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194 Análise Social, vol. XXXIX (Primavera), 2004 Nelson da Nóbrega Fernandes, Es- colas de Samba: Sujeitos Cele- brantes e Objectos Celebrados. Rio de Janeiro, 1928-1949, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001, 153 páginas. O Carnaval é uma das áreas pre- dilectas de estudo no Brasil, não fos- se esta festa popular central na cul- tura brasileira. Das análises mais genéricas iniciais passou-se lenta- mente para a especialização dos ob- jectos de estudo. Daí a paulatina acumulação de estudos sobre o Car- naval carioca, em termos abrangen- tes ou só sobre um aspecto: o seu desfile de escolas de samba, as esco- las de samba ou as suas individuali- dades. O livro em apreço insere-se nesta escola dos estudos cariocas, que tem como autores fundadores Eneida [de Morais] (História do Car- naval Carioca, 1958) e J. Efegê (Ameno Resedá. O Rancho que foi Escola, 1965) e que se consolidou no último quartel de Novecentos com um conjunto significativo de estudos, de que destaco os seguintes, dados o seu impacto ou a sua relevância: Sér- gio Cabral (As Escolas de Samba, 1974, revisto em 1996), Maria Isaura Pereira de Queiróz («Escolas de samba do Rio de Janeiro, ou a domesticação da massa urbana», in Ciência e Cultura, 1984), José Luiz de Oliveira (Uma Estratégia de Con- trole. A Relação do Poder de Estado com as Escolas de Samba do Rio de Janeiro no Período de 1930 a 1985, tese de mestrado, 1989), Maria Laura Cavalcanti (Carnaval Carioca: dos Bastidores aos Desfiles, 1994) e Monique Augras (O Brasil do Sam- ba-Enredo, 1998). Também a ver- tente das monografias sobre as esco- las de samba foi importante para aprofundar o conhecimento dos me- canismos de produção e interacção culturais. FESTA, CIDADE E IDENTIDADE A presente obra é uma adaptação da tese de doutoramento em Geogra- fia (na Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001) e culmina uma pesquisa do autor sobre a génese e consolidação das escolas de samba iniciada em 1996. Fernandes é geógrafo de formação e esteve sem- pre ligado à referida universidade, exceptuando uma breve estada na Universidade de Barcelona em 1998 para aprofundamento da sua pesqui- sa sobre as relações entre cidade, festa e cultura popular. À sua anterior tese de mestrado — também orientada pela Prof.ª Iná Elias de Castro e intitulada O «Rap- to Ideológico» da Categoria Subúr- bio. Rio de Janeiro (1858-1945) (1996) — foi o autor buscar parte do suporte teórico para o presente estudo de geografia cultural. Com efeito, Fernandes demonstra habil- mente no presente livro como as comunidades expulsas do centro da cidade do Rio de Janeiro pela moder- nização urbanística e que viviam em más condições habitacionais (nos conhecidos morros, em favelas, ou

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Resenha crítica extensa ao livro de Nelson da Nóbrega Fernandes, Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro, 1928-1949.

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Nelson da Nóbrega Fernandes, Es-colas de Samba: Sujeitos Cele-brantes e Objectos Celebrados.Rio de Janeiro, 1928-1949, Rio deJaneiro, Prefeitura da Cidade do Riode Janeiro, 2001, 153 páginas.

O Carnaval é uma das áreas pre-dilectas de estudo no Brasil, não fos-se esta festa popular central na cul-tura brasileira. Das análises maisgenéricas iniciais passou-se lenta-mente para a especialização dos ob-jectos de estudo. Daí a paulatinaacumulação de estudos sobre o Car-naval carioca, em termos abrangen-tes ou só sobre um aspecto: o seudesfile de escolas de samba, as esco-las de samba ou as suas individuali-dades. O livro em apreço insere-senesta escola dos estudos cariocas,que tem como autores fundadoresEneida [de Morais] (História do Car-naval Carioca, 1958) e J. Efegê(Ameno Resedá. O Rancho que foiEscola, 1965) e que se consolidou noúltimo quartel de Novecentos comum conjunto significativo de estudos,de que destaco os seguintes, dados oseu impacto ou a sua relevância: Sér-gio Cabral (As Escolas de Samba,1974, revisto em 1996), Maria IsauraPereira de Queiróz («Escolas desamba do Rio de Janeiro, ou adomesticação da massa urbana», inCiência e Cultura, 1984), José Luizde Oliveira (Uma Estratégia de Con-trole. A Relação do Poder de Estadocom as Escolas de Samba do Rio deJaneiro no Período de 1930 a 1985,tese de mestrado, 1989), Maria

Laura Cavalcanti (Carnaval Carioca:dos Bastidores aos Desfiles, 1994) eMonique Augras (O Brasil do Sam-ba-Enredo, 1998). Também a ver-tente das monografias sobre as esco-las de samba foi importante paraaprofundar o conhecimento dos me-canismos de produção e interacçãoculturais.

FESTA, CIDADE E IDENTIDADE

A presente obra é uma adaptaçãoda tese de doutoramento em Geogra-fia (na Universidade Federal do Riode Janeiro, 2001) e culmina umapesquisa do autor sobre a génese econsolidação das escolas de sambainiciada em 1996. Fernandes égeógrafo de formação e esteve sem-pre ligado à referida universidade,exceptuando uma breve estada naUniversidade de Barcelona em 1998para aprofundamento da sua pesqui-sa sobre as relações entre cidade,festa e cultura popular.

À sua anterior tese de mestrado— também orientada pela Prof.ª InáElias de Castro e intitulada O «Rap-to Ideológico» da Categoria Subúr-bio. Rio de Janeiro (1858-1945)(1996) — foi o autor buscar partedo suporte teórico para o presenteestudo de geografia cultural. Comefeito, Fernandes demonstra habil-mente no presente livro como ascomunidades expulsas do centro dacidade do Rio de Janeiro pela moder-nização urbanística e que viviam emmás condições habitacionais (nosconhecidos morros, em favelas, ou

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simplesmente em subúrbios afasta-dos) usaram o desfile de escolas desamba como meio para o seu reco-nhecimento pela urbe enquantomembros de um mesmo território,de uma mesma comunidade. A vitó-ria dos excluídos não se ateve nasimples compensação simbólica, foitambém um factor de coesão edistensão no interior das comunida-des, de resistência face a processosde despejo e de captação de provei-tos económicos/materiais — com aobtenção de financiamentos e de se-des para as escolas de samba, deinfra-estruturas e equipamentos so-ciais para as comunidades, etc. Estaé, em termos genéricos, a principaltese do livro.

RENOVAÇÃO DA CULTURAPOPULAR: AUTONOMIA EINOVAÇÃO

Esta tese ganha originalidade einteresse no modo peculiar e exaus-tivo como é desenvolvida, pois oautor põe a tónica no potencial cria-tivo do povo e, sobretudo, na suacapacidade de inovação. Tal orienta-ção interpela muitas das ideias feitasda comunidade científica, seja emtorno do Carnaval carioca seja emtorno da cultura popular. Assim,Fernandes refuta a tese da domesti-cação das massas pelas elites viaoficialização do Carnaval, que impli-caria a inevitabilidade da subordina-ção passiva da cultura popular à cul-tura das elites, tese esta bemrepresentada por Maria Isaura Perei-

ra de Queiróz. Também relativiza asideias do esquerdismo da década de1960 sobre a cultura popular comoresistência ao poder e ao domíniocapitalista, pois os indivíduos ligadosàs escolas de samba não só negocia-ram com as autoridades locais a suaintegração no Carnaval oficial, comotinham plena consciência da impor-tância da negociação, mesmo queisso implicasse cedências mútuas.O autor contesta ainda, embora sóparcialmente, a perspectiva que con-cebe o Carnaval brasileiro como ummodo de dominação racial porocultação (através da conversão deitens culturais étnicos brasileiros emnacionais), tese esta encabeçada peloantropólogo Peter Fry (Para InglêsVer, 1982), contrapondo o papel re-lativamente autónomo dos sambistas.Por fim, discorda do excessivo pesoatribuído aos intelectuais enquantoformuladores de símbolos nacionais(v. g., Hermano Vianna em O Misté-rio do Samba, tese de 1994), poisparece assim desvalorizar-se o papeldos próprios sambistas, sugerindo-se(ainda que involuntariamente) umanova subordinação da cultura popu-lar às elites.

A leitura do autor sobre a evoluçãodas escolas de samba está em claraarticulação com um quadro teórico--conceptual que revaloriza critica-mente a noção de cultura popular,apesar da ressalva do seu carácteralgo ambíguo (que, acrescento eu,reside grandemente na polissemiados termos que o constituem), de-fendendo a ideia de «circularidade»(intercâmbio) cultural entre culturasde elite e popular, tal como avançada

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pioneiramente por Mikhail Bakhtin noseu já clássico estudo A Cultura Po-pular na Idade Média e no Renasci-mento (trad. brasileira de 1987, origi-nal russo de 1965). As relaçõesculturais integram ainda a conflituali-dade, a concorrência e a negociação,inserindo-se na luta pela «hegemoniacultural» (teorização de AntonioGramsci, anos 30). Seguindo AriñoVillaroya (La Ciudad Ritual, 1992), oautor considera a dinâmica socialcomo algo intrínseco à produção cul-tural, extensível à própria festa e àsrelações entre os «sujeitos celebran-tes» (os indivíduos que a projectam erealizam) e os «objectos celebrados»(forma e conteúdo da festa).

Fernandes aproveita o conceito de«sujeitos celebrantes» para o estudoda criatividade individual na festa,demonstrando como esta é criada etransformada por pessoas de carne eosso oriundas do povo, e não poruma massa anónima dirigida por in-telectuais encartados e instrumentali-zada pelas autoridades e políticospopulistas. Os sujeitos da culturapopular têm nomes e percursos pró-prios; não se limitam a copiar acriti-camente o que lhes é veiculado pelacultura dominante; também revelamcapacidade de selecção, de transfor-mação, de troca e de inovação. Destemodo, refuta a tese iluminista da in-compatibilidade entre festa e moder-nidade e defende a inextricabilidadeda fórmula do «pão e circo», isto é,o trabalho e o hedonismo caminhamlado a lado enquanto elementosestruturadores da sociedade humana.Para valorizar ainda mais as escolasde samba e o Carnaval carioca, mas

sempre entendendo este numa ver-tente universalista, a festa é conside-rada o mais alto nível de sociabilida-de (ao lado da cidade) e o «maiormomento de identidade e transcen-dência» da vida cívica de uma co-munidade (para tudo, cf. pp. [XV]--XVII e 1-12, citação da p. 2).

O SAMBA NA(S) SUA(S)ESCOLA(S)

Veja-se agora como o autor apli-cou eloquentemente este quadro teóri-co-conceptual na abordagem do seuobjecto de estudo. No presente livro,Fernandes pretendeu estudar a géne-se, formação e consagração das esco-las de samba no contexto dinâmicodo Carnaval carioca, isto é, a origemde tais associações, o processo deconstrução da sua identidade e omodo como conseguiram afastar osmodelos concorrentes, oficializar-se etornar-se um símbolo nacional, tudoisto no escasso período de cerca devinte anos (1928 a 1949).

Em primeiro lugar, o autor preo-cupa-se em traçar o contexto em quesurgiram as escolas de samba, umcontexto ambíguo de tolerância edisciplinação oficiais de manifesta-ções mais populares e consideradasperturbadoras. Este contexto atra-vessa o Carnaval brasileiro: atingeprimeiramente o tradicional entrudo(baseado no jogo de molhadelas),tolerado a contragosto desde meadosdo século XVIII, várias vezes proibidopor ser considerado bárbaro; esten-de-se episodicamente aos rituais afro--brasileiros (exemplo maior nas per-

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seguições policiais a grupos musicaisna popular Festa da Penha carioca) eao próprio samba (cf. pp. 5-6). Comoreferia Ismael Silva, um dos criadoresda pioneira escola de samba DeixaFalar (do bairro do Estácio): «Nósfizemos a escola de samba para nãotomar porrada da polícia» (cf. p. 6).

As escolas de samba foram in-fluenciadas e apropriaram-se de ca-racterísticas de outros festejos coe-vos, acrescentando-lhes uma mesclapeculiar, a inovação e uma certa uni-formidade. Dos «zés-pereiras» intro-duzidos no Carnaval carioca em1846 por um emigrante portuenseficou a importância do improviso, dapercussão, da rápida adesão popular.Ao Carnaval das «grandes socieda-des» (com o primeiro grande desfileem 1855) foram buscar a crítica po-lítica e social (geral e local), que fun-cionaria como factor de «carioquiza-ção/nacionalização» do Carnaval doRio. Dos «cordões» descendentes defestas religiosas do mundo colonialesclavagista recuperaram o uso deorquestras de percussão. Dos «ran-chos» (da mesma matriz dos anterio-res, embora mais disciplinados, lu-xuosos e influenciados pela classemédia), herdaram o enredo, o mestre--sala e o porta-bandeira, alegorias e acomissão de frente. O «rancho» deAmeno Resedá, em particular, legouainda o uso de temas nacionais paraos enredos dos desfiles das escolasde samba (embora só se afirme defi-nitivamente em 1948, aquando da ge-neralização do «samba-enredo»; paratodos, cf. pp. 14-33 e 53).

A forte concorrência do Carnavaldas «grandes sociedades», dos «cor-dões», «blocos» (herdeiros dos ante-riores) e «ranchos» e dos «corsos»(activos entre 1907 e a década de1930) estimulou assim a inovação,pois só recorrendo a ela as escolasde samba puderam afirmar-se e su-perar os seus rivais.

A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO

As escolas de samba foram umexemplo flagrante de «invenção da tra-dição», na acepção de Hobsbawm eRanger (The Invention of Tradition,1983), pois afirmaram-se, com certaregularidade, num período curto edatável: aquela que é considerada a 1.ªescola de samba (embora só fosse blo-co/rancho), a Deixa Falar, foi fundadaem 1928; o 1.º concurso de sambas,com a participação daquele bloco, daEstação Primeira (futura Mangueira) edo Conjunto Carnavalesco OsvaldoCruz (futura Portela), data de 1929; a1.ª edição do desfile das escolas desamba é de 1932; o 1.º samba-enredo(«O mundo do samba», da Unidos daTijuca) e a oficialização do desfile da-tam de 1933 (cf. pp. 48-50, 75 e 79--82, respectivamente).

O conceito de tradição inventadanão significa que sejam eventos tra-dicionais: embora recuperando as-pectos simbólicos e rituais antigos, asua novidade é inegável, nunca exis-tiram naquela formulação. Mas a ilu-são é premeditada. Com efeito, asinovações introduzidas pelas escolasde samba são amplas e decisivas paraa configuração do futuro Carnaval

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carioca: inovação rítmica e coreográ-fica no modo de desfilar, adaptando osamba (moderno) para dançar (aban-dono do ritmo processional dos ran-chos); adopção de um conjunto ins-trumental de percussão (incluindoinstrumentos novos ou desconheci-dos, respectivamente o surdo e acuíca); obrigatoriedade da ala dasbaianas; obrigatoriedade da apresenta-ção de «motivos nacionais» nos enre-dos das escolas; introdução do sam-ba-enredo (tema único para músicae dança; cf. pp. 6 e 53). A maioriadestas inovações, juntamente com aincorporação de elementos dos outroseventos carnavalescos atrás referidos,«normatizaram as escolas de samba»(cf. p. 53). Além disso, todos esteselementos rituais foram integradosrapidamente (1928-1934), exceptuan-do o samba-enredo e os temas nacio-nais, ambos só generalizados em1947-1948 (cf. pp. 53 e 86-87).

O SAMBA COMO SÍMBOLODA BRASILIDADE

Mas a principal inovação residiuna capacidade de representação dascomunidades locais: as escolas desamba contribuíram para a melhoriado ambiente social das comunidadesdesfavorecidas da cidade, tal comoapontam vários testemunhos de habi-tantes locais e de sambistas; torna-ram-se centros de resistência contraprocessos e políticas de despejo (aEscola de Samba Azul e Branco foiuma das primeiras associações cario-cas de moradores, tendo o seu chefeAntenor Gargalhada liderado a oposi-

ção ao processo judicial contra 7000moradores do morro do Salgueiro em1934); erigiram-se em espaços decombate à marginalização e à segre-gação político-cultural decorrente damodernização urbanística do Rio;alicerçaram o convívio comunitário e aconstrução de uma identidade local —como registaram Nélson Cavaquinho eGuilherme de Brito sobre a Mangueira:«Não sei quantas vezes/Subi o morrocantando/Sempre o sol me queimando/E assim vou me acabando» (trecho daletra do samba «Folhas secas»; cf.,para todos, pp. 10-[13]).

Segundo Fernandes, o desfile desamba como fenómeno nacional foiprocurado pelos seus fazedores, enão imposto de cima, ao contráriodo que preconiza a maioria dos estu-diosos: «Quando, nos anos 30, ospensadores buscavam a brasilidadeou os brasileiros, os sambistas saí-ram das favelas e dos subúrbios paraassumir, explicitamente, a respon-sabilidade de representar o melhore maior espectáculo que o Brasil,até hoje, pode fazer de si mesmo»(p. 89). Porém, o autor nunca se atémao porquê de tal atitude, e isso reme-te-nos para as questões do naciona-lismo e do papel do Estado.

Antes, porém, refira-se que Fer-nandes estuda exemplarmente a ques-tão da internacionalização do Carnavalcarioca sob a égide das escolas desamba, pois comprova com muitosexemplos como a visibilidade das es-colas foi alimentada pelos seus agen-tes e serviu para legitimar a sua in-fluência sócio-cultural e política(cf. passim, sobretudo pp. 86-122).A este propósito realce-se a acção do

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sambista Paulo da Portela, que, entreoutros contributos, acolheu e inspirouWalt Disney no seu retrato do célebrepersonagem Zé Carioca, também eleum sambista e cicerone de outroamericano (Pato Donald), um repre-sentando o Brasil e o outro os EUA(1.ª aparição conjunta no filme deanimação Alô Amigos!, de 1942).

NACIONALISMO E ESTADO

A atitude revisionista de Fernan-des suscita a célebre fórmula da«garrafa meio cheia ou meio vazia»,ou seja, enquanto este dá maior im-portância aos sambistas, outros estu-diosos realçam o papel das elites(Estado, políticos, intelectuais, etc.).Nenhuma das perspectivas dispensao contributo da outra. Mesmo o re-gisto policial das associações, algoque a maioria considera um instru-mento de enquadramento oficial, évisto por Fernandes como a «conso-lidação das garantias políticas doexercício de seu direito de expres-são» (p. 88). Será as duas coisas,quando muito, mas já agora convémnotar que a intenção primeira de talacção é de controlo. O autor de-monstra que o desfile na cidade foium direito conquistado pelos sam-bistas, e não uma recompensa con-cedida para a domesticação dasmassas. O mesmo se passa com oseu carácter nacional(ista). Porém,relembrem-se alguns factos que con-ferem grande relevância ao papel dasautoridades e à sua pressão pró--nacionalista, a maioria deles referi-dos pelo próprio autor: logo no inícioo Estado enquadra e financia algu-

mas das edições (1933-1935), viaprefeitura, retornando nos anos 40(cf. pp. 82 e 88-91); a imposição,pela delegacia policial, da mudançade nome da Vai Como Pode emGrémio Recreativo Escola de SambaPortela e da designação Grémio Re-creativo Escola de Samba, em 1935(cf. p. 94); as lideranças da Uniãodas Escolas de Samba (UES) de1935 e 1937 pertenceram a pessoasestranhas às escolas de samba, mui-to provavelmente ligadas ao poderpolítico (cf. pp. 98 e 100); as visitasde políticos às «comunidades sam-bistas» eram comuns, como sucedeuem 1936 com a Portela (LindolfoCollor, ministro do Trabalho do dita-dor Vargas) e com a Mangueira(prefeito Pedro Ernesto; cf. pp. 95--96 e 98); o desfile de 1937 foi inter-rompido pela delegacia policial aindasó ia a meio (cf. pp. 95 e 103-104);a desclassificação da escola VizinhaFaladeira em 1939 deveu-se a ter«enredo de lenda», em vez de nacio-nalista, apud o regulamento de 1938da UES (cf. p. 112); o enredo ven-cedor do desfile de 1941 («Dez anosde glória», Portela) fazia correspon-der um ano de desfile a um ano degoverno de Vargas, início da inigualá-vel série de sete vitórias consecutivas(descontando uma 2.ª ed. de 1946;cf. p. 108); os enredos da Portela de1943-1945 são fortemente nacionalis-tas («Carnaval de guerra», «Motivospatrióticos» e «Brasil glorioso»; cf.pp. 123-125); a imposição do samba--enredo e da uniformidade da fantasiapor Irênio Delgado (representante dopresidente Dutra) no desfile oficial de1948 (cf. pp. 140-141). Deixo para ofim dois factos fundamentais: o go-

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verno Dutra impôs os sambas-enredonacionais (embora consignado nosestatutos de 1934 da UES fora letramorta até então) e a sua «finalidadenacionalista» em 1948 (cf. Augras,1998, p. 11). É sintomático que Fer-nandes desvalorize estes dois factos:ao primeiro apenas alude lateralmentee sobre o segundo nada diz.

Apesar de alguns pontos discutí-veis e exageros de tom, o estudo deFernandes é já um marco nos estudossobre o Carnaval carioca, em particu-lar, e nos estudos culturais, em geral,precisamente por recolocar de modobrilhante a questão da cultura populare da sua autonomia relativa, por reti-rar o povo do anonimato e destacar aautoria de algumas das suas indi-vidualidades e por analisar detalhada-mente os complexos mecanismos detrocas culturais. Além disso, a polé-mica construtiva é sempre saudável,ajuda a esclarecer as ideias e a melho-rar futuros estudos. E, ainda porcima, ela é tão rara que mais valepecar por excesso do que por defeito.

DANIEL MELO

Manuela Ivone Cunha, Entre o Bair-ro e a Prisão: Tráfico e Trajectos,prefácio de Miguel Vale de Almeida,Lisboa, Fim de Século, 2002, 356páginas.

Dois têm sido os esquemas quetêm articulado a produção do conhe-

cimento antropológico. O primeiro éo da distância/proximidade. No pas-sado, o próprio da antropologia era oestudo de povos ou gentes distantes.O objectivo final do estudo etnográ-fico, dependendo da vontade do au-tor, podia consistir em aproximar--nos dessa gente distante ou, pelocontrário, em documentar os seusestranhos costumes e ampliar dessemodo o abismo cultural entre eles enós. A geografia da modernidade mo-dificou este esquema, uma vez queno mundo contemporâneo as distân-cias culturais já não têm de ser acom-panhadas por distâncias físicas. A an-tropologia, contudo, continua a ser oestudo das distâncias e proximidadesque unem e separam os seres huma-nos.

O segundo esquema é o de en-cerramento/fluxo. Segundo este es-quema, o objecto de estudo da antro-pologia é um objecto mais ou menosfechado em si mesmo: «etnias», «tri-bos», «povos», etc.; em todo o caso,grupos sociais muito claramente de-limitados. Se bem que tenham existi-do estudos clássicos que introduzi-ram o fluxo na análise antropológica(citemos, por exemplo, os trabalhosde Eric Wolf), é forçoso admitir que,no passado, a antropologia foi maisum estudo do encerramento do quedo fluxo.

O estudo etnográfico da ManuelaIvone Cunha inscreve-se plenamentenestes esquemas de conhecimento,ao mesmo tempo que contribui paraa sua reformulação. Por um lado, oseu objecto de estudo é simultanea-mente próximo e distante: um esta-