memória e escrita: um olhar sobre a narrativa ... · ulpiano menezes afirma que “a memória é...

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1 Memória e escrita: um olhar sobre a narrativa memorialística de Raimundo Nonato da Silva em torno da cidade de Mossoró/RN (1957-1983). HÉLIA COSTA MORAIS Resumo O presente trabalho se propõe analisar o processo de construção da escrita memorialística do intelectual Raimundo Nonato da Silva acerca da cidade de Mossoró-RN. Admitindo que a compreensão desta escrita requer o entendimento dos dispositivos que compõem a memória individual e coletiva e o modo como estas influenciaram na sua narrativa. A sua produção escrita se faz marcada por dimensões afetivas e históricas, fruto da relação estabelecida com os principais grupos de intelectuais do Estado e seus respectivos interesses locais. Instituições como o Instituto Histórico e Geográfico do RN e o Instituto Cultural do Oeste Potiguar, foram responsáveis por nortear muitas de suas concepções e práticas escriturárias, bem como foram influenciadas pelo prestígio destas. A partir da análise das suas obras Memórias de um Retirante (1957) e Evolução urbanística de Mossoró (1983) propomo-nos investigar as construções produzidas através da sua escrita em torno dos espaços e sujeitos da cidade de Mossoró, refletindo o modo como os seus escritos literários e memorialísticos ajudam a construir a história da cidade, bem como a rede de interesses que possibilitaram a sua produção. Palavras-Chave: Memória. Escrita. Raimundo Nonato da Silva. Mossoró. 1. Introdução Raimundo Nonato da Silva nasceu em 18 de agosto de 1907 na cidade de Martins, estado do Rio Grande do Norte. Filho de um casal de lavradores migrou para a cidade de Mossoró durante a seca de 1919, junto a uma leva de retirantes que rumava em busca de meios de subsistência. Na cidade de Mossoró, foi engraxate, lavador de pratos, varredor de hotel, ajudante de bodega no Mercado Público Municipal, para não citar outras ocupações. Ingressou na Escola Normal, de onde saiu professor em 1925, aos 18 anos de idade. Lecionou e dirigiu grupos escolares em várias cidades. Em 1955, formou-se em Direito pela Faculdade de Alagoas e foi nomeado juiz da comarca de Apodi, em cuja função se aposentou. A partir de Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba UFPB. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]

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1

Memória e escrita: um olhar sobre a narrativa memorialística de Raimundo Nonato da

Silva em torno da cidade de Mossoró/RN (1957-1983).

HÉLIA COSTA MORAIS

Resumo

O presente trabalho se propõe analisar o processo de construção da escrita memorialística do

intelectual Raimundo Nonato da Silva acerca da cidade de Mossoró-RN. Admitindo que a

compreensão desta escrita requer o entendimento dos dispositivos que compõem a memória individual

e coletiva e o modo como estas influenciaram na sua narrativa. A sua produção escrita se faz marcada

por dimensões afetivas e históricas, fruto da relação estabelecida com os principais grupos de

intelectuais do Estado e seus respectivos interesses locais. Instituições como o Instituto Histórico e

Geográfico do RN e o Instituto Cultural do Oeste Potiguar, foram responsáveis por nortear muitas de

suas concepções e práticas escriturárias, bem como foram influenciadas pelo prestígio destas. A partir

da análise das suas obras Memórias de um Retirante (1957) e Evolução urbanística de Mossoró (1983)

propomo-nos investigar as construções produzidas através da sua escrita em torno dos espaços e

sujeitos da cidade de Mossoró, refletindo o modo como os seus escritos literários e memorialísticos

ajudam a construir a história da cidade, bem como a rede de interesses que possibilitaram a sua

produção.

Palavras-Chave: Memória. Escrita. Raimundo Nonato da Silva. Mossoró.

1. Introdução

Raimundo Nonato da Silva nasceu em 18 de agosto de 1907 na cidade de Martins,

estado do Rio Grande do Norte. Filho de um casal de lavradores migrou para a cidade de

Mossoró durante a seca de 1919, junto a uma leva de retirantes que rumava em busca de

meios de subsistência. Na cidade de Mossoró, foi engraxate, lavador de pratos, varredor de

hotel, ajudante de bodega no Mercado Público Municipal, para não citar outras ocupações.

Ingressou na Escola Normal, de onde saiu professor em 1925, aos 18 anos de idade. Lecionou

e dirigiu grupos escolares em várias cidades. Em 1955, formou-se em Direito pela Faculdade

de Alagoas e foi nomeado juiz da comarca de Apodi, em cuja função se aposentou. A partir de

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Bolsista

da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]

2

1949 dedicou-se à escrita publicando mais de 80 livros, entre os quais destacam-se obras nos

campos do romance, crônica, memória, etnografia, história, folclore, etc.

3

Sua trajetória intelectual foi marcada pelo engajamento em diversas instituições, como

o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), a Academia Norte-Rio-

Grandense de Letras (ANL), o Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP), além de outras

instituições cuja atuação ultrapassa as fronteiras do estado, a exemplo da Federação das

Academias de Letras do Brasil, o Instituto Genealógico Brasileiro de São Paulo, a Associação

Brasileira de Escritores, o Sindicato dos Jornalistas Liberais da Guanabara e a Sociedade

Brasileira de Folclore. Raimundo Nonato mudou-se para o Rio de Janeiro em definitivo no

ano de 1961, aonde veio a falecer em 22 de agosto de 1993, aos 86 anos de idade.

A presente investigação histórica se propõe analisar o processo de construção da sua

escrita memorialística acerca da cidade de Mossoró. Admitindo que a compreensão da mesma

requer o entendimento dos dispositivos que compõem a memória individual e coletiva,

averiguando o modo como estas tiveram influência em sua narrativa. A sua produção escrita

se faz marcada por dimensões afetivas e históricas, fruto da relação estabelecida com os

principais grupos de intelectuais do Estado e seus respectivos interesses locais, responsáveis

por nortear muitas de suas concepções e práticas escriturárias, mas que também foram

influenciadas pelo prestígio destas. A partir da análise das suas obras Memórias de um

Retirante (1957) e Evolução urbanística de Mossoró (1983) propomo-nos investigar as

construções produzidas através da sua escrita em torno dos espaços e sujeitos da cidade de

Mossoró, refletindo o modo como os seus escritos literários e memorialísticos ajudam a

construir a história da cidade, bem como a rede de interesses que possibilitaram a sua

produção.

A discussão referente à relação entre história e memória, aqui esboçada, se faz

necessária devido o presente estudo historiográfico embasar-se na problematização de

narrativas literárias, memorialísticas e históricas que são capazes de revelar minúcias quanto

aos sujeitos, espaços e costumes alusivos ao passado e que ajudam a reconstruir teias de

relacionamentos e experiências compartilhadas com a coletividade de uma época.

2. História e Memória: tensões e aproximações

4

O estudo da relação entre História e Memória coloca em cheque diálogos entre

temporalidades distintas: o passado e o presente. Tal relação é marcada por lembranças

“transportadas” de uma temporalidade à outra, num incessante exercício conduzido pela

memória ao longo da história. Memórias que remetem a experiências passadas, mas que se

fazem contemporâneas e até distintas, sempre que trazidas a baila. Separadas por uma

fronteira densa, constroem suas narrativas marcadas por tensões e aproximações, tornando

amplo e complexo o seu campo de estudo. Embora tenham no passado a sua base de

sustentação, qual seja o relato da experiência que foi, que passou e não mais se faz presente,

diferem na maneira com que o celebram, conforme as circunstâncias que são instadas a se

fazerem uma vez mais, hodiernas.

A visão tradicionalista da historiografia considerava tal relação por meio de um

traçado simplista, no qual a história seria a maneira utilizada para manter intacta a memória

dos grandes acontecimentos públicos de determinada época, conferindo “fama” e relevância à

ação de alguns sujeitos. Desse modo, a memória conjecturaria o relato da experiência, daquilo

que ocorreu de fato e a história se responsabilizaria pelo “reflexo”, por meio da escritura

dessa memória ao porvir. Contudo, com o decorrer do tempo, o estudo dessa relação foi se

tornando cada vez mais complexo, uma vez que os historiadores passaram a considerar os

problemas com a objetividade, com a interpretação e até mesmo com as “distorções”

influenciadas por grupos sociais que agiam segundo interesses próprios e em circunstâncias

tais que construíam e publicizavam as memórias a serem legadas.

As reflexões no sentido de estabelecer aproximações e distanciamentos têm

mobilizado vastas discussões desde meados do século XX. Os estudos mais recentes buscam

enfatizar para além dos pontos de tensões, o processo de confluência entre as duas instâncias.

Analisar o processo de interação entre ambas apresenta-se como sendo um dos maiores

desafios da historiografia contemporânea, uma vez que com o desenvolvimento das Ciências

Humanas, as conotações em torno do conceito de memória sofreram importantes usos e

(re)significações.

A guinada na maneira de produzir o conhecimento histórico foi responsável por

inúmeras transformações no seio do fazer historiográfico. Os enfoques trazidos pela Nova

5

História Cultural, com as Mentalidades, com a “História vista de baixo”, as análises

marxistas, a valorização da Antropologia, a Micro-História e a própria História Oral, são

exemplos disso. Através dessas novas perspectivas, as pessoas comuns constantemente

excluídas pelos registros oficiais e, por conseguinte, da narrativa histórica, entraram na baila

das discussões e revisões historiográficas, pois os enfoques culturais tendem a valorizar

questões ligadas às subjetividades e às diversas representações sobre o passado (onde vem a

se encaixar o estudo da memória), almejando apreender indivíduos e/ou grupos inseridos na

história.

A investigação a partir da memória se faz indispensável ao ofício do historiador, que

deve problematizá-la, sobretudo, por meio de questionamentos que não a encarem como um

amontoado inerte ou naturalizado, de informações; mas como um fenômeno criativo em

constante transformação. Um processo de construção simbólica que produz e reconfigura

identidades, de maneira a assegurar ou não a continuidade dos interesses de determinados

grupos ao longo do tempo.

A narrativa de Raimundo Nonato, por exemplo, revela inúmeros aspectos quanto ao

modo de vida cotidiano dos sujeitos potiguares, desde feirantes e pessoas ilustres que

ocupavam o Mercado Público Municipal de Mossoró, aos moleques que percorriam as ruas

sujas da cidade. As memórias são apresentadas nos textos através de uma espécie de

constituição poética que acaba por penetrar no terreno historiográfico e, como afirma Júlio

Pimentel, está “[...] mais interessada nos ritos de conformação do passado do que em sua

percepção no momento em que relampeja” (PINTO: 1998: p. 6) ainda que, sempre almeje

estabelecer uma dialética entre presente e passado. Cabe ao historiador, imbuído pela

perspectiva histórica, operar sob uma base crítica almejando a apreensão dos vestígios do

passado, através das memórias que são construídas e reconfiguradas temporalmente.

Ulpiano Menezes afirma que “a memória é filha do presente. Mas, como seu objeto de

estudo é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado, o presente permanece

incompreensível e o futuro escapa a qualquer projeto” (1992: p. 6). As percepções dele põem

em evidência a intensa relação a respeito das aproximações e distanciamentos que envolvem o

ato de lembrar e a ação de produzir conhecimento histórico. Logo, faz-se necessário não

6

somente considerar seus suportes referenciais, mas suas representações, seus agentes e

práticas. Ou seja, investigar os papéis e funções sociais dos sujeitos construtores das

memórias, pois caso contrário, o estudo da memória se fará de forma naturalizada, idealizada

e ao invés de trazer à tona as disputas e contradições que envolvem as relações em sociedade,

acabará por silenciá-las na busca pela coesão, pelo “relato verídico”, pela “memória

essencialista”.

Em 1925, o sociólogo francês Maurice Halbwachs, enveredou pelos estudos da

memória e a tomou como objeto de análise das Ciências Sociais. Inaugurou o estudo

sistemático acerca da Memória Coletiva com o ensaio Os Contextos Sociais da Memória

(1925), estudo que se configurou como uma espécie de sociologia da memória, culminando

em sua famosa obra A Memória Coletiva (1968). Nela atribui à memória um elo de coesão

social, argumentando que as lembranças, mesmo as individuais, seriam também partilhadas

por uma coletividade. Denotando ideias que se apropriaram ou tiveram como inspiração, o

pensamento durkheimiano, sua perspectiva entende a ligação entre os grupos de forma

homogênea, como sendo uma sociedade afetiva. De modo que, mesmo que ocorressem

conflitos, seria possível que se construísse uma narrativa coletiva dos grupos a respeito de

suas experiências passadas.

Na sua concepção, a construção da memória se dava coletivamente. Tratando-se de um

fenômeno em constante processo de transformação, condicionado pelo tempo presente, no

qual a memória coletiva geralmente predominava em detrimento da individual. Portanto,

embora não negasse sua existência, a memória individual era apontada como sendo

determinada pela memória coletiva (ponto de vista esse, contestado pelas perspectivas

contemporâneas acerca da memória). Contudo, sua análise abriu o olhar para uma dimensão

social na problemática da memória, seja ela individual ou social; uma vez que segundo ele,

para que um indivíduo fosse capaz de reconstruir e organizar suas próprias lembranças, este

precisaria recorrer às lembranças de outras pessoas, pois a memória seria produzida em um

ambiente social balizado pelo tempo e espaço.

Os vários grupos portadores de memórias coletivas constituiriam uma realidade social

extremamente complexa. Visto que um mesmo indivíduo poderia pertencer a vários grupos,

7

cada um portador de sua própria memória, estabelecendo um vínculo entrelaçado no tempo e

no espaço social, numa teia de sociabilidade segmentada mutuamente. De modo que, as

memórias coletivas tenderiam a produzir e estabelecer uma faixa de permanências contínuas e

semelhantes, auxiliando diretamente no processo de constituição da identidade dos grupos.

Vale ressaltar que atualmente, o termo “memória social” é preferível ao de “memória

coletiva”.

Cabe destacar que as memórias publicizadas por Raimundo Nonato se referiam a uma

época vivenciada por ele próprio, porém, partindo do olhar do contemporâneo à sua escrita, a

qual já se fazia distante de vários eventos narrados, seja espacial ou temporalmente. Isso

porque, o Raimundo Nonato que escreveu Memórias de um Retirante e (1957) e Evolução

urbanística de Mossoró (1983) não era mais o retirante da seca de 1919, mas o intelectual que

se reportava da capital do Rio de Janeiro e falava sobre um período distante espacial e

temporalmente do que era narrado em suas páginas. Assim, é factível que expresse uma visão

impregnada por novos conceitos e concepções que não podem ser ignoradas.

Quando nos indicam com precisão o caminho que tínhamos seguido, aquelas

marcas sobressaem, nós as ligamos uma a outra, elas se aprofundam e se religam

por elas mesmas. Elas já existiam, mas estavam mais marcadas na memória dos

outros do que em nós mesmos. Sem dúvida nós reconstruímos, mas esta

reconstrução se faz seguindo as linhas já marcadas e desenhadas por outras

lembranças, nossas ou de outros (HALBWACHS: 2006, p.65).

Num estudo bem posterior, Pierre Nora (1993)1, pensará o individual/coletivo

colocando o individual como o fator preponderante nesta relação. Isso porque, segundo ele, o

enfoque individual auxiliava no entendimento das relações estabelecidas internamente entre

os grupos. Pollak complementa que a “memória é um fenômeno construído social e

individualmente [...]” (1992: p. 204). Cabe ao historiador assumir seu posicionamento social e

crítico à medida que a historiografia constrói as memórias e produz a História, afinal, sua

repercussão diante da sociedade não é isenta.

1Les Lieux de Mémóire é uma coletânea organizada pelo Pierre Nora, a qual engloba ao todo, 7 tomos. Todavia,

só foi publicado no Brasil o texto introdutório e já tornado clássico do Nora, intitulado “Lugares de Memória”,

em 1993, pelo Projeto História, revista do Programa de Pós-graduação em História da PUC.

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O exercício realizado na tentativa de relacionar o conceito de memória ao de história

se justifica pelo fato de as lembranças de Raimundo Nonato não pertencerem exclusivamente

a ele, mas à sociedade da qual fez parte, uma vez que sua narrativa fornece informações sobre

o contexto sócio-cultural no qual estava inserido. Apesar de seletiva, parcial e passível de

manipulação, a memória individual é uma fonte histórica extremamente relevante, pois assim

“[...] como todas as atividades humanas, a memória é compartilhada, razão pela qual cada

indivíduo tem algo a contribuir para a história social” (PORTELLI, 2001).

Assim, intencionamos problematizar os rastros construídos e legados através da

narrativa memorialística de Raimundo Nonato, de modo a perceber como estes contribuíram

para as diversas representações em torno da cidade de Mossoró. Atentando ao modo como sua

narrativa contribuiu para a historiografia da região e para a construção de uma memória sobre

sua gente, seus espaços e relações. Admite-se que os relatos produzidos por ele atuam como

agentes que interferem direta ou indiretamente na construção identitária dos sujeitos e lugares

presentes nos espaços narrados, numa teia que abriga o tempo, o espaço e o homem.

3. Roteiros da cidade: Mossoró no espaço e no tempo

Na apresentação da segunda edição da obra Memórias de um retirante (1987), o

historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo procura atestar a importância desta publicação

para a historiografia potiguar, como importante testemunho para a história regional:

Os livros de memórias têm naturalmente o aspecto valorizador de quem os viveu.

Vez por outra valoriza demasiado, mas a recordação incide deliciosamente sobre

pormenores que o tempo enriqueceu e foram aumentados por ele. Nestas

MEMÓRIAS não há esse processo. É um depoimento de como o menino da serra do

Martins chegou a ser, sem pensar, mas trabalhando para esse fim, um dos maiores

professores do Rio Grande do Norte. [...] De não menor importância é ter o

evocador fixado figuras e fatos que jamais teriam saído do túmulo para um minuto

de administração leitora. Os personagens mais humildes e as cenas mais banais

ganharam relevo e sonoridade, postas no ritmo acelerado da taquicardia literária.

Não as esquecendo Raimundo Nonato aponta o “comecinho” de sua missão como

Murat, Rei de Nápoles, apontava, ao lado do trono, para o chicote de postilhão:

comecei por ali... [...] Livro formoso, simples, emocionador, verídico, humaníssimo.

É um documento que moldura a tenacidade do sertanejo e evidencia que outros

9

meninos, a estas horas, caminhem a pé, para as cidades do litoral olhando o

exemplo grande do escritor que soube vencer sem ruído e dominar sem orgulho.2

O seu relato evidencia o entendimento de que a partir da memória individual de

Raimundo Nonato é possível a apreensão, embora parcial e seletiva, da memória social

daquela época. Compreendendo que a identidade social é organizada para além de elementos

que evidenciam a percepção de si mesmo, pois esta sofre modificações externas a partir de

critérios e negociações estabelecidas, muitas vezes, no contato com outras pessoas. A

assertiva de Cascudo não deve ser tomada, contudo, como casual. Entre palavras elogiosas e

reconhecimento que se reputa sincero, vão se construindo as teias ou como diria Norbert Elias

(2001), as redes de sociabilidades que vão constituir e direcionar as práticas, as identidades e

as estratégias de apresentação entre os sujeitos que constroem e legitimam uns aos outros no

seio dos seus grupos.3

Nesta obra, Raimundo Nonato promove uma narrativa minuciosa quanto aos lugares,

hábitos, sujeitos e contextos vividos compartilhados em vários momentos do passado da

cidade de Mossoró e região Oeste Potiguar. Sua escrita abriga vestígios de épocas vividas por

muitas pessoas, acabando por despertar o sentimento de identificação aos que leem suas

memórias. De modo que esse sentimento se faz tão forte que, muitas vezes, as suas memórias

podem interferir no processo de construção identitária dos sujeitos e lugares vinculados aos

espaços descritos por ele ao longo de sua narrativa. Identifica-se, portanto, a presença de uma

memória social em seus relatos aparentemente individuais.

Sua teia narrativa abriga não somente aspectos e impressões individuais do autor, mas

revela singularidades no que concerne às relações sociais, culturais e políticas ali

estabelecidas. Ao longo da narrativa que (re)constrói sua caminhada junto a uma leva de

2In: NONATO, Raimundo. Memórias de um Retirante - Minhas Memórias do Oeste Potiguar. 2ª edição -

Coleção Mossoroense, 1987. 3A rede de sociabilidade de Raimundo Nonato se faz em torno de um espaço de criação cultural que garantia as

condições de elaboração intelectual, notadamente, a editora Coleção Mossoroense. Entende-se que seu grupo de

letrados atuavam como criadores e mediadores culturais operando na sociedade através de um lugar de produção

que divulgava conhecimento. Sendo a Coleção Mossoroense, um ambiente marcado pelo desenvolvimento de

relações afetivas, afinidades, apadrinhamentos e, sobretudo, a constituição de uma ideia de identidade e

pertencimento a um grupo (GONTIJO, 2005).

10

retirantes que fugia das asperezas do sertão, durante a seca de 1919, retrata os sujeitos e

paisagens com as quais se deparou. Sua rememoração apresenta-se como possível meio de

resistência aos prováveis desencantamentos com o contexto no qual ele a escreveu,

propiciando a ressacralização de algumas de suas memórias, visto que o processo de

invocação ao passado através da memória está ligado à ausência temporal; tanto de um si que

não é mais o mesmo, quanto dos outros, diante de um tempo passado, irreversivelmente

deixado para trás.

Vejamos o que ele narra sobre a sua caminhada e chegada à Mossoró:

Do mirante improvisado, podia observar o intenso movimento das ruas, com a

circulação de numerosos animais que formavam os comboios, os tropeiros que

conduziam essas peças pelas estradas, algumas em grande número, que transitavam

pela frente daquela moradia, pois por ali se estendia a estrada tronco que ligava

Mossoró a muitos lugares do alto sertão nordestino [...] numa distância aproximada

de três léguas, a estrada toda era alegrada pelo desusado movimento dos

comboieiros, pela conversa, vozear e gritos daquela gente, que vinha de todas as

partes, demandando de todos os sertões à procura da cidade que era ainda o vasto

celeiro comercial, centro abastecedor de interior de vários Estados Nordestinos

através do volume de suas operações mercantis. [...] Todo o interior sertanejo ouvia

contar pelos velhos tropeiros a história daquela pequenina capela, cujo local, era

como uma porta aberta por onde penetravam os que chegavam para a grande e

desconhecida aventura de novos dias e de outras esperanças, de possibilidades de

trabalho e riquezas com que a cidade, que se abria, lhes acenava para a luta, para

a vitória ou para a derrota (NONATO, 1987: p. 41-44). 4

Sobre o contexto vivido por Mossoró à sua chegada, em 1919, ele afirma:

A cidade, àquela época, ainda no seu franco florescimento mercantil, vivia de um

intenso comércio, não abrindo, destarte, caminhos de vitórias a quem não

dispusesse de certa soma de condições, reclamadas pelas numerosas ocupações da

sua atividade e das suas casas de negócio. [...] quando cheguei em Mossoró, tentei

com os Apolinários, com Aristides Rebouças e Antônio Costa, arranjar-me naquele

serviço, esforço de todo inútil, pois não havia vaga, nem eles confiavam na

possibilidade do meu rendimento (NONATO, 1987: p. 48).

É muito comum observar ao longo de toda a sua obra, as descrições sobre as ruas e

estabelecimentos comerciais da cidade de Mossoró:

4Além dos aspectos que definem o modelo e aspectos paisagísticos, esse trecho reflete a questão de Mossoró

como centro de uma região, no caso o Oeste Potiguar.

11

Aquela época, o Alto da Conceição, primitivo Alto dos Macacos, que o professor

Manuel Antônio mudara o nome com a invocação da Padroeira que lhe dirigia os

destinos espirituais – N.S da Conceição – não passava de um pequeno arruamento,

de um casario rústico, a maioria de taipa, sem reboco e de beira e bica, que

derivava da frente da capela para o centro urbano, com uma rua muito comprida,

toda esburacada e com alguns raros pés de tamarindos que deitavam sombras nas

calçadas (NONATO, 1987: p. 11).5

[...] Os armazéns de sal davam o grande aspecto da sua vida. Por dentro deles, em

confusão, os comboieiros enchiam os surrões que costuravam e depois colocavam à

sombra dos alpendres, levantados em grossas estacas de carnaúba (NONATO,

1987: p. 44). 6

O mercado de Mossoró é que me fez cair o queixo. Não podia nunca imaginar uma

coisa daquela, acostumado como estava, com o prédio acanhado de Martins, que a

gente só chamava de barracão. Ia-se ali, comprar carne, rapadura, café, bolacha de

canela ou um pedaço de pano. [...] barracão era conversa de retirante, de bicho do

mato. [...] o mercado de Mossoró foi alguma coisa que ficou pregada na minha vida

pelo seu movimento, ramos de negócio e fisionomia de sua gente boa, simples e

prestativa (NONATO, 1987: p. 50-51).

Em Evolução urbanística de Mossoró (1983), Raimundo Nonato promove outro tipo

de construção narrativa acerca da cidade. Aqui ele não recorre exclusivamente às memórias,

mas se reporta a documentos que ajudam a traçar o roteiro da cidade. Transforma sua

pesquisa em plantas que ajudam a recompor o itinerário das ruas e sua evolução ao longo do

tempo. Esta obra serve como referência a vários pesquisadores que pretendem se deter ao

estudo urbanístico da cidade de Mossoró, que conta com um material muito escasso em

relação a plantas que reportem à cidade nos tempos passados, não se restringindo a

pesquisadores da área de História.Vejamos alguns exemplos, a seguir.

5Aqui ele detalha as ruas pertencentes ao bairro Alto da Conceição, as primeiras ruas pelas quais passou ao

chegar à Mossoró. 6Os armazéns de sal possuíam grande movimentação àquela época, uma vez que sua comercialização se vazia

bastante expressiva.

12

Imagem 1 - Planta referente à Fundação de Mossoró no ano de 1772

Imagem 2 – Planta referente aos anos de 1861/1870. “Era do Desenvolvimento”, segundo ele.

13

Imagem 3 – Planta referente à cidade de Mossoró entre 1870/1883

Como é possível perceber, as memórias se consubstanciam não somente através de

textos escritos, mas sob inúmeras matrizes que são capazes de representar espaços e

recordações. Neste caso, a memória individual ajuda a compreender e representar uma época:

[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto

individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente

importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um

grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992: p. 204).

No entanto, Pollak pondera que “[...] a memória e a identidade são valores disputados

em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos

diversos” (POLLAK, 1992: p. 205), assim sendo, as identidades coletivas podem ser

entendidas como aquisições feitas por grupos ao longo do tempo, de modo a produzir em seus

membros o sentimento de unidade, continuidade e coerência. Uma vez alcançada essa

unidade, pode-se dizer que o grupo construiu uma narrativa sobre si, de maneira a diferenciar-

se dos demais, numa relação segundo a qual identidade e alteridade se entrelaçam por meio de

memórias que autorizam e legitimam.

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Sendo assim, é preciso ponderar que Raimundo Nonato fazia parte de uma

intelectualidade7 que intentava projetar a cidade de Mossoró enquanto centro regional. Essa

ideia foi tecida por seus próprios intelectuais, responsáveis por promoverem representações

que atestam tal pensamento. Para eles, a “região mossoroense” compreenderia parte da

Chapada do Apodi, e esta abrangeria quase todo o estado geograficamente. De modo que sua

atribuição como região não foi considerada levando em conta apenas seus aspectos

geopolíticos; mas também o que se refere à sua produção cultural, através do

desenvolvimento de uma ideia de “cultura mossoroense”, a qual conforme se supunha naquele

contexto, seria capaz de “influenciar” os municípios que estavam em seu entorno, que a

teriam como um centro regional. Como sugere Albuquerque Jr:

Toda região é pensada a partir de um centro, como tendo uma parte central, mais

importante, para onde devem convergir aqueles que em nome dela se expressam. As

regiões são escritas e inscritas para ficarem, para serem a base de identidades que

se quer fixas e imutáveis (2010: p. 6-7).

4. Considerações finais

A escrita memorialística de Raimundo Nonato é mesclada por materialidades e

subjetividades. As ruas, os espaços e as pessoas são transformados em memória, de modo que

se materializam através da própria escrita. Presenteia-nos com relatos e descrições que

permitem investigar e compreender parte do contexto ao qual ele se refere ao desenrolar de

suas narrativas, nos fazendo vislumbrar espaços modificados pelo tempo. Sua escrita constrói

representações significativas sobre a cidade e região Oeste Potiguar como um todo, de modo a

gerar um sentimento de identificação naqueles que leem seus relatos memorialísticos sobre

7Aqui nos referirmos ao modelo de História dos Intelectuais conduzido pelo o historiador francês Jean-François

Sirinelli (2003), que para ele diz respeito a “um campo histórico autônomo que, longe de se fechar em si mesmo,

é um campo aberto, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural” (p. 232). De modo que

entendemos Raimundo Nonato e o sua rede de sociabilidades enquanto criadores e os “mediadores” culturais,

como é o caso dos jornalistas, escritores e professores, por exemplo, bem como o seu engajamento social, de

modo que o intelectual vem a ser entendido a partir do papel de intervenção que assume na sociedade, seja como

ator social, testemunha ou consciência. Afinal, é o saber que o indivíduo domina que faz com que este seja

reconhecido por seus pares e permite a ele intervir na sociedade (SIRINELLI, 2003: p. 242-243).

15

um passado que não mais retorna, mas que curiosamente parece se fazer presente nas suas

memórias “paginadas”.

Por conseguinte, as obras aqui analisadas – mesmo que de forma breve – se

apresentam como elementos fundamentais à construção e significação identitária em torno do

espaço geográfico e sentimental mossoroense. Considerando que remontam períodos distintos

da cidade, considerando as suas mudanças ao longo do processo histórico e contribuindo

diretamente no processo de construção identitária da cidade e dos sujeitos que se utilizam dos

seus espaços.

5. Fontes

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