a história, cativa da memória - ulpiano

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  • 5/6/2018 A Histria, Cativa da Memria - Ulpiano

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    A HISTORIA, CATIV A DA M~M6RIA ?Para urn mapeamento da memoria no campo das Cienelas Sociais

    Ulpiano T. Bezerra de Meneses *RESUMOA crescente popularidade da memor ia , s eja C0l110 tema academico, seja comobandeira politica, rem o bsc urec id o su a n atu re za de fenomeno social. A flm dereafirmar sua natureza original, siio discutidas tres questiies: a reijicariio damemoria, silas raises I/O presente e aspectos de sua flsiologia. Chama-se aa ten rii o pa ra da is tr jp icn s f reqi ient emen te negligenciados: a am nesia social e,sobretudo, a gestiio social da memoria. Sugere-se, enflm, que conceitos da

    Psicologia Social. C0l110 0 de representaciies socia is, podem contribuir para 0estudo da memoria enquanto objeto do conhec imen to historico.Unitcrmos: Memoria ; M emoria como fenomeno social; Memoria Social :Fisiologia d a memo ria s oc ia l: Memor ia v er su s H isto ric ..

    o tema da memoria esta em yoga, hoje mais que nunca. Fala-se dememoria da mulher, do negro, do oprimido, das greves do ABC, memoria daConstituinte e do partido, memoria da cidade, do bairro, da empresa, da familia.Talvez apenas a memoria nacional, tantas vezes acuada (e tantas vezesacuadora) esteja retraida. Multiplicam-se as casas de mem6ria, centros,arquivos, bibliotecas, museus, colecoes, publicacoes especializadas (ate mesmoperi6dicos). Os rnovimentos de preservacao do patrimonio cultural e de outrasmernorias especificas ja con tam como forca politica e tern reconhecirnentopublico. Se 0 antiquariato, a moda retro, os revivals mergulham na sociedadede consumo, a memoria tambem tern fomecido municao para confrontos ereivindicacoes de toda especie.Isto tudo, e claro, e positive, na medida em que nao so retlete a salutaremergencia da consciencia politica, como tambern recolhe, organiza e conserva D irctor do M useu Paulista da USP.

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    indicadores ernpiricos preciosos para 0conhecimento de fen6menos relevantese merecedores de analise e apreensao hist6rica.Todavia, precisamente para conhecer 0campo da mem6ria, e necessariodepura-la de urna serie de traces que Ihe sao vulgannente atribuidos, para abrircaminho ao crivo da Hist6ria.o objetivo deste trabalho e uma especie de mapeamento de territorio,para que, reposta a mem6ria na sua condicao de fato social, possa ficar melhordefinida sua fronteira com a Hist6ria. Nao se trata de balance critico do tema,nem de sintese historiografica sistematica. Trata-se de sinalizar, a partir deescolhas numa ja vastissima bibliografia, a possibilidade de superar os limitesda conceituacao corrente de memoria e suas funcoes, Para tanto, foramselecionados cinco problernas-chave: a resgatabilidade da memoria, 0peso dopassado, amemoria indivisivel, a marginalizacao do esquecimento e, finalmente,as estrategias e a administracao da memoria. Apos 0 que se pcdera reafirmara natureza diversa de Historia e mem6ria, malgrado a solidariedade.o impossivel resgate da memoria.A caracterizacao mais corrente da memoria e como mccanismo deregistro e retencao, dep6sito de informacoes, conhecimento, experiencias. Daicom facilidade se passa para os produtos objetivos desse mecanismo. Amemoria aparece, entao, como algo concreto, definido, cuja producao eacabamento se realizaram no passado e que cumpre transportarpara 0prcsente.Diz-se, tambem, que a memoria corre 0risco de se desgastar, como urn objetofriavel submetido a uma acao abrasiva; por isso e que precisa nao s6 serpreservada, mas restaurada na sua integridade original. E tambem sc deixaaprisionar pelo esquecimento, pela ocultacao, enreda-se em caminhos que naoconduzem ao presente; portanto, tem que ser resgatada: como a crianca que caiunurn poco e nao consegue subir a superficic sem 0 auxilio providencial dosbombeiros. Ou como as lembrancas traumaticas que, reprimidas, produzemmaterial patogenico, capaz, todavia, de ser neutralizado na cura psicanalitica,por sua remocao, estrato por estrato, ate a luz do dia tal como 0 arque6Iogodesenterra os objetos retidos no soI0.(1)No entanto, nem a memoria pode ser confundida com seus vetores ereferencias objetivas, nem ha como considerar que sua substancia e redutivcla urn pacote de recordacoes, ja previsto e acabado. Ao inverso, ela e urnprocesso permanente de construcao e reconstrucao 1 1 1 1 1 trabalho, como apontaEclea Bosi,(2) 0 esforco ingente com que costumarn investir grupos esociedades, para fixa-la e assegurar-Ihe estabilidade, e por si, indicio de seucarater fluido e mutavel, As sociedades de comunicacao oral, por exemplo,desenvolveram sofisticadas e eficientes tecnicas mnemonicas para evitarvariacoes: 0ritmo, a convencao formular, os sistemas de associacao, etc. Nemporisso, revelam osespecialistas,(3) a tradicao sedeixa cristalizar: a comunicacao(1 ) Pam caracterizacao deSS!Ioperacao da curn psicanalitica, que e consideravelrncntc divcrsa doconhecimento historico, ver U. Bezcrrn de Meneses. Freud a rqueo logo. I n: Atlante, J: pp.60-66.1990 ; v er tambem David F.Krell. Of memory reminiscence and writing. Bloomington, IndianaUniversity Press, 1990. pp.105-162.(2 ) M em oria e so cied ad e. L em bran ca d e velh os, Silo Paulo, T.A. Quciroz, 1971. p.7.(3) Ver J. Goody &I.P. Wan. The consequences of literacy. In : Comparative Studies ill Society GildHistory, 5: pp.304-45, 1963. .

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    nunea se faz rigorosamente palavra por palavra, mas absorve variacoes deescala diferenciada. 0 easo das culturas orais e interessante porque, nelas, 0processo de registro e conservacao de informacao coincide inteiramente como processo de sua cornunicacao, socializacao,Por sua vez, os praticantes da Historia Oral e outras disciplinas queprivilegiam as historias de vida, estfio atentos para 0fato que uma autobiografianunca e estatica.nem se desenvolve pela simples adicao de elementos novas,na sequencia do tempo, mas comporta continuas reestruturacoes de eventospass ados. E, ainda que se mantenham os micleos fundamentais, os fioseondutores, as contingencias do presente se integram a todas as dimensoes danarrativa. De forma semelhante, a memoria de grupos e coletividades seorganiza, reorganiza, adquire estrutura e se refaz, num processo constante, defeicao adaptativa.(4) A tradicao (memoria exteriorizada como modelo) nuncase refere a nenhum corp a consolidado de crencas, nonnas, valores, referenciasdefinidas na sua origem passada, mas esta sujeita pennanentemente it dinamicasocial.(5)Finalmente, a heterogeneidade que pode estar presente na memoriaindividiual e, mais amplarnente, na de grupos e coletividades, toma seu resgateuma ilusao,Mem6ria, passado, presente.

    Tambem na voz corrente, a memoria aparece como enraizada nopassado, que the fomece a seiva vital e ao qual ela serve, restando-lhe, quantoao presente, transmitir-lhe os bens que ja tiver acumulado. Ora, como se viu,a memoria enquanto processo subordinado itdinamica social desautoriza, sejaa ideia de construcao no passado, seja a de uma funcao de almoxarifado dessepassado. A elaboracao da memoria se da no presente e para responder asolicitacoes do presente. E do presente, sim, que a rememoracao recebeincentivo, tanto quanto as condicoes para se efetivar.o caso limite do compromisso da memoria com 0 presente esta namemoria habito, que ja Bergson caracterizara como automatismo corporal,.para distingui-la da memoria pura. No entanto, sua significacao e maisabrangente, como se ve na formulacao de Connerton:

    "The habit-memory more precisely the social habit-memory ofthe subject is not identical with that subject's congnitive memoryof rules and codes; 1101' is it simply an additional or supplemen-tary aspect; it is an essential ingredient in the successful andconvincing performance of codes and rules ".(6)No presente, e claro.

    Uma reflexao sobre a constituicao, em nossa sociedade, da categoria doobjeto antigo, objeto historico, permitiraressaltar o papeJ fundante do presente.(4) cr. Martin Kohli. Biography: account, text. method, In: Daniel Bertaux, org., Biography and

    society. Tire life history approach ill the Social Sciences. London, SAGE, 1981, pp.til- 75.(5) Ver, p.ex., Eric Hobsbawm &Terence Ranger, orgs.A in ve nc iio d as tr ad ir oe s. Trad. bras.,Rio de Janeiro, Paz e Term, 1984.(6) Connerton, Paul. How societies rem em ber. Cambridge, University Press, 1989, p.36.

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    o objeto antigo, obviamente, foi fabric ado e manipulado em tempo anterior aonosso, atendendo as contingencias sociais, economicas, tecnologicas, culturais,etc.etc. desse tempo. Nessa medida, deveria ter varies usos e funcoes, utilitariosou simbolicos. No entanto, irnerso na nossa contemporaneidade, decorandoambientes, integrando colecoes ou institucionalizado no museu, 0objeto antigotern todos os seus significados, usos e funcoes anteriores drenados e se recicla,aqui e agora, essencialmente, como objeto-portador-de-sentido, Assirn, porexernplo, todo eventual valor de uso subsistente converte-se em valor cognitivoo que, por sua vez, pode alimentar outros valores que 0 passado acentua aulegitima. Longe, pois, de representar a sobrevivencia, ainda que fragmentada,de uma ordem tradicional, e do presente que ele tira sua existencia, E e dopresente que deriva sua ambigiiidade. Jean Baudrillard, estudando essa categoriapara rastrear, no>"sistema dos objetos" a insercao do passado no eircuito dasociedade de consumo, assim ve, nao sern urn certo desencanto, a ambigiiidadedo status do objeto historico:"Deux mouvements inverses: en taut qu 'il vient s 'integrer dansle system e cu lture! a ctu el, I' objet ancien view, dufond dupasse,signifier dans le present la dimension vide du temps. En tant queregression individuelle, au contraire, c' est lin mouvement dupresent Vel'S le passe pour y projeter la dimension vide deI 'eire".(7)o presente pode inverter radicalmente 0 valor original de urn objetopassado. Michael Thompson,(8) elaborando sua "teoria do lixo", demonstrou

    como, muitas vezes, e 0descarte e abandono de urn objeto, no passado, que vaojustificar especificamente sua tesaurizacao no presente.Nessa perspectiva, pode-se dizer que a memoria niio da conta dopassado, nas suas multiplas dimensoes c desdobramcntos. E nao s6, e claro,porque sabemos muito mais do que as mem6rias vivenciadas no passadopoderiam saber, mas sobretudo parque 0 conhecimento exige estranhamento edistanciamento. Somente a Hist6ria e a consciencia hist6rica podem introduzira necessaria descontinuidade entre passado e presente: Historia, com efeito, ea ciencia da diferenca, Niio basta calibrar a oposicao de urn "agora" contra urn"antigamente"; e preciso identificar a substancia passada do passado (aquiloque em Ingles se diz "pas/ness"), sem prejuizo dos interesses e direitos dopresente. The past is a foreign country e 0 titulo do livro em que DavidLowenthal investiga como, desde 0 Renascimento, pede vir-se consolidandoesta percepcao do passado como descontinuidade. Estc ja c a pass ado daHist6ria.(9)

    Ha tambem outros aspectos que conviria registrar para melhor esclarecero presente na acao da memoria. Limito-me, aqui, a uma questiio que exemplificaa preocupacao documental de nossa sociedade e a preparacao da memoriafutura. Nao me refiro, apenas, aos interesses individuais, nem as politic asoficiais de abertura de horizontes e intensificacao de atuacao dos arquivos, na(7) Baudrillard, Jean. l.e systeine des objets. LCI COIlSOllI/IIClliOIl des signes. Paris, Dendel/Gouthier,

    1968. p.92. n.1.(8) Rubbisl: theory. The creation ami destruction of value. Oxford, University Press, 1979..(9) Lowenthal. David. TIll!pas/ is aforeign COli/II!)'. Cambridge. University Press, 1985.

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    coleta, processamento e difusao dos documentos "de nascence", Tampouco merefiro a multiplicacao de monumentos em que, como lembra Le Goff,( 10) estasempre inscrita a prescricao do presente para leitura "correta" no futuro(caracteristica de que tambem participam as documentos originados nestafuncao de registro). Refire-me, sim, a vertiginosa expansao da memoria nocampo da cultura material. Excluidas as colecoes pessoais, as colecoesinstitucionais (museus, empresas e outros organismos) nao se colocam limites,salvo os de ordem pratica, Nos museus, sobretudo, a coleta de docurnentacaocontemporanea e particularmente significativa e intensa e abrange daamostragem peri6dica das mercadorias mais vendidas em supermercados atea retencao dos objetos efemeros (paradoxalmente contrariando sua razao deser), penetrando todos os desvaos da vida sociaL( 11)0problema nfio esta nagenerosidade destas iniciativas, mas, do ponto de vista do conhecimento, na suaone rosa serventia, pois, longe de fornecer urn camiriho aberto aos historiadoresdo futuro, deles exigirao urn penoso trabalho previo de codificacao dessesimulacro de presente petrificado em memoria - semduvida precioso, ao menospara 0 estudo do imaginario e das mentalidades. Com efeito, a falta deorientacao critica, 0predominio do descritivo, 0descompromisso com qualquerproblernatica previamente delineada fazem com que essa massa enorme dedocumentos corra 0 risco de transformar-se num duplo fragmentado e parcelardo presente empirico. 0extremo seria aquela pulsao documental alucinat6riadescrita por Michel Melot:

    "Imaginons chaque citoyen tranforme ell collecteur et ellconservateur, chaque objet devenant SOil propre symbole et lanation entiere figee dans sa propre image. comme les tableauxvivants all theatre: Iepollen ne S 'echappant plus desfleurs maisconserve pour des botanistes futurs, Ie manuscrit archive avantla publication, la matrice conservee pour plus de siirete - diit-ellepour cela 1 1 'avoir jamais produit aucun exemplaire. L . Histoireenfin produite pour le seul interet des historiens, et paul" eux-memes bloquee, comme un chirurgien immobilise SOil patientpour mieux pouvoir operer'i.tl Z)Enfim, uma ultima reflexao sobre a dominacao da mem6ria pelopresente pode ter como referencia processos patologicos em que nao so 0passado, mas tambem 0futuro, podem ser eliminados. Urn exemplo e fornecidopelo caso famoso de urn amnesico, 0jovem K.C., que, apos acidente cerebral,pas sou a revelar ausencia total de reminiscencias pessoais (memoria episodica),

    (10) D ocum ento/M onum ento. In : Enciclopedia Einaudi. Torino, G , E inaudi E d" vo1.5 , 1978, pp , 38148.

    (11) Para os problem as relatives a docum cntacao conternporanca de cultura m aterial, ver T hom asJ. S ch le re th . C o ntempo ra ry c olle ctin g for-future re co lle ctin g. I n: Muse um S ir/d ie s J ou rn al, I3):pp.23-30 , 1984; E dith M ayo, C onnoisseurship of 'the future. In : Fred Schroeder, org , Twentieth-Century popular culture. III: museums and libraries. Bow lin g G ree n, Bow lin g G re en Univ er sityPopular Press. 198 I.pp.II-24: G oran R osander. T od ay fo r IOmO rrO Il', M use um d oc um en ta tio nof contemporary society in Sweden by the acquisition ofobjects. Stockholm . SAM DOK . 1980;Gaynor Kavanagh . SAM DOK in Sweden: some observations and impressions. In : MuseumsJournal. 83( I): pp.85-6, 1983: T im othy A mbrose & G ay nor K avan agh , orgs., R ec ord in g so cie tytoday. Edinburgh . Scottish M useum s Council, 1987.

    (12) M elot, M ichel. D es archives considerecs com me une substance hallucinogene. Traverses, 36:p.14.1981.

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    mas permanencia, embora lacunosa, de outras Iernbrancas (memoria semantica,impessoal). Endel Tulving, urn dos estudiosos do caso, observou que 0paciente,ainda que incapaz de se lembrar de qualquer evento experimentado antes oudepois de seu acidente ("remembering and recollecting") podia conhecermuitas coisas sobre si mesmo no passado ("knowing and recalling"), mas talcomo faria urn observador externo. Sua apreensao do tempo enquantosubjetivamente experimentado parece muito comprometida. Mais ainda, talcomprometimento se estende ao futuro: .

    "Tillis, when asked, K.C. cannot tell a questioner what he isgoingto do later on that day, or the day after, or at any time ill the restof his life. He cannot conjure lip images about his future in hismind's eye any more than he can do so about his past. Withoutthe ability to remember what he "hasdone or to contemplate whatthefuture must bring, KiC, is destined to spend the reminder ofhis life in a permanent present ".(13)o que e aqui relevante nao sao as interferencias neurofisiol6gicas (comoas diferentes sedes cerebrais das funcoes da memoria), mas a observacaoexperimental de que a presentificacao da existencia neutraliza a construcao desua inteligibilidade. A memoria e filha do presente. Mas, como seu objeto e amudanca, se the faltar a referencial do passado, 0 presente permaneceincompreensivel e 0 futuro escapa a qualquer projeto.

    Memoria individual, coletiva, nacional.No enfoque principal deste artigo, as distincoes entre as diversascategorias propostas para a memoria, segundo seu eixo de atribuicoes, ternpresenca eventual. Nao, porem, que elas sejam secundarias. Ao contrario,convern acentuar alguns traces diferenciais de muita consequencia,Ass ciencias socia is interessa a memoria individual somente nos quadrosda interacao social: e preciso que haja ao menos duas pessoas para que arernemoracao se produza de forma socialmente apreensivel. E este fen6menoda memoria condividida ("sharing memories") que tem relevancia, Alias, amateria bruta da memoria individual pode permanecer latente anos a fio, ate que

    seja despertada por um interlocutor cujo papel, entao, nao e meramentepassivo.( 14)Essa dimensao extra-individual tern propiciado as ciencias sociaisfarta exploracao da memoria individual.( 15) A contribuiclfo das hist6rias devida tern sido crucial, sobretudo para a analise das mentalidades, como nasobras exemplares de Carlo Ginsburg ou Natalie Davis.( 16)A memoria coletiva e a nacional sao outras categorias, ambas opostas

    (13) Ende] Tulving, Remembering lind knowing the past. In: Americall Scientist. 77 (4): pp.363-4,1989.

    (14) Situacocs pniiicas caracterlsticas podem ser encontradas ern Olga R. de Moraes von Simson.Folguedo carnavalesco, memoria e idemidude social-cultural. In: Resgate, 3: pp.S3-60. 1991.(15) Ver Daniel Bertnux, org., Biography 0111/ society. Tire life-history approach in the SocialSciences. London. SAGE, 1981.(16) cr. Carlo Ginzburg. 0queijo e os vermes. 0cotidiano e as ideias de um moleiro perseguidopela /llqllisi(uo. Trad, bras . Silo Paulo. Companhia dns Letras, 1989; Natalie Zemon Davis, 0retorno de Martin Guerre. Trad. bras. . Rio de Janeiro. paz c Terra. 1987.14 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:924, 1992

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    a memoria individual, mas de maneira diversa,A primeira e urn sistema organizado de lernbrancas cujo suporte sao

    grupos sociais espacial e temporalmente situados.( 17) Melhor que grupos, epreferivel falar de redes de interrelacoes estruturadas, imbricadas em circuitosde comunicacao. Essa memoria assegura a coesao e a soliedariedade do grupoe ganha relevancia nos momentos de crise e pressao. Nao e espontanea: paramanter-se, precisa permanentemente ser reavivada. E , por isso, que e da ordemda vivencia, do mito e nao busca coerencia, unificacao, Varias rnernoriascoletivas podem coexistir, relacionando-se demultiplas formas.

    Ja a memoria nacional que nao c a somatoria das diferentes memoriascoletivas de uma nacao apresenta-se como unificada e integradora, procurandoa harmonia e escamoteando ou sublimando 0contlito: e da ordem da ideologia,Por isso mesmo, 0 estado e as camadas dominantes - mas nem sempre - sao,como interessados na reproducao da ordem social (a que ela induz e quesimbolicamente realiza), os principais responsaveis pela sua constituicao ecirculacao.I 18)

    A memoria nacional C 0 caldo de eultura, por cxcelencia, para aformulacao e desenvolvimento da identidade nacional, das ideologias daculruranacional e, portanto, para 0conhecimento historico desses fenomenos,Dai ser a questao da identidade nacional, em sua natureza problernatica, 0temamelhor estudado dentre todos os que se referem it memoria social.( 19)

    Entretanto, sao ainda escassos e fazem grande falta estudosque examinema fisiologia destas catcgorias de memoria e, em particular, as simbioses,adaptacoes passagens de uma categoria a outra, scja na sua complcxa articulacao,seja intemamente. Dessa maneira, problemas tao graves como, por exemplo,o da apropriacao das mernorias individuais ouo da "memoria alheia", sao aindamuito mal compreendidos. Mesmo os mecanismos mais elementares, tais astransferencias de memoria na circulacao de objetos, sao conhecidos quase que

    07) V er, para divcrsas concepcoes, M aurice H albw achs. La memo ir c c olle ctiv e. Paris. PU F. 2" cd .1 96 8: A ndre L eroi-G ou rh an, Le geste et la parole. La memoire et les rythm es. P aris. A lb inM ic h e r . 1965: Pierre N ora. M ernoirc Collective. In: J. Lc G off et ali i. o rgs .. La NOIl1'el/~Histoire.Paris. CEPFL. 1978: Jacques Lc G o IT. Mem oria. In: Enc ic lo pe dia E in au di, Torino. Einaudi Ed ..vol.B, 1979, pp.I068-II09; ver, ainda. Luis Felipe Baeta Neves, Para uma teoria da memoriarnig rante e Migracilo c ideologic da memoria social. In: A s m ascaras da totalidade totalitaria.M emoria e produciies sociais. Rio de Janeiro. Forense/U niversitaria, 1988, pp.149-168.

    (18) Pierre N ora (Entre m cm oire et histoire. In: P. N ora. dir., L cs lieux de memoile.!. La Repub lique ,Paris. Gallimard, 1984. p. XXII) chama a atenciio pam a subsrituicao, que esta em curse dcsdea dccada de 30, do cstado-nacao pelo estado-socicdadc, com o rcferencial da m em oria. M ichaelPollak (M em oria. csquecirnento, silcncio, In: Estudos Historicos, 3: p.S, 1989). por seu [ado.cstuda fenomenos de dom inacao da memoria c obscrva que "II clivagem entre memoria oflciale dom inante e mem orias subterrdneas sabre 0p uss ado , n iio remete fo rco same nte c i oposiriioentre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais frequencia e ss e p roblemanus retaciies entre grupos minorittirios e a sociedade englobante ".(19) V er, para nossa socicdade, p.ex . R enate O rtiz. Cultura popular e m em oria racional.In: LeoncioM . Rodrigues et alii. Trabalho e cultura IlO Brasil. Recife/Brasilia. A NPPCS/CN Pq. 1981,pp.289-302; idem . Cultura brusileira e idcntidadc nacional, sao Paulo. Brasilicnse, 1985; JoseR cg in ald o G oncal v es, A urcn ticidad c, m emoria e ide olo gia n acio nais: 0p ro blema d os p atrimon ie scultu rais, In : E studos H istorico s, 1(2): pp.264-298. 1988: Afonso Carlos M arques dos Santos.M emoria. h istoria, n aciio: p ro po nd o q uestoes.In: Tempo Brasileiro, 87: pp.S-13. 1986; idem D ac as u s en ho ria l a vila operaria: patrim onio cultural c m em oria coletivu, Ih.: pp. [27- 139; U.B czcrra de M eneses. ldentidadc cu ltural c arqueologia. I n: A Ifredo B osi, org .. Cultura brasileira:t emas e s it uaci ie s. s a o Pall/D. Atica, pp. 182- 190.

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    tao s6 no seu nivel empirico imediato. Sirva de exernplo, para ressaltar aslacunas e, ao mesmo tempo, 0 rico potencial que encerra, 0 problema do"souvenir". Pouquissimos avances se fizeram, masja ha pistas abertas. Assim,Susan Stewart, no esforco de compreender certas metaforas associadas arelacao entre linguagem e experiencia e, sobretudo, entre a narrativa e seusobjetos, introduziu precisamente 0 tema do "souvenir'. Para ela, trata-se derecurso discriminador de experiencias, Nao precisamos de lernbrancas deeventos que SaOrepetiveis e nao os procuramos. Antes, desejamos lembrancasde eventos que sejam "narraveis" ("reportable") e em que a contingencia damaterialidade seja compensada pela invencao da narrativa. Eis, pois, 0 papeldesses objetos vinculados a memoria ate no nome:"Through narrative the souvenirs substitutes a COlitext. of per-petual consumption for its context of origin. It represents 1I0tthelived experience of its maker. but the '.'secondhand" experienceofhispossessor/owner. Like the collection, it always displays theromance of contraband, for its scandal is its removal from its"natural" location ... The souvenir is by definition alwaysincomplete ...First, the object is metonimic to the scene of itsoriginal appropriation ...Second. the souvenir must remain im-poverished and partial so that it can be supplemented by anarrative discourse ... "(20)Este problema da apropriacao e transferencia da mem6ria individual (e,em outros termos, da coletiva), transforma-se num dos aspectos criticos - quer

    como campo de atuacao, quer como objeto de conhecimento - do domini a dopatrimonio cultural, de premente atualidade.Amnesia Social.

    Se amemoria costuma ser automaticamente correlacionada a rnecanismosde retencao, deposito e armazenamento, e preciso aponta-la tambem comodependente de mecanismos de selecao e descarte. Ela pode, assim, ser vistacomo urn sistema de esquecimento programado. Sem 0 esquecimento, amemoria humana e impossivel. 0 famoso conto de Jorge L.Borges, Funes, 0memoriosp(21), transformou-se num cmblema da perda da condicao humanapela saturacao da memoria e incapacidade de esquecer, incapacidade de pensar,ja que, segundo 0pr6prio Borges, pensar e esquecer uma diferenca, generalizar,abstrair.Infelizmente, a absoluta releviincia do tema nao inspirou entudosaprofundados a respeito da amnesia social. Com efeito, a amnesia e bernconhecida apenas na bibliografia neurofisiologica, psicol6gica e psicanalitica.Naturalmente, dispomos do livro de Jacoby, que tern par titulo, precisamente,Amnesia Social. 0 sub- titulo, porem ("Vma critica a Psicologia conformistade Adler a Laing"), ja revela que seu interesse cuja legitimidade nao se podecontestar levarn-no a urn campo diverso do nosso. 0 que ele realiza e 0processo

    (20) Stewart, Susan. 011 longing. Narration of the miniature. the gigantic, lire souvenir. thecollection. Baltimore. The Johns Hopkins Press. 1984. pp. 135.136.(21) In: Ficcoes, trod. bras. Porto Alegre Globo, 1970.

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    daquilo que denomina "obsolescencia dopensamento" ou a "falsa originalidade"em Psicologia. A amnesia social tern ai, eonsequentemente, a funcao de urnreferencial gera!. Por isso mesmo 0 autor Iimita-se a cemir nosso tema apenasno capitulo inieial, definindo a amnesia social como 0 "esquecimento e arepressdo da atividade humana e social que faz e pode refazer a sociedade".A memoria expulsa da mente pela dinamica social e econornica da sociedadee vitirna de urn processo de reificacao. Mais ainda, trata-se da forma "primer-dial de reificaciio", diz ele, concluindo com uma citacao de Horkheimer eAdorno: "toda reificacdo e 11mesquecimellto".(22)Esta citacao pennite-nos assinalar a importante contribuicao da EscoladeFrankfurt na critica it substituicao das mem6rias "encantadas" pela "memoriaoficial celebrativa", no processo de metropolizacao da eidade contemporanea,em que 0valor de uso c dominado pelo valor de troca - processo legitimado pela"radio instrumental, illimiga dopassado e da lembranca, que visaacriticamenteo futuro e 0passado" .(23)

    A falta de estudos sisternaticos e globais tern sido contrabalancada porurn grande mimero de investigacoes t6picas, embora algumas de amploalcance. Assim, muitos estudos se dedicaram aos mecanismos explicitos doesquecimento, pela eliminacao de seu referencial empirico, principal mentesimbolico. Eo que se poderia chamar de procedimentos de damnatio memoriae,condenacao da memoria, a exemplo da instituicao vigente na Roma Imperial,para contrapor-se, quando conveniente, ao peso da memoria epigrafica emonumental. Com a damnatio memoriae, que nonnalmente sueedia, por votodo Scnado, ao assassinio de urn imperador odiado, apagava-se seu nome deonde quer que estivesse.gravado e se proscrevia sua mencao futura de qualquerato cerirnonial: colocava-se em risco inclusive a eficacia de decisoespassadas.(24) A damnatia memoriae e frequentc em regimes totalitarios, sejana sua instalacao e preservacao, seja na sua desagregacao: exemplos sao oscasos orwellianos ocorridos na Checoslovaquia em 1618 e 1948, mencionadospor Cannerton(25), ou a desestalinizacao da Uniao Sovietica e paises satelites,a que se refere Pollak.(26) E certamente a desmontagem, em curso, da UniaoSovietica dara espaco para pesquisas sabre a iconoclastia como reversao damem6ria.Outra faixa que tern sido bern servida e a das ocultacoes, dissimulacoes,inversocs (nem sempre associdas as instancias de dorninacao, que oeorrem nocampo da mem6ria. Os rituais, como os funerarios, sao propicios para tanto.Jean Didier Urbain chamou a atencao para uma paradoxal polaridade defuncoes (Iernbranca/esquecimento) que a cemiterio apresenta no Ocidente:"Il est une definition" fonctionelle du cimetiere qui est un peu

    (22) Jacoby, Russel. Amnesia Social. Uma critica d Psicologia conformista de Adler a Laing. Trad,bras. Rio de Janeiro. Zahar, 1977. p.19.

    (23) A cxpressao e de Olgaria C. F. Mattos (A cidadc c 0 tempo: algumas reflexoes sobrc a funcaosocial das lcmbrancas, In:Espw;o e Debates, 7: pp.49, out.ldcz.1982), nurn cstudo da criticafrankfurtiana a esta razao instrumental "que busca IG O somente a eficiencia e a produtividadee transforma 0 individuo em instrumento de si propria" (ib. :p.45), induzindo a amnesia.

    (24) Vcr Fergus Millar, TIre Roman Empire and its neighbours. London. Duckworth, 2" cd., 1981,pp23-4.(25) Connerton, Paul. op. cit., p.14(26) Pollak, Michael op. cit., p.4.

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    trop rapidement passee dans Ie langage courant pour etrehonnete et qui consiste a dire que Ie cimetiere est lin lieu dusouvenir, un "pare des ancetres ", Cette definition en cache uneautre: le cimetiere c 'est aussi, avant toute chose etparadoxalement, WI lieu d 'oubli. C 'estpar lui, lie I 'oublions pas,que s 'accomplit fantasmatiquement Ie reve de conservation: iIest enfait, par excellence, Ie lieu de la negation des morts en tantque morts (negation de la difference), Ie lieu reserve a l'oubli dela limitation ontologique fOlldamel1lale de I 'etant humain, Ie lieud'oubli de la realite biologique, de lapourriture, du neant, de lamort, de I 'histoire, du devenir social. II est, ell quelque sorte, Iechamp public et officiel d'une amnesic collective ".(27)Michel Vovelle, por sua vez, demonstrou como 0 Iluminismo procurouesquecer a morte.(28) De teor compararavcl a estes processos de esquecimentosao os movimentos vanguardistas, como, por exemplo, 0modernismo: "Thiscombined interplay of a deliberateforgetting with an action thai is also a neworigin reaches the full power of the idea ofmodemit),".(29)Outra vertente de enorme significacao na pesquisa, c que se verndesenvolvendo, e a da amnesia na historia dos excluidos, dos escravos,mulheres, criancas, operarios, minorias raciais e socia is, loucos, oprimidos detodo tipo. Contudo, nao e suficiente apenas dar voz aos silenciados. E imperiosodetectar e entender as multifonnes gradacoes e significacces do silencio e do.esquecimento e suas regras e jogos. Michelle Perrot, que se notabilizou nestahistoria dos marginais da Historia, alern de registrar a "silencio dos arquivosedos sotdos" sobre as mulheres, no seculo XIX, procura acompanhar amemoria

    sexuada, indispensavel para manter uma detenninada configuracao de direitose obrigacoes, operando por esquecimentos.(30) A memoria familiar, memoriado privado, de que as mulheres sao fieis e eficientes guardias, duplica,socialmente, a reproducao biologica da familia; para tanto, porem, submete-sea exclusoes: todo sistema classificatorio funciona por inclusao/exclusao,Chega-se aqui ao nucleo de questoes sem as quais 0 conhecimento daamnesia social ficaria comprometido ou reduzido: 0 das condicces de"dicibilidade" da memoria, os padroes e coveniencias das rememoracoes, oscriterios de credibilidade, utilidade, qualificacocs, desqualificacoes, que vigemnas sociedades e grupos historicarnente localizados. Podem scr apontadoscomocontribuindo para estes temas, inclusive pela preocupacao rnetcdologica,os trabalhos de Michael Pollak, que encontram no artigo "Memoria,esquecimento, silellcio"(31), urn resumo adequado. Para compreender as"memorias stibterrdneas", ele analisa as dificuldades e bloqueios, asconsideracoes sabre 0 valor imediato das lembrancas compartilhadas oureprimidas, as possibilidades e impossibilidades de comunicacao. Em suma, ascondicoes em que socialmente se produz 0 silencio, por pressao coletiva au(27) Urbain, Jean-Didier. La societe de conservation. Etude semioiogique des cimetieres d 'Occident,Paris, Payot , 1975, p.20.(2S) Vovelle, Michel. org, Mourir autrefois. Attitudes collectives de\'QIUla mort GILl: XVII e.etXVIII e.siecles. Paris. Gallimard, 1974.(29) Paul D e M an. L iterary History an d literary modernity. In: Daedalus, 9 J (2): p.389, 1970.(30) Perrot, Michelle. Pratiques de la mernoire feminine. In: Traverses, 40: pp.lS27. [987.(31) Estudos Historicos, 3: pp.315, 1989.

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    conveniencia pessoal, ate que a memoria possa sair de sua letargia eeventualmente atuar como alavanca para reinvidicacoes, Incluem-se nesseleque as lembrancas proibidas ( caso dos crimes sob Stalin na Uniao Sovietica),indizivcis (caso dos deportados para as campos de concentracao nazistas) ouvergonhosas (caso dos alsacianos recrutados a forca pelos alernacs durante a 2"Grande Guerra).A gestao da memoria.

    De par com a postura, ja tratada acima, que ignora 0 caratcr dinamicoda memoria, desenvolve-se tambem a tendencia vulgar de reduzi-laobjetivamente a seus produtos, vetores ou refcrenciais. Por isso e que ascolccoes arquivisticas sao tomadas por "memoria da industria 110 pals" ereliquias da atividade de comediantcs, cenaristas, etc., se transfonnam em"memoria do teatro" e assim por diante. Ja se ve como e iminente 0 risco dareificacao, acima apontada como forma de esquecimento.

    Para cobrir a problcmatica social da memoria e nccessario considerarnao sorncnte 0 sistema (os mecanismos, os suportes/vetores/referenciais), oscontcudos (as representacces), mas tambem incluir os agcntcs e suas praticas,Sobre estes pontos vale a pena dizcr rapidamente alguma coisa, para situa-losno conjunto.

    Os conteudos constitucm material su fieicntemente explorado,principalmente sob 0 prisma da critica da ideologia. No entanto, muitas vezes,nos estudos historicos, tem-sc isolado os contcudos e as ideologias,desarticulando-os das cstruturas e dos proccssos sociais.

    Pode-se dizer que 6 a ausencia de estudos sistematicos dos suportes damemoria que cxplica, em parte, a utilizacao metonimica do conceito. Dentreas principais categorias de suporte - a linguagem, 0 corpo, as cerimonias, asobjetos materiais - apenas a primeira mereceu atencao suficiente, em especialno que concerne a palavra narrativa e a passagem do registro oral para 0escrito(ate os desdobramcntos eletronicos atuais), Esta ultima questao rcvela, comclareza, a impossibilidade de analisar tais fcnomcnos do' ungula apenasinstrumental: des correspondem a mudancas substantivas e generalizadas damemoria: com a escrita surge a objetividade dcrivada da separacao entreconhecido c conhccedor, dado c intcrprctaciio, logica e retorica, conhecimentoe sabcdoria, ser e tempo; rcduz-se a fluidez oral/aural pcla fixacao de um espacovisual; elimina-sc, no tempo e no espaco, a concomitancia entre fonte ereceptor; abrem-se as portas da abstracao: da verbalizacao, agora exclusiva docontexte, deriva 0 controle da significacao (precisao); diferencia-se,intcmarnente, a linguagcm (falada, escrita); a administracao civil, religiosa,comercial, distingue-se de outros tipos de aciio social, etc., etc., etc. - edistancia-se a passado do prcsentc.(32)

    13. a conhecimento dos demais vetores da memoria e assisternatico e~(32) c r. Walter J. Ong, Writing restructures thought. In: Gcrd Baumann, org. The written 1I'01'd.

    LiIL'/'(lt:F in transition, Oxford. Clarendon Press. 19Sfi,pp.23-50. Ver tambcm Jack Goody. Thedomestication of tire s(/1'(jge mind. Cambridge. University Press. 1977: idem. The logicofwritingand tire organizution of society. Cambridge, University Press, 1986; Alfred Bums. The powerof tire written word. TIre role ofliterucy ill the Westel'fJ Civilization. New York, Peter lang, 1989;Walter J. Ong. Orality (111(/ literacy. Tire technologizlng of/Ire word. london. Methuen, 1982.

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    Iacunoso. 0 cstudo do corpo e da cerimonia como traces mnernonicos, porexcmplo, mal esta cornecando.f.B) 0 estudo dos objetos, apcsar da vastissirnabibliografia sobrc cultura material, tern signi fieativamente desprezado aproblematica da memoria. Pouea coisa pertinente podcria ser mencionada,como a obra de Csikszentmihalyi e Roehberg-Halton,(34) cia propriainsuficicnte, mas interessada no papel da memoria para a configuracao daidentidade, eventual mente mediada pelos objetos. Muitos aspectos relatives amemoria, contudo, estao cmbutidos em cstudos cujo eixo c a formacao cmanipulacao de co1c90es.(35)Scm investigacao sobre as agentcs ativos e passivos da memoria c scuspapeis sociais - os bardos e rapsodos da epopeia, os escribas e cscrivaes,feiticeiros, Iideres politicos e religiosos, arquivistas, rnuscologos, vizinhos,velhas, avos e nctos, filhos, testemunhas autorizadas, vigilantes, adolcscentes,alunos, recrutas, turistas, ctc.,ctc.,etc. - debilita-se a estudo da memoria. Nocntanto, de pouca coisa se dispoe entre nos, com algumas excecoes relcvantes,como 0 exccpcional estudo de Eclea Bosi sobre velhos (36) au 0 de MyriarnMoraes Lins de Barros sabre as avos, filhos e netos.(37)Quanta as praticas, os segmentos anteriores ja deixaram varias pisras.Acrescente-se, agora, a necessidade de exam ina-las como estratcgias e formasde negociaciio, capazes de cstabelecer equilibrios entre memorias em conflito,Mas tais transacces niio sao aleatoriamente flexiveis, nern a passado pode serconsiderado um recurso simbolico infinite c plastico. Somcnte a Antropologia,a meu ver, preocupou-se com estc problema, como testcmunha 0 trabaiho deA. Appadurai que, numa formula feliz, reconhece no passado um "recursoescasso", Estudando, na Ondia conternporanea, incmorias diversas a disputaro controlc de santuarios, levantou a existencia de regras e norrnas especificasque regulamcntam "the inherent debutability ofthe past in the present" (grifomcu) c instituem lacos entre as eventos sociaisc a acao social (com implicacccsate na mudanca social), funcionando eomo "0 code/or society 10 talk aboutthemselves and 1101 only with ill themselves".(38)Urn conceito capaz de amplo alcance operacional, pois pode articularas praticas, os agentes, as referenciais c os conteudos da memoria eo lugar dememoria, na formulacao de P.Nora, que reciclou 0eonceito de locus memoriacproduzido pela Antiguidade e ldade Media. Pode ser entcndido como urn ponto

    (3 3) P au l C on ncrto n, 0 1 ' . cit. d.'! 1 1 m p rim ciro tra tam en to s is tema tico iI p ro blc rm uic a d as c erim on ia scomcru orativn s como lI"OCS perform aticas, do habito, dos auiomatismos corporals - nos quadrosda memoria. Urna obra como a de Mona OZOll[, La fite revolutionnaire, 1789-/71)1). Paris,G allim ard, 1976, tarnbcm pode scr considcrada com o um a das poucas rnonografius disponivcisque deram atcneao ao tema do corpo c da cerimcnia como asscguradores de memoria.

    (34) C sikszentrnihulyi, M ihaly & Eug en Roc hb erg -H ah on . The meaning of thing. Domestics,l'm /m /s o f th e self. Cam bridge, U niversity Press. 1981.

    (35) C f. F.R llphucl & G.Herberich-Murx. Le muscc, provocation de la mcmoire. In: Ethnologicfrancaise, 11 (I), 1987; E liz ab eth S til li ng er. The Antiques, New York, A. Knopf, 19S0 (vcrtambem nora 7, supra): Thomas J.Schlercth. Artifacts ami the American past, Nashville.AASLH, 1980; Susanne Kuchler & Walter Mellon, ergs. Images ofmemory. 011 rememberingand represen ta t ion . Washington DC, Sm ithsonian Institution Press. 199 I.

    (36) Op.cit.(37)AlllOridcu/e e afeto: (IIth.filhose flews nafamiliu brusileira, Rio dc Ja neiro , J org e Zahar; 1987;id.Memoria e familia, In; Estudos Historicos, 3; pp.29-42. [989.(38) The past as a scarce resource. In; Mall, NS, 16: p.218. 1981.

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    de condensacao, de sentido material, simbolico e funcional. Na verdade, a visaode Nora c mais cetica c limitada, visto como, segundo ele, nos sa sociedadeforjou os Iugares de memoria porqueja nilo mais existem os meios de memoria,onde cia era vivenciada.(39) A rigor, ainda conforme Nora, a reproducaoparoxistica de Iugares dememoria, a que estamos assistindo, dcve ser consideradauma patologia de nossa sociedade. A caracterizacao que ele faz do fenomeno,embora longa, merccc transcricao, pelo seu folcgo:

    "Ce reversement tient a la proliferation rapide des memoirescollectives, IMe, d 'unepart, aux bouleversements et aux rupturesdes societes contemporaines et, d 'autre part, a la puissance desmoyens d 'information modernes. Rupture de la guerre de 1914,rupture des economies et des systenies de vie traditionnelle,rupture des ordres nationaux et coloniaux; massification par lesmedia des evenetuents qui marquent la niemoire et donnent [I/ 'actualite une maniere de presence et d 'autorite historiquesiuunediates. Toute I'evollllion du monde contemporain - SOliecl at enient, sa mondialisation, so precipitation, sademocratisation - lend d fabriquer davantage de memoirescollectives, a multiplier les groupes sociaux qui s 'autonomisentpar la preservation Oil /a recuperation de leur propre passe, dcompenser le deracinement historique du social et I 'angoisse deI '0 veilir par la valorisation d 'un passe qui 11 'etaif pas jusque-Iavecu cotnme tel, L 'liistoire s 'ecrit desormais salts lapression desmemoires collectives: depuis I 'histoire 'immediate " qui heritede I 'evenetnent lei que /'0111 constitue les media et constitue d SOiltour line metnoire collective. jusqu 'd I 'histoire 'scientifique 'elIe-ntente . c i laquel le les m em oires col lect ives dicten t ses ill teretset ses curiosites. C 'est d 'ailleurs ce renversement qui a tamcontribue c i diversifier l'histoire, d ell [aire des his/aires, et c itransformer la discipline en champ deforces ideologiques. Il n yavail autrefois, au sens que nails leur donnons desormais. nihistoire scientifique 1 1 ; mass media: c 'est ce quifait la differencedu rapport de la memoire et de f 'histo ire, "(40)Estc quadro apocaliptico precisa ser matizado c se tern que eonsidcrar,na fcrmentacao contcmporanea da memoria, duas direcoes bern diversas. Aprimeira c conservadora, valc-sc da fetichizacao, qucr para transformar amemoria emmercadoria, quer para utiliza-Ia como instrumento de lcgitimizacaopotenciada pclo valor "cultural", A segunda, ao invcrso, e uma resposta,precisarnente, as alicnacoes provocadas pela expropriacao da memoria erepresenta pelo menos a ernergencia de uma consciencia politica. Se nao seexprime como memoria vivenciada e talvez porque, na sociedade da economia-mundo, das massas, da industria cultural, do consumo, a vivencia deva ser

    historicamente reformulada e ainda nao tenha cncontrado formulas de expressaoque ja nos aparccam como positivas. Tarnbern Platao chegou a dccretar a morteda memoria ideal, quando 0 alfabeto a desloeou ciamente dos hom ens.(39) Entre memoirc ct histoirc, In: op.cit., p.XXX[V.(4 0) M ern oire co lle ctiv e. In : op.cit, p,400. V er tam bem J. Le Gof f. Memo ria .In : lip, cit.; Henri-Pierre

    Jcudy. Memoires du social. Paris, PU F, 1986: G , N arrner. ,\-/(!lIIoil'e et societe. Pari s, Mer id icns/K lillC ksie ck , 1 98 7.

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    Na segunda direcao e que tern havido, recentemente, uma mobilizacaoda memoria como bandeira politica e como combustivel para movimentossociais. Paralelarnente, e a propria atividade profissional do historiador que echamada a integrar essa militancia da memoria. Paul Thomas, urn dos teoricosda Historia Oral, nao esconde 0proselitismo dessa modalidade de pesquisa, aoafinnar que, na Europa, ela nao e apenas urn metodo, mas sobretudo urnmovimento.( 41) a carater desse movimento fica patente das declaracoes epraticas aglutinadas em torno, por exemplo, do History Workshop Journal oudo Popular Memory Group da Universidade de Minnesota.( 42) Para complctareste ccnario, vale apena incluirrnencao a grupos etnicos americanos, australianose africanos que, apresentando-se como unicos interpretes legitimos de suamemoria, reinvidicarn tarnbem sua gestae museologica integral.(43) Dai umanova tipologia em que se distingue 0 "museu etnico" dos demais muscusantropologicos c arqueologicos,Mcmorla/Hlsterla

    De todo 0 exposto ate aqui evidencia-se como impropria qualquercoincidencia entre memoria e Historia. A memoria, como construcao social, eformacao de imagem necessaria para os processos de constituicao e reforco daidentidade individual, coletiva e nacional. Nao se confunde com a Historia, quec forma intelcctual de conhecimento, operacao cognitiva. A memoria, ao inves,e operacao ideologica, proccsso psico-social de representacao de si proprio, quereorganiza simbolicamente 0 universo das pessoas, das coisas, imagens crelacoes, pelas legitimacoes que produz.(44) A memoria fomece quadros deoricntacao, de assimilacao do novo, codigos para classificacao e para 0intercambio social. Nessa perspectiva, 0estudo da memoria ganharia muito sefosse conduzido no dominio das representaciies socia is problernatica na quala Psicologia Social tern investido consideravelmente, nos ultirnos anos,procurando parametres e instrumentos metodolcgicos para analises de genese,operacoes, produtos e func;:ocs.(45)

    (41) L ife histories and the analysis of social change. In : D aniel Bcrtaux, org., up. cit., p.290.(42) Vcr, por cxemplo, Popular M emory G roup, Popular memory: theory, politics. m ethod. In:

    R ichard Johnson et alii. orgs., Making' Histories. Studies ill History writing uncipolitics.M inneapolis. U niversity of M innesota Press, 1982 , pp.205-252 .

    (43) Para cxem plos, assim como de qucstoes concxas, vcr Phyllis M . M essenger, ~rg . The ethics ofcollecting cuhura! property: whose culture ? Whose property ? A lb uq ue rq ue , U n iv ers ity o fN ew M exico Press, 1989: P. G nthercolc & D . L ow en thal, orgs. Thepolitics of/he pUSI. London.Unwin H ym an, 1990; R . Layton. org. W ho needs the past? Indigenous values and Archaeology.L ondon. U nw in H ym an, 1989; Isabel M clsrydcorg . Who 011'11.1 ' 1111:pUSI ? Melbourne, OxfordU niversity Press, 1985.

    (44) V er P.N orn. opera citata; J. L c G olT . M em oria, Op.cit..(4 5) S in tcses cap az es d e carac tcriz ar 0 tratam cnto que a Psicologia vern aplicando ao problem a dasreprcscnracocs sociais (e do irnaginario social) podern ser encontradas ern D enise Jodclct, erg .Les representat ions sociales . Paris. PUF. 1989; Robert M . FaIT & Serge M oscov ici, orgs, Socialrepresentations. Cam bridge/Paris. Cam dbridgc University PrcssiEds. de la M aison des Sci-enccs de l'Hommc, 1984; Serge Moscovici, org. Psychologic Sociale. Paris. PUF. 1990;\V.Doise &A. Pa lma r id is . L 'etu de d es re pre sen tation s soc iales. Lau sa nn c/N cu ch atc l, D ela ch au x& N icstle, 19 86.

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    Mas do exposto tambern fica patente que, apos 0divorcio, nas instanciasacademicas, entre mem6ria e Historia, sobretudo depois que esta passou, cadavez rnais, de Historia-narracao a Historia-problema, as condicoes atuais de.gestae da memoria de novo contaminam a Historia, Sem duvida, na praticaprofissional, as exigencias politicas e oscompromissos cicntificos nao deixaraode colocardilemas eventual mente ernbaracosos. Entretanto, e passive Icontinuarfixando balizas c1aras para evitar, nao a conspurcacao de uma hipotetica eindcfcnsavel pureza, mas a substituicdo da Historia pela memoria: a Historianao deve scr 0duplo cientifico da memoria, a historiador niio pode abandonarsua Iuncao critica, a memoria precisa scr tratada como objeto da Historia.

    AJJSTRACTThe gl"OlI'iIJgpopularity ofmemory either as Oil academic subject (/)' as a politicalbanner has obscured its character (ISa social phenomenon. in order IIIreafirm itsoriginal nature three issues are discussed: the reification (?j'lIIeIllOl)', its I'OO/,~illlire present (I/UI flSPt'CIS ofit phvsiology. Attention is called 10(\1'0 otum neglectedtopics: social amnesia and especially lire social mal/agellle/JI of lIIelllol)'. II isSUKl!i'Sled that Social P.lycllOlogy 's concepts. like that ofsocial rcpresentotions.mig/If help i I J tire SIJ/{~l' ofmemory (IS WI object ofhistorical knowledge.Key words: ,HemOl~' Social: Memor I'I.'I'SI/S HisIOI:l': Memoryas a social phenom-enon; Social memory 's physiology,

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