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SOCIOLOGIA - 2º ANO - Apostila nº 1 - Prof. Renato Fialho Jr.- Página 1 1. Trabalho, Sociedade e Capitalismo Manifesto do Partido Comunista Karl Marx e Friedrich Engels Um espectro ronda a Europa - o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha. Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista? Duas conclusões decorrem desses fatos: 1) O comunismo já é reconhecido como força por todas as potências da Europa; 2) É Tempo de os comunistas exporem, à face do mundo inteiro, seu modo de ver, seus fins e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo. Com este fim, reuniram-se, em Londres, comunistas de várias nacionalidades e redigiram o manifesto seguinte, que será publicado em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês. BURGUESES E PROLETÁRIOS A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta. Nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, gradações especiais. A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às que existiram no passado. Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado. Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses livres das primeiras cidades; desta população municipal, saíram os primeiros elementos da burguesia. A descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia em assenso um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral, das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até então, ao comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição. A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina. Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a procura de mercadorias aumentava sempre. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos. A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América: O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação e dos meios de comunicação por terra. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a extensão da indústria; e, à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e relegando a segundo plano as classes legadas pela Idade Média. Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e de troca. Cada etapa da evolução percorrida, pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria na comuna; aqui, república urbana independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.

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SOCIOLOGIA - 2º ANO - Apostila nº 1 - Prof. Renato Fialho Jr.- Página 1

1. Trabalho, Sociedade e Capitalismo

Manifesto do Partido Comunista Karl Marx e Friedrich Engels Um espectro ronda a Europa - o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha.

Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista?

Duas conclusões decorrem desses fatos:

1) O comunismo já é reconhecido como força por todas as potências da Europa;

2) É Tempo de os comunistas exporem, à face do mundo inteiro, seu modo de ver, seus fins e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo.

Com este fim, reuniram-se, em Londres, comunistas de várias nacionalidades e redigiram o manifesto seguinte, que será publicado em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês.

BURGUESES E PROLETÁRIOS

A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta.

Nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, gradações especiais.

A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às que existiram no passado.

Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.

Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses livres das primeiras cidades; desta população municipal, saíram os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia em assenso um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral, das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até então, ao comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.

A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina.

Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a procura de mercadorias aumentava sempre. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América: O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação e dos meios de comunicação por terra. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a extensão da indústria; e, à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e relegando a segundo plano as classes legadas pela Idade Média.

Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e de troca.

Cada etapa da evolução percorrida, pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria na comuna; aqui, república urbana independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.

SOCIOLOGIA - 2º ANO - Apostila nº 1 - Prof. Renato Fialho Jr.- Página 2

A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revolucionário.

Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores naturais" ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do "pagamento à vista". Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta.

Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.

A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados.

A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.

A burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade Média, tão admirada pela reação, encontra seu complemento natural na ociosidade mais completa. Foi a primeira a provar o que pode realizar a atividade humana: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas.

A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, como isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção constituía, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.

Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda, parte.

Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indústria sua base nacional.

As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do globo.

Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual.

As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal.

Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.

A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população do embrutecimento da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subordinou os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente.

A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população.

Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.

A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da . química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo

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elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto - que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?

Vemos pois: os meios de produção e de troca, sobre cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Em um certo grau do desenvolvimento desses meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava, a .organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, o regime feudal de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Entravavam a produção em lugar de impulsioná-la. Transformaram-se em outras tantas cadeias que era preciso despedaçar; foram despedaçadas.

Em seu lugar, estabeleceu-se a livre concorrência, com uma organização social e política correspondente, com a supremacia econômica e política da classe burguesa.

Assistimos hoje a um processo semelhante. As relações burguesas de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências infernais que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção e de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já desenvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se reconduzida a um estado de barbaria momentânea; dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhe todos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tornaram-se por demais poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes que as forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipita na desordem a sociedade inteira, ameaçando a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. De que maneira consegue a burguesia vencer essas crises?

De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises

mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las.

As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo, voltam-se hoje contra a própria burguesia. A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os proletários. Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só podem viver se encontrarem trabalho, e que só encontram trabalho na medida em que este aumenta o capital.

Esses operários, constrangidos a vender-se diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado. O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho, despojando o trabalho do operário de seu caráter autônomo, tiram-lhe todo atrativo. O produtor passa a um simples apêndice da máquina e só se requer dele a operação mais simples, mais monótona, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua existência. Ora, o preço do trabalho, como de toda mercadoria, é igual ao custo de sua produção. Portanto, à medida que aumenta o caráter enfadonho do trabalho, decrescem os salários. Mais ainda, a quantidade de trabalho cresce com o desenvolvimento do maquinismo e da divisão do trabalho, quer pelo prolongamento das horas de labor, quer pelo aumento do trabalho exigido em um tempo determinado, pela aceleração do movimento das máquinas, etc. A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do industrial capitalista. Massas de operários, amontoados na fábrica, são organizadas militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo. Quanto menos o trabalho exige habilidade e força, isto é, quanto mais a indústria moderna progride, tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres e crianças. As diferenças de idade e de sexo não têm mais importância social para a classe operária. Não há senão instrumentos de trabalho, cujo preço varia segundo a idade e o sexo. Depois de sofrer a exploração do fabricante e de receber seu salário em dinheiro, o operário torna-se presa de outros membros da burguesia, do proprietário, do varejista, do usurário, etc. As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenos comerciantes e pessoas que possuem rendas, artesãos e camponeses, caem nas fileiras do proletariado: uns porque seus pequenos capitais, não lhes permitindo empregar os processos da grande indústria, sucumbiram na concorrência com os grandes capitalistas; outros porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de

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produção. Assim, o proletariado é recrutado em todas as classes da população. O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Logo que nasce começa sua luta contra a burguesia. A princípio, empenham-se na luta operários isolados, mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente operários do mesmo ramo de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente. Não se limitam a atacar as relações burguesas de produção, atacam os instrumentos de produção: destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e esforçam-se para reconquistar a posição perdida do artesão da Idade Média. Nessa fase, constitui o proletariado massa disseminada por todo o país e dispersa pela concorrência. Se, por vezes, os operários se unem para agir em massa compacta, isto não é ainda o resultado de sua própria união, mas da união da burguesia que, para atingir seus próprios fins políticos, é levada a por em movimento todo o proletariado, o que ainda pode fazer provisoriamente. Durante essa fase, os proletários não combatem ainda seus próprios inimigos, mas os inimigos de seus inimigos, isto é, os restos da monarquia absoluta, os proprietários territoriais, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses. Todo o movimento histórico está desse modo concentrado nas mães da burguesia e qualquer vitória alcançada nessas condições é uma vitória burguesa. Ora, a indústria, desenvolvendo-se, não somente aumenta o número dos proletários, mas concentra-os em massas cada vez mais consideráveis; sua força cresce e eles adquirem maior consciência dela. Os interesses, as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais, à medida que a máquina extingue toda diferença do trabalho e quase por toda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo. Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises comerciais que disso resultam, os salários se tornam cada vez mais instáveis; o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada vez mais precária; os choques individuais entre o operário e o burguês tomam cada vez mais o caráter de choques entre duas classes. Os operários começam a formar uniões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários; chegam a fundar associações permanentes a fim de se prepararem, na previsão daqueles choques eventuais. Aqui e ali a luta se transforma em motim. Os operários triunfam às vezes; mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre operários de localidades diferentes. Ora, basta esse contato para concentrar as numerosas lutas locais, que têm o mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, em uma luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. E a união que os habitantes das cidades da Idade Média levavam séculos a realizar, com seus caminhos vicinais, os proletários modernos realizam em alguns anos por meio das vias férreas. A organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela

concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais firme, mais poderosa.

Aproveita-se das divisões intestinas da burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra.

Em geral, os choques que se produzem na velha sociedade favorecem de diversos modos o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em guerra perpétua; primeiro, contra a aristocracia; depois, contra as frações da própria burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-se forçada a apelar para o proletariado, reclamar seu concurso e arrastá-lo assim para o movimento político, de modo que a burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política, isto é, armas contra ela própria. Demais, como já vimos, frações inteiras da classe dominante, em consequência do desenvolvimento da indústria são precipitadas no proletariado, ou ameaçadas, pelo menos, em suas condições de existência. Também elas trazem ao proletariado numerosos elementos de educação.

Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da classe dominante, de toda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e agudo, que uma pequena fração da classe dominante se desliga desta, ligando-se à classe , revolucionária, a classe que traz em si o futuro. Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou-se para a burguesia, em nossos dias, uma parte da burguesia passa-se para o proletariado, especialmente a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto. De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado pelo contrário, é seu produto mais autêntico. As classes médias - pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses - combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como classes médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando são revolucionárias é em consequência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado.

O lumpen-proletariado, esse produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade, pode, às vezes, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se a reação.

Nas condições de existência do proletariado já estão destruídas as da velha sociedade. O proletário não tem propriedade; suas relações com a mulher e os filhos nada têm de comum com as relações familiares burguesas. O

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trabalho industrial moderno, a sujeição do operário pelo capital, tanto na Inglaterra como na França, na América como na Alemanha, despoja o proletário de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião são para ele meros preconceitos burgueses, atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses.

Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação adquirida submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes.

Todos os movimentos históricos têm sido, até hoje, movimentos de minorias ou em proveito de minorias.

O movimento proletário é o movimento independente da imensa maioria em proveito da imensa maioria.

O proletariado, a camada inferior da sociedade atual, não pode erguer-se, por-se de pé, sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial.

A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja na essência uma luta nacional, reverte-se contudo dessa forma nos primeiros tempos. É natural que o proletariado de cada país deva, antes de tudo, liquidar sua própria burguesia.

Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que lavra na sociedade atual, até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia.

Todas as sociedades anteriores, como vimos, se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe é preciso poder garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência de escravo: O servo, em plena servidão, conseguia tornar-se membro da comuna, da

mesma forma que o pequeno burguês, sob o jugo do absolutismo feudal, elevava-se à categoria de burguês. O operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais abaixo das condições de sua própria classe. O trabalhador cai no pauperismo, e este cresce ainda mais rapidamente que a população e a riqueza. É, pois, evidente que a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante; e de impor à sociedade, como lei suprema, as condições de existência de sua classe. Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo, mesmo no quadro de sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo cair numa tal situação, que deve nutri-lo em lugar de se fazer nutrir por ele. A sociedade não pode mais existir sob sua dominação, o que quer dizer que a existência da burguesia é, doravante, incompatível com a da sociedade.

A condição essencial da existência e da supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos dos particulares, a formação e o crescimento do capital a condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este se baseia exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e inconsciente, substitui o isolamento dos operários, resultante de sua competição, por sua união revolucionária mediante a associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria socava o terreno em que a burguesia assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.

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NOTAS:

1. Este texto foi extraído do "Manifesto do Partido Comunista", parte 1 de 4.

2. Este texto foi revisado e corrigido pelo professor segundo as normas atuais da língua.

FONTE: Extraído de:

http://sociologial.dominiotemporario.com/doc/O_MANIFESTO_COMUNISTA.pdf

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TOYOTISMO E NEOLIBERALISMO: Novas formas de controle para uma sociedade-empresa

INTRODUÇÃO Embora o pensamento de Foucault tenha se voltado para a técnica principal das sociedades de disciplina, o confinamento, “ele é um dos primeiros a dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás” (DELEUZE, 1992, p. 215-216). Essa observação é feita por Gilles Deleuze, no texto Post Scriptum sobre as sociedades de controle. Em sua reflexão, Deleuze aponta mudanças na sociedade e no capitalismo contemporâneos, apresentando exemplos como a passagem da fábrica para a empresa. A atual gestão da produção e as novas formas de controle do trabalho, associadas ao modelo toyotista, permitem a dispersão da produção e um aparente afrouxamento na disciplina experimentada no modelo taylorista/fordista. A empresa pode hoje prescindir dos inspetores da qualidade, reduzir seus supervisores, dispersar a produção subcontratando e terceirizando processos importantes, chegando mesmo a valer-se de várias formas de trabalho à distância e doméstico, reduzindo seus custos. Levando em consideração que tal forma de gestão ainda demonstrou ser mais produtiva, pois deu novo fôlego ao capital a partir da década de 1970, respondendo à crise do binômio taylorista/fordista, podemos supor que o controle tornou-se mais eficiente, apesar do que possa parecer à primeira vista. O toyotismo e as atuais tecnologias de vigilância do trabalho configuram uma dimensão do que podemos chamar de sociedades de controle. É possível fazer um paralelo com esse sistema de gestão da produção e o atual sistema de gestão da vida, biopolítica nos termos de Foucault. Toyotismo de um lado e, de outro, neoliberalismo – que também respondeu à crise do modelo keynesiano – como fenômenos de uma sociedade de controle. A análise das tecnologias de controle nesse caso não deve ser limitada aos seus aparatos técnicos, como câmeras e softwares, mas focar também tecnologias discursivas e os mecanismos subjetivos de controle do trabalho e social. Como pode ocorrer tal mobilização para o mercado e o trabalho, sem a necessidade de qualquer regime ditatorial declarado na fábrica ou no Estado? Nas palavras de Dr. Benway, personagem do livro de Burroughs: “um estado policial em pleno funcionamento não precisa de polícia” (BURROUGHS, 1992, p. 31-32).

SOBRE O TOYOTISMO Os conceitos que norteiam a organização da produção atualmente são inspirados em ferramentas e métodos amplamente associados ao modelo japonês de produção. “Dentre experiências do capital que se diferenciavam do binômio taylorismo/fordismo, pode-se dizer que o ‘toyotismo’ ou o ‘modelo japonês’ encontrou maior repercussão”(ANTUNES, 2003, p. 53). Não é possível recuperar aqui os detalhes do método, as fases de implantação do mesmo na empresa Toyota ou sua disseminação também no ocidente. Nos importa apenas destacar no que o toyotismo difere de formas anteriores de gestão e organização da produção e seus princípios gerais. Para o sociólogo Ricardo Antunes, o toyotismo difere do fordismo basicamente pela produção muito vinculada à demanda, além de variada e bastante heterogênea; fundamenta-se no trabalho operário em equipe, com multivariedade de funções e flexível, onde o trabalhador pode operar várias máquinas; tem como princípio o just in time, o melhor aproveitamento possível do tempo de produção e funciona segundo o sistema de kanban, placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque, que deve ser mínimo. O processo produtivo é horizontalizado, transferindo muitas atividades para terceiros – enquanto na fábrica fordista cerca de 75% era produzido no seu interior, na fábrica toyotista esse número chega a 25% e tende a reduzir-se ainda mais. Além disso, organiza grupos de trabalhadores que são instigados a discutir seu desempenho “com vistas a melhorar a produtividade das empresas, convertendo-se num importante instrumento para o capital apropriar-se do savoir faire intelectual e cognitivo do trabalho, que o fordismo desprezava” (ANTUNES, 2003, p. 55). Pela pequena descrição feita até aqui já é possível compreender o grau de controle necessário para operar respondendo à demanda do mercado, produzindo o necessário com o maior aproveitamento possível da mão de obra, assim como controlar um estoque mínimo, onde nada falte, mas nada sobre, visando não antecipar capital. E, no lugar do trabalhador especializado, operando uma única máquina, sob o olhar de um supervisor com um cronômetro, imagem clássica do método de Taylor, teremos no toyotismo um trabalhador queopera várias máquinas ou executa diferentes funções, às

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quais escapariam à gerência coordenar e, além disso, essa gerência ainda foi reduzida; as atividades podem ser feitas por equipes ou times de trabalho muitas vezes com rotatividade das competências. Além disso, várias empresas executam pequenas etapas do processo de fabricação de determinado produto ou fornecem peças que precisam seguir a risca as especificações do produto final, mas também um exército de trabalhadores pode trabalhar à distância, muitas vezes em suas casas, apresentando desempenho elevadíssimo, sem que o ‘chefe’ esteja sentado na mesa de trás. E aqui vale ressaltar um dos princípios norteadores da gestão atual, que é a busca pela redução de efetivos. O planejamento e controle da produção busca chegar a um nível que permita dividir determinada tarefa, distribuindo-a entre os trabalhadores, de modo a eliminar o posto daquele que antes a executava. A constante coleta e interpretação de dados permitem entender um fluxo de trabalho e traduzí-lo em um software ou maquinário que passe a executar a tarefa e reduza o trabalho vivo.

“[...] não é tanto para economizar trabalho, mas, mais diretamente, para eliminar trabalhadores. Por exemplo, se 33% dos ‘movimentos desperdiçados’ são eliminados em três trabalhadores, um deles torna-se desnecessário. A história da racionalização na Toyota é a história da redução de trabalhadores; [...] Todo o seu tempo [dos trabalhadores], até o último segundo, é dedicado à produção (Kamata apud ANTUNES, 2003, p. 56).

Já que a coleta e interpretação de dados relativos ao processo é tão importante para o aperfeiçoamento contínuo da gestão, assim como as sugestões e melhorias feitas pelo próprio trabalhador à sua atividade, o que é encorajado, estimulado e exigido pela empresa, fica evidente que o envolvimento e participação dos trabalhadores é essencial nas formas contemporâneas de gestão da produção, mobilizando qualidades que foram, por vezes, deixadas de lado em formações anteriores. Também fica claro que o quadro atual traz várias complicações para os trabalhadores, como uma intensificação do trabalho, um desgaste evidenciado por vários problemas de saúde física e mental, ao mesmo tempo em que crescem os índices de desemprego.

“Não nos parece que o ‘toyotismo’ tenha significado, do ponto de vista dos trabalhadores, um avanço em direção ao domínio do processo produtivo. Isso por vários motivos: (...) as contrapartidas do ‘toyotismo’ inscrevem-se claramente numa estratégia de cooptação dos operários para participação nos objetivos da empresa; (...) precarização das condições de

trabalho e o desemprego estrutural para contingentes cada vez maiores da força de trabalho. Mesmo para os trabalhadores que estão empregados pelas empresas centrais, o que se observa é a extensão da jornada de trabalho e uma pressão contínua” (MARCELINO, 2004, p. 114-115).

Pode parecer, no mínimo, contraditório que se consiga a adesão dos trabalhadores para que incorporem novas tarefas, intensifiquem o ritmo de trabalho, contribuam com idéias para a melhoria do processo, sendo que o resultado da melhoria não é redução de desgaste no trabalho, mas de postos, de modo que, no limite, o trabalhador trabalha para sua própria exclusão. Os níveis de desemprego e a precarização a que se assiste já não deixaram bastante claros o efeito de ‘escada rolante ao contrário’ em que vive o trabalhador, onde se dedicar à tarefa, estudar e se aperfeiçoar para além do horário oficial de trabalho, não garantem ascensão na carreira? Ao calcular as possibilidades de intensificação de trabalho, Taylor escolhia um trabalhador que lhe parecesse adequado para definir um novo padrão, um gorila amestrado em suas palavras, e lhe oferecia um pagamento maior se cumprisse a tarefa como planejada. Seu método procura estabelecer uma “relação formal de reciprocidade entre dois sujeitos histórica e politicamente desiguais: capital e trabalho” (HELOANI, 1994, p. 18). Já as contrapartidas do fordismo como modelo vão além dos melhores salários pagos por Ford, estando ligadas também às políticas keynesianas e do Estado de bem estar social, durante uma espécie de “círculo virtuoso (ganhos elevados de produtividade – grande produção – aumento dos salários – consumo alto)” (LINHART, 2007, p. 76). “A esmagadora maioria dos conflitos e das greves das décadas de 1950, de 1960 e do início da década de 1970, que haviam sido desencadeados pelos sindicatos ou retomados por eles, terminou em negociações sobre os salários ou, de modo mais geral, sobre o contrato de trabalho” (LINHART, 2007, p. 78). Cabe perguntar quais são as contrapartidas do toyotismo? Thomas Gounet resume ironicamente as inovações principais do toyotismo:

“Em lugar do trabalho desqualificado, o operário é levado à polivalência. Em vez da linha individualizada, ele integra uma equipe. No lugar da produção em massa, para desconhecidos, trabalha um elemento para satisfazer a equipe que vem depois da sua na cadeia. Em suma, o ‘toyotismo’ elimina, aparentemente, o trabalho repetitivo, ultra simplificado, desmotivante, embrutecedor” (GOUNET, 1999, p. 33).

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Se estes são os pontos de defesa de tais técnicas de gestão, por outro lado já estão bastante evidentes o caráter de intensificação do trabalho, redução e precarização de postos, entre outros. Levando psicólogos do trabalho a voltarem-se para tais questões e trabalhadores a declararem preferir os métodos anteriores. Diante disso é preciso comentar que não pode ser possível que as ferramentas de gestão da qualidade, o conhecimento psicológico da área de recursos humanos, as ‘reuniões do abraço’, os concursos, os prêmios, as gincanas, enfim, as técnicas de gestão e seus mecanismos de cooptação, sejam os únicos responsáveis pela adesão do trabalhador. Fica limitada a análise desse quadro se interpretarmos que ocorre um engodo por parte do capital, que os trabalhadores são enganados para que contribuam, pois parece que o capitalismo parou de prometer há algum tempo. Não mais se pede empenho para a situação melhorar, mas apenas constata-se que ‘não há alternativas’, a frase preferida, talvez, da doutrina neoliberal. Um primeiro ponto que precisamos investigar é de que esse envolvimento é possível em um tipo específico de trabalhador e de sociedade. Pois, ao tratar de controle, claro que é interessante analisar o aspecto técnico da gestão do trabalho, como a produção pôde se dispersar, como a produtividade dos trabalhadores pode ser acompanhada a distância, como os dados gerados pelo sistema podem ser constantemente colhidos e analisados para aperfeiçoá-lo; mas existe uma outra dimensão desse controle que é a adesão que se consegue do trabalhador e da sociedade. Claro que é um feito para

o capital conseguir equacionar a financeirização da economia, a dispersão da produção, a flexibilidade produtiva acompanhando mudanças constantes no mercado, é impressionante mesmo todo o fluxo de informação controlado. Mas não é um feito muito maior conseguir que aqueles que trabalham, que colhem as informações, que alimentam as máquinas e softwares, enfim, que possibilitam a movimentação econômica o façam com toda a dedicação ao mesmo tempo que são gradativamente e cada vez mais jogados à margem do sistema? Não é essa característica do controle muito mais refinada, conseguir que o trabalhador defenda a empresa, pois dela depende sua vida, mas o faça morrendo por ela? Para isso, tendo tratado rapidamente de aspectos da racionalidade aplicada à produção contemporânea, passemos para o raciocínio político e o discurso social que se articulam neste cenário para, adiante, tentar delinear o quadro geral de uma sociedade de controle e em que esse conceito encontra ressonância na realidade que estamos comentando. Nesse sentido, é necessária certa paciência ao leitor, pois alguns trechos podem parecer parte de uma outra discussão, da análise de determinada teoria ou fato histórico, mas trata-se apenas de delinear um quadro, de apresentar uma articulação, diferentes questões, mas com uma mesma matriz de raciocínio. Apresentar esses elementos em separado permitirá ao final tratar das sociedades de controle voltando a eles e a seus exemplos. Trecho extraído do texto "Toyotismo e neoliberalismo: novas formas de controle para uma sociedade-empresa", de Rafael Alves da Silva.

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CRÍTICA AO DISCURSO PÓS-MODERNO SOBRE DIFERENÇA Leonardo Docena Pina1

As diferenças não podem florescer enquanto homens e mulheres definham sob formas de

exploração (EAGLETON, 1998, p.118).

1. INTRODUÇÃO Wood (2003), ao refletir sobre o que se convencionou chamar de política de identidade, resume a forma de pensamento que vem sendo adotada por uma corrente substancial da esquerda. A autora explica que, atualmente, integrantes de tal corrente argumentam que a sociedade contempo-rânea caracteriza-se por uma fragmentação crescente, pela diversificação de relações e experiências sociais, pela pluralidade de estilos de vida, assim como pela multiplicação de identidades; dizem que vivemos em uma sociedade “pós-moderna” ou pós-industrial ou sociedade do conhecimento etc., na qual a dominação de classe teria cedido lugar a outras formas de opressão, igualmente ou até mais importantes do que a própria opressão de classe. Essas leituras da realidade, cada vez mais comuns nos dias de hoje, fazem parte de uma ampla gama de pensamentos que configuram uma espécie de “agenda pós-moderna” (WOOD, 1999). O presente texto busca refletir sobre o modo como a referida agenda vêm pensando a questão da diferença. 2. O REORDENAMENTO DO MUNDO DO TRABALHO Após o longo período de acúmulo de capitais durante o apogeu do fordismo e da fase keynesiana, o capitalismo, sobretudo no início da década de 1970, viu-se em um quadro crítico acentuado (ANTUNES, 2006). Pela primeira vez, esse modo de produção conhecia um tipo de situação que combinava baixas taxas de crescimento econômico com altas taxas de inflação – condição esta que veio a ser denominada de “estagflação” (CHAUÍ, 2001). Expresso de modo contingente como crise do padrão de acumulação taylorista/fordista, esse quadro crítico fez com que o capital implementasse uma tentativa de recuperar seus patamares de expansão anteriores (ANTUNES, 2006). Mas, conforme alerta Antunes (2006), embora a crise do fordismo e do Keynesianismo tenha sido a expressão fenomênica da crise estrutural do capital, a resposta a esse fato se deu apenas em nível superficial, isto é, sem transformar os pilares essenciais que sustentam o modo de produção capitalista2. Anderson (1998) explica que, sob o ponto de vista do ideário neoliberal, as raízes da crise capitalista do início dos anos de 1970 estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e do movimento

operário, que haviam corroído as bases da acumulação capitalista através da pressão por aumentos de salário e encargos sociais do Estado. A alegação dos neoliberais era a de que esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucro das empresas e desencadearam processos inflacionários que só poderiam acarretar uma crise generalizada das economias de mercado (ANDERSON, 1998). Para os neoliberais, a solução dessa crise encontrava-se na construção de um Estado forte, capaz de controlar o dinheiro e de quebrar o poder dos sindicatos e dos movimentos operários; mas que, por outro lado, fosse também um Estado parco, em relação a todos os encargos sociais e às intervenções econômicas (ANDERSON, 1998). Estabilidade monetária, esta deveria ser a meta principal de qualquer governo. Mas para atingi-la, explica Anderson (1998), alguns procedimentos deveriam ser tomados, a exemplo da contenção dos gastos sociais com bem-estar e da restauração da taxa “natural” de desemprego através da formação de um exército de reserva capaz de quebrar o poder dos sindicatos. Ainda de acordo com Anderson (1998), outro procedimento defendido pelos neoliberais era a realização de reformas fiscais para incentivar agentes econômicos. Segundo Chauí (2001), esse incentivo fiscal significava uma redução dos impostos sobre o capital e as fortunas; redução que deveria ser acompanhada de um aumento dos impostos sobre a renda individual e, portanto, sobre o trabalho, o consumo e o comércio. Sob a ótica neoliberal, o crescimento retornaria quando a estabilidade monetária e os incentivos essenciais fossem restituídos (ANDERSON, 1998). Portanto, como tentativa de gerenciar a sua crise estrutural, iniciou-se um processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, além de um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores (ANTUNES, 2006). A resposta capitalista à crise estrutural do capital acarretou um processo de substituição do modelo industrial fordista e do modelo político-econômico Keynesiano pelo “regime de acumulação flexível” (HARVEY, 2007). Chauí (2001) explica que, ao modelo fordista, a economia respondeu com a terceirização, a desregulamentação, o predomínio do capital financeiro, a dispersão e fragmentação da produção,

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além da centralização/velocidade da informação e da velocidade das mudanças tecnológicas; ao modelo Keynesiano do Estado de Bem-Estar, a política neoliberal respondeu com a idéia do “Estado mínimo”, a desregulação do mercado, a competitividade e a privatização da esfera pública (CHAUÍ, 2001). Além disso, ao contra-poder que emergia das lutas sociais, o capital se opôs de modo a gestar um projeto de recuperação da hegemonia nas mais diversas esferas da sociabilidade (ANTUNES, 2006). Pode-se dizer, em conformidade com Chauí (2001), que ao conjunto de condições materiais do capitalismo contemporâneo – delineadas pelo novo regime de acumulação do capital – corresponde um determinado imaginário social, o qual tem como objetivo, dentre outros: justificar, como racionais, as condições materiais do capitalismo atual; legitimar, como corretas, tais condições; e dissimulá-las, como formas contemporâneas da exploração e dominação. Trata-se do neoliberalismo como ideologia. 3. PÓS-MODERNISMO: IDEOLOGIA ESPECÍFICA DO NEOLIBERALISMO Segundo Chauí (2001), a ideologia do novo regime de acumulação do capital tem como principal subproduto a ideologia pós-moderna. Nesse ponto, faz-se necessário esclarecer, em conformidade com Eagleton (1998), a distinção entre o pós-moderno entendido como uma tendência nas artes ou como um sistema de idéias herdadas. Apesar de o termo pós-modernismo abranger essas duas coisas, nossa preocupação centra-se no segundo aspecto, isto é, no pós-modernismo enquanto uma ampla e diversificada “agenda” que, conforme veremos a seguir, engloba várias linhas de pensamento. Sobre a referida distinção, Eagleton (1998, p.7) explica que A palavra pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de cultura contemporânea, enquanto o termo pós-modernidade alude a um período histórico específico. Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas, gerando, um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades. Essa maneira de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstâncias concretas: ela emerge da mudança histórica ocorrida no ocidente para uma nova forma de capitalismo – para o mundo efêmero e

descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política clássica de classes sede terreno a uma série difusa de “política de identidade”. Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura “elitista” e a cultura “popular”, bem como entre a arte e a experiência cotidiana (...) Embora essa distinção entre pós-modernismo e pós-modernidade me pareça útil, (...) Optei por adotar o termo mais trivial “pós-modernismo” para abranger as duas coisas dadas a evidente e estreita relação entre elas. Moraes (1996) afirma que o discurso pós-moderno e as teorias que o compõem não expressam um corpo conceitual coerente e unificado. Trata-se, segundo Wood (1999), de linhas de pensamentos que formam uma espécie de “agenda pós-moderna”, a qual é composta por uma vasta gama de tendências intelectuais e políticas que surgiram em anos recentes. Dentre as correntes de pensamento que se apresentam como subdivisões dentro do pós-modernismo, pode-se citar, em conformidade com Duarte (2004): o pós-estruturalismo, o neopragmatismo, o multiculturalismo, o pós-colonialismo e outras correntes similares, que possuem em comum a atitude cética em relação à razão, à ciência, ao marxismo e à possibilidade de o capitalismo ser superado por uma sociedade que lhe seja superior. Esses e outros pontos em comum apresentados pelas correntes de pensamento que compõem o pós-modernismo correspondem exatamente ao seu papel ideológico – de atender aos interesses do capital. Conforme explica Chauí (2001, p. 22-23), Por ser a ideologia da nova forma de acumulação do capital, o pós-modernismo relega à condição de mitos eurocêntricos totalitários os conceitos que fundaram e orientaram a modernidade: as idéias de racionalidade e universalidade, o contraponto entre necessidade e contingência, os problemas da relação entre subjetividade e objetividade, a história como dotada de sentido imanente, a diferença entre natureza e cultura etc. Em seu lugar, afirma a fragmentação como modo de ser da realidade; preza a superfície do aparecer social ou as imagens e sua velocidade espaço-temporal; recusa que a linguagem tenha sentido e interioridade para vê-la como construção, desconstrução e jogo de textos, tomando-a exatamente como o mercado de ações e moedas toma o capital; privilegia a subjetividade como intimidade emocional e narcísica, elegendo a esquizofrenia como paradigma do subjetivo, isto é, a subjetividade fragmentada e dilacerada; define a filosofia, a ciência e a arte como narrativas, isto é,

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como elaborações imaginárias de discursos auto-referidos. Realiza três grandes inversões ideológicas: substitui a lógica da produção pela da circulação; substitui a lógica do trabalho pela da comunicação; e substitui a luta de classes pela lógica da satisfação-insatisfação imediata dos indivíduos no consumo. A ofensiva do capital no âmbito ideológico contou com o auxílio de alguns acontecimentos marcantes, a exemplo da experiência do fracasso das revoltas dos estudantes em maio de 1968, a experiência do nazismo, o colapso dos partidos stalinista e social-democrata na década de 1980, além da derrota dos movimentos da classe trabalhadora em meados do século XX. Segundo Malik (1999), tais fatos contribuíram para que teóricos radicais chegassem a conclusões semelhantes a dos liberais, os quais já haviam perdido a esperança na possibilidade de transformação social e, conseqüentemente, passaram a seguir – à deriva – rumo à crença de que a desigualdade é inevitável e, até mesmo, necessária. Decepcionados com o curso da história e sem esperança na mudança social, pensadores pós-modernistas afirmaram que igualdade e humanidade não tinham sentido e que a diferença e a diversidade deveriam ser a meta (MALIK, 1999). Fato que também parece ter contribuído de forma decisiva para a hegemonia do pós-modernismo foi a falência do que se convencionou chamar de socialismo real. Segundo Saviani (2005), o desmoronamento das experiências do chamado “socialismo real” contribuiu para propagar – nos meios intelectuais – a idéia de que o liberalismo e a economia de mercado triunfaram em termos absolutos, e teriam se transformado em padrão permanente e definitivo de organização da vida humana (SAVIANI, 2005). Além do mais, conforme ressalta Malik (1999), a barbárie do século XX passou a ser interpretada pelos teóricos do pós-guerra não como produto de relações sociais específicas, mas como conseqüência da “modernidade”. De um lado, há modernidade de um ponto de vista intelectual ou filosófico que sustenta ser possível compreender o mundo através da razão e da ciência – o que veio a ser chamado de projeto do iluminismo – e do progresso tecnológico deles resultante; de outro lado, modernidade também passou a significar uma sociedade particular em que essas idéias encontraram expressão – vale dizer, a sociedade capitalista (MALIK, 1999). Ao fundir as relações sociais do capitalismo com o progresso intelectual e tecnológico da “modernidade”, os resultados do primeiro podem ser atribuídos ao segundo. Os problemas específicos criados pelas relações sociais capitalistas perdem seu caráter histórico. No discurso pós-estruturalista, a teoria racial, o colonialismo e o holocausto não são investigados em sua especificidade, mas reunidos

num saco de gatos como conseqüência geral da “modernidade”. Dessa maneira, os aspectos positivos da sociedade “moderna” – sua invocação da razão, seus progressos tecnológicos, seu compromisso ideológico com a igualdade e o universalismo – são denegridos, enquanto seus aspectos negativos – a incapacidade do capitalismo superar as divergências sociais, a propensão para tratar grandes segmentos da humanidade como “inferiores” ou “subumanos”, o contraste entre progresso tecnológico e torpeza moral, as tendências para a barbárie – são consideradas como inevitáveis ou naturais (MALIK, 1999, p. 142). Esse ponto consiste exatamente em uma das ironias do pensamento pós-moderno: enquanto aceita o capitalismo, ou pelo menos a ele se rende, o pós-modernismo rejeita o “projeto iluminista”, responsabilizando-o por crimes que seriam mais justamente creditados ao próprio capitalismo (WOOD, 1999). Dessa forma, enquanto alega ter transcendido a modernidade, o pós-modernismo abandona toda esperança de transcender o capitalismo em si e ingressar em uma era pós-capitalista (FOSTER, 1999). Na contemporaneidade, a rejeição ao projeto iluminista tem sido acompanhada pelo anúncio de uma profunda crise dos paradigmas filosóficos e científicos da modernidade. De acordo com Lombardi (2005), o argumento sustenta-se na idéia de que a referida crise é decorrência do colapso de um modelo de análise baseado em uma perspectiva macroscópica, privilegiadora das regularidades sociais e que tem, por fundamento, uma lógica vinculada à tradição da modernidade – de fé na razão. Ao declarar o fim da modernidade ou da razão moderna, o pós-modernismo instaura, no campo teórico, a “crise da razão”3 (CHAUÍ, 2001). Essa crise no campo teórico se exprime por cinco aspectos principais, descritos a seguir em conformidade com Chauí (2001). O primeiro aspecto apontado por Chauí (2001) é a negação de que haja uma esfera da objetividade, por esta ser considerada um mito da razão. Em seu lugar surge a figura da subjetividade narcísica desejante. O segundo aspecto se refere à negação de que a razão possa propor uma continuidade temporal e captar um sentido da história. Surge, em seu lugar, a perspectiva do contingente (ou incerto - NDE), do descontínuo, do local, ou seja: o tempo passa a ser visto como descontínuo, e a história, como local, descontínua, desprovida de sentido e necessidade, tecida pela contingência. Outro aspecto apontado pela autora consiste na negação de categorias gerais – como universalidade, objetividade, ideologia, verdade – que são entendidas como mitos de uma razão etnocêntrica e totalitária. Nega-se a idéia de que a razão possa captar núcleos de universalidade no real. Em seu lugar, surge a ênfase na diferença, alteridade, subjetividade, contingência, descontinuidade, privado

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sobre o público. A realidade passa a ser constituída por diferenças e alteridades. O quarto aspecto apontado por Chauí (2001) é a negação da diferença entre Natureza e Cultura, tanto porque movimentos ecológicos místicos tendem a antropomorfizar a Natureza, quanto porque a biogenética, a bioquímica e a engenharia genética determinam o cultural como simples efeito dos códigos genéticos naturais. O quinto aspecto é a negação da existência de uma estrutura de poder que se materializa através de instituições fundadas tanto na lógica da dominação quanto na busca pela liberdade. É a negação de que o poder se realize à distância do social, por meio de instituições que lhe são próprias e fundadas nas lógicas referidas anteriormente. Em seu lugar, surgem micro-poderes invisíveis e capilares que disciplinam o social. É nesse contexto, de “crise da razão”, que vem se instaurando o senso comum sobre a emergência ou existência de um “novo paradigma” – neoliberal, pós-estruturalista, pós-crítico etc. – que atenderia aos desafios de uma “nova sociedade”, entendida como sociedade pós-industrial, sociedade do conhecimento etc. Porém, essa compreensão resulta de uma determinada concepção de realidade: alicerçada ao “esquecimento histórico” (EAGLETON, 1998), ou dito de outra forma: despida de historicidade, que não distingue, no plano histórico, mudanças ou rupturas que mudam a natureza das relações sociais e do modo de produção vigente, daquelas que, apesar de profundas, mantém a velha ordem social (FRIGOTTO, 2001). Segundo Frigotto (2001), o ideário que tem se afirmado atualmente defende a idéia de que estamos iniciando um novo tempo para qual devemos nos adaptar irreversivelmente; tempo da globalização, da modernidade competitiva, da reestruturação produtiva, do qual supõe-se que estamos defasados e devemos nos ajustar. Trata-se, ainda de acordo com Frigotto (2001), de teorias e de um corpo ideológico que atuam em sentido duplo: de um lado, mascaram não só a especificidade e a profundidade da crise do capital e sua violência na destruição de direitos, como também mascaram a mutilação da vida da grande maioria dos seres humanos que habitam o planeta Terra e a própria ameaça das bases da vida; de outro lado, afirmam horizontes ético-políticos utilitaristas que sustentam o ideário do mercado auto-regulado como parâmetro das relações sociais, além de impor a ditadura da razão do capital. 4. PÓS-MODERNISMO E DIFERENÇA A influência do pós-modernismo no modo de se pensar a questão diferença tem contribuído para camuflar a opressão de classe, ao mesmo tempo em que é privilegiada a luta puramente contra outras formas de opressão, às quais se vinculam às

diferenças de sexo, raça, sexualidade etc. Conforme explica Palmer (1999), o antagonismo do pós-modernismo às metanarrativas trouxe consigo uma “etiqueta especial de preço”, na qual a importância da classe é quase sempre remarcada para baixo. Identificada como sendo simplesmente uma de muitas subjetividades pluralistas, a classe tem sido obscurecida e reduzida à visão analítica e política do edifício analítico do pós-modernismo, erigido no exato momento em que a esquerda necessita urgentemente da clareza e direção que a classe, como categoria e instrumento, pode fornecer (PALMER, 1999). A ênfase do pós-modernismo na natureza fragmentada do mundo e do conhecimento humano acarretou a impossibilidade de qualquer política emancipatória em uma perspectiva totalizante, que passou a ser entendida como “metanarrativa iluminista”, no mínimo ultrapassada (MORAES, 2004). Até mesmo em suas manifestações menos extremas, o pós-modernismo insiste na impossibilidade de qualquer política libertadora baseada em algum tipo de conhecimento ou visão “totalizantes” (WOOD, 1999). Na verdade, conforme explica Wood (1999), a “política”, em qualquer um dos sentidos tradicionais da palavra, ligando-se ao poder dominante de classes ou Estados e à oposição a eles, é excluída. Em seu lugar, surgem lutas fragmentadas de “políticas de identidades”. Uma forma de se testar os limites dessa política de identidade é, segundo Wood (2003), explorar seu próprio princípio constitutivo: o conceito de “identidade”. Wood (2003) explica que esse conceito afirma ter a virtude de possuir a capacidade de – igualmente sem preconceito ou privilégio – abranger tudo, desde gênero a classe, de etnia até raça ou preferência sexual, ao contrário das noções como classe, que seriam “reducionistas” ou “essencialistas”. Em vista disso, a “política de identidade” afirma ser mais afinada em sua sensibilidade com a complexidade da experiência humana e mais inclusiva no alcance emancipatório do que a velha política do socialismo; tão inclusiva que aspira a uma comunidade democrática que reconheça, incentive e celebre todo o tipo de diferença – de gênero, cultura, sexualidade etc. (WOOD, 2003). Porém, conforme afirma Wood (2003), a política de identidade revela suas limitações – tanto teóricas quanto políticas – quando se tenta situar as diferenças de classe em sua visão democrática. Nas palavras da autora: A diferença que define uma classe como “identidade” é, por definição, uma relação de desigualdade e poder, de uma forma que não é necessariamente a das “diferenças” sexual ou cultural. (...) em que sentido seria “democrático celebrar as diferenças de classe? (...) É claro que existem muitos pontos fracos no conceito de identidade tal como é aplicado às relações sociais, e isso é verdade não apenas como referência à classe; mas se emancipação e democracia exigem a

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celebração de “identidade” em um caso, e sua supressão em outro, isso certamente já é suficiente para sugerir que algumas diferenças importantes estão sendo ocultadas numa categoria abrangente que se propõe a cobrir fenômenos sociais muito diferentes, como classe, gênero, sexualidade ou etnicidade. No mínimo, a igualdade de classe significa algo diferente e exige condições diferentes das que se associam à igualdade sexual ou racial. Em particular, a abolição da desigualdade de classe representaria por definição o fim do capitalismo (WOOD, 2003, p.221). Enquanto a igualdade de classe significa por princípio a superação do capitalismo, a igualdade racial e de gênero, por exemplo, não parecem ser antagônicas a esse modo de produção. Wood (2003) explica que o capitalismo é indiferente às pessoas que explora: ao contrário dos modelos anteriores de produção, a exploração capitalista não se liga a identidades, desigualdades ou diferenças extra-econômicas, políticas ou jurídicas; a extração da mais-valia dos trabalhadores ocorre em uma relação entre indivíduos formalmente iguais e livres, sem pressupor diferenças de condição política ou jurídica. Além do mais, o capitalismo possui uma tendência positiva a solapar essas diferenças e a diluir identidades como gênero ou raça, sem esquecer o dado de que toda opressão extra-econômica pode ser utilizada pelo capital em benefício próprio (WOOD, 2003). Daí a firmação de Harvey (2007): o capitalismo não inventou “o outro”, mas por certo fez uso dele e o promoveu sob formas dotadas de um alto grau de estruturação. Através de sua política de identidades, o pós-modernismo tem contribuído para ocultar as realidades estruturais do sistema capitalista, além de fragmentar a classe trabalhadora, tal como explica Wood (1999): Quando os setores menos privilegiados da classe trabalhadora coincidem com as identidades extra-econômicas como gênero ou raça, como acontece com freqüência, pode parecer que a culpa pela existência de tais setores é de causas outras que não a lógica necessária do sistema capitalista. (...) apesar de ser capaz de tirar vantagens do racismo ou do sexismo, o capital não tem a tendência estrutural para a desigualdade racial ou opressão de gênero, mas pelo, contrário, são eles que escondem as realidades estruturais dos sistema capitalista e dividem a classe trabalhadora (WOOD, 2003, p.229). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Meszáros (2002) entende que a transferência da lealdade dos socialistas desiludidos da classe trabalhadora para os chamados “novos movimentos sociais” – hoje valorizados em oposição ao trabalho e desprezando todo o seu potencial emancipador – deve ser considerada como prematura e ingênua. É que os movimentos de questão única, mesmo quando lutam

por causas não-integráveis, podem ser derrotados e marginalizados um a um, já que não podem alegar estar representando uma alternativa coerente e abrangente à ordem dada como modo de controle sociometabólico e sistema de reprodução social (MÉSZÁROS, 2002). Daí o enfoque no potencial emancipador socialista do trabalho ser mais importante hoje do que nunca (MÉSZÁROS, 2002).Vale lembrar, segundo Mészáros (2002), que o trabalho pode proporcionar o quadro de referências estratégico abrangente no qual todos os movimentos emancipadores de “questão única” podem conseguir transformar em sucesso sua causa comum para a sobrevivência da humanidade. Apesar de ser um empreendimento mais difícil, pela dificuldade de resgatar o sentido de pertencimento de classe, que o capital e suas formas de dominação procuram ocultar, a emancipação dos nossos dias é centralmente uma revolução no trabalho, do trabalho e pelo trabalho (ANTUNES, 2006). E a construção dessa emancipação exige que sejam convocados interesses e recursos que unifiquem a luta anticapitalista (WOOD, 1999). Daí a necessidade de pensar a temática da diferença transcendendo o fetichismo da diversidade instaurado pelo pós-modernismo, de modo a visualizar a superação do modelo contraditório de sociedade contemporânea e o sentido histórico da luta de classes. Pois, segundo Wood (1999), são os interesses e recursos da classe, a mais universal força isolada capaz de unificar lutas libertárias diferentes (WOOD, 1999). NOTAS 1 Leonardo Docena Pina, Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é mestrando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É bolsista da CAPES e membro do Grupo de Estudos em Trabalho, Educação Física e Materialismo Histórico (GETEMHI). Contato (e-mail): [email protected] 2 Antunes (2006) explica que a denominada crise do fordismo e do keynesianismo exprimia, em seu significado mais profundo, uma crise estrutural do capital, na qual se destacava a tendência decrescente da taxa de lucro. Segundo Antunes (2006), essa crise manifestava a incontrolabilidade do sistema de metabolismo social do capital, além do sentido de sua lógica destrutiva, presente na intensificação da lei de tendência decrescente do valor de uso das mercadorias. 3 Frigotto (1995) explica que o neoliberalismo se põe como uma alternativa teórica, econômica, ideológica, ético-política e educativa à crise do capitalismo do final do século XX. Porém, conforme explica o autor, essa alternativa deriva do “delírio de uma razão cínica” que prognostica o fim da história. De acordo com Frigotto (1995), esse “delírio” se apresenta em diferentes planos, como por exemplo: o plano econômico, o ideológico, o ético e o teórico. Para os fins deste texto, nos limitamos apenas à reflexão sobre a expressão do “delírio” no plano teórico.