medo do pop - revista backstage · tem gente talentosa na e-music, no metal, no sertanejo, no funk...

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PRODUÇÃO MUSICAL 36 www.backstage.com.br Ticiano Paludo é produtor musical, publicitário, músico, compositor e sound designer http:// www.pontowav.com.br/hotsite [email protected] Medo do Pop Eu me lembro bem: uma tarde estava na casa da minha sogra com a minha esposa assistindo a um programa de videoclipes. Acho que era no Multishow. Daí, me surge uma menininha cantando uma tal de “Baba, baby, baba!”. uvi aquilo, olhei para a menina, para a minha esposa e disse: “Esse traba- lho vai estourar!”. Nem sabia ainda quem era a Kelly Key, mas minha profecia se confirmou e em pouco tempo lá estava a Ms. Key invadindo o país inteiro. O Pop é o estilo que mais me fascina. Pop às vezes é como aquele chinelo velho que você tem vergonha de usar na frente das visitas, mas que adora usar em casa quando está sozinho. Pode fazer você passar vergonha, mas que é gostoso e confortável, com certeza é. Para os leitores que não sabem, eu moro em Porto Alegre (RS), uma cidade emi- nentemente “machona” e “roqueira” onde o Pop é visto com um grande ar de descon- fiança e até certo desprezo. Sim, pois aqui dá para contar nos dedos o número de artis- tas Pop que existem. Roqueiros, guitarris- tas, metaleiros, punks, todos são facilmente identificados. Agora, os popers (digamos assim) não são tão fáceis de serem encon- trados. Mas não pense que eles não exis- tem. Você que está lendo a coluna pode querer me enganar, mas sei que já “bateu pezinho” com algum hit Pop, nem que seja uma única vez na sua vida. Essa brincadeira inicial na verdade é um assunto muito sério e que merece atenção. Eu, quando tinha meus 12 anos e comecei a tocar, iniciei pelo rock e pos- teriormente passei para o heavy metal. Atualmente trabalho direto com Pop e e- music, mas se você vier ao meu estúdio, na parede encontrará um pôster gigante do Kiss. Quanto mais eu envelheço (estou com 33 anos, o que não é ser lá muito ve- lho, mas já dá para dizer que possuo um bom pedaço de caminho percorrido desde os ingênuos 12 anos quando comecei na música) mais tolerante fico em relação aos estilos musicais. Claro que existem tra- balhos que acho ruins e que me desagra- dam, mas prefiro aproveitar meu tempo me despindo de todo e qualquer precon- ceito e curtir boas canções. E garanto que existem boas canções e tracks em diferen- tes escolas. Tem gente talentosa na e- music, no metal, no sertanejo, no funk carioca e no Pop, também. E tem gente sem talento em todos esses estilos, claro. O que tenho notado é que existe um preconceito muito grande em relação ao Pop, como se ele fosse um bicho papão, um vilão, um destruidor cultural que devasta o universo da indústria fonográfica e nos obriga a engolir um lixo sem fim. Existem muitas vertentes dentro do Pop assim como existem vertentes no rock, na e-music e em tudo mais. Voltando ao caso da Kelly Key, muitos de vocês devem pensar e dizer: “Ah, ela não tem talento nenhum, não é artista coisa nenhuma, não merece crédi- to, porque o que ela produz não é arte, é Pop!”. Porém, quero passar uma lição muito importante que aprendi com minha esposa e que acho que pode ajudar você a sofrer menos com isso tudo e começar a aprovei- tar mais a vida em vez de ficar amaldiçoan- do as coisas e os artistas. Eu aprendi a apre- ciar coisas simples e descartáveis (digo isso num primeiro momento, porque não o são). Aprendi a gostar de filmes simples e ingênuos como os da Sandra Bullock ou da Julia Roberts. Sim, porque nem só de O

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Page 1: Medo do Pop - Revista Backstage · Tem gente talentosa na e-music, no metal, no sertanejo, no funk carioca e no Pop, também. E tem gente ... sou bacharel em comunicação social

PRODUÇÃO MUSICAL

36 www.backstage.com.br

Ticiano Paludo é produtor musical, publicitário,

músico, compositor e sound designer http://

www.pontowav.com.br/hotsite

[email protected]

Medo do Pop

Eu me lembro bem:uma tarde estava nacasa da minha sogracom a minha esposaassistindo a umprograma devideoclipes. Acho queera no Multishow. Daí,me surge umamenininha cantandouma tal de “Baba,baby, baba!”.

uvi aquilo, olhei para a menina, paraa minha esposa e disse: “Esse traba-lho vai estourar!”. Nem sabia ainda

quem era a Kelly Key, mas minha profeciase confirmou e em pouco tempo lá estava aMs. Key invadindo o país inteiro.

O Pop é o estilo que mais me fascina.Pop às vezes é como aquele chinelo velhoque você tem vergonha de usar na frentedas visitas, mas que adora usar em casaquando está sozinho. Pode fazer vocêpassar vergonha, mas que é gostoso econfortável, com certeza é.

Para os leitores que não sabem, eu moroem Porto Alegre (RS), uma cidade emi-nentemente “machona” e “roqueira” ondeo Pop é visto com um grande ar de descon-fiança e até certo desprezo. Sim, pois aquidá para contar nos dedos o número de artis-tas Pop que existem. Roqueiros, guitarris-tas, metaleiros, punks, todos são facilmenteidentificados. Agora, os popers (digamosassim) não são tão fáceis de serem encon-trados. Mas não pense que eles não exis-tem. Você que está lendo a coluna podequerer me enganar, mas sei que já “bateupezinho” com algum hit Pop, nem que sejauma única vez na sua vida.

Essa brincadeira inicial na verdade éum assunto muito sério e que mereceatenção. Eu, quando tinha meus 12 anose comecei a tocar, iniciei pelo rock e pos-teriormente passei para o heavy metal.Atualmente trabalho direto com Pop e e-music, mas se você vier ao meu estúdio,na parede encontrará um pôster gigantedo Kiss. Quanto mais eu envelheço (estoucom 33 anos, o que não é ser lá muito ve-

lho, mas já dá para dizer que possuo umbom pedaço de caminho percorrido desdeos ingênuos 12 anos quando comecei namúsica) mais tolerante fico em relaçãoaos estilos musicais. Claro que existem tra-balhos que acho ruins e que me desagra-dam, mas prefiro aproveitar meu tempome despindo de todo e qualquer precon-ceito e curtir boas canções. E garanto queexistem boas canções e tracks em diferen-tes escolas. Tem gente talentosa na e-music, no metal, no sertanejo, no funkcarioca e no Pop, também. E tem gentesem talento em todos esses estilos, claro.

O que tenho notado é que existe umpreconceito muito grande em relação aoPop, como se ele fosse um bicho papão, umvilão, um destruidor cultural que devasta ouniverso da indústria fonográfica e nosobriga a engolir um lixo sem fim. Existemmuitas vertentes dentro do Pop assim comoexistem vertentes no rock, na e-music e emtudo mais. Voltando ao caso da Kelly Key,muitos de vocês devem pensar e dizer:“Ah, ela não tem talento nenhum, não éartista coisa nenhuma, não merece crédi-to, porque o que ela produz não é arte, éPop!”. Porém, quero passar uma lição muitoimportante que aprendi com minha esposae que acho que pode ajudar você a sofrermenos com isso tudo e começar a aprovei-tar mais a vida em vez de ficar amaldiçoan-do as coisas e os artistas. Eu aprendi a apre-ciar coisas simples e descartáveis (digo issonum primeiro momento, porque não osão). Aprendi a gostar de filmes simples eingênuos como os da Sandra Bullock ou daJulia Roberts. Sim, porque nem só de

O

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Almodóvars e Tarantinos o mundo é feito.E o mesmo vale para a música.

Existem, lógico, os artistas imortais queficarão para sempre na nossa memória(como diz o SBT) e que são quase unani-midades incontestáveis como Beatles,Stones, Hendrix, Joplin e mais um punha-do, embora exista gente, quer você acre-dite ou não, que não concorde com isso enão curta esses artistas. Apenas procureiuns exemplos mais genéricos e aceitospela grande maioria dos mortais. Mas exis-tem também grandes artistas que produ-zem uma arte descartável, para ser sugadaao extremo e depois cuspida, para quemsabe algum dia, ser redescoberto e reposi-cionado no mainstream e que são geni-ais. E aí está a nossa Kelly Key, Tati Que-bra-Barraco, Beto Barbosa (quem não selembra do furor que foi a Lambada noinício da década de 90 se não me falha a

memória cronológica musical). E inde-pendentemente de gosto, esses artistassão sim grandes artistas e têm um grandevalor. Ou você acha que o público é idio-ta e consome as coisas apenas porque amídia empurra goela abaixo? Desculpete mostrar um mundo novo, pode doer

num primeiro momento, mas isso é umequívoco. Além de produtor musical eusou bacharel em comunicação socialcom ênfase em publicidade e propagan-da, ou seja, conheço o assunto a fundo.Dizer que a mídia obriga é o mesmo quedizer que a publicidade obriga as pessoasa consumirem os produtos. Se eles nãotiverem qualidade, pode apostar, não se-rão anunciados e muito menos vende-rão. Podem até ser anunciados num pri-meiro momento, mas jamais se tornarãofenômenos de massa como o caso dos ar-tistas citados anteriormente.

O que quero mostrar com isso tudo éque essa análise simplória de simples-mente dizer que esses artistas Pop são ru-ins e fruto da mídia é um erro de percep-ção. Nem tudo é produzido e elaboradopara ser imortal. Existe, sim, arte “perecível”e isso não é privilégio do Pop. Muitas vezes a

Análise simplória desimplesmente dizer

que esses artistas Popsão ruins e fruto damídia é um erro de

percepção. Nem tudo éproduzido e elaborado

para ser imortal

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arte que nem era para ser tratada dessa for-ma acaba sendo. Quem ainda ouve SkidRow, Stone Temple Pilots, Poison ou Gunsand Roses (só para citar alguns exemplos)?E olhe bem que citei exemplos que nemsão eminentemente Pops num primeiromomento, embora o sejam, sim.

Por isso, voltando ao que ocorre emPorto Alegre, acho muito engraçadoquando uma banda me procura e a pri-meira preocupação máxima não é se pro-duzir um bom arranjo ou álbum, mas simque eu nem ouse colocar a mão em qual-quer plug-in ou teclado porque afinal osom precisa ser orgânico e não “vendido”(ou “comercial” como alguns gostam defalar). Isso ocorre muito aqui, mas ocorrecom artistas de outros estados que meprocuram. Nessa hora, dou risada e man-do o artista passear, porque se ele pensaassim, comigo é que não vai trabalhar. Eunão estou dizendo que um álbum ou fai-xa não se sustente apenas com guitarra,baixo, bateria e vocal, mas para que essaquímica realmente convença o ouvinte,precisa acontecer uma mágica muitoparticular e grande parte dos artistas nãopossuem essa mágica, coisa que em mui-tos casos poderia ser facilmente resolvidautilizando-se alguns elementos suposta-mente ditos Pop. Posso citar mil exemplosde arranjos geniais que dosaram de for-ma correta e coerente guitarras, tecla-dos, sintetizadores e samplers.

Um álbum que estou torcendo muitopara que não morra na casca e recebaseu merecido reconhecimento é o re-cém-lançado do cantor Leandro Lopes,que foi o vencedor do programa “Ídolos”,do SBT. Achei a produção do disco im-pecável e dá para notar que Leandro é,sim, um grande artista. Ele tem a arte nosangue e já a lapidou muito bem para umálbum de estréia. Basta seguir nesse ca-minho que logo ele deverá alcançar umbom lugar ao sol (eu, pelo menos, torçopara que isso aconteça).

Mas afinal de contas, que diabo seriaesse tal de Pop, então? Para mim – e jádisse isso aqui na Backstage se não mefalha a memória – aquele papo de “somcomercial” é uma piada porque comer-cializar significa vender, e sei que umabanda de punk e uma de axé querem amesma coisa: viver de sua arte e, conse-qüentemente, vender, sejam seus álbuns,singles, promos ou shows (ou tudo issojunto). Então, minha sugestão é perder omedo da tecnologia, dos timbres eletrô-nicos, dos samplers e afins. Se estão aí, secabem dentro da nossa música e vãoacrescentar um colorido interessante,vamos utilizá-los e não exorcizá-los.

Recentemente, recebi o prêmio maisimportante de remixes do mundo, conce-dido pelo portal DMC (quem quiser con-ferir pode acessar www.dmcremix.com).E sabem por que eu acho que venci essedesafio? Porque não tive medo de ousar,de utilizar os elementos que eu achavanecessários ao remix, independente dequalquer tipo de preconceito.

Quando saiu o álbum mais recente deSandy & Junior, eu coloquei no meunick do MSN a seguinte frase: “O novoálbum de Sandy & Junior é minha novareferência musical”. Pronto! Foi o estopimde uma guerra civil musical. Recebi inú-meras criticas questionando meu posicio-namento, dizendo que eu só podia estar

de sacanagem, louco ou brincando. E eudisse que não, que era verdade, mesmo. Éum grande álbum e merece todo o meurespeito como produtor e ouvinte. Claroque existe a questão particular e pessoaldo gosto e isso não se discute, se respeita (enão se lamenta, viu? Aprende a convivercom a diversidade). Mas aí está a provaviva do “medo do Pop” que aflige grandeparte da população musical (e é legal ressal-tar isso, porque o público comum simples-mente curte! Quem fica grilado e nervoso éo público que toca e tem banda, principal-mente). Um medo sem fundamento. Naverdade, mais do que um preconceito, paramim é um medo que assombra algumas pes-soas. As mesmas pessoas que em público bra-dam impropérios e que na segurança de seusquartos ouvem alguns desses trabalhos emalto volume e dançam de um lado ao outrodo aposento, vibrando e até ensaiando umasperformances alá air-guitar.

Brincadeiras à parte, queria dizer comtudo isso que estou vivendo uma fase musi-cal frutífera e muito zen justamente por-que aprendi a enxergar a beleza e a riquezamusical que cada trabalho pode nos trazere aproveitar essa diversidade para enrique-cer minhas próprias produções (prova dissoé o sucesso que venho alcançando com asmesmas, seja pelo reconhecimento do pú-blico ou pela satisfação pessoal dos artistasque me contratam). Claro que não sou idi-ota e adoro qualquer coisa que existe nomundo, mas faça a experiência: dispa-seum pouco do preconceito (e do medo)como ouvinte e como músico e aproveitemais esse rico colorido que nos é apresenta-do diariamente. Garanto que você vaiachar idéias geniais para o seu trabalho es-condidas numa Kelly Key ou numa TatiQuebra Barraco. E aprenda que nem só de“músicas cabeça” a indústria é feita. Boasfestas a todos os leitores e até 2007!

Minha sugestão éperder o medo datecnologia, dos

timbres eletrônicos,dos samplers e afins.Se estão aí, vamosutilizá-los e não

exorcizá-los