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2068 ENTRE A LEI E O JUIZ: JUSTIÇA, CIÊNCIA JURÍDICA E "O PROCESSO MAURIZIUS" BETWEEN LAW AND JUDGE: JUSTICE, LEGAL SCIENCE AND "THE MAURIZIUS CASE" Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke RESUMO O século XX protagonizou grandes avanços na construção de teorias sobre a interpretação jurídica, mas pela exacerbação do antipositivismo acabou perdido na dicotomia artificial que coloca a lei de um lado e o juiz do outro. A obra “O processo Maurizius”, de Jakob Wassermann, naquilo que reflete e dialoga com a realidade de seu país e de sua época, é pródiga de pistas sobre os motivos que levaram o pandectismo alemão à ruína e que lapidaram seus radicais antagonistas. A mimesis dessa realidade é estabelecida na relação entretida pelos principais personagens: o barão Andergast, o pai, e Etzel Andergast, o filho, ocupam pólos distintos na trama de Wassermann, e representam respectivamente o culto à pirâmide erigida pela “jurisprudência dos conceitos” e a ruína da identificação entre lei e direito que a “jurisprudência dos interesses” já passava a denunciar. Para que se compreenda a gênese dessa dicotomia será necessário (i) surpreender os dados históricos e literários em que mergulhada a obra, (ii) analisar a carga de tradição que amarra o barão Andergast e (iii) verificar em Etzel Andergast o subjetivismo que reinaria nas décadas seguintes. Extraindo dessa evolução “três modelos de juiz”, ver-se-á como se reconciliam as notas de justiça e segurança quando dissolvida a falsa contraposição entre texto e aplicador, a revelar a necessidade de objetivação e controle do labor judicial, e de redescobrir a doutrina enquanto imprescindível ao momento de resolução judicial dos conflitos. PALAVRAS-CHAVES: SEGURANÇA JURÍDICA; JUSTIÇA; LEI; INTERPRETAÇÃO; JAKOB WASSERMANN. ABSTRACT The twentieth century has presented great breakthroughs in the construction of theories about legal interpretation, but the exacerbation of antipositivism was lost in the artificial dichotomy that puts the law in on one side and the judge on the other. The work “The Maurizius Case”, by Jakob Wassermann, in what reflects and dialogues with the reality Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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ENTRE A LEI E O JUIZ: JUSTIÇA, CIÊNCIA JURÍDICA E "O PROCESSO MAURIZIUS"

BETWEEN LAW AND JUDGE: JUSTICE, LEGAL SCIENCE AND "THE MAURIZIUS CASE"

Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke

RESUMO

O século XX protagonizou grandes avanços na construção de teorias sobre a interpretação jurídica, mas pela exacerbação do antipositivismo acabou perdido na dicotomia artificial que coloca a lei de um lado e o juiz do outro. A obra “O processo Maurizius”, de Jakob Wassermann, naquilo que reflete e dialoga com a realidade de seu país e de sua época, é pródiga de pistas sobre os motivos que levaram o pandectismo alemão à ruína e que lapidaram seus radicais antagonistas. A mimesis dessa realidade é estabelecida na relação entretida pelos principais personagens: o barão Andergast, o pai, e Etzel Andergast, o filho, ocupam pólos distintos na trama de Wassermann, e representam respectivamente o culto à pirâmide erigida pela “jurisprudência dos conceitos” e a ruína da identificação entre lei e direito que a “jurisprudência dos interesses” já passava a denunciar. Para que se compreenda a gênese dessa dicotomia será necessário (i) surpreender os dados históricos e literários em que mergulhada a obra, (ii) analisar a carga de tradição que amarra o barão Andergast e (iii) verificar em Etzel Andergast o subjetivismo que reinaria nas décadas seguintes. Extraindo dessa evolução “três modelos de juiz”, ver-se-á como se reconciliam as notas de justiça e segurança quando dissolvida a falsa contraposição entre texto e aplicador, a revelar a necessidade de objetivação e controle do labor judicial, e de redescobrir a doutrina enquanto imprescindível ao momento de resolução judicial dos conflitos.

PALAVRAS-CHAVES: SEGURANÇA JURÍDICA; JUSTIÇA; LEI; INTERPRETAÇÃO; JAKOB WASSERMANN.

ABSTRACT

The twentieth century has presented great breakthroughs in the construction of theories about legal interpretation, but the exacerbation of antipositivism was lost in the artificial dichotomy that puts the law in on one side and the judge on the other. The work “The Maurizius Case”, by Jakob Wassermann, in what reflects and dialogues with the reality Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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of its country and time, is unsparing of clues about the motives that lead the German pandectism to the ruin and that erected its radical antagonists. The mimesis of this reality is fixed in the relation established between the main characters: the baron Andergast, the father, and Etzel Andergast, the son, occupy different sides in Wassermann’s plot, and represent respectively the cult of the pyramid built by the “jurisprudence of concepts” and the ruin of the identity between legislation and Law that the “jurisprudence of interests” had started to denounce. In order to understand the genesis of this dichotomy it will be necessary (i) to surprise the literary and historic data that plunged into the work, (ii) to analyze the burden of tradition that ties the baron Andergast and (iii) to verify in Etzel Andergast the subjectivism that would reign in the following decades. After extracting of this evolution “three models of judge”, this work will show how the notes of justice and security reconcile when the false opposition between text and interpreter is dissolved, highlighting the need for objectification and control of judicial work, and for the rediscovery of doctrine as essential to the moment of conflict resolution.

KEYWORDS: JURIDICAL SECURITY; JUSTICE; LAW; INTERPRETATION; JAKOB WASSERMANN.

I. INTRODUÇÃO.

Na segunda fase de suas reflexões, Ludwig Wittgenstein comparou as palavras a peões de um jogo de xadrez[2], e assim o fez para demonstrar mais adiante que “seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez, são hábitos (usos, instituições)”[3]. A metáfora esclarece que para a compreensão do significado de uma palavra faz-se necessário surpreender seu uso[4]: este vem envolto por linhas de subjetividade e objetividade, que, tecidas pela história humana, traduzem-se na teia contextual que oscila entre o arbitrário e o tradicional. “A linguagem possui um nicho individual e um nicho social, e não se pode conceber um sem o outro”, ensina Ferdinand de Saussure[5]. As figuras do xadrez não podem ser movimentadas livremente, pois seus vínculos estão pré-determinados pelos costumes do jogo. Mas há a jogada e sobretudo o jogador, e daí se entende que, em sua relativa liberdade, os peões podem ser movidos para qualquer direção: o xeque-mate só depende de quem os move.

Se prosseguirmos raciocinando em termos lúdicos, podemos dizer que a palavra ‘justiça’ é o peão mais importante do tabuleiro de Jakob Wassermann. Os significados que ela assume para cada um dos personagens de “O processo Maurizius” (“Der Fall Maurizius”) são os pontos nodais da linha tramada pelo autor: eles revelam a psique de quem os enuncia e traduzem nos indivíduos os dados de sua época histórica e de sua colocação social. O barão Andergast, procurador responsável pela incorreta condenação de Leonardo Maurizius, acredita ter feito justiça ao seguir estritamente as “tábuas sagradas das pandectas”. Etzel Andergast, seu filho, irresigna-se com pai e vê a justiça como valor supremo, um “direito primordial nascido no coração” do homem “ao mesmo tempo que ele”[6]. Do idealismo de Etzel não compartilha Gregor Waremme (ou Georg Warschauer), o alemão-judeu que despreza a bondade humana e acredita que exigir justiça dos homens “é o mesmo que pretender iniciar um bebê nos mistérios do cálculo

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integral e descuidar de lhe dar o leite que precisa”[7]. A palavra ‘justiça’ na obra de Jakob Wassermann, como se vê, está mais para a significação que lhe dá o guarda Klakusch, ao conversar com o presidiário Leonardo Maurizius: “É uma palavra que parece um peixe; escapa-nos quando a seguramos”[8].

O problema da justiça e sua definição fugidia é temática corrente nas obras de Jakob Wassermann, e muito especialmente naquelas que, com “O processo Maurizius”, constituem uma trilogia: “Etzel Andergast” e “A terceira existência de Joseph Kerkhoven”. Na evolução dessas três narrativas nota-se com bastante clareza que a justiça assume significados correlatos ao tempo e ao espaço em que situado o autor. Ao passo que em “O processo Maurizius” (de 1928) é possível verificar as angústias e as expectativas de um período de transição – o presente é escorregadio: o passado é dissonante e o futuro parece conter boas e más expectativas –, em “Etzel Andergast” (de 1931) o protagonista já se desiludiu com os ideais de sua infância e transformou-se justamente naquilo que o escritor Melchior Ghisels previra: aqueles que elevam a bandeira da justiça aos mais altos cumes são justamente os que, adiante, a arrastam para a lama[9]. Etzel tem um caso com a esposa de seu mestre e destrói a sua família, insensibiliza-se com seus semelhantes e acaba escolhendo o anonimato, refugiando-se definitivamente no isolamento das montanhas. No terceiro romance (de 1934, publicado postumamente), enfim, a justiça assume ares metafísicos e traz consigo idéias típicas de um escritor já moribundo: o vocábulo se identifica com a fé, e a prática religiosa do personagem Joseph Kerkhoven é a única que leva a Deus e que o prepara, dessa maneira, para sua própria morte[10].

De todas essas variações que a justiça assume pelas mãos hábeis de Jakob Wassermann a mais curiosa para o direito é a que se apresenta no primeiro dos três romances, pois revela paradigmaticamente, no antagonismo entre Wolf e Etzel, pai e filho, adulto e adolescente, a falência das construções lapidadas no século XIX pelos juristas alemães: a de identificar direito e lógica, e acreditar que um sistema perfeitamente erigido – quase que sacralizado pela enormidade do edifício – só poderia produzir resultados justos. Etzel é como aquele personagem do grande escritor peruano Julio Ramón Ribeyro que herda de seu bisavô uma famosa e enorme biblioteca, recheada de livros do século XIX, mas que a descobre, quando abre sua porta, reduzida a poeira: “o que numa época tinha sido fonte de luz e prazer era agora excremento, caducidade”[11].

Vê-se bem que o barão Andergast concentra em seu personagem todas as crenças da Alemanha pandectista: o direito equivalia a um sistema fechado, com previsões exaustivas, em que a justiça só poderia brotar da segurança das antecipações abstratas. Por outro lado, em Etzel Andergast repousa a crítica ferrenha ao juiz enquanto máquina de silogismos: na prática dos tribunais, essa visão acaba se mostrando perniciosa e incapaz de produzir decisões justas; Leonardo Maurizius está confinado por um crime que não cometeu. Mas é também em Andergast-filho que se tem o adiantamento mais significativo dos tempos vindouros, em que a atenção se centraria bem mais no sujeito (no intérprete) e em que a segurança, por ainda se identificar com o totalitarismo científico e legal, ficaria relegada a uma importância bastante secundária.

Ressalta aqui, dessa maneira, que as conexões entre direito e obra literária parecem se estabelecer na perspectiva contextual: da mesma maneira que não se compreendem os sentidos das palavras senão quando surpreendendo seu uso, os textos literários, por sua

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natureza mimética[12], não podem ser desvinculados de seu contexto, dos dados de tempo e de espaço em que situados autor e obra. Essa é a chamada “dimensão histórica” da literatura, conforme aponta Carlos Reis: “vivendo num tempo e num espaço concretos, dialogando de diversas formas com a cultura e com o imaginário em que se acha inserido, o escritor representa uma cosmovisão que de certa forma traduz essa relação com o seu tempo e espaço históricos”[13]. Trata-se de resgatar a noção de obra literária enquanto “cronótopo”, introduzida por Mikhaïl Bakhtine, e que firma a interação do texto com a realidade através dos vínculos de tempo (krónos) e de espaço (topos)[14] – resguardada, é claro, a “mensagem transhistórica” das obras literárias quando no trato dos grandes temas[15].

Partindo do pressuposto que o direito é um fenômeno cultural, que se estrutura na história e através da história, e que, por se desenvolver no tempo axiológico, “está necessariamente relacionado aos valores prevalentemente significantes de cada tempo cultural e, por isto, em cada um deles, prevalentemente significativos”[16], conclui-se que é da “dimensão histórica” da literatura que se extrai a melhor seiva para o direito. A obra literária enquanto “cronótopo” tem muito a contribuir para o conhecimento do fenômeno jurídico no tempo e no lugar em que redigida: daí que se possa estabelecer, antes de tudo, um caráter retrospectivo do vínculo, no sentido de surpreender dados úteis à compreensão do direito de outros tempos. Mas, por outro lado, “não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?”. De fato, existe um encontro “marcado entre as gerações precedentes e a nossa”, conforme metaforiza Walter Benjamin[17], e tanto por isso, pelos liames da tradição, é possível surpreender igualmente um caráter prospectivo das relações entre direito e obra literária: há diálogo com o presente na medida que “a experiência conserva a memória do passado como coisa viva”[18].

Diante dessas considerações, a análise de “O processo Maurizius” no que tem de mais contributivo para o estudo jurídico deve partir necessariamente de sua contextualização[19]: há que se extrair da obra a mensagem do autor, escapando-se do pernicioso risco de inserir em sua voz ecos que não são seus e que não possuem conexão com os sons produzidos por sua realidade. Daí o motivo pelo qual a primeira parte deste trabalho pretenderá averiguar o diálogo que Jakob Wassermann estabelece com o direito de sua época, ainda que indireta e inconscientemente. Essa é condição essencial para o passo seguinte: identificar as prospecções da obra literária, tanto no que ela se lança como previsão do direito futuro quanto no que ela dialoga, dessa maneira, com o direito de nossa época. Afinal, como aponta o próprio Jakob Wassermann, “o tempo que, na sua bondade, oculta os fatos ou, cruel, os revela, é todo-poderoso para revelar em toda a sua mesquinhez o valor exato e as proporções reais daquilo que parece primeiramente, ao olhar humano, encadeamento inextricável e impenetrável mistério”[20].

II. O DIÁLOGO DE JAKOB WASSERMANN COM O DIREITO DE SUA ÉPOCA.

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A retrospecção exige, antes de tudo, situar historicamente o autor e sua obra – não apenas descobrindo a realidade alemã que foi forjada na intensa transição do século XIX para o século XX, mas também localizando em que correntes literárias se coloca Jakob Wassermann (ponto A). A abordagem revelará as linhas gerais de “O processo Maurizius”, e oportunizará, daí para frente, que se ajuste o foco naquilo que realmente interessa para os vínculos do texto literário com o direito: o antagonismo que se estabelece entre o Wolf e Etzel Andergast, temperado pelas valiosas denúncias de Leonardo Maurizius. A peça de xadrez, então, estará nas mãos do barão: é de suas convicções que tratará o ponto B deste capítulo.

A-) Texto e contexto: a obra e a realidade histórica.

Eric Hobsbawm bem adverte que não se pode compreender o curto século XX senão sob as chamas das guerras que o incendiaram[21]. Esse foi um dos séculos mais bélicos da história da humanidade, sobretudo porque os conflitos, já tonificados pela massificação das sociedades e pelos pródromos da globalização, assumiram proporções multinacionais e intercontinentais. A guerra marcou profundamente os cem últimos anos, e principalmente na pele daqueles que sofreram mais diretamente todos os seus prenúncios e efeitos. Jakob Wassermann[22], por ser alemão e descendente de judeus, habitante da Alemanha do entre-guerras e participante ativo das letras nacionais, talvez tenha sido um ícone desse torvelinho: ele parece ter absorvido com agudeza – e disso não poderia escapar – as aflições de sua realidade ambígua. Foi um fervoroso alemão, mas não deixou de insurgir-se marcantemente contra o anti-semitismo quando ele redundou em perseguições e homicídios[23].

Nesse sentido, cabe destacar a atuação de Jakob Wassermann enquanto cronista de diversos jornais alemães: publicou ensaios em que, dentre outros temas, tratava com assombro da cientificização desse anti-semitismo (1925), comparava as perseguições à “caça às bruxas” dos séculos XVI e XVII (1925 e 1932), e clamava por justiça, censurando duramente o preconceito contra judeus (1933)[24]. Segundo Rudolf Koester, esse último ensaio gerou a Wassermann sua expulsão da Academia de Letras de uma Alemanha já contaminada pelo nazismo. Suas obras, a partir de então, entraram para a “lista negra” do partido (“Börsenblatt für den Deutschen Buchhandel”), e muitas delas foram queimadas em piras públicas[25]. Ardia com elas o mote principal da vida de Wassermann e de sua rotina de escritor: a luta pela justiça. Talvez não seja uma mera coincidência que um ano depois de Adolf Hitler ascender ao poder, Jakob Wassermann, no triste exílio de Viena, tenha sucumbido definitivamente: “tendo dedicado toda uma vida à sua luta”, à luta pela justiça – segundo aponta Koester –, “ele perdera definitivamente sua raison d’être”[26].

A ambigüidade de sua época, o medo de uma nova hecatombe bélica e o anti-semitismo foram presenças constantes na obra de Jakob Wassermann, e muito

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especialmente em “O processo Maurizius”, escrito no entremeio das guerras e no rodamoinho de fatos que preparavam a ascensão dos nazistas ao poder. As passagens mais significativas sobre esses temas estão relacionadas ao barão Andergast, a Warschauer-Waremme e a Melchior Ghisels, que compõem na obra uma tríade interessantíssima: o primeiro como o típico produto do século XIX, o segundo conscientemente exaltando os valores bélicos e nazistas, e o terceiro ponderando com temor o futuro que assomava no horizonte alemão. É claro que a contraposição mais relevante se dá entre os dois últimos, haja vista que ocupam lugares antagônicos: enquanto que Warschauer-Waremme exalta a superioridade germânica, Ghisels teme as conseqüências desses pensamentos[27].

Na encarnação alemã de Warschauer-Waremme (ou seja, enquanto Gregor Waremme) é possível identificar o protótipo mais acabado de um nazista. Das folhas do processo, o barão Andergast o percebe como “um aliado do diabo”, espírito ativo e admirador de Hegel e do passado alemão, defensor de uma “missão mundial da Alemanha” e da ampliação de seu “espaço vital”. “Apoiando-se sobre a tradição histórica, interrompida ao fim de uma Idade Média próspera pela irrupção da onda latino-celta, erige mentalmente um imperium romano-germânico que se estende da Sicília até a Livônia e de Roterdam ao Bósforo. Faz com que tudo entre nessa construção: a arte, a poesia, o gótico e o barroco, a renascença e a Antigüidade, Cristo e os Padres da Igreja”[28]. É bem provável que Wassermann, nessa época, já tivesse lido a terrível “Minha luta”, de Adolf Hitler[29], já que até mesmo a pregação de um “espaço vital” (Lebensraum) para a Alemanha transparece nas palavras de Waremme.

Nas seara das idéias, seu antagonista é o escritor Melchior Ghisels, de alma elevada e saber indiscutível. Talvez seja um dos personagens mais apreciados pelo próprio autor (não por acaso, Ghisels é escritor), justamente por incorporar os temores que tanto atormentaram Jakob Wassermann em sua vida de lutas contra o anti-semitismo. As antecipações de Wassermann pela boca de Ghisels são impressionantes: “Um profundo e mórbido desejo de destruição se manifesta nas fileiras daqueles que vibram diante dos grandes problemas. Se não se puder remediá-lo (e tenho receio que já seja muito tarde), é forçoso esperar daqui a cinqüenta anos um cataclismo pavoroso que ultrapassará em horror todas as guerras e todas as revoluções que vimos até hoje. É estranho que a destruição emane freqüentemente desses mesmos que se crêem os guardiões dos valores considerados os mais sagrados”[30]. Não demorariam dez anos para que essas previsões se concretizassem.

A colocação social e ideológica dos personagens está intrinsecamente ligada à visão de justiça que cada um deles assume no desenrolar da trama. O barão Andergast, crente nas instituições que o forjaram, não admite a produção de resultados injustos por um edifício científico e legal tão bem arquitetado e construído. Warschauer-Waremme, para sustentar o argumento bélico e expansionista, não acredita na justiça e na capacidade de se atingi-la: bem ao contrário, tenta convencer Etzel em diversos diálogos que todas as conquistas e todos os avanços dos seres humanos estão manchados pelo sangue de inocentes e por guerras de conquista, e só foram possíveis, portanto, por terem-se praticado injustiças. Melchior Ghisels, enfim, do alto de sua sabedoria, representa justamente aqueles que, com o advento de Hitler, ou morreram por seus ideais, ou procuraram abrigo no exílio.

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Mas não é apenas o enquadramento na sociedade de sua época que define o escritor e que produz uma compreensão mais completa da obra em exame. Há que se averiguar quais as correntes literárias que influenciaram Jakob Wassermann, e aqui, paradoxalmente, é importante frisar que o autor fez parte de um dos mais fulgurantes movimentos da literatura alemã: o Simbolismo, que deita raízes na fortíssima virada filosófica de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) e que é fruto da prosperidade alemã anterior à Primeira Guerra Mundial[31]. Como indica Otto Maria Carpeaux, a nova literatura, derivada dos tempos prósperos, exigia uma nova língua, “e essa língua foi Nietzsche quem a deu aos alemães”[32], contra o passadismo, contra o liberalismo e contra o racionalismo[33]. A primeira grande guerra – diga-se de passagem – não foi capaz de quebrar com essas tendências, mas, bem ao contrário, revigorou ainda mais o pessimismo que provinha de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e que era a base de boa parte da filosofia nietzschiana.

Não obstante entremear caracteres do Romantismo e do Realismo, Wassermann foi um simbolista: “O processo Maurizius” está imantado daquilo que Anatol Rosenfeld chama de “radicalização extrema do monólogo interior”[34]. Em termos de foco literário, a história não é contada por um narrador onisciente, mas pelos próprios personagens do livro, que, numa torrente de impressões pessoais e sentimentos, vão revelando paulatinamente os fatos ocorridos. O livro, vez ou outra, chega a pesar pela maneira desenfreada e carregada com que dá espaço às manifestações interiores de seus protagonistas. O psicologismo que daí surge encontra contornos exemplares no conflito constante e central da trama: o antagonismo entre o barão Andergast e seu filho, Etzel Andergast, que representa – não obstante estar presente a mensagem transhistórica da antítese entre pai e filho, que aparece até mesmo em Hesíodo, no longínquo mito teogônico de Cronos e Zeus – a decomposição dos ideais talhados no século XIX versus a incerteza das idéias que poderiam advir em sua substituição. É isso que a obra de Jakob Wassermann parece ter de mais valioso para o direito.

B) Barão Andergast e o direito aprisionado.

“O processo Maurizius” conta a história de uma condenação injusta; não se trata, contudo, de uma injustiça que deriva dos desvarios de um juiz: na história de Wassermann, é o próprio sistema que a produz. Toda a “instituição poeirenta das pandectas”[35] se atira contra o réu e outorga pleno valor – porque é assim que o sistema fixa – a uma testemunha juramentada. É Gregor Waremme, do alto de sua respeitada posição social e do desejo de vingança, que determina a condenação de Leonardo Maurizius: ele o viu com a arma na mão logo depois morta a vítima. A toda e qualquer dúvida o juramento se opõe; “o juramento de Waremme libera os outros de qualquer responsabilidade”, conforma-se o pai do condenado. “Semelhante juramento é uma fortaleza”[36], ainda que não haja qualquer outra prova no mesmo sentido. Tanto é assim que ao longo do texto de “O processo Maurizius” não se tem nenhuma alusão ao juiz da causa, mas tão-somente ao procurador, o barão Andergast, que fez uso do depoimento de Waremme para colocar Maurizius atrás das grades. Não foi o juiz que o

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condenou; não há motivos para fazer-lhe menção. Foram todas essas instituições anciãs que dão cego valor ao juramento, satisfeitas com sua própria perfeição.

O juramento é o símbolo mais paradigmático da caducidade do aparelho com que trabalha o barão Andergast: trata-se da supervivência de elementos afeitos ao sistema da prova legal do processo germânico medieval, em que, por sua taxatividade, levava-se precipuamente em conta as condições sociais (quer-se dizer, estamentais) de quem o proferia, atribuindo ao depoimento graus e valores até mesmo religiosos[37]. Acreditar que uma prova testemunhal juramentada, por si só, possa engendrar uma justa condenação é depositar cega confiança nas instituições jurídicas da época. E, como adverte Marc Bloch, “não há pior desperdício do que o da erudição, quando gira no vazio, nem soberba mais deslocada do que o orgulho do instrumento que se toma por um fim em si mesmo”[38]. É isso o que está por detrás da cegueira do procurador Andergast.

Nas linhas de tensão da obra, o barão assume-se como um defensor das instituições periclitantes do século XIX: ele é rígido, frio e impessoal. Em sua casa impõe obediência “esmagadora e grandiosa como uma montanha”[39]; no labor, sua fama de inflexível, implacável e severo gerou-lhe o apelido de “o sanguinário”[40]. Nutre uma crença quase religiosa no direito que pratica, e não raro se refere a ele como algo sagrado: “O direito não é um compromisso arbitrariamente estabelecido entre as partes, mas uma instituição sagrada e eterna, verdadeira e de valor inatingível desde que existem juízes que condenam os culpados e códigos que classificamos delitos por artigos”[41]. Sofia, sua ex-esposa, numa das discussões finais do livro, afirma que aos olhos do barão, “o direito e a lei são instituições contra as quais a crítica humana não prevalece”[42]. Eles são intocáveis; um edifício faraônico construído ao longo dos séculos e que atingiu a suprema e perfeita lógica: da mihi factum dabo tibi ius, diria a pirâmide – e não a esfinge – para quem a conclama.

Não surpreenderia se o barão Andergast pertencesse, por exemplo, à família de Puchta, ao círculo de amigos do jovem Jhering ou à escola de Windscheid. Esses, afinal, são os autores alemães mais paradigmáticos quando se fala em “jurisprudência dos conceitos” (Begriffsjuriprudenz); pensavam o direito sob a forma sistemática e equivaliam o sistema a critérios matemáticos de racionalidade. Em suas obras, sedimentaram a vocação da Escola Histórica savignyana para “ciência das pandectas”, ou “pandectística” (denominação retirada dos títulos de seus manuais e tratados), representativa do que mais tarde passou a ser identificado como “positivismo científico”. O direito, sob essas luzes, era deduzido exclusivamente do sistema, dos conceitos e dos princípios reconhecidos por sua ciência[43]. Para quem era apaixonado pela matemática, como o barão Andergast[44], as noções pandectísticas de logicidade interna e do papel silogístico do juiz apresentavam absoluta naturalidade: elas dizem com as influências racionalistas do século XVIII absorvidas sobretudo por Georg Friedrich Puchta quando na construção lógico-dedutiva de sua pirâmide de conceitos[45]. A “jurisprudência dos conceitos”, como bem resume Giacomo Gavazzi, depositava importância no caráter lógico e racional da construção dogmática: “il diritto è logica”[46].

Essa identificação do direito com a lógica leva o barão Andergast a exaltar, por exemplo, a concatenação interna do próprio processo, que nas mãos de um juiz consciente de sua atuação estritamente silogística refletiria a perfeição do direito

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piramidal: “Os detalhes se combinam com perfeita lógica, para formar um conjunto que encontrará no veredicto o arremate final. Ali estão verdadeiras pérolas da arte jurídica; somente agora, a distância no tempo permite que se veja globalmente o edifício imponente, a solidez dos alicerces, o sutil mecanismo das engrenagens internas; o profissional sente nisso um prazer estético”[47]. Ao juiz só incumbiria subsumir o fato – depois de conhecido – à norma abstrata, que em sua perfeição e completude emitira a natural e unívoca solução do caso[48]. O peso da ciência jurídica construída ao longo de todo o século XIX não permitiria admitir que ela contivesse incompletudes.

Mas o que jaz por detrás da confiança nesse edifício piramidal e faraônico que, pelas vagas do tempo, já começava a apresentar fissuras? Se o início de “O processo Maurizius” traz um procurador firme em suas crenças, o desenrolar da trama o faz titubear: revela-lhe que o direito que pratica, cego às coisas e às pessoas, atirou um inocente a anos de uma injusta prisão. A crença de que o direito das pandectas, rico em conceitos e conexões, pudesse produzir naturalmente resultados justos, equivalendo segurança e previsão, se esvaece paulatinamente perante os olhos do barão quando, num exercício de estranhamento, relê os autos do “caso Maurizius” e atenta muito mais aos fatos do que às previsões abstratas. “Se uma verdade pela qual outrora se testemunhara perante Deus e perante os homens podia transformar-se, ao fim de um certo tempo, numa caricatura, o que era então, de fato, a verdade em geral? Ou seria somente nele próprio que havia alguma coisa de carcomido, o mecanismo do seu eu teria falhas?”[49].

A atitude do procurador não é muito distinta da assumida por Rudolph von Jhering, jurista alemão que, depois de decepcionar-se com a “jurisprudência dos conceitos”, forjou as bases do que Phillip Heck chamaria de “jurisprudência dos interesses” (Interessenjuriprudenz). Numa primeira fase, estreitamente ligado à doutrina de Puchta, Jhering desenvolve para a ciência jurídica um “método histórico-natural”. Comparado à química, teria a incumbência de desmontar os institutos jurídicos e suas proposições em elementos lógicos, e destes últimos destilar a sua pureza e extrair-lhe normas velhas e novas[50]. Já na segunda fase de sua carreira, tal qual o barão Andergast, Jhering sente as insuficiências da pandectística e se insurge contra a “jurisprudência dos conceitos”, chegando às raias de ironizar os escritos que ele mesmo produzira quando jovem. No quarto volume de seu “Espírito do direito romano” (“Geist des römischen Rechts”, t. IV, publicado em 1864), por exemplo, o autor critica o culto à “auréola da lógica”, adjetivando-a de “superficial” e “ilusória”, nada mais sendo do que “uma miragem” que nos desvia das “verdadeiras fontes”[51]. O autor alemão, então, passa a pregar uma jurisprudência absolutamente pragmática, sobretudo depois da obra “O fim no direito” (“Der Zweck im Recht”, publicada em dois volumes nos anos de 1877 e 1883)[52], e não reconhece hierarquização dos interesses (fins) da sociedade historicamente dada: nega, assim, o valor específico do direito, vendo-o como “o joguete dos interesses que em cada caso são dominantes na sociedade”[53].

“Se não é o paradigma do sistema fechado”, ensina Judith Martins-Costa, “Jhering é, por certo, o paradigma de um momento de mutação – na sociedade, na ciência, na cultura, na economia, nos costumes – que ainda não se revela, em sua plenitude”[54]. A mesma desilusão que fez Jhering reduzir o direito a um “jogo de interesses” leva o barão Andergast, no fim de “O processo Maurizius”, à total descrença no sistema que antes sacralizava. É na discussão com Etzel Andergast, quando alvejado pela ira de um filho oprimido e sufocado pela indiferença de seu pai, que o barão quase

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se desculpa pelo erro judiciário: por ter sido forjado nos fornos do século XIX, ele não poderia ter agido de outra maneira; ele também é um produto de sua época. A descrença de Jhering se apodera de sua fala: “Renuncie à idéia de que a verdadeira justiça e a dos tribunais são e devem ser uma só e a mesma coisa. É impossível, isso ultrapassa as possibilidades humanas e terrestres. Existe entre elas a mesma relação existente entre os símbolos da fé e as práticas da religião. Um símbolo não pode fazer você viver”[55].

Era tarde demais, porém, para que a ciência do século anterior se arrependesse do radicalismo que assumira: os danos não mais poderiam ser evitados. A exacerbação do romantismo se deturparia em idéias bélicas e pan-germânicas, ao feitio do pensamento nazista de Warschauer-Waremme, da mesma maneira que a sacralização da doutrina jurídica seria sua própria prisão: primeiro condenada ao subjugo da lei, foi logo secundarizada diante do poderio hercúleo do juiz. É significativo que o barão Andergast, de sua postura radicalmente fria, tirânica e tradicional, tenha feito brotar em seu filho “o antagonista do seu espírito”, como afirma Sofia. “É admirável ver com que lógica sua educação o preparou para isso”[56]. No pêndulo secular da história humana, as reações contrárias são geralmente equivalentes – ou superiores – aos radicalismos.

Do arrependimento tardio de Wolf von Andergast, porém, podem-se extrair mais do que simples e desgastadas críticas ao sistema da “jurisprudência dos conceitos”. O barão não é o vilão de “O processo Maurizius”. Bem ao contrário, no fim do livro é possível até mesmo compadecer-se de sua figura: é um indivíduo que dá-se conta de sua falência enquanto pai e operador do direito, e por isso perde o filho, enlouquece e acaba abandonado num hospício. Como o barão Andergast, o direito que ruía também era resultado de seu tempo. O que foge do lugar-comum, portanto, é verificar essa formatação com compreensão e contextualização, enquanto produção e necessidade histórica do direito do século XIX. Não há texto sem contexto, e dessa maneira vê-se bem que o direito também é “cronótopo”. Em certa passagem do livro, Leonardo Maurizius, em pensamento, repugna as afirmações do barão da seguinte maneira: “seu interlocutor defendia uma instituição que não possuía mais senão um simulacro de existência. Saída das pandectas empoeiradas, efetivamente só sobrevivia na cabeça de alguns homens que tiraram de fórmulas artificiais os conceitos com os quais contraíram uma simbiose de fantasmas”[57]. A resposta “cronotópica”, como se vê, está nos fantasmas e na poeira, nas pandectas e na Escola Histórica.

A vitória de Friedrich Carl von Savigny no embate doutrinário que manteve com Friedrich Justus von Thibaut representou muito para a Alemanha: sua unidade jurídica seria construída, e não mais importada do país vizinho[58]. Como se sabe, a resolução teve efeitos imediatos, pois iniciaram-se os intensos trabalhos de redescoberta e pesquisa histórica das fontes jurídicas alemãs (com proeminência para o direito romano[59]), e estabeleceu-se paulatinamente uma espécie de “aristocracia professoral” pela qual se pretendia conscientemente centralizar nas mãos dos juristas toda e qualquer criação jurídica. É o que desvela, para este último aspecto, James Q. Whitman, ao explicar o conhecido repúdio à liberdade judicial não pelo simples argumento iluminista do juiz como bouche de la loi – e menos ainda num país que não havia recepcionado a idéia montesquiana de separação dos poderes –, mas sobretudo pela força intencional da fundação de um Juristenrecht (“direito dos juristas”) ou Professorenrecht (“direito dos professores”)[60]. Daí a verdadeira razão pela qual reinava um disseminado repúdio ao precedente judicial, o que inclusive serviu de apanágio às equivocadas interpretações do

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processo civil romano que incutiram no iudex dos tempos formulários uma atitude silogística absurdamente anacrônica[61].

O sonho de um Professorenrecht – levado às últimas instâncias muito mais pelos seguidores de Savigny do que pelo principal fundador da Escola Histórica[62] – foi o que gerou a derrocada da construção alemã: as limitações impostas aos juízes no plano teórico facilmente conjugaram-se, com o passar do tempo, aos ideais iluministas de racionalidade, e o direito, enclausurado no fantástico corpo doutrinário construído por centenas e centenas de obras jurídicas, começou a erigir-se na pirâmide lógica da “jurisprudência dos conceitos”. Daí se compreende como um Puchta e um jovem Jhering tenham focado excessivamente na idéia savignyana de um “sistema científico” construído a partir de conceitos jurídicos, cuja lógica interna era sua característica mais sagrada; daí se entende como um homem culto e de boa procedência como o barão Andergast tenha estado tão hipnotizado pela beleza estética dessa construção ao ponto de cegar-se para as pessoas e para as coisas. São como os “Imortais” do conto de Borges: erigiram uma fulgurante cidade com as suas relíquias e depois, acreditando vã toda nova empresa, “determinaron vivir en el pensamiento, en la pura especulación”[63]. A transformação dos sistemas e dos manuais pandectísticos em código foi apenas um passo adiante de sua consagração, motivado pela paideia histórica do Corpus Iuris e da Glosa de Acúrsio, e especialmente pela obra de Bernhard Windscheid, que exaltava a lei como sabedoria dos séculos precedentes. Nascia o “positivismo legalista” e daí, então, as linhas que passaram a identificar legislação e direito.

Mas o que seduzia o barão Andergast não era a lei, e sim a perfeição do corpo doutrinário construído ao longo do século XIX e sistematizado em seu último terço. Não é por acaso que Leonardo Maurizius insurge-se justamente contra as “pandectas empoeiradas”: eram elas que constituíam o material com que trabalhavam os juízes alemães[64]. Esse todo acabado e sistemático, que primava pela ampla previsão de hipóteses subsuntivas, contudo, se mostrou incapaz de produzir justiça: Leonardo Maurizius foi condenado pelo sistema. Distanciado dos fatos e iludido pela pretensa perfeição de sua lógica interna, o direito do barão é “ressecamento”, como caracteriza Etzel: “É um tradição morta, uma lei sem alma”[65]. Se a ciência jurídica foi viva e fulgurante no século XIX, por outro lado gerou sua própria morte: sistematizada matematicamente, ficou aprisionada aos tratados e manuais, que se transmutaram em códigos e leis. A partir de então, todo o problema da criação jurídica se deslocou para a dicotomia “legislador versus juiz”, e o Juristenrecht ficou abandonado às traças, como se fosse “pó de um saber” sepultado pela virada do século. “Um chapéu de Napoleão, num museu, o chapéu guardado numa urna, está mais morto do que o próprio dono”[66].

Vê-se em Etzel Andergast e Leonardo Maurizius o prenúncio da temática que inspiraria boa parte dos estudos jurídicos do século XX: o foco passa a ser o aplicador do direito, o intérprete; enfim, o sujeito. Nesse sentido, é significativa a passagem de “O processo Maurizius” em que Etzel abandona sua casa – e tudo o que ela representa – para desvendar, a partir do contato direto com as coisas e com as pessoas, a verdade do julgamento de Maurizius, e deixa um bilhete para o seu pai com os seguintes dizeres: “Dizem que as idéias engendram idéias, mas a verdade permanece fora desse ciclo, e é preciso criá-la, como qualquer obra, creio eu, através dum laborioso esforço”[67]. A verdade passa a depender do sujeito e, dessa maneira, se relativiza.

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III. O DIÁLOGO DE JAKOB WASSERMANN COM O DIREITO DE NOSSA ÉPOCA.

A prospecção de “O processo Maurizius” é bastante rica quando nela se enxerga o reflexo de um momento de transição da sociedade alemã. Sob as luzes de uma República de Weimar natimorta, sacrificada pela derrota na Primeira Guerra Mundial e prestes a naufragar na crise econômica mundial de 1929, a obra de Jakob Wassermann apresenta igualmente um direito cujos pilares estão corroídos. É Etzel Andergast e Leonardo Maurizius que, encarnando as críticas da época, adiantam de certa maneira as tendências que guiariam o desenvolvimento do direito no século XX. No ponto A deste capítulo, o peão de xadrez estará em suas mãos: a justiça não é mais um produto silogístico, algo brotado da perfeição sistemática das pandectas; ela depende do sujeito, e tanto por isso a atenção há de se centrar muito especialmente no intérprete. É Melchior Ghisels quem nos inspira: parece partir dele a reconciliação das notas contraditórias, das visões do barão e de Etzel Andergast. No ponto B, de maneira exemplificativa, serão brevemente analisadas algumas linhas que propõem complementações ao modelo do “juiz Hermes”, e que parecem preocupadas, de um modo geral, em recuperar a segurança jurídica que restou parcialmente abandonada depois dos ataques desferidos contra o juspositivismo.

A-) O futuro de Etzel Andergast e os “modelos de juiz”.

Jakob Wassermann constrói em Etzel Andergast um personagem marcante da literatura alemã: ele é o prenúncio da juventude que, da apatia de seus lares, buscou no regime nazista a figura paterna e protetora, de esperança no resgate de uma Alemanha histórica, unificada e vitoriosa[68]. A derrocada do personagem em “Etzel Andergast” – o segundo romance da trilogia – é representativa; é a derrocada de toda uma geração: a “geração perdida” de Ernest Hemingway e de Gertrude Stein. Por outro lado, no antagonismo com seu pai, Etzel também experimenta uma profunda decepção com o idealismo de sua justiça, e não à toa, nas últimas páginas do livro, sucumbe à ira, rompe com o barão e destrói seu quarto. Aqui se dá a morte do jovem Etzel e a transição para o personagem sombrio do segundo livro – e daí por diante uma certa identificação com Warschauer-Waremme.

Mas o que interessa, evidentemente, é a atitude assumida por Etzel ao longo de todo “O processo Maurizius”, antípoda à de seu pai e assemelhada, na crítica, às

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opiniões de Leonardo Maurizius. Desde o início da narrativa, o jovem filho se contrapõe ao barão com incredulidade, duvidando da “instituição sagrada e eterna” que seu antagonista defende com tanto ardor. “A lei instituída, eterna! Ei-lo que se agita na cadeira e morde o dedo com embaraço”, descreve Wassermann. “Não punha em dúvida o valor do direito como idéia, apenas a eqüidade de uma sentença recente, pura questão de pensamento e raciocínio, da qual ficava excluído o coração”[69]. Nos olhos de seu filho, é o próprio pai quem reconhece o fulgurar de toda uma nova fase: “O barão Andergast talvez compreenda a linguagem silenciosa de que se faz intérprete aquele rapaz de dezesseis anos, porta-voz do espírito negativista e incrédulo de sua geração, espírito contaminado pela doença e anarquia da época”[70]. A atenção voltava-se para o sujeito, o que resta escancarado quando, no bilhete de partida, Etzel conceitua a verdade como uma “construção individual”.

No campo jurídico, a manifestação dessa visão resultou no soerguimento da “jurisprudência dos interesses” de Rudolph von Jhering e de Philipp Heck, mais atenta ao trabalho desenvolvido pelos juízes. Como bem resume Karl Larenz, citando Heck, “enquanto “a orientação anterior, a Jurisprudência dos conceitos”, limita o juiz “à subsunção lógica da matéria de facto nos conceitos jurídicos” – e, nessa conformidade, concebe o ordenamento como um sistema fechado de conceitos jurídicos, requerendo assim “o primado da lógica” no trabalho juscientífico –, a Jurisprudência dos interesses tende, ao invés, para “o primado da indagação da vida e da valoração da vida”[71]. Os objetivos teoréticos são secundarizados, e pretende-se, com prioridade, facilitar o trabalho do juiz para que este possa produzir uma decisão objetivamente adequada. Ressalta na “jurisprudência dos interesses” o importante desenvolvimento da noção de “juízo de valor”, fundamental para que os estudos posteriores pudessem pregar a liberdade criadora do juiz quando na interpretação das lacunas legais[72].

Etzel Andergast, o barão desiludido e a “jurisprudência dos interesses” anunciam torrentes de pensamento irracionalista que navegariam num sentido absolutamente oposto ao da “jurisprudência dos conceitos”, como, por exemplo, o “decisionismo” de Hermann Isay, a “jurisprudência de sentimentos” de Dahn, o “direito livre” de Hermann Kantorowicz e o “direito intuitivo” de Georges Gurvitch, mas também entendimentos que procurariam um meio-termo depois da Segunda Guerra Mundial a partir de reflexões baseadas na linguagem e na argumentação[73]. São exemplos clássicos dessas últimas manifestações a “tópica” de Theodor Viehweg, a “retórica” de Chaïm Perelman e a “hermenêutica filosófica” de Hans-Georg Gadamer, que procuraram reabilitar a filosofia prática de tez aristotélica – ainda que por vezes infiéis ao verdadeiro arranjo de matérias do filósofo grego – e que possuíram supremo valor no desmantelamento da identificação absoluta entre direito e lógica.

O que se nota ao longo do século XX, portanto, é uma crise generalizada da legislação e de suas pretensões de completude – e isso não apenas contra os preceitos da “jurisprudência dos conceitos”, mas sobretudo em face da exegese francesa –, inserta num Zeitgeist geral da cultura humana em que o relativismo passa a ser a tônica[74]. Uberto Scarpelli exemplifica as mudanças pelo viés linguagem, mencionando uma passagem de “Alice no país dos espelhos” (“Alice through the looking glass”, de Lewis Carroll) e demonstrando que a “mensagem”, antes unívoca, passa a ser dúbia e multiplamente interpretável: “é preciso observar quem a comanda”, já dizia Humpty-Dumpty[75]. Como resume Jakob Wassermann, fazendo o barão tremer em suas

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convicções, “aquela construção, cuja solidez desafiara todos os ataques, apresenta agora, à agudez do olhar, fendas e falhas por toda a parte”[76].

A ausência de identificação entre direito e lógica passou a significar, num primeiro momento, o aumento desenfreado e excessivo da importância outorgada ao juiz, mas também – e numa outra visão – a adequação entre o labor do legislador e do aplicador do direito. Não se tem mais o direito jupteriano em que acreditava o barão Andergast; o procurador não é o Trismegisto (ou Hermes, para os gregos) em que confiava Etzel, e que trazia dos céus a mensagem abstrata do Olimpo para ordenar a vida dos mortais. Tem-se, antes disso, um juiz hercúleo, ou um Hermes diferente – na ambigüidade que lhe é típica e que a mitologia ressalta tão bem –, que conjuga teias de significados e constrói, na multiplicidade da vida humana, a solução mais adequada para cada conflito. A relação do aplicador com os deuses gregos permite que se adotem “os três modelos de juiz” resumidos por François Ost[77] e que, sendo os modelos básicos com que o século XX trabalhou, se adaptam perfeitamente à realidade dos personagens de “O processo Maurizius”.

Antes de todos, é claro, tem-se o “juiz Júpiter”, ou o “direito de Zeus” (se ficarmos com as figuras mitológicas da Grécia Antiga). Aqui o paradigma é o direito codificado, sob a forma piramidal[78], e que apresenta, segundo Ost, quatro corolários: o monismo jurídico (direito = leis e códigos), o monismo político (que se esboça na centralização administrativa e, portanto, na soberania estatal), a racionalidade dedutiva e linear (as soluções particulares são deduzidas de regras gerais hierarquizadas, derivadas de princípios ainda mais gerais) e a concepção do tempo orientado a um futuro controlado (a lei antecipa e constrói um futuro melhor). Eis o modelo do barão Andergast: um direito jupteriano, sagrado, e que tem por estigma a identificação entre segurança jurídica e previsão exaustiva das hipóteses fático-jurídicas. A justiça é uma mera conseqüência da subsunção (silogismo judicial). Como aponta Natalino Irti, aqui o método purifica as normas e as coloca na sua dignidade lógica[79].

O “juiz Hércules”, por sua vez, é a quem se atribuem atuações hercúleas: é livre julgador, presta assistência e é engenheiro social. Exacerbação do modelo anti-legislativo, tem como máxima representação o realismo norte-americano de Oliver Wendell Holmes Jr., que via a regra enquanto derivada unicamente da decisão judicial. Dissolvido na vontade, o direito hercúleo apresentaria também quatro corolários, na mesma linha de Júpiter: a proliferação de decisões particulares (“Funes, el memorioso” de Borges, dentro dessa idéia, talvez fosse um ótimo magistrado[80]), a dispersão sem sentido das autoridades encarregadas de aplicar o direito, a juridicidade esgotada na decisão particular (indução, em contraposição à racionalidade dedutiva e linear do juiz Júpiter), e a temporalidade descontínua (feita de irrupções jurídicas descartáveis depois que usadas). Em seu particularismo não mais acredita que a previsão das hipóteses fático-jurídicas fará brotar uma justa decisão; a segurança jurídica passa a ser miragem. Aqui ressalta o niilismo do método: ele nega todo o critério de unidade e deixa tudo à disposição da vontade humana[81].

Júpiter e Hércules, conforme lições de François Ost, “no son más que dos imágenes del Derecho, dos modelos, dos tipos ideales bastante alejados de la realidad jurídica”[82]. O antagonismo da mitologia entre Júpiter-pai e Hércules-filho também se reflete em “O processo Maurizius”: o barão Andergast encarna a sacralidade jupteriana e enlouquece; Etzel acha-se hercúleo e, no particularismo radical, violenta-se ao ponto

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do quase-suicídio. Wassermann dá indicativos claros de que nenhuma das duas soluções – nem a do barão e nem a de Etzel – é aceitável. Não à toa, a evolução do direito jupteriano o fará descer do Olimpo e escutar o pulsar da sociedade, ao passo que Hércules ascende à racionalidade e passa a levar a sério os direitos fundamentais. A pausa obscura entre essas duas notas parece ter gerado um outro modelo: o juiz Hermes.

Entre racionalismo e irracionalismo, o juiz Hermes nasce do resgate argumentativo que as doutrinas posteriores à Segunda Guerra Mundial empreenderam, com destaque especial para a tópica, a retórica e a hermenêutica filosófica. Delas derivam respectivamente a noção de incompletude sistemática e constante repreenchimento do sistema (o direito como algo eternamente inacabado), a dimensão dialética e argumentativa de sua aplicação, e a relatividade e contextualização do intérprete. Hermes não é nem a convenção do barão jupteriano e nem a invenção do exacerbado e hercúleo Etzel Andergast, mas a reflexão do juízo jurídico que não se presta nem à subsunção silogística de regras superiores e nem à desenfreada invenção judicial. Talvez por ser a deidade mais amiga dos seres humanos, Hermes é ciente de sua falibilidade: as pretensões de totalidade da lei e de onisciência do juiz são incompatíveis com a condição natural dos homens.

No contrabalanço entre lei e juiz, reforçam-se as noções de uma legislação não totalitária, mas “com janelas, pontes e avenidas desobstruídas para a mobilidade da vida”[83]; e o aplicador, por sua vez, assume um papel criador quando diante de cláusulas gerais, conceitos indeterminados e princípios gerais, admitindo-se até mesmo que, por vezes, ele atue contrariamente ao próprio legislador[84]. Não por acaso, Nicola Picardì vê em nosso tempo uma “vocazione per la giurisdizione” (imagem invertida da obra de Savigny), e isso como resultado não apenas do desenvolvimento jusfilosófico da tópica, da retórica e da hermenêutica, mas principalmente por conta da inflação legislativa e da conseqüente desvalorização das leis[85], o que acabou frustrando também a identificação entre previsão legal e segurança jurídica.

A percepção de um ordenamento jurídico mais atento aos fatos da vida está no barão Andergast quando, em momentos de humildade, reaprecia o “caso Maurizius” e surpreende-se com dados que noutros tempos não notara. “Sempre defendera a idéia de que uma representação viva demais perturba o julgamento objetivo. Julgava desprezível qualquer espécie de participação da imaginação, e quando observava nos outros a mais ligeira tendência nesse sentido, logo sua desconfiança despertava. Nunca lhe acontecera, desde que exerceu a profissão, “ver” as coisas e as pessoas. (…) Em todo caso, era bastante interessante acompanhar o curso dos acontecimentos de modo tão diferente do usual. Enquanto fitava, imóvel, o teto do quarto de dormir, os acontecimentos passavam diante de seus olhos como em um filme”[86]. Somente uma legislação esponjosa, com espaços a preencher, é capaz de proporcionar que o fluir dos fatos e da evolução social a encharquem e a modifiquem constantemente. “Interpretar”, nessa esteira, ganha o sentido de “inserir o texto normativo na realidade e na vida”, e opera a mediação entre o caráter geral da proposição e a sua aplicação particular[87]. Na multiplicidade de atores apontada por François Ost[88], ressalta o denominado “caráter alográfico” do direito: o texto normativo é completado pelo intérprete, e daí se concebe que os trabalhos do juiz e do legislador são absolutamente complementares[89].

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B-) Subjetividade, objetividade e justiça: o “intervalo entre duas notas”.

Etzel Andergast inconforma-se: “e… o que é que eu devo fazer?… De que utilidade me serão, nesse caso, as minhas relações comigo mesmo? Não posso então exigir uma coisa: o direito, a justiça. Devo deixá-lo apodrecer na prisão? Devo esquecê-lo? Devo dizer: o que tenho a ver com isso? Que fazer? O que é a justiça, se não conseguir fazê-la triunfar, eu, eu, Etzel Andergast”[90]. Ao que redargúi o sábio escritor Melchior Ghisels: “Não tenho nada mais a responder senão o seguinte: perdoe-me, sou apenas um homem, frágil caniço”[91]. Ressalta aqui o reconhecimento de que a natureza humana é imperfeita, e que, não podendo ser Júpiter ou Hércules, não conseguindo prever ou inventar sempre e com perfeição a solução mais adequada para os conflitos que exsurgem, há de se contentar com sua própria falibilidade. É por isso que Hermes em toda sua ligação com os homens é o grande modelo e a síntese entre objetividade e subjetividade, o “intervalo entre duas notas” que as afina e as faz vibrar em acordes tonais.

Hermes é o deus que, na “Ilíada”, indica a Príamo os caminhos que levam a Aquiles; é aquele que adverte Ulisses, de pernas errantes, contra as trapaças de Circe, e que em “Édipo em Colono” conduz o rei cego para sua jornada ao Invisível. É o deus-guia, o senhor das vias e o protetor dos viajantes. Mas na ambigüidade que o aproxima dos seres humanos, Hermes é também a divindade dos embustes e dos ladrões, “é o espírito de uma forma de existência recorrente sob certas condições, que junto com o ganho conhece a perda, a malícia junto com a bondade”[92]. Canta-o Goethe, em “Fausto II”[93]:

“É assim também que ele, o mais esperto

Para ladrões e malandros

E todos os aproveitadores

É o gênio sempre propício

E comprova-o desde logo

Por suas artes refinadíssimas”.

O juiz-intérprete é seu próprio lobo: liberdade e arbitrariedade caminham de mãos unidas, e se Hermes conduz por caminhos seguros, pode também escolher atalhos tortuosos e levar o aplicador ao precipício da injustiça. É por isso que findo o “século do sujeito”, a doutrina tem procurado resgatar, nos últimos tempos, notas de objetividade e segurança jurídica. Isso não significa, porém, retomar o antiquado positivismo científico

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ou legalista. Como refere Friedrich Müller, “precisamos não do antipositivismo, mas de uma teoria póspositivista do direito”, e isso importa reconhecer que, apesar de sua importância, os discursos que se insurgiram contra o juspositivismo (tais como a escola do direito livre, o sociologismo, a análise econômica do direito, a hermenêutica de Gadamer e as tendências neofrankfurtianas) não superaram o paradigma criticado. “Eles são para o positivismo mais ou menos o que as suposições cada vez mais complicadas sobre os “epiciclos” foram para o sistema tardo-ptolomaico da explicação astronômica: um “deslocamento degenerativo do problema” (no sentido da teoria da ciência de Imre Lakatos)”[94]. O movimento em prol de um “novo paradigma”, atento a notas de objetividade e segurança jurídica, possui desdobramentos de índole jusfilosófica, dogmática e prática, que merecem ser brevemente abordados ainda que de maneira exemplificativa, resumida e zetética.

No plano da filosofia do direito parece digna de menção a reformulação do conceito de objetividade intentada por Herbert Hart – autor que, apesar de se colocar na corrente positivista, adota pressupostos e conclusões bastante díspares dos estudiosos que o precederam. Entre o projeto moderno e o projeto empirista, a proposta de Hart pretende ser uma “terceira via”, pois deixa de lado a identificação entre verdade e certeza – que foi o paradigma de ambas as correntes antagônicas – e funda sua refutação no seguinte questionamento: faz algum sentido pedir sempre uma certeza que nós, seres humanos, não podemos conceber? Daí, então, conclui que se algo pode ser chamado de um “fundamento de um sistema jurídico”, esse algo nada mais é do que uma simples situação social. O mundo deve ser concebido, então, desde nossa perspectiva, e assim se pode concluir que expressões que afirmam a existência de direitos subjetivos ou a validade de regras são descrições objetivas. Como resume Cláudio Fortunato Michelon Júnior, “a contribuição de Hart para a dissolução dessa controvérsia entre racionalismo e empirismo reside em apontar o mal-entendido que deu origem a ela, nomeadamente, o ideal de uma concepção absoluta de mundo, que torna possível conciliar o reconhecimento da normatividade do direito (que é o traço comum às doutrinas do direito natural clássico e da teoria pura do Direito) com o reconhecimento do caráter empírico (a que se apega o realismo jurídico)”[95].

É importante mencionar que a doutrina de Hart foi levada às últimas conseqüências por seu discípulo, John M. Finnis, que, voltando-se contra diversos postulados de seu preceptor, desenvolveu o “mínimo de direito natural” (conjunto de princípios que ordena a vida e a comunidade humana) a partir da noção aristotélica da razoabilidade prática[96]. A aceitação de sua doutrina, obviamente, implicaria uma revisão e uma reformulação das chamadas “invariantes axiológicas”[97], que não mais descansariam apenas na historicidade, mas também na invariabilidade dos caracteres intrínsecos à própria natureza do ser humano.

Já os vínculos que limitam a atuação prática do juiz são variados, e podem ser divididos de acordo com sua própria atuação: a análise fática (referente à fase instrutória do processo) e a formação da decisão (momento de interpretação/aplicação da norma e de solução do conflito). De certa maneira, eles servem para evitar e limitar os condicionamentos internos dos juízes – ocasionados pela confiança excessiva no subjetivismo –, criticados com ódio por Leonardo Maurizius do fundo de sua cela solitária: “Se pensamos que todas essas pessoas – e não somente elas, pois isso vai muito alto; é melhor não dizer a que grau de hierarquia o mal atinge – se pensamos que essas pessoas se vingam sobre nós daquilo que lhes azeda o coração, de todas as suas

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ambições fracassadas, de suas desgraças domésticas, da insuficiência do seu salário, às vezes do fracasso de toda uma existência, quando refletimos que esses funcionários subalternos são quase todos pessoas para quem é um gozo atormentar e fazer sofrer – nada podem contra isso, a autoridade que possuem e que os embriaga, consola-os, pois suas vidas são tão sombrias quanto os cubículos que eles guardam ou como os destinos os quais presidem – quando pensamos nisso, não podemos deixar de perguntar se os homens foram feitos para condenar, para punir outros homens”[98].

No que tange aos juízos de fato, exige-se do magistrado o máximo de congruência, de maneira que nos dias atuais intenta-se fixar standards ou “modelos de constatação” para objetivar a valoração da prova[99]. Não se pretende, com isso, retornar a modelos de tarifação, mas concluir que a livre convicção do juiz – herança de um passado recente em que a atividade cognoscitiva do juiz se reduzia à sua pura consciência – não é propriamente livre: “a liberdade de que se cuida é uma liberdade objetiva”, e tanto por isso tem-se como impositivo que “a decisão defina, como questão jurídica prévia, por qual modelo de constatação estará orientada, para que disso saibam as partes”[100]. Essa “intenção de objetivização” ressalta igualmente na aplicação das máximas de experiência[101].

Já para a decisão final – e aqui se adentra no momento interpretativo-aplicativo do juiz –, Michele Taruffo aponta três requisitos que, de certa forma, visam a assegurar certa objetividade: coerência interna (correspondência entre a fattispecie concreta e a fattispecie abstrata), universalidade (não à aplicação particularista; sentença com pretensões de aplicabilidade a outros casos) e congruência sistemática (respeito às normas e aos precedentes)[102]. Este último pressuposto repousa, antes de tudo, no respeito à Constituição, aos princípios e aos valores, e na observância da lei enquanto expressão da democracia representativa, o que determina contrariá-la tão-somente quando diante de um absurdo legislativo – aspectos que só podem ser verificados exigindo-se do juiz a observância da publicidade e da motivação. Bem se vê que nesse âmbito – o da interpretação judicial – tem-se uma paulatina recuperação da idéia de direito como “saber prudencial-retórico”: a prudência em suas dimensões cognitiva (conhecer as diferentes possibilidades; “deliberação”) e prescritiva (optar e indicar a melhor conduta; “juízo de escolha”), e a retórica centrada na persuasão do destinatário (no que incorpora as lições trazidas por Chaïm Perelman[103]). São dois momentos de uma mesma atividade, que recuperam a noção de interpretação enquanto obra da razão prática e que, contentando-se com o “saber provável” e com sua inarredável carga axiológica[104], resultam no que Eros Roberto Grau chama de “caráter alográfico do direito”, id est a noção de que legislador e juiz desenvolvem atividades complementares[105]. Aqui a lógica clássica (e seus postulados básicos) volta a atuar não como senhora absoluta, mas enquanto instrumento do ofício judicial, de maneira a resgatar que o direito se por um lado não é sinônimo de lógica, por outro não é aleatório[106].

Enfim, na mediação efetuada pelo magistrado entre hipótese abstrata e caso concreto, tem-se propugnado com muito vigor pela revalorização da ciência jurídica enquanto fonte do direito. Isso porque, conforme aponta Alessandro Baratta depois de invocar as lições de Niklas Luhmann, “a concreção pontual da norma abstrata na ausência de um corpo dogmático poderia comprometer a própria função do direito, a saber, a institucionalização da estabilização das expectativas no sistema social”[107]. A intenção é atribuir aos personagens os papéis que de fato lhes incumbem: ao juiz, a decisão; ao

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corpo dogmático, a homogeneização (abstração) do direito enquanto experiência cultural[108]. De certa maneira, trata-se de resgatar o que de melhor a Escola Histórica legou ao direito hodierno, sem que se caia no dogmatismo exacerbado que ocasionou sua petrificação em “jurisprudência dos conceitos”, e de certa maneira colher os evidentes méritos que o Juristenrecht teve para com a construção de um riquíssimo corpo jurídico-dogmático. A experiência histórica demonstra ser pelo trabalho dos juristas que se atingem graus de objetividade, segurança e justiça mais elevados e equilibrados, já que, como aponta Jacques Ghestin, é pela doutrina que se conhece e se faz conhecer o direito; é ela que esclarece as regras novas e reinventa as já existentes (os denominados “dados positivos do direito”). Se não há direito sem jurisprudência, não há jurisprudência – no melhor sentido da palavra – sem doutrina[109].

Enquanto paideia, o direito romano é sempre o exemplo mais paradigmático: sua perenidade é fruto da obra consciente de centenas de juristas, que desde os idos da República trabalhavam nos consilia dos pretores para a elaboração das hipóteses abstratas fixadas nas fórmulas e assim outorgavam a elas a auctoritas de que necessitavam[110]. Na fase processual que se desenvolvia perante o juiz, a situação era bastante assemelhada: para alcançar um convencimento suficientemente seguro, o iudex não se municiava apenas das alegações e das provas, mas também do auxílio de um consilium de jurisperitos e de seus próprios conhecimentos técnicos que, com o passar dos séculos, iam se aprimorando[111]. O próprio Digesto, a bem dizer – ainda que seja produto de uma época em que Roma, conquistada pelos bárbaros, já fazia parte do passado –, não é uma compilação de decisões ou de leis, mas de opiniões dos mais prestigiados juristas do período clássico de Roma.

A experiência histórica talvez indique que a dicotomia entre legislador e juiz, forjada no século XX pelo embate entre positivismo e antipositivismo, merece superação pelo viés doutrinário. Hoje já não se pode falar em legislador jupteriano ou em juiz hercúleo; talvez Hermes, por sua abertura à falibilidade do ser humano, incorpore melhor a necessidade de que os magistrados se abeberem nas construções da ciência jurídica para conjugar justiça e segurança. Já é pacífico que ao legislador incumbe forjar sua obra com aberturas para a natural evolução da cultura humana, mas o juiz segue vagando nas correntes do subjetivismo: fala-se que a ele incumbe a criação do direito[112], ao passo que, em verdade, sabe-se que seu ofício precípuo dirige-se apenas e tão-somente à resolução concreta dos conflitos. A abertura da legislação evoca não a livre criação do juiz, mas o complemento doutrinário, a ser efetivado caso a caso por meio da atividade julgadora[113]. Jurisprudência sem doutrina é como a concha descrita pelo barão Andergast, ao vagar pelos corredores vazios do tribunal: “A concha parece, na verdade, conter o oceano quando se a encosta no ouvido, mas o seu eterno concerto de órgão é uma ilusão; só murmura porque é oca”[114].

IV. CONCLUSÃO.

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A justiça é a temática transhistórica de “O processo Maurizius”: ela aparece imiscuída nas reflexões dos personagens consoante suas vivências fáticas e psíquicas, mas é vista – salvo a exceção doentia de Warschauer-Waremme – sempre e invariavelmente como um valor a ser preservado. Não se pode negar que as discordâncias do barão e de seu filho se processam com relação aos meios de sua realização: ao passo que Wolf acredita na justiça enquanto produto natural do silogismo judicial, Etzel a descobre asfixiada pela poeira das pandectas, e adianta que a solução talvez repouse na visão de um juiz que olhe para as coisas e para as pessoas com maior atenção. Não há, portanto, desavença quanto ao fim-justiça; com sua consecução concordam os antagonistas da trama. Mas também a segurança jurídica – ainda que de maneira mais tímida – se apresenta como figura de xadrez nas mãos dos personagens: antes em simbiose com a previsão totalitária das situações fático-jurídicas – e isso determinou tanto a sua exaltação pelo barão Andergast quanto o seu repúdio por Etzel –, hoje ressuscita nos controles que a aplicação do direito demanda sejam fixados.

São duas notas que vibram na obscura pausa entre lei e juiz: a da justiça e a da segurança, que parecem se afinar na percepção de que o ser humano é falível. O repúdio ao totalitarismo legal – legislador que não é Júpiter – há tempos vem ensejando legislações abertas ao pulsar da vida e da história; e as recentes barreiras que se tem tentado impor à atividade judicial – juiz que não é Hércules – explicitam que uma decisão só é capaz de alcançar a justiça se guiada por critérios objetivos. Em verdade, trata-se de redescobrir e reafirmar a função de cada um desses personagens sem dotá-los de poderes que extrapolem os fins de suas atividades. A atitude esfacela a dicotomia engendrada no início do século XX, que posicionou o legislador-Júpiter ao lado do positivismo legalista e o juiz-Hércules como símbolo das correntes antispotivistas, e resgata a doutrina como via necessária à harmonização de notas de justiça e segurança.

Estas são, portanto, palavras que se afastam e se reconciliam na história do direito: elas “saltam, se beijam, se dissolvem”[115]. São peões nas mãos humanas, ou “conchas de marisco” que, abandonadas, se preenchem dos significados que os dados de tempo e de espaço as presenteiam[116]. Na teia de conexões entre palavras e conceitos em que Hermes perscruta; na vida globalizada – “geo-diritto”, como denomina Natalino Irti[117] – e composta por tons de objetividade e subjetividade, em que a justiça e a segurança, por vezes, parecem com o peixe de Klakusch: “escapam-nos quando as seguramos”[118]; em tempos que não se pode pretender nem a onipotência do legislador e nem a onisciência do julgador, o direito se dissolve e se recompõe no intervalo dos antagonismos: ele não é nem o barão Andergast e nem Etzel, nem Warschauer-Waremme e nem Leonardo Maurizius. É o direito do ser humano, “pobre caniço”; o direito do escritor Melchior Ghisels, e que parece ter, na composição com a literatura, a melhor representação de sua humanidade[119].

[1] Este texto resulta de pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa “Direito Privado: um espaço de mentalidades” coordenado pela Professora Dra. Judith Martins-Costa no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS. As idéias aqui expostas foram discutidas preliminarmente nos seminários “Direito e Literatura” integrantes da disciplina “Fundamentos Culturais do Direito Privado” (UFRGS, 2008/1).

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[2] “Falamos do fenômeno espacial e do fenômeno temporal da linguagem; não de um disparate a-espacial e a-temporal. [Nota à margem. Só que se pode interessar por um fenômeno de modo diferente.] Mas falamos dela, assim como falamos das figuras do jogo de xadrez, ao indicarmos regras de jogo para elas e não ao descrevermos suas características físicas. A pergunta ‘O que é, propriamente, uma palavra?’ é análoga à pergunta ‘O que é uma figura de xadrez?’”(WITTGENSTEIN, Ludwig. “Investigações filosóficas” (trad. Marcos G. Montagnoli). 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 70-71).

[3] WITTGENSTEIN, Ludwig. “Investigações filosóficas” (trad. Marcos G. Montagnoli). 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 113.

[4] É o que esclarece Mirko Skarica, antes de apontar outras duas vantagens da metáfora elaborada por Wittgenstein (SKARICA, Mirko. Signos, convención y verdad. “Anuario filosófico”. Navarra: Universidad de Navarra, 1984, v. 17, n. 2, p. 69).

[5] SAUSSURE, Ferdinand de. “Cours de linguistique générale”. 2. Ed. Paris: Payot & Cie., 1992, p. 24.

[6] WASSERMANN, Jakob. “O processo Maurizius” (trad. Octavio de Faria e Adonias Filho). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, p. 415. Ao longo deste trabalho, a obra de Jakob Wassermann será citada abreviadamente por “PM”.

[7] PM, p. 375.

[8] PM, p. 357. É digno de menção que para Stephen H. Garrin – um estudioso de Wassermann – é o guarda Klakusch quem encarna de maneira mais significativa a idéia do autor sobre a justiça, pois nas obras de Wassermann é corriqueira a multivocidade de significados atribuídos ao vocábulo (GARRIN, Stephen H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p. 50).

[9] PM, p. 284. Mergulhado num mundo de desespero e desesperança, típico da Alemanha pós-crise de 1929, Etzel Andergast parece representar toda uma geração – a denominada “Geração Perdida”, expressão de Gertrude Stein popularizada por Ernest Hemingway na epígrafe de “O sol também se levanta” (no original, “The sun also rises”, de 1926) para representar os nascidos depois da I Guerra Mundial – que, nos anos sucessivos, encontrariam no nazismo e na liderança de Adolf Hitler o falso acalanto de verdade e esperança. Conforme aponta Stephen H. Garrin, “without a definite goal in life, the young man, like so many of his contemporaries in Weimar Germany, seeks out a father figure, a person in whom he can place his trust and hope for the future. It is not without significance that Wassermann tends to fill his works with so many “Halbkinder” and children from broken homes. Rather it is metaphorically intended to mirror the leaderless epoch” (GARRIN, Stephen H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p. 59).

[10] GARRIN, Stephen H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p. 75.

[11] RIBEYRO, Julio Ramón. O pó do saber. In: “Só para fumantes: contos” (trad. Laura Janina Hosiasson). São Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 185-192.

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[12] “A realidade é o material da criação literária”, afirma Käte Hamburger; é seu objeto de mimesis, mas mimetismo no sentido aristotélico de poiesis, de criação (HAMBURGER, Käte. “A lógica da criação literária” (trad. Margot P. Malnic). São Paulo: Perspectiva, 1975, pp. 2-4). Interessante, outrossim, é a obra de Erich Auerbach, em que o autor investiga, desde a Antigüidade até o século XX, as mais variadas maneiras pelas quais os autores representaram e dialogaram com a sua realidade (AUERBACH, Erich. “Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental” (trad. [s.n.]). 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004).

[13] REIS, Carlos. “O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários”. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 82. O investigador português aponta, ainda, outras duas dimensões da literatura: uma “dimensão sociocultural” (aqui denotando um caráter ativo: a literatura enquanto instrumento de intervenção social) e uma “dimensão estética” (a literatura como fenômeno de linguagem, id est como linguagem literária), umas complementando as outras. Para resumo das dimensões, veja-se REIS, Carlos. “O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários”. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 24.

[14] BAKHTINE, Mikhaïl. “Esthétique et théorie du roman” (trad. Daria Olivier). Paris: Gallimard, 2006, p. 237.

[15] REIS, Carlos. “O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários”. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 91.

[16] São palavras de Judith Martins-Costa, destrinchando as lições de Miguel Reale (MARTINS-COSTA, Judith. Direito e cultura: entre as veredas da existência e da história. In: MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. “Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro”. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 173). Dessa maneira, é possível dizer que não perderam validade algumas das lições de Savigny, tais como a seguinte: “El derecho progresa con el pueblo, se perfecciona con él, y por último perece cuando el pueblo ha perdido su carácter” (SAVIGNY, Friedrich Carl von. “De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho” (trad. Adolfo G. Posada). Buenos Aires: Atalaya, 1946, p. 46).

[17] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura” (trad. Sérgio Paulo Rouanet). 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, v.1, p. 223.

[18] CAPOGRASSI, Giuseppe. “Il problema della scienza del diritto”. Milano: Giuffrè, 1962, p. 223. Como afirma Luiz Carlos de Azevedo, “se o direito constitui uma expressão inseparável de qualquer meio social civilizado; e se este direito não se conserva estático, mas se dinamiza e se transforma na medida em que as condições sociais assim exigem; não há como desvinculá-lo da realidade histórica, pois é preciso saber como este direito foi, até ontem, para entendê-lo, hoje, e melhorá-lo, amanhã” (AZEVEDO, Luiz Carlos de. “Introdução à história do direito”. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 22).

[19] Parece não haver incompatibilidade absoluta deste exame com o que centraliza as relações entre direito e literatura na linguagem, sob uma dimensão que pode ser chamada de “estética” (para um exame dessas correntes, veja-se MINDA, Gary.

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“Postmodern legal movements: law and jurisprudence at century’s end”. New York: New York University Press, 1995, pp. 149-166). Neste trabalho, no entanto, está-se priorizando – conforme já afirmado – sua “dimensão histórica”.

[20] PM, p. 399.

[21] “Mankind survived. Nevertheless, the great edifice of nineteenth-century civilization crumpled in the flames of world war, as its pillars collapsed. There is no understanding the Short Twentieth Century without it. It was marked by war. It lived and thought in terms of world war, even when the guns were silent and the bombs were not exploding” (HOBSBAWM, Eric. “The age of extremes: a history of the world, 1914-1991”. New York: Vintage Books, 1996, p. 22).

[22] Jakob Wassermann nasceu na cidade de Fürth, na Alemanha, em 1873, e faleceu em Viena, no seu exílio austríaco, em 1934. É dono de uma vasta produção literária (estudos históricos e biográficos, além das crônicas semanais publicadas em periódicos alemães), e destacadamente – ao ponto de ter recebido a alcunha de “Balzac alemão” – de diversos romances: “Meu caminho como alemão e como judeu” (autobiografia, de 1921), “A história da jovem Renata Fuchs” (1900), “O Moloc” (1902), “Alexandre em Babilônia” (1904), “Kaspar Hauser” (1908), “As máscaras de Erwin Reiner” (1910), “O homem de 40 anos” (1913), “O homem dos gansos” (1915), “Christian Wahnschaffe” (1919), “O Trópico” (em quatro volumes, de 1920 a 1924), “O advogado Laudin” (1925) e a trilogia composta por “O processo Maurizius” (1928), “Etzel Andergast” (1931) e “A terceira existência de Joseph Kerkhoven” (1934), dentre outros livros.

[23] As indicações de Luis S. Krausz, ainda que relacionadas a outra obra de Jakob Wassermann (“Kaspar Hauser”), demonstram bastante bem o conflito interno do autor entre sua ascendência judaica e sua cidadania alemã, que também transparece em “O processo Maurizius” no personagem Warschauer-Waremme: “Se ele afirma, de maneira categórica, não se sentir identificado nem inteiramente à vontade quer entre os alemães, quer entre os judeus que permanecem mergulhados nas tradições de seus ancestrais, ele também observa com distanciamento, com apurado senso crítico e não sem certa ironia os judeus alemães, seus contemporâneos, que parecem estar vivendo num incômodo limbo, entre dois mundos, sem pertencer realmente a nenhum deles. Ao descrevê-los Wassermann se coloca no vértice de um triângulo, eqüidistante de dois pólos – o judaico e o alemão – e a partir deste vértice ele observa, com igual estranhamento, todos os pontos da reta que leva de um a outro desses pólos, isto é, o longo iter que separa o judeu do gueto, com suas formas de vida cristalizadas pelos séculos, dos vários graus de assimilação judaica na Alemanha, que à época de sua juventude atingia o auge na concepção do Deutscher Bürger mosaischen Glaubens (cidadão alemão de fé mosaica)” (KRAUSZ, Luis S. Jakob Wassermann e Kaspar Hauser, 100 anos depois. “Revista Contingentia”. [s.l.]: [s.n.], 2007, v. 2, pp. 11-12, disponível em http://www.revistacontingentia.com, acesso em 02 de agosto de 2008).

[24] KOESTER, Rudolf. Jakob Wassermann, anti-Semitism and German Politics. “Orbis Litterarum”. [s.l.]: Munskgaard, 1998, v. 53, pp. 185-186.

[25] KOESTER, Rudolf. Jakob Wassermann, anti-Semitism and German Politics. “Orbis Litterarum”. [s.l.]: Munskgaard, 1998, v. 53, p. 187. A atitude da Academia de Letras foi perniciosa para o escritor: decretou sua morte em vida. Narra Rudolf Koester

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que “while this measure did not yet constitute an official ban, it nevertheless stigmatized Wassermann and instilled fear in the ranks of German publishers and book dealers. Publishing and marketing the writings of a blacklisted author became risky business, both politically and commercially” (p. 187).

[26] KOESTER, Rudolf. Jakob Wassermann, anti-Semitism and German Politics. “Orbis Litterarum”. [s.l.]: Munskgaard, 1998, v. 53, p. 188.

[27] O barão Andergast não parece militar num ou noutro sentido, mas simplesmente incorporar a exaltação germânica como algo natural (representativa de uma população que, embriagada por seus sonhos patrióticos, não teria forças para se insurgir contra o regime sucessivo). É o que pode ser lido do seguinte trecho, com fina ironia do autor: “Por momentos, tinha-se a impressão de que ele se estava ouvindo com complacência mas, na verdade, não tinha essas fatuidades: apenas, a consciência de sua superioridade, consciência que lhe entrara no sangue e que se manifestava em suas relações com os seres sob a forma de um seco pedantismo ou de uma objetividade puramente lógica. Neste particular, era extraordinariamente alemão – no sentido mais moderno da palavra” (PM, p. 30).

[28] PM, p. 127.

[29] “Mein Kampf”, escrito por Adolf Hitler em 1924 durante sua prisão e publicado em dois volumes: o “Die Nationalsozialistische Bewegung” em 1925 e o “Viereinhalb Jahre des Kampfes gegen Lüge, Dummheit und Feigheit” em 1926. A luta por esse “espaço vital” transparece, é claro, na intenção de uma expansão bélica e de um pan-germanismo europeu, presente noutra passagem de “O processo Maurizius” em que, já como Georg Warschauer, o personagem fala a Etzel Andergast: “Então, aparecia a finalidade: a política revolucionária e criadora à qual me sentia destinado. A idéia de uma Europa transformada, de uma unidade continental sob a hegemonia da Alemanha, uma hegemonia germano-romana, entusiasmava-me. Oh! que sonhos! Sonhos loucos!” (PM, p. 243).

[30] PM, p. 284. Ao contrário de Warschauer-Waremme, Ghisels nutre profundo pessimismo com o futuro dos alemães, e nele entrevê uma certa inevitabilidade: “Não temos ainda o povo, o povo que constitua o corpo da nação e, por conseqüência, o que chamamos de democracia se reduz a uma coletividade amorfa que não se pode organizar nem se elevar e que asfixia todo e qualquer idealismo. Talvez fosse necessário um César. Mas, de onde viria ele? É preciso temer o caos que, só ele, o fará surgir. Então, o que os melhores poderão fazer de melhor será comentar o terremoto” (PM, pp. 284-285). Como se percebe, as antecipações históricas são impressionantes, fruto de uma mente privilegiada e de um escritor que efetivamente vivenciou e sentiu na epiderme as preparações da hecatombe nazista.

[31] O Simbolismo foi corrente de grandes autores alemães: dos poetas Hugo von Hofmannsthal, Stefan George e Rainer Maria Rilke, e dos romancistas Heinrich Mann e Thomas Mann, que, como Stendhal, talharam na prosa a introspecção psicológica (CARPEAUX, Otto Maria. “A literatura alemã”. São Paulo: Cultrix, 1963, p. 188).

[32] CARPEAUX, Otto Maria. “A literatura alemã”. São Paulo: Cultrix, 1963, p. 170. Carpeaux, aludindo às principais obras de Nietzsche, ainda complementa: “Nesses

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livros criou Nietzsche uma nova língua alemã, para a prosa e para a poesia. Duas vezes, a língua alemã tinha sido revolucionada e reformada: a primeira vez, por Lutero; e a segunda vez, por Goethe e pela tradução de Shakespeare, de August Wilhelm Schlegel. A terceira revolução é a de Nietzsche. E foi tão profunda que, de qualquer poesia, romance, novela, drama ou até obra científica alemã dos séculos XIX e XX, o conhecedor da língua pode logo diagnosticar depois de ter lido poucas linhas: foi escrita antes de Nietzsche, ou então, foi escrita depois de Nietzsche. Foi uma revolução lingüística total, à qual ninguém escapou nem quis escapar” (p. 173).

[33] Anatol Rosenfeld, falando sobre Nietzsche, afirma que “o radicalismo da sua crítica cultural, o pessimismo niilista relativo à civilização européia (ligada ao “otimismo heróico” do super-homem), a transvalorização dos valores, exerceram enorme impacto sobre os movimentos em foco”, id est sobre o Impressionismo e o Simbolismo literários (ROSENFELD, Anatol. “História da literatura e do teatro alemães”. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 118).

[34] ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: “Texto / Contexto I”. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 83. Para Rosenfeld, o Zeitgeist do romance moderno é justamente esse: a relativização do tempo e do espaço, que se traduz ou no foco à psicologia dos personagens (Marcel Proust, behaviorismo de Ernest Hemingway) ou, então, num estilo seco, impessoal e desindividualizado (Albert Camus, Franz Kafka). É, ao fim e ao cabo, a dissolução da perspectiva: “tanto se desfaz nos romances em que o narrador submerge, por inteiro, na vida psíquica da sua personagem, como naqueles em que se lança no rodopiar do mundo. Quer o mundo se dissolva na consciência, quer a consciência no mundo, tragada pela vaga da realidade coletiva, em ambos os casos o narrador se confessa incapaz ou desautorizado a manter-se na posição distanciada e superior ao narrador “realista” que projeta um mundo de ilusão a partir da sua posição privilegiada” (p. 96). Como já se viu, Jakob Wassermann parece dissolver o mundo na consciência de seus personagens: cada qual o vê de sua posição e de acordo com suas motivações contextuais.

[35] Essa é a definição dada mentalmente por Leonardo Maurizius, ironizando a defesa que o barão Andergast acabara de fazer do sistema vigente (PM, p. 207).

[36] PM, p. 67.

[37] É o que relata ENGELMANN, Arthur et alii. “A history of continental civil procedure” (trad. Robert Wyness Millar). New York: Rothman/Augustus M. Kelley, 1969, pp. 152-158. Também nesse sentido, CHIOVENDA, Giuseppe. “Istituzioni di diritto processuale civile”. 3. ed. Napoli: Jovene, 1947, v. 1, p. 32, e OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. “Do formalismo no processo civil”. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 156-157.

[38] BLOCH, Marc. “Apologie pour l’histoire, ou, métier d’historien” (Cahiers des Annales). 2. ed. Paris: Armand Colin, 1952, p. 39.

[39] PM, p. 14.

[40] PM, p. 28.

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[41] PM, p. 30.

[42] E prossegue em mesmo trecho: “Sonhei uma noite que imensa multidão se jogava a seus pés, suplicando para você voltar atrás em um julgamento; e você permanecia imóvel, como uma pirâmide de pedra. Imaginar-se infalível, um juiz infalível, que terrível aberração!” (PM, p, 332).

[43] Essas são palavras de WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 494. Conforme ressalta esse mesmo autor, não se pode confundir o “positivismo científico” com outras espécies de positivismo: nem com o “positivismo legalista”, que identifica no legislador o criador do direito, e nem com o “positivismo científico em geral”, pertencente à filosofia de Comte (p. 493). De tez ainda mais distinta são as elaborações de Hans Kelsen e Herbert Hart, que já por serem de outra época não encontram semelhanças efetivamente contundentes com as que lhes precederam.

[44] “São elas, as matemáticas (…) que nos dão uma visão viva das leis naturais e que, do mesmo modo como a coroa de uma cúpula junta e reúne tudo o que aparentemente se exclui e se repele, podem conciliar as faculdades humanas as mais elevadas e as mais contraditórias” (PM, p. 27).

[45] Afirma Karl Larenz que em Puchta é significativa a presença das concepções talhadas séculos antes por Christian Wolff (LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 27). Como bem resume Uberto Scarpelli, depois de analisar as obras de Thomas Hobbes, Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau e Cesare Beccaria, “nell’orizzonte illuministico il sillogismo giudiziario è indispensabile ai valori politici della libertà e dell’egualianza: l’accettazione dello schema sillogistico non è il frutto di una riflessione a posteriori sul ragionamento applicativo della legge, bensì la postulazione di una condizione necessaria perché la legge venga applicata senza spazio dell’arbitrio dell’operatore” (SCARPELLI, Uberto. Dalla legge al codice, dal codice ai principî. “Rivista di filosofia”. Bologna: Il Munlino, 1987, v. 78, p. 5).

[46] GAVAZZI, Giacomo. Logica giuridica. “Novissimo Digesto Italiano”. 3. ed. Torino: Editrice Torinese, 1957, v. 9, p. 1.062.

[47] PM, p. 114.

[48] A relação necessária que há entre sistema fechado e interpretação silogística para a “jurisprudência dos conceitos” é descrita exemplarmente por Franz Wieacker na seguinte passagem: “Uma dada ordem jurídica constitui um sistema fechado (i.e. autônomo e coerente) de instituições e normas e, por isso, independente da realidade social das relações da vida reguladas por essas instituições e normas. Admitido isto, é em princípio possível decidir corretamente todas as situações jurídicas apenas por meio de uma operação lógica que subsuma a situação real à valoração hipotética contida num princípio geral de carácter dogmático (e implícito também nos conceitos científicos)” (WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 494).

[49] PM, p. 214.

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[50] LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 31. Conforme lições de Franz Wieacker, “hoje, a condenação do método “histórico-natural” impôs-se, por um lado, pela crítica da jurisprudência dos interesses; por outro lado, pelos esforços do neo-kantismo no sentido de uma separação pura entre a construção conceitual das ciências da natureza e das ciências do espírito” (WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 496, nota 14).

[51] JHERING, Rudolph von. “L’Esprit du droit romain” (trad. O. de Meulenaere). 3. ed. Paris: [s.n.], 1886-1888, t. 4, pp. 308-309. Noutro trecho, o jurista assim se pronuncia sobre a “jurisprudência dos conceitos”: “On semble avoir fait du droit une arène à tous les fanatiques de la subutilité scolastique. L’éclat de la logique illumine tout le droit romain, et éblouit quiconque s’en approche. L’oeil se trouble, et perd sa puissance de perception, si l’on n’a soin de le reposer sur le spectacle rassérénant de la vie. Au lieu de voir le monde réel, où règnent les puissances réelles de la vie, l’on ne distingue plus que la fata morgana d’un monde soumis au sceptre de l’idée abstraite. Le principe est le démiurge de ce monde: il a créé le monde du droit, il y règne souverainement. Plus de forces réelles, vivantes, qui se meuvent dans le sein du droit; la dialectique du principe s’est mise à leur place” (p. 209).

[52] JHERING, Rudolf von. “Law as means to an end” (trad. Isaac Husik). Boston: The Boston Book Company, 1913, e em especial a p. LIV de seu prefácio, onde há uma descrição geral da idéia da obra.

[53] LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 62.

[54] MARTINS-COSTA, Judith. “A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 223, nota 179.

[55] PM, p. 414.

[56] PM, p. 331.

[57] PM, p. 207.

[58] Savigny escreveu, no principal trabalho da polêmica, que “solo cuando, merced a un severo estudio, hayamos adquirido un más completo conocimiento y una mayor y más aguda perspicacia histórica y política, será posible un juicio recto sobre los materiales transmitidos hasta nosotros” (SAVIGNY, Friedrich Carl von. “La vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho” (trad. Adolfo G. Posada). Buenos Aires: Atalaya, 1946, p. 132). Savigny não esclarece, porém, se é contrário à codificação enquanto projeto ou se apenas e tão-somente a crê inapropriada para a sua época. Autores como Norberto Bobbio acreditam que Savigny tinha uma “oposição de princípio” à feitura de um código, pois a necessidade da legislação equivaleria a tempos de decadência da sociedade (BOBBIO, Norberto. “O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito” (trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues). São Paulo: Ícone, 2006, pp. 61-62).

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[59] A prioridade outorgada ao direito romano advém das idéias medievais de translatio imperii e do direito romano enquanto “direito da paz” – dentro outras –, presentes sobretudo na obra de Phillip Melanchton (1497-1560), mas a ela precedentes (WHITMAN, James Q. “The legacy of Roman Law in the German Romantic Era: historical vision and legal change”. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 4). Foi, porém, na época de Melanchton que elas ganharam efetiva força, e nisso a criação do Reichskammergericht (1495) parece possuir fundamental importância: na Suprema Corte devia-se aplicar o direito romano sempre que inexistente o direito local (WOLFF, Hans Julius. “Roman Law: an historical introduction”. Norman: University of Oklahoma Press, [s.d.], p. 200).

[60] “In promoting the lawmaking claims of learned jurists, Savigny and his followers were obliged to oppose more than just the claims of the Germanist-sponsored Volk. They were also obliged to oppose claims of another class of lawyers: judges who might be inclined to claim legal authority for precedent. It was very important for Savigny and Puchta that the principal source of law not be prior court decisions but rather learned essays and treatises. Thus they were fundamentally hostile to the judicial exercise of power through the making of binding precedent. (…) Indeed, the Historical School’s Juristenrecht was emphatically intended as a rule of scholars, not judges” (WHITMAN, James Q. “The legacy of Roman Law in the German Romantic Era: historical vision and legal change”. Princeton: Princeton University Press, 1990, pp. 129-130). O Juristenrecht, segundo Alessandro Baratta, ganha seu lugar no sistema das fontes “al mismo nivel que el derecho legislativo y consuetudinario, idea que desde entonces permanecerá en el pensamiento jurídico alemán” (BARATTA, Alessandro. La jurisprudencia y la Ciencia Jurídica como fuente del Derecho. In: “Las fuentes del derecho: primeres jornadas jurídiques de Lleda (13 y 14 de mayo de 1983)”. Barcelona: Ediciones de la Universitat de Barcelona, 1983, p. 48).

[61] METZGER, Ernest. Roman judges, case law, and principles of procedure. “Law and history review” (separata), 2004, n. 22/2, pp. 17-18, e WHITMAN, James Q. “The legacy of Roman Law in the German Romantic Era: historical vision and legal change”. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 130. Felizmente, as descobertas arqueológicas posteriores desvelaram que também os romanos tinham por prática o uso do precedente, mas longe, é claro, de que isso tenha o significado de um case law (METZGER, Ernest. Roman judges, case law, and principles of procedure. “Law and history review” (separata), 2004, n. 22/2, p. 11).

[62] Nesse sentido, afirma Karl Larenz que a “jurisprudência dos conceitos” talvez jamais surgisse se os seguidores de Savigny tivessem levado a sério sua doutrina sobre a interpretação, que previa uma constante superação, por via da ciência jurídica, do desajuste havido entre intuição e forma abstrata (conceito) de cada regra (LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 14).

[63] BORGES, Jorge Luis. El inmortal. In: “El Aleph”. Buenos Aires: Emecé, 2005, p. 21.

[64] Especialmente sobre as Pandekten de Windscheid, Franz Wieacker ensina: “Elas tornaram-se em curto espaço de tempo a mais importante autoridade prática jurídica. Esta influência fora de série baseia-se no facto de, na falta de uma codificação, o

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manual científico constituir a última instância decisória da prática do direito comum” (WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 510).

[65] PM, p. 282. Segundo Stephen H. Garrin, o direito do barão é rígido e mecânico tal qual se apresenta em “O processo” (“Der Prozess”), de Franz Kafka (GARRIN, Stephen H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p. 32). A diferença que se pode notar, contudo, é que enquanto Wassermann foca sua crítica na inaptidão teórica do sistema pandectístico, Kafka parece expor as entranhas apodrecidas do sistema judiciário de sua época.

[66] RIBEYRO, Julio Ramón. O pó do saber. In: “Só para fumantes: contos” (trad. Laura Janina Hosiasson). São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 192.

[67] PM, p. 94.

[68] A analogia com a figura paterna é desenvolvida por Stephen H.Garrin (GARRIN, Stephen H. “The concept of justice in Jakob Wassermann’s trilogy”. Berna: Peter Lang, 1979, p. 59), a partir de um ensaio escrito por Henry Miller em que Etzel Andergast é caracterizado como um “Hitler embrionário”: “There is something monstrous about Etzel Andergast: he is fascinatingly attractive and repellent at the same time. He stands for the new type of youth which made possible the advent and sway of an Adolf Hitler. He might even be regarded as an embryonic Hitler. He is “the murderer of the soul”, to use the language of his victims” (MILLER, Henry. “Maurizius forever”. Waco: Motive, 1946, p. 11).

[69] PM, pp. 30-31.

[70] PM, p. 31.

[71] LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 64.

[72] São palavras de Karl Larenz: “Ao exortar o juiz a aplicar juízos de valor contidos na lei com vista ao caso judicando, a Jurisprudência dos interesses – embora não quebrasse verdadeiramente os limites do positivismo – teve uma actuação libertadora e fecunda sobre uma geração de juristas educada num pensamento formalista e no estrito positivismo legalista. (…) E isto em medida tanto maior quanto aconselhou idêntico processo para o preenchimento das lacunas das leis, abrindo desta sorte ao juiz a possibilidade de desenvolver o Direito não apenas na “fidelidade da lei”, mas de harmonia com as exigências da vida” (LARENZ, Karl. “Metodologia da ciência do direito” (trad. José Lamego). 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 69-70).

[73] É como resume VIGO, Rodolfo Luis. “Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas” (trad. Susana Elena Dalle Mura; rev. Alfredo de J. Flores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 48.

[74] Anatol Rosenfeld, por exemplo, ressalta as modificações operadas no âmbito da pintura por conta do fenômeno da “desrealização”, isto é, a pintura deixou de ser mimética e passou a recusar a função de reproduzir ou copiar a realidade empírica. Isso

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ocasionou o desaparecimento do retrato e da perspectiva, e expressou-se na abstração de diversos movimentos, como e.g. o cubismo, o expressionismo e o não-figurativismo. Essas modificações se refletiram no teatro e no romance moderno, em que se dissolveram as estruturas de tempo e de espaço tipicamente ordenadas, e passou-se a valorizar ao extremo o monólogo interior dos personagens (ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: “Texto / Contexto I”. São Paulo: Perspectiva, 2006, pp. 75-86).

[75] “L’ingenua fede illuministica nel linguaggio sincero e semplice se ha abbandonato, ma ci sta abbandonando anche la fede codicistica nel linguaggio aristotelicamente articolato. Fra i due immortali personaggi di Lewis Carroll, Alice e Humpty-Dumpty, il tempo sembra aver dato ragione a Humpy-Dumpty. Le parole esprimono ciò che, parlanti o interpreti, volta a volta vogliamo: “bisogna vedere”, osserva Humpty-Dumpty, “chi è che comanda… è tutto qua”” (SCARPELLI, Uberto. Dalla legge al codice, dal codice ai principî. “Rivista di filosofia”. Bologna: Il Mulino, 1987, v. 78, p. 8).

[76] PM, p. 137.

[77] OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez (trad. Isabel Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível no site: http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008.

[78] Citando Hans Kelsen e Adolf J. Merkl, François Ost assim descreve o modelo piramidal: “si se trata de apreciar el fundamento de validez de las normas, se ascenderá de la norma inferior a la norma superior para llegar a la norma fundamental que habilita a la autoridad suprema a crear Derecho válido; si se trata, en cambio, de prever la creación de una nueva norma jurídica, se tomará el camino inverso, partiendo de esta primera habilitación para recorrer seguidamente a los siguientes escalones de la jerarquía normativa” (OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez (trad. Isabel Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível no site: http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008, p. 173).

[79] “Il metodo vi è immaginato come un docile attrezzo, adoperato dal giurista nello studio delle norme. Un utensile, con il quale il soggetto “tratta” l’oggetto, cioè lo afferra manipola classifica. Estraneo al soggetto ed all’oggetto, ma pur così decisivo che l’uso di esso fa del soggetto un giurista e dell’oggetto una norma del sistema. Il metodo giunge al passato, ci precede, costruito della tradizione e dall’autorità delle scuole, e noi, dinanzi a qualsiasi norma, lo prendiamo ed applichiamo: e qualsiasi norma, sottoposta al trattamento del metodo, si purifica ed entra nella dignità logica del diritto. Come un detersivo chimico, che lavi tutte le macchie, il metodo sarebbe capace di pulire le norme, di renderle nette e decorose, e infine di raccoglierle in qualche superiore unità” (IRTI, Natalino. Nichilismo e metodo giuridico. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, v. 56, pp. 1.159-1.260).

[80] BORGES, Jorge Luis. Funes, el memorioso. In: “Ficciones”. Buenos Aires: Emecé, 2005, pp. 151-165. No clássico conto de Borges, Funes é o personagem incapaz de efetuar abstrações: cada coisa, cada pessoa e cada lugar eram, para ele, únicos e incomparáveis. “Sospecho, sin embargo, que no era muy capaz de pensar. Pensar es

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olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi inmediatos” (p. 165).

[81] IRTI, Natalino. Nichilismo e metodo giuridico. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, v. 56, p. 1.161.

[82] OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez (trad. Isabel Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível no site: http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008, p. 180. Ainda aponta Ost para “la incapacidad de los dos paradigmas para articular, de manera satisfactoria, el hecho y el Derecho y, por otra parte – y esto no es ajeno a aquello –, de una forma de obliteración de la vida jurídica real; el Derecho se disuelve, en última instancia, en los lugares imaginarios de los que se considera procedente: vértice de la pirámide o extremidade del embudo” (p. 178).

[83] MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um sistema em construção: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. “Revista de Informação Legislativa”. Brasília: [s.n.], 1998, n. 35, p. 6 (disponível em: http://www.senado.gov.br; acesso em 1.º de julho de 2008). Essas margens de abertura que o tecido legislativo deve apresentar estão dirigidas “allo scopo di rendere la disposizione adattabile alle situazioni concrete e/o mantenerla attuale nonostante il passare del tempo ed i mutamenti sociali”, e se transfiguram na adoção, por parte do legislador, de técnicas legislativas “elastiche, flessibili e sfumate”, como e.g. os conceitos-válvulas (Ventillbegriffe), os standards legais, as cláusulas gerais (Generalklauseln), os conceitos de discricionariedade (Ermessenbegriffe) e os conceitos jurídicos indeterminados (ubestimmten Rechtsbegriffe), conforme aponta Nicola Picardì (PICARDÌ, Nicola. La vocazione del nostro tempo per la giurisdizione. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2004, n. 1, p. 46). O uso da técnica das cláusulas gerais – é importante ressaltar – apresenta aspectos negativos, como bem aponta Franz Wieacker (a partir da experiência alemã com o BGB), e que se constitui na tentativa de “fuga para as cláusulas gerais”. Segundo o autor, “em épocas de predomínio da injustiça elas favorecem as pressões políticas e ideológicas sobre a jurisprudência e o oportunismo político”, além do que, em condições sociais normais, oportunizam ao juiz “fazer valer a parcialidade, as valorações pessoais, o arrebatamento jusnaturalista ou tendências moralizantes do mesmo gênero, contra a letra e contra o espírito da ordem jurídica”, e ao juiz acabam atribuindo, por vezes, “uma responsabilidade social que não é a do seu ofício” (WIEACKER, Franz. “História do direito privado moderno” (trad. A. M. Botelho Hespanha). 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 546-547). O desafio, portanto, é conjugar abertura sistemática e controle do juiz, de maneira a oxigenar o ordenamento com desejáveis cargas de segurança jurídica.

[84] É o que admite, por exemplo, Sergio Chiarloni, pregando uma renovação evolutiva da legislação pela via judicial apenas depois de bem firmada uma “consuetudine giudiziaria”, id est a passagem de um certo lapso de tempo conjugada à consolidação de uma massa crítica de decisões analogamente orientadas (CHIARLONI, Sergio. Ruolo della giurisprudenza e attività creative di nuovo diritto. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, n. 1, pp. 3-5).

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[85] Como a atividade legislativa acaba sendo vista como uma ars combinatoria, “l’aumento del numero delle regole comporta, quindi, uno sviluppo esponenziale delle possibilità di combinazione: più regole vi sono, più si verificano possibilità di antinomie, di contraddizioni interne dell’ordinamento” (PICARDÌ, Nicola. La vocazione del nostro tempo per la giurisdizione. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2004, n. 1, pp. 44-45).

[86] PM, p. 117.

[87] GRAU, Eros Roberto. “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27.

[88] OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez (trad. Isabel Lifante Vidal). “DOXA – Cuadernos de filosofía del derecho”. Disponível no site: http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em 01 de junho de 2008, p. 183.

[89] GRAU, Eros Roberto. “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 26-27. Eros Roberto Grau, citando Tullio Ascarelli, escreveu que o intérprete autêntico (o juiz) “completa o trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho, pelo intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na produção de um novo texto sobre aquele primeiro texto. (…) Tem de ser assim: porque a interpretação é transformada de uma expressão (o texto) em outra (a norma), sustento que o juiz “produz” o direito” (pp. 60-61). Vê-se, portanto, que o juiz está necessariamente vinculado ao texto legal: o legislador fornece o esboço de solução e o juiz, sopesando fatos e demais vínculos jurídicos (como, por exemplo, a consideração séria e comprometida do trabalho doutrinário), finaliza a obra de arte jurisdicional.

[90] PM, p. 285.

[91] PM, p. 286.

[92] OTTO, Walter Friedrich. “Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego” (trad. Ordep Serra). São Paulo: Odysseus, 2005, p. 110.

[93] Apud OTTO, Walter Friedrich. “Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego” (trad. Ordep Serra). São Paulo: Odysseus, 2005, pp. 96-97.

[94] MÜLLER, Friedrich. Introdução: o novo paradigma do direito. In: “O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito” (trad. Peter Naumann et alii). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 10-11.

[95] MICHELON JR., Cláudio Fortunato. “Aceitação e objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do Direito”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 171.

[96] FINNIS, John. “Natural law and natural rights”. Oxford: Clarendon Press, 2001, p. 18, em que o autor adianta, num breve resumo, os pilares em que uma teoria do direito natural deve se apoiar.

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[97] Essa é a expressão adotada por Miguel Reale, que, diferentemente da visão jusnaturalista e com influências explícitas de Kant e Husserl, enxerga o problema dos valores enquanto imerso na história e concentrado no sujeito: “o homem é o valor-fonte de todos os valores porque somente ele é originariamente um ente capaz de tomar consciência de sua própria valia, da valia de sua subjetividade, não em virtude de uma revelação ou de uma iluminação súbita de ordem intuitiva, mas sim mediante e através da experiência histórica em comunhão com os demais homens” (REALE, Miguel. Invariantes axiológicas. In: “Paradigmas da cultura contemporânea”. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 107). A questão axiológica é digna de menção por assumir papel inarredável no processo interpretativo/aplicativo do juiz.

[98] PM, p. 220.

[99] Na seara pátria são exemplares as elaborações de Danilo Knijnik, baseadas na prática do direito comparado e em especial dos modelos norte-americanos (KNIJNIK, Danilo. “A prova nos juízos cível, penal e tributário”. Rio de Janeiro: Forense, 2007; KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. “Revista Forense”. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 303).

[100] KNIJNIK, Danilo. “A prova nos juízos cível, penal e tributário”. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 19. Como afirma o autor, “essa “objetivização” está dirigida à razão prática, à lógica do discurso e à teoria da argumentação”, de maneira a transferir para a avaliação da prova critérios de racionalidade e controle na valoração das provas (p. 17).

[101] Recomenda-se a ampla utilização da ciência no afastamento das máximas de experiências, e quando impossível, deve-se observar o contraditório e adiantar às partes as máximas de que o juiz se servirá – “controle de validade intersubjetiva” (TARUFFO, Michele. Senso comune, esperienza e scienza nel ragionamento del giudice. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2001, n. 3, p.686).

[102] TARUFFO, Michele. Legalità e giustificazione della creazione giudiziaria del diritto. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2001, n. 1, pp. 20-29.

[103] Chaïm Perelman procura resgatar as idéias da “retórica aristotélica”, que se configura na “arte de procurar, em qualquer situação, os meios de persuasão disponíveis. Prolongando e desenvolvendo a definição de Aristóteles, diremos que seu objeto é o estudo das técnicas que visam a provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses apresentadas a seu assentimento” (PERELMAN, Chaïm. “Lógica jurídica: nova retórica” (trad. Vergínia K. Pupi). São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 141). Há que se colher de Perelman o que tem de proveitoso, haja vista que seu reducionismo (de todo o processo lógico à argumentação) é criticável. Essa sequer era a intenção de Aristóteles, que tinha na dialética tão-somente a primeira fase da formulação da lógica (representada pelo livro “Retórica”), seguida da organização sistemática das regras argumentativas (“Tópicos”) e, por fim, da teoria do raciocínio formal em geral (“Interpretação” e “Analíticos”). A dialética, para o filósofo estagirita, só prepara a lógica: “faltam-lhe, no entanto, ainda duas coisas que a distinguem da lógica. Primeiro e sobretudo, o seu saber lógico continua, em larga medida, em estado implícito. É uma arte, uma técnica. Dá regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular sistematicamente as leis que as justificam. Além disso, o seu caráter agonístico tem

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como efeito, não apenas impedir-lhe o acesso à independência científica, mas concentrar o seu interesse na argumentação de carácter erístico ou refutativo” (BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. “História da lógica” (trad. António Pinto Ribeiro e Pedro Elói Duarte). Lisboa: Edições 70, 2001, pp. 19-21).

[104] VIGO, Rodolfo Luis. “Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas” (trad. Susana Elena Dalle Mura; rev. Alfredo de J. Flores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 102-122.

[105] GRAU, Eros Roberto. “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 26-27.

[106] Como ensina Giacomo Gavazzi, só se poderia dizer que o direito é ilógico – admitindo-se a existência de uma ciência jurídica – se concebido como decisionismo (GAVAZZI, Giacomo. Logica giuridica. “Novissimo Digesto Italiano”. 3. ed. Torino: Editrice Torinese, 1957, v. 9, p. 1.063) – e isso, como já visto, não condiz com o momento atual das teorias gerais do direito. Bem refere Michele Taruffo que mesmo tendo sido abandonada a figura do juiz como máquina de silogismos, sobreviveu para os tempos hodiernos o valor da racionalidade da decisão judicial enquanto garantia de justiça (TARUFFO, Michele. Legalità e giustificazione della creazione giudiziaria del diritto. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2001, n. 1, p. 20).

[107] BARATTA, Alessandro. La jurisprudencia y la Ciencia Jurídica como fuente del Derecho. In: “Las fuentes del derecho: primeres jornadas jurídiques de Lleda (13 y 14 de mayo de 1983)”. Barcelona: Ediciones de la Universitat de Barcelona, 1983, p. 51.

[108] Como afirma Giuseppe Capograssi, “la scienza è la storia continuamente presente e viva in ogni momento dell’esperienza giuridica: è storia non in quanto scritta, esteriore all’esperienza, ma la storia in quanto vita, presente alla vita, la storia appunto come tradizione che sorregge spiega dà un significato unitario alle continue forme nuove nelle quali la vita del diritto si va realizzando” (CAPOGRASSI, Giuseppe. “Il problema della scienza del diritto”. Milano: Giuffrè, 1962, pp. 222-223).

[109] GHESTIN, Jacques. Les données positives du droit. “Revue trimestrielle de droit civil”. Paris: Dalloz, 2002, jan./mar., pp. 22-23.

[110] O ofício do pretor estava embasado no imperium conferido pelo Populus (já que eleito por assembléia popular) e na auctoritas partilhada pelos jurisconsultos. Conforme resume Henri Levy-Bruhl, tratando da participação dos juristas na elaboração da fórmula, “rien ne permet de supposer que le Préteur, conscient de son infériorité technique, n’ait suivi docilement les conseils du Prudent consulté” (LEVY-BRUHL, Henri. Prudent et préteur. “Revue historique du droit français et étranger”. Paris: Recueil Sirey, 1926, ano 5, p. 36).

[111] É o que confirma Aulo-Gélio em trecho das Noctes Atticae (XIV, 2).

[112] Há até mesmo um precedente jurisprudencial que pretende afirmar a “unidade científica” do Superior Tribunal de Justiça em rejeição à opinião da doutrina (STJ, 1.ª Seção, Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n.º

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279.889-AL, Rel. Min. Francisco Falcão, Rel. para acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, julgado em 14 de agosto de 2002). Afirma o Ministro Humberto Gomes de Barros: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. (…) Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual para que este Tribunal seja respeitado. (…) Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressar o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém”.

[113] Clóvis do Couto e Silva bem resume esse entendimento na seara pátria quando analisa a idéia de “Código central” e indica claramente que o “juiz-legislador do caso concreto” só atua por via dos complementos indicados pela doutrina: “O pensamento que norteou a comissão que elaborou o Projeto do CC brasileiro foi o de realizar um Código central, no sentido que lhe deu Arthur Steinwenter, sem a pretensão de nele incluir a totalidade das leis em vigor no país. A importância está em dotar a sociedade de uma técnica legislativa e jurídica que possua uma unidade valorativa e conceitual, ao mesmo tempo em que infunda nas leis especiais essas virtudes, permitindo à doutrina poder integrá-las num sistema, entendida, entretanto, essa noção de um modo aberto” (COUTO E SILVA, Clóvis. O direito civil em perspectiva histórica e visão de futuro. “Ajuris”. Porto Alegre: Ajuris, 1987, jul., pp. 148-149). Conforme indica Pontes de Miranda, a tradição de recorrer subsidiariamente à opinião dos jurisconsultos é prática que remonta às Ordenações, e que só foi afastada com o advento da “Lei da Boa Razão” (18 de agosto de 1769) – e que sofreu, diga-se en passant, duras críticas de juristas da época, como e.g. José Homem Correa Telles (PONTES DE MIRANDA, F. C. “Fontes e evolução do direito civil brasileiro”. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, pp. 39-46).

[114] PM, p. 164.

[115] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Consideração do poema. In: “A rosa do povo”. São Paulo: Record, 1999, p. 9.

[116] A metáfora da “concha do marisco abandonada” é criação de Walther Rathenau, reafirmada para o direito por Judith Martins-Costa (MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do Abuso do direito e o rumo indicado pela Boa-Fé. In: NICOLAU JÚNIOR, Mario (org.). “Novos direitos”. Curitiba: Juruá, 2007, p. 193).

[117] IRTI, Natalino. Nichilismo e metodo giuridico. “Rivista trimestrale di diritto e procedura civile”. Milano: Giuffrè, 2002, v. 56, p. 1.162.

[118] PM, p. 357.

[119] Como afirma Gary Minda, todas as linhas de estudo que procuram conexões entre direito e literatura parecem ter um arcabouço comum: a recuperação do elemento humano para o direito. São suas palavras: “The politics of this movement seems to be aimed at bringing out the human element missing in law” (MINDA, Gary. “Postmodern legal movements: law and jurisprudence at century’s end”. New York: New York University Press, 1995, p. 158).