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    Cultura popular, msica popular, msica de

    entretenimento: o que isso, a MPB?1

    Henry Burnett *

    1

    A histria recente do Brasil no autoriza estabelecer uma tripartio de carter cultural da forma comovem enunciada no ttulo do ensaio, menos ainda se tal classificao apontar para algum tipo dehierarqui- zao. A insero enviesada do pas no quadro das grandes economias do mundo nos tornou

    parecidos demais com a imagem padronizada de quase todo o ocidente e de grande parte do oriente.Porm nos pa- recemos com o mundo capitalista global principalmente no que h de vazio e ftil, ouseja, assimilamos os elementos ditos globais que aca- bam por tornar indistinguveis os povos essetalvez seja o preo mais alto que a padronizao geral nos impe. O resultado mais visvel desse

    processo irreversvel, no qual estamos irremediavelmente inseridos, que nos transformamos num pasque parece em muitos momentos repudiar a si prprio, atravs da negao das suas prprias diferenas.Estamos falando da msica popular brasileira. A verdade musical que expressamos fora do padromusical global recente feia e irreconhe- cvel diante de nossos prprios olhos. No entanto,

    precisamente isso que chamamos aqui de verdade musical distinta da imagem do pas que est atrelada noo de progresso que nos resta de essencial e de constitutivo. 2 Quando pensamos na msica

    popular hoje, natural que identifiquemos como sendo boa a msica que pode ser veiculada dentro deum certo padro de exibio, mormente televisivo, mas an- tes de tudo reconhecvel. No entanto, msica

    popular , antes de tudo, a expresso dessa chamada verdade musical, na medida em que revela no casodo Brasil, e provavelmente em todos os pases onde se desenvol- veu, as vrias faces do povo que a

    produz e consome o que contraria a hiptese inicial e indica que o Brasil tambm possui outrasimagens alm dessa face nica que nos acostumamos a aceitar como normal. Nossa msica tem vriasespecificidades para alm desse formato pa- dronizado, no raro banal e comum. quando a tripartio

    proposta aqui pode ganhar algum significado.

    Pensando a partir do conceito de popular seguindo Carlos San- droni, podemos distinguir asmudanas de sentido que o termo sofreu durante o sculo XX. At os anos 1940, msica popular erasinnimo de msica folclrica que, por sua vez, era identificada como msica rural, do campo. EmboraMrio de Andrade tenha escrito aquele que

    105

    1 Este artigo o resultado parcial de uma pesquisa de Ps- Doutorado intitulada Indstria cultural e cano popular no Brasil,supervisionada pelo professor Celso Favaretto (FFLCH/USP) e desenvolvida no Departamento de Filosofia da USP com apoio da

    FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo).

    * Compositor e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP).

    2 O uso do termo verdade no possui aqui nenhum sentido de substancializao da realidade brasileira ou da identidade nacional.

    Sua utilizao aponta para o que, no interior do processo de unificao global das culturas, sobra como essencial na criao musical.

    O conceito vago, amplo, e de certa forma aberto.

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    3 Segundo os organizadores, o primeiro disco prensado no Brasil ser produzido apenas no final de 1912.

    talvez seja o primeiro ensaio sobre a msica dos discos no Brasil, por- tanto sobre a msica comercial(A pronncia cantada e o problema do nasal brasileiro atravs dos discos, de 1937), quandoempregava o termo msica popular o musiclogo paulista referia-se msica ru- ral, e quando usava otermo popularesca pensava na msica urbana.

    Depois disso, ainda com Sandroni, ocorreu uma mudana na perspectiva dos estudos sobre msicabrasileira, agora representada, en- tre outros, por autores como Alexandre Gonalves Pinto e FranciscoGuimares, que escreveram livros dedicados ao choro e ao samba, e Almirante e Ari Barroso diferentede Mrio de Andrade, eles passaram a no usar mais o atributo popularesco para referir-se msicaurba- na, mas apenas popular. Para Sandroni, essa modificao encerra uma mudana profunda no

    prprio olhar sobre o que seria o povo brasilei- ro. Tal modificao realizou-se com o assentimento dosherdeiros de Mrio de Andrade, como Oneyda Alvarenga que, por sua vez, tambm passou a distinguir o

    que era folclrico do que era popular. Folclore passava a representar o carter nacional, enquantopopular ficara ligado ao que havia de comercial e cosmopolita, como smbolo de um tipo decontaminao negativa na msica apesar da prpria Oneyda Alva- renga atribuir msica do rdio edo disco um lastro de conformidade com as tendncias do povo (SANDRONI, 2004, p.26-28).

    Da em diante essa distino entre folclrico e popular no se mo- difica mais, antes se amalgama,como veremos. Apesar dessa nova confi- gurao, apenas na dcada de 1960 que o termo msica

    popular bra- sileira passa a significar inequivocamente as msicas urbanas, veiculadas em canais demdia. nesse momento que nasce uma sigla sob a qual passava a ser identificado no apenas um estilomusical, mas um tipo de comportamento diante do mundo poltico de ento: MPB.

    Estabelecida enquanto estilo quase ao mesmo tempo em que os veculos de comunicao de massa

    no Brasil tornavam-se hegemni- cos e com eles profundamente relacionada , a MPB tornou-se arepresentao mxima da msica popular (a partir de agora tomada sempre como a msica urbana), e

    permaneceu assim at o final do sculo XX. Um dos nossos principais propsitos aqui mostrar como,nos ltimos anos, essa sigla perdeu sua atribuio e abrangncia origi- nal. Nossa fronteira inicialcoincide com a chegada do disco no Brasil, em agosto de 1902 (SEVERIANO e MELLO, 1998, p.17).3A cano, tal como a conhecemos hoje, nasce muito prxima dessa mudana radical e definitiva nomodo de se ouvir msica que veio a reboque da reproduo tcnica.

    J falamos em msica popular e cultura popular, mas vejamos o que vem a ser, dentro dos limitesdeste ensaio, a designao msica de entretenimento. Toda cano, desde o incio do sculo XX, emesmo antes, tem a funo do entretenimento isso muito claro quando ob- servamos sua utilizao nos

    entrudos e nas festas de salo ainda no s- culo XIX. Muitas delas foram lanadas em pocas decarnaval, algumas j pensadas como um produto para consumo imediato e descartvel. Alguns autores,como Vasco Mariz, chegam a identificar o bero da MPB com o desenvolvimento inicial do carnavalcarioca (cf. MARIZ, 2002, p.37ss). Desde o primeiro momento a msica popular j era comercial, e iriato somente aprofundar essa relao entre criao e

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    venda ao longo dos anos. Mas ser que compositores de sucesso no Brasil do incio do sculo XX, comoChiquinha Gonzaga, tinham plena conscincia desse carter passageiro de suas msicas? Quantasgeraes brasileiras no foram capazes de cantar os versos da primeira marchinha de carnavalconsagrada por essa compositora, abre alas ( abre alas que eu quero passar/ eu sou da lira no posso

    negar/ Rosa de Ouro quem vai ganhar), e, para se ter uma dimenso da mudana ocorrida de l athoje, quantos podem cantar os versos do samba-enredo cam- peo do carnaval deste ano no mesmo Riode Janeiro, transmitido em tempo real para todos os pontos do pas? No so perguntas simples. Msicade entretenimento para ns, hoje, um produto com caracte- rsticas prprias, onde se fundem, no rarae inescrupulosamente, todas as vertentes e estilos musicais, dando impresso de uma diversidade queno existe, mascarando sua dependncia das ondas e modismos de cada ocasio.

    Enquanto a cultura popular, no que dela ainda existe em trao folclrico, se mantm viva num pasparalelo, margem, a msica po- pular (MPB) que daquela sempre se nutriu e a msica de entre-tenimento caminham a passos largos para uma unificao definitiva. Tentaremos penetrar nesses trsdomnios de um modo menos histo- riogrfico que ensastico, procurando, ao final, estabelecer um prin-

    cpio definidor do sentido de se atribuir MPB uma caracterstica prpria e delimitada, que talvez exijauma leitura especfica no interior e a partir da filosofia da msica contempornea.

    2

    Um olhar atento talvez ainda possa distinguir um artista popular, ver- dadeiro, de um artista produzido,manipulado por uma corporao mi- ditica. O exemplo pode empobrecer, mas inevitvel aqui.Quando assistimos a um programa de televiso, ou a um show ao vivo, sentimos um estranho incmodoquando um compositor como Tom Z apa- rece sob um figurino maltrapilho, cantando com pouca voz egesticu- lando uma coreografia sem marcao, sob uma letra que no podemos entender imediatamente.

    No entanto, quando Alexandre Pires surge bem vestido, cantando canes amplamente conhecidas e

    assimil- veis, ento recostamos levemente na cadeira e pensamos: agora sim, uma msica agradvel!Tal cena, descrita toscamente aqui, no nova em sua configurao geral. Tomadas as devidas

    propores, Theodor Adorno a descreveu dcadas atrs quando analisou as modificaes sofridas pelosouvintes de rdio nos EUA, definindo posteriormente o conceito mais perene de seus estudosesttico-musicais, o de indstria cultural, cuja clebre definio j anunciava uma integrao propo-sital (willentliche Integration) dos consumidores, forando uma unio entre a arte superior [erudita] einferior [popular] que, segundo Ador- no, causava prejuzos para ambas a arte superior seria frustradaem suas realizaes por conta de uma busca desenfreada por efeitos, e a inferior, domesticada em nomede uma certa civilidade (ADORNO, 2003, p.337).4 Para Adorno, ao serem submetidos programaodiria e repetitiva, que ento se estabelecia como padro nos Estados Unidos, os ouvintes perdiam a

    capacidade de assimilar e apreciar novos sons e tentativas musicais originais e inauditas. Apossibilidade de estender

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    4 Sobre a vida e a obra de Tom Z, ver, dele mesmo: Tropicalista lenta luta. So Paulo: ed. Publifolha, 2003.

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    5 Entrevista concedida a Paulo Fernando de Castro, do site Boca a boca (Disponvel em: ).

    a experincia de Adorno para os dias brasileiros atuais justifica-se, na medida em que aquele modelo

    permanece de uso corrente entre ns, levado s suas ltimas conseqncias.

    Tom Z, compositor baiano alijado do mercado musical por muitos anos, apesar de ter sido um dosintegrantes do movimento tropicalista de forte carter miditico , um smbolo da capacida- decriativa e sempre rediviva do cancioneiro popular brasileiro. Suas repetidas declaraes sobre umasuposta falta de talento para a msica no raro confundem a anlise de quem o critica musicalmente,

    pois se trata de um dos maiores criadores vivos e, ao mesmo tempo, de um dos maiores entraves paraquem busca respostas sobre o pas em sua msica, pois sua obra foge a qualquer classificao(ADORNO, 2003, p.337).5 Quanto a Alexandre Pires, que j vendeu CDs na casa dos milhes,simplesmente desapareceu dos programas onde era habitu, como qua- se todos os artistas que selanam ao mercado amparados por grandes corporaes e que optam por uma carreira meterica edesprovida do que podemos chamar de essencialidade, ou seja, daquela verdade musical oculta sob ovu da padronizao, que faz com que grandes artistas acabem parecendo sinnimos de rudeza e atraso.

    Esse cenrio tem ramificaes que datam de 100 anos atrs. Quan- do Mrio de Andrade,contemporneo de Adorno, deu os primeiros pas- sos da moderna discusso terica brasileira sobre amsica popular, ns ainda no estvamos nem sequer definidos musicalmente. Ainda no nos vamosrepresentados regionalmente por nenhum estilo musical, como hoje podemos pensar num samba carioca,num carimb paraense, numa milonga rio-grandense ou num baio nordestino ainda que tudo isso possafundir-se e amalgamar-se em vrios lugares do pas. Mesmo assim, Mrio de Andrade atestou, entreoutras coisas, que nossa particularidade residia na fora do sentimento popular. De algum modo, tendo

    lido ou no, Mrio parafraseava o jovem Nietzsche de O nascimento da tragdia, que via na melodiasentimental da cano popular (Volkslied) o que chamou de espelho musical do mundo, melodiaespontnea (mu- sikalischer Weltspiegel, ursprngliche Melodie), e que seria a fonte de onde nasce,

    por exemplo, a poesia e a estrutura estrfica da cano popular em todas as culturas. Para Nietzsche, amelodia popular seria o elemento primeiro, universal (Erste, Allgemeine), que permitiria as maisdiversas variaes atravs dos mltiplos textos poticos, e ainda afirma que a melodia tambm delonge o que h de mais importante e necess- rio na apreciao ingnua do povo (NIETZSCHE, 1999,

    p.48). Deste modo, a cano popular possui um sentido histrico que no permi- te classific-ladiretamente no interior da categoria de entretenimento, pois sua funo nem sempre foi previamente

    pensada. Ela est inserida em uma tradio que, de muitas formas, remete msica grega, onde,conforme encontramos no livro III da Repblica de Plato, a palavra e a msica eram inseparveis.

    Dito isto, podemos dizer que aquela indicao do musiclogo paulista, de vrias maneiras, definiuos estudos posteriores sobre a m- sica popular no Brasil, ainda que seja preciso criticar, por exemplo, o

    programa nacionalista-pedaggico que ele vislumbrava ao lado de Heitor Villa-Lobos, que pretendiafazer da msica popular folclrica a fonte essencial de todas as criaes eruditas, o que limitousobrema-

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    neira sua percepo da ento msica comercial nascente. Seu olhar pa- recia excessivamentecontaminado por uma idia de superioridade do msico erudito diante do emergente mercado musical

    popular que se insinuava no pas, que parecia a ele um retrato chulo da cultura. Como lemos no ensaiode Jos Miguel Wisnik sobre o projeto de Mrio: O popular pode ser admitido na esfera da arte quando,

    olhado distncia pela lente da estetizao, passa a caber dentro do estojo museolgico das sutesnacionalistas, mas no quando, rebelde classificao ime- diata pelo seu prprio movimentoascendente e pela sua vizinhana invasiva, ameaa entrar por todas as brechas da vida cultural, pondoem cheque a prpria concepo de arte do intelectual erudito (WISNIK, 1983, p.133).

    Para fazer jus ao valor inegvel dos seus estudos sem recair no equvoco de imaginar que podemoscontrolar a arte popular ing- nua, guardamos dele essa profunda identificao com o povo, mas semimaginar que essa noo de popular possa estar acima ou abaixo de qualquer hierarquia. Podemos dizerque, para Mrio, a verdade musical brasileira repousava sobre a criao instintiva do povo. Certamente,o material musical deste estudo guarda diferenas em relao ao que ele vislumbrou quela altura, assimcomo est para alm de sua principal inteno pedaggica: O projeto explcito [de Mrio de Andrade]

    ser o de fazer a composio erudita beber nas fontes populares, estilizando seus temas, imitando suasformas, em suma, incorporando a sua tc- nica. A preocupao nacionalista, voltada para o folclore,ser tomada como norma, com acentuada intransigncia. Mas a passagem concre- ta do erudito ao

    popular, e vice-versa, permanecer sendo, sempre, o grande problema (WISNIK, 1983, p.143).

    Muito se escreveu sobre a cultura popular musical brasileira des- de ento, sua autenticidade eoriginalidade, mas, a despeito da impor- tncia de todos esses precursores, ensaiar uma reflexo sobre amsica popular num momento em que a MPB no se define mais como um estilo especfico poisincorpora tudo o que se faz em msica dentro do Brasil transforma a verdade musical da cultura emmotivo de es- crnio. preciso ir contra tudo o que soa bvio, como os produtos da indstria cultural emsua face banal sim, pois h um lado da indstria cultural que no descartvel, como tentarei mostrar.

    3

    bem incomum, certamente, invocar um dogma pr-nietzscheano a noo de verdade para esboaruma compreenso sobre o lugar e o no-lugar da msica popular no Brasil do sculo XXI. Falar emverdade musical da cultura pode soar to anacrnico e arriscado quanto imaginar ainda nos dias de hojeuma msica pura, completamente isolada da indstria cultural. Ainda assim, gostaria de partir desse

    ponto quase insustentvel: o que seria a verdade musical popular do Brasil? O que seria a MPB em seusentido original, considerada como uma definio estilstica?

    Em 1967, Roberto Schwarz analisou uma entrevista feita pelo maestro Jlio Medaglia com quatrocompositores contemporneos e de vanguarda: Damiano Cozzella, Rogrio Duprat, Willy Correia de

    Oliveira e Gilberto Mendes. Schwarz lia nas declaraes uma resposta

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    6 Uma possvel resposta vem de uma atividade prtica. Recentemente, um grupo de So Paulo chamado A Barca empreendeu uma

    tentativa bem sucedida de refazer uma viagem, nos moldes daquelas empreendidas e organizadas por Mrio de Andrade na primeira

    metade do sculo XX, em busca de material musical popular pelo interior do Brasil. O resultado pode embaralhar a resposta para a

    questo supracitada. Entre o que Mrio de Andrade coletou, entre os anos de 1927 e 1928, e o que os pesquisadores- msicosregistraram, entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005, quase nada se modificou essencialmente nessas manifestaes musicais.

    Podemos atribuir isso a um conjunto de fatores: um subdesenvolvimento perene uma certa conscincia das comunidades, que

    parecem saber a essa altura que suas festas so um produto raro a misria constante que ainda isola grande parte do povo. Cf. o

    material editado em 3 CDs e 1 DVD, Trilha, toada e trip, So Paulo, Cooperativa de Msica/Marac/Petrobrs, 2006 e Mrio de

    Andrade Misso de pesquisas folclricas (6 CDs e 1 livreto), So Paulo, SESC - Secretaria Municipal de Cultura da cidade de

    So Paulo, 2006.

    comum: todos afirmavam que a msica, daquele momento em diante, deveria ser composta comomercadoria, ou seja, com a inteno de circulao comercial: A ponta extrema da vanguarda paga

    tributo ao filistismo e alcana, qual uma vitria, a integrao capitalista. (...) os mass-media so parte deuma constelao em que o elemento ar- tstico, na sua acepo tradicional, est minado, seja porque

    sustenta posies e linguagem do individualismo burgus, desmentidas no in- terior do prpriocapitalismo, pela socializao parcial da produo, seja porque no vende (SCHWARZ, 1978, p.46).

    Schwarz deduz da dualidade de algumas declaraes onde v a mistura de venerao e desprezo peloconsumo o ponto chave daquele impasse dos artis- tas diante da indstria cultural. Em sua

    interpretao, os compositores pareciam entregar os pontos diante do que parecia inevitvel: o fim dasvanguardas. Cito este e no outro texto como Cultura e pol- tica, 1964-69, do mesmo livro, onde ocrtico tratou diretamente da msica popular porque est sintetizada nele a posio de composi- tores

    de vanguarda, daqueles que, por natureza, operam em funo do rompimento, ainda que isso possaocorrer tambm no ambiente da msica popular. Schwarz cita, por exemplo, o lugar mpar que Cha-

    crinha ocupava entre as manifestaes de vanguarda para os mesmos compositores, cuja blague

    aparente, em contraste com o mote igno- re a qualidade, resultava numa pergunta: talvez [Chacrinha]no seja blague?, quer dizer, era mesmo srio o que diziam? E a a concluso: Porque vende bem,

    Chacrinha foi declarado vanguardista, e porque vende bem declarado folclore, juntamente comAltemar Dutra, Ro- berto Carlos etc. A crtica de Schwarz aponta para um suposto con- formismo

    diante da idia de que o capitalismo parece ser o melhor dos mundos: obtm a coincidncia do maisavanado e do espontane- amento popular (SCHWARZ, 1978, p.48). Sua reflexo ilumina bem os dias

    que correm e mostra que h tempos a msica no carrega mais nenhuma aura de originalidade eineditismo, tampouco de revoluo. H muito de Adorno no texto de Schwarz, o que indica que o crticoesteja pensando a msica como uma possibilidade de cesura com a ordem estabelecida. Mas, a despeito

    disso, h um entrave e um desfecho bem distinto daquele que se insinua em seu comentrio e na

    inteno comercial manifesta pelos autores. Esses compositores ainda hoje trabalham margem daindstria, nunca se inseriram, a despeito da aparente vontade inicial imaginada por Schwarz. Prova disso

    a declarao de Gilberto Mendes, diretor artstico da 40a edio do Fes- tival Msica Nova, de 2005,vitrine da msica contempornea no Brasil. o mesmo Gilberto Mendes entrevistado por Medaglia e

    citado por Schwarz. Num depoimento para divulgao do evento, a respeito das dificuldades deproduo do festival, o compositor afirmou: Eu no queria ir atrs de bastante dinheiro. Eu no sou nem

    empresrio e nem produtor. Na verdade eu preferiria um festival de porte pequeno, mas que no desse

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    trabalho. Se tivesse muito dinheiro na minha mo eu te- ria que alugar umas duas salas, ter secretrias eficar trabalhando o tem- po todo com a organizao do festival, mas no o meu campo esse a (risos),

    eu sou compositor6. V-se que as coisas no caminharam na direo imaginada nem peloscompositores e nem pelo crtico.

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    Podemos dizer que o Brasil e a sua msica refletem-se mutu- amente, um inspira o outro, nascem erenascem constantemente. A cultura popular, que, de uma certa forma e em alguns lugares ermos,conseguiu manter-se avessa comercializao de massa, pode ser con- siderada viva ainda hoje em suaconfigurao originria, isto , como um produto das camadas populares de um fundo inconsciente do

    pas?7 comum que essa produo, vez por outra, se entrelace com os meios de comunicao demassa, mas, ainda assim, ela conseguiria preservar sua autenticidade?8

    Partindo dessa hiptese, poderamos imaginar a existncia, em paralelo ao funcionamento domercado musical-comercial, de um Brasil possvel, verdadeiro, nutrido por camadas popularestradi- cionais de valor artstico indiscutvel uma sociedade paralela imagem padronizada global? Aoque parece no. O projeto mais amplo de uma nao ordenada e justa, algumas vezes esboado inclusiveatravs de manifestaes e movimentos musicais, nunca foi alcanado. Sempre h um entrave dealguma ordem a impedir o desenvolvimento social do pas. Nossas potenciais virtudes ficam sempre de

    fora, vingando o que h de pior e mais precrio na soma de nosso instvel amadurecimento.Acompanhando essa curva negativa do pas, nas ltimas dcadas vemos tambm na msica um paradoxoda mesma natureza. O que menor no cancioneiro amparado quase sempre pela indstria cultural emsua face mais limitada tambm ofusca o maior, pois h algum tempo nossa grandeza tem sido preteridaem nome de nossa mediocridade.9

    Assim, como resultado histrico, no h dvidas de que haja um entrave acerca do destino dacano. Se ela pode ser considerada como uma forma ltero-musical elaborada se considerarmos que ocan- cioneiro nacional possui uma curva histrica progressiva mpar, que resultou na incluso das letrascantadas em uma esfera estilstica prpria e autnoma, reconhecida no interior de nossa crtica literria

    e se, ainda assim, sua continuidade est de fato ameaada, porque ela pode estar decaindo junto com

    a idia de nao. Cabe a pergunta: se as novas canes no representam e interpretam mais o pas como o fizeram as produes anteriores durante muitas dcadas porque o pas se modificou, ousimplesmente porque a cano que segue terceira margem da mdia fala de um pas que no quer servisto?

    Se pudssemos reviver Mrio de Andrade por alguns momentos, nacionalismos parte, apenas pararefletir sobre a idia de pas que ele imaginou possvel em alguns dos seus escritos e poemas prin-cipalmente sobre a necessidade de se ouvir um outro lado do Brasil, distante desse que at hoje plana nasuperfcie sofisticada do centro econmico da nao ganharamos dcadas de anlise. Em um de seus

    poemas encontramos essa necessidade exposta com grande beleza:

    Abancado escrivaninha em So Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De sopeto senti um frime por

    dentro. Fiquei trmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim.

    111

    7 Sobre a diferena entre msica popular e msica de massa norte-americana e brasileira, importante para os argumentos deste

    estudo, Rodrigo Duarte afirma: Registra-se aqui [no texto Sobre msica popular, de Adorno] uma confuso, que no

    normalmente feita por Adorno nos textos em alemo, entre msica de massa e msica popular. Para um norte-americano parece

    quase impossvel fazer essa distino, j que a autocompreenso dos EUA como uma cultura prpria, independente da europia, se

    d s vsperas da consolidao dos monoplios culturais. No Brasil, ainda podemos, felizmente, diferenciar pelo menos em

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    termos parciais a cultura popular mais enraizada, daquela totalmente fabricada para o consumo, ainda que tenha razes

    supostamente populares (DUARTE, 2003, p.192). 8 Menor e maior aqui so juzos de valor do autor, partindo da idia de que, nos

    ltimos tempos, a indstria destruiu algumas verdades em nome de produes em larga escala, na maioria esmagadora dos casos

    desvirtuando tradies como a da msica caipira (convertida em sertaneja), do pagode e do samba de roda

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    (que virou ax-music). Esse procedimento menor diante das criaes populares, sejam elas comerciais ou no. Aqui, em nenhum

    momento, se est considerando medocres artistas de apelo popular como Amado Batista, Odair Jos, Agnaldo Timteo, Nelson

    Ned, Benito Di Paula entre outros , mas movimentos musicais inventados por grandes corporaes. Sobre o papel dos artistas

    populares vale a consulta ao livro de Paulo Csar Arajo, Eu no sou cachorro no. So Paulo: ed. Record, 2002. A bem daverdade, as mais recentes produes de massa tm uma caracterstica nova: algumas delas so produzidas independentemente das

    grandes corporaes, como o caso da banda Calypso, do Par, que pela primeira vez na histria da indstria musical brasileira

    vendeu na casa dos milhes sem amparo de gravadoras o que no configura nenhuma revoluo propriamente esttica, mas apenas

    comercial.

    ____________

    10 Ver Ferreira Gullar, Cultura posta em questo, Rio de Janeiro, ed. Jos Olympio, 2002 publicado em 1963 (e relanado

    juntamente com Vanguarda e subdesenvolvimento). No captulo cultura popular, Gullar mostra que este termo, antes de tudo,

    significa uma tomada de posio poltica, tratando-se de uma questo revolucionria e imprescindvel para os rumos da discusso

    sobre os rumos do pas: A cultura popular , em suma, a tomada de conscincia da realidade brasileira (p. 23).

    No v que me lembrei l no norte, meu Deus!

    [muito longe de mim, Na escurido ativa da noite que caiu, Um homem plido,

    magro de cabelo escorrendo nos olhos Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, est

    dormindo.

    Esse homem brasileiro que nem eu...

    (Descobrimento, de Dois poemas acreanos,

    ANDRADE, 1987, p.203).

    No se trata de retomar o nacionalismo didtico do musiclogo, mas de reescrever com tintascontemporneas uma pgina bvia que, ademais, est viva: o valor popular do cancioneiro do Brasilatravs de um conceito gasto e aparentemente fora de moda, o de cultura popular. O cancioneiro popular

    arcaico fruto daqueles resqucios pr-capitalistas apontados por Adorno e que, segundo ele, estariameliminados nos EUA no incio do sculo passado, como a transmisso hereditria de tradies populares,a falta de luz eltrica e a vida comunitria rural parece nos envergonhar muitas vezes. No

    precisamos ir longe para saber que aque- les tais resqucios esto vivos no Brasil, e que no serestringem mais s zonas rurais. Segundo, no deve ser fcil ver um homem desdentado nosrepresentando num documentrio na televiso, dentro ou fora do Brasil, como no raramente aconteceem documentrios sobre cultura popular em canais de TV ainda que este homem esteja a destilarversos con- tendo sculos de histria inconsciente. Quando as TVs pblicas brasilei- ras que ainda

    produzem programas desse nvel apresentam especiais sobre cultura popular, no raro exibem algummiservel o cenrio incontornvel. No entanto, esse homem no como ns, que habitamos um pas

    bonito, tropical e solar que, alm do mais, exibe grande riqueza em alguns pontos isolados de centrosurbanos como So Paulo e Rio de Janeiro. A discrepncia social arruinadora nesse caso. Que Brasilesse pobre cantador popular representa afinal nessa sua misria-sublime, meio desgraado meio

    poeta?10

    Falar em um impulso meldico-instintivo para expor essa produo po- pular miservel pode serperigoso. Mas h um ponto importante: alguns desses artistas populares no sabem que existe umaindstria da emoo, isolados pela misria. Mas eles existem, e a msica para eles uma expe- rincia

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    mista de ascese religiosa e devaneio profano. Eles compem esse Brasil pobre, religioso e, reitero otermo, sublime. E ento eis o cmulo diante do qual precisamos nos colocar: radicalmente, desvend-los o mesmo que conden-los, ouvi-los o mesmo que esquec-los.

    H quem o faa com propriedade, como o diretor Andrucha Waddington. O documentrio Viva SoJoo (Conspirao Filmes, Brasil, 2002) um bom exemplo. No vou critic-lo tecnicamente aqui.Quando assistimos as belas imagens gravadas no nordeste do Bra- sil no perodo das festas de So Joo,estamos diante de uma das verdades mais indelveis do pas. O filme um produto cultural da indstriado entretenimento, com todos os elementos, mas alguma coisa est alheia produo, o que chamareiaqui de povo-pblico. Ao que parece, as

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    pessoas que aparecem a todo o momento no documentrio no que- rem se exibir no sentidoartstico-comercial da palavra, elas festejam o So Joo a partir de sentimentos terrais de grandesimplicidade, o culto religioso-profano faz parte de suas vidas desde sempre. Estou falando obviamentedo pblico e no dos artistas que se apresentam alterna- damente no filme: Gilberto Gil, Dominguinhos,

    Alexandre Pires, Elba Ramalho, entre outros. Esse povo-pblico est fora da exibio, no so artistas,mas sim parte do cenrio nordestino. No h a menor sombra de uma manipulao de suas falas e desuas declaraes, a des- peito de estarem circunscritos dentro de um produto final editado.

    Essa impresso extempornea que esse pblico transmite pode ser pensada a partir do papel dopblico de arte grego. Susan Sontag, num de seus ensaios, afirmou o seguinte: Pelo menos desde queNietzsche obser- vou, em O nascimento da tragdia, que um pblico de espectadores como oconhecemos, aquelas pessoas presentes que os atores ignoram, era desco- nhecido entre os gregos, uma

    boa parcela da arte contempornea parece movida pelo desejo de eliminar o pblico da arte, umaempresa que, com freqncia, se apresenta como uma tentativa de eliminar a prpria Arte (SONTAG,1987, p.15). Essa bela imagem das pessoas presentes e ao mes- mo tempo ignoradas pelos atores e

    artistas mostra que a arte nem sempre se faz presente a partir de uma exibio, de uma busca de efeitosna platia, como disse Nietzsche ao se referir a Wagner e sua constante preocupao em impressionar o

    pblico com sua obra de arte total.

    O que difere abissalmente o cenrio sertanejo da apreciao sobre os gregos que, aqui, no Brasil,a conscincia do artista est invertida, como no podia deixar de ser. Os artistas no sabem que esse

    povo-pblico quem protagoniza, em ltima instncia, aquela encenao de que esto tomando parte nodocumentrio, o que for- a pergunta se no estaria quebrado o vnculo que sempre existiu entrecultura popular e msica popular no Brasil. A verdade musical da exibio est quase sempre com o

    pblico e no com os artistas. O povo-pblico a cultura popular naquele momento. Todos parecemignor-lo. A posio que ocupam ou que no ocupam central para que pensemos a respeito da arteque eles produzem.

    Uma das personagens, Dona Luzia, de Junco do Salitre (Juazeiro/ BA), diz ao entrevistador: SoJoo? So Joo pra mim cultura, que desde que eu nasci que eu vejo So Joo, passar So Joo emminha vida. Eu j tenho 56 anos e nunca vi falar de no ter um ano o ms de So Joo no correr do ano.

    Noite de So Joo eu fao me divertir, danar, eu fao comidas gostosas mode eu comer, convidominhas pessoas, s assim ah eu gosto de fazer canjica, pipoca, pamonha, ... milho assado, isso a,coisa de milho, mungunz, sabe o que mungun- z? [ A senhora conheceu Luiz Gonzaga n?]Conheci, conheci foi muito. Ah, eu acho a msica de Luiz Gonzaga um, sei l rapaz, uma coisa que nose acaba nunca, parece que ele veve vivo na terra de novo n? parece que ele nunca morre, que amsica dele sempre a gente gosta, todo mundo gosta da msica de Luiz Gonzaga, quem j conheceu ele,e quem no conheceu tambm, vai continuar na mesma coisa, (canta) Ai So Joo So Joo docarneirinho/ ele to bonzinho/ fale l com So Jos/ que pra ele me ajudar/ pra meu milho v se dvinte espiga em cada p//. Gostou de minha cantiga?

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    Suas palavras simples contm alguns aspectos de grande importn- cia. Ela sabe que cultura,sinnimo para ela das festas de So Joo, algo que sempre existiu, j que desde a infncia nunca

    deixou de acontecer, de passar em sua vida naquele ms de julho. Esse eco de eternidade se materializaquando ela faz de Luiz Gonzaga quase uma entidade atem- poral. Aquele que no se acaba nunca, nomorre, porque suas msicas refazem a infncia, a histria e a prpria vida dela. Seu Luiz Gonzagafunda o nordeste a partir da cano. Quando ela diz parecer que ele sempre existiu como se dissesseque ele est para alm do tempo de sua prpria vida. Ela nasceu e vai morrer ouvindo o seu canto. Naletra da cano Baio atemporal, do CD Tropiclia 2, Gilberto Gil disse a mesma coisa, sob outraforma, quase num registro esotrico: Porque os tempos passaram e passaro/ tudo que comea acaba, eoutros cabras seguiro/ cruzando o atemporal do tao do baio.

    As palavras de Dona Luzia nos aprisionam diante de um fato pouco compreensivo: onde comea eonde termina a dimenso po- pular das festas brasileiras? Como acreditar que ali, no meio do serto

    nordestino, exista um modo de relao externo indstria da cultu- ra sendo filmado de dentro doslimites de uma produo miditica? Invariavelmente nos vimos diante de um enigma, j que nada indicaestarmos diante de mais um fenmeno pfio da indstria. Para isso, precisamos exercer a capacidade dever o que e o que no verdadei- ro na cena. Entender a verdade de nossa msica partenecessariamente de uma vontade prvia de se integrar a ela, movimento que no se d por uma aodeliberada, mas por uma condio intrnseca daqueles que dela sempre fizeram parte.

    Num ensaio dedicado a analisar as relaes entre a revoluo de 30 e a cultura nacional, AntonioCandido comentou a respeito da pe- netrao da cano popular em todas as camadas sociais e aimportn- cia que esse momento histrico exerceu no futuro do estilo no Brasil, ressaltando ainda aligao posterior essencial entre a poesia popular e a poesia erudita. O crtico escreveu a passagem, que

    cito adiante, num post scriptum do ensaio. Trata-se de outro momento e outro ambiente da recepo damsica brasileira dentro da academia, mas Candido apontou para uma historiografia estilstica linear damsica popular que tem a ver com uma linha de continuidade que adere perfeitamen- te noo deverdade musical sugerida neste estudo: Aqui [no ensaio A revoluo de 30 e a cultura] foramabordados alguns aspectos da vida cultural posterior a 1930 mas haveria muitos outros, relativos aoteatro, rdio, cinema, msica, que escapam minha competncia. Lembro apenas que na msica popularocorreu um processo equivalente de generalizao e normalizao, s que a partir das esferas

    populares, rumo s camadas mdias e superiores. Nos anos 30 e 40, por exem- plo, o samba e a marcha,antes praticamente confinados aos morros e subrbios do Rio, conquistaram o Pas e todas as classes,tornando-se um po-nosso quotidiano de consumo cultural. Enquanto nos anos 20 um mestre supremo

    como Sinh era de atuao restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacional homens como Noel Rosa,Ismael Silva, Almirante, Lamartine Babo, Joo da Bahiana, Nssara, Joo de Barro e muitos outros.Eles foram o grande estmulo para o triunfo avassa- lador da msica popular nos anos 60, inclusive desua interpenetrao