tolstoi, liev. senhores e servos

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  • 8/7/2019 TOLSTOI, Liev. Senhores e Servos

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    SENHORES E SERVOS

    Leon Tolsti

    Traduo: Gulnara Lobato de Morais Pereira

    Editora Desvio

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    INTRODUO

    Leon Tolsti - Um Mstico Moderno1

    Em Tolsti, reconhecido como um dosmaiores escritores de todos os tempos, o

    individualismo e a paixo conviviam com desejosde transformao espiritual que o levaram, no fimda vida, a um anarquismo cristo oposto a todaautoridade eclesistica e poltica.

    Lev2 Nikolaievitch, conde de Tolsti, nasceuna propriedade rural da famlia, em Iasnaia-Poliana, provncia de Tula, em 9 de setembro (28

    de agosto pelo calendrio juliano) de 1828. Com amorte prematura dos pais, foi educado porpreceptores. Em 1844, ingressou na Universidadede Kazan, mas trs anos depois, decepcionadocom o ensino formal, voltou a Iasnaia-Poliana paraadministrar a propriedade e conduzir a prpriaeducao. Atrado pela agitao social de Moscoue So Petersburgo, no foi muito bem-sucedidoem seus propsitos. Em 1851, o sentimento devazio existencial levou-o ajuntar-se ao irmo,soldado no Cucaso. No ano seguinte, alistou-se elutou bravamente contra tribos montanhesas. dessa poca seu primeiro trabalho publicado,Detstvo (1852; Infncia), que denota a influnciado ingls Laurence Sterne.

    Transferido, participou da guerra da Crimia,experincia descrita em Sevastopolskiie rasskazi(1855; Contos de Sebastopol). Com o fim daguerra, em 1856, voltou a So Petersburgo, ondefoi recebido como dolo pelos crculos literrios.Irritado com o assdio, voltou a Iasnaia-Poliana.

    1Fonte: Nova Enciclopdia Barsa, vol.14, So Paulo, 1997.

    2Outros registros: Liev, Leo. (N. do E.)

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    Em 1857, esteve na Frana, Sua e Alemanha. Ascrticas s histrias baseadas nessas viagensabalaram seu interesse pela literatura. Mesmoassim, entre 1855 e 1863, escreveu contos queprenunciam suas concepes posteriores sobre os

    danos que uma sociedade materialista causa pureza humana.

    No final da dcada de 1850, preocupado coma precariedade da educao no meio rural, Tolsticriou em Iasnaia uma escola, para os filhos doscamponeses da regio, cujos mtodosanteciparam a educao progressiva moderna.

    Movido pelo novo interesse, o escritor viajou maisuma vez pela Europa, publicou uma revista sobreeducao e compilou livros didticos de grandeaceitao. Em 1862, casou-se com SniaAndreievna Bers, jovem com amplos interessesintelectuais com quem teve 13 filhos. Durantequinze anos, dedicou-se intensamente vidafamiliar.

    Foi nessa poca que Tolsti produziu osromances que o celebrizaram - Voina i mir(1865-1869; Guerra e paz) e Anna Karenina (1875-1877).O primeiro, que consumiu sete anos de trabalho, considerado uma das maiores obras da literaturamundial. A narrativa gira em torno de cincofamlias aristocrticas durante as guerrasnapolenicas. As passagens mais criticadas doromance so aquelas em que o autor expe suaconcepo determinista da histria, segundo aqual as aes dos chamados "grandes homens"dependem das aes de incontveis figurasannimas ou menos proeminentes, o que significaque no h livre-arbtrio. O vigoroso otimismo de

    Guerra e paz, fruto da convico de que o esforo

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    pessoal poderia levar a um modo de existnciaaberto tanto natureza quanto sresponsabilidades sociais, sofreu uma sensvelquebra, que transparece em Anna Karenina. Adescrio de um amor adltero, que termina em

    tragdia pelo peso da hipocrisia social, constituiuo reflexo da profunda crise espiritual em queTolsti se encontrava imerso.

    Embora feliz no casamento e bem-sucedidocomo escritor, Tolsti atormentava-se comquestes sobre o sentido da vida e, aps desistirde encontrar respostas na filosofia, na teologia e

    na cincia, deixou-se guiar pelo exemplo doscamponeses, que lhe diziam que o homem deveservir a Deus e no viver para si mesmo.Convencido de que uma fora inerente ao homemlhe permite discernir o bem, formulou osprincpios que doravante norteariam sua vida.Recusou a autoridade de qualquer governoorganizado e da Igreja Ortodoxa russa (que oexcomungaria em 1901), o direito propriedadeprivada e, inclusive, no terreno teolgico, aimortalidade da alma.

    Para difundir suas idias, nos anos seguintesTolsti dedicou-se, em panfletos, ensaios e peasteatrais, a criticar a sociedade e o intelectualismoestril. A crnica autobiogrfica Ispoved (1882;Uma confisso) descreve seus tormentos naquelesanos e como os superou mediante umcristianismo evanglico e peculiar. Tsarstvo bojiievnutri vas (1891; O reino de Deus est em ti)expe sua crena na no-resistncia ao mal econclui que os governos existem para o bem dosricos e poderosos, que, pela fora, exploram a

    humanidade e a matam em guerras. Em Chto

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    takoie iskusstvo? (1897; Que a arte?), tentativade elaborar um sistema esttico consoante taisconvices religiosas e morais, Tolsti afirma que,se no consegue "infectar" o pblico com oessencial da alma do artista, a obra falhou

    enquanto arte. Por isso, ele rejeita algumas obrasde Shakespeare e Wagner, alm de relegar seusprprios grandes romances categoria de "marte". O texto considera a arte religiosa como amais elevada forma artstica.

    O gnio de Tolsti brilhou ainda na criao deuma srie de contos, como Smert Ivana Ilitcha

    (1886; A morte de Ivan Ilitch), Kreitserova sonata(1889;A sonata de Kreutzer) e Joziiain i rabotnik(1895; Senhores e Servos), em que suas idiasno aparecem de forma explcita, mas sosugeridas graas maestria das anlisespsicolgicas. Em 1889, surgiu o romanceVoskreseniie (1900; Ressurreio). Consideradoinferior aos anteriores, uma potica descrioda relao amorosa entre um nobre e uma jovemque, por ele seduzida, se prostitui.

    Aps sua "converso", Tolsti dedicou-se auma vida de comunho com a natureza. Deixoude beber e fumar, tornou-se vegetariano e passoua vestir-se como campons. Convencido de queningum deve depender do trabalho alheio,buscou a auto-suficincia e passou a limpar seusaposentos, lavrar o campo e produzir as prpriasroupas e botas. Em nome da castidade, procuroudominar os desejos carnais em relao esposa.Engajou-se em atividades filantrpicas e foi acontragosto que viu sua casa atrair visitantesinteressados em suas idias e cercada de colnias

    de discpulos que pretendiam viver segundo seus

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    ensinamentos.

    Sua esposa conseguiu obter os direitos sobreas publicaes do marido anteriores a 1880 ereeditou-as por conta prpria, para manter o nveleconmico da famlia. Por essa razo, algunsescritos notveis dessa poca s foram publicadospostumamente. Num rasgo final deindependncia, aos 82 anos de idade, Tolstiabandonou a casa em companhia de Aleksandra,sua mdica e filha mais nova, em busca de umlugar onde pudesse sentir-se mais prximo deDeus. Dias depois, em 20 de novembro (7 pelo

    calendrio juliano) de 1910, Tolsti morreu depneumonia na estao ferroviria de Astapovo,provncia de Riazan.

    - I -

    Corria a dcada de 1860-1870. Na manhseguinte ao dia de So Nicolau do inverno, festada parquia, Vasslii Andritch Brekhunov,negociante da segunda guilde3, no podiaausentar-se: precisava estar na igreja - era otesoureiro e presidente eleito da parquia - etinha tambm que receber e hospedar em suacasa os parentes e os amigos. Mas quando asltimas visitas o deixaram, Vasslii Andritchconsiderou-se logo no dever de preparar-se para

    sair: dispunha-se a ir casa de um proprietriodas redondezas para comprar-lhe uma florestaque h muito tempo j vinha pretendendonegociar.

    Vasslii Andritch apressava-se, pois receavamuito que os mercadores da aldeia vizinha

    3A classe dos negociantes: na Rssia, era dividida em trsguildes, de acordo com a importncia da patente. (N. da T.)

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    viessem priv-lo daquele vantajoso negcio. Ojovem proprietrio pedia dez mil rublos pelafloresta s porque Vasslii Andritch lhe haviaoferecido sete mil. Ora, esses sete mil rublos norepresentavam seno a tera parte do valor real

    da floresta. Vasslii Andritch talvez aindaconseguisse um pequeno abatimento - pois afloresta se encontrava na sua zona e ficara, desdelonga data, combinado entre todos os mercadoresdo distrito, que nenhum deles poderia subir ospreos na regio reservada ao seu vizinho -, mastinham-lhe dito que os compradores de matas da

    capital da provncia estavam resolvidos a virnegociar a floresta de Goritchkino. Resolveu,portanto, partir sem demora e fechar o negciocom o proprietrio.

    Assim, pois, mal terminou a festa, apanhouno seu cofre setecentos rublos, acrescentou-lhesmais dois mil e trezentos da caixa da igreja queretinha em seu poder, para perfazer dessamaneira trs mil rublos, contou cuidadosamente odinheiro, meteu-o na carteira e preparou-se parapartir. Seu empregado Nikita, o nico dosassalariados de Vasslii Andritch, que no estavaembriagado naquele dia, correu a atrelar o tren.

    Nikita no estava embriagado naquele diajustamente porque tinha o vcio da bebida edepois de ter vendido, para beber, suas botas eroupas novas, fizera voto de no provar maislcool e, de fato, depois do comeo da Quaresmahavia j dois meses que no bebia; resistiramesmo tentao daqueles dois dias de festa,durante os quais vira a aguardente jorrar suavolta.

    Nikita, natural da aldeia vizinha, tinha

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    cinqenta anos e passara a maior parte de suavida trabalhando nas casas e nas terras dosoutros; esse no um proprietrio, diziam,referindo-se a ele. Por toda parte o estimavamdevido ao seu amor ao trabalho, sua habilidade,

    sua fora e principalmente sua bondade e aoseu gnio agradvel; nunca, porm, ficava muitotempo num emprego, pois duas vezes por ano ou,at com mais freqncia, dava para beber; eento no s se despojava de tudo o que possuapara saciar o vcio, como se tornava briguento edesordeiro. Vasslii Andritch, tambm ele, j o

    havia inmeras vezes posto na rua; mas voltava,entretanto, a dar-lhe trabalho por causa da suahonestidade, da sua bondade para com osanimais e, principalmente, por causa das suasmodestas exigncias: Vasslii Andritch pagava aNikita no oitenta rublos, salrio normal de umtrabalhador, mas quarenta apenas, e mesmoestes eram, ainda por cima, pagos a Nikita em

    pequenas parcelas e quase sempre no emdinheiro, mas em mercadorias que o armazm deVasslii Andritch lhe cedia a preos altssimos.

    Marfa, a mulher de Nikita, dona-de-casaesperta e prestimosa que em seus tempos demoa havia sido muito bonita, trabalhava em casacom um filho adolescente e duas filhas. Marfa no

    insistia para que Nikita morasse com eles,primeiro porque vivia havia 20 anos com umtoneleiro de outra aldeia, hspede da casa dela, esegundo porque se fazia o que queria do maridoquando este no bebia, temia-o mais que ao fogoquando o via bbado. Tendo se embriagado certodia em casa, Nikita, provavelmente para vingar-sedo domnio que a mulher exercia sobre ele quandoestava sbrio, quebrou-lhe a canastra, apoderou-

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    se de seus mais belos adornos, tomou de ummachado e picou em pedacinhos todos os seusvestidos e trajes tpicos.

    Todo o dinheiro ganho por Nikita era entreguediretamente mulher, e Nikita no protestavanunca. Assim fora daquela vez: dois dias antes dafesta, Marfa veio casa de Vasslii Andritch eapanhou no seu armazm farinha de trigo, ch,acar, meia garrafa de vodca, trs rublos aotodo, mais cinco rublos em dinheiro. E agradeceua Vasslii Andritch por tudo isso, como se ele lhehouvesse feito um grande favor; entretanto, este

    lhe devia uma vintena de rublos, calculando bempor baixo.

    - Ns no temos contrato, no ? - diziaVasslii Andritch a Nikita. - Se tens necessidadede alguma coisa, leva, e me pagars comtrabalho. Em minha casa no como nas outras:espera um pouco, depois descontos e mais

    acrscimos. Aqui conosco a honra que vale.Ests trabalhando para mim e eu no teabandono.

    Assim falando, Vasslii Andritch estavasinceramente convencido de que era o benfeitorde Nikita: tal era a sua fora de persuaso que, acomear por Nikita, os que dependiam de seu

    dinheiro cultivavam nele essa convico de queno enganava ningum, mas a todos cobria debenefcios.

    - Sim, compreendo, Vasslii Andritch; eucreio que trabalho e me esforo o mais que posso,como se o fizesse por meu pai. Compreendo muitobem - respondia Nikita - sabendo perfeitamente

    que Vasslii Andritch o enganava e sentindo ao

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    mesmo tempo que era intil tentar sequerdesembrulhar suas contas com ele, mas que erapreciso continuar ali, enquanto no aparecesseoutro emprego e aceitar o que lhe davam.

    Agora, tendo recebido ordem de atrelar,Nikita, alegremente como sempre e cheio de boavontade, dirigiu-se ao galpo com aquele passorpido e leve que lhe era peculiar, emboraandasse com os ps para dentro como um ganso.Retirou do prego de onde pendia o freio pesadoornado de pompons e fazendo retinir as barbelas,penetrou no estbulo onde estava preso parte

    dos outros, o cavalo que Vasslii Andritch lhedera ordem para atrelar.

    - Ento como ? Ests caceteado? Estscaceteado, bichinho? - disse Nikita em resposta aoafetuoso relincho com que o saudou o garanhoBaio, de crina preta, de estatura mdia, bemconformado, de ancas ligeiramente cadas, que se

    encontrava s no estbulo.- Vamos! Vamos! No te apresses. Espera que

    te d de beber. Falava com o cavalo exatamentecomo se falasse com um homem. Tendo limpadocom a aba do seu gabo o lombo do cavalo,lombo rolio cortado ao meio por uma espcie desulco pelado e poeirento, enfiou a bela e jovem

    cabea do garanho por dentro do cabresto,libertou as orelhas e a crina e levou-o a beber.

    Nem bem deixou com passos cautelosos oestbulo cheio de esterco, o Baio se ps acaracolar e a dar voltas, como quem quisessepregar um par de coices em Nikita, que oacompanhou correndo at o poo.

    - Comea com brincadeiras, comea com

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    brincadeiras, patife! - dizia Nikita, que sabia muitobem com que prudncia o Baio lanava a pernatraseira no para mago-lo, mas apenas paratocar-lhe, guisa de brinquedo, a pelia curta esebenta, e que gostava muito desse costume do

    cavalo.Depois de beber a gua gelada, o cavalo

    suspirou, sacudindo os beios firmes aindamolhados, de onde gotas transparentes caamdentro do cocho; depois, quedou-se imvel, comoque mergulhado em suas reflexes, e de sbitobufou ruidosamente.

    - Se no queres mais, tanto pior; eu osaberei. No venhas depois pedir mais - disseNikita, explicando sua conduta ao Baio com amaior seriedade e com todos os detalhes; e voltoucorrendo para o galpo, puxando pelo cabresto ojovem animal que, cheio de alegria, empinava eenchia o ptio de rudos.

    Todos os empregados estavam ausentes; nohavia no ptio seno um estranho, o marido dacozinheira, que viera para a festa.

    - Vai perguntar ao amo, minh'alma, a quetren devo atrelar o cavalo - pediu-lhe Nikita. - Seao maior, ou ao menor?

    O marido da cozinheira entrou na casacoberta de lminas de ferro, construda sobrealtos alicerces e logo reapareceu, trazendo ordempara que atrelassem o cavalo ao tren pequeno.Nikita, durante esse tempo, j havia colocado nocavalo o peitoral e a pequena sela tauxiada.Levando numa das mos a leve dug4 pintada e

    4Espcie de canga que se coloca sobre o ;pescoo docavalo. (N. da T.)

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    puxando com a outra o animal, dirigiu-se para osdois trens que estavam no galpo.

    - Pois bem, atrelemo-lo ao pequeno -murmurou, colocando entre os times ointeligente animal, que fingia o tempo todo querermord-lo.

    Quando tudo estava quase pronto e sfaltava ajustar as rdeas, Nikita disse ao maridoda cozinheira que lhe trouxesse do celeiro umfeixe de palha e a manta de pano de saco.

    - Assim a coisa vai bem! Vamos, vamos, no

    preciso eriar-se - dizia Nikita, amontoando notren a palha de aveia recm-batida que acabavade lhe ser trazida.

    - E agora, vamos estender a serapilheira epor cima a manta. Assim, assim; assim ficaremosbens instalados - dizia ele e fazia como dizia,dobrando as pontas da manta por sob a palha

    amontoada em torno do assento.- Pronto, a est! Obrigado, minh'alma -

    agradeceu Nikita, dirigindo-se ao marido dacozinheira. - A dois a coisa vai mais rpida.

    E, tendo desembaraado as rdeas de couroque terminavam por uma argola, Nikita saltousobre o rebordo do tren e atravs do ptio

    coberto de esterco gelado, dirigiu para o portogrande o valente animal que s queria uma coisa -trotar.

    - Tio Nikita! Tiozinho! Eh, tiozinho! - gritoucom voz esganiada um meninozinho de seteanos metido numa pelia preta, de gorro de pele ebotinhas de feltro branco novas em folha, que

    sara da casa a correr.

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    - Leva-me contigo - pediu ele, abotoando spressas a pelia curta.

    - Corre, vem depressa, meu pombinho -respondeu-lhe Nikita e, detendo o cavalo, fezsubir no tren o filho do amo, cujo rostinho plidoe magro iluminou-se de alegria. Saram para arua.

    Era mais de duas horas. Fazia frio - uns dezgraus abaixo de zero - e o dia estava nublado;ventava. A metade do cu estava coberta poruma nuvem baixa e sombria. No ptio, o ar estavacalmo, mas na rua o vento soprava com bastantefora; varria a neve amontoada sobre o telhado dogalpo vizinho e formava redemoinhos a umcanto, junto casa de banhos.

    Nem bem Nikita, tendo transposto o porto,parou diante do alpendre, Vasslii Andritch,cigarro na boca, metido numa pelia de carneiroajustada bem abaixo da cintura por um cintomuito apertado, atravessou o vestbulo, fazendoranger sob as botas de feltro revestidas de couro,a camada de neve endurecida que recobria oalpendre. Parou, tragou uma ltima baforada defumo, atirou fora a ponta do cigarro, esmagou-acom o p e, soltando a fumaa atravs dabigodeira, examinou o cavalo com o rabo do olho,

    enquanto dobrava para dentro a gola da peliaem redor do rosto vermelho completamenteescanhoado, exceo do bigode, a fim de queseu hlito no molhasse a pele.

    - Vejam s aquele gaiato! J est l - disse, aodar com o filho no tren.

    Vasslii Andritch estava excitado pela vodca

    que tomara com os amigos e eis porque se sentia

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    satisfeito mais ainda que de costume com tudo oque lhe pertencia e com tudo o que fazia. Apresena do filho que, intimamente, chamavasempre "o seu herdeiro", provocou-lhe naquelemomento grande prazer; contemplava-o,

    apertando as plpebras e mostrando os dentescompridos.

    Com a cabea e os ombros envoltos num xalede l que no lhe deixava de fora seno os olhos,a mulher de Vasslii Andritch, grvida, plida emagra, se achava de p por trs dele, novestbulo.

    - Acho que seria melhor levares Nikita -aconselhou ela, adiantando-se timidamente.

    Vasslii Andritch no deu nenhuma respostaa essas palavras, que lhe eram evidentementedesagradveis; seu rosto contraiu-se e eleescarrou.

    - Vais levando dinheiro contigo - prosseguiu amulher no mesmo tom gemebundo. - E, de mais amais, o tempo pode piorar. Ouve o que te digo.

    - Para que preciso de um guia? Acaso noconheo a estrada? -respondeu-lhe VassliiAndritch com aquele modo de esticar os lbios,destacando nitidamente cada uma das slabas,

    que lhe era caracterstico quando falava com osvendedores ou com os compradores.

    - Em nome de Deus, suplico-te que o levescontigo! - insistiu a mulher, puxando o xale sobreos ombros.

    - Essa mulher gruda como pez s mos!Como posso lev-lo comigo?

    -Que isso, Vasslii Andritch? Eu c estou

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    pronto - declarou alegremente Nikita. - Contantoque dem de comer aos cavalos na minhaausncia... - acrescentou, voltando-se para apatroa.

    - Cuidarei disso, Nikita, meu amigo; dareiminhas ordens a Semin - disse a mulher.

    - Como , Vasslii Andritch, vou tambm? -indagou Nikita.

    - preciso agradar a velha! Mas se vaiscomigo, vai vestir qualquer coisa mais quente -aconselhou Vasslii Andritch, voltando a sorrir e

    piscando na direo da pelia sebenta de Nikita,de abas desfiadas, rasgada nas costas e debaixodos braos, que lhe chegava s at os joelhos eque devia, por certo, ser muito avanada emanos.

    - Ol! Minh'alma! Vem c um pouco! Segura ocavalo! - chamou Nikita, voltando-se para o ptio

    onde se achava o marido da cozinheira.- Eu vou! Eu vou! - gritou com voz aguda o

    menino e, tirando dos bolsos as mozinhasvermelhas de frio, segurou as rdeas geladas.

    - Mas no leves muito tempo a te enfeitares -apressa-te! - gritou Vasslii Andritch, zombandode Nikita.

    - Vou num instante, Vasslii Andritch, meupaizinho - afianou Nikita e correu para a isbreservada aos empregados.

    * * *

    - Armuchka, minha querida, d-me depressao meu cafet que est em cima da estufa: vou

    viajar com o patro - anunciou Nikita,

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    embarafustando pela isb adentro e apanhando acinta que pendia de um prego.

    A cozinheira, que tirara uma soneca depoisdo jantar e se dispunha agora a preparar osamovar para o marido, recebeu alegrementeNikita; contaminada pela sua pressa, tirou de cimada estufa o velho cafet surradssimo que alitinham posto a secar e ps-se a desamass-lo e asacudi-lo.

    - Agora vais ficar vontade com teu marido!- disse Nikita cozinheira.

    Quando ele se via a ss com quem quer quefosse, dizia sempre qualquer coisa, por umaespcie de benevolente polidez.

    E, tendo enrolado em torno da cintura o cintoestreito e todo torcido, apertou-o por cima dapelia com a mxima fora possvel, murchando oventre j de si suficientemente chato.

    - Assim que serve - disse ele em seguida,dirigindo-se no cozinheira, mas ao cinto, cujaspontas enfiou por dentro. - Assim no tedesatars.

    E, erguendo e abaixando os ombros, a fim deque seus braos permanecessem livres, enfiou ocafet, esticando tambm as costas para

    conservar a liberdade de todos' os seusmovimentos, bateu nos sovacos e depois apanhouas luvas de l sobre a prateleira.

    - Pronto!

    - Tu devias trocar de botas, Nikita Stepnitch- sugeriu a cozinheira. - As tuas esto em bempssimo estado.

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    Nikita deteve-se como se lembrasse dequalquer coisa.

    - Sim... vai ser necessrio... Assim mesmoserve. A gente no vai longe.

    E saiu correndo.- No irs sentir frio, meu pequeno Nikita? -

    perguntou-lhe a patroa, quando ele chegou pertodo tren.

    - Frio por qu? Isto aqui aquece muito -respondeu Nikita, erguendo a palha para cobrir osps e metendo por baixo dela o chicote, do qual, o

    Baio, como um bom cavalo, no precisava.Vasslii Andritch estava j instalado no tren;

    suas largas costas metidas em duas peliasocupavam todo o encosto recurvado do assentotraseiro. Ele colheu as rdeas e soltou o cavalo.Nikita tomou o tren em movimento de um salto eacocorou-se na parte dianteira com uma perna

    pendente.- II -

    O tren partiu com os patins a rangerligeiramente e o robusto garanho enveredoupela estrada da aldeia coberta de uma camada deneve endurecida.

    - Que ests fazendo a? Passa-me o chicote,Nikita - exclamou Vasslii Andritch, admirandovisivelmente o seu herdeiro que se agarrara emp no rebordo de trs do tren. - Espera umpouco! Volta para junto da mezinha! Filho de umco!

    O menino saltou para o cho. O Baio acelerou

    a marcha, ps-se a soluar, e passou da andadura

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    ao trote.

    A aldeia de Krsti, onde morava VassliiAndritch no tinha mais que seis casas. Assimque deixaram para trs a ltima isb, a doferreiro, notaram logo que o vento estava bemmais forte do que haviam imaginado. Quase nose avistava a estrada.

    Os sulcos dos patins eram imediatamentecobertos pela neve que o vento espalhava e nose podia distinguir a estrada, seno pelo fato deestar num nvel mais alto do que o da plancie quecortava. Turbilhes de neve redemoinhavam peloscampos e no se discernia mais a linha onde ocu e a terra se unem. A floresta de Telitino, quesempre se distinguia muito bem, no se deixavaentrever seno por alguns instantes, como umamancha escura atravs da neve pulverizada. Ovento vinha da esquerda, soprandoobstinadamente para a direita a crina do Baio e

    sua basta cauda amarrada num grosso n. Alonga gola de Nikita, que estava sentado contra ovento, colava-se-lhe ao nariz e face.

    - Ele no pode desenvolver a suaverdadeira

    marcha - a neve est demais - observou VassliiAndritch, orgulhoso do seu excelente cavalo. -Fui uma vez com ele a Pachutino; pois bem, me

    levou at l em meia hora.- Qu? - perguntou Nikita, que no tinha

    podido ouvir por causa da gola.

    - Disse que ele me levou a Pachutino emmeia hora - gritou Vasslii Andritch.

    - No se pode negar que um bom cavalo -

    opinou Nikita. Calaram-se por um momento. Mas

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    Vasslii Andritch estava com vontade de falar.

    - Ento, proibiste tua patroa de dar vodca aotoneleiro? - indagou, falando bem alto, certo deque Nikita achava lisonjeiro conversar com umhomem da importncia e inteligncia dele, VassliiAndritch.

    Estava achando to divertida a sua pergunta,que nem lhe passou pela cabea que o assuntopudesse ser desagradvel a Nikita. Uma vez maisNikita no ouviu a voz do amo, devido ao vento.Vasslii Andritch repetiu, falando alto enitidamente, a piada sobre o toneleiro.

    - Que Deus esteja com eles, VassliiAndritch. No me aprofundo nessa questo. Squero que ela no maltrate o pequeno, e no maisque faa l o que bem entender.

    - Como , vocs vo comprar um cavalo naprimavera? - indagou Vasslii Andritch, mudando

    de assunto.- Sim, no h por onde escapar - respondeu

    Nikita, abaixando a gola do cafet e inclinando-separa Vasslii Andritch. Agora a conversa tornava-se interessante para ele e queria ouvir tudo. - Ogaroto cresceu e j tempo de ir cuidando eleprprio da lavoura. At agora tivemos que alugar

    um cavalo.- Nesse caso fique com o de ancas cadas; eu

    no venderei caro a vocs! - gritou VassliiAndritch, sentindo-se excitado e por isso mesmopronto para pr em prtica a sua astcia denegociante de animais, profisso que preferia aqualquer outra e que absorvia toda a sua

    inteligncia.

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    - Talvez o senhor me pudesse dar antes unsquinze rublos e eu compraria um na feira decavalos - sugeriu Nikita, que sabia muito bem queo cavalo de ancas cadas que Vasslii Andritchqueria impingir-lhe valeria no mximo sete rublos

    e que Vasslii Andritch lhe descontaria vinte ecinco, no lhe fornecendo depois mais um nqueldurante seis, meses.

    - um bom cavalo. Eu s te desejo o bemcomo a mim prprio. Com toda a sinceridade!Brekhunov nunca fez mal a ningum. No soucomo os outros, palavra de honra! Posso perder,

    mas no quero que os outros fiquemprejudicados! - exclamou naquela mesma voz queusava para se impor aos compradores e aosvendedores. - realmente um bom cavalo.

    - Isso l verdade - murmurou Nikita,suspirando; e, vendo que Vasslii Andritch secalara, soltou a gola, que no mesmo instante lhe

    tapou o rosto e a orelha.Viajaram assim quase meia hora em silncio.

    Nikita sentia o vento bater-lhe nas costelas e nobrao, nos lugares onde a pelia estava rasgada.

    Encolhia-se e respirava com a boca colada gola que a tapava, mas no sentia frio no corpotodo.

    - Que que tu achas? Ser melhor irmos porKaramichevo ou direto? - indagou VassliiAndritch.

    Passando por Karamichevo seguia-se poruma estrada mais movimentada, margeada deambos os lados por altas estacas, porm mais

    longa. A estrada reta era mais curta, mas no to

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    concorrida; nela os marcos eram raros ou seachavam cobertos pela neve.

    Nikita refletia um pouco.

    - Por Karamichevo mais longe, mas a

    estrada melhor - opinou.- Mas, se formos direito, basta que cortemos

    a ravina, no h o que errar e logo depois afloresta- contraveio Vasslii Andritch, que estavacom vontade de seguir o caminho reto.

    - Como o senhor quiser - respondeu Nikita, etornou a soltar a gola.

    Foi o que fez Vasslii Andritch; e depois depercorrer meia verst5 dobrou esquerda, numponto onde um galho de carvalho com algumasfolhas secas ainda presas nele se agitava aovento.

    A partir dessa curva, ficaram com o vento

    pela frente. Comeou a nevar. Vasslii Andritch iaguiando; enchia as bochechas de ar e soprava osbigodes. Nikita cochilava.

    Dez minutos se passaram assim em silncio.De repente, Vasslii Andritch pronunciou algumaspalavras.

    - Qu? - indagou Nikita, abrindo os olhos.

    Vasslii Andritch no respondeu: inclinava-se, olhava para frente e para trs. O cavalo ia apasso; seu plo, empapado de suor, formavaondas no pescoo e entre as pernas.

    - Qu? Que que h? - repetiu Nikita.

    - Qu? Qu? - arremedou-o Vasslii Andritch

    5Verst: 1.067 metros. (N. da T.)

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    em tom irritado. - Acabaram-se os marcos.Estamos perdidos, na certa. - Espera um pouco,vou encontrar o caminho - disse Nikita e, saltandolentamente do tren, retirou o chicote de sob apalha e afastou-se para a esquerda, do lado em

    que estivera sentado.A neve, naquele ano, no estava muito

    espessa, de sorte que pde avanar semdificuldade; entretanto, em certos pontosafundava at os joelhos e no tardou a ficar comas botas cheias de neve. Nikita tateava o terrenocom os ps e com o cabo do chicote, mas no

    conseguia encontrar a estrada.- Ento? - perguntou-lhe Vasslii Andritch,

    quando Nikita voltou para o tren.

    - Deste lado no encontro nada; preciso ir verdo outro.

    - Olha para aquela mancha escura diante de

    ns. Vai at l ver - ordenou-lhe Vasslii Andritch.Nikita tomou a direo indicada e aproximou-

    se da mancha escura; era um campo desnudo quefora plantado no outono e cuja terra espalhadapelo vento tingira a neve de negro. Depois de terprocurado igualmente direita, Nikita sacudiu-separa fazer cair a neve que o salpicava, sacudiu

    depois as botas e tornou a embarcar no tren.- Temos que tomar a direita - declarou ele em

    tom decidido. - Estvamos com o vento pelaesquerda e agora ele me bate em cheio nas fuas.Vira direita - ordenou.

    Vasslii Andritch obedeceu-lhe e dobrou direita. Mas nada da estrada. Avanaram assim

    algum tempo: o vento no diminua; nevava.

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    -Muito bem, Vasslii Andritch, eis-nosaparentemente perdidos - observou de sbitoNikita, como se estivesse muito contente com osucedido.

    - Que aquilo? - acrescentou, apontandopara umas hastes pretas de batatas queemergiam da neve.

    Vasslii Andritch parou o cavalo molhado desuor, cujos flancos palpitavam ao ritmo darespirao ofegante.

    - Que que h, afinal? - indagou ele.

    - H que estamos nos campos de Zakhrov.A est no que d a gente se perder!

    - Ests mentindo! - replicou Vasslii Andritch.

    - No, no estou mentindo, Vasslii Andritch,estou dizendo a verdade - respondeu Nikita. -Conhece-se pelo barulho que o tren faz; estamos

    atravessando uma plantao de batatas; alis,aqui est um monte de folhas e de hastes debatatas que saem da neve. Sim, este campopertence fazenda de Zakhrov.

    - Olhe, onde fomos parar! - exclamou VassliiAndritch. - Que fazer, agora?

    - Bem, vamos seguir direito, s o que temos

    a fazer. No tardaremos a chegar a algum lugar. granja ou casa do proprietrio.

    Vasslii Andritch obedeceu e deixou o cavaloandar - conforme lhe dissera Nikita. Avanaramassim durante muito tempo. Ora atravessavampradarias desnudas e os patins do tren rangiamento sobre montculos de terra congelada, ora

    cortavam os restolhos de campos de cereais

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    semeados, uns no outono, outros na primavera,onde se distinguiam, apontando sob a neve,hastes secas que se agitavam ao sopro do vento.Ora se atolavam numa neve profunda de umaalvura uniforme e sobre a qual nada se distinguia.

    A neve caa do alto e por vezes tambm seerguia do solo em turbilhes. O cavalo estavaevidentemente cansado; seu plo encharcado desuor frisava-se e cobria-se de gelo; no avanavaseno a passo. Sbito, pisou em falso eescorregou para dentro de um fosso ou numbarranco. Vasslii Andritch quis ret-lo, mas Nikita

    se ps a gritar.- Por que o retns? preciso que ele saia do

    buraco!

    - Upa! Upa! Querido! Upa! Meu amiguinho! -gritava alegremente para o cavalo, saltando dotren e enterrando-se na neve por sua vez.

    O cavalo reanimou-se e alcanou de um saltoa beira do barranco, onde o gelo endurecera aterra. Tinham, evidentemente, cado num fosso.

    - Onde estamos, afinal? - perguntou VassliiAndritch.

    - Vamos sab-lo - respondeu Nikita. -Toquemos para frente e havemos de chegar a

    algum lugar.- Aquilo no ser a floresta de Goritchkino? -

    indagou Vasslii Andritch, apontando para ummacio escuro que se distinguia atravs da neve.

    - Vamos at l e ento veremos se ou no afloresta - alvitrou Nikita. Nikita vira que o ventotrazia daquele lado folhas secas de vimeiros e,portanto, sabia que o que viam no era uma

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    floresta, mas um lugar habitado: no quis,entretanto, diz-lo.

    E, de fato, nem bem haviam percorrido umasdez sgens6, distinguiram silhuetas negras dervores e ouviram um novo rumor queixoso. Nikitaadivinhara - no se tratava de uma floresta, masde uma alia de altos vimeiros sobre os quaisfremiam ainda aqui e ali algumas folhas mortas.Os vimeiros haviam evidentemente sido plantadosao longo de um fosso, junto de uma eira.

    Tendo chegado at os vimeiros quefarfalhavam tristemente, o cavalo empinou derepente, trepou por um barranco e dobrou esquerda. Era a estrada.

    - Eis-nos chegados - disse Nikita -, mas nosabemos onde. O cavalo seguiu sem hesitar aestrada coberta de neve e no teriam feito maisque umas quarenta sgens quando diante delesse desenhou a cerca de um celeiro, cujo telhadodesaparecia sob espessa camada de neve. Estaneve caa sem interrupo do telhado. Tendocontornado o celeiro, viram-se de novo com ovento pela frente e afundaram num monte deneve.

    Mas divisaram diante deles uma estreitaruela entre duas casas: fora evidentemente o

    vento que formara aquele monte de neve sobre aestrada e era preciso transp-lo. E, com efeito,assim que conseguiram vencer esse obstculo,enveredaram pela rua. Prximo a uma das ltimascasas, peas de roupas congeladas pendiam deum varal, fustigadas violentamente pelo vento -camisas - uma branca e uma vermelha -, ceroulas,

    6Sgen: igual a 2,13 metros. (N. Da T.)

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    faixas para envolver os ps, uma saia. A camisabranca, principalmente, se agitava com fria,sacudindo as mangas.

    - Veja s esta preguiosa que no passou asua roupa para as festas! Mas talvez estejadoente - conjeturou Nikita, olhando para ascamisas.

    - III -

    entrada da rua, ainda ventava e a estradadesaparecia sob a neve; mas, medida queavanavam pela aldeia, a temperatura tornava-se

    mais amena, mais clida, o ambiente mais alegre.Um co ladrou num quintal; uma mulher quecorria com a paddiovka7 puxada sobre a cabeaparou ao pisar no limiar de uma isb, para verpassar os desconhecidos. Do centro da aldeia,chegavam-lhes as vozes de um coro de moas.

    O vento e o frio pareciam menos cortantes na

    aldeia; a neve ali como que era menos abundante.- Mas estamos em Grchkino - disse Vasslii

    Andritch.

    - isso mesmo - respondeu Nikita.

    De fato, estavam em Grchkino. Depois de teravanado demasiado pela esquerda e ter

    percorrido assim oito versts numa direo queno era bem a que deviam ter tomado, verificava-se que nem por isso tinham deixado deaproximar-se do seu destino, pois de Grchkino aGoritchkino no havia mais que cinco versts.

    No meio da aldeia, encontraram um homemalto que avanava pelo meio da rua.

    7Espcie de tnica abotoada de lado. (N. da T.)

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    - Quem vem l? - gritou esse homem,detendo o cavalo; mas reconheceuimediatamente Vasslii Andritch e, segurando umdos times, chegou assim, s apalpadelas, at otren, sobre cujo rebordo sentou-se.

    Era Issai, um campons muito conhecido deVasslii Andritch, ladro de cavalos famoso emtodo o distrito.

    -Ah! Vasslii Andritch, que bons ventos otrazem?-perguntou Issai, e Nikita sentiu-lhe ohlito impregnado de vodca.

    - Vamos a Goritchkino.- Eh! Eh! E esto aqui! Deviam ter tomado a

    estrada de Malkhovo.

    - Devamos ter feito muita coisa! Mas nofizemos! - disse Vasslii Andritch, freando ocavalo.

    - Bom cavalo - comentou Issai, examinando oanimal e, com um gesto costumeiro, apertou-lhe on da cauda, que se afrouxara durante a viagem,ajustando-o bem na raiz.

    - Ento, veio passar a noite aqui?

    - No, amigo, temos que seguir viagem.

    - Se assim preciso, nada feito. Mas quem eesse? Ah! Nikita Stepnitch!

    - Quem havia de ser? - respondeu-lhe Nikita. -Praza a Deus, minh'alma, que no tornemos aperder-nos!

    - Como poderiam perder-se? Virem por ali esigam a rua em linha reta e quando sarem da

    aldeia continuem sempre em frente. No tomem

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    esquerda. E quando chegarem ao estrado, entotomem a direita.

    - Onde devemos tomar a direita? Onde passaa estrada de vero ou a de inverno? - indagouNikita.

    - Encontraro umas moitas e defronte a elasum marco - um grande galho de carvalho. l.

    Vasslii Andritch manobrou o animal,fazendo-o descrever meia volta e partiram nadireo indicada.

    - Talvez ainda pernoitem aqui! - gritou-lhes

    Issai.Mas Vasslii Andritch no lhe respondeu e

    tocou o cavalo: achava fcil fazer cinco versts,duas das quais atravs de florestas, numa estradaplana, tanto mais que o vento parecia menos fortee a neve cessara de cair.

    Tomaram em sentido inverso a rua que jhaviam percorrido e que montculos de estrumeverde salpicavam de preto aqui e ali; passaram denovo pelo quintal do varal de roupas - a camisabranca no se mantinha presa seno por uma dasmangas -, depois pelos vimeiros que zuniamassustadoramente e se encontraram uma vezmais em campo aberto. A nevasca no diminura;

    pelo contrrio, o vento parecia soprar com maisfora ainda. A estrada desaparecia sob a neve quea cobria e no se podia perceber a direo certa,seno seguindo os marcos. Mas estes s eramdiscernveis com grande dificuldade devido aovento que soprava pela frente.

    Vasslii Andritch apertava os olhos, inclinava

    a cabea e procurava distinguir os marcos, mas

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    por fim deixou que o cavalo tomasse o rumo quequisesse, fiando-se mais dele que de seusprprios olhos. E, de fato, o cavalo no seenganava; avanava, dobrava ora esquerda ora direita, seguindo as sinuosidades da estrada,

    cujo cho firme sentia sob os passos. E to bemse saa que, a despeito do vento que se tornavamais forte e da neve que caa mais abundante,continuavam a entrever os marcos, ora direitaora esquerda.

    Seguiam assim havia uns dez minutos,quando, de sbito, perceberam bem diante deles

    um vulto escuro que se aproximava atravs datrama oblqua da neve fustigada pelo vento. Eramviajantes que caminhavam no mesmo sentido queeles. O Baio alcanou-os e esbarrou com a pata natraseira do tren.

    - Passem!... ah!... ah!... Passem na frente!... -gritaram os passageiros do tren.

    Vasslii Andritch ultrapassou-os. O trenlevava trs homens e uma mulher. Voltavamcertamente para casa depois de ter ido festa naaldeia. Um dos campnios chicoteava com umgalho seco a anca salpicada de neve do cavalo. Osdois outros gritavam algo e agitavam os braos. Amulher, completamente embrulhada em sua

    pelia e toda coberta de neve, permanecia imvel,encolhida, no fundo do tren.

    - De onde so vocs? - gritou-lhes VassliiAndritch. - De A... a... a...

    - Pergunto: de onde so vocs?

    - De A... a... a... - berrou com todas as suas

    foras um dos camponeses.

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    Todavia, no foi possvel distinguir-lhe aspalavras.

    - Avana!... No vamos deix-los passar! -gritou outro campons, chicoteando sem parar oseu pobre cavalo.

    - Esto voltando da festa, no ?

    - Toca! Toca! Siomka! Passa-os. . . Toca parafrente!

    Os trens esbarraram, enganchando-sequase um no outro, mas separaram-se e o trendos camponeses ficou para trs.

    O cavalinho peludo, barrigudo, coberto deneve, empenhava na corrida suas ltimas foras,ofegando penosamente sob a dug baixa; em voo infeliz se esforava por escapar s chicotadascom que o golpeavam. Avanava como podia,enterrando as pernas curtas na neve profunda eatirando-as para trs. Seu focinho de animal ainda

    novo, o lbio inferior entrado como boca de peixe,as narinas dilatadas, as orelhas murchas de pavor,manteve-se durante alguns segundosemparelhado com o ombro de Nikita, depois,pouco a pouco, foi ficando para trs.

    - Veja o que faz o vinho! - comentou Nikita. -Vo rebentar o pobre cavalo. Verdadeiros

    selvagens!Ouviu-se ainda durante alguns minutos o

    ofegar do msero animal atormentado e os gritosdos brios, depois cessou o resfolegar e os gritostambm pouco a pouco emudeceram. E de novono se ouviu mais que os assobios do vento e, dequando em quando, os fracos rangidos dos patins

    na terra que o vento pusera a descoberto aqui e

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    ali.

    Aquele encontro alegrara Vasslii Andritch,aumentara-lhe a confiana e sem dar maisateno aos marcos, forou a marcha do cavalo,fiado no seu faro.

    Nikita nada tinha a fazer e, como de costumequando se encontrava nessa situao, cochilava,recuperando assim muito sono perdido. Derepente o cavalo estacou e Nikita quase focinhoupara frente.

    -Erramos de novo o caminho! - exclamou

    Vasslii Andritch.- Que foi?

    - No se vem mais os marcos. Perdemosoutra vez a estrada, ao que tudo leva a crer.

    - Se a perdemos, preciso encontr-la -respondeu com laconismo Nikita.

    Ergueu-se e ps-se de novo a caminhar pelaneve no seu andar lpido, de ps para dentro.

    Caminhou muito tempo, ora desaparecendopor completo em meio bruma, ora reaparecendode chofre para de novo afastar-se... Por fim voltoupara junto do tren.

    - Por l no h estrada; talvez ela esteja emalgum ponto diante de ns - disse ele, tornando aembarcar no tren. Comeava a escurecer. Anevasca no aumentava de violncia, mastambm no diminua.

    - Se ao menos ouvssemos aquelescamponeses! - lamentou Vasslii Andritch.

    - Eles no nos alcanaram mais; devemos

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    estar muito longe da estrada. Ou ento elestambm se perderam.

    - E agora para onde vamos? - indagou VassliiAndritch.

    - Temos que deixar o cavalo solto. Ele nostirar daqui. Passa-me as rdeas.

    Vasslii Andritch passou de bom grado asrdeas a Nikita, tanto mais que comeava a sentirfrio nas mos, apesar das luvas de l.

    Nikita tomou as rdeas e contentou-se emsegur-las sem pux-las, orgulhoso da inteligncia

    do seu favorito. E de fato, o valente animal,virando ora uma orelha ora a outra, para um eoutro lado comeou a dar voltas.

    - S lhe falta falar - dizia Nikita. - V s o jeitodele! Vamos, vamos, com coragem! Assim, assim!

    Estavam agora com o vento pelas costas.

    Sentiam menos frio. - Isto que animalinteligente! - exultava Nikita, cheio de admiraopelo cavalo. - O pequeno Kirghiz forte, masbronco. Mas este; v s o que ele faz com asorelhas. No precisa de telgrafo. Ouve tudo numraio de uma verst.

    E no se havia passado bem meia hora, eis

    que distinguiram, de fato, pela frente, qualquercoisa escura - uma floresta ou uma aldeia e direita divisaram de novo os marcos. Tinham,evidentemente, encontrado a estrada.

    - Mas estamos de novo em Grchkino! -exclamou Vasslii Andritch.

    Realmente, esquerda deles via-se agora o

    mesmo celeiro coberto de neve; e mais adiante o

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    varal com as roupas congeladas - as camisas e asceroulas continuavam a agitar-sedesesperadamente ao vento.

    Enveredaram uma vez mais pela rua e aatmosfera se tornou de novo amena, clida ealegre; viram de novo a estrada salpicada deestrume, tornaram a ouvir vozes, cantos e latidosde ces. A noite descia e as luzes se acendiam nointerior das isbs.

    Vasslii Andritch parou o cavalo diante daentrada de um casaro de cantos de tijolos.

    Nikita aproximou-se da janela iluminada,obstruda pela neve, atravs de cujo claroflutuavam flocos cintilantes e bateu na vidraacom o cabo do chicote.

    - Quem est a? - perguntou uma voz,atendendo batida de Nikita.

    - Os Brekhunov, de Krsti, amigo - respondeu

    Nikita. - Chega aqui um instante.Afastaram-se da janela e ao cabo de dois

    minutos ouviu-se abrir com esforo a porta da rua.Em seguida, o ferrolho rangeu e, escorando aporta externa que o vento empurrava, surgiu umvelho campons de avantajada estatura e barbabranca, metido numa alva camisa novinha e com

    uma pelia curta jogada nos ombros,acompanhado por um rapazinho de camisavermelha e botas de couro.

    - Sers tu mesmo, Andritch? - indagou ovelho.

    - Sim. Ns nos perdemos, sabes? - respondeuVasslii Andritch. - Queramos ir a Goritchkino eaqui estamos em tua casa. Fizemos nova tentativa

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    e tornamos a perder-nos.

    - Ora veja! - disse o velho. - Petruchka, anda,vai abrir o porto grande - ordenou ao rapazinhode camisa vermelha.

    - Vou j - respondeu o moo com voz alegre.E saiu correndo. - Mas no vamos dormir aqui,amigo - declarou Vasslii Andritch.

    - Para onde iro? noite. Fiquem!

    - Bem que eu queria. Mas temos que partir.Negcios... impossvel.

    - Aqueam-se um pouco, ao menos;chegaram na horinha do samovar.

    - Quanto a isso aceito - respondeu VassliiAndritch. - No vai escurecer mais do que isto equando a lua nascer enxergaremos melhor. Como, Nikita, vamos entrar para nos aquecer?

    - Por que no? Isso no se recusa - disse

    Nikita, que estava com muito frio e louco paraaquecer os membros gelados.

    Vasslii Andritch entrou na isb com o velho.Petruchka abrira o porto grande e Nikita recolheuo cavalo ao ptio, prendendo-o ao alpendrecoberto do galpo; o piso deste estava cobertopor espessa camada de esterco e a alta dug

    enganchou-se numa das traves. As galinhas e ogalo que ali j se achavam empoleirados paradormir, aborrecidos por se verem incomodados,puseram-se a cacarejar e a mexer-se. As ovelhas,assustadas, correram para a direita e para aesquerda, batendo ruidosamente com os cascosno cho gelado. O cachorro comeou a latir paraos intrusos, soltando ganidos de medo e de raiva.

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    Nikita falou com todos: desculpou-se peranteas galinhas, prometendo-lhes no tornar aincomod-las, repreendeu as ovelhas por seassustarem sem saber por que, e enquantoamarrava o cavalo, no cessou de exortar o co a

    manter a calma.- Agora a coisa vai bem - disse, sacudindo a

    neve que lhe salpicava a roupa. - Vejam s comoele se esgoela - acrescentou, voltando-se para ocachorro. - Chega! Basta, bobo! Basta! Ests tecansando em vo. No somos ladres.

    - Esses so os trs conselheiros da casa,conforme est escrito - disse o rapazola, puxandocom brao robusto para dentro do galpo o trenque ficara fora.

    - Que conselheiros? - indagou Nikita.

    - assim que se l no livro de Paulsen -explicou o rapaz, sorrindo -, o ladro se aproxima

    furtivamente da casa e o co ladra; isso significa:no fiques a como um basbaque, presta ateno!O galo canta: levanta-te! diz ele. O gato se lava;isso quer dizer: chegou visita! Prepara-te parahosped-la bem.

    Petruchka sabia ler e escrever e conheciaquase de cor o livro de Paulsen, o nico que

    possua. E gostava muito, principalmente quandotinha bebido um pouco como naquela noite, decitar-lhe certas frases que lhe pareciam de acordocom a situao.

    - isso mesmo - concordou Nikita.

    - Ests gelado, penso eu, no ests, titio? -tornou Petruchka.

    - Sim, um pouco - respondeu Nikita.

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    Atravessaram o ptio e o vestbulo eentraram na isb.

    - IV -

    A casa onde Vasslii Andritch se detivera era

    uma das mais ricas de toda a aldeia. A famliapossua cinco partes de terra e ainda arrendavaalgumas. Havia ali seis cavalos no ptio, trsvacas, duas novilhas e umas vinte ovelhas. Afamlia que habitava aquela casa compunha-se devinte e duas pessoas: quatro filhos casados, seisnetos, dos quais era Petruchka o nico casado,dois bisnetos, trs rfos e quatro noras com seusfilhos. Era uma das raras famlias da aldeia queno se dispersara e no efetuara a partilha deseus bens; mas a discrdia que, como decostume, surgira, para comear, entre asmulheres, j ia realizando surdamente a sua obra,a qual terminaria infalivelmente na partilha dosbens. Dois dos filhos trabalhavam em Moscou

    como carregadores de gua; um terceiro erasoldado. Na casa restavam agora: o pai, a me, ofilho mais velho que viera de Moscou para a festada aldeia, o segundo filho que administrava agranja, todas as mulheres e seus filhos e maisainda um hspede, vizinho e compadre.

    Sobre a mesa, pendia uma lmpada

    recoberta por um quebra-luz que iluminavafortemente a loua preparada para o ch, umagarrafa de vodca, uns salgados, as paredes detijolo e o canto de honra ornado de conesdispostos entre quadros.

    Vasslii Andritch, metido numa s pelianegra, estava sentado mesa no lugar de honra.

    Chupando o bigode coberto de neve, percorria

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    com um movimento circular de seus olhossaltados - olhos de gavio - as pessoas e asparedes.

    Alm de Vasslii Andritch, haviam tomadolugar em torno da mesa o velho de barbasbrancas, inteiramente calvo, com a sua camisa delinho branco tecido em casa, o filho mais velhochegado de Moscou, um homem de espduas eombros robustos com uma camisa de algodofino, o filho primognito, tambm de ombroslargos que trabalhava em casa e o vizinho - umcampons magro e ruivo.

    Tendo bebido e comido, os homens sedispunham a saborear o ch; o samovar roncavaj no cho, junto estufa. Sobre a estufa e nojirau construdo sob o forro, dormiam crianas;uma mulher estava sentada num banco ao longoda parede, e embalava um bero com o p. Avelha dona da casa, de rosto sulcado por rugas

    finas que lhe marcavam at mesmo os lbios,afanava-se em torno de Vasslii Andritch.

    No momento em que Nikita entrou na isb,ela acabava, justamente, de encher de vodca umclice de vidro grosso sem p que oferecia aVasslii Andritch, dizendo:

    - No nos desprezes, Vasslii Andritch;

    preciso beber e desejar-nos uma festa feliz. Bebe,amigo.

    A vista e o cheiro da vodca, naquelemomento, principalmente, em que se achavagelado e exausto, perturbaram profundamenteNikita. Seu rosto contraiu-se. Tendo sacudido ogorro e o cafet, voltou-se, como se no visse

    ningum, para os cones aos quais reverenciou

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    depois de persignar-se trs vezes; depois virou-separa a mesa, cumprimentou primeiro o velho,depois os convivas e por ltimo inclinou-se diantedas mulheres que se achavam junto da estufa.Depois, tendo dito a todos: "Boa-festa!", ps-se a

    despir o cafet sem olhar para a mesa.- Ests todo gelado, titio! - observou o filho

    mais velho, ao reparar no rosto de Nikita, cujosolhos e cuja barba estavam salpicados depedacinhos de gelo.

    Nikita tirou o cafet, sacudiu-o mais uma vez,pendurou-o a um prego perto da estufa eaproximou-se da mesa. Ofereceram-lhe vodca. Foium instante muito difcil para ele: esteve a piquede agarrar o clice, de entornar de um golpe olquido claro e cheiroso; mas lanou um olhar aVasslii Andritch, lembrou-se da sua promessa,lembrou-se das botas que vendera para beber, dotoneleiro, do filho a quem prometera comprar um

    cavalo na primavera, suspirou e recusou a bebida.- No bebo; agradeo-lhe muito - 'disse ele,

    franzindo o sobrolho, e sentou-se num banco juntoda janela.

    - Mas por que isso? - indagou o irmo maisvelho.

    - No bebo; s por isso - respondeu Nikitasem levantar os olhos; e, entortando-os nadireo de seus ralos bigodes e de sua barba,comeou a tirar os pedacinhos de gelo que sehaviam incrustado neles.

    - A bebida no lhe faz bem - explicou VassliiAndritch, mordendo um sequilho, depois de

    ingerir um clice de vodca.

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    - Ento tomars ch - sugeriu a boa velha. -Deves estar gelado, boa alma. Eh, mulheres! Queesto esperando para passar-nos o samovar?

    - Est pronto - disse uma das noras; e, tendolimpado com um pano a parte de cima dosamovar que lanava jatos de vapor, ergueu-ocom esforo e colocou-o pesadamente na mesa.

    Vasslii Andritch se ps a contar comotinham se perdido e voltado por duas vezesquela aldeia; como tinham vagado longo tempoao acaso e encontrado um tren carregado decamponeses bbados. Os velhos admiravam-se eexplicavam onde e por que eles haviam perdido ocaminho, quem eram os indivduos embriagadosque tinham encontrado e a direo que deviamtomar.

    - At Moltchnovka muito simples; umacriana no se enganaria; basta fazer a curva emtempo. H l um capo de mato. - E vocs,entretanto, se enganaram - acrescentou o vizinho.- Quem sabe querem dormir aqui? As mulhereslhes arranjaro os leitos - insistia a velha.

    -Assim partiriam amanh bem cedo; seriatimo - acrescentou o velho.

    - Impossvel, amigo. Tenho negcios

    importantes! - respondeu Vasslii Andritch. - Oque se perde numa hora nem num ano serecupera - acrescentou, lembrando-se da florestae dos negociantes que poderiam roubar-lha. -Havemos de chegar l, no verdade? -acrescentou, dirigindo-se a Nikita.

    Nikita no respondeu imediatamente, como

    se continuasse ocupadssimo com a sua barba e

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    os seus bigodes.

    - Contanto que no acabemos por nos perderde novo - murmurou ele, afinal, com ar sombrio.

    Nikita estava tristonho porque sentia um

    forte desejo de beber a vodca; s o ch teriapodido acalmar esse desejo, mas ainda no lhotinham oferecido.

    - Mas basta chegarmos at a curva; e depoisno haver o que errar - estaremos na floresta;at chegarmos ao destino.

    - Isso com o senhor, Vasslii Andritch.

    Como quiser - disse Nikita, recebendo o copo dech que lhe estendiam.

    - Bebamos o ch e depois - para a frente,marcha!

    Nikita no disse nada; mas abanou a cabeae, tendo derramado prudentemente o ch no

    pires, ps-se a aquecer sobre o vapor as mos dededos intumescidos pelo trabalho. Depois,levando boca um minsculo torro de acar,saudou o velho e a velha e disse:

    - vossa sade! - e sorveu o lquidoescaldante.

    - Se algum pudesse levar-nos at a tal curva

    - sugeriu Vasslii Andritch.- Por que no? Nada mais fcil - respondeu o

    filho mais velho. - Petruchka atrelar um tren eos guiar at a curva.

    - Vamos ento, amigo. Vai atrelar que teagradecerei.

    - Que dizes, minh'alma? Faremos isso de

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    corao - interveio a boa velha.

    - Petruchka, atrela a gua - ordenou o filhomais velho.

    - Isto eu posso fazer - aquiesceu Petruchka,

    sorrindo e apanhando o seu gorro que pendia deum prego, correu a atrelar o tren.

    Enquanto atrelava, a conversa que forainterrompida pela chegada de Vasslii Andritchretomou o seu fio. O velho queixava-se ao vizinhodo seu terceiro filho, que no lhe enviara nadapara as festas e no presenteara a sua mulher

    seno com um leno francs. - Os jovens noobedecem mais - dizia o velho.

    - Nem fale! No se pode com eles - retrucou ovizinho. - So demasiado inteligentes. VejaDimotchkin! Quebrou o brao do pai. Tudo isso evidentemente o resultado de saberem coisasdemais.

    Nikita ouvia atentamente, examinava asfisionomias, e teria por certo desejado tambmparticipar da conversa; mas estava por demaisocupado com o seu ch e contentava-se emsacudir a cabea, guisa de assentimento.Esvaziava um copo aps outro; aquecia-se cadavez mais e se sentia cada vez melhor. A conversa

    continuava a versar sobre o mesmo tema, sobre apartilha dos bens e o mal que da resultava. E eraevidente que no se tratava de um caso abstrato,mas justamente daquela famlia, onde a partilhados bens vinha sendo exigida pelo segundo filho,o qual se encontrava sentado ao lado do pai,taciturno e sombrio. Era evidente que se estavaem face de uma questo dolorosa que preocupava

    toda a famlia; mas eles no achavam de bom-

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    tom discutir diante de estranhos os seus assuntosparticulares. Todavia, o velho no pde conter-sepor mais tempo e declarou com lgrimas na vozque, enquanto vivesse, no aceitaria partilhaalguma, que tinham tudo com fartura, graas a

    Deus, e que se a partilha fosse feita a famliaacabaria indo mendigar sob as janelas.

    - Foi o que aconteceu com os Matviev -lembrou o vizinho. - Eles tinham tudo o queprecisavam; e, agora, que se separaram, ningumtem nada.

    - o que ests querendo - volveu o velho,dirigindo-se ao filho.

    Este no respondeu e fez-se um silncioconstrangedor. Petruchka que, tendo atrelado agua voltara para dentro havia j alguns instantese ouvia a sorrir, foi quem o quebrou.

    - H sobre isso uma fbula no livro de Paulsen

    - disse ele. - Um pai props a seus filhos quebraruma vassoura: eles no o conseguiram, masseparando os fios da palha tornou-se fcil. issomesmo - concluiu ele com um largo sorriso. - Estpronto! - acrescentou.

    - Est pronto? Ento vamos! - disse VassliiAndritch. - E quanto partilha, vov, no cedas.

    Foste tu quem ganhou tudo; s o dono. Dirige-teao juiz de paz. Ele dir o que deve ser feito.

    - Cria tantos embaraos, tantos embaraos -continuou o velho com voz chorosa - que a genteno arranja nada com ele. Dir-se-ia que Sat estdentro dele.

    Nikita, tendo terminado o seu quinto copo de

    ch, no emborcou sobre o pires o copo vazio,

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    mas sim colocou-o de um lado, na esperana deque o enchessem pela sexta vez. Mas o samovarestava vazio e a velha no lhe ofereceu maisnada; de mais a mais, Vasslii Andritch jcomeara a aprontar-se. No havia nada a fazer;

    Nikita levantou-se tambm, recolocou noaucareiro o pequeno pedao de acar que roerade todos os lados, enxugou com a aba do cafet orosto banhado em suor e tornou a vestir a pelia.

    Quando ficou pronto, suspirouprofundamente, agradeceu aos donos da casa e,depois de dizer-lhes adeus, saiu da sala iluminada

    e bem aquecida para entrar no vestbulo escuro efrio, onde o vento uivava e a neve penetravaatravs das frestas da porta e das paredes.Depois desceu para o ptio na escurido.

    Petruchka, metido numa pelia, se achava dep junto ao seu cavalo no meio do ptio edeclamava a sorrir versos tirados do livro de

    Paulsen: "A nevasca escurece o cu, erguendoturbilhes de neve; ora uiva como uma fera, orachora como uma criana".

    Nikita abanou a cabea com um ar aprovadore desamarrou as rdeas.

    O velho acompanhara Vasslii Andritch comuma lanterna na mo; quis pous-la no vestbulo,

    para que os hspedes pudessem enxergar melhor,mas o vento imediatamente apagou-a. Era visvel,mesmo no ptio, que a tempestade de nevecontinuava a soprar mais violenta ainda do queantes.

    "Que tempo!" - pensou Vasslii Andritch. Talvez fosse melhor ficarmos. Mas impossvel -

    os negcios! E, depois, j est tudo preparado

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    para partirmos, o cavalo do patro foi atrelado...Havemos de nos arranjar. Deus nos ajudar!

    O velho tambm dizia consigo mesmo queeles fariam melhor pousando ali; mas j os haviaaconselhado e no lhe tinham dado ouvidos. Intilinsistir. "Talvez eu que me tenha tornadomedroso por estar envelhecendo! Talvez nadalhes acontea! - pensou. E assim iremos nosdeitar cedo, sem amolaes..."

    Petruchka, esse, no pensava em absoluto noperigo: conhecia to bem a estrada e osarredores! E depois, os versos que acabava derecitar ainda mais lhe aumentavam a coragem,pois exprimiam exatamente o que se passava aosseus olhos.

    Quanto a Nikita, no tinha nenhuma vontadede partir; mas estava h muito tempo habituado ano ter vontade prpria e a estar a servio deoutros. Ningum, portanto, reteve os viajantes.

    - V -

    Vasslii Andritch acercou-se do tren sapalpadelas, pois no se podia enxergar nada ali,embarcou nele e tomou as rdeas.

    - Vai na frente! - gritou para Petruchka.

    Petruchka, de joelhos em seu tren semassento, largo e baixo, deu rdeas ao cavalo. OBaio, que se pusera a relinchar havia algunsmomentos, sentindo que tinha uma gua pelafrente, lanou-se em seu encalo. Os dois trenspartiram pela rua.

    Seguiram o mesmo caminho que antes;passaram diante do ptio, onde o vento faziaestalar a roupa gelada que no mais se podia ver,

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    diante do celeiro j agora quase completamentesoterrado na neve, diante dos mesmos vimeirosque, vergando sob as rajadas do vento, gemiam eassobiavam lugubremente; e mergulharam denovo num mar enfurecido, cujas vagas de neve os

    assaltavam por todos os lados. O vento estava toforte, que quando soprava de lado, fazia o treninclinar-se e empurrava o cavalo para o ladooposto.

    Petruchka corria ao trote da sua esplndidagua, que ele instigava com gritos agudos. O Baioesforava-se por alcan-la. Avanavam assim

    havia j uns dez minutos, quando Petruchka sevoltou e gritou-lhes algumas palavras, que nemVasslii Andritch nem Nikita puderam entenderpor causa da ventania; mas adivinharam quetinham chegado curva da estrada. E de fato,Petruchka dobrou direita; o vento, que at entosoprava de lado, passou a bater-lhes em cheio norosto atravs da neve eles entreviram direitamanchas negras; era o tal galho d carvalho.

    - Que Deus os assista!

    - Obrigado, Petruchka!

    - "A tempestade escurece o cu"! - declamouuma ltima vez Petruchka.

    -A est um fazedor de versos! -comentouVasslii Andritch e bateu ligeiramente com asrdeas nos flancos do cavalo.

    - Sim, um bom rapaz, um verdadeirocampons - disse Nikita. Avanavam rapidamente.

    Bem embrulhado em sua pelia, com acabea to profundamente enterrada nos ombros

    que a barba curta lhe espetava o pescoo, Nikita

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    permanecia calado, procurando no perder aproviso de calor que conseguira na isb custado ch quente. Divisava pela frente as duas linhasretas dos times que constantemente oenganavam, pois os tomava por sulcos da

    estrada, as ancas oscilantes do Baio com a caudaamarrada num n que o vento impelia semprepara o mesmo lado, mais longe, frente, a cabeado cavalo, balanando-se sob a alta dug e seupescoo de crina solta ao vento. De quando emquando, Nikita distinguia os marcos; sabia,portanto, que continuavam seguindo pela estrada

    e que, por conseguinte, nada havia a fazer.Vasslii Andritch guiava, permitindo aocavalo manter-se por si na estrada. Mas, emborativesse descansado, o Baio trotava a contragosto,ao que parecia, e dava a impresso de que queriaafastar-se da estrada, a tal ponto, que VassliiAndritch teve vrias vezes que lhe puxar asrdeas.

    "L est um marco direita, um segundo eum terceiro" - contava Vasslii Andritch. - "E ladiante a floresta" - dizia consigo mesmo,esforando-se por discernir uma massa escuraque entrevia pela frente. Mas o que lhe haviaparecido ser uma floresta no passava de umarbusto. Este foi transposto e eles percorrerammais umas vinte sgens: nem marco, nemfloresta. "A floresta deve estar l" - dizia de sipara si Vasslii Andritch. E, excitado pela vodca epelo ch, no parava de instigar o animal. Este,dcil e corajoso, corria ora a passo, ora a trotecurto, na direo para onde o impeliam, sabendoperfeitamente que aquela direo no era a certa.

    Mais dez minutos se escoaram: a floresta

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    continuava invisvel.

    - Estamos de novo perdidos' - exclamouVasslii Andritch, detendo o cavalo.

    Nikita desceu em silncio do tren e,

    segurando o cafet que, ora colava-se-lhe aocorpo, ora se virava e se abria todo, ps-se aandar pela neve, a princpio numa direo, depoisnoutra. Trs vezes desapareceu completamenteda vista de Vasslii Andritch. Por fim voltou etomou as rdeas das mos do amo.

    - Temos que tomar a direita - concluiu em

    tom severo e firme, e fez o cavalo virar.-Est bem, tomemos a direita - concordou

    Vasslii Andritch, passando-lhe novamente asrdeas e escondendo as mos geladas dentro dasmangas.

    Nikita no respondeu.

    - Vamos, meu querido amigo, mais umesforozinho! - gritou para o cavalo.

    Este, porm, no caminhava seno a passo,por mais que Nikita sacudisse as rdeas.

    Em certos lugares afundava-se na neve atos joelhos e, a cada movimento do cavalo, o trenavanava a pequenos arrancos. Nikita apanhou o

    chicote que estava espetado na parte dianteira dotren e fustigou o cavalo. O brioso animal, queno estava habituado ao chicote, fez umtremendo esforo e se ps a trotar, mas quaseque imediatamente voltou andadura e depois aopasso. Avanaram assim durante cinco minutos,mais ou menos. Estava to escuro e os turbilhesde neve eram to densos, que em certosmomentos, do interior do tren, no se distinguia

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    nem sequer a dug. Parecia, s vezes, que o trenno mais saa do lugar e que a plancie deslizavapara trs. Sbito, o cavalo estacou com ummovimento brusco, pressentindo por certo algumperigo. Largando as rdeas, Nikita desceu de novo

    e foi na frente para averiguar a causa daquelaparada; mas nem bem ultrapassara a cabea doanimal, seus ps escorregaram e ele rolou.

    - Pra! Pra! Pra! - dizia a si mesmo,esforando-se por parar; mas no podia suster-see s parou quando seus ps se enterraram naespessa camada de neve que o vento acumulara

    no fundo do barranco.A camada de neve que recobria os bordos do

    barranco, abalada pela queda de Nikita, caiusobre ele; o coitado ficou com neve por dentro dagola.

    - Ah, assim! - exclamou Nikita num tom decensura, dirigindo-se ao barranco e neve quelhe cara por cima.

    E comeou a sacudir-se.

    - Nikita! , Nikita! - gritava l de cima VassliiAndritch. Mas Nikita no respondia.

    No tinha tempo; estava se sacudindo eprocurando o chicote, que com a queda deixara

    cair. Depois que o encontrou, achou-se no deverde subir pelo mesmo ponto por onde haviaescorregado, mas no o conseguiu; a cadatentativa tornava a escorregar. De tal modo que,para resumir, teve que seguir pelo fundo dobarranco para encontrar alguma sada. A trssgens de distncia do lugar onde escorregara,

    conseguiu, com grande dificuldade, galgar o

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    barranco, ajudando com as mos, e depoiscaminhou pela beira da ravina na direo doponto onde devia, a seu ver, encontrar-se ocavalo. Todavia no viu nem cavalo nem tren.Mas como estivesse caminhando contra o vento,

    antes de v-los ouviu os gritos de VassliiAndritch e os relinchos do Baio que o chamavam.

    - J l vou, j l vou! Que idia essa de teesgoelares assim? - respondeu ele.

    S quando estava bem perto do tren, foi queavistou o cavalo e ao lado dele Vasslii Andritchque lhe pareceu enorme.

    - Onde te meteste? Que o diabo te leve!Temos que voltar para trs. Vamos ver se aomenos conseguimos voltar para Grchkino - dissea Nikita seu amo em tom furioso.

    - Voltar para Grchkino! No quero outracoisa. Mas como! H ali uma ravina to funda que

    quando a gente cai dentro dela no pode maissair. Ca l e s a muito custo consegui chegar denovo c em cima.

    - Pois bem, no vamos ficar aqui! Precisamostocar para frente - declarou Vasslii Andritch.

    Nikita no respondeu. Sentou-se no trencom as costas voltadas para o vento, descalou as

    botas e sacudiu a neve que as enchia. Depois,apanhou um punhado de palha e tapoucuidadosamente pelo lado de fora o rombo do pesquerdo.

    Vasslii Andritch calara-se, como se agoradeixasse tudo por conta da sagacidade de Nikita.Depois de calar-se de novo, Nikita entrou no

    tren, enfiou as luvas, tomou as rdeas,

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    manobrou o cavalo e f-lo avanar pela margemda ravina. Mas, nem bem haviam dado umacentena de passos, eis que o animal estaca denovo, subitamente. Estavam outra vez diante deuma ravina.

    Nikita desceu de novo e adiantou-se procura de uma passagem. Isso demorou muitotemp Por fim, reapareceu do lado oposto ao quetomara ao deixar o tren.

    - Como , Andritch, ainda ests vivo? -gritou ele.

    - Estou aqui - respondeu Vasslii Andritch.- No consigo orientar-me. Est escuro, h

    barrancos. Precisamos andar conforme o vento.

    Partiram outra vez, outra vez Nikita apeou,arrastando-se na neve. Subia, descia e por fim,sem flego, parou perto do tren.

    - Ento, que que h? - indagou VassliiAndritch.

    - H que estou exausto. E o cavalo tambmno agenta mais.

    - Que fazer, ento?

    - Esperar um pouco.

    Nikita tornou a afastar-se, mas dessa vezvoltou logo.

    - Segue-me - disse ele, colocando-se diantedo cavalo. Vasslii Andritch no dava maisordens, fazendo sem replicar tudo o que Nikita lhedizia.

    - Segue-me - gritou de novo Nikita.

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    Deu um passo direita, segurou rapidamenteo Baio pelo freio e puxou-o para o amontoado deneve que recobria os bordos do barranco. Aprincpio o animal resistiu, mas depois deu umsalto para a frente, contando poder passar por

    cima do monte de neve: no o conseguiu,entretanto, e enterrou-se nela at o pescoo.

    - Desce! - gritou Nikita para Vasslii Andritch,que continuava sentado no tren e, agarrando umdos times, ps-se a empurrar o tren que subiupor cima da anca do cavalo.

    - Est difcil, irmozinho - disse ele ao cavalo- mas que fazer? Mais um esforo. Vamos! Vamos!- gritou.

    O animal deu dois impulsos, mas noconseguiu subir; abateu-se ento sobre si mesmoe pareceu refletir.

    - Como , amigo? No podemos ficar assim -

    Nikita fez ver ao cavalo. - Vamos, mais uma vez!E de novo Nikita agarrou um dos times,

    enquanto Vasslii Andritch empurrava o outro. Ocavalo sacudiu a cabea, cobrou nimo e deu umarranco.

    - Vamos! Vamos! No tenhas medo de nada!No te afogars! - gritava Nikita.

    Um arranco, outro, um terceiro e o cavaloconseguiu, afinal, sair do monte de neve; parou,ento, ofegando penosamente e sacudindo-se.

    Nikita queria continuar a avanar; masVasslii Andritch bufava de tal forma por baixo dasuas duas pelias que, no mais em condies decaminhar, deixou-se cair dentro do tren.

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    - Deixa-me respirar - disse ele, desatando oleno que na aldeia havia amarrado em torno dagola da pelia.

    - Agora a coisa ir melhor. Fica a - respondeuNikita. - Eu vou conduzi-lo.

    E enquanto Vasslii Andritch se instalava notren, Nikita segurou o cavalo pelo freio, f-lodescer uns dez passos, depois o puxou at umpouco mais em cima e parou.

    No estavam no fundo da ravina, onde aneve, levada pelo vento, poderia cobri-los

    totalmente; mas o lugar onde Nikita se detiveraera um declive e ficava um pouco protegido datempestade pelos bordos do barranco. Em certosinstantes o vento parecia diminuir, mas essascalmarias relativas no duravam e depois delas,como se quisesse recuperar o tempo perdido, aventania recomeava a soprar com foradecuplicada e erguia a neve em turbilhes comfria ainda mais feroz. Uma dessas rajadasabateu-se sobre eles no momento exato em queVasslii Andritch, tendo retomado flego, saa dotren e aproximava-se de Nikita para perguntar-lhe o que pretendia fazer.

    Ambos se agacharam involuntariamente eesperaram ali que a clera do vento se aplacasse.

    O cavalo murchara tambm as orelhas com ardescontente e agitava a cabea. Assim que arajada passou, Nikita descalou as luvas, enfiou-as no cinto, aqueceu as mos com o prprio bafoe ps-se a desafivelar as correias da dug.

    - Que ests fazendo a? - indagou VassliiAndritch.

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    - Estou desatrelando. Que mais nos restafazer? Eu no agento mais - respondeu Nikita,como que se desculpando.

    - No vamos poder prosseguir?

    - Para onde iremos? Vamos matar o cavalo.Bem vs que ele no pode mais se mexer,coitadinho - argumentou Nikita, mostrando oanimal que se conservava de cabea baixa,submisso e disposto a tudo e cuja respiraoofegante sacudia-lhe os flancos empapados desuor. - Temos que passar a noite aqui - declarou -como se se tratasse de dormir num albergue.

    E comeou a desafivelar a correia queprendia o cabresto do cavalo.

    As fivelas se abriram.

    - No iremos morrer de frio? - perguntouVasslii Andritch.

    - bem possvel. Mas como escapar disso? -respondeu Nikita.

    - VI -

    Vasslii Andritch, debaixo de suas duaspelias, estava mais que aquecido, principalmentedepois do esforo que fez para tirar o cavalo e otren do monte de neve. Mas sentiu um frio na

    espinha quando compreendeu que teriam mesmode passar a noite em pleno campo. Para tentaracalmar-se, sentou-se no tren e tirou do bolso oscigarros e uma caixa de fsforos.

    Enquanto isso, Nikita desatrelava o cavalo.Desafivelou a barrigueira, a pequena sela, asrdeas e as tiras de couro e retirou a dug, sem

    parar de falar com o animal e de o encorajar.

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    - Vamos, sai da! - dizia-lhe ele, puxando-o deentre os varais. - Vou te amarrar, vou te dar umpouco de palha e vou tirar-te o freio.

    E fazia o que dizia.

    - Quando tiveres comido, hs de te sentir umpouco mais alegre.

    Via-se, porm, que o discurso de Nikita noconseguia tranqilizar o Baio, que se mostravamuito inquieto. Sapateava, colava-se ao trencom as costas contra o vento e esfregava acabea na manga de Nikita.

    Com um movimento brusco, abocanhou umpouco de palha que estava no tren, mas dir-se-iaque o fez apenas para no ofender Nikita comuma recusa; logo, porm, concluiu que no setratava de comer por ora e largou a palha. Ovento, no mesmo instante, apoderou-se dela,espalhando-a.

    - Agora vamos arranjar um sinal - disseNikita.

    Voltou o tren de frente para o vento, uniucom a correia da pequena sela as pontas dos doisvarais e ergueu-os, apoiando-os contra a partefronteira do tren.

    - Pronto! Se formos soterrados pela neve,alguma boa alma ficar sabendo pelos varais eviro nos desenterrar - concluiu Nikita, tornando acalar as luvas depois de as sacudir. - Era assimque os mais velhos nos ensinavam a fazer.

    Vasslii Andritch, tendo aberto a pelia eprotegendo-se com as abas do agasalho, riscavaum fsforo aps outro na caixa metlica; massuas mos tremiam e os fsforos que acendia se

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    apagavam imediatamente ou no momento emque os aproximava do cigarro. At que por fim umdeles se inflamou e iluminou pelo espao de uminstante a pele de seu capote, sua mo em cujodedo ndex luzia um anel de ouro e a palha de

    aveia salpicada de neve que aparecia sob amanta. O cigarro acendeu-se. Ele tirou duasvidas baforadas; tragou a fumaa e expeliu-alogo em seguida atravs dos bigodes. Quiscontinuar fumando, mas o vento arrancou-lhe ocigarro da boca e levou-o para longe.

    Aquelas poucas baforadas de fumo alegraram

    Vasslii Andritch.- J que preciso, passemos a noite aqui! -

    declarou em tom decidido. - Espera um pouco -vou arranjar-te uma bandeira. Apanhou o lenoque minutos antes tirara do pescoo e jogara nofundo do tren, e tendo descalado as luvas,trepou na parte dianteira do veculo, alou-se nas

    pontas dos ps para alcanar a correia que uniaos varais e atou firmemente a ela o leno. Ovento, incontinente, se ps a agit-lo comviolncia, fazendo-o estalar, ora colando-o contrao varal, ora enfunando-o como uma vela.

    - Ficou timo! - exclamou Vasslii Andritch,admirando a sua obra e instalando-se no tren. -

    Se ficssemos os dois juntos nos aqueceramosmelhor - acrescentou -, mas no h espao paradois.

    - Eu arranjarei um lugar - disse Nikita. - Mas preciso cobrir o cavalo, pois ele est banhado emsuor, o pobrezinho. Deixa-me passar - prosseguiue, aproximando-se do tren, retirou a manta que

    estava por baixo de Vasslii Andritch.

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    Dobrou-a em duas e depois de retirar aretranca da pequena sela, cobriu com ela o Baio.

    - Assim ficars um pouco mais quente,tolinho! - murmurou, recolocando a retranca eapequena sela por cima da manta. Quandoacabou, aproximou-se de novo do tren.

    - No vais precisar da serapilheira, no ? Ed-me tambm um pouco de palha.

    Depois de tirar de sob Vasslii Andritch aserapilheira e a palha, Nikita foi para trs dotren, cavou um buraco na neve, forrou-o com a

    palha e depois de enterrar o gorro at o nariz,enrolou-se no seu cafet, cobriu-se com aserapilheira e sentou-se sobre a palha,encostando-se ao tren que o resguardava dovento e da neve.

    Vasslii Andritch observava a manobra deNikita, sacudindo a cabea com ar desaprovador;

    alis, reprovava sempre a ignorncia e a burricedos camponeses.

    Achou, ento, que era tempo de, por sua vez,instalar-se para enfrentar a noite.

    Juntou a palha que restara no fundo do tren,amontoou-a guisa de travesseiro para apoiar-sede lado e, tendo enfiado as mos nas mangas,

    deitou-se, com a cabea apoiada parte fronteirado tren que assim o protegia do vento.

    No tinha vontade de dormir. Refletia: refletiasempre na mesma coisa, no que constitua o nicoobjetivo, o significado, a alegria e o orgulho dasua existncia - o dinheiro que ganhara e queainda podia ganhar, o dinheiro que possuam as

    outras pessoas que conhecia, os meios pelos

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    quais elas tinham feito fortuna e os processosgraas aos quais poderia, como elas, ganhar aindamuito dinheiro. A compra da floresta deGoritchkino tinha para ele uma importnciaimensa; esperava auferir desse negcio gordos

    lucros - talvez uma dezena de milhares de rublos.E comeou a avaliar em imaginao a floresta quepercorrera no outono e cujas rvores contaranuma extenso de dois hectares.

    "Os carvalhos fornecero madeira paratrens e tambm madeira para construo e cadahectare dar bem trinta sgens de lenha. De cada

    hectare, portanto, tirarei por baixo vinte e cincorublos. A floresta tem, ao todo, cinqenta e seishectares. Cinqenta e seis hectares, cinqenta eseis centenas e mais cinqenta e seis centenas, ecinqenta e seis dezenas mais cinqenta e seisdezenas, mais cinqenta vezes cinqenta e seis."

    Viu que tudo somado daria mais de doze mil

    rublos, mas sem as bolas de somar no podiaencontrar a quantia exata. "No darei mesmo dezmil rublos, mas oito mil, descontando as clareiras."Engraxarei" o agrimensor, correndo-lhe uns cemou cento e cinqenta rublos de gratificao e eleme medir a uns cinco hectares de clareiras. Sim,ele me ceder pelos oito mil. Dou-lheimediatamente uma entrada de trs mil rublos.Isso o amolecer, na certa!" Tateou com ocotovelo a carteira que tinha no bolso. "Comopudemos perder-nos depois de termos passado acurva? S Deus sabe! A floresta devia ser aqui e acabana. Mas no se ouve ladrar os ces. Osmalditos no ladram quando a gente precisadeles."

    Abaixou a gola e apurou o ouvido; mas no

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    se ouvia mais que os assobios do vento, o estalardo leno amarrado aos varais e o rudo da neveque fustigava o tren. Tornou a cobrir-se.

    "Se soubssemos, teramos dormido naaldeia. Mas no h de ser nada. Amanhchegaremos. No perderemos mais que um dia.Com um tempo destes, os outros tambm nomovero uma palha." E lembrou-se que no dia 9teria que receber o dinheiro do magarefe. "Elequeria vir pessoalmente, mas no me encontrar.Minha mulher no saber nem sequer receberesse dinheiro. Tem muito pouca instruo, na

    verdade. Nem sequer tem maneiras." E lembrou-se que ela no tinha sabido conduzir-se napresena do chefe do distrito que na vspera fora festa em casa deles. "Naturalmente umamulher! Sabe-se j o que pode ser isso! Que queela viu? No tempo de meus pais que era a nossacasa? Quase nada! Apenas a casa de umcampons rico: um barraco, um albergue, eratudo o que se tinha. E eu, que consegui em quinzeanos? Um armazm, duas tavernas, um moinho,um celeiro de trigo, duas glebas arrendadas, umacasa com um galpo, tudo isto, coberto de chapasde ferro", dizia consigo mesmo cheio de orgulho." bem diferente do tempo de meu pai! Hoje emquem que se fala em toda esta zona? Em

    Brekhunov!""E por que isso? Porque eu trabalho. No sou

    como os outros, os preguiosos ou os que seocupam com besteiras. Eu no durmo de noite.Faa bom ou mau tempo, sigo viagem. assimque os negcios vo pra frente. Eles pensam quedinheiro se ganha assim, brincando. No, tens que

    penar e quebrar a cabea. Passa a noite como

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    hoje em pleno campo e no dorme. custa derefletir, a gente acaba, por assim dizer, fazendodos pensamentos travesseiro" - refletia comorgulho. "Pensam que possvel a gente vir a seralgum graas sorte. Os Mironov agora esto

    milionrios. E por qu? Trabalha! E Deus teajudar. - S peo a Deus que me d sade!"

    E a idia de que poderia tornar-se milionriocomo aquele mesmo Mironov que sara do nada,transtornou a tal ponto Vasslii Andritch que elesentiu necessidade de falar com algum. Mas nohavia ningum ali com quem falar.

    Ah! se estivesse em Goritchkino teriaconversado com o proprietrio e ele haveria dever.

    "Que vento! Vamos ficar to profundamentesoterrados na neve, que amanh no poderemosmais sair daqui" - disse consigo mesmo, apurandoo ouvido na direo dos turbilhes de neve quefustigavam a parte da frente do tren. Soergueu-se e relanceou o olhar em torno: naquelapenumbra esbranquiada, no se distinguia senoa cabea escura do cavalo, seu dorso sob a mantaque o vento agitava e sua grossa cauda amarradaem n. Em derredor, por todos os lados, pelafrente e por trs, agitavam-se trevas leitosas,

    montonas e ondulantes, que por momentospareciam tornar-se mais claras, mas logo setornavam ainda mais densas.

    "Fiz mal em dar ouvidos a Nikita - pensavaVasslii Andritch. - Devamos prosseguir.Haveramos de chegar a algum lugar. Quandomais no fosse, voltaramos para Grchkino e l

    pernoitaramos em casa de Tarass. Ao passo que

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    agora temos que passar a noite inteira aqui. Ah,sim, mas que foi mesmo que eu lembrei deagradvel? Sim, que Deus abenoa o trabalho eno d nada aos preguiosos nem aos imbecis...Ah! Eh! Eu preciso fumar!"

    Sentou-se, tirou do bolso a cigarreira edeitou-se de bruos, puxando a aba da pelia paraproteger a chama do fsforo; mas o ventoconseguia sempre passar por baixo da pelia eapagava os fsforos uns aps outros. Por fim,Vasslii Andritch conseguiu que um deles seinflamasse e se ps a fumar. O fato de ter, apesar

    de tudo, conseguido faz-lo, causou intenso jbiloa Vasslii Andritch. Embora quem mais tivessefumado o seu cigarro fosse o vento, VassliiAndritch conseguiu tirar duas ou trs baforadas esentiu-se reanimado. Tornou a deitar-se, cobriu-secuidadosamente e se ps de novo a pensar nopassado e a sonhar com as suas riquezas futuras;depois, bruscamente, seus pensamentos seembrulharam e ele adormeceu.

    Mas, de sbito, sentiu como que um choque edespertou. Teria sido o Baio que tentara puxaralguns fios da palha sobre a qual estava deitado,ou teria sido um choque interno? Fosse o quefosse, o fato que despertou e que seu coraocomeou a bater com tanta fora e com talrapidez, que lhe pareceu; que o tren tremiadebaixo dele. Abriu os olhos. Nada havia mudadoem torno de si; todavia, pareceu-lhe que estavamais claro. "Est comeando a clarear - disse de sipara si -, certamente no tarda amanhecer". Logo,porm, lembrou-se de que estava mais clarodevido lua. Soergueu-se e lanou primeiro um

    olhar ao cavalo. O Baio continuava de p, de

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    costas voltadas para o vento e tremia. A manta,branca de neve, tinha uma das pontas revirada; aretranca escorregara e agora se distinguia melhora cabea do animal polvilhada de neve e com afranja e a crina arrepiadas. Vasslii Andritch

    inclinou-se por sobre a parte traseira do tren eprocurou ver o que era feito de Nikita. Estecontinuava sentado na mesma posio. Seus ps,bem como a serapilheira com que se cobrira,haviam desaparecido sob espessa camada deneve. "Tomara que no morra de frio! Suas roupasno valem nada. E, por fim, ainda serei eu o

    responsvel. Que gente estpida! O que faz afalta de instruo!" - pensou Vasslii Andritch.Quis tirar a manta que cobria o cavalo e coloc-lapor cima de Nikita; mas pensou que iria sentir friose levantasse e no se mexeu; alm do mais,temia que o cavalo se resfriasse. "Por que haveriaeu de traz-lo comigo? A culpada foi ela" - pensouVasslii Andritch, lembrando-se de sua mulher, a

    quem no amava. Deixou-se escorregar de novoat o fundo do tren. "Meu tio passou assim umanoite inteira na neve - pensou de sbito - e nolhe aconteceu nada". Mas lembrou-seimediatamente de um outro caso: "Sim, masSevastinos, esse, quando removeram a neve queo cobria, estava morto, rgido, como um pedao

    de carne congelada"."Se eu tivesse ficado em Grchkino nada teria

    acontecido." E depois de embrulhar-secuidadosamente na pelia para que o calor dapele no se perdesse, mas o envolvesse por todosos lados, no pescoo, nos joelhos, na planta dosps, fechou os olhos e tentou readormecer. Mas,apesar de todos os seus esforos, no conseguiamais conciliar o sono; sentia-se, ao contrrio,

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    esperto e excitado. Recomeou a contar os seusganhos e o que lhe deviam; recomeou a gabar-sediante de si mesmo e a regozijar-se com a suabela situao; mas seus pensamentos eram agoraconstantemente interrompidos por um surdo

    terror e pelo arrependimento de no ter ficado emGrchkino. "Teria sido bem diferente; a estas horaseu estaria deitado num banco, bem aquecido!..."Virou-se diversas vezes, tornando a deitar-se, procura de uma posio mais cmoda que oprotegesse mais do vento; nada, porm, osatisfazia. Levantava-se, deitava-se de outro jeito,

    tornava cobrir os ps, fechava os olhos e ficavaquieto um instante. Mas ora eram as pesadasbotas de feltro que lhe apertavam os ps, ora erao vento que se metia por alguma fresta. E elevoltava a pensar, cheio de rancor contra siprprio, como poderia estar bem no clidoambiente da isb de Grchkino; tornava alevantar-se, tornava a virar-se, embrulhava-se

    melhor e tornava a deitar-se.Por um momento, Vasslii Andritch julgou

    ouvir ao longe um canto de galos. Todo alegre,abaixou a gola da pelia e se ps a ouvir maisatentamente. Mas, apesar de toda a sua ateno,nada percebeu alm do barulho do vento quesoprava contra os varais, fazendo estalar o leno,