens, na nova estufa, ensacando o cacau e colocando os sacos sobre um caminhão, que os transportaria até Jequié.

A fileira de pés de laranja, de mais ou menos um quilômetro, que ficava diante da casa da sede, era palco de muitas alegrias, uma festa para nós. Lá costumávamos chupar laranjas sem descer do pé. E, quando um pé não tinha laranja madura, subíamos em outro e em outro.

Foi uma parte da vida maravilhosa e enriquecedora. Nunca havia tido um contato tão intenso com a natureza, com uma cultura diferente daquela da cidade. Nessa fase, experimentei fatos e situações inesquecíveis, que jamais teria chance de viver em Jequié. Quando morava na casa de Amanda, pensava que os grãos de feijão nasciam grudados ao caule da planta. Somente na fazenda pude descobrir que eles nasciam dentro de bagens, além de muitas outras coisas.

Cobras eram comuns por todos os lados, e eu já matei muitas delas, inclusive quando tentavam engolir algum sapo ou rã. Quando morávamos na chamada Casa do Motor, matava dezenas delas, pois a casa ficava um pouco afastada da sede da fazenda, próxima aos matagais, onde as cobras, sorrateiras, preferem se esconder.

Todas as manhãs, bem cedinho, buscávamos leite no curral. Geralmente, eu e Quira éramos os escalados para a função. Aproveitávamos para beber boa parte do leite. Ficávamos imaginando uma vasilha equipada com uma mangueirinha, para que não precisássemos tirar da cabeça o balde de leite, permitindo assim que o bebêssemos enquanto caminhávamos.

Uma vez, nossa casa ficou com problemas, molhando quando chovia, e tivemos de nos mudar para o quarto da empregada, na casa de Luci. Era um quartinho que ficava nos fundos da casa, contíguo à cozinha e à despensa. Havia muitos morcegos ali. Chiavam a noite

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inteira, o que muito nos apavorava, principalmente porque minha mãe dizia que eles gostavam de chupar o sangue das pessoas enquanto elas dormiam. Enquanto moramos ali, era comum ouvirmos ruídos de objetos caindo na despensa, como se fossem panelas e utensílios de alumínio jogados ao chão. Minha mãe, sempre muito corajosa, levantava para ir lá ver o que era. Mas a constatação era sempre a mesma: nada tinha caído no chão. Uma vez ela foi com Quira e viu um homem sair da cozinha em direção ao quintal. Seguiu o intruso e tentou, em vão, ver seu rosto. Evitando ser visto, ele se virava para a direção oposta à de minha mãe. E ela lhe dizia: "Então, é você que fica derrubando tudo lá dentro, não é?". Quando percebeu que se tratava apenas de um vulto, minha mãe saiu de costas com Quira e voltou correndo para o quarto. Contou o acontecido a Luci, que riu de minha mãe, dizendo que aquele homem era o pai dela, que gostava de rondar a casa, mesmo após muitos anos de morto.

Morando ali, aprendi a fazer vinagre de mel de cacau. Pegava o mel de cacau na estufa e armazenava em tonéis na casa de Luci, até que fermentasse e ficasse no ponto para o preparo do vinagre.

Eu e Quira trabalhamos nas roças de cacau de Luci. No meio do cacaual, fazíamos a coleta, separando-a em pequenos montes. Esse tipo de trabalho é conhecido regionalmente como "bandeirar cacau". A rotina era simples.

Acordávamos cedo, tomávamos café - geralmente abóbora cozida com leite. Minha mãe preparava feijão com farinha e colocava a comida dentro de latas de leite Ninho, que levávamos para o trabalho. A caminhada até o local era dura. Tínhamos que passar pelo meio do mato todos os dias. Matávamos nossa sede em qualquer riacho que passasse por perto. Ruim mesmo era nos dias de chuva, pois, além do frio que fazia, o terreno se tornava escorregadio.

Outro grande problema eram as muriçocas e as cobras. Sobre os pés de cacau, ficavam as cobras-cipó que, por serem de cor verde, nos confundiam, o que aumentava o perigo. Na hora do almoço, sentávamo-nos com os demais empregados. Cada um abria sua lata e comia. Da sede da fazenda, ao meio-dia e à uma hora da tarde, o som de um búzio

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tocava anunciando o intervalo para o almoço e o horário de recomeçar o trabalho, respectivamente. Meu primeiro salário foi de CR$ 3,00 (três cruzeiros), mas ia todo para Dona Paula, minha mãe, que o recebia em meu lugar. Apenas uma única vez eu recebi os três cruzeiros, que gastei comprando um abridor de latas e uma sardinha enlatada, num mercadinho de Itagi, por ocasião das nossas costumeiras viagens aos sábados para "fazer feira".

Escola na FazendaNossa escola ficava um pouco distante da sede da fazenda e

éramos obrigados a fazer longas caminhadas por dentro dos mangueiros, enfrentando cobras, gado e tudo mais. Quando tinha alguma vaca parida no mangueiro, evitávamos a todo custo passar por perto. Às vezes até íamos por um caminho mais longo, com medo de ser atacados. Mas, por mais que evitássemos, havia sempre o perigo, e não foram poucas as vezes em que corremos de vaca ou de boi valente. Para me proteger, levava um pedaço de pau, com o qual batia entre os chifres da vaca ou boi que nos atacasse. Ouvi de minha mãe que o gado odiava ser golpeado entre os chifres e que fugia após receber a paulada. E assim passei fazer. Para minha sorte, sempre deu certo.

No caminho da escola havia um pequeno riacho, onde gastávamos boa parte de nosso tempo brincando e nos divertindo, pinoteando dentro da água, que não cobria nem metade da canela. Frequentemente, chegávamos molhados na escola e também em casa. As travessuras no riachinho eram nossa melhor diversão, tanto no caminho de ida quanto no caminho de volta da escola. No horário da merenda, cantávamos a seguinte canção: "Merenda gostosa, leite, fruta e pão; dá bom apetite, boa digestão". Foi nessa escola da fazenda que aprendi a ver as horas no relógio da casa da professora.

Casa do motorAssim chamávamos a casa que ficava próxima à cisterna e à

casinha do motor a diesel que fornecia energia elétrica para a sede da

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fazenda. Moramos um bom período nessa casa. Havia também uma lagoa perto, cheia de sapos que faziam barulho todas as noites. A "casa do motor" ficava após uma ladeira íngreme e escorregadia, atrás da sede, onde havia uma pedra enorme, na qual costumávamos brincar. Tinha um quintal cercado de arame. Ali meu pai plantou melancia, cana, quiabo, repolho, couve, abóbora, coentro, cebolinha e outras hortaliças.

Meu pai plantou também uma pequena roça num terreno próximo à casa. Era um terreno ladeirado, que nos deu muito quiabo para colher. Nessa rocinha, minha mãe, certa vez, tomou uma queda e, segundo ela própria, ficou enganchada num piquete, que lhe feriu seriamente os órgãos genitais, fazendo-a perder um filho. Essas coisas não nos eram faladas abertamente, por nossa condição de criança. Mas me recordo muito bem do longo tempo que ela passou se medicando.

Nossa refeição geralmente era pirão escaldado de farinha com folha de quiabo, acompanhado de molho de pimenta, por falta de outra coisa para comer. Outra presença comum em nossa mesa do café da manhã era a abóbora cozida e amassada com leite.

Junto da casa havia também um enorme coqueiro e, sempre que chovia, minha mãe ficava apavorada com medo que ele desabasse sobre nossas cabeças. Só China ficava rezando para que chovesse, pois teria a chance de vestir uma calça comprida, que na época era uma peça de vestuário estritamente masculina. China queria a novidade de vestir algo diferente de suas saias ou vestidos. Como sabia que, na hora do desespero, minha mãe não ligava para esses detalhes, ela via na chuva a oportunidade ideal para experimentar uma roupa "proibida", o que era seu sonho.

A água para beber, cozinhar e tomar banho nós tínhamos de buscar na cisterna de água doce, que ficava junto à casinha do motor. Aproveitávamos para nos molhar. Havia muitos caranguejos de água doce pelos arredores da fonte de água e, sempre que podíamos, pegávamos alguns para fazer um escaldado. Nessa cisterna, Quira quase morreu afogada um dia. Distraiu-se e caiu no poço. Mas, para nossa

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sorte, minha mãe ouviu os gritos e correu. Puxou-a pelos cabelos e a salvou da morte certa.

Lembro ainda do requeijão e do doce de leite que fazíamos nessa casa. Ali havia muita fartura de leite. Como não conseguíamos consumi-lo todo, já que diariamente íamos ao curral retirá-lo, passamos a investir em seus derivados.

Nessa casa, criávamos uma gata enorme, que gostava de sair para caçar. Num belo dia, a gata apareceu com um coelho. Tomamos-lhe o coelho, que minha mãe tratou, temperou e assou para nós. Ficou uma delícia.

Havia uma moça chamada Maísa que nos contou uma história meio fantasiosa. Disse-nos que tinha um gato muito pirracento, que adorava lhe falar obscenidades. Nós acreditamos, claro!

De vez em quando, os homens da SUCAM apareciam por lá, para picar a ponta de nossos dedos, fazer exames e colocar veneno contra morcegos e ratos na casa. Morríamos de medo deles.

Casa do MangueiroMorávamos na casa do mangueiro, quando meu pai retornou de

São Paulo para Jequié, e de lá foi direto para a Fazenda Turmalina, levado por meus irmãos, Édson e Zezé. Assim que chegaram à nossa casa, eu e Quira corremos para perto do carro que os havia trazido à procura do Velotrol que meu pai nos traria, conforme a promessa de nossa mãe. Ao descobrirmos que não havia Velotrol algum e que tudo não passara de uma estratégia momentânea, ficamos profundamente frustrados. Foi decepcionante descobrir que nossa mãe mentira e, pior, descobrir que jamais teríamos um Velotrol.

A criação de galinhas e o plantio de roças ficavam nos terrenos próximos à "casa do motor", tanto antes quanto depois de nos mudarmos para a "casa do mangueiro". Não sei precisar bem quanto tempo moramos em uma e em outra casa, mas sei que as plantações foram feitas, e que sempre colhíamos frutas e cereais dessas roças que meu pai plantou. Não me recordo da data exata de chegada de meu pai à

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fazenda, mas lembro muito bem da imagem de Édson chegando lá com ele. Minha mãe se abriu em felicidade e nós também. Mas meu pai não parecia ter melhorado. Não notamos muita evolução desde o dia em que ele viajara para se tratar em São Paulo. Pouca diferença fez para a sua saúde aquela viagem. Porém, como sempre fora muito trabalhador, não conseguiu ficar parado em casa. Inventou de criar galinhas e fez várias roças e plantações no quintal. Com o leite abundante que buscávamos de graça no curral da fazenda, fazíamos requeijão. Meu pai chegou a plantar ainda duas outras rocinhas, estas um pouco mais distantes da casa, onde cultivava milho, feijão, melancia etc. Muitas vezes, íamos comer melancia dentro da própria roça.

Aprendi a nadar nessa época. Tinha um riacho bem raso que passava perto de casa, onde tomávamos banho e lavávamos os pratos. Mais uma vez, dando ouvidos às histórias de minha mãe, acreditei quando ela disse que, para aprender a nadar, teve de engolir um pequeno peixinho antes de se jogar na água e sair nadando. Acreditei e fiz o mesmo. E desta vez funcionou. Engoli o peixinho vivo, me joguei no riacho e saí nadando! É incrível o poder dos “sugestionamentos”, sobretudo para as crianças, crédulas pela própria natureza.

Esta "casa do mangueiro" ficava um pouco afastada da sede da fazenda, mas de lá dava para ver o casarão e a estradinha que dava direto nela, por onde todos os carros tinham que passar, inclusive o carro da dona da fazenda. Por isso, todo mundo ficava sabendo quando Luci chegava, antes mesmo que alguém viesse avisar. Era a casa mais afastada de tudo e de todos. Ao lado dessa casa, toda rodeada por uma cerca de arame para proteção contra o gado, tinha um grande pé de manga, onde as galinhas costumavam subir, ao cair da tarde, para dormir. Não dava para plantar nada ao redor, ou por causa do gado, que às vezes entrava no "quintal", ou por causa da criação de galinhas, que ciscavam e comiam tudo o que houvesse. Uma vez, ouvimos um barulho vindo desse pé de manga, onde as galinhas dormiam. Minha mãe saiu para ver o que estava acontecendo. O suspense se desfez quando ela descobriu que era Roque, um morador da fazenda, tentando roubar

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nossas galinhas. Minha mãe deu-lhe uma bela bronca, botando-o pra correr de lá.

Perdemos-nos na roçaUma vez, minha mãe chamou Quira e eu para pegarmos bananas

na roça, que ficava pertinho da "casa do motor", onde morávamos. Foi um dia do cão aquele. Acabamos nos perdendo e passamos o dia inteiro andando por dentro do cacaual. Minha mãe chorava e o desespero em nós crescia cada vez mais. Ouvíamos uma voz fina, como a voz de Norino (dito homossexual, que morava na fazenda) a bradar repetidamente: "O caminho é cá!". Quanto mais seguíamos a voz, mais ficávamos perdidos na floresta. Conseguimos chegar até perto de Itagibá, a cidade mais próxima da fazenda, e lá fomos informados por alguns trabalhadores de que estávamos muito longe da Fazenda Turmalina. Indicaram-nos, então, a direção a seguir para que pudéssemos retornar. Continuamos mato adentro perdidos até que minha mãe teve a ideia de pôr fumo numa árvore como oferenda para Caapora. Segundo a lenda, essa entidade protetora das matas, gosta de fumar. Por isso, faz com que as pessoas se percam na mata até que resolvam lhe oferecer fumo. Lenda ou não, o fato é que, depois da oferenda colocada num galho de árvore, encontramos facilmente o caminho de volta.

RepresaA água que saía da fonte da cisterna percorria um caminho por

entre os matos e formava um riachinho. Esse riachinho tinha muito peixe, e eu sempre ia com um balaio ou com um jereré pegar caranguejos, tilápias, piabas ou traíra por ali. Uma vez peguei uma cobra no balaio e corri apavorado.

Luci, a dona da fazenda, mandou construir uma represa, próximo à sede, formando um lago pequeno com a água desse riacho, e lá soltaram tilápias para criar. Usávamos esta represa para tomar banho, lavar roupas e nos divertir.

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Eu não sabia nadar, mas resolvi acreditar numa história que minha mãe contava. Dizia ela que, se passássemos óleo de oliva no corpo inteiro, ao entrarmos na água, o óleo formaria uma bolha de ar ao nosso redor, impedindo que nos afogássemos. E foi assim que quase morri afogado nessa represa. Lancei-me ao fundo, com o corpo todo lambuzado de óleo. Essa história deve ter sido fruto de algum folclore. E eu, achando que na vida real funcionaria tal qual nas lendas, resolvi levá-la a sério e por pouco não morri. Fui salvo por minha mãe ou por outra pessoa que não me vem agora à memória.

O PiauHavia um outro riacho perto de nossa casa, em cujas águas

transparentes eu tinha visto um lindo peixe, um piau. Comprei um anzol e fui pegar o peixe. Foi uma experiência marcante em minha vida, tal qual a conquista de um grande prêmio. Afinal, pude me sentir capaz de fazer algo sozinho, algo digno de aplausos. Fiquei imensamente feliz quando consegui pegar o peixe e levá-lo para casa como um troféu. Eu pescava por necessidade de matar a fome e também por diversão. A pescaria funcionava também como uma terapia, pois o tempo livre era preenchido com uma atividade lúdica, que requer muita paciência, coisa que eu não tinha. Ficava observando aquele peixe lindo, nadando de um lado para outro do riacho, cuidando do ninho, e imaginava-o sendo fisgado por mim. Então comecei a planejar como seria o dia da pescaria, detalhe por detalhe. Ao final, tudo aconteceu conforme havia imaginado. Para mim, foi como uma cena de filme de ação. O peixe mordeu a isca, se debateu, correu de um lado para outro, deu solavancos, puxou a vara com violência, me deu um trabalho danado. Até que consegui tirá-lo da água. Ele media uns vinte centímetros de comprimento e era bem pesado. Foi uma das minhas melhores conquistas.

Acidente de carroCerta vez, viajei com Luci para Jequié, no carro dela, que era uma

picape Ford. Na rodovia BR-330, ela acabou abalroando um outro

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veículo, que fazia zigue-zague na pista. Bati com a cabeça na porta do carro e ainda precisei ouvir de Luci que não devíamos ficar dentro de um veículo em movimento como se estivéssemos sentados no sofá de casa. Devemos estar sempre de prontidão para a eventualidade de um tombo, uma batida ou coisa similar, para um choque maior. Aprendi a lição. Ainda bem que hoje os cintos de segurança são de uso obrigatório.

***

Ainda crianças, eu e meus irmãos percebíamos que nosso pai não estava lá muito certo da cabeça. Tirando proveito da situação, ficávamos o tempo todo fazendo brincadeiras com ele. Uma das brincadeiras preferidas era a seguinte: um de nós se vestia com as roupas de minha mãe, ou dele mesmo, e batia na porta da casa pedindo açúcar ou outra coisa qualquer. Ele atendia e, em sua inocência, ia chamar um dos filhos para dar o açúcar. Então, aquele que havia batido na porta dava uma volta na casa, trocava de roupa e voltava para dentro, enquanto o outro se vestia e vinha pedir outra coisa. A brincadeira durava o tempo que quiséssemos, e ele nunca descobria que se tratava de uma traquinagem dos próprios filhos. Após cansarmo-nos da brincadeira, íamos para os pés de cidra, uma espécie de limão grande e muito azedo, que dava em fartura por ali. Tirávamos as frutas da árvore e comíamos com açúcar.

Certa vez, meu pai passou mal e minha mãe pediu que eu fosse até a sede da fazenda para pedir ajuda. Saí correndo pelo mangueiro, desesperado, desviando-me das vacas recém-paridas. Passei por um riachinho, no qual sujei as pernas todas de lama, pois eu afundava até o joelho naquele lodaçal. Infelizmente, todo o sacrifício foi em vão, não consegui ajuda. Mas, quando voltei, por sorte, meu pai já estava melhor.

Perto de nossa casa havia uma pequena vila, com umas quatro ou cinco casas, no meio do mangueiro. Lá morava um rapaz chamado Norino, funcionário muito querido da dona da fazenda. Apesar de morarmos perto, nunca estivemos naquela vila. A mãe não deixava, e eu nunca soube o motivo pelo qual ela proibia nossa ida ao local.

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Uma outra lembrança dessa época foi quando China pediu que minha mãe lhe comprasse um chiclete, quando fosse às compras. Ela prometeu que compraria. Numa de suas idas a Itagi, tentou comprar o chiclete de China, mas não encontrou. Comprou-lhe então balas comuns. O desapontamento de China foi profundo ao ver seu sonho de mascar chicletes frustrado; sonho este que teve sua realização adiada por muitos anos, até que ela mesma pudesse trabalhar e comprar o próprio chiclete. Vim saber dessa história mais de vinte anos depois, pela boca da própria China.

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O armazém onde fazíamos compras ficava a alguns quilômetros da sede da fazenda, num local chamado "Preguiça", nome também do rio que cortava as imediações. Eu e Quira, quando íamos comprar algo para minha mãe, levando embornais, morríamos de medo dos ciganos que ficavam acampados no caminho e que sempre nos cercavam para pedir algo. Ficávamos apavorados, temendo que tomassem nossas compras e que nos batessem. A fim de nos livrar do assédio, passamos a levar sempre alguma coisa para dar a eles.

Uma vez fui ao armazém a cavalo, montado em Dominó, o animal mais lerdo e preguiçoso da fazenda. A bem da verdade é preciso dizer que eu não guiei o cavalo. Foi Dominó que me levou e me trouxe, já que eu morria de medo de puxar a rédea e ser derrubado por ele. Quando o cavalo queria parar para comer seu capim, parava. E quando queria continuar a caminhada, continuava, a seu bel talante.

Toda semana viajávamos para Itagi, a pé ou a cavalo, para fazer compras. Os homens geralmente iam montados nos animais, enquanto as mulheres iam atrás, caminhando. Quira lembra que ficava com raiva porque nunca a deixavam montar num cavalo. Para chegarmos a Itagi, no meio do caminho, tínhamos de atravessar o rio Preguiça. Lembro que, uma vez, quase caí da garupa do cavalo, quando ele subiu o barranco do outro lado do rio. Apavorei-me.

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RETORNO PARA JEQUIÉ

Concluí a quarta série primária na escola da fazenda e precisava continuar meus estudos. Como lá não havia professores para o primeiro grau, tive de retornar para Jequié. Arrumei minhas coisas e viajei. Não lembro se sozinho, com minha mãe ou com Luci. Minha mãe conseguiu que eu ficasse morando provisoriamente na casa de Dona Lia, esposa de Seu Nenzinho, no bairro Cilion. O nome do bairro surgiu a partir do nome de um posto de gasolina que existia na praça Juracy Magalhães, que acabou falindo, fechando e reabrindo com outro nome. Mas como o bairro já havia sido batizado, assim ficou: Cilion. Dona Lia tinha um filho chamado Junior, que não se deu muito bem comigo de início, talvez por ter que dividir a casa e as atenções da mãe com um outro menino. Mas depois foi se acostumando e nos tornamos grandes amigos.

Ele próprio tinha vários amigos, que se tornaram também meus. E eu quase tive minha primeira experiência sexual com uma vizinha deles, que sempre aparecia por lá e brincava conosco. Uma vez, resolveram me incentivar a ficar a sós com ela em meu quarto. Tentamos ter uma relação, mas não houve penetração. Ela desistiu antes do fim e saiu correndo. Era uma morena escura, que tinha um problema físico na perna direita, fazendo-a mancar quando caminhava.

A primeira namorada também conheci durante o período que vivi na casa de Dona Lia. Era uma vizinha que morava na casa em frente. Chamava-se Jaqueline. Era linda e eu gostava demais dela. De nossas janelas, trocávamos olhares furtivos, iniciando uma ligação de afeto. Passamos a nos encontrar numa casa em frente. Ali, no pátio daquela casa, nos beijamos pela primeira vez. Foi daqueles namoros meio mágicos, sem maldades, sem sexo. Foram momentos muito felizes ao lado de Jaqueline, e eu jamais me esquecerei dela. Até poesias lhe fiz. A primeira namorada a gente nunca esquece.

Matriculei-me no Instituto de Educação Régis Pacheco - IERP. Dona Lia sempre me dava dinheiro para a merenda. Tinha uma vida boa na casa dela. Sempre fui tratado como um membro da família. Naquela

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época, havia um ritual muito bonito nas escolas: hastear a Bandeira Nacional e cantar o Hino Nacional Brasileiro todos os dias, com os alunos em formação militar. Tudo para mim era muito bom. Participei de um coral que se apresentou na rádio local, onde cantamos o Hino à Bandeira, entre outros hinos. Era a primeira vez que conhecia um estúdio de rádio por dentro, fiquei em êxtase. Acabei aprendendo coisas muito valiosas com cada pessoa que conheci e em cada experiência que vivi.

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Quando morava na fazenda, ganhei um cachorrinho que batizei de Bolinha. Ele era preto, pé duro. Aonde eu ia, o cachorrinho me acompanhava. Gostava demais dele. Ao voltar para Jequié, para prosseguir meus estudos, deixei-o com minha mãe, que, logo depois, também retornaria a Jequié, deixando Bolinha na fazenda. Longe deles, padecia de saudades da família e do cachorro.

Quando minha mãe resolveu voltar para Jequié com a família inteira, eu já estava estudando. Fiquei feliz com o retorno da família, mas foi péssima a notícia de que meu cachorro Bolinha não viera junto. Morri de tristeza. Minha mãe alegou que seria muito difícil trazê-lo com ela na viagem e, por isso, achou melhor dá-lo a alguém. Fiquei revoltado e chorei muito. Gostava muito de meu cachorro. Tão desapontado fiquei que não dei a mínima para as histórias que minha mãe contava sobre a viagem e sobre as coisas que lhe acontecera, como o fato de Teobaldo, filho de Luci, ter dito que iria jogar a família, com móveis e tudo, ponte abaixo, além de outros problemas que enfrentara. Só pensava no meu cachorro. A paixão e a saudade de Bolinha foram tantas que prometi para mim mesmo nunca mais ter outro animal de estimação. A promessa vem sendo cumprida até aqui, e hoje desconfio que minha aversão a animais tem origem nessa dolorosa experiência.

***

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Minha mãe ia regularmente me visitar na casa de Dona Lia. Até que um dia resolveu me levar de volta com ela definitivamente. Fui e voltei várias vezes da nova casa, achava-a muito feia e o lugar horrível. Ficava na Rua da Palha. Era uma casa pequena, de adobões, sem água nem luz. Mas, no final das contas, era para onde eu teria que ir mesmo, sem chance de escolha.

Uma das coisas com a qual não consegui me acostumar, ao voltar para a casa de minha mãe, foi a comida. Além de ser de péssima qualidade, não a tínhamos todos os dias. Foi muito duro sair daquela casa, onde eu tomava café, almoçava e jantava, de forma decente e em horários regulares, e me adaptar a uma outra realidade, em que tinha de comer qualquer coisa e em horários disparatados. Isso, quando não tinha de ficar sem comer mesmo.

Igualmente difícil foi ter de me acostumar com a distância da casa até o IERP, colégio onde estudava. Tinha de fazer o trajeto a pé, sob o sol escaldante e, agora, sem ter sequer o dinheiro para merendar. Foi um terror essa fase de adaptação, muito difícil para mim. Principalmente, nos dois dias da semana em que tinha aulas de ginástica. Era obrigado a sair pela manhã, para assistir à aula normal, e voltar, no período da tarde, para a aula de ginástica. Um verdadeiro tormento. O sol demasiado quente e a estrada sem calçamento, toda cheia de poeira, tornavam a caminhada insuportável. Mas, gostando ou não, tive de me acostumar com a nova vida, que passaria a ser minha rotina dali em diante.

Minha luta agora era outra, além da comida que faltava na mesa. Tinha que comprar livros, mas não possuía dinheiro. Estudava sem livros ou recebia um ou outro exemplar, cedido por colegas de sala, que faziam uma vaquinha para comprar. Mas todos os outros estudantes tinham também uma vida difícil, poucos recursos financeiros, e nem sempre podiam ajudar, já que também precisavam de ajuda.

Uma professora me deu, certa vez, um Kichute usado, que usei por cinco anos, durante todo o primeiro grau e início do segundo. Os

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cadernos eram daqueles doados pelo governo estadual, com o Hino Nacional na capa; os lápis eram também doados pelo governo, alguns deles vinham até com a tabuada impressa, mas esses não eram bem-vindos nas aulas de matemática, pela razão óbvia. Uma ocasião, perdi um lápis na sala - ou foi roubado por alguém - e fiz o maior escândalo. Chorava pelos corredores, chamando a atenção do colégio inteiro com meus indignados protestos pela perda do lápis e dizendo que ali só tinha ladrão. Foi um show à parte.

Minha adaptação ao currículo escolar foi muito difícil, para não dizer impossível, já que eu tinha vindo de escolas onde se aprendia apenas o ABC, as quatro operações, além de leituras e releituras de livros de histórias, sem nenhuma técnica para aprender a gramática. Na hora de separar sílabas, eu sempre escrevia duas letras e colocava um tracinho. Quando a palavra era cavalo, por exemplo, eu acertava fácil. Mas quando era caule, eu escrevia "ca-ul-e". Ou seja, segundo minha lógica, a separação de sílabas era feita a cada duas letras seguida por um tracinho. Um desastre total.

Por conta da minha falta de estrutura e por motivos de doença, acabei perdendo o ano. Perder um ano tem sempre consequências negativas, um ano de minha vida ficaria atrasado. Mas, por outro lado, serviu-me de lição, motivando-me a me esforçar bem mais no ano seguinte. Desse dia em diante, não perdi mais ano algum e consegui concluir o primeiro e o segundo graus com notas muito boas. Surpreendentemente, acabei me transformando em um aluno CDF durante todos os anos escolares.

O lado positivo de tudo isso foi o fortalecimento do meu senso de autocrítica, que fez com que procurasse estudar mais, para não passar novamente pela vergonha de perder o ano. Outra coisa boa foi o contato com a poesia, através de uma coleção de três minilivros que comprei de um daqueles vendedores que passam de sala em sala oferecendo suas mercadorias. Encantei-me com aquela forma de escrever, com as rimas e as estrofes. Passei a escrever poemas também. Posteriormente, tive contato com a literatura de cordel, o que me influenciou bastante a

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escrever tudo que me vinha à mente. Não sei precisar no tempo, mas me lembro de uma época em que eu pegava tudo quanto era papel, ou algo que encontrasse jogado pelas ruas, para ler. Para mim, era uma espécie de mágica poder decifrar tudo aquilo, mesmo que não soubesse o significado de todas as palavras que lia. O simples ato de ler expandia minha mente.

***

Depois de um tempo morando na Rua da Palha, mudamo-nos para a casa de número 1265, na Avenida Franz Gedeon, uma das principais artérias da cidade. Foi a partir dessa época que ocorreu o nascimento dos meus outros irmãos, Valdir, Vitório, Vivaldo e Ivonete. A casa era de meu irmão Édson, e lá já haviam morado muitos familiares dele, mas naquela ocasião se encontrava fechada. Como de praxe, a nova moradia também não dispunha de luz, água, saneamento básico, móveis e outros recursos essenciais. Nosso fogão, para variar, era à lenha. O sanitário era no chão do quintal, ou seja, exalava uma fedentina horrível. Muita gente fazendo suas necessidades por todos os lados e o sol quente a tornar o mau cheiro ainda mais insuportável.

A vida de minha família sempre foi de muita pobreza, não tínhamos condições nem de comer condignamente. Televisão então era um luxo que nem sequer imaginávamos poder comprar. Assim, todos os dias eu e meus irmãos íamos para a casa dos vizinhos, onde ficávamos dependurados em suas janelas assistindo à TV. Tínhamos que assistir ao que estivesse passando, ao gosto do dono da casa. E, por muitas vezes, nem conseguíamos assistir aos programas ou aos filmes até o final, porque a televisão era desligada sob o pretexto de que "o aparelho estava esquentando e precisava descansar". Uma das vizinhas que mais desligava a televisão em nossa cara era a Dominga. Mas, como sua casa era também o lugar onde a TV ficava ligada nos horários em que estávamos livres de escola ou de outras obrigações, aparecíamos lá quase todos os dias.

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Na casa de Dona Dete e seu Chico a gente morria de rir. Toda vez que apareciam os atores Tony Ramos e Elisabeth Savalla na telinha, eles faziam o mesmo comentário: "André Cajarana e Carina estão muito diferentes...", reportando-se aos personagens vividos na novela Pai Herói pelo casal de atores. Dona Dete e Seu Chico não conseguiam separar a realidade da ficção. Faziam a maior confusão entre a vida dos atores e os personagens por eles vividos nas novelas.

Saíamos pela cidade inteira à procura de brinquedos pelos lixos. Batizávamos cada lixo com um nome, para facilitar o roteiro e para organizar nossas caminhadas. Um desses lixos foi batizado como "lixo da BODA". O nome veio de uma brincadeira, pois, quando descobrimos esse lixo pela primeira vez, havia muitas cabras e bodes por perto. Procurávamos livros, revistas, brinquedos, qualquer novidade. Encontrávamos muita coisa, mas sempre desfalcada de uma peça ou de uma folha. Em carros sem uma das rodas, sempre dávamos um jeito, fabricando outra rodinha com sandália havaiana - naquela época esse tipo de sandália era exclusividade de pessoas paupérrimas. Mas quando faltava a última folha de uma revista de história em quadrinhos, por exemplo, a solução era mais difícil. Então, guardávamos a revista e tentávamos encontrar outra igual, que tivesse o final da história. É bem verdade que raras foram as vezes que conseguimos completar uma história em quadrinhos.

Nessas caminhadas, uma vez, adentramos um quintal abandonado. A galera subiu nos coqueiros que lá havia e começou a tirar cocos da árvore. Após nos empanturrarmos de água de coco, levamos os cocos que sobraram para casa. Minha mãe nos fez voltar e jogá-los no quintal novamente, advertindo-nos de que, se tal fato voltasse a ocorrer, tomaríamos uma surra daquelas. Esta foi uma lição que jamais esquecerei, mais uma das inúmeras que ela nos ensinou.

Ainda sobre brinquedos e brincadeiras, não posso deixar de lembrar do "Mané Gostoso", pendurado entre dois palitos e amarrado com uma borracha que minha mãe comprava para nós.

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TrabalhoUm dos meus primeiros empregos foi no escritório da ASPEB, uma

caderneta de poupança que depois foi comprada pelo antigo Banco Econômico. O escritório ficava na praça Ruy Barbosa, no centro da cidade de Jequié. Eu era uma espécie de office-boy. Aproveitei para aprender a datilografar nas máquinas de escrever do escritório, nas horas vagas, além de ficar escrevendo ou passando a limpo minhas poesias. Quanto às datas de admissão e de saída deste emprego, não lembro muito bem.

Certa vez, resolvi trabalhar como vendedor do Baú da Felicidade, do grupo Silvio Santos. Saía com um vendedor mais experiente, que me mostrava como deveria fazer para vender os carnês. Aprendi tudo, pois eu prestava muita atenção ao que ele fazia. Finalmente, arrisquei-me a sair sozinho com uma pasta cheia de carnês.

Minha primeira vítima foi uma empregada doméstica que trabalhava numa residência no centro da cidade. Recebi dela a primeira parcela do pagamento, que correspondia à minha comissão. Quando cheguei ao escritório, à tarde, após andar o dia inteiro e ter vendido apenas aquele carnê, a patroa da minha única cliente já me esperava para receber de volta o dinheiro que sua empregada tinha pago pelo carnê. Alegou que eu tinha enganado a pobre mulher, que ela era uma pessoa pouco esclarecida e se deixara ludibriar por mim. Acabei perdendo minha comissão e desisti de vez de ser vendedor ambulante. Aquela não era, definitivamente, minha praia.

Em uma outra ocasião, candidatei-me para trabalhar com Seu Nenzin. Ele me escalou para trabalhar com jornais. Pensei em algo como uma banca de jornal ou coisa parecida. Fui com ele ao centro da cidade e, quando cheguei ao local do trabalho, descobri que era para vender jornais pelas ruas, como ambulante. Recusei imediatamente o trabalho, pois além da baixa remuneração, eu já havia tido uma experiência nefasta como vendedor ambulante, que não gostaria de repetir para ganhar a vida. Entendi que deveria preferir sempre o salário fixo, mesmo

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que fosse o menor salário que se pudesse pagar, a trabalhar me aventurando a ganhar um salário maior, através de comissões.

Enchente - Comida estragadaHouve uma enchente em Jequié, por volta de 1982 ou 1983, que

arrasou metade da cidade. O Rio de Contas estava muito cheio e represava a água do Rio Jequiezinho. Do Centro para o bairro Jequiezinho só se passava pela Ponte de Newton, a ponte que servia, em tempos remotos, para passagem do trem de ferro. Todas as outras pontes haviam sido cobertas pela água, exceto esta. A parte baixa do Centro e os bairros Campo do América, Banca, São Judas Tadeu, Mandacaru e outros foram totalmente engolidos pela água. Os Edifícios Almerinda Lomanto e Hildete Brito Lomanto ficaram inundados até o primeiro andar. Todos temiam que a Barragem de Pedras, localizada a trinta quilômetros da cidade, se quebrasse com a pressão da quantidade enorme de água e inundasse toda a cidade de Jequié. Mas felizmente não aconteceu, graças a Deus. Do contrário, seria uma tragédia sem precedentes, já que a barragem represa mais de setenta quilômetros de água.

Depois que as águas baixaram, muitos estabelecimentos comerciais do Centro começaram a contabilizar os prejuízos. O Supermercado Cardoso, na praça da Bandeira, foi um dos estabelecimentos que perdeu quase todo o seu estoque. Muita coisa fora jogada no lixo, no esgoto. Boatos se espalharam rapidamente de que muito presunto, queijo, mortadela, salame e uma infinidade de comestíveis estavam sendo despejados pelos esgotos dentro do rio Jequiezinho. Saímos em passeata: eu, Dida, Tó, Mi, mais um monte de garotos das ruas próximas, direto para o esgoto. Lá tivemos de enfrentar uma disputa acirrada com outros meninos para ver quem conseguia pegar a maior quantidade de mercadoria estragada. Levamos essas mercadorias para consumi-las em casa.

Se tivéssemos de morrer por termos comido alimentos estragados, certamente não estaria eu aqui contando este episódio inusitado, pois,

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durante a maior parte de minha vida, eu e minha família ingerimos rejeitos e refugos de comida. Nesse mesmo rio, quando as águas baixavam, costumávamos pegar camarões, que ficavam se batendo à procura de uma água mais profunda, já que o rio estava em fase de extinção e os lugares mais profundos não mediam meio metro. Muitos esgotos da cidade eram jogados dentro desse rio, inclusive os do Hospital Regional Prado Valadares. Mas nós não nos importávamos com nada, só queríamos um pouco de comida para saciar a fome. E o rio se comportou como um pai, sempre a nos prover daquilo que procurávamos.

Nosso dia-a-dia não variava muito. Num dia, era Gal e no dia seguinte era Nete quem saía para pedir esmolas pelas casas da rua e dos arredores. Os menores iam substituindo os mais velhos, que ficavam envergonhados da tarefa de ficar de porta em porta pedindo comida e ouvindo piadas do tipo: "Você já é bem grandinho, por que não vai trabalhar?". Tínhamos um roteiro a seguir, e cada dia íamos a uma casa diferente, para não chatear a mesma pessoa todos os dias. Tinha a casa de Dominga, a casa de Dora, a casa de Dona Maria da Campanha, casa de Bói... Dona Maria da Campanha era uma católica praticante que coletava doações do tipo comidas, roupas e dinheiro, para entregar à minha mãe. Arrumávamos apelidos para todos os que nos ajudavam, já que eram muitos e ficava quase impossível memorizar seus nomes. Para complicar ainda mais, havia gente com o mesmo nome, como era o caso de Dona Maria, por nós batizada de "Maria da Campanha", para diferenciá-la das outras "Marias" em nossa lista.

Dora é nossa cunhada, casada com Néco (Manoel), que, por sua vez, é filho de meu pai com sua primeira esposa. Ele pertence à primeira família de meu pai, em que todos os seis irmãos têm idade superior a quarenta e cinco anos de idade. Quando meu pai se casou com minha mãe, a mãe desses outros irmãos já havia falecido há muito tempo. Dora também nos ajudava sempre que podia, já que tinha uma família para dar conta e somente o marido trabalhava fora.

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Bói era uma senhora que morava na nossa rua. China foi morar e trabalhar em sua casa, em troca de comida e roupas. Lá havia duas irmãs gêmeas, Alice e Agda, já bem velhinhas, que sempre davam café da manhã aos meninos que passavam pela porta. E, como não poderia deixar de ser, meus irmãos, especialmente Tó, Dida, Gal e Nete, sempre passavam por lá, onde tinham a oportunidade de beber suco de groselha com pão ou com bolachão. China conta que, quando foi trabalhar na casa de Bói, criou o hábito de deixar o pão do próprio café para dar aos irmãos. Colocava-o na calha da chuva e ficava esperando que os manos aparecessem para pegar. Fazia isso escondida de Bói, que era muito rígida e não aceitaria que ela deixasse de comer em benefício dos irmãos.

China conta ainda que, quando não tinha o pão para colocar na calha, ficava muito triste de ver os irmãos brigando para ver quem chegava primeiro e a expressão de decepção em seus rostos ao perceberem que nada havia sido deixado para eles. Tinham de enfiar o braço inteiro no cano da calha para poder alcançar o pão ou biscoitos que China colocava.

***

Dentre os vários episódios de comida estragada, fome, miséria e sofrimento, me lembro de alguns que marcaram muito.

Domingas era uma vizinha que morava perto de nossa casa, na Avenida Franz Gedeon, e nos ajudava com comida e roupas usadas. Muitas vezes, ela guardava comida a semana inteira na geladeira, até que aparecesse alguém da nossa família para receber o presente. Eventualmente, quando íamos pedir esmolas em sua casa, recebíamos muita comida, dentro de uma panela enorme. Certa ocasião, uma dessas panelas estava azeda, pois tinha sopa, repolho, feijão e todo tipo de sobras misturadas. Minha mãe não deixou que comêssemos com medo que a comida nos fizesse mal, e deu para Dona Odília, que, por sua vez, deu para suas galinhas. Todas as galinhas morreram, a comida estava

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realmente estragada. Dona Odília ficou de mal com minha mãe por causa deste episódio, achando que ela fizera aquilo de propósito.

Outro caso inusitado foi esse: minha mãe assou um tendão, que era uma mistura de pele, cartilagem e gordura. O fogo era feito no meio da casa, com pedaços de madeira e plásticos que encontrávamos pela rua e no lixo, situação que perdurou por mais de vinte anos em nossa vida. A comida ficava com um cheiro horrível de plástico. Mas o pior ainda estava por acontecer. Depois de "assado" (na verdade, sapecado na fumaça), ela dividiu a iguaria em pedaços iguais para os filhos, servindo-a com pirão de água fria e farinha. O meu pedaço foi o maior de todos e tinha bastante gordura. Desconfiado como sempre, abri para olhar e vi um monte de bichos de moscas, vivos, procurando um local mais frio para se proteger, pois, como o fogo não tinha assado totalmente aquele pedaço de imundície, não matou completamente os bichos de mosca. Fiquei com nojo, joguei fora e comi somente o pirão.

A necessidade de sobrevivência nos deixava à mercê de situações vexatórias e inusitadas. Uma vez minha mãe ganhou uma galinha viva. Matou-a e preparou um almoço. Mas vi, quando ela abriu a galinha, um tumor ou coisa parecida na moela. Tinha muito pus e fedia demais. Minha mãe preparou assim mesmo e deu para que todos comessem. Saí para trabalhar e, quando voltei, encontrei à minha espera esse prato "especial". Ela jurou que não era da galinha que eu tinha visto, mas não acreditei e joguei tudo no lixo. Não comi e fui dormir com fome, o que não era um fato raro na vida da gente. Nossa comida variava de pão seco com café preto a pirão de farinha com água fria. Muitas vezes dormíamos com fome, crédulos no que minha mãe dizia: "amanhã Jesus vai trazer comida". Eu me irritava com ela e xingava muito, pois todos os dias ouvia a mesma história e Jesus nunca chegava com a comida prometida.

A refeição mais desejada por nós era um prato de qualquer coisa com carne, já que essa iguaria quase nunca fazia parte de nossa dieta. Pelas condições de extrema pobreza, era quase impossível termos carne à mesa. Quando comíamos um pedaço de carne, era uma festa em casa.

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O acompanhamento podia até ser pirão de farinha com água fria, mas se tivesse carne o prato de tornava especial. Mas não era carne normal a que comíamos, era carne sentida. Era assim que chamávamos a carne em processo de putrefação. Recebíamos muitas gorduras, pelancas, peles e outros refugos de carne quando saíamos pela feira livre pedindo algo para comer. Muitos dos barraqueiros nos enxotavam dizendo impropérios, mas muitos outros nos acolhiam com palavras doces e nos ofertavam pedaços de carne. Geralmente era carne que quase ninguém compraria ou que estava já azulada e com bichos de mosca. Minha mãe aproveitava essas carnes da seguinte forma: aferventava tudo numa panela e depois colocava para secar ao sol. Assim, já "lavada", a carne ficava com um aspecto mais agradável ao olhar e ao paladar. Mesmo assim ficava com um cheirinho enjoado de carne estragada. Minha mãe dizia que era carne "sentida". Comíamos essa carne frita ou cozida no feijão.

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SONHOS

Na avenida Franz Gedeon, onde morávamos, havia uma oficina de conserto e de aluguel de bicicletas. Toda a garotada da rua alugava bicicletas ali e aprendia a pedalar. Todos os meus irmãos também tiveram esta oportunidade e a aproveitaram. Exceto eu, pela minha exacerbada timidez. Só aprendi a montar numa bicicleta aos vinte anos de idade, quando pude comprar uma Monark nova, que precisei empurrar da loja até o loteamento Itaygara, onde morávamos na época. Ao chegar em casa, chamei Valmir para segurar o bagageiro da bike enquanto eu pedalava. Alguns instantes depois, meu irmão passou correndo ao meu lado e eu perguntei quem estava segurando a bike para mim. Ele respondeu que ninguém empurrava e que eu estava pedalando sozinho. Desde então, passei a pedalar bicicletas sem nunca sofrer uma queda. Antes, em meus sonhos, imaginava estar pedalando e voando ao mesmo tempo, ou seja, pedalando até que a bicicleta decolasse e eu continuasse a pedalar durante o voo.

***

Não sei bem por que razão eu sempre sonhei em trabalhar com serviços burocráticos. Desde criança, imaginava-me numa espécie de escritório, lidando com papeladas e telefones. Realizei este sonho muitos anos mais tarde, quando ingressei no Tribunal Regional do Trabalho, no ano de 1990.

Um outro sonho que eu sempre alimentei foi o de morar em Salvador. Mas eu tinha muito medo de sair de Jequié, do conforto da família e do lugar onde sempre vivi, para enfrentar um mundo completamente hostil. Alimentei o sonho durante anos. Lia regularmente os jornais da capital e ficava a me imaginar caminhando pelas ruas da cidade. Até comprei um mapa de Salvador, onde percorria todos os cantos da capital com os dedos. Já adolescente e trabalhando com carteira assinada, sempre encontrava uma forma de economizar para

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poder fazer minhas viagens de final de semana a Salvador. Saía de Jequié à meia-noite de uma sexta-feira, chegava a Salvador pela manhã, pegava um ônibus circular e visitava os principais pontos da cidade. Tomava banho de sol nas praias da Barra e Pituba, e, no final da tarde, voltava para a estação rodoviária, onde passava a noite descansando e dormindo nos bancos. Pela manhã, reiniciava minha peregrinação pela cidade. Retornava à tarde para a rodoviária e pegava o ônibus para Jequié, aonde chegava à meia-noite de domingo. Ficava imensamente feliz com essas viagens. Tirava inúmeras fotos, via coisas e lugares que, aos meus olhos, eram apaixonantes.

Com sacrifício, realizei meus dois sonhos maiores: o de ter um trabalho fixo e burocrático e o de morar em Salvador, que não troco por nenhuma outra cidade brasileira ou do exterior.

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FIGURAS INTERESSANTES

A casa de Judite, uma vizinha que muito nos ajudava, ficava do lado oposto à casa onde morávamos, e era lá que minha mãe diariamente ia para lavar os pratos e, em alguns dias da semana, para lavar nossa roupa, já que não tínhamos condições de arcar com os custos da água encanada em casa. Mesmo sofrendo de paralisia nas pernas, minha mãe atravessava a rua, arrastando-se pelo asfalto, correndo risco de ser atropelada e morrer. As pernas e os pés ficavam sagrando, arranhados e feridos pelo contato com o piso grosso da rua.

Frequentemente íamos com ela à casa de Judite, esposa de Seu Tidinho e mãe de Maxwel, Creuza e Joel. Certa vez, presenciamos uma discussão bizarra entre minha mãe e Joel, porque este ficava profundamente irritado de ver minha mãe mascando fumo e cuspindo o tempo todo. Chegava a ter nojo de beber nos copos que minha mãe utilizava em sua casa. Foi uma confusão danada. Minha mãe ficou muito chateada, mas não tinha como evitar de ir à casa de Judite que, além de ser parenta de meu pai, facilitava-lhe o acesso gratuito à água para uso doméstico.

Na mesma rua, próximo à casa de Judite, morava Dona Zefa, uma senhora pernambucana enorme e casada com um homem franzino, que vivia levando broncas dela. Há quem diga até que o pobre apanhava da mulher, o que não era de duvidar, levando-se em conta a desproporção de seu tamanho em relação ao dela. Dona Zefa tinha muitos filhos, que brincavam comigo e com meus irmãos. Também usávamos a casa dela para assistir à televisão - da janela, lógico, pois quase ninguém abria a casa para nós, à exceção de Seu Chico e Dona Dete (pais de Florisvaldo) e de Dominga. A brincadeira entre a criançada às vezes terminava em briga, mas minha mãe nunca ficou inimiga de vizinhos por causa de brigas de crianças.

Maria, que ganhara o apelido de "Boca de Macaco", é uma outra figura inesquecível. Morava numa casa que ficava juntinho à nossa. Era mãe de Beto e de Lurdinha. O quintal de sua casa era cercado com

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varas, que sempre se soltavam ou caíam, deixando nosso quintal maior. Assim, invadíamos o quintal dela e ganhávamos mais espaço para brincar. Uma vez, Lurdinha começou a trabalhar na fábrica de roupas Saci Pererê e contratou meu irmão Valmir para levar seu almoço todos os dias ao meio-dia. Nessas idas e vindas, ele achou um relógio Citizen, que vendeu a mim. Algum tempo depois, o relógio começou a atrasar. Mandei trocar a pilha, mudar peças internas, mas o atraso persistia. Revoltado, destruí o maldito com uma marretada e resolvi o problema.

Carrapeta era uma senhora meio louca que passava pela rua. Parecia-se mesmo com uma carrapeta: gorda no meio e as pernas finas. Quando alguém a chamava por este apelido, ela enlouquecia e despejava os mais terríveis palavrões.

Tinha também Tonho Doido, um cara tipo cigano, de olhos claros, que circulava pelas redondezas e sempre aparecia lá em casa. Minha mãe deixava-o entrar e lhe dava comida. Mas Tonho Doido sempre arrumava confusão, pois não tinha juízo e se encrencava com tudo.

Lembro também de uma mulher de cor negra, bem idosa, que passava quase toda semana por nossa casa, que mais parecia um ponto de encontro de loucos e desequilibrados. Ela trazia bananas e biscoitos, recebidos como esmola, e dava pra gente. Quando não dava, a gente roubava de sua sacola.

Anália é outra que não pode ser excluída desse elenco. Era mãe de Roxa, uma comadre minha. Explico-me: é hábito, no interior, que aqueles que pulam juntos a fogueira das festas juninas se tornem compadres e comadres. Eu pulei fogueira com Roxa e nos tornamos compadres. Conhecemo-nos quando minha mãe morava na mesma Rua da Palha e eu era quase uma criança.

Germina era uma mulher morena, bastante gorda, que tinha os pés rachados, e sempre parava lá em casa para prosear com minha mãe. Suava feito um cuscuz e exalava um cheiro muito forte. Carregava sempre consigo uma toalha de rosto, com a qual não parava de enxugar o suor que lhe escorria pelo rosto e pelo pescoço.

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Havia também Baratão, outro louco que passava pela rua. Nossa diversão era perturbá-lo e jogar pedras no pobre homem.

Nessa época, eu era ainda muito jovem. Lembro-me que construí um parquinho de diversões de brinquedo, que funcionava com um pequeno motor a pilha. Como só tinha um motor, ora colocava-o na roda-gigante de brinquedo, ora na "sombrinha". A garotada da rua se juntava perto de minha casa para contemplar admirada os brinquedos que eu construía.

Zeca Alves era um senhor moreno escuro e gordo que morava em nossa rua. Meu irmão Vivaldo (Gal), sempre muito gaiato, toda vez que passava em frente à casa de Zeca Alves gritava: "Zeca Alves, ladrão!" Não sei de onde ele tirou essa ideia de xingar o homem, que um dia se irritou e quis agredi-lo. Ele devia ter então uns cinco anos de idade. Nessa época, meu pai já devia ter morrido. Não me recordo muito bem, mas minha mãe, apesar de estar aleijada, defendia-nos a unhas e dentes, tal qual uma loba enlouquecida. Quando Gal chegou em casa chorando, ela saiu se arrastando pela rua afora até a porta da casa de Zeca Alves e começou a gritar, xingando-o de ladrão e de tudo quanto era nome. Chamou atenção. Zeca Alves saiu para discutir com ela, e o filho dele queria bater em minha mãe, uma senhora descontrolada e aleijada. Nossos vizinhos não permitiram tamanha falta de respeito. Zeca Alves então se vingou com muitos palavrões e praguejando que todos os filhos dela haveriam de ser ladrões, maconheiros, drogados e coisas do tipo, pois, além de não terem pai, viviam sob o jugo de uma mãe louca. Minha mãe voltou para casa chorando. Toda a criançada também chorava junto com ela. Graças a Deus e à educação que minha mãe deu a cada um dos filhos, essa predição não se concretizou. Somos todos honestos e pessoas de bem.

Dona Nêga é uma senhora que morava, e ainda mora, na avenida Franz Gedeon, perto da casa onde morávamos. Vive até hoje numa casa de três cômodos, pequena e construída em estilo antigo. Ainda tem fogão à lenha e se veste com modelos de roupa de vinte anos atrás. Era como se fosse uma irmã de minha mãe.

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Em dias de chuva forte, íamos de mala e cuia para a casa dela, quando a nossa ficava alagada. Dona Nêga sempre foi uma pessoa muito simples e prestativa. Apesar de dispor de poucos recursos, toda vez que chegávamos em sua casa, dividia o que podia conosco: comida, carinho e conselho de mãe, entre outras coisas.

Quando o marido dela morreu, ficamos todos muito tristes. Foi como se um membro de nossa família também tivesse partido. Dona Nêga tinha quatro filhos: José, Jean Cláudio, Pinto e Jabá. À exceção de José, que era bem maior do que nós, todos os outros eram uma espécie de extensão de nossa própria família. Saíamos para catar lixo, brincávamos juntos, frequentávamos a casa uns dos outros. Experimentamos juntos muitos momentos marcantes da vida, como se fôssemos mesmo uma só família.

José, o filho mais velho de Dona Nêga, viajou para São Paulo a trabalho e se demorou muito por lá. Quando veio de férias visitar a mãe, saiu com amigos para tomar banho de cachoeira e acabou morrendo afogado após mergulhar e bater com a cabeça em uma pedra. Foi uma tristeza para a rua inteira, sem falar em sua mãe, que perdeu um filho de forma tão trágica e precoce.

Não posso deixar de mencionar aqui o Nêgo Tinho e seu irmão, que também frequentavam a casa de Dona Nêga e faziam parte de nosso círculo de amizade. Eram considerados os "capetas" da rua por viverem aprontando.

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Sempre fui muito curioso e dinâmico, apesar de sempre me achar um moleirão, um covarde ou coisa que o valha. Sempre gostei de escrever, principalmente cartas. Enviava correspondências para o mundo inteiro, mesmo sem saber falar outra língua que não fosse a portuguesa. Acabava recebendo folhetos evangélicos da China, Rússia e outros países, após enviar cartas solicitando esse tipo de material, que eu distribuía pela cidade inteira. Tinha centenas de cartas guardadas, de

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amigos, de empresas, de todo lugar do planeta. Também gostava de catar todos os "cartões de resposta comercial", preenchê-los e enviá-los. Particularmente, adorava esses "cartões", por dispensarem o uso de selos e envelopes. Fazia minha festa com eles. O carteiro da cidade já me conhecia. Mesmo quando eu mudava de um bairro para outro, acabava recebendo as correspondências, pois o carteiro descobria meu novo paradeiro. Tinha coleções de revistas Veja, Isto É e outras que chegavam das editoras, por causa dos cartões-resposta que eu preenchia e enviava. Às vezes, recebia três ou quatro revistas semanais de uma só vez. Quando uma assinatura era cancelada por falta de pagamento, enviava outros pedidos e, assim, recebia as revistas ininterruptamente.

Com esse meu hobby, acabei aprendendo alguns macetes como, por exemplo, que existia e ainda existe a chamada "Carta Social", que qualquer um pode postar pagando apenas um centavo. Isso mesmo. Carta com peso igual ou inferior a vinte gramas, cujo envelope seja preenchido a mão, sendo os remetentes e os destinatários "pessoas físicas", custa apenas R$ 0,01. Há um limite de cinco cartas por vez, em cada agência, para evitar que se explore demasiadamente o serviço. Mas eu sempre burlava essa regra, colocando as cartas em agências diferentes ou voltando à mesma agência em horários diversos e me dirigindo a outros guichês. Nesse vaivém de cartas, ocorreu-me, um dia, enviar uma carta ao Presidente da República - na época, João Figueiredo -, pedindo aposentadoria para minha mãe. Não é que ele respondeu a carta, informando que tinha encaminhado o pedido ao Ministério da Previdência Social? E, após alguns meses, o Ministério enviou uma solicitação a minha mãe, pedindo-lhe que comparecesse a um posto do antigo INPS (atual INSS). Depois de infindáveis trâmites e perícias médicas, minha mãe foi, enfim, "encostada" por invalidez, devido ao seu problema de paralisia nas pernas. A renda era de meio salário mínimo, que, após muitos anos, passou a um salário mínimo completo. E eu nunca entendi como é que se divide o "mínimo" em dois...

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O primeiro bem de valor que possuí foi um rádio de pilha, comprado com o fruto de meu trabalho, do Senhor Francisco, pai de Florisvaldo e marido de Dona Dete. Essas pessoas desempenharam papel importante em nossas vidas. Francisco, ou Chico, como era conhecido, tinha uma barraca no Mercado Municipal de Jequié, onde vendia farinha e sempre nos dava um pouco e Dona Dete era aquela que nos permitia assistir televisão em sua casa.

O rádio era portátil, à pilha, e já usado. Pegava somente as estações em ondas médias e curtas. E, mesmo que pegasse FM, isso era coisa que não existia em Jequié na época. Carregava esse rádio para todos os lugares por onde andava.

Ao deitar e antes de pegar no sono, passava boa parte da noite ouvindo a Rádio Capital e a Rádio Record, de São Paulo. Esta última tinha um programa de humor apresentado por Zé Betio, onde conheci a maioria dos humoristas que atualmente fazem sucesso na TV. Eu trabalhava, à época, com Esmeraldo, fazendo cintos e sacolas e também atendendo no balcão de seu armarinho ou em sua barraca de miudezas na feira livre da cidade. O rádio me acompanhava em todos esses lugares.

Na oportunidade em que eu comecei a trabalhar na pequena fábrica de cintos, fiz um acordo com Esmeraldo, no qual eu receberia um salário menor em troca de café da manhã, almoço e jantar, todos os dias.

Uma vez, roubei a calculadora de pilha de uma vizinha de Esmeraldo, que vendia leite e morava ao lado da casa dele. Devia ter lá meus doze anos de idade àquela época. Esperei todo mundo sair da sala, não resisti e entrei na casa. Rapidamente, peguei a calculadora que me tentava sobre a televisão. Ninguém nunca descobriu o autor do roubo. Mas, muito arrependido, confesso-o aqui, agora.

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No mês de junho, são frequentes as festas em homenagem a Santo Antônio, o padroeiro da cidade de Jequié. E todos os anos, nessa época, um parque de diversões é armado em frente à igreja matriz. Minha mãe me levava com ela para assistir à missa, em um dos treze dias da trezena de Santo Antônio, e também para ver as outras crianças brincando no parque. Ela não tinha condições de comprar ingressos para os brinquedos. Nem sequer para me comprar uma maçã do amor. Eu me sentia muito frustrado com tudo aquilo, até que, um belo dia, resolvi roubar os ingressos do parque. Precisava apenas saber aonde eram guardados os ingressos usados. E descobri que, ao lado de cada brinquedo – roda-gigante, carros de bate-e-volta, etc. −, havia uma espécie de garrafa, onde eram depositados os ingressos já utilizados. Em uma dessas garrafas percebi que havia um buraco na parte de baixo. E dali retirei centenas de ingressos, sem que o rapaz que tomava conta do brinquedo percebesse. Enchi vários saquinhos plásticos de maçãs do amor com os ingressos roubados e depois corri para casa feliz da vida. Não contei nada à minha mãe, pois seria surra certa, caso ela soubesse do acontecido. No dia seguinte, levei todos os irmãos para montarem nos brinquedos do parque, de graça. De alguns brinquedos nem saíamos, como era o caso dos carrinhos de bate-e-volta. A cada vez que o tempo terminava, dávamos outro ingresso para o rapaz que controlava o brinquedo. Brincamos tanto que acabamos enjoando daquilo tudo e distribuímos os ingressos para a meninada da rua onde morávamos. A garotada fez uma festa no parque, literalmente.

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Cursei o primeiro grau no Ginásio Celi de Freitas, onde era o aluno que mais se destacava. Estudava muito e, por isso, sempre tirava as melhores notas. Todos me conheciam: alunos, censores, professores, coordenadores e diretores. Sempre participava das atividades extraclasses: dançava nas quadrilhas juninas, tocava e ensaiava a banda do colégio, tomava parte nas mais diversas campanhas.

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José Lientinho, um dos professores do colégio, era encarregado de promover as festas e ensaiar a banda. Tinha contato frequente com ele, pois tomava conta dos instrumentos e tinha a chave do local onde eles ficavam guardados, além de também ter a chave de uma sala onde ele armazenava papel ofício, papel carbono, álcool e todo material que arrecadava no comércio local para uso da escola. Professor Lientinho tinha esse aposento como sendo de sua propriedade, e ninguém podia pegar dali uma folha de papel sem o seu consentimento. Certa vez, ele foi escalado para tomar conta de uma prova na sala onde eu estudava. Simplesmente, resolveu sair da sala, permitindo assim que todos "pescassem". Em sinal de protesto, assinei a prova em branco e me retirei. A turma quase me matou. No dia seguinte, a professora da matéria me chamou e me deu nota dez pela atitude, anulou a prova dos demais e marcou outra prova com todos, exceto eu. O professor ficou desmoralizado no colégio e, por este motivo, trancou-me no auditório da escola; queria me espancar. Gritei por socorro e vieram professores e alunos acudir. Felizmente, foi apenas uma "pressão". Não deu tempo para que ele me batesse.

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Luciene era a mais engraçada, a mais relapsa e a mais admirada colega de turma. Era gordinha, casada, falava um monte de palavrões e não gostava de estudar. Quando saíamos da escola, às 22 horas, ela reunia uma galera para fazer baderna pelas ruas. Roubávamos as plantas que as pessoas colocavam nos pátios de suas casas e levávamos para a casa de Luciene. Quando não conseguíamos carregar os caqueiros, por causa do peso, quebrávamos e destruíamos tudo. Até que a vizinhança deu queixa na polícia, que passou a fazer ronda pelas ruas próximas. Desse dia em diante, evitamos continuar com aquele tipo de baderna.

Luciene era a aluna que menos estudava. Passava o tempo inteiro conversando e fazendo bagunça na sala de aula. Mas sempre passava de

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ano, graças aos colegas, que, por gostarem muito dela, davam-lhe "cola" no dia da prova. Na prova final da oitava série, pediu-me que preenchesse a prova e deixasse sem assinatura, para que ela pudesse assinar e não perder o ano. Eu já tinha notas suficientes para passar. Sempre fechava minhas notas na terceira unidade. Mas ela dependia da nota da quarta unidade para conseguir concluir a oitava série. Fiz o que ela pediu, e ambos passamos de ano.

Fui fazer o segundo grau em outra escola, já que lá só tinha o primeiro. Um belo dia estava eu trabalhando numa barraca de doces, na esquina da avenida Rio Branco com a rua Barbosa de Souza, quando passou minha professora de Português, Eulália. Ela parou e começou a conversar comigo. Quando tocou no assunto da prova, aquela que eu tinha preenchido para Luciene, fiquei paralisado. Baixei a cabeça e não falei mais uma palavra. Com atraso, ela me deu a bronca que deveria ter dado na época, falou que tinha me visto entregar a prova para Luciene, e que só não tinha anulado as duas provas em consideração a mim, que era um ótimo aluno e não merecia ter um ZERO na caderneta. Ressaltou ainda que, também por consideração a mim, acabara cometendo uma injustiça: passar Luciene para a primeira série do segundo grau. Culpou-me pelo fato de minha colega passar de ano sem saber nada, enfatizando que eu levaria para o resto da vida esta culpa. Advertiu-me para que eu não cometesse mais atitudes daquela natureza e encorajou-me a continuar sendo o aluno exemplar que sempre tinha sido. Ouvi todo o sermão calado, sem coragem de olhar em seus olhos. Morri de vergonha de tudo aquilo. Esta é mais uma lição que me acompanha e, na medida do possível, tento passá-la adiante.

Estudei em duas fases no IERP - Instituto de Educação Régis Pacheco. A primeira foi quando voltei da Fazenda Turmalina, depois de lá ter vivido por cinco anos. Fui direto para a quinta série do primeiro grau. Tendo estudado anteriormente numa escola onde apenas aprendi o básico - ler, escrever, ver as horas no relógio e outras amenidades -, fui reprovado em muitas matérias, principalmente em Português, ao entrar para o novo colégio. Não conseguia sequer separar as sílabas das

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palavras. Desisti então de continuar estudando ali e voltei para a escola normal da cidade. Isso ocorreu por volta de 1982.

A segunda vez foi quando lá me matriculei para cursar o segundo grau. Aí, sim, fui mais bem-sucedido, pois tinha me proposto a ser um aluno "caxias" no primeiro grau e, consequentemente, tornara-me o destaque de minha turma. "Vendia" trabalhos de Geografia, História, Matemática e de outras matérias para toda a turma. Quando o professor passava uma pesquisa, eu fazia os trabalhos da sala inteira, para vendê-los depois. Era uma boa fonte de renda extra para mim.

Durante meu curso de segundo grau, eu trabalhava na empresa de ônibus Tiradentes, de Dalmar (veja detalhes no capítulo "Trabalho na empresa Tiradentes"). A perseguição era muito forte dentro do trabalho e ninguém conseguia estudar e trabalhar, pois os horários das escalas de trabalho eram feitos de forma que impedia que o funcionário tivesse tempo de frequentar a escola. Mas, felizmente, consegui conciliar as duas atividades, mesmo porque eu era muito incisivo e insistente naquilo que eu queria. Sempre enfrentei João e outros "fiscais" da empresa de forma contundente.

Eu era o único cobrador que agia dessa maneira e não era demitido. Muitas vezes, chegava de viagem, trabalhando, e ia direto para o colégio, onde fazia provas que nem sabia que estavam marcadas. A duras penas, concluí o segundo grau, com muitas falhas, devido ao baixo nível de ensino daquela instituição (a melhor da cidade), onde se fingia estar ensinando e os alunos fingiam estar aprendendo. Muitas provas de Economia eram "trabalhos" a serem feitos em casa e entregues na Secretaria, pois o professor raramente aparecia na sala de aula. Outras matérias tiveram a mesma sorte. Tanto que me "formei" em Técnico em Contabilidade e nada sei da área. Os estágios, então, eram catastróficos. Além da imensa dificuldade de se conseguir locais para estagiar, quando aparecia algum eram empresas que não tinham a menor estrutura para funcionar, e muito menos para transmitir informações contábeis. Na época, muita gente nem fazia estágio, apesar de conseguir notas de estágio supervisionado. É o Estado cumprindo a sua parte em formar

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cidadãos desinformados e despreparados para exercer suas atividades com cidadania.

Ainda durante o curso de segundo grau, conheci Renato, de quem fiquei muito amigo. Sendo eu considerado um dos CDF da classe, acabava indo sempre à casa dos amigos, nos finais de semana, para lhes dar aulas. A casa de Renato era quase uma velha conhecida, pois todos os domingos eu estava lá, bem cedinho, às vezes até mesmo antes de o café ser servido. Lembro que sempre assistia ao Globo Rural, um dos programas matinais da Rede Globo, na casa dele.

Lá, aproveitava para tomar café, almoçar e jantar, além das merendas servidas durante o dia, principalmente a mim, que era visita. A família de Renato também era muito pobre, mas sua mãe era aposentada e tinha salário fixo, o que lhe permitia ter sempre comida em casa. Além disso, como a casa era própria, não precisavam gastar com aluguel, e sempre sobrava algum dinheiro para outros gastos.

Consegui, uma vez, um emprego para Renato como vigilante na empresa de um outro amigo meu, também colega de sala, para quem eu também dava aulas em alguns finais de semana. Este outro amigo morava no bairro Agarradinho e tinha fama de ser ladrão. Mas nossa amizade continuou mesmo após eu ter tomado conhecimento de que ele roubava e fazia jus à fama.

Foi nessa época que conheci outra colega de escola chamada Ivonete. Era dona de uma barraca de verduras na feira livre da cidade. Como minhas "aulas" particulares nos finais de semana se tornaram famosas, acabei sendo convidado para dar aulas a ela também. E assim descobri que Ivonete era comerciante e ela descobriu que eu era uma pessoa necessitada. Acabou se oferecendo para me ajudar e eu aceitei. Daí em diante, toda semana minha mãe, ou algum de meus irmãos, passava na barraca dela e recebia um monte de verduras e frutas.

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MILITÂNCIAS, TRABALHOS, MUDANÇAS...

Militância PolíticaEu militava no Partido Comunista do Brasil e participava das

reuniões de cúpula, onde discutíamos estratégias de ocupação dos espaços na cidade: associações de bairros, sedes de partidos, grêmios estudantis e todos os espaços que pudessem gerar dividendos políticos. Uma das fontes de informações de que me valia para manter-me atualizado era o jornal Tribuna Operária, que adotava uma posição e linha de pensamento compatíveis com minhas ideias na busca de um mundo mais justo e de uma sociedade mais humana. Durante muitos anos, revoltei-me com as reportagens sobre a Ditadura Militar que lia nos jornais.

No colégio, juntei-me a uma equipe de rapazes e moças que já atuavam politicamente de uma forma mais madura e profissional. Éramos tão atuantes que acabamos fundando uma chapa para concorrer à direção do grêmio estudantil. Nossa chapa de estudantes foi eleita para a direção do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, que fundamos no IERP e mantivemos por muito tempo. Eu era o Diretor de Imprensa desse grêmio e responsável, entre outras coisas, pela publicação do jornalzinho informativo, onde denunciávamos os mandos e desmandos do Diretor Carlos Melhem.

Cheguei até a viajar para Salvador para pegar o jornal do grêmio, que era impresso em uma gráfica da Ladeira de Santana. Nessa época, viajei também para Arembepe, para participar da Convenção Nacional da União da Juventude Socialista, um braço político do PC do B. Foi uma festa inesquecível. Participamos de comemorações e debates, tomamos banho nas lagoas de Arembepe e dançamos ao som de trios elétricos. O que mais me marcou nessa viagem foi o colégio onde dormíamos e suas inúmeras telhas quebradas que, com a chuva, acordavam muita gente durante a madrugada. Outra cena que não esqueço foi a de uma tartaruga gigante, que vi nadando no mar, pertinho da praia. Naquele dia, tinha acordado cedo e resolvi sair para uma caminhada na beira da

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praia. Estava distraído olhando o mar, quando notei uma "pedra" enorme se movendo na superfície da água. Fiquei intrigado com aquilo e não desgrudei os olhos dali até descobrir que o estranho fenômeno era uma tartaruga de mais de dois metros de comprimento. Fiquei surpreso e admirado diante daquela obra formidável da natureza. Permaneci um bom tempo contemplando aquele casco colossal a se movimentar na água. Até que a tartaruga resolveu dar um mergulho e desaparecer no meio das ondas do mar.

Campanha Política de Waldir PiresTrabalhei com alguns amigos na campanha política de Waldir Pires

para o governo do estado da Bahia. Viajamos para a convenção do PMDB, partido que fazia parte da coligação para a eleição de Waldir Pires. Em Salvador, fomos para a Câmara Municipal, onde acontecia a festa, almoçamos num restaurante localizado embaixo do prédio da Prefeitura e ficamos hospedados num minúsculo apartamento no Engenho Velho de Brotas, de propriedade de Lídice da Mata. Como o apartamento era muito pequeno, Lídice foi dormir na casa de sua mãe e lá deixou parte da galera, na qual eu me incluía. Muito simpática, ela nos autorizou a ficarmos à vontade em sua casa, inclusive para assaltar a geladeira, nos fartar de iogurtes e ovos, os quais consumimos com vontade.

Fazíamos panfletagem, boca de urna, colagem de cartazes pela cidade, debates, reuniões e seminários, em troca de uma promessa de emprego, caso o Waldir ganhasse a eleição. Para nossa decepção, logo após a conquista do governo do estado, nosso partido trocou os cargos por "apoio político" na eleição seguinte. Fiquei revoltado com aquilo, de ver que as decisões eram tomadas em gabinetes, restando à base aceitá-las pacificamente. Encontrava-me desempregado há um bom tempo e aquela promessa de trabalho era com o que eu contava. Saí do partido, abandonei toda a militância e nunca mais me engajei em política partidária.

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Trabalho com Abdias e sua mulherTrabalhei com Abdias e sua mulher desde o tempo em que eram

casados e moravam na Ladeira da Coelba. Nessa época, ele só tinha Rubens de filho. Eram vendedores ambulantes de panelas, tecidos e utensílios domésticos de plástico. Viajei muito em sua picape C10 para Itagi, Apuarema, Ipiaú e cidades dos arredores de Jequié, nos finais de semana. Lá armava uma barraca ou simplesmente estendia uma lona preta no chão, arrumava a mercadoria, e esperava que os fregueses aparecessem. O mais engraçado era que, muitas vezes, além de ter de "brigar" por um espaço no chão das feiras livres, ainda tinha de pagar uma taxa à prefeitura local pela utilização do "solo", que não passava de um chão livre ou coberto de paralelepípedos. Lembro-me que, certa ocasião, fui deixado em uma cidadezinha, onde tive de procurar pelas mercadorias de Abdias, que estavam guardadas na casa de um dos moradores da cidade, para depois levá-las até a feira e, no final, guardá-las novamente nessa casa. Dali pegava um ônibus e voltava para Jequié com o dinheiro apurado na vendagem do dia. Posteriormente, Abdias se mudou para o Agarradinho, casou-se com outra mulher e teve mais filhos. E, por coincidência, acabei indo morar em frente à sua casa, quando me casei com Márcia.

Na época em que Abdias e a mulher se encontravam sem condições de manter a estrutura de vendedores ambulantes, montaram várias barraquinhas, de um metro de comprimento por meio metro de largura, para a venda de doces, pipocas, chicletes e cigarros. Trabalhei numa dessas barracas, que ficava guardada numa residência na Avenida Rio Branco. Era a residência de duas senhoras idosas. Nos fundos da propriedade, havia um quartinho onde eu guardava o "caixote" com os doces. As senhoras sempre me davam café ou alguma comida, quando eu chegava pela manhã para pegar o carrinho de mão e a barraca. Todos os dias eu carregava a barraquinha e a armava na esquina da casa de Walter Sampaio - então prefeito da cidade -, onde, tempos depois, foi construído o Superlar Supermercados - uma rede de mercadinhos de Vitória da Conquista, com várias lojas em Jequié. Sempre era roubado

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pelos estudantes que por ali passavam, fosse quando compravam fiado ou quando, simplesmente, pegavam as mercadorias e corriam. Nessa ocasião, minha mãe estava com sérios problemas nas pernas e precisava usar muletas para caminhar. Ainda assim, todos os dias, ia levar minha comida, que não variava muito: pirão de farinha com água, uma piaba frita ou um pão com manteiga (no interior, margarina é chamada de manteiga). Como eu não gostava da comida, que ela levava com sacrifício, e não queria magoá-la, usava da seguinte estratégia: jogava fora minha água de beber, armazenada numa lata de Neston, e pedia que ela fosse buscar mais água. Nesse meio tempo, dava um jeito de jogar a comida no lixo, sem que ela visse. Enquanto ela atravessava, com dificuldades, a avenida Rio Branco, eu olhava para a comida e dela me desfazia imediatamente, caso meu estômago a recusasse. Porém, quando minha mãe voltava com a água, dizia-lhe que havia comido tudo. Ela ficava satisfeita, enfatizando que meus irmãos, em casa, não tinham almoçado para que sobrasse comida para mim. Eu ficava com o coração partido, mas nunca tive coragem de dizer à minha mãe que, na maioria das vezes, eu também ficava com fome.

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Trabalhei como balconista no bar de Bio, na praça da Bandeira. Despachava cachaça, bebidas diversas, cereais, tira-gostos, sucos, bolos etc. Trabalhava de segunda a sábado e ganhava muito pouco. A grande vantagem era que eu comia durante todo o dia, coisa que não poderia fazer em casa, onde quase nunca havia o que comer. Não lembro quanto tempo trabalhei nesse bar, mas é uma passagem que merece registro.

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Quando ficava sem trabalho, ia limpar quintais de conhecidos com uma enxada. Às vezes, saía a caminhar por ruas onde não conhecia ninguém, perguntando, de casa em casa, se tinha algo que eu pudesse

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fazer. Desta forma, nunca ficava sem uns trocados para comprar minhas coisas. Sempre encontrava algo para fazer. Lembro bem do quintal de Dona Alzira, mãe de Edilene. O quintal dela era enorme, e sempre tinha muito mato e lixo a serem removidos. Eu levava comigo uma "galiota" (carrinho de mão, daqueles que os pedreiros usam) para retirar o lixo, as pedras e o mato que eu capinava.

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Trabalhei como caseiro na casa de um senhor conhecido como Dr. Gerson. Ele tinha uma casa enorme e vários cachorros da raça policial. Apesar de não ser chegado a animais, eu cuidava dos cães e dava comida a eles. Certa feita, entrei no carro do patrão e encontrei um enorme revólver, calibre 38, no porta-luvas. Foi a primeira vez que vi uma arma de verdade. Manuseei o revólver um pouco e, em seguida, guardei-o, com medo de ser visto por alguém.

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Trabalhei também quebrando pedras. Era um trabalho duro, literalmente duro. Ficava numa pedreira, perto de Jequié. Ali eu ganhava por produção. Cada lata de pedra equivalia a cerca de R$ 1,00, a preços de hoje. Isso poderia significar um bom dinheiro se eu conseguisse quebrar muitas pedras. Mas a realidade é que eu passava dois ou três dias tentando encher uma lata. Foi uma das fases mais difíceis de minha vida.

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Trabalhei também com Aldo, vendedor de utensílios domésticos e de leite. Viajava com ele para as cidades circunvizinhas para vender tecidos, utensílios plásticos e panelas. Trabalhava nas feiras livres das

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cidades próximas a Jequié. Não lembro de muita coisa sobre esse trabalho, foi apenas mais um deles.

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Joel é um primo distante, por parte de meu pai. Ele trabalhava numa panificadora, na Avenida Franz Gedeon, próximo ao centro da cidade. Conseguiu-me uma vaga para trabalhar como vendedor e entregador de pães. Eu saía de casa, então, todos os dias bem cedo, por volta das cinco horas da madrugada, e voltava somente no final da tarde. Ainda me lembro do cheiro dos pães fresquinhos, a exalar do enorme cesto que eu carregava, para entrega nas lojas próximas e no centro da cidade. Meu pescoço doía muito por causa do peso do balaio. Não fiquei muito tempo empregado ali, e nem sequer recordo do motivo de minha saída.

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Construí um carrinho de mão, de madeira, e com ele trabalhei muito tempo carregando as compras do povo na feira. As pessoas que iam às compras levavam cestos enormes, balaios descomunais, que enchiam de verdura, feijão, carne e tudo mais. Só que a volta para casa nem sempre era uma operação fácil para esses compradores, pois tinham de levar suas compras em ônibus coletivos ou em táxis. Nos ônibus, nem todos os motoristas permitiam; e nos táxis, a corrida ficava mais cara. A saída para aquela gente então era pagar uns trocados para um rapazinho carregar as compras. Esta prática é bem comum nos locais onde tem feira livre.

Geralmente, os dias de maior movimento eram sexta e sábado, quando o centro da cidade era invadido por pessoas vindas de povoados e fazendas próximas para fazer suas compras em Jequié ou para vender os produtos das roças. Houve um dia em que eu quase desmaiei quando subia a avenida Rio Branco em direção ao viaduto Daniel Andrade, com

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um cesto enorme no carro de mão. O peso era tão grande que eu me entortava todo para equilibrar o carrinho de mão. E, para piorar a situação, nesse dia eu não tinha tomado café, estava muito fraco. Acabei passando mal e quase não pude continuar meu trabalho na feira. A dona do cesto, sensibilizada com o meu estado, me trouxe um copo d’água e depois me deu café com pão. Pediu que eu ficasse ali parado um pouco, descansando, e depois fosse para casa. Segui seus conselhos e descansei, mas, ao invés de voltar para casa, fui direto para a feira livre, procurar mais cestos para carregar.

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Um dos trabalhos mais chatos que tive foi o de ajudante de pedreiro. Nunca havia trabalhado antes nessa profissão - e, depois dessa experiência, não procurei outras iguais. Seu Elias era um senhor negro e gordo, lento e lerdo como uma tartaruga. Uma vez, chamou-me para ganhar um dinheiro trabalhando como seu ajudante no serviço de pedreiro. Só que ele não fazia nada. Ficava sentado na escada de madeira, recebendo blocos de cimento, massa de cimento e tudo mais, sem fazer o menor esforço. Só sabia mandar: "Traga o cimento! Traga a corda! Traga a colher de pedreiro!". Esta passagem foi tão rápida que mal consigo lembrar quanto tempo durou o trabalho, nem quanto eu recebia por ele.

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Zezé é o apelido de José, um de meus irmãos, filho do primeiro casamento de meu pai. Ele é casado com Irene, com quem teve Vagner e Lane. A primeira família de meu pai sempre viveu afastada da gente, acredito que por causa da nossa condição social, que não nos permitia frequentar os lugares que eles frequentavam.

Sendo comerciante, sempre teve um bar ou uma mercearia, onde trabalhava duro para sustentar a família. Quando trabalhei com ele no

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bar, como balconista, caminhava quase a cidade inteira, de madrugada, para chegar ao estabelecimento cedinho, antes das seis horas da manhã, todos os dias. Batia na porta de sua casa e ele abria uma portinhola por onde enfiava a mão e me entregava as chaves da venda. Daí eu abria o mercadinho, fazia toda a limpeza do chão, das louças, frigideiras e panelas de café, que estavam sujas desde o dia anterior. Cozinhava ovos, preparava lanches, fervia feijão ou alguma outra comida que estivesse no fogão, limpava e enchia a geladeira e o freezer de bebidas. Deixava toda a venda preparada para o novo dia.

Zezé acordava por volta das sete horas e ia para lá. Nem sempre ficava comigo. Mas uma de suas advertências era que eu evitasse vender fiado para a clientela, sob a alegação de que fiado somente na presença dele. E assim eu procedia, evitando que a maior parte do estoque fosse vendida fiado. Para cada cliente que chegava pedindo para fiar a compra, eu repetia sempre que "somente com meu irmão", pois não tinha autorização para tal.

Gostava daquele trabalho e tentava fazê-lo da melhor maneira possível. Afinal, eu precisava do salário que ele me pagava (menos que um salário mínimo, diga-se de passagem). Na venda, ele tinha um ponto de jogo do bicho, onde aprendi a fazer o jogo. Muitas vezes, Irene, minha cunhada, ficava no bar comigo. Mas o mais comum era encontrar Vagner por ali, geralmente sentado ao lado do caixa e passando troco. Nunca desconfiei dele. Mas, um dia, houve uma discussão entre mim e Irene, porque Vagner tinha colocado um saco de amendoim doce pendurado num prego sobre a pia. Com o peso, o saco rasgou, fazendo com que o amendoim caísse na pia, ficando todo molhado e se estragando. Vagner, para livrar-se da bronca e de pagar o prejuízo, acusou-me de ter colocado o amendoim sobre a pia. Ficou a palavra dele contra a minha, e sua mãe, obviamente, acreditou no filho. Protestei e discuti com ela. Quando meu irmão chegou, certamente influenciado por algo que Irene lhe dissera, resolveu me mandar embora, sob o argumento de que, se eu não me dava bem com a mulher dele, não poderia continuar trabalhando na venda. Nada pude fazer, era ele o dono do bar.

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Devido ao jogo do bicho que eu fazia para Zezé lá no bar, acabei conhecendo todos os fregueses e também aqueles que faziam sua "fezinha" constantemente. Desempregado e sem ter o que fazer, fui até a banca do jogo do bicho e peguei um talão para mim. Comecei a fazer jogos por minha própria conta. Meu roteiro incluía principalmente as proximidades da venda de meu irmão, onde eu já tinha uma boa freguesia.

Um dia, estava eu do lado de fora da venda e vi uma freguesa conhecida entrar. Ela não me viu e, dando por minha falta, perguntou à Irene, que estava no balcão, onde eu me encontrava. Irene prontamente anunciou que "Zé mandou embora, pois ele estava roubando o bar". Quase não me contive de raiva ao ouvir aquelas palavras, mas fiquei do lado de fora da venda, escutando toda a conversa. Até hoje tenho este espinho entalado na garganta. E, um dia, ainda hei de chamar Irene para conversar sobre o assunto. Ouvi bem quando ela disse à freguesa que sempre mandava Vagner tomar conta do caixa da venda, para que eu não roubasse ainda mais. E foi aí que me caiu a ficha: ela mandava o filho, não com a intenção de me ajudar, mas para me vigiar. O que deixa meu coração aliviado é que eu nunca peguei nada de meu irmão.

Ouviria de Zezé, tempos mais tarde, quando eu passava por sua venda, sobre as estripulias do filho. Contou-me que Vagner tinha se tornado evangélico, e que, quando ia para os "retiros espirituais", sempre arrombava a venda, levando comida e tudo o que encontrasse, para passar semanas no meio do mato com os "irmãos" de igreja. Por ironia do destino, ele que era o vigia passou ao papel de ladrão. Zezé relatou, ainda, que muitas vezes foi xingado pelo filho na presença de pessoas da vizinhança, o que lhe deixava morto de vergonha. É o destino dando a lição necessária àqueles que precisam aprender algo na vida.

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Saímos da Casa da Avenida Franz Gedeon. Essa casa pertencia ao meu irmão Édson, que sempre morou em São Paulo. A razão de termos

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saído dessa casa foi que os cunhados de Édson (Joel, Maxwel e Creuza) convenceram-no a nos tirar de lá e a pagar o aluguel de uma outra casa para nós. Alegavam que, se continuássemos morando ali, a casa poderia passar a ser nossa. E ele, temendo que isso acontecesse, fez o que lhe foi sugerido. Édson resolveu então passar a pagar o aluguel de uma outra casa para nós. E, como o valor do aluguel que ele se propunha a pagar era muito baixo, só podíamos escolher casas bem pequenas e em bairros distantes. Fomos morar inicialmente no bairro do Pau Ferro. Primeiro, procuramos casa na rua da Bosta, o pior lugar do bairro, onde encontramos uma que fazia jus ao nome da rua. Ficava em cima de um despenhadeiro, em rua de chão batido, onde não havia serviço de ônibus nem de água encanada. Depois, conseguimos uma casa, no mesmo bairro, pelo mesmo preço, porém mais perto do Centro. Fomos então morar nessa casa, cujo aluguel deveria equivaler hoje a algo em torno de dez reais por mês.

Alguns meses depois nos mudamos para uma casinha com uma sala de um metro e meio por dois de largura, um quartinho do mesmo tamanho e um pequeno corredor, localizada na rua Rafael Pinto, bairro do Jequiezinho. Não tinha quintal, ou melhor, tinha um quintal que, por não ser cercado nem murado, acumulava muito mato e lixo. Na frente da casa, a rua era de cascalho. Fica difícil hoje compreender como todos os meus oito irmãos, juntamente com minha mãe, conseguiam se acomodar numa casinha tão pequena.

Ali conhecemos muita gente. Continuávamos dependendo da boa vontade das pessoas para sobreviver. Conhecemos Eva e sua família: a mãe, Dona Maria, e a irmã, Nalva. Era gente da roça, que se mudou para a cidade após vender um sítio que possuía. A família foi em busca de uma vida mais fácil, menos sofrida. Acabou sem o sítio, sem a casa, sem nada, pois, quando o dinheiro secou, ficou sem ter como sobreviver naquela realidade urbana, onde cada um luta por si. Dona Maria teve de vender a própria casa para cuidar de Eva, vítima de doença incurável: um câncer em estágio avançado. Antes de procurar os médicos, ela correu para as igrejas evangélicas, depois para os terreiros de

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candomblé e, quando enfim resolveu apelar para a medicina, o caso já estava adiantado demais. Não me sai da lembrança o dia em que fui visitá-la em sua casa e espantei-me com o buraco enorme em suas nádegas, por onde se viam os ossos do quadril. Foi uma das cenas mais chocantes que vi.

Quando morávamos nessa casa, fui à loja e comprei um fogão a gás. No entanto, a alegria durou pouco. Nunca usamos o fogão, pois não tínhamos condições de comprar o botijão de gás e, muito menos, o gás para abastecê-lo mensalmente. Esse fogão eu acabei vendendo para pagar pela publicação de uma poesia na antologia Poetas Brasileiros de Hoje - 1984. Não usamos o fogão para cozinhar, mas ele serviu para essa alegria minha e de minha família, que vibrou quando viu o livro publicado. Antes de eu comprar esse fogão, já tínhamos ganho um fogão menor, de duas bocas, doado por uma pessoa chamada Lourdes. A alegria foi muito grande, mas não tivemos condições de comprar o botijão de gás e por isso o fogão nunca foi utilizado. Acabamos nos desfazendo dele para comprar comida.

Nessa rua - como nas outras - era Quira quem mais fazia amizades. Conheceu Nenquena e Norminha. A primeira usava drogas e a segunda fumava cigarros igual a uma caapora. Tinham fama de mulheres fáceis, diziam que elas saíam com todos os homens da cidade. Minha mãe vivia a reclamar com Quira por causa de suas amizades, mas, sempre muito teimosa, minha irmã continuava a sair com essas e outras amigas. Felizmente ela não seguiu o destino das amigas e hoje é uma pessoa de bem, casada, com três filhos, evangélica, responsável e muito amada por todos da família.

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Primeira viagem a SalvadorFui trabalhar em Salvador, em 1984, na casa de Luci Valverde, que

morava na Alameda das Framboesas, Quadra 7, Lote 12, Caminho das Árvores. A casa ficava perto do Iguatemi e todos os dias eu passava

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perto do shopping para comprar pães. Da varanda, dava para ver ao longe os ônibus passando, e eu ficava horas e horas observando o movimento dos carros. Na verdade, ela me levou para a capital dizendo que precisava de mim para tomar conta de um cachorro. Mas, quando cheguei, não tinha cachorro algum. Eu teria de limpar a piscina, o quintal, ser zelador e jardineiro. Como relatado anteriormente, Luci era a dona da Fazenda Turmalina, onde morei dos sete aos doze anos de idade. Em sua casa na cidade moravam, além dela, os filhos Augusto, Conceição e Pitutinha. Teobaldo, o mais velho, morava no México, na época.

Por falar em Teobaldo, certa vez o carteiro trouxe uma carta dele para Luci, e eu, por achar o selo muito bonito, arranquei-o do envelope para juntá-lo à minha coleção. Por medo de mostrar o envelope lascado, cometi a imprudência de ler a carta e jogá-la no lixo, em seguida. Depois, arrependido, recuperei a carta e coloquei-a, aberta, na estante da sala. Luci pegou a carta e me pressionou a confessar o delito. Neguei até a morte, e ela me deu um sermão que jamais esqueci; disse que era muita ousadia e falta de responsabilidade abrir correspondência alheia, que aquilo era crime. Aprendi a lição e nunca mais ousei abrir qualquer correspondência, fosse de quem fosse. Só não revelei que tinha sido eu o autor do ocorrido, nem os motivos que me levaram a abrir a carta. Mas ela sempre teve a certeza de que fui eu que abri aquela correspondência.

Uma vez houve um problema na instalação elétrica da casa e foi chamada uma pessoa para fazer o conserto. Luci pediu-me que ficasse na garagem, junto com o eletricista, tomando conta das coisas, para não correr o risco de ser roubada por ele. Infelizmente, não pude evitar que um roubo acontecesse, e não por culpa do eletricista. A coisa se passou da seguinte maneira: fiquei sozinho na garagem, quando o eletricista subiu para verificar uma fiação no primeiro andar da casa. Minutos depois de o eletricista ter subido, passou um rapaz em frente à garagem, chegou até a porta e perguntou se não estavam precisando de alguém para trabalhar na casa. Respondi que não. Ele então entrou e levou uma

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bicicleta Caloi 10 novinha, que estava ali, depois de me ameaçar com a chave de fenda que pegou dentro da própria garagem. Perguntou-me se tinha mais alguém em casa e eu, com medo, respondi que tinha muita gente na casa, quando na verdade tinha somente o rapaz que trabalhava consertando os fios e Luci. Ele levou a bicicleta e eu fiquei em pânico. Corri para fechar a porta da garagem e para avisar Luci. Saímos pelos arredores à procura do ladrão, mas infelizmente não conseguimos localizá-lo.

A casa era enorme e tinha uma piscina muito bonita no quintal. Eu ficava louco para tomar um banho ali, mas, como empregado, não tinha direito a essa regalia. Esperei o pessoal viajar, oportunidade em que fiquei sozinho na casa. Aí aproveitei para dar o tão desejado mergulho, um único mergulho, naquela piscina de águas convidativas. Foi o suficiente para matar meu desejo e curiosidade. Foi o primeiro mergulho de minha vida em uma piscina. Quando Luci chegou, deu-me a maior bronca, pois tinha observado o rastro que eu deixara no fundo da piscina. Com o mergulho, meu corpo havia limpado uma faixa de sujeira do fundo e eu não percebera...

Meu quarto ficava nos fundos da casa, perto da cozinha. Tinha um guarda-roupa enorme, onde caberiam todas as roupas de minha vida. Mas eu ocupava apenas uma gavetinha do fundo, já que não possuía muita roupa. Tinha também uma televisão. Eu podia assistir TV no meu quarto ou na cozinha; jamais na sala, com os patrões. Nas poucas vezes em que me sentava na sala para assistir TV, era posto para fora dali, sob o argumento de que "empregados não podiam se misturar com patrões". Mas eu não tinha essa noção ou cultura, nem sabia que a expressão "colocar-me em meu lugar" significava ficar nos fundos da casa. Lembro de uma vez que fiquei brincando com o controle remoto da TV enquanto Pitutinha assistia aos programas na sala. De molecagem, eu mudava de canal a toda hora, para vê-la reclamando. Ela era uma criança ainda, e eu, também da mesma faixa etária, achava-me no direito de brincar com a patroinha da casa.

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Odiava macarrão porque me lembrava lombrigas. Uma vez, no jantar, vi que meu prato continha macarrão em sua maior parte. Comi o restante da comida e joguei o macarrão no lixo. Luci estava na janela do primeiro andar e me viu fazendo aquilo. Desceu e me deu uma bronca memorável. Falou que tinha muita gente passando fome no mundo e que eu estava desperdiçando comida. Disse ainda que, se eu não gostasse da comida, que falasse para a empregada me dar outra coisa.

Repeti a cena em outra ocasião, quando a empregada esqueceu de deixar comida para mim. Então, Conceição, filha de Luci, preparou uma sopa de cogumelo. Tentei comer, mas odiei o sabor. Fingi que comi, esperei ficar sozinho, e joguei tudo no lixo. Desta vez não fui visto, senão seria bronca certa.

A empregada da casa folgava nos finais de semana. Certa vez, peguei o prato sujo e coloquei na pia. E lá veio Luci novamente me dar bronca. Agora alegando que até ela mesma lavava seu prato, e que muitas vezes já tinha lavado até o vaso sanitário de seu quarto; que metia a mão dentro dele com esponja e sabão, e que aquilo não a tornava melhor ou pior do que era. Após o sermão, exigiu que eu lavasse o prato. Aprendi a lição. Com Luci aprendi muitos valores importantes da vida.

Chegou o natal e Luci começou a preparar a festa de final de ano. Aquela seria a primeira ceia natalina de minha vida. A mesa estava repleta de comidas: leitão assado, peru, frutas, nozes e vinhos. Mas não aguentei esperar até meia-noite e corri para a cama. Poderia ter experimentado naquele Natal uma sensação diferente de todas as que já tinha vivido. Mas, infelizmente, o sono me venceu e eu perdi a oportunidade de desfrutar da festa. Pouco tempo depois, voltaria a morar na pobreza, em Jequié, com minha mãe.

Luci era espírita e tinha o costume de oferecer comida e presente aos espíritos. Lembro-me que, na época em que morei na fazenda, eu já havia encontrado abóbora com mel, e outras oferendas, dentro de uma tigela de barro, que ela colocava dentro do mato. Em Salvador, levou-me uma vez para o rio Vermelho, onde jogou flores e perfumes no mar, para

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Yemanjá. Foi a primeira vez que vi o mar. Fiquei maravilhado, extasiado... E, deste encantamento, fiz uma poesia em homenagem ao mar:

O Mar

O mar é muito lindo!Tão lindo quanto extenso.Tudo que vejo e é lindoEstá no mar.Nele tem peixes grandes e peixes pequenos.Pelas águas do mar, ou dos mares,Navegam as maiores embarcações...Também singram o mar,A trabalho, diversão ou em simples viagem,As embarcações menores: canoas, barcos, balsas, jangadas...A textura da areia é finíssima e alvaEm quase todas as praias brasileiras.Os habitantes do mar, os peixes já mencionados,São muito úteis aos brasileiros, Que têm no mar uma de suas principais fontes de alimentação.O mar também aparece como a ligaçãoDe outros países com esta Nação.

(1984)

Retorno a JequiéQuando voltei a Jequié, minha mãe já estava morando no Pau

Ferro, na casa de Mariinha. Era uma casinha bem pequena, estreita e baixa. Tinha um quintal imundo e cheio de tralhas. A família inteira morava naquela casinha minúscula. Sonhava, nessa época, em entrar para a Aeronáutica. Pedi a Luci Valverde que me ajudasse a pagar o

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curso preparatório e ela generosamente concordou. Com o dinheiro, comprei as apostilas.

Um belo dia, Luci apareceu em minha casa para saber se eu estava estudando e me preparando para o concurso. Expliquei-lhe que achava tudo muito difícil e que estava prestes a desistir. Luci me deu a maior bronca que recebi em toda a minha vida. Falou que tinha tido uma vida muito difícil, e que, na juventude, teve que comer banana verde assada para sobreviver; falou ainda que já havia passado muita fome; que seu pai enriquecera, sim, mas que antes de conquistar seus bens materiais passara por muito sofrimento e conhecera a fome de perto; que tudo o que ela adquiriu foi resultado de muito suor e trabalho; que sua situação financeira confortável devia-se às economias que fazia e ao cuidado na aplicação de cada centavo; que não desperdiçava nada, a fim de poder ter sempre com o que se manter. Ela me disse que eu deveria aproveitar as oportunidades que a vida me desse, enfrentar os desafios, ter mais coragem e autoconfiança e nunca desistir dos meus sonhos e projetos, mesmo que eles pudessem parecer impossíveis de conquistar.

Enfim, deu-me uma lição de moral e uma lição de vida para nunca mais esquecer. Todo aquele discurso ficou gravado em minha mente e me lembro de cada palavra como se fosse hoje.

***

Em uma casa em frente à que morávamos, havia uma família com três irmãos: Balbino, Ádia (conhecida como "sem queixo") e Maria, que moravam com o pai. Apaixonei-me por Maria, que tinha um filho chamado Anderson, de um ano de idade, cujo pai morava no Rio de Janeiro. Enquanto namorei Maria, costumávamos frequentar uma boate chamada "Cantinho de Lua", que ficava perto do Aeroporto Vicente Grilo, onde desfrutamos de bons momentos. O romance durou quase um ano, mas ela nunca quis algo mais sério comigo. Namorávamos e transávamos muito, mas, quando eu falava em morarmos junto, ela caía fora do papo.

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Quando terminamos, entrei em depressão. Cheguei a fumar uma carteira inteirinha de cigarros em poucas horas. O detalhe é que eu não era fumante e não gostava de cigarro. Caminhei do bairro Mandacaru até o bairro do km 4 fumando, e quase me joguei embaixo de uma caçamba que passou na BR-116, indo em direção a Vitória da Conquista.

Tirei muitas fotos com Anderson, filho de Maria. Eu gostava demais do garoto e queria adotá-lo como meu filho. As fotos serviram de lembrança para guardar, como uma recordação do namoro com a mãe dele e de uma provável família feliz que seríamos.

Nesse mesmo período, trabalhei como fotógrafo particular. Comprei uma câmera fotográfica não profissional e comecei a "tirar fotos" de todo mundo. Dessa época tenho guardada em casa uma infinidade de fotos e negativos. Muita gente não me pagava, é bem verdade, mas, de um modo ou de outro, acabava recuperando o dinheiro investido, pois a quantidade de fotos que eu fazia era grande.

***

O Pau Ferro era um dos bairros mais violentos da cidade. Lá havia tiroteio, gente cortando gente com facão, pobreza, falta de saneamento básico (os esgotos corriam a céu aberto), ruas sem calçamento, serviço de transporte público precário, enfim, era um bairro típico da periferia. Eu não falava com praticamente ninguém, exceto o estritamente necessário, com medo de criar laços de amizade com pessoas que pudessem me trazer problemas no futuro.

Trabalhava no bar de Joel, um primo distante, e meu contato com o público se restringia ao formalmente necessário. Quando saía para trabalhar, sempre advertia meus irmãos para que não abrissem a porta para quem quer que fosse, lembrando-lhes que, caso alguém perguntasse algo sobre mim, deveriam dizer que eu era do Exército, patente "herdada" de meu pai, que também tinha sido militar. Uma mentira de conveniência para que as pessoas nos "respeitassem" e evitassem confusão conosco.

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Um belo dia, alguém bateu à porta e meu irmão Gal (Vivaldo) atendeu. Desconsiderando minhas instruções, falou para a pessoa que tudo não passava de uma mentira e que eu não era do Exército coisa nenhuma. Gal era uma criança e não tinha noção da gravidade do que estava fazendo, mas levou uma surra por isso, surra que ele jamais esqueceu. Eu, sinceramente, não me lembrava deste episódio, mas, recentemente, em conversa com Gal e com meus outros irmãos, fui "lembrado" do ocorrido.

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O bar era composto de um pequeno balcão e prateleiras, e também de um salão onde havia uma mesa de sinuca. Joel tinha montado um aparelho de som em casa, de grande potência, que posteriormente instalou no bar. Eu sempre colocava músicas para tocar e, frequentemente, ouvia Frank Sinatra no volume máximo do aparelho, irritando bastante os vizinhos. Mas ninguém nunca chegou para reclamar do barulho, apenas do meu mau gosto por música, já que eles preferiam cantores mais populares. Joel, o dono do bar, possuía vários discos de vinil, que eu não parava de ouvir: reggae, Tina Turner e outros sons... A música deixava tudo muito mais alegre.

Perto do bar, do outro lado da rua, moravam Lusa e Pinóia, duas prostitutas que tinham um pai cego. Certa vez, chamei Lusa e marcamos um "programa". Ela aceitou e foi à noite até o bar para me encontrar. Bebemos bastante e transamos várias vezes em cima da mesa de sinuca, sobre o balcão, em todos os lugares possíveis. Eu tinha dezoito anos de idade e era a minha primeira experiência sexual, que viria a me render também a primeira e única doença venérea: gonorreia. Passados alguns dias, comecei a sentir um ardor insuportável ao urinar. Depois começou a sair uma secreção do pênis. Fiquei apavorado e mostrei para minha mãe, que me levou ao posto de saúde, onde o médico me receitou o remédio apropriado. Tomei as injeções que ele prescreveu e fiquei curado.

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Lusa sempre pegava arroz ou feijão no bar, dentre outras coisas, sem pagar, por conta de nossa transa. Mais de dois anos depois, vim a saber que tinha ficado grávida de mim e abortado o filho, sob o argumento de que eu não teria condições de criar a criança e ela não queria assumir o bebê sozinha. Fiquei muito revoltado com este infeliz incidente, mas nunca a procurei para falar sobre o assunto. Teria sido o meu primeiro filho, que poderia estar hoje com vinte anos de idade.

No bar existiam duas mesas de sinuca. Como eu tinha a chave da gaveta, ficava o dia inteiro jogando de graça. Abria a gaveta por baixo e pegava as bolas, sem que o contador girasse e marcasse o número de partidas jogadas. Várias e várias vezes eu repetia a mesma operação, para preencher o tempo vazio, já que quase ninguém comprava no bar. O povo era muito pobre, dinheiro não sobrava nem sequer para comprar comida.

Margarete era uma das putas do Pau Ferro, filha de Dona Anabela e irmã de Yansã (a puta mais poderosa da área). Ela frequentava o bar onde eu trabalhava e, pelo contato constante, acabamos nos envolvendo sexual e sentimentalmente. Várias vezes ela dormia no bar comigo, e transávamos cerca de quatro a cinco vezes por dia. Acabamos tendo um caso e fomos morar juntos, na casa de minha mãe. Nessa época, eu andava psicologicamente muito abalado por causa da situação financeira da família. A depressão andava comigo e, diante da falta de expectativas, passei a atentar contra a própria vida, como no dia em que tomei um copo inteiro de aguardente Pitu, chegando em casa transtornado, e quando enchi um frasco de veneno e me dirigi ao posto médico do bairro vizinho. Lá, entrei no sanitário e tentei ingerir o veneno, mas me faltou coragem para concluir o ato. Deixei o veneno ali mesmo e voltei para casa. Num terceiro episódio, entretanto, acabei tomando veneno Baygon com cachaça e fui parar no hospital, onde permaneci internado por vários dias. A depressão e o medo de viver me sufocavam, fazendo-me planejar fugas mirabolantes do hospital. Deus estava presente em minha vida, através de amigos e familiares, e com o tempo o amor de todos eles foi me deixando mais confiante. Recuperei-me do susto de morrer,

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recuperei minha autoestima e fui vencendo aos poucos minhas paranoias.

Margarete passou a morar comigo, tornando meus dias menos amargos. Lembro que ela gostava muito de tomar café. Fazia um panelão de café e guardava; toda hora esquentava e tomava um gole. Era horrível o gosto de café requentado, mas ela gostava. Margarete tinha um problema no útero que a impedia de engravidar. E tinha também um bafo de onça: a boca fedia como um esgoto, mas eu fingia não perceber e nem reclamava. Seus dentes eram demasiadamente grandes, o que fez com que acabasse se tornando alvo de crítica de meus irmãos, que passaram a chamá-la de "barrão alvoroçado". Todos gozavam da cara dela, dentro de casa, inclusive eu. Pirraçávamos demais com a pobre. Não sei como ela aguentava tudo aquilo.

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Ainda no bairro Pau Ferro fomos morar numa casa localizada no final da rua João Rosa. Era um casebre, na verdade. Não tinha sanitário, somente uma "casinha" ridícula no quintal, que não era murado. Um pedaço de plástico funcionava como porta, e uma tábua com um furo no meio como vaso sanitário. A fossa embaixo da tábua fedia terrivelmente e em suas bordas se acumulavam muitos bichos de mosca. Era um lugar insuportável de se morar por causa do incômodo mau cheiro. Ao lado desse "sanitário", havia um tanque de água, no chão. O tanque nunca ficava cheio, era rachado. Enchíamos o tanque pela manhã, quando caía água, e a rachadura levava toda a água antes do meio-dia.

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Minha ex-sogra, Dona Anabela, mãe de Margarete, conhecia muita gente, pois trabalhava nas feiras livres da cidade e também no Matadouro Municipal, vendendo comida e mingau. Também já havia trabalhado, por muitos anos, em frente ao Frigorífico Sudoeste Bahiano

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S/A (Frisuba), vendendo bolo, café, mingau e outras iguarias. Assim, acabou fazendo amizade com muita gente que trabalhava ali, inclusive com o médico veterinário Valdelício Fontenelle, chefe do Serviço de Inspeção Federal que funcionava dentro do Frisuba, a quem me apresentou, pedindo-lhe que me arranjasse um emprego. O médico precisava de mais um auxiliar e acabou me indicando ao Frisuba, para ser contratado. Foi o meu primeiro emprego de carteira assinada. Era um emprego muito bom. Minha função, como um dos auxiliares do médico, era examinar as carnes e miúdos dos bovinos abatidos no frigorífico. Nossa equipe tinha destaque e era tratada com certas regalias que os demais funcionários não tinham: vestuário separado e lavado por conta do Frisuba, almoço em sala separada com cardápio diferenciado, fardamento diferente (com uma cruz verde no ombro esquerdo, que significava "auxiliar de médico" ou coisa parecida), acesso aos telefones, sala com máquina de escrever, frigobar, telefone e mesas de escritório. Toda essa regalia gerava uma certa inveja por parte dos demais funcionários da casa.

Éramos uma espécie de autoridade ali. Tínhamos autorização para jogar no incinerador todas as carnes ou miúdos bovinos contaminados por fezes, ou que apresentassem doenças. Os caminhões de carne vistoriada só podiam partir após serem lacrados com o selo de inspeção do SIF (Serviço de Inspeção Federal) e com o laudo atestando que aquele produto era apropriado para o consumo humano. Tínhamos também direito a um meio de transporte diferente do da "peãozada". Mas, como o frigorífico não comprava um veículo apropriado para o nosso uso, os cinco funcionários da Inspeção Federal invadiam a cabine do caminhão que levava os peões. O motorista reclamava que a polícia rodoviária podia multar, mas protestávamos e não saíamos da cabine.

O frigorífico ficava a uns dez quilômetros do centro da cidade. Todos os dias pegávamos um ônibus ou o caminhão da empresa às sete horas da manhã. Lembro-me que, certa vez, perdi tanto o caminhão quanto o ônibus, e acabei indo a pé para o trabalho. No caminho, o médico veterinário passou dirigindo o Fusca preto, de propriedade do

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governo federal, e me deu carona. Chegando atrasado ao trabalho, o porteiro não permitiu que eu batesse o ponto. Daí, o próprio médico foi à portaria, pegou e bateu meu cartão de ponto, por sua conta e risco.

Este foi o primeiro emprego de carteira assinada e o melhor que havia tido até então. O salário era muito bom; com ele pude comprar minha primeira televisão, fogão a gás e pagar em dia o aluguel da casa onde morávamos. E, apesar das dificuldades financeiras que enfrentava, ainda conseguia fazer uma economia de guerra, e juntar alguma grana para o caso de um futuro incerto. Resultado dessa economia e planejamento: acabei comprando um terreno no Loteamento Itaygara, no bairro Mandacaru.

Ali no Frisuba, tive uma colega de setor chamada Welma. Conversava muito com ela sobre minha vida e a situação que enfrentava. Quando lhe disse que não tinha televisão porque não poderia alugar uma casa equipada com instalações elétricas, ela me sugeriu comprar uma TV que pudesse ser alimentada por bateria de carro. Por coincidência, o irmão de Welma tinha uma TV em preto e branco, que funcionava tanto com energia elétrica quanto com bateria de carro. Não titubeei. Comprei a TV. Foi uma verdadeira festa em casa, pois dali em diante não necessitaríamos mais ficar nas casas dos vizinhos para assistir aos programas, às novelas e aos desenhos animados. O problema era que varávamos as noites assistindo televisão, e a bateria se esgotava em poucos dias. Além disso, havia o contratempo de ter que levar a bateria, na cabeça, até alguma oficina mecânica que nos fizesse a recarga gratuitamente. E, depois de recarregada, ainda tinha a segunda jornada: voltar para casa com o peso na cabeça, para vararmos novas noites assistindo à televisão. Nessas noitadas, comíamos todos os biscoitos e bebíamos todo o café que existissem na casa...

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Fomos morar num casebre localizado à rua Teixeira de Freitas, a rua mais pobre e feia do bairro. As casas que ficavam do lado direito

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tinham seus quintais virados para o corte que dava na antiga passagem da linha de trem. Nesse corte passavam os esgotos de todas as casas, que eram jogados ali. Aquilo exalava um cheiro insuportável e era foco de muitas doenças, além de servir de berço para nascimento e crescimento de muriçocas. Incomodado com tanta precariedade, resolvi fazer uma carta e mandar para a rádio local, que a divulgou num dos programas de maior audiência. O resultado não foi dos melhores: toda a rua se revoltou contra mim, a ponto de quererem até me bater. Achavam que tal iniciativa havia sido intromissão de minha parte e que eu não tinha o direito de enviar carta a rádio alguma, já que era o mais recente morador do bairro. Os moradores comentavam em voz alta, para que eu ouvisse, que "os incomodados tinham que se mudar e não ficar reclamando ou divulgando a situação precária do bairro".

Numa daquelas chuvas torrenciais que costumam cair na cidade, a parede da cozinha caiu dentro do corte. Minha mãe, temendo que a casa inteira viesse abaixo, resolveu sair à procura de outro local para morarmos. Havia uma casa numa transversal, que pertencia a um rapaz apelidado de Petisco. Como a casa estava fechada, minha mãe decidiu invadi-la. Fomos todos para a nova casa, muito mais bonita do que a outra. Tinha duas janelas que davam para a rua e o chão era cimentado em cor vermelha. Ao ser avisado da invasão, o dono da casa chegou trazendo a polícia para nos expulsar. Ficamos na casa dele até que a chuva passasse. Depois, voltamos para a casa antiga, por ordem da polícia.

Moramos também numa casa de adobões, localizada na travessa Teixeira de Freitas. A casa não tinha água encanada, nem piso de cimento. O chão era de barro batido, tinha dois quartos, uma sala e uma cozinha. O sanitário era uma casinha de adobes, com uma fossa fedorenta. O quintal era cercado de varas, e todos que passavam pela rua de trás podiam nos ver através da cerca.

Essa casa era de Dona Maria, mãe de Edilene e de Jonas. Acabei me apaixonando por Edilene, uma menina negra, magra e alta. Mas a paixão não passou de simples admiração, pois ela não me deu a menor

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bola e terminei por esquecê-la, apesar de Edilene ter me inspirado algumas poesias.

A essa altura, eu já assumia praticamente todas as despesas da casa. O salário que recebia já me possibilitava sobreviver com minha mãe e meus sete irmãos, e ainda dava para pagar o aluguel, a água e a energia elétrica. Passei a fazer um planejamento de compras para o mês inteiro.

Comprávamos uma caixa enorme de ovos, com mais ou menos umas 150 unidades, além de cevada, feijão, arroz e açúcar em grande quantidade. Depois dividíamos as mercadorias em pequenos pacotes para consumo diário. Não poderíamos comer mais de cinco ovos por dia, para que a comida durasse até o final do mês. Trancava tudo dentro de um pequeno armário e carregava a chave. Diariamente, eu o abria, pegava a "ração" do dia e entregava-a à minha mãe. Quira arrombava o armário pela parte de trás e pegava mais comida do que o estipulado para a "ração diária", e eu tinha conhecimento disso. Mas fingia não saber de nada. O problema era que, em certos meses, a comida acabava antes do previsto e eu tinha que conseguir dinheiro para comprar mais. A cevada era usada misturada ao pó de café, para que este durasse mais tempo. Tinha um gosto muito ruim, mas, apesar de eu também não gostar, fingia achá-la gostosa, para não ensejar reclamações por parte de meus irmãos. Com o tempo, todos foram se conscientizando que era melhor comer pouco mas comer todos os dias do que comer muito em um único dia e ficar com fome nos dias seguintes.

Nessa época, eu trabalhava no Frisuba e sempre trazia sobras de comida. A refeição era quase sempre à base de carne na empresa, e, como eu não conseguia comer tudo, levava o restante para casa. Além disso, meus colegas de trabalho também separavam parte da refeição deles e me davam. Tinha também as doações que o gerente de setor fazia: vez ou outra, ele separava úbere bovino ou fígado e distribuía entre os funcionários. Era o dia em que eu e minha família comíamos melhor, pois significava fartura em casa.

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Tem uma rua no bairro do Pau Ferro, cujo nome oficial é avenida Senhor do Bonfim. Há também nessa rua uma igreja católica de mesmo nome, dedicada ao santo. Acontece que, a partir da igreja, em direção ao atual presídio, a rua não era calçada, era cheia de lama e de esgoto. Este trecho era conhecido como "Rua da Bosta", por causa do mau cheiro e dos esgotos que corriam a céu aberto. E, mesmo depois de a rua passar a ter saneamento básico e calçamento de paralelepípedo, continuou a ser chamada pelo nome de "Rua da Bosta". Ali comprei um casebre de dois metros de largura por dois metros e meio de comprimento, colado ao muro do Parque de Exposições Luiz Braga. A casa era ridícula: baixinha, apertada, sal minando pelas paredes, chão arrombado e um quintal minúsculo. Era muito quente, por causa do sol que ficava no poente. Para minha felicidade, não cheguei a morar nessa casa. Comprei-a somente a título de investimento, depois revendi.

Estante com livros velhosEu colecionava livros, revistas, jornais e todo tipo de publicações

que encontrava nos lixos ou que alguém me doava. Mandei fazer um carimbo com os dizeres "Biblioteca Particular Valdeck Almeida de Jesus" para marcar todos os livros que possuía. Eram tantos que abarrotavam a imensa estante que tínhamos na sala. Muita gente me pedia livros emprestados, tanto para leitura como para trabalhos escolares. Com o tempo, fui doando os livros para a Biblioteca Municipal e para quem me pedisse. Quando nos mudamos do bairro Pau Ferro para o bairro Mandacaru, não havia espaço suficiente para guardar todos os livros na nova casa. Mandei, então, meus irmãos levarem uma boa quantidade de revistas e livros à Biblioteca Municipal para doação.

Até o ano de 2003, eu acreditava piamente que esses livros haviam sido realmente entregues. Mas, por ocasião de uma viagem que fiz a São Paulo, em 2004, em conversa com meus irmãos, onde falamos sobre mal-entendidos e pedimos desculpas uns aos outros pelo que pudéssemos ter

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feito de errado, fiquei sabendo de tudo. Confessaram que rasgaram e jogaram todos os livros e revistas de cima da ponte do Mandacaru. Foi um choque para mim, mas não havia muito o que fazer. O tempo já havia passado e meus irmãos já eram adultos. Não fazia sentido brigar por um deslize ocorrido tantos anos atrás. Já não tinha importância.

Casa própria - o sonho realizadoAinda morava na casa da travessa Teixeira de Freitas e trabalhava

no Frisuba. "Margarete, dente de barrão" continuava a visitar minha casa, embora não estivéssemos mais juntos como antes. Certo dia, vi o anúncio de um loteamento e fui visitá-lo pessoalmente. Era um bairro novo que começava a se formar à margem direita do rio de Contas: o loteamento Itaygara, no bairro Mandacaru. O vendedor, Bêu, convenceu-me de que se tratava de um ótimo investimento, que o bairro, em pouco tempo, seria habitado por muita gente, que teria praças, linhas de ônibus, telefone, água encanada e luz elétrica. Não fiquei muito animado, por causa do preço e também porque eu tinha medo de ficar desempregado e perder todo o dinheiro investido no pagamento do lote.

O vendedor, muito esperto, pensando apenas na comissão dele, que equivalia ao valor da primeira prestação, acabou virando o jogo e me vendendo o lote 12 da quadra 07. Comprei e voltei feliz da vida para casa. Ele tinha feito um plano de pagamento, de forma que as prestações fossem reajustadas a cada seis meses, de acordo com o aumento do salário mínimo, para não comprometer minha renda.

Mas o acaso me favoreceu ainda mais. Assim que José Sarney assumiu a Presidência da República, foi criada a "tablita", tabela que deflacionava os preços das compras realizadas antes de sua vigência. E assim acabei pagando várias parcelas do terreno de uma vez só, já que, a cada mês, o preço diminuía. Foi minha salvação. Esta medida garantiu-me adquirir a primeira propriedade, o terreno onde eu e meus irmãos construiríamos nossa primeira casa.

Tentei conseguir ferramentas emprestadas para construir a casa: picareta, enxada, formão e colher de pedreiro, mas ninguém emprestou.

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Tive que comprar todo o material necessário para as obras de construção. Todos os dias, eu ia trabalhar no Frisuba e meus irmãos saíam do Pau Ferro para o Mandacaru para limpar o terreno, carregar água do rio de Contas e bater adobes de barro. Isto significava uma maratona de mais de dez quilômetros, percorridos a pé, sob um sol escaldante de 40 graus ou mais. Era de dar pena, eles mal conseguiam carregar a picareta por causa do peso. Eu não podia ajudar todos os dias, pois só chegava do trabalho no final da tarde e, além disso, estudava à noite. Mas, nos finais de semana, eu ia sempre ao terreno ajudar na construção da casa. Fizemos tudo sozinhos, desde as fundações até a colocação das telhas. Todos os dias eu ou um de meus irmãos cavava a terra, cessava, buscava água no rio, fazia o barro, pisava o barro, batia os adobes e os deixava secando ao sol. No dia seguinte, retornávamos para continuar o trabalho e para recolher e arrumar os adobes prontos. Para nossa surpresa, verificávamos que muitos dos adobes eram pisados e destruídos por vândalos. Xingávamos muito, esbravejávamos, mas não podíamos fazer nada além de aproveitar o barro dos adobes destruídos para fazer novos adobes.

O processo de construção da casa foi bastante demorado, pois era eu quem comandava tudo e meu tempo era limitado somente aos finais de semana. Mas, de adobe em adobe, as paredes iam subindo, subindo... Até que, num belo dia, concluí a obra, após colocar porta (a única), janela (também única), madeiras e telhas no topo. Imediatamente, mudamos-nos para a "nossa" casinha.

Juizado de MenoresResolvi colocar todos os meus irmãos sob minha guarda e

responsabilidade, perante a justiça comum, a fim de cadastrá-los como meus dependentes no INSS e para que eles pudessem ter acesso a consultas médicas e internamentos. Aproveitei esta deixa para obrigá-los a serem mais responsáveis na vida e também nos empregos ou trabalhos que encontrassem. Todos eles sempre trabalharam, seja vendendo picolés, seja em olarias carregando adobinhos, seja limpando quintais

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ou, ainda, cortando e preparando papéis para cigarro de palha numa gráfica. Mas, por outro lado, sempre encontravam uma desculpa para sair do trabalho. Ora diziam que o patrão falou alto, ora diziam que não aguentavam a jornada, pretextos não faltavam.

Certo dia, chamei-os todos e dei uma ordem: teriam de sair para procurar trabalho e só poderiam voltar para almoçar caso encontrassem algum. Ao meio-dia, chegou o primeiro, Dida, o mais gaiato de todos, e pediu que minha mãe botasse seu almoço, e ela mandou que falasse comigo antes. Mas Dida insistiu para que colocasse sua comida, já que havia encontrado trabalho, juntamente com os demais. Minha mãe me chamou e eu conversei com Dida, que confirmou já estar trabalhando. Dizia ter muita fome, por causa do esforço, uma vez que o trabalho era numa oficina mecânica, como aprendiz de chapista ("martelinho", como se diz em São Paulo). Comentou também que, como aprendizes, só iriam receber salário depois de um determinado tempo. Falei então com minha mãe para servir o almoço de todos os meus irmãos.

Evidentemente, eu não os deixaria com fome, caso não houvessem encontrado trabalho. Mas precisava tomar aquela atitude para fazê-los "acordar" para a vida. Além da ameaça de ficarem sem almoço, havia ainda uma outra. Falei que entregaria todos ao Juizado de Menores (em Jequié existe uma Escola Profissional de Menores, onde residem crianças e adolescentes rebeldes e infratores), caso não trabalhassem e fugissem da responsabilidade. Graças a Deus, hoje todos ganham a vida como chapistas, exceto o Mi, que não se adaptou a esse tipo de trabalho e já trabalha há dez anos como porteiro de um grande condomínio em São Paulo.

Foram longos anos de trabalho até podermos entrar na casa e sorrirmos felizes por termos, enfim, onde morar. Uma casa própria, construída com as próprias mãos. Foi uma experiência muito boa, uma grande sensação de liberdade. Desde a infância, só havia morado em casas de aluguel e, finalmente, naquele momento, já com meus 22 ou 23 anos de idade, pude desfrutar da alegria de morar numa casa sem precisar me submeter às imposições de ninguém. A casinha media três

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metros de largura por seis de comprimento. Era bem baixinha e tinha somente dois cômodos. Posteriormente, dividimos a sala com uma meia parede e fizemos uma pequena cozinha. Assim, passamos a morar em nossa casinha, após entregarmos a casa de aluguel. Foi a primeira moradia a ser erguida e habitada no local. Nas águas do rio de Contas tomávamos nossos banhos. Morávamos minha mãe, eu, Quira, Mi, China, Dida, Tó, Gal e Nete. Depois que nasceu Murilo, meu primeiro sobrinho, filho de Quira com Chico, a casa, que já era pequena, ficou menor ainda. O calor era imenso e não havia ainda água encanada no bairro. Essas águas também serviam para lavar as roupas, as louças, e para beber e cozinhar, depois de devidamente fervidas e filtradas.

Com o passar do tempo, fui construindo outra casa maior, no mesmo terreno. Esta outra casa foi planejada com mais cuidado e tinha dois quartos, duas salas, uma cozinha e um banheiro. Os adobinhos cozidos foram comprados com muito sacrifício. Sempre que possível, comprava uma carroça de adobinhos de barro queimado, em cerâmica cozida. Acabei de construir a segunda casa e, quando ela estava já em ponto de telhado, negociei-a com Chico, meu cunhado. Ele me vendeu a casa onde morava com Quira e seus três filhos: Murilo, Rodrigo e Delma (ver capítulo "Casa da Rua João Santana").

Casamento com MárciaQuase em frente à nossa casa, morava uma moça chamada Márcia,

que era casada com Zé Docílio, com quem tinha uma filha chamada Bete. Márcia era muito bonita. Fazia um tipo cigana, era alta e do signo de Leão. Márcia flertava comigo, vivia me chamando para conversar e sair com ela. Saímos por várias vezes e então começamos a namorar. Depois, passei a dormir em sua casa, quando o marido viajava. Uma vez, dei uma surra em minha irmã Nete porque pedi a ela que levasse um recado a Márcia, dizendo que iríamos para a Barragem de Pedras tomar banho. Nete simplesmente andou até o meio da rua e deu o recado aos gritos. Fiquei muito envergonhado, pois nosso namoro ainda não era de conhecimento público e era de todo o meu interesse que continuasse

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secreto por mais algum tempo. Chamei Nete e dei-lhe uma surra que ela jamais esqueceu.

Acabei me casando com Márcia. Fizemos uma festinha na casa de meus sogros, Judite e Acetildes, após a cerimônia de casamento, realizada no Cartório de Paz de Yolanda Bastos. Várias fotos foram tiradas, mas como eu não tinha dinheiro para a revelação, nunca saíram do rolo de filme.

Fui morar com ela numa casinha do bairro Agarradinho. O bairro tinha esse nome porque as casas eram coladas umas às outras. Márcia ficava a noite inteira assistindo televisão. Ela ficava acordada a noite inteira para me chamar bem cedo, para poder pegar o ônibus que me levaria ao trabalho. Comprava quilos de milho para fazer pipoca. Comia pipoca a noite inteira diante da TV.

Na empresa Tiradentes, onde Zé Docílio, ex-marido de Márcia, trabalhava e onde eu passei a trabalhar como cobrador de ônibus, quando os motoristas souberam da notícia que eu estava casado com a mulher de Zé Docílio, a resenha comeu. Todos os dias eu tinha que aturar uma gozação do pessoal. Tinha um motorista, chamado Bastos, com o qual eu viajava muito fazendo a linha Jaguaquara-Maracás, que costumava dizer que eu tinha "olho de Sapo Boi" e que nunca deixaria que eu botasse os olhos em sua mulher, temendo que eu a atraísse para mim e ficasse com ela pra sempre. Em tom de escárnio, meus colegas de atividade perguntavam-me se, caso eu fosse escalado para trabalhar com Zé Docílio, viajaria com ele ou perderia o dia de trabalho. E eu dizia serenamente que trabalharia com ele sim. Felizmente nunca fui escalado para trabalhar junto com ele, e escapei de um constrangimento muito grande.

O casamento se arrastou nas dificuldades que eu enfrentava. Mesmo casado, ajudava a minha família. Três anos depois, terminei meu casamento com Márcia. Não sobrou uma lembrança sequer da festa de casamento, até o rolo do filme que não foi revelado ela abriu e queimou.

Muitos fatores contribuíram para o fim de nosso relacionamento, mas creio que o mais importante deles tem origem no seguinte fato:

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estava eu desempregado e viajei com ela para Salvador, a fim de procurar trabalho. Demos sorte. No mesmo dia em que chegamos à capital, compramos o jornal e respondemos a um anúncio que procurava um casal para tomar conta de uma mansão no rio Vermelho. Fomos direto para a Cardeal da Silva, onde ficava a mansão. Era uma casa imensa, com um quintal cheio de plantas frutíferas. Morava ali apenas um casal de idosos, cujos filhos estavam em Minas Gerais tentando lançar uma banda musical. O senhor era hipertenso e a senhora diabética. A alimentação dos dois era toda controlada pela dona da casa, que fazia questão de preparar a comida. O trabalho de Márcia seria manter a casa limpa. E eu teria que cuidar da piscina e do quintal. Toda a produção de frutas seria para o nosso consumo. Ficaríamos instalados numa casa nos fundos do quintal, toda mobiliada. Eu ganharia um salário mínimo e Márcia outro. As referências que dei de ter trabalhado no hotel de César Borges, em Jequié, foram suficientes para conseguirmos o trabalho. Acertamos tudo e ficamos de voltar no dia seguinte para trabalhar. Ao sairmos, já no portão da mansão, Márcia começou a resmungar que o salário não daria para sobreviver. Eu fiquei espantado com aquilo. Teríamos casa para morar, mobília completa e ainda dois salários para as nossas despesas. E ainda poderíamos continuar morando juntos, vivendo nossa vida de casados. Márcia dizia que seu salário seria para comprar brincos, chocolates e coisas de enfeitar, enquanto o meu seria destinado às despesas da casa. Revoltei-me e discuti feio com ela. Furioso, disse que iria à rodoviária comprar minha passagem de volta para Jequié e não mais voltaria a procurá-la. Ela não acreditou. Mas foi exatamente o que fiz: fui direto ao guichê da empresa de ônibus, comprei minha passagem e fui embora e nunca mais voltei pra ela.

Casa da Rua João SantanaEra uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, além de

uma pequena área de serviço, localizada no Jequiezinho. Paguei com o terreno do loteamento Itaygara e com a casinha de adobe cru que havia

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construído inicialmente, mais os adobinhos da casa maior, construída depois, ficando o restante para pagamento em prestações mensais. A única exigência imposta por Chico foi derrubar a casa grande e separar os adodinhos para ele, o que aceitei prontamente. Em poucos dias a casa estava derrubada e os adobinhos empilhados.

A nova casa tinha tudo: móveis, lençóis, panelas, pratos, colheres, tudo. Tinha até linha telefônica instalada. Passamos a morar ali logo e adoramos a nova residência, que nos dava muito conforto.

Quase um ano depois, comprei um casarão na mesma rua e todos se mudaram para a nova casa, exceto eu, que preferi ficar morando sozinho por um tempo. Mas meus irmãos, que tinham a chave da minha casa, sempre apareciam por lá para tomar banho e deixavam tudo sujo. Preferiam tomar banho lá porque o chuveiro era elétrico, luxo que não havia na casa em que moravam. Acabei logo com a festa deles, por causa da sujeira que faziam em meu banheiro.

Eles trabalhavam como chapistas em oficinas mecânicas e chegavam sempre muito sujos de graxa, óleo e poeira de oficina, deixando todo o banheiro encardido. Só que, a despeito do meu protesto, continuaram a usar o banheiro. Arrombavam a janela e entravam na casa, sem minha permissão, nos horários em que eu me encontrava ausente. Isso acabou resultando em algumas brigas. Dida e Tó discutiram feio comigo, e ficamos um ou dois meses sem nos falar, por conta disso. Depois fizemos as pazes, como é próprio dos bons irmãos.

Trabalho na empresa TiradentesMinha experiência como cobrador da Auto Viação Tiradentes foi

marcante e merece um capítulo especial. Eu fui contratado para trabalhar como cobrador urbano. Acontece que, no contrato de trabalho firmado com a empresa, não havia cláusula específica que rezasse que o funcionário admitido como cobrador "urbano" estivesse desobrigado de trabalhar como cobrador "intermunicipal". E isso foi o que mais

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atrapalhou minha vida escolar, pois os horários de trabalho nem sempre eram compatíveis com os horários da escola. Eu estudava à noite, das 19 às 22 horas, de segunda a sexta-feira. E, para complicar ainda mais, o chefe do tráfego, que fazia a escala de trabalho, sempre se "esquecia" que eu estudava à noite e me escalava frequentemente para trabalhar no horário das 14 às 23 horas. Mas eu conseguia driblar o tempo e as adversidades. Pegava os assuntos das aulas com meus colegas e estudava durante o trabalho, sentado na cadeira de cobrador. Estudava escondido, pois, se um cobrador fosse pego pelo fiscal fazendo esse tipo de coisa, era demitido. Quando era escalado para trabalhar nas linhas intermunicipais, o problema ficava ainda maior, pois tinha de dormir nas cidades de destino da viagem, sem falar na questão da hospedagem e alimentação, que não eram pagas pela empresa.

Eu tinha comprado uma bicicleta para facilitar meu descolamento para o trabalho e para a escola. Saía pedalando para a garagem nos dias em que a escala de trabalho me permitia ir à aula após o serviço. Por várias e várias vezes, quando chovia, chegava à escola todo sujo. A garagem da empresa ficava no bairro Mandacaru, onde a maioria das ruas ainda era de chão batido ou de cascalho. Quando chovia, tudo virava um lamaçal enorme, e o pneu da bicicleta respingava um bocado de lama em mim.

Toda vez que eu viajava, levava uma marmita de comida, que nem sempre chegava em bom estado ao final da viagem. Aí, além de passar a noite com fome, ainda tinha de dormir dentro do veículo, nas poltronas do fundo, que eram as menos desconfortáveis. Lembro-me de várias viagens para Barra da Estiva, em que dormi com fome e frio, porque a temperatura ali é sempre muito baixa, sobretudo à noite, devido à sua localização no alto da Chapada Diamantina. Uma vez, levei uma marmita que azedou durante a viagem. Ao pararmos em Maracás para fazer um lanche, comi todo o frasco de pimenta e a farinha que estavam sobre a mesa da lanchonete.

Cansei de dormir dentro do veículo nas cidades. Em Salvador, cheguei até a dormir dentro do bagageiro do ônibus, pois o calor era

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insuportável dentro do carro e as muriçocas faziam uma festa. Com o bagageiro aberto, pelo menos, a temperatura ficava mais agradável. De madrugada, o segurança da rodoviária me acordou, achando que eu era algum assaltante ou morador de rua. Tive que me identificar para que me deixasse em "paz". Em Manoel Vitorino, passava a noite morrendo de medo, pois o ônibus estralava demais, e eu acordava sobressaltado pensando que era alguém tentando entrar para roubar o dinheiro da féria. Em Cravolândia, cidade próxima a Santa Inês, cheguei a pedir comida a um cobrador que morava na cidade e viajava de carona voltando para casa. Em Iramaia, morria de frio e fome, ao dormir no veículo. Em Nazaré, havia uma pousada de preço compatível com meu salário, onde pernoitei algumas vezes. A linha fazia o trajeto de Jequié a Bom Despacho, mas o ônibus ia somente até Nazaré. Eu dormia e jantava na pousadinha, juntamente com o motorista. O problema era que ali os cobradores eram roubados durante a noite. Para me proteger dos ladrões, uma vez coloquei o dinheiro da féria embaixo do travesseiro. A estratégia foi em vão. Pela manhã, percebi que faltava quase metade do dinheiro, mas nada pude fazer, não havia como provar o roubo. Daquele dia em diante, resolvi deixar o dinheiro da féria escondido dentro de uma das poltronas do ônibus. Foi a solução encontrada para evitar os roubos.

Passei aperto também em Itaquara. O ônibus que rodava para aquela cidadezinha era o pior carro da frota e demorava o dobro do tempo para fazer a viagem. Quando chegava à cidade, o veículo era estacionado numa praça e o motorista ia para sua casa, sem sequer me convidar para tomar um copo de água. Não restava alternativa senão passar a noite inteira dentro do carro, esperando o dia amanhecer para retornar a Jequié.

Nas viagens a Valença, o ônibus retornava no mesmo dia. Saía de Jequié às 5 horas da madrugada, chegando a seu destino ao meio-dia. Ali eu tinha que varrer o interior do veículo, almoçar minha quentinha e esperar pelo horário do retorno, às 13 horas, com chegada em Jequié prevista para 21 horas aproximadamente. Ao chegar, ainda perdia um

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bom tempo prestando contas e, até sair da garagem, já não compensava mais ir à escola.

Quando eu trabalhava na linha Maracás-Jaguaquara, saía de Jequié pela manhã, por volta das 5 horas da madrugada, e fazia diversas vezes o percurso entre as duas cidades. Só retornava à garagem no final da tarde, lá pelas dezoito ou dezoito e trinta horas. Nesses dias, eu ia direto para a escola tentar pegar algum assunto dos cadernos dos colegas. Essa viagem era de percurso curto e o cobrador tinha de usar mais de cinquenta talões de passagens, cada um de uma cor. Era uma maluquice da cabeça do dono da empresa, Dalmar, com o objetivo de se precaver de fraudes por parte dos cobradores. Eu ficava mais atento às cores do talão que tinha de usar do que a qualquer outra coisa. Passava o dia inteiro tentando recapitular: agora é o talão azul, percurso de ida; agora é o talão rosa, percurso de volta, e assim por diante.

Quando trabalhava nas linhas urbanas, no horário da manhã (das 6 às 14 horas), sempre prestava contas no escritório da empresa, ao retornarmos à garagem. Mas quando trabalhávamos no horário da tarde (das 14 às 23 horas), contávamos o dinheiro, preenchíamos um formulário e colocávamos tudo dentro de um malote, que era fechado com um cadeado. Jogávamos esse malote num buraco que dava para a tesouraria e levávamos a chave do cadeado para casa. No dia seguinte, o cobrador entregava a chave a um funcionário da tesouraria, que abria o malote, conferia o dinheiro e fazia a prestação de contas do cobrador. Quando o cobrador estava escalado para viajar de madrugada, tinha que deixar a chave amarrada ao malote. Muitas vezes faltava dinheiro nesses malotes, e a diferença era debitada na conta de cada cobrador. Sempre desconfiei que alguém mais possuía cópias dessas chaves e tirava o dinheiro durante a noite. Mas, como sempre, nunca podíamos comprovar nada.

Uma vez, um cobrador amigo meu colocou dentro do malote uma nota de mil cruzados novos, e a nota simplesmente desapareceu. Fui testemunha de que ele tinha colocado a cédula lá dentro, pois foi a primeira nota de mil cruzados novos que ele recebeu e nenhum outro

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cobrador havia recebido uma dessas antes. Ele havia mostrado a cédula a todos os colegas do turno da noite, na hora da prestação de contas na garagem. Era uma nota diferente e todo mundo ficou curioso pra ver. E eu acompanhei a prestação de contas dele. O sumiço de dinheiro acontecia também com os cobradores que trabalhavam nas linhas intermunicipais.

Com os cobradores dos ônibus urbanos, acontecia ainda um outro fato estranho: toda noite, ao sair do veículo, antes de prestar contas, cada cobrador anotava a numeração da catraca, que indicava a quantidade de passageiros do seu turno de trabalho, a fim de calcular a quantidade de dinheiro apurada. No dia seguinte, quando o conferente fazia a verificação, a numeração das catracas nunca coincidia com a numeração que o cobrador tinha anotado na noite anterior. Ou seja, alguém girava a catraca várias vezes, a fim de que o cobrador pagasse as passagens extras.

Havia uma linha que rodava do Parque de Exposições até a Rodoviária. Mas o final dessa linha não era exatamente na rodoviária, e sim dois pontos adiante. Alguns passageiros iam para o Parque de Exposições e tomavam o ônibus em um dos pontos que ficavam antes do final de linha na Rodoviária. Dalmar, o dono da empresa, queria que evitássemos pegar passageiros nessas condições, e instruiu-nos a orientá-los para tomarem o ônibus quando este estivesse retornando. Uma vez, um determinado passageiro se recusou a descer do ônibus; pagou a passagem e sentou-se. Dalmar vinha seguindo o ônibus, de carro, passou à sua frente, obrigou o motorista a parar, entrou e rodou a catraca, para que eu pagasse a passagem extra do passageiro. O passageiro protestou, mas Dalmar explicou que o cobrador - eu, no caso - era quem pagaria a passagem.

As linhas intermunicipais da empresa Tiradentes faziam, em sua maioria, trajetos para cidades distantes, cujo acesso era por estradas de chão, que atravessavam o sertão. Por esta razão, era muito comum um pneu furar. Nessas oportunidades, a melhor opção era fazer o "furo" na primeira borracharia encontrada naquele deserto. Mas para o dono da

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empresa o preço cobrado pelo conserto do pneu furado era sempre muito caro: cinquenta centavos. Quando trazíamos as notas fiscais, ele se recusava a dar o "visto", para que o valor não fosse ressarcido ao cobrador. Cheguei a acumular mais de dez notas fiscais. Toda vez que encontrava Dalmar na garagem da empresa, ele alegava que só poderia tratar daquele tipo de assunto em seu escritório, que ficava no interior da garagem. E quando eu conseguia entrar no escritório, após horas de espera, Dalmar dizia que só poderia atender dentro da garagem. Eu ficava num bate-e-volta sem fim.

Acabei colocando um fim nessa novela, à minha maneira. Numa viagem para Valença, num sábado, com o ônibus cheio de vendedores ambulantes, tive a chance de me vingar. O pneu do carro furou na cidade de Mutuípe e o motorista parou o carro numa borracharia na saída da cidade. Eu não paguei para fazer a "força". E o motorista falou para os passageiros que o ônibus não seguiria viagem enquanto eu não pagasse pelo serviço. Contei minha versão para os passageiros, que me apoiaram e disseram que, se o ônibus não seguisse viagem, eles iriam quebrar o carro. O motorista ligou para a garagem e de lá ordenaram que eu pagasse pelo "furo" do pneu. Não paguei. O motorista pagou do próprio bolso.

Ao retornar para a garagem, meu nome não constava na escala de serviço e sim indicado para "comparecer ao escritório" e falar com o gerente. Perdi meu dia de trabalho. Informei ao gerente que não havia pago nem pagaria mais por "furos" de pneus de ônibus, já que o proprietário da empresa não havia me ressarcido pelas notas fiscais anteriores.

Voltei ao trabalho e, no dia seguinte, fui interceptado pelo Sr. Dalmar, no meio da rua, que se referiu a mim como "o cobrador que não paga os ‘furos’ dos pneus". Falei a ele que não só não havia pago como não pagaria nunca mais, até que ele assinasse todas as notas fiscais que eu acumulara. Ele retrucou, dizendo que era muito caro uma força de pneu por cinquenta centavos, etc. e tal. Respondi-lhe que era impossível escolher onde levar o pneu para conserto, uma vez que no meio do

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deserto não dispúnhamos de muitas opções. Ele então pegou todas as notas e assinou. Daquele dia em diante, voltei a pagar por todos os outros "furos" de pneus, e ele passou a assinar as notas sem hesitar.

Parecia haver uma combinação entre certos motoristas e a fiscalização da empresa para induzir os cobradores a fraudarem os talões de passagem, de modo que obtivessem vantagens pessoais destinadas a cobrir almoços e diárias de hotel nas cidades onde dormissem. Mas comigo o truque nunca funcionou, sempre recusei essas investidas. Não era difícil perceber que se tratava de "armação", pois os motoristas ditos "durões" e mais fiéis à empresa eram os que davam as melhores dicas de como roubar. E, para confirmar minhas suspeitas, sempre havia fiscais na estrada quando eu viajava com esses motoristas. Era como se fosse um ardil, uma cilada preparada para me pegar em contradição ou, como se diz popularmente, "com a boca na botija". A política da empresa era a de demissão por justa causa, e a gerência fazia de tudo para que os funcionários acumulassem advertências e suspensões até o limite legal, a fim de chantageá-los com o pedido de demissão voluntária ou forçada, esquivando-se assim de pagar os direitos trabalhistas. Jamais algum fiscal conseguiu me pegar cometendo erros, pois sempre fui muito correto em meu trabalho. Mesmo que a situação me obrigasse a sentir fome e a dormir dentro dos ônibus, nunca me vali dessas prerrogativas para lesar a empresa.

Testemunhei episódios engraçados como cobrador. Um, particularmente, merece ser contado aqui. Uma vez entraram dois passageiros, cada qual com um balaio enorme. Todos os passageiros tinham direito a um volume no bagageiro do ônibus, sem pagar taxa alguma por isso. Coloquei esses dois balaios no mesmo bagageiro, para ocupar menos espaço. Quando o fiscal viu que os dois balaios estavam com o tíquete "gratuito", achou que eu tivesse recebido pagamento por um dos balaios, que havia colocado aquele tíquete para embolsar o dinheiro e não vender o tíquete "pago". Entrou no ônibus e perguntou de quem eram os balaios. Cada um dos respectivos donos levantou a mão. Muito sem graça, o fiscal foi embora. Era comum que os fiscais

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aparecessem várias vezes no mesmo dia, para tentar surpreender o cobrador. Comigo sempre perderam seu tempo.

João, o controlador de tráfego da empresa, era quem fazia a escala de trabalho. Ele sabia que eu estudava à noite e que não poderia ficar fazendo viagens intermunicipais. Ainda mais porque a empresa não fornecia tíquete refeição nem providenciava local para dormidas nas cidades de destino. Eu era tido como o cobrador mais chato da empresa, pois me mostrava inconformado com aquela situação desumana, e não guardava este inconformismo somente para mim. Abria o verbo, falava com os outros cobradores, reclamava com os fiscais, com o gerente e com o controlador de tráfego, apesar de nunca ter tido um retorno ou uma solução.

Um belo dia, numa sexta-feira, quando acabava de chegar da viagem e prestar contas na tesouraria, fui informado que um ônibus da linha Jequié-São Miguel das Matas, percurso de cerca de 150 km, estava prestes a sair, com previsão de ficar naquela cidade todo o final de semana, retornando somente na segunda-feira. O gerente da empresa me disse que o cobrador do horário tinha "queimado a escala". "Queimar escala" era uma gíria usada para designar a falta do funcionário escalado para um determinado serviço. E, como nesse dia não havia cobrador de plantão na garagem, a solução óbvia seria: eu viajar com fome, permanecer todo o final de semana em São Miguel e retornar na segunda-feira. Aproveitei aquela oportunidade para protestar. Disse a João, o controlador de tráfego, que não iria viajar. Ele ameaçou me demitir ou me colocar "fora de escala" durante todo o final de semana, o que significaria perder o salário daqueles dias. Disse-lhe que fizesse o que achasse melhor, em sua opinião. Ele veio então tentar me convencer a fazer a viagem, dizendo que eu poderia ter almoço e jantar durante o serviço, que autorizaria as notas fiscais e tudo mais. Mas, desconfiado, recusei, pois em outras oportunidades já havia trazido notas que ele nunca assinou. O máximo que me propus a fazer pela empresa foi ir até a rodoviária e sair com o ônibus de lá, para evitar que o então Departamento Estadual de Transportes e Terminais multasse a empresa

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por atraso na saída do veículo. Ali, pedi ao motorista que levasse o carro para a garagem, dizendo que João providenciaria um outro cobrador para seguir viagem. Na garagem, desci do ônibus, sentei-me à porta da entrada principal e não mais voltei ao veículo para seguir viagem.

Estava determinado a dar uma lição na empresa. Minha atitude deve ter ficado para a história da Auto Viação Tiradentes e para seu proprietário, Dalmar Antônio de Souza.

Numa das viagens que fiz para Nazaré, conversava com um passageiro a respeito da forma como a empresa tratava seus funcionários. Ele então me aconselhou a pedir demissão e tentar ganhar a vida em Rondônia.

Peguei todos os seus endereços, inclusive telefones de contato, e guardei. Ele estava indo a Nazaré comprar material para candomblé e fazer consultas com os pais e mães de santo da cidade. Depois dessa conversa, eu já tinha tudo planejado para viajar para Rondônia; sabia, inclusive, todo o roteiro que deveria fazer: de Jequié iria até Feira de Santana para pegar um ônibus até Brasília, de onde pegaria um outro para Cuiabá, e outro de Cuiabá para Rondônia. Ao chegar lá, tomaria um táxi na rodoviária e seguiria direto para a casa da pessoa que o passageiro me indicara, que me apresentaria ao prefeito da cidade e conseguiria trabalho para mim.

Cansado de suportar o massacre que a empresa promovia contra seus funcionários, resolvi pedir demissão. Dirigi-me ao gerente geral, Édson, e comuniquei-lhe que não pretendia mais continuar na empresa. Ele me aconselhou a procurar o dono da empresa, Dalmar, para resolver a questão. Fiquei quase uma semana indo e voltando da empresa, todos os dias, tentando uma "audiência" com a "Majestade", em vão. Quando vi que não conseguiria falar com ele, decidi abandonar o trabalho. Fiquei um mês sem comparecer ao batente. Quando voltei e reencontrei o gerente, ouvi dele que a empresa não tinha mais interesse em meus serviços e que iria me despedir, mas que eu teria de escrever uma carta pedindo demissão. Não titubeei e escrevi a tal carta, sem me importar muito com o fato de que perderia parte dos meus direitos trabalhistas

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com este procedimento. Entreguei a carta ao gerente no dia seguinte, e nesse mesmo dia fui demitido. Era a minha redenção para uma nova vida. Meus planos de ir para Rondônia ainda estavam de pé. Já havia começado a preparar as sacolas para a viagem.

Antes, porém, de viajar para tão longe, resolvi tentar a sorte em Salvador. Ao sair da empresa de ônibus, acompanhei meu irmão Valmir, que estava trabalhando numa serraria em Salvador, junto com meu ex-sogro Acetildes, pai de Márcia. Quando cheguei à serraria, localizada nas proximidades do aeroporto da cidade, percebi que aquele tipo de trabalho não era para mim. Para minha sorte, no dia em que comecei a trabalhar, a serraria estava sendo transferida para outro local, as madeiras e as máquinas estavam sendo levadas de caminhão. O que vi foi o suficiente para me convencer de que aquele não era, definitivamente, o tipo de trabalho mais adequado para o meu porte físico. Tentei ajudar na mudança, pegando algumas madeiras, mas acabei desistindo, com as mãos sangrando e o corpo suado e trêmulo de fraqueza. Na hora em que o pessoal pegava as máquinas e as colocava sobre o caminhão, eu fingia que ajudava. Quando senti que não aguentava mais o serviço, parei, peguei minhas coisas e voltei para o interior. Mesmo desempregado e com promessa de emprego certo em Rondônia, fui adiando um pouco a viagem. E, nesse meio tempo, consegui trabalho no Hotel Itajubá, onde trabalhei por três meses como recepcionista. O hotel é de propriedade de Waldomiro Borges, pai de César Borges, ex-governador da Bahia e atual senador da República. Não me adaptei muito bem ao horário de trabalho, que ia das 22 às 7 horas da manhã. Quase não conseguia dormir ao chegar em casa, pois, além de não gostar de dormir durante o dia, o calor era insuportável. Ligava um ventilador pequeno, mas, mesmo assim, o sono não vinha. Além disso, meus irmãos e minha mãe conversavam alto o tempo todo, impedindo que eu relaxasse.

Certa vez, um casal hospedou-se no hotel somente por uma noite. Na opinião do gerente, teria sido uma artimanha para usarem o estabelecimento como motel. Fui demitido por ter autorizado a entrada

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do casal - como se eu pudesse adivinhar o que as pessoas iriam fazer dentro de um quarto de hotel. Segundo o gerente, aquele "hóspede" já era conhecido no hotel por tal prática, tendo ali se hospedado, em outras ocasiões, com a mesma finalidade. Por esse motivo, o gerente achou por bem me despedir sem justa causa.

Mais do que nunca o meu projeto de ir para Rondônia continuou de pé, quando fiquei sabendo de um concurso para o Tribunal Regional do Trabalho. Frequentava diariamente a Biblioteca Pública de Jequié e gostava muito de ler jornais. Lia todas as reportagens e todas as notas. Preferia pegar o jornal do dia anterior, para evitar a fila de pessoas querendo ler o jornal do dia e também porque não gostava de lê-lo rapidamente, para poder passar o jornal à próxima pessoa. Já quanto aos jornais de um ou dois dias atrás, quase ninguém ligava. Pois foi num desses que vi a notinha, bem pequena, a respeito do concurso, que despertou meu interesse.

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EM BUSCA DE UM LUGAR AO SOL

Fiquei interessado em participar do concurso. Seria o primeiro de minha vida. Procurei informações por toda a cidade, em todos os órgãos públicos, mas ninguém sabia dizer nada a respeito. Quando já faltavam dois dias para o encerramento das inscrições, que tinham começado no dia 11 e se encerrariam no dia 17 de outubro de 1989, descobri um último destino e resolvi ir diretamente até a sede da Justiça do Trabalho.

Fui atendido no balcão por uma moça, que mais tarde viria a se tornar minha melhor amiga: Teresinha. Ela me mostrou um cartaz na entrada da Vara do Trabalho, onde constavam informações sobre o concurso. O cartaz informava haver apenas UMA vaga para a cidade de Jequié, e que a vaga era para o cargo de Auxiliar Operacional - Serviço de Limpeza. Nem ali consegui uma cópia do edital que havia sido publicado no Diário Oficial da União. Teresinha me falou que as inscrições estavam sendo feitas no Banco Econômico (Banco Bilbao Vizcaya, atualmente do grupo Bradesco). Fui até lá, onde, por coincidência, eu tinha uma conta poupança, na qual estavam depositados cinquenta cruzados novos. Mantinha essa poupança como reserva para o caso de qualquer emergência e para a minha viagem a Rondônia, que estava sendo meticulosamente planejada. No banco, havia apenas um caixa destinado às inscrições, e lá a atendente me entregou uma cópia do Edital do Concurso, sublinhando o cargo "Auxiliar Operacional - Área de Limpeza" no documento e esclarecendo que havia apenas UMA VAGA para Jequié. Fiquei surpreso e triste, pois investiria quase todo o meu dinheiro numa aventura da qual não sabia se sairia vitorioso. Na verdade, a inscrição me custou quarenta e três cruzados novos e noventa e sete centavos. Mas valia a pena arriscar, pois o salário inicial correspondia a 12 BTN - Bônus do Tesouro Nacional, do qual já perdi a referência, mas que equivalia a vários salários mínimos da época. A moça do caixa ficou impaciente com minha indecisão. Sugeriu-me ler o edital com atenção e, caso me decidisse pela inscrição, que a chamasse novamente. Li e reli o edital várias vezes e percebi que havia muitas

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vagas para Salvador e fiquei tentado, mas resolvi arriscar e me inscrever para a única vaga oferecida em Jequié. Retirei todo o dinheiro da conta de poupança e paguei a inscrição. Dali em diante, comecei a estudar arduamente e a me preparar para as provas, que seriam realizadas na cidade de Vitória da Conquista. Não parava nem para almoçar. Debruçado sobre os livros, eu comia, estudava, escrevia, tentando me preparar da melhor forma possível para o grande dia das provas.

Viagem marcada, eu fui para a rodoviária levando comigo meus irmãos Dida e Tó, que queriam conhecer a cidade de Vitória da Conquista. Carregava uma lata de leite Ninho, cheia de farofa de feijão, que seria a nossa refeição durante a viagem. Ao chegar à rodoviária de Jequié, encontrei muita gente conhecida, que também iria fazer a mesma prova. Fiquei desanimado com a concorrência, mas não desisti. Muitas dessas pessoas portavam apostilas enormes, que liam e reliam, passando questionários. Aí, sim, foi que comecei realmente a acreditar que não teria muita chance. O máximo que havia feito fora estudar por conta própria em livros velhos, de primeiro e segundo graus, que não tinham muito a ver com os assuntos daquelas apostilas sofisticadas.

Chegando a Vitória da Conquista, fiquei com meus irmãos na rodoviária da cidade, pois não tinha como pagar por uma pousada ou hotel. À noite, o frio era insuportável e não conseguíamos dormir deitados naqueles bancos de cimento da rodoviária.

Já bem tarde, um motorista da empresa Gontijo, ao nos ver ali deitados, perguntou se esperávamos por algum ônibus com destino a outra cidade. Respondi negativamente, explicando-lhe que estávamos ali porque eu deveria me submeter a um concurso público no dia seguinte. E ele, generosamente, ofereceu-nos um ônibus para pernoitarmos. Pediu apenas que não ficássemos no veículo até o dia amanhecer, pois, se o fiscal da empresa soubesse que ele, motorista, tinha permitido que estranhos dormissem no ônibus, acabaria lhe aplicando uma advertência ou uma suspensão. E assim fizemos.

Antes do amanhecer eu e meus irmãos saímos do ônibus e fomos até a escola pública onde as provas seriam aplicadas - Escola Comercial

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Edvaldo Flores, localizada à Rua Siqueira Campos, s/n°, Centro. Ao chegarmos lá, preferi me manter afastado da escola, com vergonha das pessoas que me conheciam. Comemos a farofa de feijão e jogamos a lata no lixo. Depois que todos os concorrentes entraram, eu me aproximei e fui direto para a sala de provas. Terminei a prova e saí antes dos demais, com medo que algum conhecido me visse. Minha preocupação era que, sendo conhecido como aluno CDF na cidade, iria morrer de vergonha se alguém, porventura, viesse a saber que fiz o concurso e não passei.

Aguardei o resultado, que seria publicado no Diário Oficial do Estado. Durante várias semanas eu compareci à Vara do Trabalho em busca de informações sobre o resultado do concurso, mas a resposta era sempre a mesma: que o Diário Oficial ainda não havia chegado. Em uma das vezes, aconselharam-me a ligar para a sede do TRT, em Salvador, a fim de obter a informação desejada. Liguei para o setor de pessoal do TRT e fui informado que na lista dos aprovados havia DOIS candidatos de nome Valdeck. Um em primeiro e outro em segundo lugar, mas não me confirmaram se eu era o primeiro ou o segundo colocado. Aguardei mais alguns dias e retornei à Vara do Trabalho, para saber da chegada do Diário Oficial, não obtendo sucesso na minha empreitada. A ansiedade pelo resultado do concurso não me permitia ficar parado. Assim, ocorreu-me viajar para Salvador, a fim de obter informações mais detalhadas. E foi exatamente o que fiz.

Não tinha dinheiro para pagar as passagens de ida e volta. Precisava obtê-lo urgentemente, de alguma forma. Lembro-me que Ednaldo, um vendedor ambulante, foi à minha casa numa quarta-feira e que viajei na sexta para Salvador, a fim de lutar pela vaga de trabalho. Nessa época, minha mãe começava a se entrosar com o pessoal da prefeitura municipal e me prometeu que tentaria conseguir as passagens. Ela foi várias vezes à prefeitura, até que, na última tentativa, na sexta-feira, conseguiu o que queria.

Andando com ajuda de muletas, ao chegar perto do prédio, viu a pessoa que ela conhecia já dentro de seu carro, preparando-se para sair. Fez-lhe um sinal tentando dizer que queria conversar com ela. A pessoa

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então voltou, abriu a prefeitura e lhe deu uma carta, na qual solicitava ao gerente da empresa Auto Viação Camurugipe que fornecesse as passagens. Nesse mesmo dia, fui à estação rodoviária, mas o atendente me disse que aquela carta não tinha valor algum sem a assinatura do gerente geral da empresa. Corri até a sede da empresa de ônibus e implorei ao gerente para dar o "visto" na carta. Finalmente, com o seu aval, voltei à rodoviária e pude retirar as passagens.

A viagem foi muito tensa. Estava nervoso e preocupado com o resultado de todo o meu esforço, e não tinha a mínima ideia de como seria o desfecho. Chegando a Salvador, fui direto ao TRT, no bairro Nazaré. Conversei com pessoas do Setor de Pessoal, que me aconselharam a aguardar a Diretora Geral, por quem esperei o dia inteiro, até conseguir falar-lhe. Tudo resolvido no final. Aliviado e contente, voltei para Jequié com um ofício para me apresentar ao trabalho. Tomei posse no dia 25 de janeiro de 1990, na Vara do Trabalho de Jequié, onde permaneci trabalhando por aproximadamente três anos. Essa data, que já era muito especial para mim, por causa do aniversário de minha mãe, se tornou ainda mais importante, por ser o dia em que tomei posse no trabalho.

Como fiz o concurso para um cargo no Serviço de Limpeza, minha rotina ali era limpar o chão, servir café e suco, lavar os copos e pratos, encerar o piso de taco, varrer as imediações do prédio, jogar o lixo nos tonéis, limpar as mesas sujas com tinta azul de carimbos, varrer as cascas de amendoins torrados que o povo jogava no piso de mármore branco, limpar e podar as plantas na frente do prédio, limpar as folhas que caíam das árvores no quintal, limpar o sanitário público, limpar o sanitário dos funcionários e o do juiz, limpar a placa de bronze com o brasão da República com palha de aço e outras tarefas afins.

Como o prédio era pequeno, eu conseguia fazer todo o serviço até meio-dia. No tempo que sobrava, ia ajudar o pessoal da secretaria nos serviços de escritório, como colar AR (aviso de recebimento do correio), arquivar e protocolar processos, juntar e protocolar petições, preparar despachos, fazer notificações, emitir as listas de correspondências para

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envio ao correio, comprar vales-transporte para os funcionários, fazer cargas de processos, emitir certidões negativas ou positivas, datilografar ofícios diversos, fazer autuação de processos, expedir cartas precatórias e outras atividades correlatas.

Nessa época, também substituía os funcionários que saíam de férias, de licença médica, licença-maternidade ou impedidos de trabalhar por qualquer outro motivo. Fui Oficial de Justiça ad hoc por um mês, substituí o diretor, secretário de audiências e todos os demais funcionários, em várias oportunidades. Só não substituí o juiz.

O Tribunal começou a informatizar todas as unidades da capital e do interior. Para Jequié foi enviado um terminal remoto de computador, que se resumia a um monitor de tela verde, interligado ao computador central, localizado em Salvador, através de uma linha telefônica. Depois da instalação, uma equipe de técnicos foi até a cidade para ensinar os usuários a utilizá-lo. Por ironia do destino, o terminal quebrou no primeiro dia. No segundo dia, faltou energia elétrica. Somente no terceiro dia, um domingo, os técnicos conseguiram passar as instruções. Passei o domingo inteiro com a equipe da Secretaria de Planejamento e Informática; anotei tudo o que ouvia, perguntei o que foi possível e tirei centenas de dúvidas. Tornei-me um expert no assunto e fiquei incumbido de repassar as informações para os demais funcionários.

Eu já trabalhava ali há alguns meses quando chegou uma funcionária transferida de Brasília: Mônica Barroso. Era casada com um holandês de nome Peter, que não era naturalizado brasileiro e trabalhava como engenheiro na fazenda Serra da Pipoca, do grupo Paes Mendonça. Mônica tornou-se uma grande amiga, sempre conversávamos muito. Visitava-a com frequência e, quando ela viajava para o Rio, sua cidade natal, deixava sua casa sob minha responsabilidade. Nesses dias em que eu me instalava na casa de Mônica, recebia visitas de meus irmãos, que acabavam ficando por lá. A casa era muito confortável. Mônica deixava sempre muita comida e bebida na geladeira e dizia que eu poderia consumir tudo durante sua ausência. Meus irmãos faziam

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uma festa. Lembro-me de uma vez em que eles comeram tanto milho verde em conserva que ficaram doentes por mais de uma semana.

Mônica tinha um notebook, no qual digitava muitas sentenças dos juízes substitutos que passavam pela Vara. Ela me ensinou a utilizar o computador pessoal dela; foi minha primeira oportunidade de acesso a um computador de verdade.

Em uma das inúmeras viagens que Mônica fez ao Rio de Janeiro, ousei pegar seu carro emprestado, sem ao menos saber dirigir. Tive muita sorte de não ter me envolvido em nenhum acidente. Fui da casa dela até a minha com o carro. Convidei a família inteira para dar um passeio pela cidade. No final da aventura, penei para recolocar o carro na garagem, cujo acesso era bastante complicado. Quando Mônica voltou de viagem, descobriu que eu tinha saído com o veículo; eu tinha mudado a posição do banco do motorista e ela percebeu. Pedi desculpas e ela disse que não se importava. Mas, desse dia em diante, passou a não mais deixar as chaves do carro acessíveis durante suas viagens.

O trabalho era muito bom, a equipe de funcionários era maravilhosa, mas eu queria mudar para outra cidade, tentar fazer um curso universitário e também mudar de função. Consegui remoção para Ilhéus, mas na última hora desisti, após receber um telefonema do serviço de pessoal informando-me que a transferência implicava que eu continuasse a executar os serviços de limpeza, por determinação do Presidente José Joaquim. Já havia me acostumado ao tipo de serviço que vinha prestando na Vara e não queria mais voltar a fazer limpeza. Por esta razão, desisti da remoção para Ilhéus. Além do mais, notei que os funcionários que tinham prestado concurso para outras áreas estavam sendo nomeados para a secretaria, o que eu achava um absurdo.

Por intermédio de uma diretora que foi trabalhar na Vara de Jequié, Alice Lopes, consegui uma função gratificada de Secretário de Audiências na recém-instalada Vara do Trabalho de Brumado, em 1993. Mas, antes de aceitar a nova função, fiz uma visita ao local e acabei desistindo de morar lá. A cidade era muito pequena e não oferecia muitas perspectivas para que eu pudesse estudar ou crescer ali. Mais

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uma vez, continuei mesmo em Jequié, onde prestei vestibular para Enfermagem, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e comecei a cursar.

Adorava o curso de Enfermagem, bem como os colegas, os professores, tudo. Apesar de ter de manipular ossos e cadáveres humanos de vez em quando e de o curso envolver uma boa base em Química, conseguia acompanhar bem o ritmo das aulas. Tudo ia muito bem, até que um dia comecei a sentir fortes dores na barriga, que culminaram numa cirurgia e na consequente interrupção do curso.

Passei dois dias sentindo muitas dores na barriga. Suava barbaramente e não parava de ir ao sanitário. Minha mãe preparava-me uma infinidade de chás, que de nada, ou quase nada, adiantavam. Achei por bem então tentar conseguir uma ficha para atendimento médico. Após dormir a noite inteira na calçada do posto médico do INSS, o clínico me atendeu e solicitou exames de sangue e raios-X com contraste, para verificar a causa do caroço enorme que ele detectara no meu intestino. Mais de seis meses levei tentando realizar o exame de raios-X. Sempre que chegava o dia agendado, o exame tinha de ser remarcado porque o radiologista não tinha ido trabalhar, ou a máquina de raios-X estava quebrada, ou faltava o material de contraste.

Para aliviar as dores e por uma questão de precaução, além do medo de morrer, não parei de tomar antibiótico por conta própria, enquanto aguardava uma solução. Finalmente, após longos seis meses de espera, consegui fazer o exame. Mas ainda teria de esperar mais uns dois meses pelo resultado com o laudo do radiologista. Tão logo me vi com o material nas mãos, levei-o a um outro médico clínico, que me aconselhou a procurar uma cidade de grande porte, como São Paulo ou Rio de Janeiro, a fim de me submeter a uma cirurgia para extrair um provável tumor cancerígeno do intestino, segundo sua opinião. Fiquei apavorado e com medo de morrer. Acabei fazendo a cirurgia em Jequié mesmo, na Clínica Santa Helena, tendo por equipe de cirurgiões a Dra. Josefina e o Dr. Diniz, seu esposo. Antes de me internar, porém, resolvi

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passar um final de semana em Ilhéus, a fim de espairecer e tomar mais coragem para encarar uma cirurgia daquele porte.

Tranquei o curso de enfermagem, do qual acabei desistindo após a cirurgia, por não me achar em condições de acompanhar o ritmo da turma. O material retirado na cirurgia (cerca de trinta centímetros de intestino delgado, intestino grosso e cólon) foi enviado para biópsia ao Hospital Santa Izabel, em Salvador. Alguns meses depois, recebi o resultado do exame confirmando que se tratava apenas de uma apendicite aguda em regressão. A médica disse que eu tinha acertado sozinho numa loteria de milhões, já que a suspeita de câncer não tinha se confirmado.

Nessa oportunidade, recebi apenas a visita de um único amigo. Todos os outros que saíam comigo para farras e cervejadas desapareceram. Cada um achava um motivo nobre para não ter podido visitar um amigo doente. Um verso me vem à mente, diante deste fato:

Donec eris felix, multos numerabis amicos.Enquanto fores feliz, terás muitos amigos.

É um verso de Ovídio, em que o poeta lamenta a perda dos amigos, após ter caído na desgraça de Augusto (Tristia, 1, 1-39).

Recuperado da cirurgia, prestei novo vestibular, desta vez para Letras. Adorei o curso e cheguei a concluir um semestre. Durante o período, fomos a Ouro Preto para estudar o Barroco Mineiro. A viagem foi muito divertida, dentro de um micro-ônibus lotado de estudantes.

Tiramos muitas fotos, brincamos bastante, enfim, foi um passeio maravilhoso. Eu não tinha máquina fotográfica e pedi uma emprestada a um amigo. Com medo de errar, na hora de colocar o filme, pedi ao funcionário da loja que o fizesse para mim. Tirei fotos durante toda a viagem, mas, para minha decepção, ao levá-las para revelar, descobri que todo o filme havia sido inutilizado, em virtude de ter sido colocado

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incorretamente na máquina. Mas ainda pude guardar como lembrança dessa viagem as fotos que tirei com as máquinas dos amigos.

Outra viagem interessante que fiz foi para curtir o carnaval de Aracaju. Viajei de ônibus com passagem de ida gratuita conseguida por uma amiga. No retorno, tive que pagar, mas não pude voltar na data que planejara. Deveria voltar no último dia do carnaval, para poder trabalhar na manhã do dia seguinte. Não consegui passagem e tive que antecipar meu retorno em um dia. Meu plano era pegar o ônibus das 20 horas, no último dia de carnaval. Impossível. E só consegui comprar para o dia anterior porque um dos passageiros havia desistido de viajar. Mas acabei chegando em casa a tempo de descansar.

Ao chegar em casa, encontrei minha moto com problemas. Meus irmãos, Dida e Tó, tinham saído com ela e queimado as velas. Discuti com os dois até que conseguissem arranjar velas novas para substituir as defeituosas.

Com a moto já funcionando, fui à casa da patroa de China, a fim de devolver a mochila que eu tinha tomado emprestado. Levei Nete comigo. A patroa de China insistiu para que eu jantasse lá, mas educadamente recusei. Voltei para casa com pressa, a fim de assistir ao Jornal Nacional, às 20 horas. Foi justamente nesse horário que acabei batendo de frente com uma mobilete. Quebrei o pé e o outro piloto quebrou a boca e o nariz. Nete ficou desmaiada no meio do asfalto e só acordou no hospital, sem saber o que tinha acontecido. Arrisco-me a uma conclusão: o horário que planejara voltar de Aracaju era justamente o horário em que, por alguma obra do acaso, eu deveria estar em Jequié, para sofrer aquele acidente. Mistérios que não se explicam.

Gastei muito dinheiro para consertar a moto acidentada e dei como entrada na compra de um modelo mais novo. Numa noite fria e tranquila, resolvi sair de moto para dar umas voltas pela cidade. Acabei desistindo e voltei para casa, pois o frio estava insuportável. No retorno, Walter Sampaio Filho, filho do prefeito da cidade, me atropelou. O saldo foi: uma fratura em várias partes da patela, o nariz e um dedo do pé direito quebrados. Walter nem sequer me prestou socorro, e ainda

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tentou impedir que os motoristas que paravam para ver o acidente me levassem para o hospital. Não bastando, depois de eu já estar no pronto-socorro aguardando atendimento, ainda entrou para me dizer que eu estava errado e que não iria me ajudar em nada na cirurgia.

Passei a noite inteira deitado numa maca de alumínio, com frio, esperando pelo médico ortopedista, que chegaria somente pela manhã. Minha mãe, assim que foi avisada do acidente, correu para o hospital. Com pena de mim, acabou voltando em casa mais tarde para pegar um cobertor, com o qual cobri parte da maca e me embrulhei todo, para aguentar o frio da madrugada.

Fui submetido a uma cirurgia dois dias depois, não no hospital geral, mas na Clínica São Vicente. A cirurgia foi um sucesso, e eu consegui recuperar 100% dos movimentos da perna.

Passei mais de seis meses fazendo fisioterapia. Era praticamente uma via crucis todos os dias. Um colega de trabalho, chamado Paraíso, que possuía um fusca velho, muito me ajudou nesse calvário. Ia todos os dias me buscar em casa, carregava-me no colo, colocava-me dentro do seu carro, levava-me à clínica de fisioterapia, carregava-me do carro para a clínica, ia embora e voltava no horário combinado para me levar de volta. Tão logo me senti melhor, e já podendo caminhar, resolvi fazer natação na piscina do Jequié Tênis Clube. Rita, minha colega de trabalho, foi quem conseguiu meu acesso ao clube.

Sem ânimo para continuar estudando e pela dificuldade das circunstâncias, acabei trancando o curso de Letras, do qual fui jubilado após minha transferência definitiva para Salvador.

Já estava recuperado do trauma na perna direita, resultado do acidente, quando minha transferência para Salvador foi aprovada. Na época, eu tinha participado de um curso intensivo para secretários de audiência e fui aprovado em primeiro lugar. Fiquei muito feliz, pois, caso eu conseguisse uma função gratificada de secretário de audiência, em uma das Varas da capital, poderia manter meus gastos em uma nova cidade, onde as despesas seriam bem maiores. Mas, infelizmente, não

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consegui a vaga. Todos os demais participantes do curso foram chamados, exceto eu.

Tinha ciência de que seria muito difícil me estabelecer em Salvador, e que tal mudança demandaria certo tempo de adaptação. Comecei a me desfazer de todo o meu patrimônio: vendi duas casas, uma moto e uma linha telefônica. Coloquei o dinheiro na poupança, na tentativa de fazer uma economia para o novo investimento de minha vida, que seria um apartamento ou casa na capital. Para não deixar minha família desamparada, comprei uma casa no bairro Agarradinho, em Jequié, e acomodei minha mãe e meus irmãos neste imóvel. A casa que comprei já tinha sido minha, onde morei com Márcia quando me casei. Na separação, deixei a casa para ela, que me revendeu. Toda a minha família ficou nessa casinha pequena no bairro do Agarradinho.

Minha mãe não tinha ficado muito satisfeita com a casa do bairro Agarradinho (Urbis IV), que levou esse nome por alusão a um bichinho de pelúcia que se agarrava às pessoas, cujo nome era "Agarradinho". Paula sempre reclamava que a casa era pequena, que não cabia todos os móveis e que daria um jeito de sair dali. E deu.

Foi à Caixa Econômica Federal e se inscreveu para comprar uma casinha, do mesmo tamanho daquela, no bairro Brasil Novo, que estava sendo criado no outro lado da cidade, próximo ao bairro Inocoop. Quando eu soube da história, ela já estava morando na nova residência, com metade da família.

Valmir resolveu ficar morando no Agarradinho com a futura esposa, Célia. Nesse período, ele trabalhava como cobrador na mesma empresa de ônibus em que eu trabalhara antes, a Auto Viação Tiradentes. Depois de sua demissão da empresa, passou a frequentar a casa de minha mãe, juntamente com a mulher e o filho recém-nascido, Ramon. Com o tempo, acabou fechando a casa onde morava e se mudou de vez para a casa da mamãe. Valmir sempre foi muito esquentado e muito preocupado com sua família. Não aguentava ver o filho passando fome quando não podia comprar o leite e os ingredientes para a comida do bebê. Resolveu então viajar para São Paulo, onde já moravam

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algumas de suas cunhadas, que prometeram dar suporte a ele e à sua família, enquanto não conseguisse trabalho.

Valmir viajou para São Paulo com Célia, sua esposa, e o filho Ramon, ainda de braço, com seis meses de idade. Partiram no dia 25 de agosto de 1995, e desde então não voltaram mais à Bahia, à exceção da vinda de Valmir para o funeral de minha mãe, em junho de 2000. Ele conta que o sofrimento foi grande até conseguir se estabelecer numa cidade violenta e competitiva como Sampa. A prova de fogo começara já na viagem de ônibus, pois levara consigo tudo o que pôde. Chegando a Sampa, foi morar na casa das cunhadas, que sempre ofereceram todo o apoio que a família necessitava. Mas esse apoio estava muito longe de ser o suficiente. Afinal, as cunhadas trabalhavam como empregadas domésticas e não ganhavam bons salários.

Segundo Valmir, nem colchão pra dormir ele pôde comprar. As cunhadas, penalizadas, mas sem poder ajudar muito, conseguiram um colchão de casal, doado por uma senhora que pesava duzentos e cinquenta quilos, após tê-lo substituído por um novo. Esta gordinha não conseguia levantar da cama por causa do seu peso, nela permanecia deitada a maior parte de sua vida. Por esta razão, o suor de seu corpo havia impregnado todo o colchão ao longo dos anos. Quando Mi recebeu o presente, ficou muito alegre porque não mais precisaria dormir em papelões no meio da sala. Mas, ao mesmo tempo, ficou enojado do aspecto e do cheiro do colchão. Mesmo assim, agradeceu a Deus pelo presente. Todos os dias pela manhã ele tinha que tirar a roupa com a qual havia dormido e colocá-la para lavar, pois o colchão, além de emanar um cheiro extremamente desagradável, liberava uma "tinta" escura e gordurosa que grudava na roupa dele, da esposa e do filho. Valmir conta que chegou a levantar muitas vezes no meio da noite para vomitar, devido ao cheiro repugnante, mas logo voltava a se deitar ali, pois era o único lugar quente e aconchegante que tinha para passar a noite.

Conta também que várias vezes teve de andar mais de vinte quilômetros a pé, procurando emprego, porque não queria usar o vale-

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transporte que as cunhadas lhe davam, com medo de não achar trabalho naquele dia e ter de retornar no dia seguinte, refazendo o mesmo percurso. E isso não era raro de acontecer. Foram vários e vários meses de caminhada em busca de uma colocação, onde pudesse ganhar o suficiente para o sustento do filho e da esposa.

Quando já estava prestes a desistir, encontrou uma pessoa que lhe aconselhou a "esquentar" a carteira de trabalho, a fim de poder comprovar experiência como trabalhador de portaria e jardinagem. A pessoa alegava que somente desta maneira poderia aumentar suas chances de encontrar uma empresa que lhe fichasse. E assim ele fez. Conseguiu trabalho na mesma semana. No início, os turnos de trabalho eram sempre à noite ou de madrugada, o que lhe impedia de ver o filho acordado, pois o pouco tempo que sobrava era gasto no trânsito, de casa para o trabalho e vice-versa.

Com o passar dos anos, foi conseguindo modificar sua rotina. Atualmente, trabalha num grande condomínio, como porteiro, no horário de 8 a 14 horas, o que lhe permite chegar em casa antes das seis da tarde, quando Ramon e a caçula Amanda, que nasceu em São Paulo, podem desfrutar da presença do pai. A garota é especial, nasceu com a Síndrome de Tourette, uma doença raríssima que impede o desenvolvimento da fala, das funções motoras e de outras funções. Valmir tem o maior carinho pelos dois filhos, especialmente por essa filhinha caçula.

Eu me mudei para Salvador dois anos antes de Valmir viajar para São Paulo, mas acompanhei boa parte de sua luta em Jequié, pois eu viajava sempre para visitar minha família.

Quando viajei para Salvador, já tinha sido indicado por Graça para trabalhar no Setor de Distribuição, com Dina. Fiquei ali um bom tempo, adorei o setor e as pessoas, mas o serviço era muito estressante. Pedi para sair do setor e fui para a 3ª Vara de Salvador. Os funcionários costumavam se referir ao prédio onde funcionavam as Varas como "Senzala" e ao prédio do TRT como "Casa-Grande", em alusão ao livro de

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Gilberto Freire, Casa-Grande e Senzala. Todo mundo queria ir trabalhar na Casa-Grande. Mais tarde descobri o motivo dessa comparação.

Inicialmente não comprei apartamento. Graça, uma colega de trabalho, havia me apresentado um amigo que morava no Edifício Crescenciano dos Santos, em Salvador. Procurei-o, acreditando que ele aceitaria a proposta de "dividir" o apartamento comigo, mas decepcionei-me diante de sua recusa. Resolvi então ficar um mês de férias em Salvador, em fevereiro de 1993, dividindo as despesas em um apartamento em Ondina, onde morava Jaqueline, filha de Edlene, então Diretora da Vara de Jequié, até encontrar um apartamento para alugar ou comprar. Acabei encontrando um à venda no Edifício Crescenciano - o "Balança, mas não cai", alusão a um programa de TV da época. Comprei o imóvel por intermédio de um corretor. Ao receber as chaves e entrar em meu apartamento próprio, pulei várias vezes, gritei e chorei de alegria. E a segunda vez em que chorei de alegria foi quando pude repassá-lo ao proprietário oficial, mesmo tendo perdido metade da grana que, com muito esforço, juntei ao longo de vários anos.

Foi o maior mico que paguei. O apartamento era financiado pelo Banco Nacional de Habitação, em nome de um determinado titular. Mas quem me vendeu foi uma terceira pessoa, com o aval do real proprietário. Já morando nesse apartamento, eu peregrinei por mais de dois meses por toda a cidade, coletando documentos, certidões e outros papéis, a fim de formalizar a transferência do contrato para meu nome. Dia e hora combinados, fui ao banco com o proprietário do apartamento, acreditando que tudo seria formalizado em questão de horas. O banco informou que o processo de transferência seria longo e que poderia ou não ser aceito pelo agente financiador. Inexperiente e acreditando na boa-fé do vendedor e do corretor do imóvel, resolvi apostar todas as minhas fichas nesse arriscado investimento.

Paguei uma fortuna ao corretor e ao dono do imóvel. Três meses depois de ter entregue uma verdadeira pilha de documentos e certidões ao setor de financiamento, recebi do banco a informação de que a transferência não poderia ser realizada, pois o proprietário do imóvel

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tinha outro apartamento financiado pelo BNH, o que impediria a transação. Fiquei desesperado e coloquei um anúncio no jornal, com a intenção de "revender" o apartamento. O dono original do imóvel leu o anúncio e me procurou para chantagear, obrigando-me a devolver-lhe o apartamento pela metade do preço que eu havia pago. Não tinha outra saída. Era receber cinquenta por cento do investimento ou perder tudo, já que ele ameaçara entregar o financiamento ao banco, caso eu não aceitasse devolver o apartamento pela metade do preço que havia pago.

Comprei, então, outro apartamento, no mesmo edifício, desta vez sem intermediários, mas com uma dívida de IPTU e condomínio de mais de dez anos. Até o presente momento, não transferi o apartamento para meu nome, apesar de já ter quitado a dívida com o banco financiador. O apartamento encontra-se fechado até hoje, por falta de comprador. Não há quem queira morar ali, devido aos vários problemas que o prédio enfrenta.

O "Balança mas não cai" já foi manchete de programas de televisão e de jornais da cidade. Os moradores alegam que o prédio treme o tempo todo. Dizem os mais antigos que uma equipe de engenheiros já examinou o fenômeno e atribuiu-o ao movimento constante de veículos pesados que passam em frente ao prédio, apesar de afirmarem não haver risco de desabamento. Quanto a isso, não posso garantir nada, mas posso afirmar categoricamente que o prédio é uma verdadeira favela vertical. O edifício tem uma dívida astronômica com a companhia de água e esgoto, que cortou o abastecimento. O sistema será restabelecido somente após a quitação da dívida, que está financiada em dez anos. Caminhões-pipa abastecem o prédio em intervalos regulares de tempo e a água é fornecida aos apartamentos através de uma mangueira, em dias e horários predeterminados. Dos três elevadores, apenas dois ainda funcionam precariamente. O terceiro foi sequestrado pela justiça para pagamento de dívidas trabalhistas. E as escadarias estão em completo estado de destruição, entre outros problemas.

***

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Eu não pude comprar novos móveis, botijão de gás, colchão e armário e acabei pedindo que minha mãe trouxesse para Salvador parte da mobília que eu tinha deixado em Jequié. Ela veio de ônibus com a mobília. Quando fui me encontrar com ela na rodoviária, levei dois amigos para ajudar a carregar as coisas. Mas fiquei com tanta vergonha de ver toda aquela tralha sendo colocada no ônibus que tive uma crise de riso e fugi, deixando meus amigos, minha mãe e uma irmã para pagarem o mico de carregar tudo no ônibus coletivo, que pegaram da rodoviária para o bairro Sete Portas, onde eu morava.

Passei a maior parte do tempo morando sozinho em Salvador. Porém, não era raro ter sempre alguém da família por perto. Vários irmãos chegaram a viver comigo e depois voltaram para o interior. Nete foi quem passou mais tempo. Ficou em minha casa até passar em primeiro lugar num concurso público para Auxiliar de Enfermagem em Porto Seguro, onde morou por quase um ano. Desistiu de continuar morando lá por causa do salário, que era muito baixo e ainda por cima atrasava meses para ser pago. Nete resolveu então que seria melhor voltar para Jequié e fazer um curso universitário antes de sair da cidade para enfrentar a vida.

Sempre quis morar bem próximo ao local de trabalho, já que a cidade de Salvador não tem um sistema de transporte público eficiente, fato que eu já havia comprovado. Experimentei, várias vezes, sair de Ondina, antes de me transferir definitivamente para o bairro Sete Portas, de ônibus para chegar ao bairro Nazaré. O atraso era constante, o veículo vinha lotado e muitas vezes não parava no ponto para pegar passageiros. Este problema me desestimulou de morar distante do trabalho. Do edifício Crescenciano, onde eu morava, para o TRT, gastava dois ou três minutos subindo uma ladeira interminável, com minha marmita, cujo conteúdo era sempre o mesmo: feijão, arroz, um pedaço de abóbora cozida e um pedaço de carne. Havia um espaço chamado Centro de Convivência, onde os funcionários se encontravam para assistir televisão, bater papo e almoçar. Todos os dias estava eu ali com

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meu marmitão. Morria de vergonha dos outros colegas, que levavam uma comida diferente a cada dia e sempre pediam que eu abrisse a minha quentinha para trocar com eles um pedaço de carne ou de outra coisa qualquer. Como eu sempre levava a mesma coisa diariamente, alguns colegas nem queriam ver minha marmita, enquanto outros, já adivinhando o que nela continha, faziam brincadeiras e gozações.

Afogamento em ItapoãQuase morri afogado em Itapoã. Fazia apenas dois meses que eu

havia chegado a Salvador. Em abril de 1993, reencontrei um grande amigo do interior, chamado Greyko, e saímos para tomar umas cervejas na praia de Itapoã. Tomamos duas cervejas e comemos dois caranguejos - o primeiro caranguejo de minha vida. Quando caminhávamos em direção ao ponto de ônibus, vimos uma galera andando de caiaque e paramos para olhar.

Meu amigo cismou de dar umas voltas de caiaque e me chamou para acompanhá-lo, o que recusei de pronto. Mas ele insistiu e acabei seduzido pela aventura de andar de caiaque no mar. Já tinha andado de caiaque num rio da cidade de Ilhéus alguns anos antes. Depois de darmos algumas remadas, resolvemos sair do caiaque para dar um mergulho. Na hora de entrar no caiaque, eu não conseguia me equilibrar e caía na água toda vez que tentava subir. Com as inúmeras tentativas, o caiaque afundou e tivemos que nadar de volta à praia. Tendo a narina esquerda comprometida por causa do segundo acidente de moto que quebrou meu nariz, cansei rápido e parei para descansar. Pedi ajuda a ele. Precisei me segurar nele para poder respirar mais livremente e voltarmos a nadar.

Não aguentei o pique e comecei a me afogar. Meu amigo ainda tentou me salvar, mas eu estava desesperado e ele ficou com medo de morrer junto comigo. Após me debater muito, percebi que eu afundava, sentindo a temperatura da água se tornar cada vez mais fria. Depois, não vi mais nada, tudo estava muito escuro. Acreditando que aquele seria meu último dia de vida, entreguei-me ao mar, sem resistência.

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Parecia estar "sonhando" com meu corpo deitado sobre uma pedra, ao nível da água do mar, e que as ondas batiam em mim. Sentia o brilho intenso do sol forte e quente sobre mim, enquanto gritava: "Deus, eu não posso morrer agora, me dê mais uma oportunidade! Tenho somente dois meses em Salvador e muita coisa para viver ainda nesta cidade!".

Na cena seguinte, alguém me pegou, me colocou dentro de um barco e me levou de volta à praia. Meu amigo contou que conseguiu ser salvo por um cara que passava num barco à vela e o levou até a praia. Achou que eu tinha morrido. Estava chorando na praia, quando o dono da barraca de aluguel de caiaque pediu que alguém fosse ao mar pela segunda vez, já que na primeira haviam encontrado apenas os remos do caiaque. Disse-me depois que não acreditou quando viu que me traziam de volta à praia com vida. Eu também não acreditei naquilo, achei que fora um milagre, uma segunda chance de vida, para realizar alguma coisa que estaria por vir.

Socorrido na praia por populares, fui levado de hospital em hospital, mas não recebi atendimento médico em nenhum deles, sob a mesma alegação de que não havia pneumologista de plantão. Fui levado para casa, com os pulmões cheios de água, tive febre altíssima, seguida de bronquite e pneumonia. Consultei-me com um médico no meu trabalho, que me receitou remédios para dores. A doença evoluiu e acabei tendo tuberculose. Por conta disso, fui submetido a um tratamento que durou mais de um ano. Mas, finalmente, fiquei curado. Não era a minha hora.

Dona NiniTive uma vizinha chamada Dona Nini. Morava no apartamento ao

lado e era uma criatura maravilhosa. Sempre me presenteava com frutas e, quando fazia uma comida diferente, me chamava para oferecer um prato do novo quitute.

Depois que me mudei do prédio, soube que ela também tinha se mudado para a Pituba e que passava por sérios problemas de saúde. Procurei seu endereço e fui visitá-la. A cena me cortou o coração. Foi

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chocante para mim ver aquela mulher, que antes era tão firme, vaidosa, bonita e vistosa, reduzida a um monte de carne retorcida em cima de uma cama.

Dona Nini tinha tido um infarto que deixara sequelas. Estava torta de um lado, a boca meio aberta, até para comer tinha dificuldades. Aquela cena me deixou mortificado, mas não deixei transparecer minha perplexidade. Ela sabia que estava com seus dias contados, mas não me privei de incentivá-la. Falei-lhe que já tinha visto pessoas passarem por situações mais complicadas e que conseguiram dar a volta por cima e muitas outras palavras de ânimo. Mas ela estava inconformada.

Alguns dias depois, sua saúde piorou e precisou ser internada num hospital da cidade, onde fui visitá-la. Fiquei mais estarrecido ainda quando a vi se alimentando por meio de tubos e respirando com a ajuda de aparelhos, numa semi-UTI. Veio a falecer pouco tempo depois. Fiquei muito impressionado com o desenrolar dos fatos; a imagem dela ocupou minha mente por vários dias. Uma noite, tive um sonho. Estava sentado num grande sofá, juntamente com outras pessoas. O sofá estava completamente lotado de gente, e todos fixavam o olhar para frente, não se mexiam para os lados. Passados alguns minutos, Dona Nini entrou no ambiente. Sentia que era ela, mas, de alguma forma, sabia que não podia olhá-la diretamente. Parecia que meu pescoço estava preso e não podia girar. Dona Nini se aproximou de mim, olhou-me nos olhos e me estendeu a mão. Eu fiquei com medo, assustado, pois eu sabia que ela tinha morrido. E ela falou: "Pegue em minha mão!" Eu peguei, mas achando que pegaria numa mão de nuvem, sem forma e sem consistência. Minha mão tocou uma mão quente, firme e humana. Ela, como que lendo meus pensamentos, falou: "Está vendo? É uma mão de verdade. Eu estou bem. Não se preocupe. Eu estou bem!". O sonho acabou aí. Acordei muito assustado e fiz algumas orações, antes de tentar dormir novamente.

***

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Quando eu morava no Edifício Crescenciano dos Santos, meus irmãos Dida e Tó estavam em Ilhéus, onde trabalhavam. Dida vivia com uma garota, e Tó morava junto com eles, numa casa alugada. Sempre dava um jeito de visitar meus irmãos em Ilhéus. Quase todos os meses, viajava para o interior de ônibus, ou com minha mãe ou sozinho. Tinha planos de ajudá-los a comprar um terreno ou uma casa.

Em uma dessas minhas visitas, conversamos sobre a compra de um imóvel, e ambos me prometeram procurar um local adequado à construção de uma oficina, já que o desejo deles era ter o próprio negócio. Semanas depois, me ligaram dizendo que ainda não tinham encontrado nada razoável. Em uma nova viagem a Ilhéus, saí com os dois em busca de uma casa ou terreno. Encontramos uma casa enorme, no bairro Teotônio Vilela, com um quintal descomunal, que tanto serviria de moradia como dispunha de área apropriada para a construção de uma oficina mecânica. Eles argumentaram que aquele não seria o local ideal, pois o bairro, além de não oferecer infra-estrutura adequada, era muito violento. Voltei para Salvador e, na semana seguinte, recebi um telefonema deles dizendo que tinham encontrado um terreno muito bom.

Com o dinheiro que enviei, eles compraram um terreno horrível, num despenhadeiro. A área era grande, mas tinha apenas três metros de terreno plano, o restante era um barranco que descia até um manguezal, que desembocava no rio Cachoeira. Fiquei bastante irritado com o fato de meus irmãos terem desperdiçado a oportunidade de comprar uma boa área onde pudessem morar e trabalhar. Começaram a construir ali uma casa de dois metros de largura por três de comprimento, e me pediram mais dinheiro para comprar o material de construção da oficina mecânica. Mas, ao invés de investirem o dinheiro que enviei em material de trabalho, compraram um Fusca velho, caindo aos pedaços. Ao chegar a Ilhéus e verificar que haviam comprado um carro velho e não o material para trabalhar, não pude esconder minha indignação. Resolvi não mais ajudá-los e passei um enorme sermão nos dois. Uma semana depois, soube que haviam vendido o Fusca e comprado material para construir mais dois cômodos na casa.

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***Já trabalhando na 3ª Vara de Salvador, fui chamado por Dina, que

dizia ter uma notícia muito boa para mim. Perguntou-me se eu tinha interesse em substituir a funcionária de um gabinete que entrara de férias. Eu já havia substituído várias pessoas, em todos os setores onde trabalhei, inclusive na Distribuição, onde Dina era a chefe. Perguntei qual era o trabalho a ser feito e Dina me disse que era uma coisa fácil e que eu iria gostar. Sob tais condições, aceitei. Comunicou-me então que, assim que tudo tivesse acertado, me telefonaria, o que aconteceu uma semana depois. Foi um pouco complicado ser liberado da 3.ª Vara para substituir uma funcionária do gabinete, mas acabei conseguindo, sob a condição de trabalhar nos dois setores em horários diferentes, cumprindo duas cargas horárias. Aceitei prontamente.

No dia combinado, fui ao gabinete, com a roupa que eu costumava vestir no dia-a-dia: uma conga marca Alcolor com um buraco no dedão do pé direito, uma calça jeans velha, com furo no joelho, e uma camiseta de malha. Conversei com o juiz Gustavo Lanat, sem fazer a menor ideia de quem era e que importância tinha. Uma das perguntas que ele me fez foi se eu sabia datilografar. Respondi que sim. E ele disse que havia em torno de oitenta processos acumulados no gabinete e precisava de alguém para ajudar sua equipe a dar conta do trabalho. Aceitei. Perguntou-me também se eu apertaria um parafuso ou tentaria consertar algum objeto que se quebrasse. Eu disse que sim, caso eu soubesse realizar o conserto. Ao final da conversa, marcou o dia para eu começar a trabalhar. Iniciei no dia 28 de novembro de 1993 e permaneci ali, até junho de 2005, a trabalhar com ele e com sua equipe, onde nunca precisei apertar nenhum parafuso.

***

Não foi muito fácil o processo de adaptação a uma cidade tão grande, repleta de coisas boas e ruins; muita gente bonita e também

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muita gente mal-intencionada. Mas tentava me acostumar com tudo, fui aprendendo a lidar com as adversidades e a tirar de cada uma delas uma lição de vida.

Recém-chegado de Jequié, uma cidade carente de diversões, quando comecei a conhecer os points da Salvador, me esbaldei até onde pude. Quase toda semana ia assistir a filmes, não perdia uma estreia; não faltava a uma "terça da bênção" no Pelourinho. Eu sempre ia à festa do Pelourinho, nas noites de terça-feira, mas jamais imaginei que a expressão "bênção" se relacionava à "água benta que o padre jogava sobre os fiéis, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, durante a missa"; pensava que era apenas o nome da festa popular. Via muitas peças de teatro no Teatro Santo Antônio, no bairro Canela, de graça; adorava tomar banho de mar nas diversas praias; curtia o carnaval adoidado, no meio da multidão, e não perdia uma seresta ou pagode. Praticamente, não parava em casa. Estava sempre em atividade. Até toquei no Ilê Ayê, quando o grupo ensaiava no Forte de Santo Antônio, no bairro de mesmo nome. Os ensaios eram às quartas-feiras e aos sábados. Ficávamos a noite inteira ensaiando. Mas, como não sou uma pessoa notívaga, acabei abandonando esses ensaios em poucos meses.

Numa dessas idas e vindas de festas, conheci Elias, que se tornou meu amigo. Elias era muito mais festeiro do que eu e sempre me dava boas dicas de lugares onde estava rolando algum "reggae". Muitas vezes, fui com ele a Periperi, um bairro suburbano, distante mais de dez quilômetros do centro da cidade, para curtir serestas e pagodes até altas horas. Acontecia com frequência de eu me esquecer do horário e perder o último ônibus. Aí o jeito era esperar o "pernoitão", a linha especial de ônibus que circula de madrugada. O sono era tanto que dormia sentado no ponto de ônibus.

Por intermédio de Elias, conheci um outro camarada, Elivan, cuja mãe morava em Periperi. Ele vivia com o pai em São Tomé de Paripe, o bairro mais distante do centro. Elivan vendia sorvetes numa garagem da casa do pai. Quando ia a São Tomé, após tomar umas cervejas na praia,

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era comum eu ir almoçar ou comer alguma coisa no bar do tio dele, o Bar do Chico.

Sempre que encontrava Elivan por ali, perdíamos a noção das horas, conversando sobre todo o tipo de assunto, inclusive sobre trabalho. Ele tinha o sonho de ser marinheiro, vencer na vida e ajudar a mãe. Eu ficava ouvindo seus planos e não deixava de lhe incentivar, mas tinha quase certeza de que ele não iria chegar a lugar algum, pois a dificuldade de se vencer na vida numa cidade grande é diretamente proporcional ao tamanho dessa mesma cidade. No entanto, para surpresa minha, Elivan lutou contra todas as adversidades, se preparou para o concurso e entrou na Marinha Mercante. Hoje é Sargento da Marinha, trabalha no Rio de Janeiro, servindo no Primeiro Distrito, já viajou por quase toda a costa brasileira, já se casou e teve dois filhos. E o mais importante: ajudou e continua ajudando a mãe e os irmãos. Construiu uma casa para a mãe em Aratu e depois resolveu levá-la com alguns de seus irmãos para o Rio, deixando a casa aos cuidados de outros irmãos.

Ele é um exemplo de pessoa. Em sua trajetória de vida, pude identificar uma semelhança muito grande com a minha própria história: a história de um menino pobre, morador de periferia, que consegue vencer todos os obstáculos e dar a volta por cima. Assim, conquista seu lugar ao sol, com honestidade, sem trapaças, sem conchavos, sem passar por cima de ninguém e sem puxar o tapete de quem quer que fosse.

***

Desde sempre, quis me mudar do Edifício Crescenciano dos Santos, no bairro Sete Portas, onde morei. Mas, para isso, teria de sacrificar muita coisa: evitar de sair às farras, de comprar muitas roupas, reduzir as viagens. Passei mais de três anos arquitetando o dia de minha libertação. Quando estava com uma boa grana no banco, comecei a pesquisar preços de casas e apartamentos.

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Conheci muitos lugares de Salvador, caminhando em busca de um lugar para morar. Poucos me agradavam. Até que encontrei o apartamento do Edifício Gama, no bairro Nazaré. Apaixonei-me de cara pelo imóvel e fechei negócio imediatamente. Essa compra se deu em 1997. Seria o início de uma nova fase. Depois que passei a morar no novo prédio, iniciei uma longa jornada de viagens pelo Brasil e por alguns países do mundo.

Convidei então meus irmãos para virem morar em Salvador no Edifício Crescenciano dos Santos, que logo aceitaram.

No dia 25 de julho de 1997, nasceu meu filho Junior, fruto de uma aventura rápida que tive com Maria Raimunda da Conceição, natural de Ilhéus. Após o nascimento, no Hospital Sagrada Família, em Salvador, decidimos, eu e sua mãe, que nosso relacionamento tinha chegado ao fim e que o nenê ficaria comigo. A mãe voltou para o interior e de lá se mudou para São Paulo, para onde levo Junior, sempre que posso, para visitá-la.

Minha mãe morava comigo e cuidava de Junior. Foi uma experiência muito boa, o nascimento de meu filho. Além de representar uma extensão de mim, que teria de cuidar para sempre, ele me trouxe muitas alegrias. Mudei vários conceitos e planos que tinha para minha vida em função dele. O projeto de viver no exterior, por exemplo, foi adiado por causa de minha mãe e de Junior, que representavam muito mais que uma vida para mim. Cuidei de meu filho com muito carinho, enquanto ele morou comigo e com minha mãe. Troquei fraldas, dei mamadeira e banho. Brincava sempre com ele quando chegava do trabalho. Aprendi a ter paciência e a descobrir o significado do choro. Preocupava-me com cada movimento dele, perto de mim, na cama. Ficamos muito ligados um no outro, principalmente depois que minha mãe morreu, e eu me vi sozinho para cuidar dele.

Contratei pessoas para ficarem em minha casa cuidando de meu filho, mas, depois de pensar muito, achei que o melhor para o menino seria estar perto de alguém da família, que pudesse cuidar dele como ele merecia. E resolvi deixá-lo com minha irmã Valquíria, em Jequié.

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Falamo-nos frequentemente por telefone e, vez ou outra, envio-lhe cartas. Ele também me escreve, manda cartões de aniversário, de Natal e Ano Novo. Quando nos encontramos, Junior coloca toda a conversa em dia, quer me mostrar a roupa nova, o brinquedo novo, contar as coisas que aprendeu na escola.

Quanto a meus irmãos, eles aceitaram vir para Salvador. Ao chegarem, não demoraram a encontrar trabalho nas oficinas mecânicas da cidade. Depois de dois ou três anos, resolveram voltar para Ilhéus, e de lá foram para São Paulo, onde vivem até hoje. Quando se mudaram para São Paulo, eu já tinha ajudado Mi a comprar uma casa no bairro Parque Novo Santo Amaro. A casa custou R$ 20.000,00 (vinte mil reais), dos quais emprestei, a fundo perdido, cinquenta por cento. O restante foi financiado pela própria imobiliária, e as prestações mensais eram divididas também com a sogra e com as cunhadas, que saíram de suas casas de aluguel para morarem na nova casa. O imóvel era bem amplo; possuía três andares e ainda um telhado, que permitia bater uma laje para a construção de mais um andar. Vitório acabou batendo uma laje nesse telhado, onde construiu sua casa.

VIAGENS

Primeira viagem a São PauloViajei pela primeira vez para São Paulo em 1996. Fui de ônibus. A

viagem parecia não terminar. Mas foi muito agradável. Transcrevo abaixo uma espécie de "diário de bordo", relato desta experiência:

“Jequié, 2 de abril de 1996.

10:21 hSaí de Salvador no início da manhã e, neste exato momento,

encontro-me no Ponto de Apoio da empresa de ônibus São Geraldo, em Jequié.

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10:27 hEstou dentro do ônibus para São Paulo, comendo taboca, um doce

enroladinho, feito de tapioca. Aqui dá para ver muita coisa bonita. O ônibus segue estrada adentro.

15:04 hPassamos pelas cidades de Manoel Vitorino, Poções e Planalto.

Paramos em Vitória da Conquista para almoçar. O ônibus é delicioso. Tem água mineral à vontade e café quentinho da hora. O ar condicionado torna o ambiente bem agradável. Passamos pela pequena cidade de Cândido Sales, que é cortada por um riachinho de água barrenta. Aqui faz muito frio.

16:00 h Estamos no estado de Minas Gerais, a paisagem é encantadora,

com pedras e montanhas enormes por todos os lados. Muitas curvas na estrada. Em frente à minha poltrona, duas moscas muito chatas resolveram se acomodar. Penso que são duas moscas baianas indo de carona para São Paulo.

20:00 hParamos em Teófilo Otoni para o jantar. Preferi não comer nada,

achei a comida uma boa droga. Paguei caro pela quentinha, que acabei jogando no lixo. Arrependi-me amargamente de ter comprado aquela porcaria e ainda por cima ter de carregá-la dentro do ônibus, com o ar condicionado desligado, por mais de meia hora. Teria sido melhor sair da rodoviária e fazer um lanche numa bodega de beira de estrada.

06:00 hEstá amanhecendo. Já é dia 3 de abril e estamos entrando no

estado do Rio de Janeiro. Dormi quase a noite inteira. Com isso, deixei de ver um monte de cidades mineiras.

06:50 h Agora estamos passando por Sapucaia, uma cidadezinha do Rio de

Janeiro, pequena e bem cuidada. 07:10 h O ônibus atravessa a cidade de Anta, bem menor que Sapucaia.

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07:30 h Passamos por Três Rios, ainda no Rio de Janeiro. Um pouco depois

da saída da cidade, vi um caminhão de leite enlatado virado e uma multidão saqueando a carga.

08:00 hParamos em Paraíba do Sul para tomar café e, em seguida,

atravessamos Vassouras, cidade pequena, arborizada, bonita e aconchegante.

09:00 h Passamos por Barra do Piraí, outra cidadezinha do Rio de Janeiro,

pequena, muito pobre, cheia de morros. 09:30 hJá estamos em Volta Redonda. De longe se percebe a nuvem de

poluição a cobrir a cidade, que é bem desenvolvida e cheia de prédios. Acredito que morar neste lugar deve ser um pesadelo por causa da poluição. Dormi um pouco e acordei em Resende. É uma cidade pequena, com alguns edifícios e um rio muito caudaloso que margeia a estrada por muitos quilômetros.

11:40 hAgora entramos no estado de São Paulo, mais exatamente nas

proximidades de Aparecida, onde há uma parada para o almoço. A cidade é muito simpática. De longe, pude ver a Catedral Basílica, que impressiona por sua imponência.

13:00 hChegamos a Taubaté. A cidade é enorme e eu até acreditei que já

estava na cidade de São Paulo. Se o motorista não me adverte, eu teria desembarcado ali. O ônibus parou na rodoviária. Muita gente desceu, mas eu preferi ficar no carro, por estar nervoso demais. Talvez pelo medo do desconhecido. Não vejo poluição, mas o horizonte da cidade é escurecido.

15:30 h

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Finalmente, São Paulo. Ao desembarcar na Estação Rodoviária do Tietê, tomei um susto. O terminal era imenso e havia uma multidão incalculável ali, partindo e chegando, ônibus pra todo lado. Fiquei apreensivo, achando que não encontraria minha cunhada, que prometera me esperar. Mas não demorei dez minutos para avistar Célia, acompanhada de Bela, sua irmã. Da rodoviária até o distrito de Jardim Ângela, onde meu irmão morava, foi uma viagem de mais de seis horas. Um engarrafamento monstruoso paralisava o trânsito da cidade inteira. Memorizei quase todas as casas e prédios da avenida Santo Amaro, pois o ônibus parava a cada metro que conseguia andar. Fazia um calor infernal, e eu lá de casaco, carregado de malas e mochilas. Parecia até que estava indo de mudança definitiva para São Paulo. Finalmente, chegamos ao Jardim Ângela, e logo em seguida ao Parque Novo Santo Amaro, onde ficava a casa de meu irmão.

O tempo ali entre eles passou voando. Em vinte dias, pude descansar e ordenar minha mente e refazer meus projetos de vida. Gostei tanto das pessoas que não tinha ainda tido oportunidade de conhecer: um montão de cunhadas de meu irmão, a sogra dele e mais gente, muita gente. No dia que voltei para Salvador, todos choraram na despedida. Eu não me aguentei e chorei também.

Gostei tanto da experiência que um ano depois viajei de ônibus com minha mãe, meu sobrinho Murilo, meu filho Junior e Jean, um amigo da família. Desta vez, a viagem não foi tão surpreendente quanto a primeira, pois já conhecia o trajeto. A partir de então, passaria a visitar meus irmãos todos os anos, no Natal e no Ano Novo. Fui duas vezes de carro e outras tantas vezes de avião.

Houve uma viagem que me marcou em especial, na segunda vez em que fui de carro. Resolvi sair de São Paulo quando faltavam vinte e cinco minutos para a meia-noite. Todos protestaram: minha mãe, meu irmão, as cunhadas dele e outras pessoas que estavam na casa. Mas não ouvi ninguém. Era uma noite de reveillon. Vimos a queima de fogos, em comemoração ao Ano Novo, quando atravessávamos a cidade, passando pela Avenida Santo Amaro, em direção à BR-116.

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Cursos de inglês e espanholTinha muitos planos de fazer viagens ao exterior, por isso comecei

a aprender inglês. Fiz um curso de três anos em uma escola tradicional da cidade. A princípio, parecia que jamais conseguiria aprender uma palavra sequer. Mas, com o passar do tempo, fui me acostumando com a língua, e hoje já consigo conversar normalmente até com próprios nativos. Já o curso de espanhol durou apenas vinte dias, acabei desistindo. Preferi me aperfeiçoar primeiro no inglês e somente depois recomeçar o curso de espanhol.

Viagens para JequiéQuase toda semana eu viajava para Jequié e, na maioria das vezes,

ficava na casa de minha irmã Quira. Numa dessas viagens, fui até o açougue com ela para comprar uns dois quilos de bife. O açougueiro cortou a carne e separou as peles das partes mais duras num montinho. Enquanto ele pesava e embalava a carne, mostrei o montinho de peles à minha irmã e perguntei-lhe se aquilo a fazia lembrar de algo. Ela sorriu, como que concordando com a lembrança do tempo em que comíamos os refugos doados pelos barraqueiros da feira livre da cidade. O açougueiro, pensando que queríamos levar as peles, falou que poderia embalar aquele sebo para darmos aos cachorros, caso os tivéssemos. Respondemos que não tínhamos cachorro e que falávamos de outra coisa. Ele não entendeu nada.

Pedalando e dirigindo em SalvadorResolvi comprar uma bicicleta, a fim de fazer exercícios físicos.

Não me agradava muito ficar em academias, pela minha timidez e também por ser um lugar fechado, onde geralmente não se pode ver paisagens, a não ser através das janelas. Encontrei um anúncio no jornal, telefonei e fui até o bairro de Pituaçu, que era onde morava o vendedor da bike. Voltei de lá pedalando pela avenida Paralela. Daí em diante, passei a pedalar por duas ou mais horas, todos os dias. Lembro-

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me que, numa das manhãs em que pedalava pela Pituba, começou a chover e, quando olhei para o relógio, vi que já eram sete e trinta da manhã e eu deveria estar no trabalho antes das oito, pois era dia de sessão no Tribunal. Corri tanto que parecia que a bicicleta flutuava sobre a água. Mas cheguei a tempo ao trabalho.

Saía quase todos os dias de Nazaré e ia até Paripe, Alto de Coutos, pedalando pela Suburbana e por Ipitanga, em Lauro de Freitas. Muitas vezes, pedalava de manhã cedo, antes de ir para o trabalho, e, quando chegava em casa à tarde, repetia a dose. Cometi loucas aventuras com minha bike, como sair às 22 horas de Salvador rumo a Dias D’Ávila, aonde cheguei após pedalar três horas na chuva. Fiquei em casa de amigos e voltei no dia seguinte, pedalando de novo.

Eu tinha muito medo do trânsito de Salvador, mas, depois que eu comecei a pedalar pela cidade, acabei me acostumando com o ritmo e com o movimento rápido dos carros. Até quando andava de táxi sentia medo, ficava sempre segurando na porta do carro. Aos poucos, fui me habituando.

Ao ver senhores e senhoras dirigindo tranquilamente, fiquei mais animado e confiante para dirigir também. Resolvi então entrar num consórcio de carro e me matricular numa autoescola para aprender a dirigir. Tomei mais aulas do que o necessário, e mesmo depois delas ainda continuava um pouco inseguro e com medo de tirar a carteira de motorista. Mas a forma com que os instrutores davam as aulas foi decisiva para me ajudar a resgatar a minha segurança. Certa vez, quando manobrava o veículo, o instrutor pediu que me aproximasse de um muro e parasse, para que um outro carro que estava atrás pudesse passar. O carro ficou numa posição complicada. Só poderia ser retirado dali através do uso de meia embreagem e de marcha à ré. Eu estava apenas começando a aprender a fazer meia embreagem, e por isso o instrutor ficou preocupado com a possibilidade de eu bater com o carro no muro. Ele já ia saindo para pegar o carro e retirá-lo dali, quando mudou de ideia e resolveu que eu poderia fazê-lo, seguindo suas orientações. Fiquei supernervoso, mas ele me transmitiu toda a calma

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que eu precisava. Foi minha primeira grande vitória, pois dali em diante criei coragem para enfrentar desafios outros que porventura pudessem ocorrer na direção de um veículo.

Quando o instrutor achou que eu já estava apto a me submeter aos exames do Detran, falou em marcar os testes. Relutei bastante. Depois resolvi alugar o carro da própria autoescola por um dia inteiro, a fim de treinar bastante antes de fazer os testes práticos. Marcamos os exames. Fiz todos os testes e passei de primeira, para minha própria surpresa.

Ao receber minha carteira de motorista, a primeira providência foi reservar um carro em uma locadora de Salvador. No dia marcado, fui à locadora de veículos, mas não tive coragem de entrar para fazer o contrato e alugar o carro. Passava várias vezes em frente à loja, olhava para os carros circulando na rua e ficava apavorado. Os carros passavam sem parar, a uma distância muito curta uns dos outros. Concluindo que não tinha condições de dirigir num trânsito daqueles, voltei para casa sem alugar o veículo.

Mais de um mês se passou e eu, enfim, criei coragem de alugar um carro. Mas não o fiz em Salvador. Viajei de ônibus até Ilhéus, onde aluguei um Fiat Pálio. De lá viajei para Jequié, que ficava a uns duzentos quilômetros de distância. Aprendi muita coisa, inclusive que não se deve entrar numa curva em alta velocidade, como eu estava fazendo. O carro cantava pneus em todas as curvas por que eu passava. Na estrada para Jequié, presenciei um acidente com outro veículo Pálio, que capotou para evitar o atropelamento de um cachorro. Um dos passageiros, uma moça de mais ou menos vinte anos de idade, em trajes de banho, voou pelo pára-brisa e caiu morta no asfalto. O motorista e outros passageiros ficaram gravemente feridos e foram levados para o hospital geral da cidade de Jequié. Aquilo me chocou e me fez repensar em uma forma mais segura e preventiva de dirigir, o que adoto até hoje.

Dirigi por toda a cidade de Jequié como uma criança deslumbrada com um brinquedo novo. Não me cansava. Acredito que gastei um tanque de combustível, rodando por Jequié inteira.

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Em outra oportunidade, aluguei um carro em Jequié, durante um final de semana prolongado. O mico que paguei foi sair com o carro sem ligar os faróis. Somente alguns metros após sair da locadora é que fui parar o carro para procurar onde ficavam os botões para ligar as luzes, pois eu fiquei com vergonha de perguntar aos funcionários da locadora.

Meu primeiro carroFui contemplado no consórcio de um veículo Gol, novo, ano 1998.

Com esse carro, andei cerca de duzentos mil quilômetros. Fiz duas viagens para São Paulo, várias para Aracaju, uma para Petrolina, além de viajar toda semana para Ilhéus, onde visitava meus irmãos Dida e Tó e para Jequié, onde moravam outros irmãos e minha mãe. Rodava cerca de mil quilômetros por final de semana. Fiz uma viagem a Aracaju somente para tomar uma água de coco na praça e voltar a Salvador. Nesse dia, eu estava meio na "maresia", sem muita coisa para fazer, meio desanimado, no tédio. Então resolvi ligar para um amigo. Marquei com ele de nos encontrarmos para dar umas voltas e espairecer. Acabei pegando a orla, em direção a Itapoã, depois segui rumo a Lauro de Freitas, depois Arembepe.

Conversando, conversando, passamos por Praia do Forte e acabamos subindo até Aracaju. Chegamos à capital sergipana por volta das dez horas da noite. A cidade estava quase um deserto. Parada. Passei por uma pracinha e parei numa barraca de lanches, onde eu e meu amigo tomamos uma água de coco. Em seguida, pegamos a estrada de volta a Salvador. Mais de seis horas de viagem para beber uma água de coco, mas valeu. A gasolina era muito barata e dava para encher um tanque com R$ 25,00. Atualmente, tornou-se impossível viajar todas as semanas, devido ao preço exorbitante do combustível.

Lembro de uma viagem que fiz a São Paulo, com minha mãe, Quira, Nete, meu amigo Fernando e Valdeck Junior, de carro. Levamos tanta comida que os passageiros tinham de colocar seus pés sobre caixas de refrigerantes, bolos e panelas de comida pronta.

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Em outra oportunidade, retornei a São Paulo com Quira, China, o amigo Anderson, meu filho Junior e meu sobrinho Roberto Junior de carro. Foi uma longa jornada. Nessa viagem, passei muito mal enquanto dirigia. Faltava pouco mais que cem quilômetros para chegar a Sampa, quando parei para comer alguma coisa e descansar. Como eu estava dirigindo há mais de vinte horas, fiquei esgotado e quase não consegui seguir viagem. Preferi não dizer a ninguém que estava me sentindo mal, para evitar preocupações. Depois de uma meia hora, já me sentia melhor e pude então continuar a viagem.

Eu tinha bebido muito extrato de guaraná para evitar dormir ao volante, e o efeito do guaraná foi muito forte, deixando-me desperto durante toda a viagem. Dirigindo "ligado", tal qual um zumbi, quase provoco um acidente grave, que jogaria o carro ribanceira abaixo. Seguia em direção ao acostamento; de repente, saí da pista e o carro foi em direção ao barranco. Via que estava indo de encontro à morte e não conseguia reagir. Mas, de súbito, "acordei" e mudei rapidamente a direção do veículo. Por uma questão de segundos, não causei um acidente grave. Na volta para Jequié, preferi não tomar qualquer tipo de estimulante. Viajei vinte e duas horas de São Paulo a Jequié, sem parar para dormir.

Disco voador na estrada de Santa InêsDepois que comprei o carro, não parei mais de viajar. Já não era de

ficar muito parado em casa, pois sempre fui muito ansioso. Com o carro, fiquei mais ansioso ainda. Um dia, peguei a rodovia BR-101 para Jequié. Gostava de ir por lá, porque passava por Santa Inês, onde podia dormir ou descansar na casa de minha irmã China.

Nessa ocasião, convidei Lázaro Telles, um amigo que hoje vive em Londres, e Akira, um japonês que tinha vindo ao Brasil fazer um curso de Português, que conheci e de quem me tornei amigo. Quando peguei a BR-420, no entroncamento de Laje, já eram mais ou menos seis horas da tarde e a chuva nos acompanhava há bastante tempo. Essa rodovia é quase deserta, principalmente em tardes chuvosas de final de semana.

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Percebia luzes no horizonte, que confundia com farol de algum carro em sentido contrário. Como chovia bastante e o para-brisa ficava constantemente embaçado, pensei também na hipótese de ser algum reflexo da água no vidro dianteiro do carro. Tinha a mania de brincar de apagar todas as luzes do carro, parado no meio da estrada deserta, e ligar e desligar os faróis várias vezes. Depois seguia em frente. Repeti isso várias vezes durante a viagem. A tal "luz" me acompanhou por muitos quilômetros, mas não me chamou a atenção.

Cheguei a Santa Inês por volta das oito horas da noite, tomei banho, jantei e resolvi seguir viagem para Jequié, distante apenas oitenta quilômetros dali. Meu cunhado Roberto e minha irmã acharam que era loucura sair numa chuva daquelas e enfrentar a estrada, mas não dei ouvidos às suas advertências. Logo ao sair da cidade, no entroncamento, percebi uma claridade estranha vindo da cidade. A princípio, tive a nítida sensação de serem os faróis de um carro em movimento, por trás de uma fileira de árvores. Continuei a não dar atenção e segui olhando para o asfalto, a fim de evitar buracos e um possível acidente. Alguns quilômetros adiante, o japonês, intrigado com a luz que via, perguntou-me de onde ela vinha. Respondi que se tratava dos faróis de meu carro refletidos nos barrancos, pois era o que eu realmente supunha ser. Ele não se conformou e perguntou de novo, pedindo para que eu olhasse na direção em que apontava. E eis que, quando virei a cabeça para o lado esquerdo do carro, avistei uma luz imensa, que emanava de algo com formato circular. Parecia um círculo de refletores fortíssimos, apontados para o céu, girando e vindo em direção ao carro. Fiquei extasiado com aquela visão. Parei o carro e pus-me a admirar a cena, muito curioso e louco de vontade de saber qual seria a fonte daquela luz, que se aproximava cada vez mais. A coisa, de formato esférico, tinha mais ou menos o tamanho de um estádio como o Balbininho, em Salvador.

Meu amigo Lázaro começou a gritar desesperado e implorava para que eu saísse dali. Eu não queria sair, permaneci olhando, mas acabei cedendo a seus berros desesperados. Liguei o carro e disparei a mais de

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cem por hora. Parei vários quilômetros adiante e resolvi voltar, sob o protesto de Lázaro. Só que não vi mais nada. No primeiro telefone público que encontrei, já em Jaguaquara, liguei para casa e para alguns amigos, relatando a história. Enviei mensagens para programas de televisão. Alguns até responderam, enviando e-mails onde pediam provas concretas, fotos etc., para poderem relatar a história. Mas não havia provas. Nunca mais vi a tal coisa, apesar de sempre passar pela mesma estrada, em horários noturnos diversos.

Viagens a Nova YorkTive a felicidade de fazer duas viagens a Nova York. A primeira,

em 1999, com voo saindo diretamente de Salvador para NYC; a segunda, em 2000, com escala em São Paulo. Adorei conhecer os Estados Unidos, apesar de ter visitado somente um único estado. Na primeira vez, passei todos os vinte dias de viagem caminhando pela cidade, com a câmera a tiracolo para registrar tudo. Visitei o Central Park, fui ao Empire State Building, atravessei a Brooklyn Bridge. Passava a maior parte do tempo apreciando a arquitetura, os traçados retilíneos das ruas e avenidas, as centenas de pessoas que iam e vinham. Fui de ferry-boat da ilha de Manhattan à Staten Island e conheci mais um pouco dos arredores da cidade. Ali, sobretudo na estação da ferry, vi muitos mendigos se protegendo do frio cortante que fazia. Não tive muita vontade de visitar a Estátua da Liberdade, depois que me disseram que o acesso ao topo da estátua era abafado e quente. Também não me animei a visitar as Torres Gêmeas, pois fui informado de que a vista era a mesma do Empire State Building, com a diferença de mais alguns andares de altura. Futuramente, após a tragédia com as Torres, isso se transformaria numa grande frustração, diante da certeza de nunca mais poder subir ao topo do World Trade Center.

Visitei um programa de televisão chamado Ricky Lake, uma espécie de "Programa do Ratinho" à moda americana, onde as pessoas se xingavam e se agrediam o tempo todo. Foi muito divertido.

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O que mais me impressionava na cidade era a organização e o respeito ao sinal de trânsito, mesmo nas madrugadas. Por várias vezes, ao pegar um táxi voltando das farras para a casa onde estava hospedado, testemunhei a mesma cena: sempre que o sinal ficava vermelho, a qualquer hora da madrugada, o taxista parava o carro e esperava o sinal abrir. O sistema de metrô da cidade também me pareceu fantástico, de uma pontualidade infalível.

Na segunda viagem, eu já não estava tão preocupado em tirar fotos. Além do mais, fui fazer um curso de inglês em uma escola de intercâmbio cultural. Fiquei hospedado na casa de uma família no Brooklyn e estudava em Manhattan, na Sexta Avenida. Na casa onde eu fiquei havia um sistema de alarme cuja senha de acesso era trocada todos os dias. A pessoa tinha que digitar a senha, abrir a porta, fechá-la e digitá-la novamente. Um dia, eu me atrapalhei e o sistema disparou o alarme. Todos os moradores da casa correram para ver do que se tratava, achando que era um assaltante. Quando viram que era eu, respiraram aliviados, mas fiquei muito envergonhado e sem saber me explicar direito.

Um dia antes de minha viagem de volta ao Brasil, liguei para o serviço de táxi e marquei uma corrida para o aeroporto no dia seguinte. A pessoa que me atendeu ao telefone falou "hold on", e eu imaginei que ela voltaria a falar comigo. Fiquei "aguardando" e, depois que percebi que não havia ninguém na linha, desliguei. Alguns minutos mais tarde parou um táxi em frente à casa e começou a buzinar. Saí para ver o que era e me deparei com o táxi à minha espera para me levar ao aeroporto. Fiquei tão nervoso na hora que comecei a conversar em português com um dos filhos da dona da casa. Ele me olhava espantando, e eu continuava a falar sem parar, até me dar conta de que ele nada entendia do meu idioma. Depois de me acalmar, pedi a ele que explicasse ao taxista que a corrida era para o dia seguinte.

Conhecer os Estados Unidos foi uma experiência muito feliz, apesar de ser torturado pelo frio, que me obrigava a vestir várias roupas ao mesmo tempo, para conseguir me esquentar um pouco.

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Na primeira viagem que fiz tomei um grande susto, como é próprio dos inexperientes. Remarquei o meu voo pessoalmente no escritório da VASP em Nova York com uma brasileira. Tudo confirmado. No dia da viagem, fui para o aeroporto John Fitzgerald Kennedy, lépido e fagueiro, crente que meu voo sairia dali. Qual não foi meu espanto quando vi o guichê de check-in da VASP fechado. Procurei informações e me disseram que não havia nenhum voo saindo dali para o Brasil naquele dia. Fiquei desesperado. Depois, acabei descobrindo que o voo sairia de New Jersey, do aeroporto Newark. Peguei um táxi e, durante a corrida, não parava de pedir ao motorista que corresse bastante. Mas ele sempre respondia que já estava correndo dentro do limite máximo permitido e que ali havia controle de velocidade. Por mais que corresse, não conseguia me convencer de que ele não andava devagar. Mas no final deu tudo certo. Cheguei a tempo, fiz o check-in, embarquei e cheguei ao Brasil em paz.

Viagem a MadridQuando retornei de Nova York, em minha segunda viagem, no ano

de 2000, fui direto para Madrid, conhecer um pedaço da Europa. Aproveitei para fazer um curso de espanhol de vinte dias. Viajando como estudante, as despesas da viagem ficam menores, já que há descontos nas passagens aéreas e é fácil conseguir alojamento em casas de família. Aproveitei a viagem ao máximo. Caminhei muito pela cidade, fui à tourada, feiras livres, danceterias, visitei Segóvia e Toledo. Adorei o pessoal da escola onde estudei. Ali conheci gente do Japão, Coreia, Itália, Estados Unidos e outros países. A parte triste foi que aconteceu um acidente de carro com duas amigas coreanas, que acabaram morrendo. Todo o pessoal da escola ficou consternado e eu até chorei a morte delas. Fiquei impressionado quando a família de uma delas foi buscar o corpo e destruiu todos os seus pertences, inclusive as fotos que os amigos tiraram.

Faltando alguns dias para retornar ao Brasil, comecei a ficar subitamente apreensivo. Sentia uma necessidade grande de ver minha

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mãe. Por várias vezes ligara para saber como andava a saúde dela e sempre obtinha a resposta de que tudo estava bem, o que me deixava mais tranquilo, mas não eliminava aquela sensação de apreensão. Resolvi antecipar meu retorno. Mudei a data de embarque no voo que estava reservado e, de tão atrapalhado que estava, acabei chegando ao aeroporto um dia depois de o voo ter partido. Com algum esforço, a Varig conseguiu um lugar para mim num voo das Aerolíneas Argentinas. O voo era para Buenos Ayres, com escala em São Paulo. Ao chegar à capital paulista, notei que havia problemas com minha bagagem: ou não havia sido desembarcada ou fora extraviada. Registrei a ocorrência junto à companhia aérea e viajei para Salvador, a fim de aguardar em casa o resultado das investigações.

Falecimento de minha mãeDois ou três dias depois de ter chegado de viagem, recebi um

telefonema dando conta de que minha bagagem tinha sido localizada no aeroporto de Buenos Ayres e que já havia sido remetida a Salvador. Nesse meio tempo, meu celular ficou sem carga na bateria e, como o carregador se encontrava na mala extraviada, resolvi ir até o Tribunal Regional do Trabalho para usar o carregador de minha chefe, que tinha o aparelho igual ao meu.

Assim que a bateria completou a carga, recebi um telefonema de meu cunhado Nilson, de Jequié, com a trágica notícia de que minha mãe tinha acabado de falecer. Foi uma fatídica tarde do dia 14 de junho de 2000. Perdi a noção do tempo, do espaço, de tudo. Entrei em desespero e liguei para meu amigo Fernando, que me acompanhou na viagem a Jequié. Para minha surpresa, minha então chefe, Ramin, e meus colegas Márcio e Iraci também foram até Jequié para o enterro de minha mãe. Encontrei-me com eles somente no cemitério. Posso dizer que esta foi a maior perda de minha vida. Uma tristeza que não passa, uma lacuna que não se preenche, uma lembrança que jamais será esquecida.

Todos os irmãos conseguiram chegar para o velório, inclusive Mi, que morava em São Paulo, e Tó, que morava em Ilhéus, onde fui buscá-

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lo. Só Dida não conseguiu vir de São Paulo, pois não conseguiu dinheiro emprestado para pagar a passagem de avião.

Em todas as viagens de férias que fiz ao exterior, sempre fui sozinho. A única coisa que fazia era ligar para casa ou mandar um cartão-postal, não costumava comprar presentes. Mas, voltando dessa viagem à Espanha, trazia na mala para minha mãe um ímã de geladeira, com a frase “Te quiero, Mamá” (Te amo, Mamãe) e o desenho de uma senhora descascando alguma fruta ou verdura. Não consegui dar a ela o presentinho que comprei, já que falecera antes de eu chegar a Jequié.

Nunca havia pensado em levar alguém da família comigo nessas viagens, nem mesmo minha mãe. Porém, retornando de Madri para o Brasil, no avião das Aerolíneas Argentinas, encontrei uma senhora que morava em São Paulo. Viajava com sua mãe, pela primeira vez em muitos anos. Contou-me que era proprietária de uma empresa que fornecia alimentação para o exército e que passou muitos anos trabalhando sem parar. Um belo dia, voltando sonolenta do trabalho, seu carro atravessou a pista e quase bateu de frente em uma carreta que estava na pista oposta. Disse ela que, desse momento em diante, resolveu trabalhar menos e cuidar mais da saúde e da família. Estava ali viajando com a mãe justamente para dar início ao novo ciclo de sua vida. Após ouvir essa história, decidi que levaria minha mãe comigo na próxima viagem que fizesse ao exterior. Mas o destino não me deu tempo de realizar este desejo. A morte chegou antes, levando minha mãe de surpresa.

Faculdade de Turismo em 2001Prestei vestibular para turismo, concluí três semestres e tranquei o

curso por motivos particulares. Esses motivos me levaram, também, a solicitar uma licença sem remuneração do meu trabalho, por seis meses. Durante esse tempo, pensei e repensei minha vida, fiz planos de me transferir para outro estado, pensei até mesmo em ir morar em Manaus. Felizmente, após muito refletir, voltei ao trabalho, mas resolvi não mais

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continuar com o curso superior (Ver capítulo "Natal e Ano Novo 2003/2004").

Viagem a Porto AlegreParticipava do programa de milhagem da Varig. Em 2001, já

possuía milhagem suficiente para uma viagem dentro do Brasil. Resolvi então gastar minhas milhas em uma viagem pelo sul do país, em março daquele ano. Gostei muito da cidade, mas fiquei somente dois dias, pois não suportei o calor do verão no sul. De Porto Alegre parti para Florianópolis, de ônibus. Amei a cidade. Conheci a Ilha de Santa Catarina, a praia da Joaquina, o bairro Jurerê Internacional e outros locais fascinantes. Passei uma noite e um dia naquela cidade. Em seguida, segui para Foz do Iguaçu, Paraguai, Argentina, Rio de Janeiro, Vitória e Fortaleza. Foi uma viagem bem eclética.

Primeira viagem de avião de JuniorMeu filho Junior sempre me acompanhou em quase todas as

viagens que fiz a São Paulo, de ônibus e de carro. Um belo dia decidi fazer-lhe uma surpresa. Falei que iríamos ao aeroporto ver os aviões. Era uma segunda-feira de carnaval, do dia 11 de fevereiro de ano 2002. Fui para a avenida Sete dar uma olhada na festa e me divertir um pouco, antes de viajar. Quando faltava uma hora para o embarque, marcado para 21 horas, saí correndo feito louco para não perder o voo.

Ao chegar ao balcão da empresa, fui informado que o check-in tinha sido encerrado e que os passageiros já estavam embarcados. Aleguei que estava com uma criança e a atendente da Varig ligou para a aeronave e providenciou o embarque. Na verdade, os passageiros ainda aguardavam no salão. Junior nem tinha tomado banho ainda e eu vestia uma bermuda, camiseta e sandálias havaianas. Minha roupa e a roupa de Junior estavam dentro de um saco plástico do supermercado Bompreço.

Como eu não sabia que os passageiros do nosso voo ainda aguardavam no salão, entrei apressado pelo túnel de embarque e, no

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meio do caminho, fui informado por um funcionário para retornar ao salão e aguardar o chamado. Aproveitei então para ir ao sanitário trocar de roupa. O saco onde eu guardava as roupas se rompera e eu precisava providenciar um novo saco para guardar meus pertences. A solução foi pegar um saco de lixo do sanitário. Mas, após todos os contratempos, embarcamos e fizemos uma viagem tranquila. Junior ficou maravilhado e muito contente. Não parava de repetir: "Pai, o senhor não disse que viríamos ver aviões?", ao que eu respondia que era melhor estar dentro de um avião do que apenas vê-los por uma janela de vidro. E ele concordava exultante, mas não parava de perguntar quando iríamos ver os aviões.

Chegamos ao aeroporto de Guarulhos no horário previsto, ou seja, às 23 horas. Pegamos um ônibus executivo para o Centro da cidade e, ao chegarmos lá, o serviço de metrô já tinha encerrado o expediente. Tivemos de pegar vários ônibus, indo de um terminal para outro, até chegarmos à casa de meu irmão, no Jardim Ângela, às 5 horas da madrugada. Evitava deixar Junior dormir, para que não se tornasse mais um fardo a carregar, já que eu estava levando nossas malas, além do saco de lixo cheio de roupas.

Viagem à Venezuela em 2002Ganhei uma passagem de milhagem pela TAM e fui até Manaus. De

lá, peguei um ônibus que atravessou toda a floresta amazônica pela BR-174 até a cidade de Pacaraíma/RR. Ali, tomei um outro ônibus e fui até Santa Elena de Guairén, na Venezuela. Foi uma viagem maravilhosa, onde pude contemplar as lindas paisagens naturais, índios e animais exóticos. Foram apenas três dias nesse roteiro. Retornei logo a Salvador, partindo em direção a Jequié, para passar os festejos juninos com meus irmãos.

Acidente com o SantanaResolvi trocar meu Gol por um Santana. Viajei para Jequié num

final de semana, em setembro de 2002, e, na volta para Salvador, quase

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me envolvi num acidente fatal, próximo à região da cidade de Santo Estevão. Ao perceber que vinha um caminhão na contramão, freei o carro, que derrapou para a pista oposta, indo em direção a outro caminhão. Tentei desviar; o Santana derrapou na pista e "voou" em direção ao matagal que havia ao lado. O carro correu alguns metros por dentro do mato e parou num barranco. Respirei fundo, toquei em mim para ver se ainda estava vivo e saí do carro contente e sorrindo, junto com Fernando Bingre, um amigo que me acompanhava na viagem. O susto foi muito grande, mas me ajudou a aprender a valorizar mais a vida.

Viagem a CubaAntes de ir a Cuba, procurei informações sobre o país na Internet,

comprei um guia e me informei sobre visto de entrada, hospedagem, moeda corrente, clima, meios de transporte e tudo que um turista precisa saber para visitar um país desconhecido. Devidamente informado, liguei para algumas agências de turismo e enviei e-mails para outras, solicitando um orçamento de passagem aérea e hospedagem. Várias agências responderam. Fiquei sabendo que os voos partiam de São Paulo, pela Cubana de Aviación ou pela Copair. Comparei os preços e escolhi os três mais baratos. Liguei então para as agências solicitando que refizessem os orçamentos, desta vez sem a hospedagem. Todas me prometeram enviar as informações, que até hoje não chegaram, infelizmente. Fui pessoalmente a uma terceira agência, onde a atendente me aterrorizou dizendo que não valia a pena ir a Cuba. Alegou que era um local muito pobre e feio e que era uma viagem muito cara. Disse, inclusive, que um amigo dela que esteve em Cuba passara por situações terríveis e criticou a comida escassa, isso, aquilo e muito mais. Fiquei estarrecido com o relato, principalmente porque o objetivo de uma agência de turismo é "convencer o cliente a viajar", e não o contrário.

Resolvi, então, montar meu pacote por conta própria. Liguei diretamente para a empresa de aviação e reservei minha passagem. A própria companhia aérea se encarrega de enviar, via sedex, a passagem

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e o "cartão de turista", que é o visto cubano. Tudo foi resolvido em apenas um dia. Informei-me sobre hospedagem alternativa e encontrei as "casas de aluguel", que são casas de cubanos que podem ser alugadas a turistas, mediante uma autorização prévia do governo federal do país. Uma dessas casas era a de Miriam Crespo, em Havana, onde fiquei hospedado. Liguei para a proprietária e fiz a reserva, pagando-lhe as diárias assim que cheguei à sua residência. O custo foi muito mais barato do que o informado nos orçamentos das agências de turismo.

No dia 5 de outubro de 2002, embarquei em São Paulo rumo a Havana. Infelizmente, houve um problema com o radar do avião, o que obrigou os passageiros a desembarcarem e ficarem hospedados num hotel por quase dois dias, tudo pago pela companhia aérea de Cuba. Somente no domingo à noite conseguimos embarcar. Não diretamente para Cuba, mas com destino a Buenos Ayres, pela Aerolíneas Argentinas. De lá, pegamos um avião da Cubana de Aviación para Santiago do Chile e, finalmente, do Chile para Havana. Cheguei a Havana ao meio-dia de uma segunda-feira, dia 7 de outubro.

Transcrevo abaixo, algumas impressões sobre a viagem, escritas no dia 8 de outubro de 2002:

“Estou na varanda da casa que aluguei, olhando o movimento da rua. Devem ser oito horas da manhã. Poucas pessoas passam por aqui, que é um bairro residencial. Acho que, a esta hora, todos já foram para o trabalho.

Ainda não conheci o centro e a parte nova da cidade. Tudo que conheci até agora foi o que observei durante o percurso do carro que me trouxe do aeroporto, que fica a mais ou menos 20 km daqui, além do que pude ver na caminhada que fiz ontem, de uns cinco quilômetros. A cidade dá uma nítida impressão de simplicidade, extrema simplicidade, tudo muito parecido com o subúrbio de Salvador, especialmente com os bairros de Vista Alegre, Paripe, Alto de Coutos e Avenida Suburbana, no que diz respeito à arquitetura, ao traçado das ruas, à falta de conservação e manutenção das habitações e das praças e ruas em geral.

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A diferença é que, no bairro onde me hospedei, as ruas têm um estilo americano, onde as casas, afastadas umas das outras, têm jardim e cerca muito baixa. Uma parte da calçada é gramada e outra possui uma trilha cimentada. A maioria das casas é térrea. E os poucos edifícios que vi são bem antigos e muito parecidos com os prédios da Ilha de São João (subúrbio de Salvador, próximo a São Tomé de Paripe). A diferença primordial é que os prédios de Havana não têm grades na frente nem porteiros - nem mesmo eletrônicos -, porque não há violência ou perigo de roubo ou assalto. Fiquei impressionado com este fato, que se contrapõe à vida em Salvador, onde vivemos presos atrás de grades, tal qual animais enjaulados.

Hoje, pelo menos até agora, a temperatura está amena, ao contrário da temperatura de ontem que, de tão quente, tirou-me o ânimo de continuar a caminhar e conhecer melhor o bairro. Pretendo passar o dia inteiro fora de casa, tirando fotos e visitando lugares.

Aqui há três canais de televisão e a programação é bem diferente do que se vê no Brasil, inclusive não há propagandas comerciais. As emissoras exibem quase todo o tempo, programas educativos, aulas de idiomas, de História, Geografia e assuntos relacionados a Cuba. Há um noticiário - o "Noticero" - que é transmitido em cadeia pelos três canais durante a noite. O restante da programação é composto de shows de músicos cubanos, balé e tudo o que se refere à cultura e à revolução cubana. À noite, são apresentadas minisséries brasileiras duas vezes por semana (chamadas de novelas pelos locais). São intercaladas com novelas cubanas. Atualmente estão exibindo Chiquinha Gonzaga e Aquarela do Brasil, minisséries produzidas pela Rede Globo. Notícias esportivas também fazem parte da programação, mas os jogos ao vivo nunca são transmitidos, nem mesmo os da Copa Mundial. Não há satélites nem antenas parabólicas em Cuba, para evitar a entrada de imagens e interferências americanas nas TVs e rádios locais.

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9 de Outubro de 2002, 11:35h

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Estou em casa. Ontem fui a La Habana. Muito do que vi deixou-me chocado, pasmo... Todas as informações e fotos que antes coletara sobre Cuba estavam muito longe da verdadeira realidade cubana, que eu desconhecia totalmente. Observando in loco, notei que a dureza da vida do povo e a pobreza do país são muito maiores do que se possa imaginar. Tudo, absolutamente tudo, é antiquado e ultrapassado, desde os carros até os edifícios. As coisas são velhas e mal conservadas. Em contraste com toda a pobreza e decadência, porém, há alguns prédios em impecável estado de conservação, principalmente aqueles onde funcionam as embaixadas. Também vi carros importados de última geração e estranhei. Fui informado depois que esses carros pertenciam a técnicos estrangeiros que trabalhavam no país. Dificilmente um cubano comum poderia comprar um carro daqueles, devido ao altíssimo preço. Cabe assinalar aqui que, de fato, há carros particulares, mas a maioria deles pertence ao estado.

Tomei uma bebida cubana, muito tradicional e popular, o "Mojito" (pronuncia-se "morrito"). É uma espécie de caipirinha: rum, limão, açúcar, gelo, água mineral com gás e folhas de hortelã fina. Toma-se com um canudo. A bebida é ótima, mas seu preço é salgado: OITO DÓLARES o copo!

Fui comer em um restaurante chinês, mais parecido com aquelas espeluncas da Baixa do Sapateiro (Salvador/BA) do que propriamente com um restaurante. Comi uma bisteca, um pouco de salada de pepino, uma colher de arroz e tomei uma cerveja em lata. Preço: QUINZE DÓLARES.

Pelas ruas do bairro onde fiquei todos os dias passava um homem vendendo pão, iogurte de goiaba e leite de soja. Este homem é o "mensageiro". Cada família tem um limite máximo de pães para comprar, acho que UM pão por pessoa. Tudo que se compra deve ser anotado na "libreta", uma espécie de caderneta da família. Não podem ultrapassar o limite preestabelecido, para que todas as famílias possam comprar, já que a comida é escassa no país.

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Em uma de minhas caminhadas pelo centro de Havana, tomei uma água de coco que me custou DOIS DÓLARES. O coco era pequeno, feio e murcho, do tipo que eu jamais compraria se estivesse no Brasil. Tampouco um vendedor teria coragem de colocar aquele fruto à venda.

Não comi carne bovina nem vi aonde poderia comprar. Fui informado de que não deveria comprar carne nas ruas (não vi ninguém vendendo), pois o cubano que me vendesse a carne poderia ser preso. É proibido o comércio de carne, exceto nas "carnicerías" (açougues). O nativo que for pego pela polícia ou denunciado por vender carne é preso. No entanto, nada acontece ao turista que a compra. As pessoas vigiam umas às outras e qualquer deslize é logo denunciado. Em cada quadra dos bairros há um "Mayor" (responsável), a quem todos os moradores devem dar informações de tudo o que ocorre na vizinhança. Eles se reúnem uma vez por semana. A dona da casa onde o turista se hospeda é obrigada a informar nome, endereço e carteira de identidade de todas as pessoas que visitam o turista, sob pena de sanção por parte do Estado, que poderá ser de uma simples advertência e cancelamento da autorização para alugar a casa e até penas mais pesadas. Não obtive informações sobre em que consistiriam essas penas.

Não há muitas lojas ou vendas/armazéns, nem supermercados. Há pequenas lojinhas onde se vende de comida a roupa, tudo muito caro e da pior qualidade. Em uma das "tiendas" (lojas) mais completas que entrei, encontrei somente coxa de frango, fígado e moela de galinha, tudo de origem brasileira. O arroz era todo quebradinho e custava OITO DÓLARES o quilo, mas mesmo assim era muito mais barato que comer em restaurantes.

Os táxis são do estado; ônibus urbanos são raros. Os "camelos" - espécie de carreta imensa adaptada para transportar pessoas -, os trens, os automóveis, tudo pertence ao estado. Até mesmo as mototáxis, umas parecidas com laranjas e outras parecidas com aquelas motos americanas, com um side-car, pertencem ao estado. Há ainda as bicicletas-táxi, que cobram mais barato. Estas eu não sei se pertencem ao estado, mas sei que pagam taxas de licença para rodar como "táxi".

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Ninguém usa cintos de segurança nos carros. A maioria dos automóveis é muito antiga, das décadas de 40 e 50. Todos muito velhos, porém correm bastante. Por dentro, são destruídos e desprovidos de peças, já que ninguém consegue encontrá-las para reposição. O cheiro de gasolina, muito forte dentro desses carros, fazia com que eu me sentisse mal. A maioria desses veículos é particular e seus proprietários os utilizam como táxi, mediante uma licença do Estado. Outros transportam pessoas clandestinamente, correndo o risco de serem pegos pela polícia e serem presos.

Os telefones públicos são raros. Para fazer uma ligação internacional é necessário comprar um cartão que custa DEZ DÓLARES, ligar para a telefonista e solicitar a chamada, que não dura mais de cinco minutos. Ligar de uma residência é quase impossível, a menos que se conheça, e muito bem, o dono da casa, pois os cubanos têm medo de perder suas linhas telefônicas, já que as chamadas telefônicas podem ser gravadas pelo estado, por motivo de segurança.

Fui informado sobre a cesta básica mensal que cada família de quatro pessoas tem direito a comprar, a preços baixíssimos, para garantir que TODOS possam comer, pelo menos, o necessário. Os que têm dinheiro podem comprar de particulares, a preços maiores.

1 kg de biscoito20 l de iogurte20 l de leite1 kg de sal12 kg de arroz2,5 kg de feijão6 kg de açúcar branco4 kg de açúcar preto5 caixas de cigarros (somente para maiores de 42 anos de idade)1 l de óleo2 pacotes de café4 sabonetes (que devem durar até três meses)

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1 creme dental20 kg de gás de cozinha, a cada 20 dias4 kg de frango6 kg de peixe1 kg de salsicha1 kg de carne bovina4 dúzias de ovosfrutas diversas

Mais informações sobre Cuba:

1) El Malecon - uma avenida extensa, que mede mais ou menos uns oito quilômetros, que liga Habana Vieja (Centro Histórico) a Vedado (parte mais moderna), repleta de casarões antigos - muitos precisando de reforma urgente. Boa parte dos prédios antigos está sendo restaurada. As construções mais antigas e as ruas transversais próximas ao centro de Habana Vieja lembram muito as casas e prédios do Pelourinho, antes da reforma, e a atual rua 28 de setembro, ambos em Salvador/BA. Não se pode comentar nada a respeito de política ou sobre o governo. As pessoas se recusam a falar, com medo de que alguém as denuncie.

2) As emissoras de rádio funcionam em ondas médias e curtas, com uma transmissão muito precária. A programação é baseada em músicas cubanas, política, notícias nacionais e, uma ou outra vez, colocam uma música estrangeira, principalmente brasileira, como Roberto Carlos e Alexandre Pires, em espanhol.

3) A frota de aviões da empresa cubana é formada por aeronaves antigas e algumas com problemas no sistema de refrigeração.

4) Em minhas andanças, vi algumas embarcações no porto, que mais parecia um cemitério de navios do que verdadeiramente um porto.

5) A última moda entre os cubanos é a camiseta "furadinha", de cores berrantes, tipo azul, verde, laranja, rosa e vermelho.

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6) Acesso à Internet é uma raridade, se não totalmente inexistente. Os cubanos podem acessar "correio eletrônico", o que não pode ser chamado de Internet, como é hábito no resto do mundo, uma vez que não há acesso a sites estrangeiros e, talvez, nem mesmo a sites cubanos. Somente estrangeiros podem acessar a Internet, a preços desestimulantes.”

Viagem para São Paulo com Gal e ElianaNo ano de 2003, viajei de ônibus, mais uma vez, para São Paulo.

Dessa vez, levei meu irmão Gal, sua esposa Eliana, minha sobrinha Paulinha e meu filho Junior. Na viagem de volta, uma cena me chamou a atenção. Na verdade, eu já tinha visto esta cena várias vezes, nas idas e vindas entre Salvador e Jequié. Mas eu queria mostrá-la a Junior e Paulinha. Queria que vissem aquelas pessoas sentadas à beira da rodovia, com as mãos estendidas. Paulinha perguntou o que elas estavam fazendo naquela posição. Falei que estavam pedindo esmolas. E ela, surpresa, me perguntou o que significava "esmolas"... Lancei um sorriso de cumplicidade a meu irmão e minha cunhada, e expliquei a Paulinha do que se tratava. Afinal, tive uma boa experiência na ação de pedir esmolas.

Natal e Ano Novo em 2003/2004Devido a uma série de problemas particulares, conflitos,

contradições e pirações diversas, além de um assalto a mão armada que sofri, o final de ano de 2003 para 2004 não foi dos melhores, apesar de eu ter passado as festas de Natal e Ano Novo rodeado de familiares em São Paulo. Ao retornar a Salvador, fui forçado pelas circunstâncias a pedir uma licença não remunerada de meu trabalho e a trancar meu curso de Turismo na Faculdade São Salvador.

Passei oito meses enclausurado em mim mesmo, tentando sair de uma profunda depressão, do poço escuro... Recorri até a ajuda profissional. Durante esse período, não produzi absolutamente nada, nem sequer acrescentei uma vírgula a esse livro, já em fase final. Pensei,

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repensei, caminhei mentalmente mil vezes o Caminho de Santiago de Compostela, peregrinei pelas profundezas de minha alma até que, finalmente, após várias injeções de doses de misericórdia, e também auxiliado pela terapia TEATRO, com André Mustafá e Marília Galvão no comando, fui sendo, aos poucos, trazido de volta à vida. E aqui estou, inteiro, completo, repleto de milhões de ideias positivas e rejuvenescedoras, pronto para compartilhar com quem quer que venha ao meu encontro.

Antes de sair desse estado de torpor, praticamente vegetei. Durante muitos dias eu acordava pela manhã em pânico, triste e deprimido, apesar de estar tomando remédios fortíssimos para combater a doença psicológica. Todas as manhãs eu ouvia músicas de Enya, vindo de longe, como se o vento as estivesse trazendo para me perturbar. Aquelas músicas eram as mesmas que eu ouvia ao namorar, ao buscar me concentrar em meus trabalhos mentais e também quando eu queria ficar em paz. Mas, nas circunstâncias em que eu as estava ouvindo, era muito contraditório. Elas serviam para me deixar cada vez mais enclausurado e com medo de sair de casa.

Nesses momentos de solidão, eu pensava em morrer, em fugir da cidade, em fugir das pessoas e de mim mesmo. Todos os meus compromissos sociais eu cancelava sem motivo justo, ou simplesmente não comparecia a encontros com amigos e parentes, para não conversar com ninguém.

Busquei, além de ajuda psicológica e psiquiátrica, ajuda espiritual. Frequentei o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa Viagem, em Salvador, por várias semanas. Ali, eu conseguia um pouco de paz espiritual, mas, quando retornava para casa, o mundo caía de novo em minha cabeça. Fui, também, à Federação Espírita, no Pelourinho, tomar "passes", que me acalmavam enquanto eu estava na casa espírita.

Foram muitas noites de fuga, muita desilusão e falta de interesse de voltar à realidade... Então eu decidi enfrentar o problema de frente. Parei de tomar os remédios controlados, comecei a sair de casa, mesmo

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apavorado. Andei a pé por muitas ruas e praias ditas perigosas, evitando olhar para trás. Meu medo era que alguém estivesse me seguindo para me matar ou me causar um mal, mas eu enfrentava esse medo para que ele não me controlasse mais ainda.

Aos poucos fui tomando confiança em mim, acreditando que eu poderia sobreviver àquele pesadelo. Paulatinamente, eu percebia que a cada dia melhorava um pouco mais... Até no teatro eu comecei a sentir que me concentrava mais e mais nos textos e na interpretação. Após longos oito meses de terapia convencional e não convencional, me achei apto a voltar a trabalhar e a levar adiante meus projetos de vida, que até então estavam estacionados.

Graças a Deus consegui me libertar do medo e da depressão, à custa de muito esforço e de muita ajuda espiritual. Eu orei muito durante várias semanas, buscando fortalecer o meu ego e minha alma, que tinha passado por uma experiência muito difícil. Finalmente entrei em estado de consciência positiva e prossegui minha jornada até hoje. Continuo em busca, cada vez mais, de um equilíbrio emocional e espiritual.

Natal e Ano Novo em 2004/2005Praticamente todos os anos eu viajava para São Paulo. E, nos finais

de ano, sempre levando minha mãe e mais algum irmão ou parente que ainda não tivessem conhecido a maior cidade do Brasil. Em 2004, devido aos ensaios de uma peça teatral que estrearia em breve nas casas de espetáculo de Salvador, preferi não viajar. E foi um Natal diferente. Passei na casa de Dona Célia, em Monte Gordo.

Conheço dona Célia e sua família há mais de dez anos. Acabei por adotá-la como mãe e seus filhos como irmãos. Mas, antes mesmo de me sentir irmão de seus filhos, estes já me consideravam como tal. E, por incrível que pareça, foi o primeiro Natal em que troquei presentes, como se estivesse no seio da minha verdadeira família, o que, aliás, nunca fizera antes com meus irmãos de sangue. À meia-noite em ponto, estouramos champanhe, fizemos a ceia, trocamos presentes e desejamos

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uns aos outros muitas felicidades e saúde. Depois caímos todos na piscina, que estava com sua boca azul e aberta, esperando para nos devorar naquela noite maravilhosa.

Foi um Natal espetacular, regado a sentimento, carinho, respeito, amor, afeto e positividade. Os participantes da festa: eu, Dona Célia e seus filhos Roque e Ivana, suas netinhas Estéfane e Ariana, e os amigos: Edmar Mascarenhas, Isabela, Vera, Everaldo, Edebaldo, Meire, Érika, Cris e o bebê Eriem, que vieram de Jacobina especialmente para esta confraternização de final de ano.

Orientação ReligiosaTalvez não coubesse neste livro discorrer sobre "religião", já que o

que se ouve por aí é que "religião, futebol e política não se discute". Mas tenho muito medo do que se esconde por trás de frases como essas que se perpetuam através da existência humana e que acabam travando ou atrasando o fluir do pensamento e sua evolução. Não me refiro aqui à minha orientação ou crença pessoal, mas a uma visão mais abrangente do assunto. Estou colocando apenas uma impressão, enquanto ser único e individual, que é, ao mesmo tempo, influenciável e influenciador.

Nasci na religião católica, com direito a missas, catecismo, primeira comunhão, crisma e tudo mais, como a maioria dos brasileiros. Diz-se que todo aquele que não tem religião é católico, o que é bastante discutível, já que há "católicos" (os praticantes) e "católicos" (os não praticantes). Mas o mérito desta questão eu deixo para os doutores no assunto.

O que me compete dizer aqui é que eu e todos da minha família (tudo começou no Jardim do Éden, com meu pai e minha mãe) fomos católicos por muitos anos. Por força da necessidade de comer e beber - necessidades básicas do ser humano -, tivemos contato com o Espiritismo Kardecista, atraídos principalmente pelas cestas básicas distribuídas aos frequentadores do Centro Espírita Bezerra de Menezes. Devido às circunstâncias da vida, problemas de saúde, financeiros e outros, minha mãe acabou voltando aos terreiros de Candomblé, os

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quais já havia frequentado em sua juventude, segundo seus relatos. Mesclaram-se três religiões a partir de então.

Na minha adolescência, em virtude dos conflitos existenciais, acabei me perdendo em meio a tantas definições sobre o que era certo e o que era errado. Busquei refúgio na Igreja Batista Monte Horebe e me "converti", amedrontado por aqueles filmes que mostravam o destino dos "infiéis", que eram queimados no mármore do inferno. Bíblia na mão, cantor cristão, harpa, livrinho de hinos e idas diárias à igreja. Levava comigo a família inteira e os vizinhos mais próximos. Depois "acordei" para outros horizontes e saí da igreja, arrastando todos os meus SEGUIDORES de volta.

Transcorridos oito ou nove anos desde que passei a morar em Salvador, conheci pessoas que professavam o Candomblé, que me convidaram para assistir a rituais e participar de festas. E fui. Conheci várias "roças", e tinha sempre sensações estranhas em quase todas as festas das quais participava: tremores, calafrios, tonturas e arrepios. Fiquei receoso do que poderia resultar essa experiência e preferi dar um tempo, fora das atividades, para pensar no assunto.

Por ocasião deste tema, gostaria de deixar registrado que minha mãe era um pouco bruxa. Conhecia e fazia uso com sucesso de inúmeras plantas medicinais, pressentia o que estava por vir, tinha visões de acontecimentos futuros, que posteriormente eram sempre comprovados. Isso sempre nos deixou um tanto perturbados, pois nos recusávamos a acreditar que ela pudesse possuir tais poderes. Mas os fatos sempre se confirmavam. Tinha planos de escrever um livro, relatando todo o seu conhecimento a respeito das plantas e de suas propriedades medicinais. Fui adiando, adiando, e hoje me arrependo de não tê-lo escrito.

Para concluir a questão religiosa, minha mãe morreu espiritualista e foi velada numa igreja batista. Minha irmã Valquíria se converteu ao protestantismo e hoje frequenta uma igreja batista. Minha irmã Ivonete é beata de carteirinha, frequenta e quase mora na igreja católica. Está mesmo se tornando uma freira. Os demais irmãos frequentam qualquer igreja que esteja aberta e na passagem dos seus caminhos. E eu

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frequento o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa Viagem, em Salvador, e a Federação Espírita da Bahia, no Largo São Francisco, no Pelourinho. Mas, se for convidado para assistir a uma missa, irei; para participar de um culto evangélico, participarei; para ir a uma festa de candomblé, estarei lá, sempre com a maior boa vontade.

AtualmenteTrabalho ainda no Tribunal Regional do Trabalho, em Salvador.

Valquíria (Quira), minha irmã mais velha, mora há oito anos em Jequié com seu novo marido, Nilson, com quem se casou recentemente. Em oito de novembro de 2004, Quira foi submetida a uma cirurgia. Quando criança teve complicações de saúde que a deixaram com sequelas sérias. Tinha de ficar amarrada na cama para não cair, pois se batia o tempo todo. Depois do tratamento médico, ficou boa. Mas o que ela nem a família sabiam era que o tratamento não poderia ter sido interrompido. Resultado: teve uma febre reumática e a bactéria causadora da doença se alojou na válvula mitral esquerda do coração. Com o passar dos anos, começou a se queixar frequentemente de cansaço, falta de ar e outros distúrbios relacionados à respiração e circulação sanguínea. Em janeiro de 2004, Quira resolveu entrar numa academia de ginástica e, no teste de avaliação física, desmaiou. Procurou um médico cardiologista especializado, que sugeriu uma valvuloplastia urgente.

Após vários exames nos hospitais de Salvador e uma espera de seis meses para que o INSS concluísse o processo de licitação internacional e compra do material a ser utilizado, finalmente conseguiu marcar sua cirurgia no Hospital Santa Isabel para o dia 20 de setembro de 2004, que foi adiada dois dias antes, sem previsão de nova data para sua realização. Enquanto a intervenção não acontecia, Valquíria passava momentos difíceis, com apenas 10% da capacidade da válvula mitral esquerda em funcionamento.

Em decorrência de várias complicações, foi atendida mais de três vezes na emergência cardiológica do Hospital Santa Isabel, que sempre exigia um cheque de R$ 2.000,00 como depósito antecipado para

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realizar o atendimento médico. E isso depois de conseguirmos furar a barreira dos seguranças na entrada da emergência, que só se preocupavam em perguntar, antes de qualquer coisa: "qual é o convênio médico?". Por meio de informações diversas, descobrimos que o Hospital das Clínicas (UFBA) também realizava esse tipo de cirurgia. E assim conseguimos marcar uma outra data, 28 de outubro de 2004, que supúnhamos ser definitiva. Porém, fomos surpreendidos, na véspera da cirurgia, com a notícia de que ela teria de ser adiada, sem previsão de nova data, porque o INSS não tinha liberado o material necessário ao procedimento, que custava mais de R$ 40.000,00.

Pesquisando na Internet, descobrimos o Instituto do Coração de Cachoeiro do Itapemirim/ES, para onde encaminhei Quira, que viajou acompanhada de Nete, nossa irmã, para se submeter à cirurgia. Viajaram no dia 4 de novembro. Quira ficou hospedada em uma casa de apoio mantida pela comunidade cachoeirense e, no dia 8 de novembro de 2004, foi internada e submetida à intervenção cirúrgica, que, graças a Deus, foi um sucesso total. Em questão de dias, o problema, que esperou durante anos por uma solução, chegou ao fim.

Valdecy (China) mora hoje em Vitória da Conquista com o marido Roberto e o filho Roberto Junior. Foram oito longos anos de espera por uma transferência da Escola Agrotécnica Federal de Santa Inês/BA, onde seu marido trabalhava, para o Centro Federal de Educação Tecnológica de Vitória da Conquista/BA.

Valmir (Mi) mora em São Paulo, com a esposa Célia e os filhos Ramon e Amanda. Também em São Paulo moram Valdir (Dida), com a esposa Raimunda e a filha Jéssica, e Vitório (Tó), com a esposa Rejane e os filhos Vítor e Tiago. O primeiro trabalha como porteiro de um grande condomínio e os demais como chapistas em oficinas mecânicas.

Vivaldo (Gal) mora em Jequié, com a esposa Eliana e a filha Paula, e trabalha como chapista em uma oficina mecânica. Nete, caçula e solteira, está fazendo faculdade de Pedagogia em Jequié.

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Creio que somos todos vencedores, sobretudo porque não fugimos à luta. De tudo, ficaram lições que disponibilizo aqui como uma espécie de roteiro.

Roteiro para quem quer vencer na vida:

1. Traçar um objetivo real e plausível, para não se frustrar, caso não consiga atingi-lo.

2. Fazer um plano de metas a serem atingidas, a cada dia ou a cada semana.

3. Caso não consiga concluir o plano diário ou semanal, verificar o que não deu certo para tentar novamente ou mudar de plano.

4. Ter muita paciência, pois o dia-a-dia nem sempre é estimulante.5. Ter muita fé naquilo que se propuser a fazer e persistir sempre.6. Dividir sonhos e objetivos somente com aqueles que possam lhe

ajudar a concretizá-los ou, ao menos, incentivar-lhe e dar boas dicas.7. Nunca se lamentar de uma situação difícil, nem usar os pontos

negativos para desistir ou diminuir a luta.8. Falar muito pouco sobre os planos estratégicos para a sua

caminhada.9. Sempre dizer "não" a vendedores e promotores de vendas.10. Evitar gastos desnecessários com festas, roupas e diversões.11. Estudar e planejar, mesmo nos dias em que não houver o que

comer, e concluir a tarefa do dia a qualquer custo.12. Não passar para a etapa seguinte sem antes concluir a atual.13. Contabilizar erros, acertos, gastos monetários etc., a fim de

fazer uma análise crítica dos dados obtidos.14. Adotar sempre uma atitude positiva diante da vida e deixar que

esta imagem transpareça ao olhar dos outros. 15. Não desistir, nunca.

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CONCLUSÃO

O objetivo principal da existência humana é a evolução. Mas muitas vezes evolução é confundida com conquista de bens materiais e conforto físico. Acredito, no entanto, que seja um pouco mais que isso, e que o maior patrimônio que se pode acumular com a experiência de vida na Terra é o patrimônio espiritual.

Antes de compreender que a vida é curta e efêmera, protestei e me revoltei. Talvez por isso tenha sofrido alguns revezes relacionados à saúde, ao amor, à família e a outros aspectos da vida.

Sempre lutando muito - e honestamente, diga-se de passagem -, consegui superar a barreira da mendicância e passei de pedinte a esmoler. Mas a brutalidade inata, ou adquirida, ainda permaneceu em minhas atitudes (e continua até hoje). Isso ocasionou (e ainda ocasiona) muitos sofrimentos, mas, atualmente, já não com a mesma intensidade dos tempos passados.

Fui aprendendo, com a experiência, que doar não era o bastante; o ato da doação deve ser precedido por uma verdadeira vontade de doar. Tentei, e tento ainda, praticar a doação com desprendimento, sem culpa, sem querer barganhar com os céus. E, com isso, tenho percebido que minha vida vem se transformando para melhor, à medida que avanço nessa prática. Essa doação não deve ser necessariamente compreendida com o ato de retirar algo físico de meu patrimônio para dá-lo a outrem. Deve ser compreendida, sobretudo, como o ato de doar sabedoria, aconselhamento, atenção, tempo, um olhar de cumplicidade, um ombro amigo...

Após esse estágio de quarenta anos de vida, tornei-me uma pessoa mais humana, mais verdadeira, mais tolerante e mais polida, apesar de ainda estar muito longe do ideal. Mas já é um bom começo. Quem sabe na próxima encarnação a evolução aconteça mais rapidamente...

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HISTÓRIAS BIZARRAS

Jequié/BA

Mordida no Braço de DidaUma vez estava com ele, recém-nascido, no colo, andando pelos

arredores da casa, mordendo-lhe a camisa recém-trocada por minha mãe. E eis que meu dente pegou no braço do menino, que começou a gritar desesperado. Minha mãe veio pra me bater, mas, como não sabia o que havia ocorrido ao certo, desistiu. Nem percebeu a marca do meu dente no braço dele...

Choque elétricoUma vez estávamos eu e minha mãe pedindo esmola nas ruas. Ela

entrou numa lanchonete, onde havia um balcão de vidro com uma lâmpada para iluminar as mercadorias. A lâmpada ficava na parte externa do balcão e, ao lado dela, havia um bocal sem lâmpada, no qual minha curiosidade infantil levou-me a enfiar o dedo. Tomei um choque elétrico brutal, que me fez cair ao chão e chorar muito. O pessoal da lanchonete me socorreu. Passaram manteiga em meu dedo e me deram sorvete para acalmar. A lanchonete ainda fica no Maringá, perto de um posto de gasolina, guardando minhas histórias de menino.

Pegador de Menino e Tirador de SangueUma das pérolas do folclore popular, alimentada pela ignorância

das pessoas, era a lenda dos "pegadores de menino" ou "tiradores de sangue", que supostamente andavam pelas ruas dos bairros pobres tentando atrair crianças com balas e doces, para depois sequestrá-las e tirar seu sangue. Segundo os mais velhos, havia uma "carneira" no cemitério da cidade, que sangrava o tempo todo, e o sangue tirado das crianças seria usado para lavar essa carneira, numa espécie de ritual para purificar pecados e maldades do morto, que seria um bruxo ou algo que o valha. Eu ouvia essas histórias tanto em Jequié quanto na fazenda

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onde morei. Dizia o povo que esses malfeitores colocavam as crianças em sacos grandes e as levavam para bem longe. Este argumento era usado, principalmente, para amedrontar os meninos, desestimulando-lhes a vontade de sair de casa. Na fazenda onde vivi dos meus sete aos doze anos, cansei de ouvir essas histórias, e só depois de muitos anos consegui estabelecer um paralelo entre o folclore e a realidade. Os homens da SUCAM - atual Fundação Nacional de Saúde, empresa governamental que realiza exames de sangue e também investiga se há focos de dengue nas residências - encaixavam-se perfeitamente nas características dos "pegadores de menino" e dos "tiradores de sangue". Por esta razão, eram muitas vezes mal compreendidos pela população.

LobisomemTínhamos muito medo de lobisomem, quando eu era criança e toda

noite aparecia alguém unhando a porta e a janela da casa de Amanda, onde morávamos. Minha mãe dizia que era "ele", querendo pegar crianças sapecas... Eu ficava apavorado, acreditando ser a mais pura verdade. A lenda do lobisomem é muito comum nas cidades do interior.

Meu anel preferidoJunto à casa de Amanda, onde morávamos, havia a casa da Ana de

Antônio Cego. Eu e meus irmãos costumávamos brincar por lá com os filhos dela. Certa vez, apareceram na casa umas moças que tomaram meu anel. Era um anel bem simples, sem valor algum. Mas era meu, e eu o tinha no dedo há muito tempo. Porém, a forma com que me roubaram o anel, forçando-me a tirá-lo do dedo, marcou-me para sempre. E jamais me esquecerei desta mágoa e deste dia.

Achei um dinheiroQuando tinha meus doze anos, costumava ir à feira livre com meu

pai. Num belo dia de sorte, na avenida Franz Gedeon, encontrei uma cédula de dez cruzeiros. Estava molhada, estirada na calçada. Eu peguei a cédula e mostrei a meu pai, que a guardou com muito cuidado no bolso

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direito, para que não fosse destruída pelos movimentos da perna da calça. Pelo tanto de compras que ele fez com aquele dinheiro, a nota devia valer bastante.

Carrinho de rolimãTodos os garotos de minha idade, ou mais velhos, possuíam um

carrinho de rolimã. Era uma tábua com duas rodinhas atrás e uma na frente, onde cada um se sentava e era empurrado por alguém nas calçadas ou no asfalto. Muitos acidentes aconteciam quando algum menino caía ou quando o carrinho quebrava. Com rolamentos que achei nos lixos das oficinas mecânicas, construí meu carro de rolimã. Meus irmãos ficavam com muita raiva, e com razão. Obrigava-os sempre a me empurrar rua acima e rua abaixo no carrinho, mas, quando chegava a minha vez de empurrá-los, eu sempre dava uma desculpa para escapar daquele encargo.

Caminhada até a BarragemNunca gostei muito de ficar em casa parado. Por isso, em certa

ocasião, chamei meus irmãos Mi, Tó e Dida para fazermos uma caminhada de Jequié até a Barragem de Pedras, situada a mais ou menos uns trinta quilômetros do centro da cidade. O sol estava escaldante e, no meio do caminho, a fome apertou. Sem muitas opções, fomos comendo tudo o que encontrávamos pela estrada, de casca de melancia a laranja estragada. Na volta, ainda subimos no Morro do Totonho, onde ficam instaladas as torres de transmissão de TV e rádio da cidade. Resultado: chegamos desidratados em casa e a maioria de nós teve febre e vômitos.

Acidentes com NeteQuando Nete - minha irmã mais nova - era criança, comeu folhas

de uma planta venenosa que minha mãe tinha dentro de casa. Era cocó, uma planta verde com pintas brancas espalhadas pelas folhas. Ela ficou espumando e foi levada ao hospital passando mal. Mas, graças a Deus, o

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socorro foi rápido e eficiente e Nete sobreviveu a mais uma perigosa aventura infantil.

Mais uma aventura de Nete: quando tinha dois anos de idade, bebeu água sanitária Q-Boa. Não me lembro de maiores detalhes desse outro incidente em que Nete se meteu. Só sei que ela passou muito mal e foi levada ao hospital regional para ser medicada. Ficou internada e depois foi liberada. Depois desse episódio, nós a apelidamos de "Q-boa". Ela ficava muito chateada quando a chamávamos assim.

Roubo de docesLembro de uma vez que fui ao Supermercado Cardoso comprar um

doce. Tinha dinheiro somente para um pacotinho. Abri um pacote e comi a metade, depois o joguei na prateleira e peguei outro pacote inteiro. Fui direto ao caixa, todo desconfiado, mas, antes de pagar pelo pacotinho de doce, o segurança do mercado apareceu com o outro que eu tinha furado e jogou em cima do guichê do caixa, para que eu pagasse. Como o dinheiro não era suficiente para dois pacotes, deixei os dois no mercado e fui em casa buscar mais para pagar e resgatar os doces. Até hoje não voltei nem para pagar nem para receber o pacote de doce, mas aprendi a lição.

A calça de MemésioMemésio, meu padrinho, era gordo como uma baleia. Uma vez, ele

deu algumas roupas usadas para que minha mãe cortasse e fizesse roupas para nós. Para se ter uma ideia do tamanho do homem, uma calça dele, somente, se transformou em três calças para mim e ainda sobrou tecido.

Miguel, o filho de OdíliaHavia um campinho de bola em frente à casa em que morávamos,

onde os moleques sempre jogavam baba no final da tarde. Eu, perna de pau de carteirinha, só olhava. Um dia, Miguel, o filho de Dona Odília, chutou a bola com muita força em cima de mim. Reagi, dando-lhe uns

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bons tabefes e murros. Esta foi uma das raríssimas brigas em que me meti contra outros rapazes. Depois fizemos as pazes. Em outra oportunidade, nós nos encontramos num jogo de futebol. Jogávamos em times diferentes, para sorte dele. Eu nunca conseguia passar a bola para os jogadores do meu time, mesmo estando eles vestidos com camisa igual. Sempre tive problemas de coordenação. Conclusão: meu time acabou perdendo e eu fui expulso porque, de uma forma ou de outra, acabava ajudando o time adversário.

Caderninho de gastosDurante muitos anos usei um caderninho onde anotava todas as

minhas transações comerciais, ou seja, tudo o que envolvia gastos e ganhos de dinheiro. Era uma forma de controlar meu orçamento. Na prática, não deixava de ser uma contabilidade rudimentar, pois, através desses lançamentos, tinha ideia do quanto possuía, do quanto poderia gastar e com o quê. Um simples picolé que eu comprasse ficava ali registrado, para não me esquecer que, naquela semana, eu já tinha chupado um picolé e não deveria comprar outro, incorrendo assim em "gasto extra" com guloseimas. Foi um tempo muito difícil, mas aprendi a controlar minhas modestas finanças. Hoje já não há necessidade dessas anotações, tampouco possuo planilhas eletrônicas para acompanhar minha vida financeira. A própria experiência de vida me deu bases para este controle, onde evito não me envolver em empreendimentos mirabolantes ou em compras de bens desnecessários, que possam comprometer meu equilíbrio financeiro.

A cabraMinha mãe ganhou uma cabrita de presente e levou para criar em

casa cujo quintal não era murado. A pobre da cabrita tinha que viver amarrada a uma corda durante todo o tempo. Quando o sol estava muito quente, minha mãe colocava-a dentro de casa, fazendo o mesmo também à noite, para que a cabra dormisse protegida dos ladrões que moravam

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no bairro Pau Ferro. Em fotos de família ainda podemos ver minha mãe sentada em sua cadeira de rodas com a cabra no colo.

Feira do CardosoMinha mãe pedia esmolas em frente ao Supermercado Cardoso, no

Centro da cidade de Jequié. Todos os dias, um de nós a levava até a porta do supermercado. Isso fez com que ela passasse a conhecer o dono do estabelecimento, que passou a doar-lhe uma cesta básica por semana. Esta cesta de comida sustentou a família inteira por muitos anos.

PinducaNa época em que moramos no bairro Pau Ferro, por volta de 1987,

nosso gosto musical era muito influenciado pelo que ouvíamos na casa dos vizinhos. Assim, nós nos encantamos pelas músicas de Pinduca, tocadas nas radiolas de quase todos os moradores do bairro. Até encomendei uma edição antiga do disco de vinil dele, numa empresa que fazia regravações de sucessos antigos. A sede da empresa era em São Paulo e o disco foi enviado pelo correio. Foi uma festa. Ouvíamos esse disco todos os dias, repetidamente. E, nos finais de semana, colocávamos as músicas de Pinduca para tocar na radiola, na porta de casa, do lado de fora. Era uma radiola pequena, daquelas com uma tampa que, quando fechada, se transformava numa espécie de maletinha. Tão pequena que tínhamos de abri-la completamente para que o disco pudesse tocar. Nesse bairro, onde somente moravam pessoas muito pobres, o costume era colocar o som do lado de fora. Assim, toda a vizinhança era obrigada a ouvir as músicas que estivessem tocando na casa de alguém.

PercevejosDurante toda a nossa vida fomos perseguidos pelos percevejos.

Somente quando passamos a morar em nossa primeira casa própria, no loteamento Itaygara, começamos a nos livrar dessa praga. Desde criança convivi com os percevejos. Eles nos acompanhavam por todas as casas onde morávamos. Ou levávamos os nossos, ou encontrávamos percevejos

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novos nas casas onde passávamos a habitar. Era uma coisa terrível. Eu tinha uma espécie de alergia a percevejos e quase não conseguia dormir quando atacado por eles. Mais terrível ainda era o mau cheiro que deles exalava quando os espremíamos para matá-los. As casas onde morávamos sempre ficavam com as paredes pintadas de sangue, pois os matávamos onde quer que estivessem. Mas, por mais que os matássemos, nunca conseguíamos nos livrar desses insetos horrorosos. Entranhavam pelas frestas das paredes e dos móveis, escondendo-se da claridade do dia. Só apareciam à noite, para infernizar nossa vida e sugar nosso sangue. Nessa casa do Mandacaru, eles começaram a desaparecer. Havia na sala um sofá velho, que tinha somente a carcaça de madeira e um colchão deformado que servia de almofada. Esse sofá velho servia de cama para nós e para um cachorro chamado Rex, que criávamos. Todos os dias, minha mãe colocava essa carcaça ao sol para que os percevejos começassem a sair das frestas do sofá, pelo efeito do calor. Em seguida, ela jogava água fervente sobre o sofá e matava centenas deles. Com o tempo, os percevejos foram ficando cada vez mais raros, até desaparecerem por completo de nossas vidas, após mais de 25 anos de perseguição.

O beliche que Paula construiuNesta casinha do bairro Mandacaru o espaço era exíguo e cada

centímetro muito importante. Como não havia onde colocar camas para todos, minha mãe acabou "construindo" um beliche com as camas velhas que possuíamos. Amarrou com paus e arames uma cama sobre outra e fez um beliche até o teto. Certa noite, Tó acordou gritando, desesperado, dizendo que tinha um olho nas telhas a lhe espreitar. Ele estava dormindo no último dos beliches, que ficava quase colado ao telhado. A luz da lua passava pelo buraco de uma das telhas, fazendo-o imaginar que seu reflexo era um olho.

Clínica São Vicente

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Uma ocasião, Nete, nossa irmã caçula, foi internada na Clínica São Vicente, com febre e diarreia. Minha mãe voltou para casa e reuniu toda a família. Pegou lençóis, cobertores, sacolas de roupas e mais alguns apetrechos e levou-nos todos para lá. Chegando à clínica, entramos e nos acomodamos na enfermaria onde minha irmã estava internada. Tomamos banho nos banheiros da clínica, jantamos, assistimos TV e depois nos acomodamos nas camas destinadas aos pacientes internados. A festa não durou muito. Quando as enfermeiras perceberam que havia somente uma pessoa doente e que as demais faziam parte da família, expulsou-nos de lá.

Penico de bostaMeus irmãos contam uma cena muito cômica. Não tínhamos

sanitário em casa, até porque não havia esgotamento sanitário no recém-lançado bairro Itaygara, onde morávamos. Assim, cada morador se virava como podia para satisfazer suas necessidades fisiológicas. A maioria usava o matagal próximo à sua casa ou então enchia sacos de bosta e jogava-os no mato - os chamados "aviões". Vitório, um de meus irmãos, preferia cagar atrás do muro que fizemos para cercar a casa. Tínhamos um penico, que era usado durante toda a noite e despejado no mato na manhã seguinte. Só que todos se recusavam a descarregar o penico, alegando não terem feito uso do dito-cujo durante a noite. Sobrava para minha mãe, como sempre, que despejava o penico por cima do muro. Num belo dia, quando Vitório estava agachado atrás do muro, cagando compenetradamente, o penico foi despejado subitamente em sua cabeça. Ele ficou furioso. Xingou feito louco e ainda teve que caminhar quase um quilômetro até o rio de Contas, para tomar banho e tirar o fedor de bosta do corpo.

EscorpiõesNossa casa foi a primeira a ser construída no bairro Itaygara e era

cercada de mato por todos os lados, exceto na frente. E o loteamento era infestado de escorpiões. Tomávamos todas as precauções possíveis, mas

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não pudemos escapar da fatalidade: Quira, ainda grávida de Murilo, foi picada por um escorpião e levada às pressas para o hospital regional. Semanas mais tarde, minha mãe foi a vítima seguinte do inseto. Felizmente, o socorro foi rápido e eficiente, em ambas as oportunidades, o que ensejou recuperação rápida tanto de minha irmã quanto de minha mãe.

China em SalvadorChina foi uma das pessoas da família que menos conviveu dentro

de casa com os irmãos, já que passava a maior parte de seu tempo trabalhando em casas de família. Se não era em Jequié, era em Salvador. Quando foi morar na casa de uma moça na Politeama, China enviava-nos muitas cartas, dizendo que se sentia muito triste e que não aguentava viver longe da família. Falava que era tratada a pão e água na casa onde vivia e das situações constrangedoras por que tinha de passar. Queixava-se que, quando as visitas a confundiam com alguém da família, tratavam-na muito bem. Mas, tão logo descobriam que ela era apenas uma empregada doméstica, mudavam radicalmente sua forma de tratamento.

Vitório e Dida em IlhéusVitório não estava gostando muito do salário que recebia na oficina

mecânica onde trabalhava em Jequié, por volta do ano de 1992, e resolveu ir para Ilhéus tentar vida nova. Levou apenas uma sacola plástica com um par de bermudas e outro de camisas, além de uma sandália havaiana e objetos de uso pessoal, como escova e pente. Tinha somente o dinheiro da passagem de ida.

Contou-nos depois que, ao chegar a Ilhéus, arrependeu-se e queria voltar para Jequié. Mas não podia, pois não tinha dinheiro da passagem. Disse que pensou que a cidade era apenas a rodoviária e alguns barracões que estavam enfileirados ao longo da rodovia. O centro da cidade fica distante dali, e quem chega à cidade não tem ideia do quanto é linda. Ele ficou por ali mesmo, conseguiu um trabalho em uma oficina mecânica e se instalou na cidade. Um mês depois, Dida resolveu também

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viajar para Ilhéus. Os dois sempre viveram muito próximos, até mesmo por causa da semelhança de idade e de profissão.

Meses depois, fui visitá-los na nova cidade. Fiquei morrendo de pena dos dois. Dormiam dentro de uma carcaça de carro, que nem janela possuía. Era algo desumano. Tive uma conversa séria com eles, mas não deixei transparecer que estava com dó, pois sabia que aquele sofrimento, de alguma forma, significava um estágio necessário na vida deles e que logo passaria. Além disso, aquela situação poderia vir a se transformar em mais um estímulo para que continuassem a lutar por uma vida melhor.

Em outra oportunidade, visitei-os novamente. Notei que, desta vez, tinham passado a um estágio superior: moravam dentro de um barraco de madeira, com fogão, cama e alguns pratos. Ali também moravam centenas de guaiamus, que à noite saíam dos buracos no chão para devorar qualquer tipo de comida que encontrassem. Chegavam até a lascar os sacos de feijão ou de outros cereais que estivessem em local próximo ao chão.

Salvador/BAJoanita

Conheci Joanita durante um curso que eu fiz em Salvador. Eu ainda morava em Jequié, nessa época. Ela trabalhava da 14ª Vara do Trabalho como secretária de audiências. Procurava-a sempre que viajava a Salvador, e passávamos horas conversando. Joanita dizia que tinha muita vontade de engravidar, mas temia ter problemas no parto, pois sofria de anemia falciforme. A vontade foi maior que o medo, e, após inúmeras tentativas, ela engravidou e morreu de parto. Senti bastante sua morte. Joanita foi uma das pessoas com quem mais me identifiquei no trabalho. Era uma funcionária muito dedicada; não tinha tempo nem para fazer as compras de casa durante o dia, era obrigada a ir aos mercados à noite. Por causa de tanta dedicação, não viveu a vida, só trabalhou. Outra lição para minha vida: aproveitar as oportunidades, me divertir, visitar amigos e parentes, mesmo quando o tempo parecer

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escasso. A vida passa muito rapidamente. Muita gente espera para vivê-la depois de se aposentar. Esquecem-se de que nem todos conseguem chegar à aposentadoria, ou que podem chegar lá com várias limitações impostas por problemas de saúde.

Primeira viagem de aviãoMorando em Salvador, costumava sempre viajar para o interior,

principalmente nos feriados prolongados e durante as férias. Tinha uma imensa vontade de viajar de avião e resolvi realizar meu desejo. Fui para Ilhéus de ônibus e voltei de avião. O voo durou apenas vinte minutos, mas marcou toda a minha vida. Não senti medo algum, sempre soube que aquele era o meio de transporte mais seguro do mundo. Mas que deu um friozinho na barriga... Ah, isso deu. Este sonho foi realizado em dezembro de 1993.

A terceira motoComecei a pagar um consórcio de moto, na intenção de usá-lo

como investimento para futuramente comprar um outro apartamento. Não gostaria de viver para sempre num prédio com permanentes problemas de elevadores e de abastecimento de água, como era o caso do Edifício Crescenciano dos Santos. Ao ser contemplado, fui buscar o veículo. Mas não tive coragem de pilotar a moto até minha casa. Paguei uma pessoa para trazê-la. Chegando ao edifício, subi para o sexto andar com a moto no elevador. Foi um trabalhão danado, mas acabei sendo bem-sucedido em mais esta proeza.

IraciConheci uma colega de trabalho chamada Iraci. Ela sempre foi

muito engraçada. Chegava ao setor onde trabalhava, animando o ambiente com suas expressões personalizadas: "Qual o significado da mesma?", "Algo a declarar?", "Não se afobeis". Iraci é uma pessoa muito interessante e de um coração enorme. Ela é muito conhecida no TRT da

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5ª Região, pela sua alegria e pelo alto astral que espalha por onde passa. Trabalhou por muitos anos ali e depois se aposentou. É a única pessoa em cuja casa eu me sinto como se estivesse em minha própria. Nossas famílias se conhecem e todos nós nos sentimos como se fôssemos velhos conhecidos. Sempre que posso vou à sua casa bater papo ou comer um belo prato de feijoada, que ela sabe preparar como ninguém.

Pagando micosCerta feita conversava com alguns colegas de trabalho sobre

comida, café e coisas afins. Falava que gostava de tudo, exceto de café "resquentado". O pessoal começou a gargalhar, corrigindo-me em seguida. Mas eu estava convencido de que era assim mesmo que se falava, aprendera o termo em Jequié. Fui ao dicionário, tirei minha dúvida e paguei mais um grande mico.

Em uma outra conversa, desta vez sobre festas de aniversário, começamos a falar de festa de quinze anos, e comentei que ainda não tinha pensado na festa de quinze anos de meu filho. Mais uma vez fui alvo de risos. Ensinaram-me então que não era comum rapazes fazerem festa de quinze anos, quando muito de dezoito.

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CURRÍCULO DO ESCRITOR

VALDECK ALMEIDA DE JESUS

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Valdeck Almeida de Jesus é jornalista, escritor, poeta e funcionário público federal. Nasceu a 15 de fevereiro de 1966 em Jequié-BA, onde viveu até aos seis anos de idade, quando foi residir na Fazenda Turmalina (região de Itagibá-BA), onde continuou a estudar em escola pública até os 12 anos de idade. Aluno exemplar, retornou a Jequié-BA para se matricular na 5ª série do primeiro grau, em escola pública. Ingressou nas Faculdades de Enfermagem e de Letras, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia em 1990; na Faculdade de Turismo, na Faculdade São Salvador, não concluindo os cursos. Reside em Salvador, desde fevereiro de 1993.

Na capital, fez cursos de informática, teatro, relações humanas e fotografia. Fez, ainda, curso de espanhol durante dois meses em Madri (Espanha), Santa Elena de Uairen (Venezuela), Puerto Iguazu (Argentina), Ciudad del Este (Paraguay) e La Habana (Cuba) e de inglês por três anos em Salvador, complementado por curso intensivo de três meses em Nova York, Estados Unidos. Perambulou em 2011 por Portugal, Espanha, Itália, Mônaco, Suíssa e França, em viagem cultural e turística.

Livros Solo(publicação independente)

“Heartache Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet”, iUniverse, New York, USA, 2004; Este livro reúne poesias de desabafo, muitas delas dedicadas a mulheres, quando na verdade o escritor falava de seus amores secretos, namorados homens;

“Feitiço Contra o Feiticeiro”, Scortecci, São Paulo-SP, 2005; Livro de poesias;

“Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden”, Scortecci, São Paulo-SP, 2005; Conta a história da família do escritor Valdeck Almeida de Jesus, que enfrentou a fome e a miséria por mais de vinte anos e venceu. 100% da renda do livro foi doada às Obras Sociais Irmã Dulce;

“Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden”, Giz Editorial, São Paulo-SP, 2007; 20% da renda do livro foi doada às Obras Sociais Irmã Dulce;

“Valdeck é Prosa, Vanise é Poesia”, Câmara Brasileira do Jovem Escritor, Rio de Janeiro-RJ, 2007;

“30 Anos de Poesia”, Câmara Brasileira do Jovem Escritor, Rio de Janeiro-RJ, 2008;

“Memories from Brazilian Hell: The Saga of Almeida Family in the Garden of Éden”, iUniverse, Nova York (USA), 2008;

“Poemas de amor e outros temas”, Blurb, Nova York (USA), 2009;

“Poemas Di-Versos”, Corpos, Lisboa, Portugal, 2009;

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“Armadilha – a verdadeira poesia brasileira”, Clube de Autores, São Paulo-SP, 2009;

“30 Anos de Poesia”, Virtual Books, Pará de Minas-MG, 2009;

“Minha alma nua” (Série Notáveis Poetas Brasileiros), Real Academia de Letras, Porto Alegre-RS, 2009;

“Recortes de uma vida: Reflexões e pensamentos”, Clube de Autores, São Paulo, 2010;

“Amor e Paixão”, Coleção Scrivere, São Paulo: Madio Editorial, 2010;

“A Kombi de prosa e poesia”, Pará de Minas-MG: Virtual Books, 2010;

“Yes, I am gay. So, what? – Alice in Wonderland”, New York: iUniverse, 2010.

Livros que editou“Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys”, Casa do Novo Autor, São Paulo-SP, 2005; Editor da “1ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus”, Casa do Novo Autor, São Paulo-SP, 2006; Editor da “2ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus”, Casa do Novo Autor, São Paulo-SP, 2007;

“Poemas Que Falam”, Casa no Novo Autor, São Paulo-SP, 2007;

Editor da “3ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus”, Giz Editorial, São Paulo-SP, 2008; Editor da “4ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus”, Giz Editorial, São Paulo-SP, 2009;

Editor do “Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus de Poesias – 2009 – segunda seleção”, Virtual Books, Pará de Minas-MG, 2010;

Editor do “Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus de Contos LGBTs”, em 2010;

Editor do livro “Abre a Boca Calabar”, resultado de um concurso de poesias com crianças da comunidade Calabar, ex-quilombo, em Salvador-BA, em janeiro de 2010;

Editor da “Antologia do Amor”, que reúne poetas do Brasil, Estados Unidos e China, em janeiro de 2010.

Livros coletivos

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(participação em antologias)“Poetas Brasileiros de Hoje –1984”, Shogun Arte, Rio de Janeiro-RJ, 1984;

“Transcendental”, publicado em Salvador em 1996, pela Editora Gráfica da Bahia;

“II Antologia Cultural: 500 Anos de Língua Portuguesa no Brasil”, Clube de Letras, Barra Bonita-SP, 2005;

“Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos 14º volume”, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro-RJ, 2005;

“Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos 15º volume”, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro-RJ, 2005;

“Letras Libertas - Contos, Crônicas e Poesias - Vol 2”, Ilha das Letras, Santa Catarina, 2005;

“XV Concurso Internacional Literário de Verão”, Agiraldo, São Paulo-SP, 2005;

“Palavras que Falam”, Scortecci, São Paulo-SP, 2005;

“Todas as Formas de Amar”, Casa do Novo Autor, São Paulo-SP, 2005;

“O Amor na Literatura”, São Paulo-SP, Casa do Novo Autor, 2005;

“Livro de Ouro da Poesia Brasileira Contemporânea”, Câmara Brasileira do Jovem Escritor, Rio de Janeiro-RJ, 2005;

“VII Antologia Nau Literária”, Komedi, São Paulo-SP, 2005;

“Ensaios Poéticos”, Academia Virtual Brasileira de Letras, 2005;

“Poetry Vibes”, Poetry Vibes, Ohio, USA, 2005;

“Ação e Reação. Pequenos Contos”, AVBL, São Paulo-SP, 2005 (livro eletrônico);

“Ensaio Poético. Natureza. Vida”, AVBL, São Paulo-SP, 2005 (livro eletrônico);

“Meu País é Este”, AVBL, São Paulo-SP, 2005 (livro eletrônico);

“20 Anos de Poesia – Caderno 32”, Oficina, Rio de Janeiro-RJ, 2005;

“Pérgula Literária – VII”, EVSA, Rio de Janeiro-RJ, 2005; “Sangue, Suor e Lágrimas”, Arnaldo Giraldo, São Paulo-SP, 2006;

“Palavras Libertas”, Roma, Uberlândia-MG, 2007;

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“Amor, Sublime Amor”, Litteris, Rio de Janeiro-RJ, 2006;

“XI Coletânea Komedi”, Komedi, Campinas-SP, 2007;

“Letras Intimistas”, aBrace, Montevidéu (Uruguay), 2007;

“Primavera de 2006 – Inverno de 2007”, Via Litterarum e Editus (UESC), Itabuna-Ilhéus-BA, 2007;“Retratos Urbanos”, Andross, São Paulo-SP, 2008.

“Poemas e Outros Encantos: nova coletânea”, Edir Barbosa Editor, Teixeiras-MG, 2008.

“Elo de Palavras”, Scortecci, São Paulo-SP, 2008.

“Poesia do Brasil – volume 8”, Proyecto Cultural Sur – Brasil. Grafite, Porto Alegre-RS, 2008.

“Coletânea dos 44 melhores poemas de 2008”, 2º Concurso de poesia ABRACI. IMOS, Rio de Janeiro-RJ, 2008.

“Antologia Del Secchi – volume XVIII”. Org. Roberto de Castro Del’Secchi. DELSECCHI Editora, Rio de Janeiro-RJ, 2008.

“Livro de Todos: o mistério do texto roubado”, coordenação Imprensa Oficial, São Paulo-SP, 2008.

“Salvador: 460 anos de poesia”. Organizador Roberto Leal – Omnira, Salvador-BA, 2008.

“Poetas Del Mundo em Poesias”, Volume I, Gibim, Campo Grande-MS, 2008.

“Universo Paulistano. Contos, Crônicas e Poemas de Uma Cidade que Nunca Dorme”, Organizadores Edson Rossato e Carlos Francisco de Morais, Andross, São Paulo-SP, 2009.

“XIII Coletânea Komedi”. Komedi, Campinas-SP, 2009.

“Contos e Crônicas para Viagem”, Bruno Resende e Edir Barbosa (orgs.), Viçosa, Edir Barbosa Editor, Viçosa-MG, 2009.

“O que é que a Bahia tem”, Litteris, Rio de Janeiro-RJ, 2009.

“Comendadores da Ordem do Dragão Dourado – Antologia Poética”, Real Academia de Letras, Porto Alegre-RS, 2009.

“Ecos Machadianos”, Bureau Gráfica e Editora, Salvador-BA, 2009.

“Latinidade poética”, All Print Editora, São Paulo-SP, 2009.

“IV Coletânea – Poesia, Crônica e Conto 2009”, Tecnicópias, Canoas-RS, 2009.

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“Vozes de Aço – IV Antologia Poética de Diversos Autores”, Volta Redonda-RJ, PoeArt Editora, 2009.

“Antologia Alma Brasileira”, Folha da Baixada, Praia Grande-SP, 2009.

“Contos, Crônicas e Artigos”, Fundação Omnira, Salvador-BA, 2009.

“Antologia Cidade Literária”, L&A Editores, Belém-PA, 2009.

“Projeto Literário Delicata IV – Poesias, Contos, Crônicas”, Scortecci, São Paulo-SP, 2009.

“Livre Pensar Literário – Coletânea de escritores contemporâneos”, Edir Barbosa Editor, Viçosa-MG, 2010.

“Ecos Castroalvinos – Coletânea de Verso e Prosa”, ArtPoesia, Salvador-BA, 2010.

Antologia “Fala Escritor em Prosa e Verso”, Virtual Books, Pará de Minas-MG, 2010.

Antologia “Alma Brasileira – Edição Especial Dia das Mães”, Virtual Books, Pará de Minas-MG, 2010;

“Caderno Literário Pragmatha 3 – Meio Ambiente”, Porto Alegre: Pragmatha, 2010;

“Carta ao Presidente - o que pensa o brasileiro no século XXI”, São Paulo: Scortecci, 2010;

“Poesia & Conto para todos os Cantos”, Salvador: Omnira, 2010;

“IV Antologia Beco dos Poetas”, São Paulo: Grupo Editorial Beco dos Poetas, 2010;

“Antologia Del’Secchi – Volume XX”, Rio de Janeiro: Del’Secchi, 2010;

“Aprendi com meu pai”, São Paulo: Versar, 2006/2010;

“Varal do Brasil”, Jaraguá do Sul-SC: Design Editora, 2011;

“Fantasias”, Porto Alegre-RS, Alternativa, 2011;

“Revista da Academia de Cultura da Bahia – ACB”, Salvador-BA, Editora da ACB, 2011.

Prêmios Literáriosa) 1° Lugar no concurso sobre Paralisia Infantil, promovido pela Diretoria Regional de Saúde de Jequié-BA, em conjunto com o programa Mendes Show Dez, da Rádio Baiana de Jequié. Junho de 1982;

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b) 2º Lugar no concurso de redação em homenagem ao segundo aniversário do jornal Sudoeste, de Jequié-BA, em julho de 1989;

c) Menção Honrosa em 1989 no 1° Concurso Nacional de Poesia, promovido pelo Instituto Internacional da Poesia, de Porto Alegre-RS; d) Menção Honrosa no Concurso Literário Oswald de Andrade, promovido pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em 1990, na cidade de Jequié-BA; e) Classificação no concurso literário Bahia de Todas as Letras, promovido pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus-BA, no ano de 2007, com o conto “Eu e o Word”, com nota 7 (sete);

f) Classificação no concurso literário realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal da Bahia, com a crônica “Alice”, no ano de 2007, em Salvador-BA;

g) Destaque no XII Concurso de Poesias, Contos e Crônicas realizado em 2007 pela ALPAS XXI, em Cruz Alta-RS com o texto “Minha paixão por livros”;

h) Prêmio Luiz Mott de Cidadania 2008, pelo conjunto da obra, pela defesa dos direitos humanos e dos homossexuais, em indicação feita pelo Glich – Grupo Liberdade, Igualdade e Cidadania Homossexual, de Feira de Santana-BA;

i) Medalha de agradecimento e homenagem por incentivar a leitura. Outorgante: Biblioteca Comunitária do Calabar e Avante – Educação e Mobilização Social. Premiação: agosto de 2009;

j) Medalha Hermano Gouveia Neto, por incentivo a leitura, no projeto Resgatando a Seliba 2009. Outorgante: Colégio Cecília, de Simões Filho-BA;

k) Nomeado Embaixador Universal da Paz, pelo Círculo dos Embaixadores da Paz da Suíça e França, em 20 de janeiro de 2010, em Genegra, Suíça.

l) Classificado no concurso “Água – Recurso Durável”, realizado pelo Teatro Vila Velha, com o poema “Rio das Contas”, publicado em cartão-postal e distribuído em Salvador-BA, em janeiro de 2010.

m) Homenageado pelo projeto Alma Brasileira, com diploma e medalha de honra ao mérito literário, por incentivar a literatura brasileira através de concursos, durante o Forum Social Mundial Temático - Bahia, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em janeiro de 2010.

Trabalhos Diversosa) Expositor, como escritor independente, na Bienal do Livro da Bahia, em 2005, 2007 e 2009;

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b) Expositor no III Corredor Literário da Paulista, de 09 a 14 de outubro de 2007, em São Paulo-SP;

c) Participação no V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre-RS, de 26 a 31 de janeiro de 2005; Palestrante, expositor e promotor de mesas de debate sobre literatura baiana, leitura e mercado editorial durante o Forum Social Mundial Temático da Bahia, de 28 a 31 de janeiro de 2010;

d) Participação, como organizador da Mostra de Arte e Cultura, no II Congresso Estadual do Sindjufe-BA, de 01 a 03.06.2007, no Hotel Sol Bahia Atlântico, em Salvador-BA;

e) Tem poemas publicados nos jornais de grande circulação da capital e do interior do estado da Bahia, além de jornais de Brasília-DF; Colaborador, desde 1985, do jornal A PROSA, de Brasília-DF;

f) Colaborador da revista cultural Art’Poesia, de Salvador-BA, editada por Carlos Alberto Barreto, que publica poemas de autores do mundo inteiro; g) Palestra na ONG Vento em Popa, no bairro Jardim Gaivotas, em São Paulo-SP, em 2007, com o tema “Motivação através da leitura”;

h) Colunista dos sites www.zonamix.com.br, www.radarmix.com e www.portalvilas.com.br, desde março de 2006. Nestes e em outros sites, o escritor colabora sempre com matérias ligadas a cultura, literatura, arte, preconceito, discriminação e assuntos relacionados aos LGBT’s;

i) Verbete do “Dicionário de Escritores Baianos”, Secretaria de Cultura e Turismo, Salvador, 2006;

j) Membro da Federação Canadense de Poetas desde 2004;

l2) Membro da Confraria de Artistas e Poetas pela Paz – CAPPAZ;

k) Membro da Associação Artes e Letras (França) desde 2005;

l) Membro da União Brasileira de Escritores – UBE, desde março de 2006;

l1) Membro da Câmara Bahiana do Livro – CBaL, desde março de 2005;

m) Em 1987 participou da Diretoria Regional do Partido Comunista do Brasil e da União da Juventude Socialista - UJS, em Jequié-BA. Eleito o primeiro diretor de imprensa do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, do Instituto de Educação Régis Pacheco, fundou o jornal Jornada Estudantil;

n) Fundador do fã-clube do Jean Wyllys (www.jeanwyllys.com). Site profissional de Valdeck Almeida: www.galinhapulando.com O site Galinha Pulando apóia todos os eventos e movimentos de afirmação da cidadania, contra o racismo e, principalmente, contra a homofobia;

o) Colaborador do Café Literário de Camaçari-BA, evento realizado pela coordenação do PROLER – vários anos;

p) Participação na Feira do Livro Internacional de Paraty (FLIP), 2008;

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q) Lançamento de três livros na Bienal Internacional de São Paulo, 2008;

r) Verbete no “Dicionário Biobibliográfico de Escritores Brasileiros”, Casa do Novo Autor, São Paulo-SP, 2009;

s) Membro Correspondente da Academia de Letras de Jequié;

s1) Membro da Academia de Cultura da Bahia;

s2) Membro Correspondente da Academia de Letras de Teófilo Otoni-MG;

s3) Membro da Real Academia de Letras de Porto Alegre-RS;

t) Participante da "Mostra Poética: Cores das Letras no Brasil", realizado como atividade paralela do 4° Encontro Açoriano da Lusofonia, um dos mais expressivos eventos internacionais de fortalecimento da língua portuguesa no mundo, promovido pela Sociedade dos Poetas Advogados de Santa Catarina - SPA-SC, de 31 de março a 04 de abril de 2009, na Biblioteca da Escola Secundária de Lagoa, Açores, Portugal;

u) Palestra e oficina de poesias na Biblioteca Comunitária do Calabar, bairro remanescente de quilombo, em Salvador-BA;

v) Cônsul Honorífico da Real Academia de Letras, Ordem da Confraria dos Poetas;

x) Prefaciou os livros “Eu sou todo poema”, de Leandro de Assis; “Sonhos”, de Antonio Fagundes; “O homem que virou cerveja”, de Silas Correa; “Diário de Rafinha: as duas faces de um amor”, de Léo Dragone; apresentou o livro “Brincando de poesia”, de Adalberto Caldas Marques; “Uma viagem fascinante”, de Eulália Cristina Costa e Costa; “O verdadeiro Paraíso”, de Carlos Ventura; “O grande pajé”, de César Soares Farias”.

z) Participa do projeto “Fala Escritor”, idealizado pelo poeta Leandro de Assis, apresentado todo segundo sábado de cada mês no espaço Castro Alves, em um shopping de Salvador;

z1) Participação no Fórum Social Mundial Temático – Bahia 2010, com exposição e lançamento de livros, recitais e palestras.

Z2) Participação 1º Encontro de Escritores Independentes da Bahia, promovido pela Fundação Omnira, em setembro de 2010;

Z3) Selecionado com um poema para a Agenda Cultural organizado por Ednara Leão, editora Virarte, em 2010;

Z4) Verbete na Enciclopédia virtual da poesia lusófona contemporânea, organizada pelo Russo, naturalizado brasileiro Oleg Almeida (2009);

Z5) Correspondente da revista Cotoxó, de Jequié-BA;

Z6) Membro do movimento cultural Poetas del Mundo;

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Z7) Selecionado no projeto “Pão e Poesia”, da Fundação Cultural de Blumenau-SC, com o poema “Abandonado”, impresso em sacos de pão e distribuído em padarias daquela cidade, em julho de 2011;

Z8) Selecionado com vários poemas em 2011, no projeto “Um poema em cada árvore”, idealizado pelo poeta e jornalista Marcelo Rocha e apoio do Instituto Psia, de Governador Valadares-MG.

Currículo Lattes:http://lattes.cnpq.br/0857615247323241

Endereço:Rua São Domingos Sávio, 155 – Edifício Gama – apartamento 40140050-520 – NazaréSalvador-Bahia

OBS: Fazendo-se uma busca no Google pelo nome “Valdeck Almeida de Jesus”, são listadas várias publicações.

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