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229 Fernando Braga Viggiano * Marcela Venturini Diorio ** Medida de Segurança e reforMa PSiquiátrica SECUriTy MEASUrES AND PSyChiATriC rEFOrM MEDiDA DE SEGUriDAD y rEFOrMA PSiqUiATriCA Resumo: Desde que foi estabelecido no Código Penal de 1940, o instituto da medida de segurança tem sido constantemente ajustado às trans- formações sociais. O marco mais significativo de tais transforma- ções possivelmente foi o movimento brasileiro de reforma psiquiátrica, iniciado na década de 1970 e consolidado em lei em 2001. O presente artigo pretende situar o “direito penal da loucura” e a aplicação da medida de segurança no contexto dos paradigmas de saúde mental da contemporaneidade. Para tanto, demonstra as heranças do pensamento criminológico positivista da época em que foi criado o instituto às recentes experiências de sucesso. Abstract: Since it was established as part of the Brazilian Criminal Code in 1940, the compulsory penal measure of medical nature called "se- curity measure" has been constantly adjusted to social changes. The most significant landmark of these changes was the Brazilian psychiatric reform’s movement, initiated in the 1970s and consoli- dated into the legal system in 2001. This article aims to place the “criminal law of madness” and the application of security measures into the context of contemporary mental health paradigms. For this purpose, the essay shows the legacy of criminology’s positivist thought from the time when the penal measure in question was created to recent successful experiences. * Doutorando pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da FDUSP. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça. Mestre em Ciências Penais pela UFG. Promotor de Justiça do MP-GO. ** Mestranda pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da FDUSP. Assessora Técnica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

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Fernando Braga Viggiano*

Marcela Venturini Diorio**

Medida de Segurança e reforMa PSiquiátrica

SECUriTy MEASUrES AND PSyChiATriC rEFOrM

MEDiDA DE SEGUriDAD y rEFOrMA PSiqUiATriCA

Resumo:

Desde que foi estabelecido no Código Penal de 1940, o instituto da

medida de segurança tem sido constantemente ajustado às trans-

formações sociais. O marco mais significativo de tais transforma-

ções possivelmente foi o movimento brasileiro de reforma

psiquiátrica, iniciado na década de 1970 e consolidado em lei em

2001. O presente artigo pretende situar o “direito penal da loucura”

e a aplicação da medida de segurança no contexto dos paradigmas

de saúde mental da contemporaneidade. Para tanto, demonstra as

heranças do pensamento criminológico positivista da época em que

foi criado o instituto às recentes experiências de sucesso.

Abstract:

Since it was established as part of the Brazilian Criminal Code in

1940, the compulsory penal measure of medical nature called "se-

curity measure" has been constantly adjusted to social changes.

The most significant landmark of these changes was the Brazilian

psychiatric reform’s movement, initiated in the 1970s and consoli-

dated into the legal system in 2001. This article aims to place the

“criminal law of madness” and the application of security measures

into the context of contemporary mental health paradigms. For this

purpose, the essay shows the legacy of criminology’s positivist

thought from the time when the penal measure in question was

created to recent successful experiences.

* Doutorando pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia daFDUSP. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministérioda Justiça. Mestre em Ciências Penais pela UFG. Promotor de Justiça do MP-GO. **Mestranda pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologiada FDUSP. Assessora Técnica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

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Resumen:

Desde su creación en el Código Penal brasileño de 1940, el instituto

de la medida de seguridad se ha ajustado constantemente a los

cambios sociales. El marco más significativo de estos cambios fue

posiblemente el movimiento brasileño de reforma psiquiátrica, ini-

ciado en los años 1970 y consolidado en ley en 2001. Este ensayo

trata de situar el "derecho penal de la locura” y la aplicación de la

medida de seguridad en el contexto de los paradigmas contempo-

ráneos de salud mental. Para eso, revela los legados del pensa-

miento criminológico positivista de la época en que el instituto fue

concebido hacia las experiencias exitosas recientes.

Palavras-chaves:

Criminologia, direitos humanos, execução penal.

Keywords:

Criminology, human rights, criminal execution.

Palabras clave:

Criminología, derechos humanos, ejecución penal.

o SurgiMento do ManicôMio judiciário e da Medidade Segurança no BraSil

A virada do século XiX para o XX foi um período de profundoscâmbios sociais e econômicos no Brasil. A progressiva substituição damão-de-obra escrava pelo trabalho livre assalariado, o surgimento dasfábricas, o desenvolvimento de novos sistemas de circulação de mer-cadorias, além do crescimento demográfico, acentuado pela chegadade crescentes levas de imigrantes europeus e pelo implemento à po-pulação urbana de negros e mestiços provenientes das áreas rurais,provocaram intensas transformações na configuração dos espaços desociabilidade, sobretudo do ambiente urbano. Tudo a calhar com o momento político vivenciado pelo país:com o advento da república em 1889 e a abolição da escravidão

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um ano antes, estava-se em busca de novos modelos institucionaisaptos a construir uma ordem social que evolucionava do regime tu-telar imperial para o regime da lei como garantia de uma supostaigualdade entre os indivíduos. Emergiam os ideais burgueses de va-lorização do trabalho e “nacionalização” da “civilização dos costu-mes” (SOUZA, 2009, p. 24) como norte para regular astransformações econômico-sociais candentes. No campo do saber jurídico – que, como era comum a todasas ciências, refletia as inquietações e aspirações ideológicas das eli-tes –, influenciado pelo positivismo italiano, as novas condições devida, sobretudo no meio urbano, traduziam-se na preocupação como crime e a criminalidade: a relação entre o progresso da sociedadee o aumento da criminalidade, o crescimento da criminalidade entresegmentos específicos da população e o problema da convivênciadas diversas raças e nacionalidades (ALVArEZ, 2003, p. 62). Consequência de tais preocupações foi a estigmatização, peloscriminologistas – quase sempre respaldados pelo saber médico –, de al-guns grupos sociais, considerados desajustados psíquica ou fisicamenteou desqualificados para fins de completa aceitação social. Era o caso,por exemplo, dos menores, loucos, homossexuais, mulheres1. isso revelaque, ademais da concepção do crime como uma anormalidade biológicae social, o discurso da “nova escola penal” estava impregnado de umconteúdo moral, o que demandava das instituições jurídico-penais nãosó a atenção aos indivíduos que cometiam crimes, mas também àquelesque, em razão de sua conduta moral, tornavam-se perigosos. É nesse contexto que surge e é a partir dele que se podeentender a figura do “louco criminoso”, assim como o aparecimentodas instituições a eles destinadas2 e da aliança inseparável, aomenos no que diz respeito à medida de segurança, entre os saberesmédico e jurídico penal. Fazendo um apanhado histórico sobre ocaso brasileiro, narra Sérgio Carrara (1339, p.49) que:

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1 A discussão é iniciada no interior da literatura penal brasileira por Tobias Barreto,com o texto “Menores e loucos em direito criminal”, publicado pela primeira vez em1884 (ALVArEZ, 2003, p. 164).2 “Efetivamente, parece ter sido a inglaterra o primeiro país a erigir um estabelecimentoespecial para os delinquentes alienados, a prisão especial de Brodmoor, em 1870.Antes dela, tanto a França quanto os Estados Unidos haviam apenas designado ane-xos especiais a alguns presídios para a reclusão e tratamento dos delinquentes loucosou dos condenados que enlouqueciam nas prisões.” (CArrArA, 1998, p. 48-49).

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No Brasil, quanto aos criminosos loucos ou condenados que en-louqueciam nas prisões, o Código Penal de 1890 apenas diziaque tais delinquentes, penalmente irresponsáveis, deveriam serentregues a suas famílias ou internados nos hospícios públicosse assim “exigisse” a segurança dos cidadãos. O arbítrio em cadacaso era uma atribuição do juiz. Em 1903, apareceu uma lei es-pecial para a organização da assistência médico-legal a alienadosno Distrito Federal e que se pretendia modelo para a organizaçãodesses serviços nos diversos estados da União (Dec. n. 1132, de22/12/1903). Segundo tal legislação, cada Estado deveria reunirrecursos para a construção de manicômios judiciários e, enquantotais estabelecimentos não tivessem sido erigidos, dever-se-iamconstruir anexos especiais aos asilos públicos para o recolhimentodesse tipo de alienados. O ano 1903 marca, portanto, o momentoem que a construção de manicômios judiciários se torna propostaoficial. Foi provavelmente no bojo das reformas introduzidas nohospício Nacional de Alienados, a partir da legislação de 1903,que surgiu, nessa instituição, uma seção especial para abrigar osloucos-criminosos: a chamada Seção Lombroso do hospício Na-cional, embrião do atual MJ [Manicômio Judiciário heitor Carrilho,localizado no rio de Janeiro]. No entanto, a construção de um es-tabelecimento especial teria ainda que aguardar dezessete anospara ser concretizada no Distrito Federal. Somente em 1920 serialançada a pedra fundamental da nova instituição, oficialmentecriada e inaugurada em 1921 (Dec. n. 14.831, de 25/5/1921). inau-gurava-se então o Manicômio Judiciário do rio de Janeiro, pri-meira instituição do gênero no Brasil e na América Latina, sendosua direção entregue ao médico psiquiatra heitor Pereira Carrilho,que já há alguns anos chefiava a Seção Lombroso do hospícioNacional3.

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3 “A mudança mais importante nas disposições foi a extinção do chamado ‘sistemado duplo binário’. Fruto das longas discussões que precederam o Código Penal de1940, tal sistema se caracterizava por comportar dois tipos de reações penais, denaturezas diversas, que poderiam atingir os ‘imputáveis’. De um lado, a pena, de ca-ráter expiatório, medida segundo o grau de culpa do sujeito e a gravidade de seuato; de outro lado, a medida de segurança que se fundava principalmente na avalia-ção do grau de periculosidade do acusado. Esta última não teria um caráter punitivomas perseguiria uma dupla finalidade: a defesa social, segregando os ‘perigosos’, eo tratamento desses indivíduos, extirpando ou anulando sua periculosidade.[...] quem seriam esses ‘perigosos’ que reclamavam uma intervenção judicial de novaespécie e como reconhecê-los? A codificação de 1940 assim os recortava e localizava:1. Os ‘loucos criminosos’, que deveriam ser detidos e tratados em ‘Manicômios

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A razão mais profunda da criação do Manicômio Judiciáriofoi a busca do aperfeiçoamento dos mecanismos de defesa social,como a identificação da periculosidade do delinquente. Mas não só:também atendia a uma reivindicação dos tempos de Lombroso e deseu criminoso nato: “a sequestração e o isolamento radical e perpé-tuo dos indivíduos considerados incorrigíveis, nos interesses da ‘se-gurança pública’” (FErLA, 2005, p. 301-303). Nesse sentido, as décadas de 1930 e 1940 serviram ao apri-moramento institucional da criminologia positivista, culminando napromulgação do Código Penal de 1940, o qual consagrou a medidade segurança (artigos 74 a 101) e o princípio da periculosidade. Asmedidas de segurança pessoais, previstas no artigo 88, representa-vam a concretização das teses centrais do positivismo criminológico,na medida em que previam a segregação e a vigilância dos “indiví-duos perigosos”:

Francisco Campos, na exposição de motivos que introduzia onovo Código, enfatizava a diferença entre pena e medida de se-gurança. Enquanto aquela teria caráter repressivo, condicionadaprincipalmente pelo delito cometido, esta seria uma medida de“prevenção” e “assistência social”, e seria estabelecida em con-formidade com a periculosidade do indivíduo em questão. Porisso, não possuiria duração determinada, prolongando-se en-quanto durasse o estado perigoso, como estabelecia o artigo 88.Nesse sentido, as medidas de segurança representavam mais umavanço da sobreposição do princípio da culpabilidade pelo da pe-riculosidade. (FErLA, 2005, p. 319)

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Judiciários’ (at. 22, C.P./40); 2. Os ‘ébrios habituais’e ‘toxicômanos’, que deveriamser detidos tratados em ‘Casas de Custódia e Tratamento’ (art. 78, C.P./40); 3. Os‘condenados por crimes que hajam cometido como filiados a associação ou bandoou quadrilha de malfeitores’ (art. 78, C.P./40); 4. Os condenados por crimes relacio-nados à ‘ociosidade’, ‘vadiagem’ e ‘prostituição’ (art. 93, C.P./40).As duas últimas categorias deveriam ser enviadas a ‘institutos de Trabalho’, ‘ree-ducação’ e ‘Ensino Profissional’ Os Juízes deveriam presumir a periculosidade emqualquer dos casos acima, devendo ainda reconhecê-la em qualquer acusadoquando: ‘seus antecedentes e personalidade, os motivos determinantes e as cir-cunstâncias do fato, os meios empregados e o modo de execução, a intensidadedo dolo e o grau de culpa, autorizem a suposição de que venha ou torne a delinqüir;se na prática do fato revela torpeza, perversão, malvadez, cupidez ou insensibilidademoral’ (art. 77, C.P./40; grifos nossos)” (Fry; CArrArA, 1986, p. 48-54).

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A reforma do Código Penal de 1985 provocou mudançassignificativas no tocante à aplicação das medidas de segurança4. Noentanto, a ideia sobre o criminoso nato e sua periculosidade conti-nuaram presentes, perpetuando a naturalização desses conceitosnão só no âmbito estritamente legal, mas também social e judiciário.

a origeM da luta antiManicoMial: da itália ao BraSil

Liderado pelo psiquiatra Franco Basaglia, o movimento deluta antimanicomial italiano iniciou-se na década de 1960, sendo de-nominado como “Psiquiatria Democrática” em 1973. Por meio da reforma legislativa de 1978, a itália inicializou oprocesso de superação dos hospitais psiquiátricos, com a criação deserviços de saúde no seio da comunidade, que permitiram às pes-soas com transtorno mental conduzir suas vidas no contexto socialao qual estavam inseridos. Ao assumir a direção do hospital psiquiátrico de Trieste, emagosto de 1971, Franco Basaglia constituiu um grupo de trabalho for-mado por jovens médicos, sociólogos, assistentes sociais, voluntá-rios e estudantes provenientes de diversas regiões italianas eeuropeias, que tinham como projeto a desinstitucionalização dos pa-cientes, com o fechamento dos hospitais. Em sua obra “L’istituzione negata”, de 1968, utilizando comofundamento o trabalho realizado no hospital de Gorizia, que foi trans-formado em comunidade terapêutica, Basaglia (1985) já apontava queos hospitais psiquiátricos não poderiam ser reformados ou humaniza-dos, pois não priorizavam a assistência e o tratamento dos pacientes. Para Basaglia, no instante em que o paciente ultrapassava osmuros da internação, sua doença assumia uma nova dimensão, emrazão de sua institucionalização, o que denominou de “duplo da doençamental”. Ao ser inserido no espaço que, originariamente, foi criado paraser inofensivo ao paciente, paradoxalmente esse lugar destruía a suaindividualidade, negava a sua subjetividade e identidade, tornando-o um

4 ANTUNES, MJ., 2003, p. 360.

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mero objeto de intervenção clínica, vale dizer, de objeto do saber. Desse modo, Basaglia e sua equipe promoveram a substi-tuição do tratamento hospitalar e manicomial do paciente por umarede territorial significativa de atendimento, da qual eram integrantesserviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hos-pital geral, cooperativas de trabalho, centros de convivência e apar-tamentos assistidos. A iniciativa possibilitava que os centrosprestassem assistência à saúde 24 horas por dia, reabilitação psi-cossocial, assistência social e, se necessário, tratamento para oscasos mais graves. De igual maneira, a oportunidade de trabalho nascooperativas fez com que muitos pacientes pudessem ser integradosde modo efetivo ao meio social. A implementação da iniciativa enfrentou vários desafios,sendo os principais a ausência de saberes ou práticas consolidadas,as quais inspirariam o processo reformador, assim como o conceitode periculosidade inserido na doença mental e, de consequência, nasnormas jurídicas vigentes à época. No entanto, após bastante diálogocom os profissionais que atuavam no hospital, familiares dos internose com a comunidade local, os desafios foram superados, tornandopossível a abertura das portas do antigo hospital para a sociedade. Visando a integração da comunidade com os pacientes e aruptura com o conceito de periculosidade, Basaglia promove naqueleespaço exposições de arte, festas e concertos, desmistificando-seas atividades desenvolvidas para grupos de jovens, movimentos fe-ministas, estudantes, organizações políticas e sindicais, profissionaisdos meios de comunicação, intelectuais e artistas. A inclusão social, o crescimento da autonomia do pacientee a valorização das diferenças são objetivos comuns nos centroscriados, desenvolvendo-se uma relação constante e transparentecom os membros da comunidade. Fruto desse trabalho, o hospital psiquiátrico foi fechado em1977 e suas atividades cessaram formalmente em 21 de abril de1980, concretizando-se assim a luta pela reforma psiquiátrica e abusca pela desinstitucionalização dos pacientes por todo o mundo. Chamado de utópico pelos críticos, o trabalho de Basagliainiciou a luta antimanicomial italiana, resultando na aprovação da Lein. 180, de 13 de maio de 1978, tendo ele enfatizado em seu Confe-renze Brasiliane, publicado em 1979:

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[...] la cosa importante è che abbiamo dimostrato che l’impossibilediventa possibile. Dieci, quindici, vent’anni fa era impensabile che unmanicomio potesse essere distrutto. Magari i manicomi tornerannoa essere chiusi e più chiusi di prima, io non lo so, ma ad ogni modoabbiamo dimostrato che si può assistere la persona folle in altra ma-niera, e questa testimonianza è fondamentale. Non credo che il fattoche un’azione riesca a generalizzarsi voglia dire che si è vinto. il puntoimportante è un altro, è che ora si sa si può fare. É quel che ho dettogià mille volte: nella nostra debolezza, in questa minoranza chesiamo, noi non possiamo vincere perché è il potere che vince sem-pre. Noi possiamo al massimo convincere. Nel momento in cui con-vinciamo, noi vinciamo, cioè determiniamo una situazione ditrasformazione difficile da recuperare. (BASAGLiA, 2010)

Logo após o fechamento do hospital, Franco Basaglia par-ticipou do i Simpósio internacional de Psicanálise, Grupos e institui-ções, realizado em outubro de 1978, no rio de Janeiro. Um anoapós, foi conferencista e visitou manicômios no rio de Janeiro, emSão Paulo e em Belo horizonte, onde atestou as precárias e desu-manas condições em que se encontravam os internos, comparandoo Centro hospitalar Psiquiátrico de Barbacena a um “campo de con-centração nazista”. influenciada pela experiência italiana, a discussão no Brasilsobre a necessidade de humanização do tratamento dos portadoresde transtorno mental teve início na década de 1970, ocasião em quediversos setores da sociedade brasileira se articularam em torno daredemocratização do país. Com o lema “Por uma sociedade semmanicômios”, a reforma psiquiátrica brasileira almejava substituir osuperado modelo manicomial, local onde se promovia a exclusão, aintolerância e o silêncio do sujeito e da loucura. Acerca da trajetória dos movimentos da reforma psiquiátricaantimanicomial no Brasil, Aluísio Ferreira de Lima (2010) traça umpanorama explicativo:

O primeiro momento da reforma psiquiátrica brasileira, que tomacomo marco inaugural a fundação, em 1978, do Movimento deTrabalhadores em Saúde Mental (MTSM), foi o instante de ques-tionamento da política de saúde mental desenvolvida no Brasil, que- embora desde 1961 preconizasse os serviços de tratamento em

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saúde mental situados nos territórios - continuava financiando mas-sivamente os asilos privados desde 1946, instituições que, por suavez, sofriam várias críticas por serem espaços de segregação pes-soal e aniquilação subjetiva [...] Assume-se, com o questionamentoda política de saúde mental desse período, o desafio à superaçãodessas instituições que eram hegemônicas no país. As discussõesestavam voltadas para a garantia de direitos dos pacientes, o aper-feiçoamento e universalização dos instrumentos utilizados atéentão, ou seja, o direito à saúde como questão político-social [...].O segundo momento da reforma psiquiátrica brasileira, por suavez, se concretizou com criação do Movimento de Luta Antimani-comial, que se espalhou pelo país com a sustentação de um dis-curso - alternativo ao sistema manicomial a partir da invenção denovos dispositivos e tecnologias de cuidado, substituindo a clínicafechada por instrumentos abertos, diversificados, de natureza co-munitária, que garantiriam a desinstitucionalização. [...] Na virada do século XX, presencia-se o terceiro momento da re-forma psiquiátrica, possibilitado pela paulatina entrada de militantesdo movimento antimanicomial no interior dos aparelhos de Estado.Com a aprovação da Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001, que con-templava a Declaração de Caracas de 14 de novembro de 1990, oque até então era uma proposição alternativa à política de saúdemental desenvolvida, transforma-se, nesse momento, em uma po-lítica de Estado. Em outras palavras, aquilo que era oposição aosistema tornou-se posição do sistema, apoiada em uma lei federalque organizaria a saúde mental no país e concretizaria uma com-plexa e sistemática política pública embasada em leis, portarias mi-nisteriais, leis municipais e estaduais, etc. (LiMA, 2010, p. 169-170)

A Lei n. 10.216, a Lei da reforma Psiquiátrica, promulgadaem 06 de abril de 2001, estabeleceu a noção de cidadania comoquestão central na abordagem terapêutica do indivíduo portador detranstornos mentais, situando alguns parâmetros que, segundo Vas-concelos (2003, p. 61), podem ser enumerados como:

a) abordagem interdisciplinar da saúde mental, sem prevalên-cia de um profissional sobre o outro; b) Negativa do caráter te-rapêutico do internamento; c) respeito pleno da especificidadedo paciente, e da natureza plenamente humana da sua psi-cose; d) Discussão do conceito de “cura”, não mais como “de-volução” ao paciente de uma “sanidade perdida”, mas como

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trabalho permanente de construção de um “sujeito” (eu) ali ondeparece existir apenas um “objeto” de intervenção terapêutica(isso); e) A denúncia das estruturas tradicionais como estruturasde repressão e exclusão; f) A não-neutralidade da ciência; g) Oreconhecimento da inter-relação estreita entre as estruturas psi-quiátricas tradicionais e o aparato jurídico-policial.

o Portador de tranStorno Mental coMo Sujeito dedireito

Não obstante o estabelecido pela Lei da reforma Psiquiá-trica, a dignidade das pessoas com transtorno mental tem sido cons-tantemente afrontada. Pesquisas, relatórios de inspeção e outrosdocumentos revelam que elas são esquecidas em unidades cujosprojetos arquitetônico e terapêutico não conferem a mínima condiçãopara a reinclusão desses pacientes na comunidade. A título de exemplificação, em 2011, o Conselho Nacionalde Justiça constatou que uma pessoa de 60 anos (Derivaldo BispoSantos) estava internada na Bahia desde 1977 pela prática de lesãocorporal. De igual modo, quatro mulheres cumpriam medidas de se-gurança em celas comuns do Presídio Feminino. Por entenderem que Francisco Celestino representava umperigo para a sociedade, ele estava internado desde 1981 no Com-plexo Médico de Pinhais, em Curitiba, pelo furto de uma blusa. Em São Paulo, novecentas pessoas com transtornos psí-quicos aguardavam uma “fila de espera” para serem transferidospara um dos três estabelecimentos destinados ao cumprimento demedidas de segurança. Durante a espera, na maior parte dos casos,não recebiam qualquer tratamento. Preso em 1955, aos 19 anos de idade, pelo furto de alimentosda geladeira de um vizinho, Nelson Leopoldo Filho envelheceu numleito do hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico heitor Carrilho,no rio de Janeiro, sendo desinstitucionalizado 52 anos depois, pararesidir numa residência terapêutica. Apesar dos mutirões realizados, verifica-se que a cultura do

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aprisionamento e da exclusão ainda persiste no dia-a-dia do sistemade justiça criminal brasileiro. Diante desse quadro alarmante, o Grupode Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária (GTDA),da Organização das Nações Unidas, inspecionará várias unidadesno país para identificar casos de internações ilegais. De acordo com censo realizado em 2011, intitulado “A custódiae o tratamento psiquiátrico no Brasil”, dirigido pela pesquisadora da Anis– instituto de Bioética, Direitos humanos e Gênero –, Debora Diniz(2013, p. 13-17) demonstra inequivocamente que os avanços obtidospor meio de alteração legislativa ainda não foram suficientes para a der-rubada dos preconceitos, estigmas e muros que impedem enxergar eouvir os internos dos improvisados estabelecimentos (23 hospitais decustódia e tratamento psiquiátrico e três alas de tratamento psiquiátrico),bem como retiram qualquer possibilidade de convivência social. Os 3.989 indivíduos internados eram desconhecidos da po-pulação, já que em noventa anos de história dos manicômios judi-ciários ainda não havia sido sequer realizada a contagem nacionaldesses pacientes, tendo a pesquisa concluído que: “[a] invisibilidadedo louco infrator não foi rompida com as conquistas da reforma Psi-quiátrica dos anos 2000” (DiNiZ, 2013, p. 13). Segundo o censo, dezoito pessoas estavam internadas emhospitais de custódia há mais de trinta anos, enquanto 606 pacientes(21% da população) estavam internados há mais tempo do que apena máxima prevista em abstrato para a infração cometida. O lapsotemporal de internação, por si só, demonstra que ainda não houve aefetiva aplicação da lei antimanicomial no país, desrespeitando fron-talmente a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, nosautos do Habeas corpus n. 84219-SP/2005, em que foi relator o Mi-nistro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello. Outro dado relevante apontado nessa pesquisa revela quepelo menos 741 pessoas (uma em cada quatro) não deveriam estarsubmetidas à medida de segurança. isso porque os laudos periciaisatestavam a cessação de periculosidade; havia sentença judicial de-terminando a desinternação (7%); estavam internados sem regularprocesso penal; ou, ainda, a medida de segurança estava extinta. De igual modo, restou comprovado que 1.194 pessoas esta-vam internadas em situação temporária ou submetidas à medidade segurança com laudos psiquiátricos ou exames de cessação de

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periculosidade em atraso. Segundo preceitua o § 1°, do artigo 150,do Código de Processo Penal, esse exame deveria ser realizado noprazo máximo de 45 dias, mas o tempo médio para a confecção dolaudo psiquiátrico era de dez meses e de 32 meses para os examesde cessação de periculosidade. No que tange ao perfil das pessoas com transtorno mental,92% da população submetida à medida de segurança era do sexomasculino, com média etária de 39 anos, cor da pele predominante-mente de negros e pardos (44%). 66% da população internada eraanalfabeta ou possuía ensino fundamental incompleto. Em relação às infrações praticadas, o censo identificou umaconcentração de crimes consumados ou tentados contra a vida (43%),contra o patrimônio (29%) e contra a dignidade sexual (15%). 69% dapopulação submetida à medida de segurança não possuía qualquerantecedente criminal, desmistificando, portanto, os estigmas de “peri-culosidade” e de “maior possibilidade de reincidência” imputados aessas pessoas: “a recidiva específica em razão de homicídio ocorreem 5% da população com registro de reinternação nos hospitais decustódia. Se considerarmos toda a população dos ECTPs, a recidivaespecífica em razão de homicídio é de 1%”(DiNiZ, 2013, p. 15). Por último, o tempo médio de cumprimento das medidas desegurança é de seis anos, estando 33,2% da população internada atempo superior a esse lapso. O levantamento apontou ainda os dez indivíduos há maistempo internados por medida de segurança em comparação à penaprivativa de liberdade máxima prevista em abstrato para a infraçãopenal. Por uma tentativa de furto, um paciente estava internado há32 anos, cuja sentença foi proferida em 1979; por um homicídio cul-poso, três estavam internados há mais de 24 anos; por uma lesãocorporal, dois estavam internados há mais de 25 anos, desde 1985. Portanto, não obstante os preceitos contidos na Lei n.10.216/2001, verifica-se que permanece a ideologia da exclusão e doconfinamento perpétuos como “tratamento” para os portadores de trans-torno mental, o que “aumentaria a sensação de segurança da sociedade”. Consoante os dados constantes no Sistema integrado deinformações Penitenciárias (iNFOPEN) do Ministério da Justiça, emjunho de 2012 existiam 32 hospitais de custódia e tratamento psi-quiátrico, sendo 27 deles para pessoas do sexo masculino e cinco

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para o feminino. Essa última estatística apontou que existem 3.111pessoas cumprindo medidas de segurança de internação, enquanto799 estavam em tratamento ambulatorial. Como não é realizado um projeto terapêutico individualizadonas unidades da Federação, não se respeita o direito dessas pes-soas manterem seus laços sociais e inexiste uma política pública vol-tada para a atenção a esses pacientes. A única resposta estatal paraas pessoas com transtorno mental é a contenção em ambientes nãoplanejados, cuja arquitetura em nada favorece a inclusão e os cui-dados e proteção devidos.

exPeriênciaS de SuceSSo: Pai-Pj, Paili e a deSinternaçãoProgreSSiva

A Lei da reforma Psiquiátrica, dentre outras regras, estabe-lece que “o tratamento visará, como finalidade permanente, a rein-serção social do paciente em seu meio” (artigo 4º, § 1º), sendoexpressamente vedada a internação em instituições com caracterís-ticas asilares e que não assegurem aos pacientes os direitos enume-rados no parágrafo único do artigo 2º da mesma Lei (artigo 4º, § 3º). irresignados com o tratamento oferecido às pessoas comtranstorno mental, alguns estados passaram a desenvolver progra-mas específicos baseados em práticas multidisciplinares inovadoras,comprovando a possibilidade de oferecer os cuidados imprescindí-veis em ambientes externos aos hospitais de custódia e tratamentopsiquiátrico, facilitando a inserção social dessas pessoas. O precursor dessa mudança de paradigma é o Programade Atenção integral ao Paciente Judiciário – PAi-PJ, desenvolvidono estado de Minas Gerais. implantado como projeto piloto no Tri-bunal de Justiça de Minas Gerais, em março de 2000 (“Projeto deAcompanhamento interdisciplinar ao Paciente Judiciário”), e trans-formado em programa no ano seguinte, o PAi-PJ já conseguiu avan-ços significativos na política antimanicomial. No primeiro semestre de 1999, sob a coordenação da psicólogaFernanda Otoni de Barros-Brisset, desenvolveu-se um estudo a fim de

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analisar os problemas relacionados ao tratamento judicial dispensadoao louco infrator. Assim, baseado na Lei estadual n. 11.802/1995,quinze casos foram acompanhados, apontando a violação dos direi-tos submetidos à internação no manicômio judiciário Jorge Vaz.Diante disso, vedou-se o ingresso de novos pacientes naquele local,o que motivou os magistrados a determinarem a internação portempo indeterminado em hospitais da rede pública de saúde, con-trariando os princípios da luta antimanicomial. Nesse ambiente conflituoso entre a área de saúde e a jurí-dica, surge o PAi-PJ, como “dispositivo conector”, objetivando a me-diação entre o tratamento em saúde mental e a esfera penal. O programa tem como função promover o acompanhamentointegral ao portador de sofrimento mental infrator em todas as fasesdo processo criminal e viabilizar a acessibilidade aos direitos humanosfundamentais e sociais previstos na Constituição da república, a res-ponsabilização e a inserção social. Por meio da intersetorialidade,promovendo a parceria entre juízes e o Poder Executivo, o programabusca construir uma rede de cuidados e recursos indicados para trataro sofrimento mental e promover a inserção social. Considerando-os como sujeitos de direitos e capazes deresponder por seus atos, o programa objetiva ainda responsabilizaro portador de sofrimento mental infrator pelo ato ilícito, pois ele nãoé tratado como um incapaz, mas como sujeito de direito e, portanto,de deveres perante a ordem social. Segundo Ana Flávia Ferreira de Almeida Santana, TâniaCouto Machado Chianca e Clareci Silva Cardoso (2011, p. 16-31):

A implicação e a responsabilização pelo ato cometido têm sidopreconizadas por alguns autores como uma possibilidade para osujeito. Ao contrário do preconizado pela atual prática jurídica, asentença de inimputabilidade decretada aos pacientes age comouma violação. Ser inimputável significa não ter direito à palavra eà ação. inviabiliza a possibilidade que o sujeito teria de refazer seuato, de produzir um sentido por meio da palavra e, consequente-mente, localizar o excesso de sua angústia. Ao ser convocadopela Justiça a responder por seus atos, responsabilizando-se poreles, o sujeito terá a oportunidade de construir um projeto de convi-vência no âmbito social como qualquer cidadão o faz. O ato jurídico,o chamado pela responsabilização, atua como operador clínico,

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extremamente necessário à condução do tratamento do paciente.Portanto a mediação entre a clínica, o social e o ato jurídico é ne-cessária à organização subjetiva dos pacientes.

De acordo com os idealizadores do PAi-PJ, antes de suaimplantação, a cronificação, a institucionalização e o massacre dasubjetividade atuavam coibindo as condições necessárias para a pro-moção do laço social, já que os pacientes eram internados em locaisimpróprios, como cadeias públicas e presídios. A média de tempo entre a entrada do paciente no programae o término de seu processo tem sido de cinco anos, com a cessaçãoda periculosidade atestada pelos peritos nos laudos de exame peri-cial. Portanto, o cumprimento da medida por tempo indeterminadodeixou de ser uma realidade naquele estado. Aos pacientes internados por longo período e que haviamperdido os laços sociais, o programa oferece o acompanhamento te-rapêutico exercido por meio dos estagiários de psicologia, que osacompanham em sua circulação pela cidade e em outras atividades,visando a restituição das capacidades tolhidas durante a internaçãoe, simultaneamente, a ampliação dos laços sociais. Belo horizonte possui Centros de Saúde para garantir aosusuários de saúde mental; Centros de referência em Saúde Mental,para atendimento aos doentes nos momentos de crise; Centros deConvivência, onde são disponibilizados oficinas de arte e artesanato;e residências terapêuticas, que funcionam como pensões e coope-rativas de trabalho. É importante ressaltar que a intersetorialidade do PAi-PJconseguiu remover os discursos pautados pela “defesa social”, ad-vindos do positivismo científico, para cessar os isolamentos portempo indeterminado de indivíduos considerados “perigosos” e “anor-mais”. Apenas 2% das pessoas liberadas tornaram a reincidir, prati-cando infrações de menor gravidade e contra o patrimônio. O interesse do paciente passou a ser considerado, na medidaem que passou a ser ouvido e a sustentar a sua singularidade, sem quefosse excluído do meio social. Para Barros-Brisset (2010, p. 123 e 125):

Estourou a bolha da presunção da periculosidade que o enjaulavae caiu no mundo. Movimentou a rede, saiu do isolamento, da

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invisibilidade e do silêncio e exigiu de juízes, de promotores, detrabalhadores de saúde, da justiça, do Ministério Público, dos fa-miliares e da sociedade que déssemos nossa resposta diante dainevitabilidade da convivência com ele.[...] O que realmente se tornou inovador foi a possibilidade inéditade colocar no centro dessa rede de atenção e cuidados o sujeito,acompanhando sua trajetória e secretariando-o de perto comomais um recurso do qual ele pode se servir e ao qual pode se co-nectar para se desembolar dos embaraços que a sua singular di-ferença pode lhe apresentar nas suas relações de convivência.

Em dez anos de atendimento, foram acompanhados 1.058processos criminais, acolhendo-se 755 pessoas e desligadas 489 delas,enquanto 266 casos continuavam em acompanhamento. 228 pessoasencontravam-se em liberdade realizando tratamento e residem junto aosfamiliares ou em residências terapêuticas do município. Outra experiência positiva na área de saúde mental é o Pro-grama de Atenção integral ao Louco infrator (PAiLi), desenvolvido poruma parceria coordenada e idealizada pelo Promotor de Justiça ha-roldo Caetano da Silva (2009), tendo sido premiado pelo instituto in-novare, na Vi edição, no ano de 2009, na categoria Ministério Público. Após o fechamento do “hospital Psiquiátrico ProfessorAdauto Botelho”, o Estado tentou, por duas vezes, a construção deum hospital de custódia e tratamento psiquiátrico em Goiás. No en-tanto, a articulação promovida pelo Ministério Público, o Fórum Goianode Saúde Mental e o Conselho regional de Psicologia conseguiu im-pedir essa construção, viabilizando a criação do programa estadual.O resultado do censo clínico, jurídico e social, realizado sob a coorde-nação da psicóloga Fernanda Otoni, também teve relevante papel naconstrução dessa nova política de assistência ao louco infrator. Apresentado o projeto em julho de 2004 e implementadoem 26 de outubro de 2006 no âmbito da Secretaria de Estado daSaúde de Goiás, as pessoas com transtorno mental passaram a re-ceber a atenção do Sistema Único de Saúde. Explica haroldo Cae-tano da Silva (2010, p. 114, grifos da reprodução):

Com autonomia para ministrar o tratamento nesse modelo inovador,os médicos e as equipes psicossociais das unidades de serviçosabertos e das clínicas conveniadas ao SUS determinam e colocam

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em prática a melhor terapêutica, acompanhados de perto pelos pro-fissionais do PAiLi, cuja atuação é marcada pelo contato contínuocom os familiares dos pacientes e pela interlocução e integraçãocom todo o sistema de saúde mental, especialmente os Centros deApoio Psicossocial (CAPS) e as residências terapêuticas.O processo de execução da medida de segurança continua juris-dicionalizado, mas não será o juiz quem determinará o tratamentoa ser dispensado ao paciente, pois é o médico o profissional ha-bilitado a estabelecer a necessidade desta ou daquela terapia.Aliás, é a Lei 10.216 que exige laudo médico circunstanciadocomo pressuposto elementar para a internação psiquiátrica.a proteção jurisdicional é garantia constitucional do cidadãona esfera da execução penal e, na presidência do processoexecutivo, o juiz acompanhará o tratamento dispensado aopaciente e decidirá sobre eventuais excessos ou desvios, atéfinal extinção da medida de segurança.

Assim como o PAi-PJ, o programa enfrentou dificuldades nasua implantação, destacando-se a resistência de integrantes do sis-tema de justiça criminal quanto à aplicação da Lei n. 10.216/2001 àsmedidas de segurança, assim como a relutância de algumas clínicaspsiquiátricas em recepcionar as pessoas atendidas pelo PAiLi comopacientes comuns. Consoante a Coordenação do PAiLi, 340 pessoas já foramacolhidas pelo programa desde a sua implantação. Desse total, 57 jáforam desligadas pela extinção da medida. Atualmente, 255 recebematendimento, 198 acompanhamento ambulatorial, 27 estão internadase 35 cumprem as medidas de segurança em liberdade condicional. A autonomia da equipe de saúde é fundamental para o pro-grama. Ainda que o juiz tenha determinado a modalidade de trata-mento na sentença, a equipe elabora a proposta terapêutica adequadapara o paciente e decide o melhor espaço para a sua permanência,atuando em contato contínuo com os familiares da pessoa. Como ponto positivo do programa, o PAiLi extirpou comple-tamente o tratamento, visando a pretensa cessação de periculosi-dade da pessoa com transtorno mental. Desse modo, não mais serealiza laudo de exame pericial de cessação de periculosidade, ape-nas o laudo de avaliação psicossocial, em que se analisam as con-dições pessoais para a sua inserção social. Portanto, o maior objetivo

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do programa é o tratamento, o acompanhamento e a integração dopaciente e de sua família à sociedade. Além desses programas, alguns estados adotaram o bene-fício da alta progressiva, também denominada de desinternação pro-gressiva, concedido para permitir a inserção gradativa das pessoasna comunidade, na família e no convívio social. Destaca-se, nessa prática, o “instituto Psiquiátrico ForenseDoutor Maurício Cardoso”, situado em Porto Alegre, que, apesar dacaracterística predial asilar, adota esse procedimento desde 1966,quando dois pacientes obtiveram a permissão da direção da unidadepara circularem na área externa. Mediante solicitação das equipes psicossociais, as pessoasbeneficiadas saem esporadicamente da unidade, por breves ou longosperíodos. Assim, os internos passeiam, realizam visitas programadas,passam os finais de semana com seus familiares e, progressivamente,aumentam os períodos de permanência no ambiente externo. A alta progressiva ocorre durante um período aproximadode um ano, instante em que a pessoa com transtorno mental se apro-xima de seus familiares e da comunidade. inocorrendo qualquer mo-tivo que justifique a sua internação e demonstrada a efetiva inserçãodo paciente na sociedade, este é desinternado. Essa medida é considerada uma ferramenta eficaz para ainserção social da pessoa com transtorno mental, pois incrementa,a cada período fora da unidade, o senso de responsabilidade do pa-ciente, tornando possível a realização de tarefas do dia a dia, ante-riormente extirpadas de sua rotina em face dos efeitos dacronificação e da coisificação a que são submetidos durante o cum-primento das medidas de segurança.

novaS ProPoStaS de deSinStitucionalização:atuação do cnPcP e do cnj

Além dos programas elencados, medidas adotadas peloConselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contribuíram para o

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desenvolvimento da política de desinstitucionalização no Brasil. Fruto do Seminário Nacional para a reorientação dos hos-pitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, promovido conjunta-mente pelo Departamento Penitenciário Nacional e pela CoordenaçãoNacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, o CNPCP editoua resolução n. 5/2004, a qual dispôs a respeito das diretrizes para ocumprimento das medidas de segurança, desencadeando a elabo-ração do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. A citada resolução estabeleceu que o tratamento das pes-soas submetidas à medida de segurança deveria ter por fim a “rein-serção social do paciente em seu meio, tendo como princípiosnorteadores o respeito aos direitos humanos, a desospitalização e asuperação do modelo tutelar” (artigo 1°). Dispôs, também, que os pacientes deveriam ser submetidosa um programa individualizado de tratamento, concebido por equipemultidisciplinar, e que somente seria possível a conversão do trata-mento ambulatorial em internação quando fundamentado em crité-rios clínicos. Em seu artigo 12, previu que a medida de segurançadeveria ser aplicada de forma progressiva, por meio de saídas tera-pêuticas, evoluindo para regime de hospital-dia ou hospital-noite eoutros serviços de atenção diária. A desinternação progressiva, a inserção social do pacientecomo finalidade do tratamento e a preparação dos familiares e co-munidade para o retorno do interno também foram previstas naresolução. De igual modo, externou a preocupação com os pacientesinternados por longo período, determinando a sua inclusão em polí-tica específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida,e que fossem beneficiados com bolsas de incentivo à desinternaçãoe inseridos em serviços residenciais terapêuticos, conforme estabe-lecia o artigo 5°, da Lei n. 10.216/2001. No dia 30 de julho de 2010, o CNPCP editou a resoluçãon. 4/2010, a qual dispôs sobre as diretrizes nacionais de atenção aospacientes judiciários e execução da medida de segurança. Estabeleceu como princípio norteador da execução das me-didas de segurança a política antimanicomial, devendo ser cumpridasem serviços substitutivos em meio aberto, respeitando-se a aborda-gem intersetorial, buscando o diálogo e a parceria entre as diversas

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políticas públicas e a sociedade civil; o acompanhamento psicosso-cial contínuo, oferecendo os recursos necessários para a promoçãodo tratamento em saúde mental e o estabelecimento dos vínculossociais possíveis visando a inserção do paciente; a individualizaçãoda medida e o fortalecimento das habilidades e capacidades do su-jeito no sentido de se sentir responsável pelos seus atos ou omis-sões, viabilizando a resignificação de sua história. Demonstrou novamente a preocupação com os pacientesinternados há longo tempo, em que se configurava a dependênciainstitucional em face de seu quadro clínico ou de ausência de suportesocial, que deveriam ser incluídos em “política específica de alta pla-nejada e reabilitação psicossocial assistida”. Previu, por último, o prazo de dez anos para que o PoderExecutivo promovesse a substituição do modelo manicomial para oantimanicomial. Aliadas a essas resoluções, cumprindo o disposto na Leide Execuções Penais, após audiência pública, colheita de sugestõesde diversos integrantes do sistema de justiça criminal e amplo de-bate, o CNPCP elaborou a minuta do decreto de indulto, encami-nhando-o para o Ministro de Estado da Justiça Luiz Paulo TelesFerreira Barreto, em novembro de 2008, para a análise e possíveledição do ato normativo pelo Presidente da república Luiz inácioLula da Silva. Dentre as inovações apresentadas pela Comissão encarre-gada de elaborar a proposta, aprovadas pelos membros do Conselhoem 21 de outubro de 2008, destacou-se a que previa a possibilidadede concessão de indulto às pessoas submetidas à medida de segu-rança que tinham suportado privação da liberdade, internação ou tra-tamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da penacominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou, noscasos de substituição, por período igual ao tempo da condenação. Após a aprovação da minuta pelo Ministro de Estado da Jus-tiça, a Presidência da república editou o decreto n. 6.706, em 22 dedezembro de 2008, o qual previa:

Art. 1°. É concedido indulto:[...]Viii - aos submetidos à medida de segurança que, até 25 de dezembro

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de 2008, tenham suportado privação da liberdade, internação outratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximoda pena cominada à infração penal correspondente à conduta pra-ticada ou, nos casos de substituição prevista no art. 183 da Lei n.7.210, de 1984, por período igual ao tempo da condenação, man-tido o direito de assistência nos termos do art. 196 da Constituição.

Sem dúvida alguma, após a Lei n. 10.216/2001, o decretoreferido representou um marco significativo na política antimanicomialbrasileira, estabelecendo-se prazo máximo de internação compatívelcom a pena máxima privativa de liberdade cominada à infração penalou, se substituída, pela sanção efetivamente aplicada na sentençacondenatória. Apesar de algumas críticas feitas em relação à ampliaçãodo instituto do indulto para os pacientes judiciários, os decretos se-guintes mantiveram essa previsão, desacolhendo, no entanto, a pro-posta do Conselho no sentido de reduzir o prazo máximo deinternação para a pena mínima cominada em abstrato. questionada a possibilidade de concessão de indulto aossubmetidos à medida de segurança, o Supremo Tribunal Federalnegou seguimento a recurso extraordinário e provimento à ação di-reta de inconstitucionalidade, assentando que a medida de segu-rança é uma pena, por encerrar uma restrição à liberdade da pessoa,sendo possível a concessão do indulto, nos termos da competênciareservada outorgada ao Presidente da república pelo legisladorconstituinte (artigo 84, inciso Xii, da Constituição da república):

AGrAVO rEGiMENTAL NO rECUrSO EXTrAOrDiNÁriO.PENAL. POSSiBiLiDADE DE CONCESSÃO DE iNDULTO AOSSUBMETiDOS À MEDiDA DE SEGUrANÇA. DECrETO N.6.706/08. PrECEDENTES. AGrAVO rEGiMENTAL AO qUALSE NEGA PrOViMENTO. (STF – 1. Turma – Agr rE 612862 -rel. cármen lúcia – j. 01.02.2011)

AÇÃO DirETA DE iNCONSTiTUCiONALiDADE. DECrETO FE-DErAL. iNDULTO. LiMiTES. CONDENADOS PELOS CriMESPrEViSTOS NO iNCiSO XLiii DO ArTiGO 5º DA CONSTiTUi-ÇÃO FEDErAL. iMPOSSiBiLiDADE. iNTErPrETAÇÃO CON-FOrME. rEFErENDO DE MEDiDA LiMiNAr DEFEriDA. 1. A

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concessão de indulto aos condenados a penas privativas de liber-dade insere-se no exercício do poder discricionário do Presidenteda república, limitado à vedação prevista no inciso XLiii do artigo5º da Carta da república. A outorga do benefício, precedido dascautelas devidas, não pode ser obstado por hipotética alegaçãode ameaça à segurança social, que tem como parâmetro simples-mente o montante da pena aplicada. 2. revela-se inconstitucionala possibilidade de que o indulto seja concedido aos condenadospor crimes hediondos, de tortura, terrorismo ou tráfico ilícito de en-torpecentes e drogas afins, independentemente do lapso temporalda condenação. interpretação conforme a Constituição dada ao§ 2º do artigo 7º do Decreto 4495/02 para fixar os limites de suaaplicação, assegurando-se legitimidade à indulgencia principis.referendada a cautelar deferida pelo Ministro Vice-Presidente noperíodo de férias forenses. (STF – Tribunal Pleno – MC na ADi2795 – rel. Maurício corrêa – j. 08.05.2003)

Conclui-se que, após alguns embates jurídicos, assentou-se najurisprudência a constitucionalidade do dispositivo, que outorga ao Pre-sidente da república o poder discricionário de conceder o indulto paraas pessoas com transtorno mental submetidas à medida de segurança. Logo após a edição do referido decreto, editorial do institutoBrasileiro de Ciências Criminais, com o título “O novo decreto de in-dulto e comutação”, publicado no Boletim iBCCriM, em fevereiro de2009, elogiou a proposta apresentada pelo CNPCP, afirmando:

A segunda - quiçá mais importante - das inovações do Decreto foia concessão expressa de seus benefícios aos pacientes de me-didas de segurança, quando a respectiva execução extrapolar olimite temporal máximo cominado ao ilícito que cometeram. Desdehá muito se bate a doutrina brasileira contra essa que, em algunscasos, se torna uma versão anômala de sanção perpétua paradoentes mentais, em ofensa à formatação constitucional de nossodireito. Muitas vezes pela precariedade do atendimento médicoque mal recebem do próprio Estado, ficam muitos desses pacien-tes definitivamente escanteados e esquecidos nos insalubres eentristecidos - às vezes também pretensos - estabelecimentos psi-quiátricos, sob o título sempre muito questionável da persistênciade uma certa periculosidade que, a rigor, sequer constitui um con-ceito técnico minimamente exato. Pior ainda, sua condição médicaera, precisamente, o sustento para impor-lhes uma sanção várias

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vezes mais rigorosa do que aquela que o mesmo sistema dedicaaos agentes imputáveis, pervertendo-se gravemente a própriarazão do instituto da culpabilidade.Ainda mais que isso, na base do novo texto temos uma magníficanovidade no Direito brasileiro: já não cabe mais questionar quetambém as medidas de segurança submetem-se, como não po-deria deixar de ser, ao sistema constitucional de garantias indivi-duais reservadas às sanções penais, de que, a propósito,constituem nada mais que modalidade específica, obedientes,portanto, a uma mesma arquitetura normativa. Ou seja, tambémnas medidas de segurança - quiçá fosse o caso de dizer: sobre-tudo nas medidas de segurança - são reclamados os rigores dochamado princípio da legalidade como instrumento de cidadania,de sorte que não se possa mais, de vez por todas, cogitar de ga-rantias penais ou processuais que às medidas de segurança nãose estendam e apliquem. Eis aí, mais que simples regra, um au-têntico ensinamento a ser observado pelo sistema de justiça cri-minal, desde os legisladores, passando pelos julgadores e atépelos executores que operam seu cotidiano. Não cabem exce-ções: os pacientes de medida de segurança têm, rigorosamente,todos os direitos e garantias que o sistema reserva aos agentesde infrações penais, não se admitindo, em nenhuma hipótese, so-luções a eles mais gravosas. (iBCCriM, 2009, p. 1)

Na mesma publicação, ao discorrer sobre o referido decretopresidencial, o Professor Eduardo reale Ferrari (2009, p. 5) lecionou:

O medo e a ignorância até então ven ciam a esperança. Paranossa surpresa, entretanto, uma luz no final do túnel efetivamentesurgiu. Movidos por uma relevantíssima iniciativa dos membrosdo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária -CNPCP - elaborou-se uma Minuta de Decreto de Natal que final-mente dispunha sobre o tempo máximo de duração da medida desegurança criminal.Sob a liderança de seu presidente, professor Sérgio SalomãoShecaira, os Conselheiros do Conselho Nacional de Política Cri-minal e Penitenciária sugeriram precisa redação indultando, apósdeterminado tempo, àqueles que cumpriram a medida de segu-rança criminal, conferindo exemplo a todo o país no sentido deque os ideais de esperança devem ser sempre perseguidos, sesobrepondo ao medo.

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Vale ressaltar que, durante a 385ª reunião ordinária doCNPCP, houve a apresentação de proposta de alteração do CódigoPenal e da Lei de Execução Penal, visando a modificação dos dispo-sitivos que tratam da pessoa com transtorno mental e em conflito pelalei, encaminhada pelo Secretário de Assuntos Legislativos do Ministérioda Justiça e pelo Coordenador-Geral de Estudos e Pesquisas do De-partamento de Elaboração Normativa dessa Secretaria. O Conselho opinou favoravelmente à proposta, a qual con-tém, dentre outras normas, a adequação dos dispositivos à Lei n.10.216/2001, e, em especial, a previsão de tempo máximo de sub-missão da pessoa à intervenção penal, bem como a obrigatorie-dade de que o tratamento tenha a finalidade permanente deinserção e inclusão social, bem como a submissão a projeto tera-pêutico individualizado, elaborado por equipe multiprofissional deavaliação da rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único deSaúde. Conforme a proposta:

art. 99-K. A intervenção penal não ultrapassará o tempo previstopara a pena mínima abstratamente cominada ao delito. Parágrafo único. Atingido o prazo do caput, o juiz declarará ces-sada a intervenção penal.

A alteração ora pretendida representa a correção dos cami-nhos trilhados pelo Conselho desde a proposta de minuta de decretode indulto de 2008, que previu a possibilidade de aplicação do insti-tuto do indulto às pessoas com transtorno mental, e que, nos anosseguintes, reiteradamente propôs que o prazo máximo de interven-ção penal não fosse de modo algum superior à pena mínima abstra-tamente cominada ao delito. Além da atuação do CNPCP, impõe-se destacar, ainda, as me-didas adotadas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Por meio da resolução n. 96/2009, o CNJ estabeleceu queos Tribunais de Justiça deveriam instalar grupos de monitoramentoe fiscalização do sistema carcerário, prevendo ainda a realizaçãode inspeção nos estabelecimentos prisionais. Sob a fiscalização doDepartamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carce-rário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, osTribunais de Justiça de catorze estados realizarão mutirões carcerários

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no próximo biênio, sendo incluída nessa fiscalização a revisão dasmedidas de segurança em execução, contando com a colaboraçãodas demais instituições integrantes do sistema de justiça criminal. Essa constante revisão dos feitos judiciais e reavaliação dasprisões provisórias e definitivas, bem como das medidas de segu-rança, tem acarretado resultados significativos no âmbito da execu-ção penal, concedendo-se aos presos os benefícios da progressãode regime, indulto e comutação de penas, bem como a desinstitu-cionalização dos pacientes judiciários. Por sua vez, a resolução n. 113, de 20 de abril de 2010, es-tabeleceu que:

art. 17. O juiz competente para a execução da medida de segu-rança, sempre que possível buscará implementar políticas anti-manicomiais, conforme sistemática da Lei n. 10.216, de 06 de abrilde 2001.

Denota-se, portanto, que a atuação dos referidos Conselhosreforçam os preceitos contidos na Lei n. 10.216/2001, buscando ahumanização da execução das medidas de segurança, respeitando-se o princípio da dignidade da pessoa humana e conferindo cidada-nia às pessoas enquanto sujeitos de direito.

concluSõeS

A medida de segurança, tal como positivada na lei e apli-cada pelos juízes – porque orientada pelos postulados de “defesasocial” e “periculosidade” –, não tem correspondido aos pressupostosconquistados pela reforma psiquiátrica e também ao modelo de jus-tiça penal que se orienta pelo mandamento político-criminal da ne-cessidade e da subsidiariedade da intervenção penal. Nas palavrasde Maria João Antunes (2003, p. 360):

É pertinente interrogarmo-nos sobre a subsistência de um direitopenal de medidas de segurança, tanto mais quanto é certo que

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em relação ao internamento de agente inimputável em virtude deanomalia psíquica avultam mais as dúvidas do que as certezas emrelação àquela que é a noção basilar deste direito – a perigosidadecriminal do agente. Às certezas da psiquiatria biológica e positivistapassada, no que diz respeito à associação entre anomalia psíquicae crime, certezas que facilitaram a reintegração do agente portadorde anomalia psíquica nas fronteiras do direito penal, por via da im-posição da medida de segurança de internamento, contrapõem-se hoje às dúvidas de uma psiquiatria que se assume comcapacidade apenas para afirmar a necessidade de tratamento doagente declarado inimputável em razão de anomalia psíquica.

Uma reforma legal é absolutamente necessária para queseja abolido ou totalmente remodelado o instituto da medida de se-gurança no ordenamento penal brasileiro. Mas enquanto a reformanão vem, o que se espera, a exemplo das experiências do PAi-PJ,PAiLi e as propostas de desinstitucionalização do CNPCP e do CNJ,é que as instâncias penais direcionem sua atuação de modo a garantire promover a proteção e os direitos das pessoas portadoras de trans-tornos mentais, colaborando para um modelo de justiça penal e desociedade mais humano e inclusivo, traçando para os “loucos infra-tores” caminhos distantes da punição e da violência institucional.

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