mauricÉlia teixeira de albuquerque - tede.udesc.br · figura 24 - Árvore genealógica da família...

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MAURICÉLIA TEIXEIRA DE ALBUQUERQUE NEGROS EM GAROPABA - SC: EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA NAS COMUNIDADES DA ALDEIA E DO MORRO DO FORTUNATO. Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História do Centro de Ciências Humanas e Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso FLORIANÓPOLIS 2014

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MAURICLIA TEIXEIRA DE ALBUQUERQUE

NEGROS EM GAROPABA - SC: EXPERINCIA QUILOMBOLA

NAS COMUNIDADES

DA ALDEIA E DO MORRO DO FORTUNATO.

Dissertao apresentada ao Curso de

Ps-Graduao em Histria do Centro

de Cincias Humanas e Educao, da

Universidade do Estado de Santa

Catarina, como requisito parcial para

obteno do grau de Mestre em

Histria.

Orientador: Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso

FLORIANPOLIS

2014

Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

A meus pais.

AGRADECIMENTOS

hora de agradecer, em especial queles que se

fizeram presentes durante esses dois anos. Primeiramente, a

Deus, pela fora necessria ao desenvolvimento desta

pesquisa, depois a todos que torceram por mim e que de

alguma forma contriburam para a realizao desta conquista.

Carinhosamente agradeo a meu esposo Daniel e meus filhos

Guilherme e Gustavo, que no mediram esforos para me

ajudar e incentivar. minha me e minha sogra, pela

pacincia e acolhimento nas horas difceis. Aos meus irmos,

que se empenharam em dar assistncia no que era necessrio.

minha amiga Rosiane, prestativa, uma verdadeira

irm, que me incentivou a entrar no mestrado, sempre

preocupada em ler meus trabalhos e que esteve junto nessa

caminhada do incio ao fim. Elaine, amiga, vizinha e

companheira de algumas disciplinas.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulino Jesus Francisco

Cardoso, pelo carinho, pela confiana, por acreditar na

relevncia da minha pesquisa, pela pacincia nas orientaes,

enfim, por todas as contribuies na minha trajetria enquanto

pesquisadora.

Ao Ncleo de Estudos Afro Brasileiros da UDESC -

NEAB, uma verdadeira famlia, que me incentivou e me

possibilitou excelentes amizades. Aos professores da UDESC,

por todas as contribuies nessa conquista.

banca examinadora, pela disposio em participar

desse processo e por sua valiosa contribuio, fundamental

para meu trabalho.

CAPES/MEC, pela bolsa concedida, que

imensamente contribuiu na execuo da pesquisa.

As Comunidades Quilombolas da Aldeia e do Morro

do Fortunato, pelo acolhimento e colaborao durante a

realizao da pesquisa e a todos os entrevistados. A todos, o

meu muito obrigada.

O nosso lugar hoje um lugar

multicultural, um lugar que exerce

constante suspeio contra supostos

universalismos ou totalidades.

(Boaventura de Souza Santos)

RESUMO

Este trabalho apresenta consideraes acerca das experincias

dos moradores das Comunidades Remanescentes dos

Quilombos Morro do Fortunato e Aldeia, ambos localizados no

municpio de Garopaba - SC. As discusses giram em torno da

constituio histrica dos grupos e dos aspectos que garantiram

a coeso e permanncia nestes espaos. Nesse sentido,

recorreu-se as memrias de moradores das comunidades bem

como do entorno, buscando por meio das narrativas apresentar

os acontecimentos que possibilitaram tal formao. Com o

intuito de conhecer a formao dos grupos, realizou-se uma

reconstituio das transformaes sentidas em Garopaba desde

sua fundao at a atualidade, definindo o lugar dos afro-

brasileiros nessa dinmica, dando visibilidade aos mesmos,

diferente de outras abordagens j publicadas sobre o lugar. No

decorrer do estudo, procurou-se enfatizar aspectos das

vivncias cotidiana dos grupos, dando especial ateno as

diferentes festividades que contribuem para manter vivos os

laos com as experincias vividas. Os estudos que abrangem a

problemtica afro-brasileira encontram lugar de destaque na

contemporaneidade. Assim, para dar sustentao terica

pesquisa, trabalhou-se com as categorias: Identidade /

Identificao, Memria e Experincias. A construo

identitria desses grupos no est naturalmente dada, ela

construda por meio de escolhas e confrontos, ou seja, na

atualidade existe uma constante luta por visibilidade e

reconhecimento.

Palavras-Chave: Garopaba. Comunidade Quilombola.

Experincia. Identidade. Memria.

ABSTRACT

This work presents observations about the experiences of the

residents of the Remnants Communities of the Quilombos

Morro do Fortunato and Aldeia, both located in the

municipality of Garopaba - SC. Discussions involve the

historical constitution of the groups and aspects that ensured

cohesion and permanence in these spaces. In this sense, we

heard the memories of residents of the surrounding

communities, as well as, looking through these narratives to

present the events that made possible such formation. In order

to know the formation groups, there was a reconstitution of the

transformations experienced in Garopaba since its founding to

the present, identifying the place of the african-brazilians in

this dynamic, giving visibility to them, unlike other approaches

that have been published about this place. During the study, we

tried to emphasize aspects of the day by day experiences of the

groups, giving special attention to the different festivities that

contribute to keep alive the ties with the known experiences.

These studies cover african-brazilian issues prominent in the

contemporary times. Thus, to give theoretical support to the

research, we worked with the following categories: Identity /

Identification, Memory and Experiences. The identitary

construction of these groups is not naturally given, it is

constructed through choices and clashes, i.e., today there is a

constant struggle for visibility and recognition.

Keywords: Garopaba. Quilombo Community. Experience.

Identity. Memory.

LISTA DE ILUSTRAES

Figura 01 - Localizao das Comunidades Quilombolas

no Municpio de Garopaba...........................

16

Figura 02 - Retrato do Senhor Maurcio dos Passos........ 37

Figura 03 - Enseada de Garopaba - SC............................ 44

Figura 04 - Mapa dos limites territoriais de Garopaba -

SC.................................................................

47

Figura 05 - Regio da Praia de Garopaba - SC no ano de

1925...............................................................

48

Figura 06 - Garopaba - SC no final da dcada de 1960... 49

Figura 07 - Lano de peixe na praia de Garopaba, na

dcada de 1970..............................................

58

Figura 08 - Mapa das Praias Garopaba - SC.................... 61

Figura 09 - Praia da Gamboa - Garopaba - SC................ 62

Figura 10 - Praia do Siri - Garopaba - SC...................... 64

Figura 11 - Cachoeira do Siri - Garopaba - SC.............. 65

Figura 12 - Praia do Centro de Garopaba - SC................ 66

Figura 13 - Praia da Vigia ou Preguia - Garopaba -SC.. 68

Figura 14 - Praia da Silveira - Garopaba - SC.................. 69

Figura 15 - Praia da Ferrugem - Garopaba - SC.............. 69

Figura 16 - Oficina ltica no Sambaqui de Garopaba -

SC, na Praia da Barra....................................

71

Figura 17 - Praia do Ouvidor - Garopaba - SC................ 72

Figura 18 - Baleia Franca na Praia do Centro de

Garopaba.......................................................

73

Figura 19 - Retrato do Senhor Maurlio Machado........... 80

Figura 20 - Retrato da Senhora Adelaide Maria Eva....... 102

Figura 21- Mapa das atuais comunidades de Aldeia,

Campo D Una, Limpa, Encantada e

Araatuba, por volta de 1950, com destaque

para as famlias negras, conforme

informaes do Senhor Laudelino Antnio

Teixeira (79 anos)......................................... 107

Figura 22 - Mapa de Garopaba - SC indicando a

localizao do Morro do Fortunato...............

121

Figura 23 - Retrato do Senhor Fortunato Machado.......... 123

Figura 24 - rvore genealgica da Famlia Fortunato

Justino Machado...........................................

125

Figura 25 - Boi de Mamo apresentado em Garopaba -

SC.................................................................

135

Figura 26 - Mapa do Municpio de Imbituba - SC........... 138

Figura 27 - Grupo de Samba de Roda da Comunidade

da Aldeia........................................................

146

Figura 28 - Banda de pagode /Coloninha - Florianpolis

-SC. na Festa da Tainha.................................

153

Figura 29 - Tainhas assadas na Festa da Tainha-Aldeia.. 154

Figura 30 - Jantar da Festa da Tainha Aldeia................. 154

Figura 31 - Mulheres trabalhando na produo da

comida na Festa da Tainha - Aldeia..............

155

Figura 32 - Carro Alegrico do Bloco Unidos por

Garopaba - Carnaval / 2013..........................

160

Figura 33 - Ensaio do Bloco Unidos por Garopaba -

Carnaval- 2013..............................................

161

Figura 34 - Desfile do bloco Unidos por Garopaba -

Carnaval - 2013.............................................

164

Figura 35 - Senhora Jordina Rita Machado, com a

imagem de So Loureno.............................

168

SUMRIO

INTRODUO................................................. 13

1 GAROPABA, DE REDUTO PESQUEIRO A CIDADE TURSTICA......................................

35

2 A PRESENA DOS AFRICANOS E

AFRODESCENDENTES EM GAROPABA

E SEUS ARREDORES.....................................

75

3 CONSTITUIO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE GAROPABA - SC........

97

3.1 Constituio da Comunidade Quilombola da

Aldeia.................................................................

101

3.2 Constituio da Comunidade Quilombola do

Morro do Fortunato.............................................

115

4 SOCIABILIDADE E AFIRMAO

IDENTITRIA NAS FESTIVIDADES DOS

QUILOMBOS DE GAROPABA.....................

129

4.1 Aldeia e suas festividades.................................. 130

4.2 Festividades da Comunidade Quilombola do

Morro do Fortunato.............................................

156

CONSIDERAES FINAIS........................... 171

REFERNCIAS................................................ 177

FONTES............................................................. 187

13

INTRODUO

H momentos na vida em que precisamos tomar

determinadas decises em um breve perodo de tempo. Assim

ocorreu quando precisei definir uma temtica para escrever o

trabalho de concluso do curso de Histria no incio de 2006,

na Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Naquele

momento fiz um release de todos os temas que me

interessavam e procurei distinguir um que realmente fosse

importante para mim e tambm para os alunos do Ensino

Mdio da Escola de Educao Bsica Professor Jos

Rodrigues Lopes, no Centro de Garopaba e da Escola de

Educao Bsica Maria Corra Saad, no bairro Campo D

Una, Sul do referido municpio, escolas nas quais lecionava na

poca.

Certo dia, na sala dos professores da escola do Centro,

houve uma discusso sobre um assunto at ento pouco

comentado: os alunos oriundos da Comunidade Quilombola do

Morro do Fortunato. Falava-se sobre a mudana de postura de

tais alunos aps o processo de reconhecimento na condio de

quilombolas, comentando-se, inclusive que alguns deles no se

sentiam vontade para falar do assunto e que quando

questionados davam respostas evasivas.

Foi naquele momento que percebi um forte elo entre

determinado grupos de alunos das duas escolas, pois, tanto no

Centro, quanto no Campo DUna, havia descendentes de

quilombolas. Ento, decidi conhecer melhor as comunidades

que por muito tempo foram invisibilizadas pela sociedade

local e desvelar mais uma cortina desse emaranhado de

experincias e sentimentos que por tanto tempo pareceram

adormecidos aos olhos pouco atentos das pessoas comuns.

Desta forma, entende-se que o desenvolvimento deste

estudo encontra sua relevncia na urgncia que a questo dos

afro-brasileiros requer, j que somos um pas multicultural.

14

Diversos estudos vm contribuindo para ampliar o

entendimento acerca da temtica bem como a compreenso

das experincias de nossos pares. Nesse vis, trabalhamos com

a noo de afrodescendentes ou populaes de origem

africana, no no sentido de uma raa1, mas enquanto grupos

populacionais com perspectivas relacionadas visibilidade de

suas memrias, experincias e histrias2. Segundo Paulino de

Jesus Francisco Cardoso:

Para fugir do anacronismo e do racialismo,

optamos por utilizar as categorias de populao

de origem africana e afrodescendentes como

ferramentas de natureza descritiva para a

apreenso de realidades pretritas. Elas nos

permitem nos referir totalidade dos africanos

e seus descendentes sem a pretenso de ser

expresso de identidade tnica ou

uniformidade cultural. Elas nos permitem

discutir sobre fenmenos de longa durao que

afetaram e afetam africanos e seus

descendentes no pas. A afrodescendncia, ao

contrrio de negritude, no remete a uma

identidade de natureza racialista e totalitria.

Ela enfatiza a pluralidade de experincias da

dispora africana no tempo e no espao. (2004,

p.173).

1 Sabemos que o conceito biolgico de raa est cientificamente

ultrapassado, porm, h um uso social para o termo raa que tem sido

aplicado para justificar prticas discriminatrias e racistas. (REZENDE, p.

161, 2004). 2 A justificativa para o uso da expresso negros em Garopaba, presente no

ttulo, se faz em funo da palavra estar arraigada no dilogo das

comunidades. Assim, embora o termo seja visto como preconceituoso, seu

uso tem maior aceitao nas relaes entre os Quilombolas e demais

moradores de Garopaba - SC e, em hiptese nenhuma, utilizado na

perspectiva de categoria explicativa.

15

Portanto, afirmar a identidade afro-brasileira uma das

formas de valorizar nossa cultura. No que se refere s questes

tnicas, importante ressaltar que se existir a oportunidade das

pessoas se sensibilizarem e mudarem suas prticas em prol dos

desafios da luta antirracista no cenrio social, j ser uma

conquista, que no se encerra em si, mas, em um caminho a

trilhar, fundamental para a conquista histrica do

reconhecimento e a formao da identidade do povo afro-

brasileiro.

Assinala-se desta maneira uma discusso em torno do

reconhecimento dos remanescentes de quilombo que

conquistaram uma dimenso de direitos e cidadania. Nessa

discusso, a busca do desenvolvimento social enfatiza a luta

pela liberdade, cidadania e direitos, possibilitando a construo

de uma identidade social especfica. Da mesma maneira,

prope-se a construo e manuteno da memria coletiva, da

terra e do espao cultural construdo por afro-brasileiros e seus

descendentes.

No Municpio de Garopaba, Sul de Santa Catarina,

reconhecido por moradores e autoridades como reduto

tipicamente aoriano, existem duas comunidades formadas,

quase que em suas totalidades, por afro-brasileiros - Morro do

Fortunato, na localidade de Macacu, ao Norte, e Aldeia, no

extremo Sul do municpio, na localidade de Campo DUna,

conforme se observa na figura 01.

Constitudas por descendentes de africanos cativos, as

Comunidades do Morro do Fortunato e da Aldeia ainda

praticam alguns dos hbitos e costumes dos antepassados,

reconstitudos ao longo do tempo por fora da tradio, como a

produo familiar de gneros alimentcios, utilizando

utenslios muitas vezes improvisados, mas que, juntamente

com o trabalho assalariado, garantem a sobrevivncia dos

grupos e a manuteno da cultura herdada de seus

antepassados.

16

Figura 01: Localizao das Comunidades Quilombolas no Municpio

de Garopaba.

Fonte: www.gsurf.com.br.

Edio: Da prpria autora.

Nessa perspectiva, a pesquisa que resultou nesse

trabalho perseguiu a seguinte indagao: que experincias

marcaram a vida dos quilombolas de Garopaba entre os anos

de 1970, com a chegada do turismo, at 2008, momento em

que estas comunidades tomam conscincia de seus direitos e

comeam a lutar pelo reconhecimento de suas terras?

Ao estudarmos as Comunidades Remanescentes de

Quilombos de Garopaba, tivemos o objetivo geral de

http://www.gsurf.com.br/

17

compreender as formas de interao entre estes grupos e as

comunidades do entorno e, principalmente, a sua organizao

interna. Alm disso, perseguimos os seguintes objetivos

especficos: identificar as motivaes que levaram os grupos a

se manterem coesos; verificar a densidade do cotidiano das

comunidades; narrar situaes relativas s festividades, no

perodo em questo; identificar as aes coletivas de afirmao

cultural e relacionar o interesse pelo reconhecimento como

Comunidades Remanescentes de Quilombo com a segurana e

manuteno das terras em que vivem. Assim, encontra-se a

viso de uma histria construda a partir das lutas sociais e da

interao entre culturas.

Estudos referentes problemtica afro-brasileira

encontram lugar de destaque na contemporaneidade, pois os

afro-brasileiros fazem-se presentes em diferentes espaos com

seus costumes, sua religiosidade e seu trabalho,

desempenhando, desde os primeiros momentos da

colonizao, papel fundamental na formao tnica, cultural e

econmica brasileira.

Articular historicamente o passado no significa

conhec-lo como de fato o foi, mas sim apropriar-se de

determinados registros, representaes, dando sentido e

racionalidade condizentes com as questes que se queiram

deixar registradas e ver debatidas. Segundo Ren Rmond

(2006, p. 208), O historiador do tempo presente sabe o quanto

sua subjetividade frgil, que seu papel no o de uma chapa

fotogrfica que se contenta em observar fatos, ele contribui

para constru-los.

Este estudo, focado nas experincias das Comunidades

Quilombolas de Garopaba, parte da perspectiva da Histria do

Tempo Presente. Tal opo terica deve-se ao esforo

empreendido na busca da compreenso das transformaes em

seu percurso, em seu prprio tempo de durao, ao contrrio

de outras abordagens histricas, que se detm sobre as

transformaes, focando somente o que foi transformado.

18

Realizar este trabalho no foi tarefa fcil, pois

demandou uma pesquisa ampla marcada por estudos

disponveis e busca de novas fontes, ou seja, a

interdisciplinaridade permitiu ir alm da escassez de fontes

escritas at rdua tarefa de obter testemunhos da tradio

oral. Como fundamentao terica, esta pesquisa apia-se em

literaturas que deem conta do processo de escravido e da ps-

abolio no Brasil; em discusses tericas sobre identidade,

preconceito, tradio, costume, multiculturalismo, memria e

quilombo. Assim, as discusses baseiam-se nas obras de

Janaina Amado Ferreira, Eclia Bosi, Fernando Henrique

Cardoso, Paulino de Jesus Francisco Cardoso, Clifford Geertz,

Stuart Hall, Ilka Boaventura Leite, Luclia de Almeida Neves,

Homi Bhabha, dentre outras obras que possibilitaram pensar

de que modo as populaes afro-brasileiras criaram estratgias

e tticas, articulando suas experincias de vida e sobrevivncia

ao delineamento de sua prpria histria.

Para o levantamento de documentao histrica foram

realizadas pesquisas documentais em arquivos pblicos e

privados, nos Cartrios de Registros de Garopaba3, Imbituba

4

3 Em relao aos documentos do Cartrio de Registro Civil de Garopaba -

SC foram consultados os seguintes documentos: Certido de Casamento de

Antnio Manoel Lemos (falecido) e Maria Eugnia Pereira, moradores da

Comunidade Quilombola da Aldeia; Certido de Casamento de Fortunato

Justino Machado e Lusa Cristina de Jesus; Certido de bito de Fortunato

Justino Machado; e as Certides de Nascimento de trs filhos de Fortunato

Justino Machado e Lusa Cristina de Jesus - Daniel, Manoel e Loureno

(nas certides no consta o sobrenome). Segundo informaes de alguns

moradores da Comunidade do Morro do Fortunato, o Senhor Fortunato

Justino Machado foi o fundador do grupo, o patriarca da Comunidade,

sendo que o nome da Comunidade Morro do Fortunato deriva do seu

nome. 4 No Cartrio de Registro Civil de Imbituba - SC obteve-se a Certido de

bito do Senhor Antnio Manoel Lemos, morador da Comunidade

Quilombola da Aldeia. Segundo Manoel Matias Pereira, 35 anos, lder e

professor da Comunidade da Aldeia, o tio, Antnio Manoel Lemos,

19

e Palhoa5. Tambm foram averiguados acervos particulares

dos membros das Comunidades Quilombolas da Aldeia6 e do

Morro Fortunato7, na inteno de obter documentos como:

certides de nascimento, casamentos e bitos, fotos cartas

escrituras de terras, entre outros. Uma das principais fontes de

pesquisa deste trabalho consiste nas entrevistas com moradores

e lideranas das Comunidades Quilombolas.

Os documentos do Cartrio de Registro Civil, como

certides de terra, de nascimento e de casamento, foram

analisadas com o objetivo de entender o processo de formao

territorial das Comunidades Quilombolas de Garopaba e

perceber as sutilezas do reconhecimento e o balizamento

dessas fronteiras. Outros aspectos pesquisados e discutidos conhecido como Antnio Ventura, foi um dos moradores que muito

contribuiu com o levantamento histrico da Comunidade. 5 No Cartrio de Registro Civil de Palhoa - SC encontrou-se a Certido das

terras da Comunidade do Morro do Fortunato, as quais medem 208.000 m,

pertencentes a Fortunato Justino Machado, que em seu falecimento foram

deixadas como herana para seus filhos: Loureno Fortunato Machado, Joo

Fortunato Machado, Manoel Fortunato Machado, Alice Luiza Machado,

Anastcio Fortunato Machado, Daniel Fortunato Machado e Incio

Fortunato Machado. 6 Em uma das visitas realizadas residncia da Senhora Adelaide Maria

Eva, 82 anos, moradora da Comunidade da Aldeia, obteve-se a certido de

seu casamento com o Senhor Argentino Timtio. Vale salientar que a

Senhora Adelaide Maria Eva a atual matriarca da Comunidade e lder

espiritual do grupo. 7 O Presidente da Associao Comunitria da Comunidade Quilombola do

Morro do Fortunato, Maurlio Machado, nos forneceu os seguintes

documentos: Ata da Assembleia da Fundao e eleio da diretoria da

comunidade; Ata da reunio para alterao do Estatuto da Associao da

Comunidade Quilombola; Documento de Alterao Estaturia N 001/2009,

registrada no Cartrio de Registro Civil de Garopaba; Ofcio recebido do

Prefeito de Garopaba, Lus Carlos da Silva, no qual declara de utilidade

pblica a Associao de Moradores do Morro do Fortunato e d outras

providncias; Certido de Auto Reconhecimento da Fundao Cultural

Palmares; Anlise tcnica de pedido de concesso de subvenes sociais,

dentre outros documentos de regime interno.

20

foram s relaes sociais internas e externas dessas

comunidades. Com a pesquisa de campo, procuramos tambm

identificar a forma que os grupos vivem atualmente, seu modo

de organizao poltica e o lugar em que trabalham. Conhecer

suas redes matrimoniais, de amizade e compadrio, como est

distribudo s casas, suas festividades, seus lugares sagrados,

narrativas sobre a escravido, entre tantos outros elementos,

nos permitiram maior visibilidade histrica dos grupos.

A partir de entrevistas, documentao dos Cartrios

Civis e documentos particulares das Comunidades

Quilombolas, buscamos conhecer a sua constituio histrica e

social, entender a trajetria histrica dos seus familiares e

construir a rvore genealgica dos antepassados aos atuais

moradores do Morro do Fortunato, visto que este grupo tem

muitas ligaes de parentesco diferentes da Aldeia, que alm

de parentes, agrega muitos compadres e amigos.

Para conhecer as vivncias dos moradores das

Comunidades Quilombolas da Aldeia e do Morro do

Fortunato, a Histria Oral foi o procedimento, o caminho ou

fio condutor das tramas da memria, das experincias de vida

em um espao no qual a oralidade predomina. Segundo Luclia

de Almeida Neves Delgado (2006, p. 52), A histria Oral

possibilita o afloramento de mltiplas verses da histria e,

portanto, potencializa o registro de diferentes testemunhos

sobre o passado. Nesse sentido, os testemunhos e os relatos

orais tornaram-se as fontes principais a serem trabalhadas.

As entrevistas foram realizadas com moradores e

lideranas das Comunidades Quilombolas do Morro do

Fortunato8, Aldeia

9 e de outras localidades do municpio

10. Os

8 Os entrevistados da Comunidade do Morro do Fortunato foram: Jordina

Rita Machado; Fortunato Joo Machado; Maurlio Machado e Mercedes

Machado. 9 Os entrevistados da Comunidade da Aldeia foram: Abrao Joo de Souza,

Manoel Matias Pereira; Manoel Antnio Lemos; Claudemir Antnio Lemos

e Edinete Lemos.

21

nomes dos entrevistados que aparecem no texto so

verdadeiros j que todos se mostraram seguros quanto

divulgao de suas ideias, aes e sentimentos em relao s

vivncias das comunidades nas quais pertencem e quando

informados sobre a possvel utilizao de suas falas em

pesquisa acadmica, mostraram-se inteiramente favorveis.

Em relao s entrevistas, organizamos um roteiro com

a inteno de conhecer e entender as vozes dos moradores e

lideranas das Comunidades Quilombolas de Garopaba: o que

sabem sobre o processo do reconhecimento da Comunidade

como Quilombola; como se sentem como moradores de uma

Comunidade Quilombola; o que sabem sobre a constituio do

grupo (de onde vieram, porque e como pararam nesses locais,

se fixaram); de que forma foram criados e como sobrevivem

hoje: economia, educao, sade, religio e lazer; seus medos,

crenas, saudades, frustraes, alegrias, verdades e mentiras;

os costumes dos africanos que foram mantidos na Comunidade

Quilombola; os motivos que levaram os moradores do

Fortunato a se distanciarem das demais comunidades; e quais

festividades fazem parte da vida das Comunidades.

De acordo com Luclia de Almeida Neves Delgado

(2006, p. 30-31), trabalhar com fontes orais exige que o

historiador possua determinadas habilidades, j que so

inmeros e de diferentes naturezas os desafios que as

acompanham. Primeiramente, vlido destacar que as fontes

orais esto repletas de emoes recentes que podem levar o

pesquisador a se tornar refm do depoimento recolhido em

detrimento de sua capacidade analtica. Vale salientar que, em

se tratando de fontes orais, a presena do pesquisador

indispensvel. ele quem deve comandar o processo, analisar

e interpretar as informaes.

10

E os Moradores do Centro da cidade, Maurcio dos Passos, Manfredo

Hbner e Jair Joo Ribeiro. Os moradores da Comunidade do Campo

DUna: Laudelino Antnio Teixeira, Santina da Silveira Teixeira, Sandra

Marques Gonalves, Joo Marques e Leonrcio Marques.

22

No que concerne s entrevistas, consideramos, assim

como Knia de Souza Rios (2000, p. 25), que o indivduo

aquilo que sua memria comporta guardar seja como

lembrana do vivido ou como desejo sobre o no vivido. A

memria mostra a organizao do passado em relao ao

presente. Ou seja, no um passado preservado, e sim

continuamente reconstrudo, tendo como base o presente. Na

verdade, no existe memria isenta, pois a memria uma

construo hodierna sobre o passado que constantemente

revitalizada no Tempo Presente.

A memria , pois, imprescindvel na medida em que

esclarece o vnculo entre a sucesso de geraes e o tempo

histrico que as acompanha. Sem a memria no possvel se

situar, pois se perde o elo afetivo com o meio em que se est

inserido, o que impede o reconhecimento de si prprio como

cidado de direitos e deveres e sujeito da histria. Segundo

Ecla Bosi (2004):

Aos dados imediatos e presentes dos nossos

sentidos ns misturamos milhares de

pormenores da nossa experincia passada,

quase sempre essas lembranas deslocam

nossas percepes reais, das quais retemos

ento algumas indicaes, meros signos

destinados a evocar antigas Figuras. [...]

comea-se atribuir memria uma funo

decisiva do processo psicolgico total: a

memria permite a relao do corpo presente

com o passado e, ao mesmo tempo, interfere

no processo atual das representaes. Pela

memria, o passado no s vem tona das

guas presentes, misturando-se com as

percepes imediatas, como tambm empurra,

desloca estas ltimas, [...] A memria

aparece como fora subjetiva ao mesmo tempo

profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e

invasora (BOSI, 2004, p. 46 - 47).

23

Outro aspecto importante o fato de que, quando

fazemos uso de fontes orais, estamos lidando com pessoas e o

resultado do material estar ligado ao momento da narrativa,

como tambm relao do entrevistado com o entrevistador,

ou seja, tem-se aqui uma caracterstica bsica das condies de

produo da Histria do Tempo Presente, j que a memria

selecionada a partir do momento vivido. Um dos elementos

que compem a narrativa gestado no momento mesmo da

entrevista, pois parte de uma relao entre condies de

recepo e emisso neste momento de dilogo (RIOS, 2000,

p. 12).

O resultado da entrevista no est gravado numa

memria remetida somente ao passado, nem tampouco apenas

ao presente. A memria utilizada para recompor lembranas

a partir desse entrelaamento. O que se lembra o que se vive

ou o que se queria viver. Existe uma emoo, ou at mesmo

uma exaltao do vivido, talvez por se tratar de um sonho ou

de um fato que ficou no passado e no pode ser remetido a

julgamentos do presente, mas apenas lembrado e enaltecido.

Afinal, os sonhos so reais na sua potncia de ser sonho. O

mais importante perscrutar o que esses sonhos dizem do

indivduo e seu grupo na sua dimenso cultural, que tambm

histrica (RIOS, 2000, p. 21).

No se deve afirmar que o contedo de determinado

depoimento no real. O que mais importa no saber se

algo aconteceu ou no, mas perceber por que est sendo

narrado de tal maneira, como tambm perceber a relao com

que os elementos contidos na descrio iro ajudar na

interpretao da complexidade social em que est inserida. O

trabalho de interpretao das fontes orais possibilita a abertura

de novas perspectivas de investigao, pois, alm de criar

condies para repensar a construo do conhecimento, agrega

elementos subjacentes ao processo, como: valores em disputa,

padres de comportamento, culturas polticas, dentre outros,

24

fazendo vir tona as experincias vivenciadas e os seus

significados. Knia de Souza Rios (2000) afirma:

Ns, historiadores da oralidade, no devemos

encarar os depoimentos como uma rede de

informao pronta para ser analisada e definida

pelos pressupostos da filosofia. Entender a

situao de enunciao em que o depoimento

que se constri condio imprescindvel para

estabelecermos dilogos com nossos

depoentes. Quando o entrevistado fala sobre o

tema solicitado, ele no est simplesmente

informando sobre acontecimentos que nos

interessam, mas constri o fato mediante a sua

experincia. Portanto, apresenta-nos sua

prpria interpretao. no entendimento dessa

dada interpretao que nos encontramos com o

sujeito. Deparamo-nos, assim, com a maior

contribuio da histria oral, ou seja, o

horizonte de possibilidades. O vislumbramento

do mltiplo, do diverso em face de nossas

tentativas de compreenso do homem nas suas

mais variadas relaes com o mundo (RIOS,

2000, p. l5).

Por outro lado, no podemos dissociar a histria oral da

teoria, pois estaramos concebendo qualquer tipo de histria,

um conjunto de tcnicas incapazes de refletir sobre si mesmas.

Cabe ao historiador analisar as diversidades e complexidades

de cada contexto. Nesse vis, Jorge Eduardo A. Lozano (2001,

p.17) afirma: Fazer histria oral significa, portanto, produzir

conhecimentos histricos, cientficos, e no simplesmente

fazer um relato ordenado da vida e da experincia dos outros.

Assim, a pesquisa de campo, embasada na metodologia

da Histria Oral, segue o exemplo daquelas realizadas por

historiadores, antroplogos e socilogos, abrangendo a

observao, a participao e o envolvimento direto nos

processos e acontecimentos histricos apresentados para

25

reflexo crtica acerca da Histria do Tempo Presente. A

valorizao de uma histria construda atravs da oralidade

permitiu que estudiosos repensassem as relaes entre passado

e presente e definissem para a Histria do Tempo Presente o

estudo dos usos do passado. Segundo Luclia de Almeida

Neves Delgado (2006, p. 52):

A Histria Oral refere-se, especificamente, ao

Tempo Presente, portanto histria

contempornea. Nesse sentido, pode no

mximo recolher registros, informaes e

verses sobre o acontecido em um espao

limitado de tempo, no comportando

referncias a um passado mais longnquo, a

no ser como notcias ou registros de tradies

que foram transmitidas de gerao em gerao.

(DELGADO, 2006, p. 52).

Para desenvolver a pesquisa que tem por tema as

experincias quilombolas nas comunidades, Aldeia e Morro do

Fortunato, fez-se necessrio recorrer a determinadas categorias

histricas, destacando-se, memria, identidade/identificao e

experincia. Esse destaque deve-se ao fato de que importante

se ter clareza quanto ao tipo de pesquisa que se prope, ou

seja, considerar que a pesquisa est focada na perspectiva

historiogrfica do Tempo Presente.

Diante de tal constatao enfatiza-se a urgncia de

considerar as transformaes constantes de sentido e de

significados, em torno das memrias, das identidades, das

sociabilidades, das representaes e das subjetividades no

contexto histrico. Nesse sentido, Lusa Passerini alerta que:

Todas essas expresses fazem parte de uma

mesma constelao que preside ao esforo

necessrio para construir um presente e

constitui os eixos de uma subjetividade

26

histrica cambiante, compartilhada, ainda que

de maneiras diferentes, pelos historiadores e os

contemporneos. (PASSERINI. 2006. p, 212).

Em se tratando de vivncias quilombolas, o dilogo

entre as fontes passa a contemplar experincias e pontos de

vista distintos, contraditrios, ambguos, que tendem a se

completar em mutuamente, pois argumentam coletivamente

diante de uma problemtica comum - a luta pela afirmao de

uma identidade. No se intenciona a tarefa impossvel de

estabelecer a verdade dos fatos, mas sim, mostrar o que se

pode registrar e analisar a partir do lugar em que o sujeito se

situa como agente histrico e historiador.

A categoria memria constitui-se como elemento de

significativa importncia para a reconstituio do processo

histrico desses remanescentes de quilombos; o sujeito que

lembra, escreve Maurice Halbwachs (1990, p. 80). A

memria tem vrias funes: toda nossa conscincia do

passado est fundada na memria; atravs das lembranas

recuperamos acontecimentos anteriores, distinguimos o ontem

de hoje e confirmamos que j vivemos um passado. Segundo

Luclia de Almeida Neves Delgado (2006, p. 61) A memria,

portanto, traduz registro de espaos, tempos, experincias,

imagens, representaes. Ou seja, a memria do passado,

muitas vezes, nos ajuda a entendermos o contexto vivido,

como tambm a construir um futuro mais significativo.

importante destacar que, para Halbwachs (1990), a

memria individual existe sempre a partir de uma memria

coletiva. Ou seja, o conceito de memria est na interseo

entre histria e identidade coletivas. Assim, a memria

imprescindvel para a reconstituio do passado, seja

individual ou coletivo, sendo considerada, portanto, um

recurso fundamental para a apreenso da identidade e da

histria.

27

Entendemos que a memria e a tradio mostram a

organizao do passado em relao ao presente. Isto , no se

trata de um passado preservado, mas continuamente

reconstrudo, tendo como base o presente. A memria coletiva

possui guardies, geralmente formada por pessoas mais idosas

e que assim o so no apenas porque participam de muitas das

formulaes dessas tradies, mas porque tm tempo

disponvel para identificar os detalhes contidos, e, ao contrrio

do costume, tm fora de unio que combina contedo moral e

emocional. Assim, a tradio um meio organizador da

memria coletiva e individual.

importante destacar que um dos principais objetivos

da memria atualizar o passado, atravs dos testemunhos que

muitas vezes esto inconscientes ou dos sentimentos que esto

preservados. Segundo Maurice Halbwachs:

A memria apoia-se sobre o passado vivido,

o qual permite a constituio de uma narrativa

sobre o passado do sujeito de forma viva e

natural, mais do que sobre o passado

aprendido pela histria escrita.

(HALBWACHS, 1990, p. 75).

Atentando para as palavras de Maurice Halbwachs,

buscamos construir a histria das Comunidades Quilombolas

de Garopaba com base nas experincias dos moradores dessas

comunidades, valendo-nos de seus depoimentos e lembranas.

Porm, nessa trama, no s as falas e lembranas do o

tom do enredo. preciso destacar, tambm, que a pesquisa

documental, juntamente com as fontes orais, embasam a

escritura desta dissertao. Pensamos que a variedade de

documentos amplia as possibilidades do trabalho de campo e

facilita reflexes diferenciadas acerca de diversos assuntos

sobre um mesmo tema, j que toda fonte histrica possui

historicidade e constitui uma representao do real. (RIGER,

28

2011, p. 84). Assim, utilizaremos os documentos como

certides de nascimento e casamento (civis) e certides de

batismo e casamento (religiosas) para convalidar o que nos

informado atravs das narrativas dos entrevistados.

Exemplos do agregamento de fontes orais e escritas

sero materializados na organizao e apresentao da rvore

genealgica da Comunidade do Morro do Fortunato. Em certo

momento, apresentaremos a constituio familiar do grupo

com base nas falas dos moradores mais antigos ou, como diria

Ecla Bosi, na memria dos velhos, confrontada com os

documentos dos cartrios. O uso da fonte documental,

portanto, serve para corroborar as falas, aproximando as

lembranas dos vestgios histricos que representam os

documentos oficiais. A histria deve reproduzir-se de gerao

a gerao, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem ,

prolongando o original, puxados por outros dedos. (BOSI,

2004, p. 90).

Provocar embates entre as fontes disponveis e todas as

informaes que se tem a respeito do fato estudado,

submetendo-as s perspectivas tericas, importante para que

se evitem distores. No entanto, esta operao processual da

pesquisa no a encerra, pois no basta descrever as coisas tais

como aconteceram se que isso possvel; necessrio

compreend-las e interpret-las.

As fontes so, no entanto, a estrada real

emprica, para se chegar ao cerne do

pensamento histrico, do qual o historiador

retorna mais sbio do que as fontes podem

torn-lo. Esse ganho de eficincia do

pensamento histrico, para alm da mera crtica

das fontes como meio de extrair informaes

dos fatos do passado, d-se na interpretao.

(RUSEN, 2007, p. 124).

29

Este processo de interpretao dos testemunhos obtidos

atravs dos vestgios histricos o mais importante, pois esta

operao metdica que articula, de modo intersubjetivamente

controlvel, as informaes garantidas pela crtica das fontes

sobre o passado humano. Ela organiza as informaes das

fontes em histrias e as insere no contexto narrativo em que os

fatos do passado aparecem e podem ser compreendidos como

histria.

Nesse vis, as categorias Identidade/Identificao vm

complementar e at mesmo, de forma intrnseca, estabelecer os

contornos das particularidades pertinentes a cada uma das

Comunidades Quilombolas em questo: Morro do Fortunato e

Aldeia. A construo identitria de tais grupos no est

naturalmente dada; feita por meio de escolhas e confrontos.

Stuart Hall (2006) no hesitou em afirmar que existe

uma crise de identidade abalando as estruturas do homem

ps-moderno. Para o autor, as fronteiras bem definidas do

homem da sociedade moderna o localizavam e o definiam no

mundo social e cultural, premissa que fora abalada na

modernidade tardia com o descentramento das identidades

modernas. Ainda segundo o antroplogo Stuart Hall (2006, p.

13), a identidade plenamente unificada, completa, segura e

coerente uma fantasia.

As velhas identidades esto em declnio e as novas

permitem as mltiplas fragmentaes impossibilitando aos

sujeitos ps-modernos terem uma identidade fixa, essencial ou

permanente, processo conceituado por Stuart Hall (2006)

como crise de identidade. Stuart Hall trabalha na perspectiva

de uma identidade hbrida.

O sujeito previamente vivido dentro de uma

identidade unificada e estvel est se tornando

fragmentado; composto no de uma, mas de

vrias identidades, algumas vezes

contraditrias e no resolvidas. (HALL, 2006,

p. 12).

30

Sendo assim, a identificao seria o processo pelo qual

nos projetamos em nossas identidades e a identidade torna-se

uma dinmica mvel: formada e transformada continuamente

em relao s formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

Desta forma, os estudos sobre processos de identidade

cultural valorizam as reflexes sobre as experincias

vivenciadas pelos grupos em estudo. Ou seja, ressaltam os

mltiplos fios das culturas e tradies estabelecidas e

vivenciadas por eles. Alm disso, no caso especfico dos

quilombos, existem lutas identitrias, pois h disputas internas,

em relao s verses acerca do mito de fundao a serem

aceitas por todos, enfim, uma gama bastante complexa de

olhares e opinies que se engendram para construir a face

identitria do grupo. Nesse sentido, importante destacar as

consideraes de Homi K. Bhabha acerca do momento

histrico que vivemos:

[...] encontramo-nos no momento em que

espao e tempo se cruzam para produzir

figuras complexas de diferena e identidade,

passado e presente, interior e exterior, incluso

e excluso. (BHABHA, 1998, p. 19).

Assim, as culturas no correspondem a fronteiras

espaciais ou temporais, no estabelecem obstculos de nao

ou de etnia, tampouco reproduzem valores essenciais de

antigas tradies como um princpio histrico. As tradies, as

culturas so escancaradas pelo dilogo e s trocas. A dinmica

das identidades e formaes culturais so livres e no seguem

um fio condutor pronto que orienta sua trajetria cultural. Ou

seja, as prticas culturais trocam-se, intercambiam-se,

conflitam-se, metamorfoseiam-se permanentemente. Nesse

sentido, entendemos as reinvenes culturais e identitrias dos

31

grupos sociais, principalmente das Comunidades Quilombolas

em estudo.

importante destacar que a categoria experincia um

dos pilares desse trabalho. No entanto, mister sublinhar que

a experincia surge sem aviso, exerce presses e prope novas

questes. A experincia o que nos passa, o que nos acontece,

o que nos toca. Tornar a experincia visvel exige uma

anlise crtica em relao ao sistema de funcionamento

ideolgico de si prprio e da sociedade, analisando as

transformaes e as vivncias.

Segundo Thompson, por meio da categoria

experincia que se compreende a resposta mental e

emocional, seja de um indivduo ou de um grupo social,

existem muitos acontecimentos inter-relacionados

(Thompson, 1981, p. 15). atravs da experincia que homens

e mulheres definem e redefinem suas prticas e pensamentos.

Os homens e mulheres tambm retornam como

sujeitos, dentro deste termo, no como sujeitos

autnomos, indivduos livres, mas como

pessoas que experimentam suas situaes e

relaes produtivas determinadas como

necessidades e interesses e como antagonismos,

e em seguida tratam essa experincia em sua

conscincia e sua cultura [...]. (THOMPSON,

1981, p. 182).

Por sua vez, o mesmo autor introduz a categoria

experincia e a articula com a cultura. Ou seja, da reflexo

relativa categoria experincia resulta a concepo de que a

cultura deve ser compreendida a partir de experincias mentais

e emocionais, vividas em muitos acontecimentos inter-

relacionados. Thompson reconhece que a experincia vivida,

32

alm de pensada, , tambm, sentida pelos sujeitos. Conforme

ele mesmo afirma:

As pessoas no experimentam sua prpria

experincia apenas como idias, no mbito do

pensamento e de seus procedimentos [...] Elas

tambm experimentam sua experincia como

sentimento e lidam com esse sentimento na

cultura, como normas, obrigaes familiares,

[...] valores, [...] arte ou nas convices

religiosas (Thompson, 1981, p. 189).

Assim, fica evidente que a categoria experincia

estabelece fundamentos necessrios a corroborar a capacidade

de homens e mulheres romperem com condies impostas. Ou

seja, a experincia pode levar a rever prticas, valores e

normas e, ao mesmo tempo, pode ajudar a constituir

identidades de classe, de gnero, de gerao, de etnias

(Moraes e Mller, 2003, p. 13).

A visibilidade das experincias dos grupos em estudo

mostra a existncia de mecanismos repressores, mas

dificilmente conheceremos seu funcionamento interno, sua

lgica. Temos conscincia de que a diversidade existe, mas

difcil nos apropriarmos dela, conhecer suas relaes e

desvelar suas particularidades. Para conhecer partes dessas

experincias, precisamos dar conta dos processos histricos,

das vivncias, das aes realizadas por eles e para isso, nos

fundamentamos nos testemunhos e nas narrativas desses

sujeitos que produzem suas experincias. Pensar a experincia

dessa forma historiciz-la. Segundo Joan W. Scott,

historicizao implica uma anlise crtica de todas as

categorias explicativas que normalmente no so questionadas,

incluindo a categoria experincia. (1999, p. 28).

Na ps-modernidade a histria lida com um tempo

repleto de agoras e preocupa-se com as evidncias do

33

passado que possibilitem a leitura de um passado plausvel,

sem a presuno de ser verdadeiro. Essa histria se preocupa

em ampliar os horizontes e servir vida. Sabemos que o

passado ser sempre contado, no se esgota. Uma verso pode

se tornar hegemnica em certo momento, sendo reeditada em

outro. Nosso tempo fugidio, deslizante e a histria se

angstia por no poder prend-lo, segur-lo. Assim o tempo

histrico na ps-modernidade: incerto e imprevisvel.

Contudo, preciso registrar uma histria, aquele que

nos parea mais verossmil e at mesmo verificvel. Assim,

estruturamos esta dissertao da seguinte forma:

No primeiro captulo, intitulado Garopaba, de reduto

pesqueiro cidade turstica, realiza-se uma breve viagem pela

formao tnico-cultural desse municpio, procurando

identificar o lugar dos afro-brasileiros nessa trama social.

Nesse sentido, ser atravs de relatos dos prprios moradores

das comunidades em questo e tambm dos documentos

produzidos por historiadores e antroplogos durante o

processo de reconhecimento como Comunidades Quilombolas,

que construiremos uma verso quanto presena dos afro-

brasileiros em Garopaba. Este captulo tem a preocupao

maior de levar o leitor a compreender a estrutura social na qual

os afrodescendentes construram suas casas como tambm a

forma que se deu (ou no!) a interao com as comunidades do

entorno.

O segundo captulo, nomeado A presena de africanos

e afrodescendentes em Garopaba e seus arredores, trata da

constituio fsica dos Quilombos e da formao das

Comunidades de Remanescentes. Assim, lana mo das

memrias de moradores das comunidades bem como de seu

entorno, procurando, atravs destas narrativas, delinear os

acontecimentos que possibilitaram tal formao. Com base nos

depoimentos e relatos dos moradores das Comunidades

Quilombolas e das comunidades do entorno, teceu-se o enredo

da narrativa referente s prticas de sociabilidades.

34

O terceiro captulo, denominado Constituio das

Comunidades Quilombolas de Garopaba-SC, tem por

objetivo mapear os espaos de sociabilidades das

Comunidades Quilombolas da Aldeia e do Morro do

Fortunato, identificando que suas constituies esto

caracterizadas pela comum herana com o passado escravista e

por formas culturalmente especficas como da coletividade e

do compadrio. Essas caractersticas so visveis pelas

vivncias e por experincias de organizao social diretamente

relacionada ao direito a terra, por formas de consanguinidade e

parentesco.

No ltimo captulo, intitulado Sociabilidade e

afirmao identitria nas festividades dos quilombos de

Garopaba, nos reportaremos s diferentes festividades que

acontecem nas Comunidades Quilombolas de Garopaba:

Aldeia e Morro do Fortunato. Assim, os bailes, as brincadeira

de Boi de Mamo, os Ternos de Reis, a Festa da Tainha, o

Carnaval, a Festa de So Loureno e outras festividades que se

evidenciam a partir das crenas, hbitos e costumes dos

quilombolas, exaltando a alegria e a simplicidade dessas

comunidades traduzidas em acolhimento, participao

comunitria.

35

1. GAROPABA, DE REDUTO PESQUEIRO A CIDADE TURSTICA

Neste primeiro captulo, apresentamos a cidade de

Garopaba desde sua fundao, passando pela efervescncia da

chegada dos primeiros turistas, em meados dos anos de 1970 e

1980, at atingir o momento atual: poca de afirmao

enquanto destino turstico de alto padro. Nessa jornada,

atentamos para as novas prticas e transformaes pelas quais

a cidade passou, alterando a paisagem e os costumes locais.

sabido que no se pode conhecer a totalidade do

processo de desenvolvimento histrico da cidade de Garopaba,

pois seria uma pretenso que no condiz com a prtica

historiogrfica responsvel. No entanto, colocamos em tela

aspectos relevantes quanto trajetria de sua gente no

esvanecer do tempo. Nesse universo, atentamos para a

elaborao de discursos sobre a necessidade de proteger a

histria da cidade bem como de criar espaos e rtulos que

vendam a imagem de uma cidade apta para o consumo

turstico. Discutimos, ainda, questes relativas ao papel da

memria e das tradies na construo da imagem da cidade.

Falar da histria da Garopaba mergulhar nas

transformaes scio-histricas pelas quais a cidade passou, j

que de pequeno reduto de pescadores e agricultores se tornou

uma cidade conhecida por sua vocao turstica. Sendo

assim, importante ressaltar que nossa caminhada

historiogrfica fruto do entrelaamento das memrias e das

narrativas dos moradores locais aliados a documentos e

produes bibliogrficas referentes s suas transformaes.

A estratgia de utilizar as narrativas dos moradores foi

adotada na perspectiva de encontrar um caminho a ser seguido

na empreitada de tal construo histrica. Ou seja, os

depoimentos dos moradores nos possibilitaram maior clareza

em relao aos meandros das transformaes pela quais a

cidade de Garopaba passou durante o perodo. Pensamos que

36

essas memrias extrapolam o tempo presente e o homem

mergulha no seu passado ancestral. Nessa dinmica,

memrias coletivas encontram-se, fundem-se e se constituem

como possveis fontes para a produo do conhecimento

histrico. (DELGADO, 2006, p. 16).

Abrir uma discusso histrica sobre a construo da

cidade de Garopaba ousar adentrar por um universo

bibliograficamente incerto. As produes que contemplam o

municpio e abordam a temtica em estudo so livros de

memorialistas, um livro didtico, alguns trabalhos de

concluso da graduao, um trabalho de especializao e duas

dissertaes de mestrado.

Entre os memorialistas, esto s obras do Padre

Artulino Besen, 1996, quando do Centenrio da Igreja Matriz

da cidade; as duas obras do Professor Manoel Valentim (1994

- 2007); os livros do jornalista Fernando Bitencourt (2003 -

2005) e o livro de versos de autoria do pescador Maurcio dos

Passos (2012). Alm desses, em 2011, foi lanado, pela

Secretaria Municipal de Educao, um pequeno livro didtico

para as sries iniciais do ensino fundamental, de autoria das

Professoras da Universidade do Sul de Santa Catarina

(UNISUL), Deise S. de Farias e Mrcia Neu, alm da

Professora de Histria e Geografia, Elaine Coelho da Luz, que

aborda a histria e a geografia do municpio.

Os trabalhos acadmicos tratam de segmentos distintos

da histria de Garopaba: h uma obra relativa ao papel das

mulheres no desenvolvimento histrico da cidade, da

professora Silvana Cervo (2001); outra se debrua sobre as

festas de boi vendouro, hoje conhecidas como farra do boi, da

professora Rosiane Marli Antnio Damzio (2007) que

tambm escreveu sobre as transformaes provenientes do

turismo (2011); os stios arqueolgicos so a temtica de outro

trabalho da professora Elaine Coelho da Luz (2007), assim

como os engenhos de farinha, escrito pela professora Snia

Damsio Carvalho (2007), havendo ainda escritos sobre os

37

remanescentes de quilombolas pelas professoras Mauriclia

Teixeira de Albuquerque (2011) e Francine Adelino Carvalho

(2011).

Em funo da temtica em questo, acreditamos ser

pertinente apresentar com maior nfase o pescador e autor de

versos Maurcio dos Passos, 70 anos, conhecido por Morio

(Figura 02). O Senhor Maurcio nasceu na comunidade do

Siru, Norte do municpio, e viveu a maior parte de sua vida no

Centro da cidade, onde ainda reside. Importante destacar que

Maurcio dos Passos quilombola, j que sua me, Joana

Machado, era moradora do Morro do Fortunato, neta de

Fortunato Justino Machado, fundador do Quilombo.

Figura 02: Maurcio dos Passos. Fonte: Acervo prprio da autora. Ano: 2013.

Local: Em sua residncia Garopaba SC.

38

O Senhor Maurcio uma pessoa bastante simples e

dono de uma cultura predominantemente oral, visto que no

alfabetizado. Porm, isto no significou entrave para organizar

e publicar seu livro Versos de Morio, em 2012. Foi seu

sobrinho quem fez o papel de escriba, transformando as

memrias do pescador em registro escrito. com orgulho que

Morio narra os acontecimentos que deram origem ao livro

bem como os desdobramentos que sua publicao produziu:

Eu comecei a versar meu livro com a conversa

que eles vieram fazer para mim. A primeira

pessoa que veio fazer essa conversa foi o

Fernando Bitencourt. Outra situao que me

instigou a fazer o livro foi quando fui a Porto

Alegre e comecei a dizer o verso da baleia. Esse

verso fala do aparado, e eles me perguntaram:

Maurcio o que um aparado? um cafezinho.

Falei tambm da boleia, eles pensavam que

boleia era de caminho. Rindo eu disse: vocs

no conhecem nada, um aparelho de pescar

com linha e anzol que boleava para jogar no

mar para pegar peixe. Meus versos surgiram

por isso, eu tirava verso e as pessoas

perguntavam cada vez mais. Como as pessoas

que escutavam eu declamar os meus versos

gostavam muito e achavam engraados, eu pedi

ajuda a meu sobrinho para escrever os versos e

com a ajuda do Movimento Aoriano de

Resgate MAR11

, consegui publicar o meu

livro e hoje vendo nas ruas, Bancos e praas de

Garopaba.

11

MOVIMENTO AORIANO DE RESGATE - MAR: Associao

Cultural que tem como meta promover o resgate e a valorizao da cultura

em Garopaba.

39

Hoje, o pescador vende sua obra no centro da cidade12

e sempre tem tempo para conversar e contar suas histrias aos

que se interessam. Porm, acreditamos que sua obra literria

no tem merecido o devido destaque, pois enquanto os demais

livros que tratam da temtica compem as referncias oficiais

sobre a histria do municpio, o livro Versos de Morio no

citado. Essa marginalizao tpica de uma sociedade

excludente, que tende a valorizar somente as produes da

classe hegemnica. Quem perde com tal situao so os

leitores, em geral crianas das escolas municipais, pois no

tm oportunidade de conhecer versos como este:

Tempo passado

Quero falar no Brasil

Dos tempos de antigamente

Vai um pouco de passado

Do futuro e do presente

E falar de hoje em dia

Da vida de hoje pra frente

(...)

Foi a minha profisso

Porque nasci pra pescar

Pois no aprendi a ler

Porque no pude estudar

Fui obrigado a servir

Pros irmos alimentar

(...)

Tambm quero falar

12

Nosso contato com ele deu-se da seguinte forma: certo dia observamos,

em frente a uma agncia bancria do Centro da cidade, um senhor afro-

brasileiro, com alguns livros nas mos. Este, ao perceber que estava sendo

observado falou: Chegue at aqui, conhea os livros que vendo, so de

autoria minha. Sou analfabeto, mas Deus me deu o dom de fazer versos

sobre tudo o que se passa em Garopaba: economia, poltica, colonizao,

entre outras coisas que voc pode ler a. J concorri at em concurso de

versos. Neste contato inicial, o Senhor Maurcio dos Passos falou sobre

muitas coisas, demonstrando seu potencial como fonte para esta pesquisa.

40

Do lugar onde nasci

Meu pai era do Siri

Depois veio morar aqui

Numa casa na praa

Ali pouco vivi

(...)

Onde nasceu minha me

H muito tempo passado

Pertencia ao negro Fortunato

Eu ainda t lembrado

Ela chamava Joana

Filha de Incio Machado (Passos, 2012, p. 38-

39).

O livro do Senhor Maurcio dos Passos, Versos do

Morio resultado de suas experincias como pescador e

morador de Garopaba. Um homem analfabeto que se apropriou

dos versos para poder narrar e registrar alguns fragmentos da

sua prpria histria, da histria do Brasil e do municpio em

que mora. Em sua obra, aborda temas relevantes como: a

histria da sua famlia, dando visibilidade localidade em que

nasceu e onde seus pais, Apolnio dos Passos e Joana

Machado, iniciaram a vida, antes de vir morar no Centro de

Garopaba.

Em seus versos, Maurcio evidencia o vnculo familiar

que sua me tinha com os membros da Comunidade

Quilombola do Morro do Fortunato. importante destacar que

o poeta tem alegria em dizer que parente dos quilombolas,

enfatizando tambm sou um quilombola. O sentimento de

pertencimento ao ncleo familiar dos remanescentes

quilombolas est presente em sua fala, como em seus versos.

Sua me Joana era neta do Senhor Fortunato Machado, filha

do Senhor Incio Machado um dos filhos mais velhos do

Senhor Fortunato. Outro fator importante o nome de sua me

Joana, o mesmo da bisav, Joana Maria de Jesus, a

fundadora do grupo do Morro do Fortunato.

41

Em relao histria do municpio de Garopaba,

Maurcio fala do passado ao presente; a vida dos pescadores;

as dificuldades sofridas pelas famlias dos pescadores e

agricultores; a fora da natureza, como as tempestades

enfrentadas no municpio de Garopaba e no Estado de Santa

Catarina; lembranas de Getlio Vargas e Tancredo Neves;

entre outros versos que se referem ao cotidiano do municpio.

Outro aspecto que merece destaque na obra do Senhor

Maurcio dos Passos, so as memrias que ele guarda do

passado. A memria para os homens uma forma de

identificar-se com sua concepo de passado e, nesse sentido,

devemos compreender os aspectos referendados em seus

versos. Uma das memrias recorrentes em seu livro so as

lembranas de Garopaba, como vimos no verso a seguir:

J entreguei meus versos

Muita gente gostou

Vou falar do municpio

Onde eu sou morador

Em Garopaba do Norte

Avenida do pescador

(...)

Agora eu fao um convite

Pra vir aqui passear

Seja do sul ou do norte

Onde voc morar

Seja no leste ou oeste

Venha conhecer meu lugar

(...)

Esta linda Garopaba

Fica no sul do pas

Chegando em Florianpolis

Pergunta que o povo diz

E traga f em Jesus

E visite nossa Matriz

(...)

H muitos anos atrs

Este lugar era fraco

No tinha casas bonitas

42

Tinha pequenos barracos

Mas tinha nossa igreja

E o velho padre Faraco

(...)

Hoje aqui temos de tudo

Hotel e supermercado

Temos loja, restaurante

Que no se viu no passado

Mas tem a nossa lavoura

E vem o nosso pescado

(...)

Muitos saram daqui

Quando voltar no conhece

A casa onde morava

Se no perguntar se esquece

Ns estamos ficando velho

Enquanto a cidade cresce. (Passos, 2012, p.

05).

Ainda em relao aos versos do poeta garopabense,

ressaltamos a riqueza de detalhes histricos que elenca ao

escrever sobre o municpio. Em seus versos, Maurcio convida

os turistas a visitarem Garopaba, mas no somente pelas

belezas naturais como as propagandas miditicas costumam

enfatizar; mas para conhecer parte histrica de Garopaba,

como a Igreja Matriz e a Avenida dos Pescadores, ambas

consideradas Patrimnio Cultural da cidade.

Nos mesmos versos, o poeta faz referncia ao passado

e ao presente, indicando que sua narrativa pauta-se em suas

experincias, para elucidar as mudanas ocorridas em

Garopaba. As casas e ranchos que foram substitudas por

comrcio ou pousadas e as pequenas vendas, que hoje so

supermercados. Sabemos que essas mudanas so decorrentes,

em sua maioria, do turismo. No entanto, esse um processo

recorrente em diferentes lugares; portanto, no s Garopaba

sofreu esta transformao, uma vez que o lazer e o bem estar

se tornou proeminente a partir do crescimento exacerbado das

grandes cidades.

43

Voltando histria de Garopaba, observa-se que a

maior parte das produes embasada em fontes orais, ou

seja, fundamenta-se em entrevistas, revelando falas de quem

viveu ou vive na regio ou, ento, de pessoas que se remetem

memria de seus antepassados. Vale ressaltar que as obras

referentes histria de Garopaba tambm consideram as

fontes documentais, tais quais as fotografias e os registros

eclesisticos e cartoriais.

Feitas tais distines e indicativos, passamos a delinear

a histria de Garopaba, ressaltando que a cidade mais um dos

municpios do litoral catarinense marcado pela forte ligao

com o mar e com a chamada tradio aoriana, muito

embora, na prtica, haja evidncias da forte presena das

culturas indgenas e africanas; alis, no por acaso que

existem dois quilombos na regio e que o nome Garopaba

deriva da lngua tupi, prpria dos guaranis que por muito

tempo a habitaram.

Assim, conforme consta no dicionrio Tupy Guarany

(CONTELLI, s.n, p.09), Garopaba deriva da juno de yg,

ygara, ygarat, que significa barco, embarcao, canoa com

mpaba, paba, que significa paradeiro, lugar, enseada.

Garopaba, ento, significa Enseada das Canoas

(BITENCOURT, 2003, p. 14). Para padre Artulino Besen

(1996, p. 12), O nome condiz com a primeira utilidade da

enseada, recanto seguro para ancoradouro de embarcaes.

Tal denominao se mantm atual, visto que ainda hoje

comum vermos a calma enseada da avenida dos pescadores

(Figura 03) repleta de barcos de pesca, lanchas, caiaques,

escunas, enfim, num colorido que atualiza hodiernamente sua

denominao.

A presena dos primeiros colonizadores portugueses

em Garopaba discutida em diferentes obras sobre o lugar. Na

obra de Jos Artulino Besen (1980) encontra-se o registro da

chegada dos primeiros casais de colonizadores portugueses no

sculo XVII, exatamente no ano de 1692. Segundo Besen, a

44

presena dos portugueses em Garopaba desencadeou a

estruturao da armao baleeira que foi construda um sculo

depois. Besen descreve, em sua obra, a estrutura da armao

baleeira de Garopaba:

A Armao de Garopaba ficava no interior de

uma baa estreita e comprida (a enseada),

cercada direita e esquerda de morros

cobertos de florestas. A igreja, os alojamentos

do administrador, do capelo, dos feitores,

tinham sido construdos meia encosta de um

morro; o engenho de frigir, os reservatrios, as

casas dos negros, ficavam situados margem

da enseada (BESEN, 1980, p. 16).

Figura 03: Enseada de Garopaba - SC.

Fonte: Acervo prprio da autora. Local: Garopaba - SC.

Ano: 2014.

45

Esta verso em relao ao perodo da chegada dos

primeiros colonizadores a Garopaba analisada na obra de

Vilson Francisco de Farias (2000), em outro espao de tempo.

O autor diz que os aorianos desembarcaram em Garopaba

enviados pelo Imprio Portugus, procedentes, em sua

maioria, da Ilha Terceira, localizada no Arquiplago dos

Aores.

As primeiras informaes sobre a presena de

populao fixa [em Garopaba] de origem

europeia so do final do sculo XVIII,

resultante dos registros eclesisticos que

indicam j residirem em Garopaba diversas

famlias de origem aoriana. (FARIAS, 2000,

p. 255).

Garopaba tambm foi palco da caa a baleia durante

um longo perodo de tempo. As calmarias de suas guas e a

presena constante dos animais no perodo que vai de julho a

outubro fizeram com que fosse construda uma armao

baleeira em sua orla, na atual Praia do Centro. As armaes

baleeiras instaladas no litoral brasileiro foram

empreendimentos coloniais dedicados pesca da baleia e ao

beneficiamento das partes econmicas deste cetceo. O nome

armao, presente na toponmia em muitas regies do litoral

brasileiro, advm da instalao destas unidades produtivas ou

simplesmente da realizao da pesca da baleia, em que era

necessrio armar-se para o confronto com o grande peixe do

mar. A Armao de So Joaquim de Garopaba foi fundada em

1795 a 1851.

A obra Histria de Garopaba, do Professor Manoel

Valentim (2007), revela que a fundao da vila de pescadores,

atual Garopaba, foi resultado da organizao de Joaquim

Pedro Quintela e Joo Ferreira Sola. Seu nome, So Joaquim,

pode ter sido dado em homenagem a um de seus

organizadores, Joaquim Pedro Quintela. (VALENTIM, 2007,

46

p. 20). Ainda segundo o autor, posteriormente, em 1830, em

funo do crescimento populacional, Garopaba foi elevada a

Freguesia. Em 1890, com trabalho de mobilizao da

Freguesia, Garopaba foi elevada a Vila e, no mesmo ano,

foram nomeados os membros do Conselho da Intendncia.

Seguindo as informaes organizadas pelo Professor

Manoel Valentim (2007), sabe-se que a instalao do

municpio ocorreu no dia 07 de junho de 1890, porm, alguns

anos depois, em 1923, perdeu tal condio, passando a integrar

o municpio de Imbituba, pertencendo Comarca de Laguna.

Em 1930, Garopaba passou a Distrito de Palhoa, voltando

condio de municpio somente em 1961. desta poca o

estabelecimento de suas atuais fronteiras ou limites territoriais:

ao Norte e ao Oeste, Garopaba limita-se com o municpio de

Paulo Lopes, ao Sul com o municpio de Imbituba e ao Leste

com o Oceano Atlntico. (VALENTIM, 2007, p. 09). Figura

04.

47

Figura 04: Mapa dos limites territoriais de Garopaba - SC.

Fonte: Secretaria de Educao.

Edio: Da prpria autora.

Pode-se inferir que no perodo em que Garopaba

deixou de ser municpio, ou seja, no intervalo entre as dcadas

de 1920 e 1960, no devem ter acontecido muitos

investimentos em infraestrutura. recorrente ouvir que o lugar

era desprezado, abandonado. Segundo o Senhor Maurcio dos

Passos, Garopaba era um lugar abandonado, pra chegar a

Garopaba tinha que chegar pelo mar, pra ir pra Florianpolis

tinha que ir de lancha com o vento sul e com nordeste vinha

para c 13

. A figura 05 ilustra a formao do povoado de

Garopaba: os ranchos de pesca e casas de moradias: 13

PASSOS Maurcio dos. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

Albuquerque. Garopaba, 09 de julho de 2013. Entrevista.

48

Figura 05: Regio da Praia de Garopaba no ano de 1925.

Fonte: Acervo de Bertoldo lvaro dos Santos Filho.

Ano: 1925.

Local: Garopaba - SC.

Aps muitos anos de luta e negociaes dos polticos

locais, a vila de pescadores foi finalmente emancipada.

Renasce assim, o municpio de Garopaba. A partir da

emancipao, a cidade comea a seguir seu caminho, muitas

obras foram realizadas, estradas, praas, ruas, casas de

alvenaria e sobrados foram construdos. Conhecer a totalidade

dessa histria no tarefa fcil, pois, um processo muito

amplo para ser estudado num curto espao de tempo. Sendo

assim, deixamos muitos aspectos relevantes para serem

estudados num prximo momento, por ora tomaremos como

fio condutor as narrativas oriundas das memrias de diferentes

moradores.

De pequeno reduto de pescadores, Garopaba passa a ser

uma cidade turstica marcada pela modernizao e

urbanizao, episdios que mudaram radicalmente a vida e a

cultura dos habitantes locais. Na busca de compreender o

encontro entre moradores locais e turistas, entrevistamos o

Senhor Manfredo Hbner (85 anos), que se considera um dos

49

primeiros turistas a chegar a Garopaba. Quando cheguei aqui

em 1967, encontrei Garopaba com poucas casas, as pessoas

viviam despreocupadas 14

. Na figura 06 podemos conferir a

Garopaba vista por Manfredo Hbner.

Figura 06: Garopaba - SC, no final da dcada de 1960. Fonte: Manfredo Hbner.

Ano: 1960.

Local: Garopaba - SC.

Pioneiro do turismo na Praia de Garopaba, como se

autodenomina: foi eu o primeiro turista a chegar a Garopaba e

que mostrou Garopaba para os outros gachos. Garopaba era

desconhecida por todos l fora 15

, Manfredo Hbner, ao

deparar-se com uma realidade completamente diferente de que

estava acostumado em Porto Alegre, infere que as pessoas

viviam sem preocupaes. Ser que esta viso reflete o tempo

vivido pelos garopabenses? Quem enfrenta as adversidades do

14

HBNER, Manfredo. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

Albuquerque. Garopaba, 19 de junho de 2013. Entrevista.

50

mar no tem com o que se preocupar? As preocupaes de

quem vivem em um grande centro e de quem vive numa vila

de pescadores, certamente, so diferenciadas; mas isso no

significa que os segundos vivam em um paraso e tenham

uma vida contemplativa.

Porm, o Senhor Jair Joo Ribeiro (75 anos), pescador

nativo e Presidente da Colnia de Pescadores de Garopaba Z

12, afirma que quando o Senhor Manfredo Hbner chegou

cidade, muitos hippies j haviam passado por aqui, retirando

deste o ttulo de precursor do turismo.

O primeiro turista foi o Hernande, na revoluo

do Brizola16

, ele chegou aqui numa lambreta,

ele e a Adeli, a mulher dele, ele colocou uma

barraca numa barranca, l na Vigia. L deu um

temporal de chuva, muito grande, a meu pai

falava para ns: vocs vo l ver aquele homem

e aquela mulher, porque eles j devem ter

morrido l. Chegamos l e eles estavam todos

encharcados, no tinham mais roupa, no

tinham mais nada, ns trouxemos eles e

botamos numa casinha. Eles no tinham

nenhum envolvimento com a Revoluo,

vieram do Rio Grande e bateram aqui em

Garopaba, hoje ele ainda vivo, ele mora em

So Paulo, eles vieram muito antes do Seu

Manfredo. A o Hernande foi embora, mas

antes trouxe o Dino, a o Dino ficou na minha

15

Idem. 16

No Rio Grande do Sul, o ento governador Leonel Brizola, cunhado de

Jango, iniciou o movimento conhecido como Campanha da Legalidade. A

campanha apoiava a subida de Jango Presidncia sem qualquer limitao

ou alterao jurdica no que competia governabilidade do cargo.

(BATISTA, Lisbeth. Brizola e a campanha pela legalidade. Disponvel em:

. Acesso em: 20 jul. 2013.

51

casa l encima [Morro da Vigia], alis, numa

barraquinha que eu tinha17

.

De acordo com a historiografia, no ano de 1961

aconteceu, de fato, um movimento denominado Campanha da

Legalidade, sob o comando do governador do Rio Grande do

Sul, Leonel Brizola. Tal movimento lutava pela posse de Joo

Goulart o Jango, cunhado de Brizola, vice-presidente de

Jnio Quadros, que renunciou Presidncia da Repblica.

De acordo com os relatos obtidos, os primeiros turistas

que chegaram a Garopaba ainda nos anos de 1960 era

constituda, majoritariamente, por hippies gachos, um povo

que provocou grande estranhamento dentre os nativos. Em um

tempo na qual as atividades junto ao mar se limitavam a

pescar, pegar siri pintado, tirar mariscos das pedras do costo

ou ajudar a puxar um lano de peixes, a presena de pessoas

munidas de mochilas, que pernoitavam em barracas, pitavam

um cigarro de cheiro pouco convencional (a maconha era

novidade!), tomavam banho de mar e as mulheres apareciam

vestidas somente de mai ou biquni, deixou os moradores

nativos intrigados e curiosos. O senhor Jair revelou detalhes

destes acontecimentos:

Antigamente elas [as mulheres] usavam uma

roupa mais tapadinha, eram uns

macacezinhos, hoje em dia que elas andam

quase peladas. As mulheres daqui no usavam,

s as que vieram de fora. Se as (mulheres)

daqui usassem iam ver s o que aconteceria

com elas. Vou te contar uma parte. Quando a

mulher do Dino passava de mai, que foi o

primeiro gacho l de cima, os pescadores

ficavam s assim (olhando) as pernas dela

17

RIBEIRO, Joo Jair. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

Albuquerque. Garopaba, 10 de julho de 2013. Entrevista.

52

como eram, pois nunca tinham visto pernas de

ningum, s os que eram casados, e olhe l. As

mulheres daqui s iam na praia levar um

cafezinho para o marido, iam pegar siri pintado,

marisco. Nossas mulheres no tomavam banho

de mar e nem de lagoa, nem de noite e nem de

dia. A moda de tomar banho de mar e pegar sol

veio com os gachos, minha filha18

.

Sobre a chegada dos hippies em Garopaba e as

estranhezas por eles provocadas, temos ainda o depoimento do

falecido Adlio Incio de Abreu, que foi vereador por dois

mandatos, de 1963 a 1973, e prefeito de Garopaba entre 1977 a

1983:

Os hippies faziam de tudo por aqui. Eles

chegavam e acampavam em qualquer lugar, em

frente sua casa, faziam o que queriam. Criei a

lei de camping e foi aquela briga. Os jornais da

poca noticiavam que o prefeito de Garopaba

era contra o turismo; o Correio do Povo e a

Zero Hora, que era a que mais castigava. Na

Avenida dos Pescadores era um acampamento

s. Amanhecia a praia entulhada de coisas.

Mas eu s queria pr ordem, fazer um turismo

ordenado19

.

Apesar de todas as transformaes trazidas pelo

turismo, os garopabenses procuram ainda manter sua cultura,

como festa do divino esprito santo, quermesse, tapete de

Corpus Christi, festas juninas entre outras festividades embora

estas j tenham sofrido atualizaes. Os visitantes desfrutam

de suas belezas naturais, da simplicidade de sua gente bem

18

Idem. 19

ABREU, Adlio Incio de. Entrevista cedida a Carmem Luza Sant

Anna Pires. Garopaba, 11 de agosto de 2011. Entrevista.

53

como dos requintes proporcionadas por uma estrutura de alto

padro (os que podem pagar!). Vilson Francisco de Farias

(2000, p. 256) destaca que As belezas naturais paisagsticas,

representadas pelas praias, lagoas, dunas e pontas tornam

Garopaba um dos balnerios mais procurados do sul do

Brasil.

Como se percebe nas falas supracitadas, entre as

dcadas de 1960 e 1970, os hippies invadiram Garopaba,

porm, ao que parece, era um tipo de turismo que no

agradava muito, j que no trazia recursos financeiros, pois os

hippies formavam uma tribo alternativa, preocupada em

viver os slogans da poca: paz e amor em harmonia com a

natureza. Mas, Garopaba foi descoberta por outro tipo de

visitantes, dentre eles o j mencionado Manfredo Hbner e

seus amigos jornalistas de Porto Alegre.

Eu vim para Garopaba em janeiro de 1967,

fotografei Garopaba e levei as fotos para meu

amigo jornalista, Luiz Ribeiro Pires, que

trabalhava no jornal Correio do Povo e na

Folha da Tarde, no Rio Grande do Sul. Em

seguida os gachos comearam a vir. Eles

compravam o jornal e perguntavam: Manfredo,

onde fica isso? Era uma atrao ler aqueles

artigos escritos sobre Garopaba, batia a

curiosidade para conhecer. Eles no foram para

Imbituba ou para Laguna, eles vieram para

Garopaba, porque, tinham uma meta, conhecer

o lugar daquelas fotos. Foram publicadas

muitas fotos. Por isso eu falo: foi eu um dos

elos de ligao com as mudanas de Garopaba.

Eu levava as fotos e meu grande amigo, que

tinha uma habilidade incrvel, escrevia e logo

publicava. Circulavam muitos jornais, alguns

foram at para So Paulo, e outros lugares. Por

isso os primeiros a conhecerem Garopaba

foram os gachos, isso no quer dizer que

Garopaba uma praia gacha ou dos

54

gachos. Depois dos turistas gachos, paulistas

foram vindo para todas as praias do litoral 20

.

Quanto a esta descoberta de Garopaba pelos leitores

dos jornais de maior circulao na grande Porto Alegre,

importante mencionar as reflexes tecidas por Damzio

(2011):

Se os primeiros veranistas eram

despretensiosos, movidos pelo esprito

aventureiro inspirado no modo de vida hippie

em moda naqueles primeiros anos da dcada de

1970, os que vieram depois j tinham olhar

empreendedor. Enquanto as terras eram dos

nativos, todos podiam passar, afinal eram

caminhos antigos, respeitados pela organizao

social local. S que essa lgica perdeu espao

para as at ento desconhecidas cercas de

arame farpado. As extremas de terras eram

feitas de gravat, ou por um valo, era assim,

segundo as palavras do Senhor Francisco Berto

Teixeira. (DAMAZIO, 2011, p. 57).

Nesse sentido, bastante pertinente a fala do pescador

Maurcio dos Passos, quando se refere venda das terras

localizadas em frente ao mar, na atual Avenida dos

Pescadores, no Centro de Garopaba. ntido seu

ressentimento quando diz que as pessoas foram iludidas ao

venderem suas propriedades:

No, eles no venderam, foram iludidos. As

pessoas foram vindo para Garopaba e quando

comearam a chegar, teve muita gente se

iludindo e o que mais iludiu essas pessoas foi a

20

HBNER, Manfredo. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

Albuquerque. Garopaba, 19 de junho de 2013. Entrevista.

55

poupana, muita gente negra vendeu suas casas

e foi embora, se iludiram. As terras da praia

eram das pessoas negras e brancas, tinha muita

gente preta. As famlias negras que viviam

aqui eram do Pntano do Sul, a famlia do

Altamiro, que at lojinha de fazenda teve. As

terras na praia eram terras grandes, mas no

tinha valor. Por no ter valor muita gente de

Garopaba se perdeu. Eu comprei uma casa na

praia, onde o camping do Jovino, a casa ficou

dentro do camping, era uma casinha de

madeira velha, ficou dois anos dentro do

camping. Eu escutava eles dizerem assim:

Maurcio eles no vo mais dar a sua casa, eu

dizia: eles do a casa sim. Ai o irmo da Dona

Olria veio e disse: Maurcio quer vender sua

morada, sua casinha que est l dentro do

camping e eu disse que queria 200 milhes, ele

disse: Maurcio muito caro, eu dou 60

milhes pela sua morada. Eu disse que no

tinha comprado uma casa dentro do

camping, vocs que fizeram um camping e

deixaram a minha casa dentro e pra vocs

tirarem minha casa de l vocs tem que me

botar num terreno, eu quero uma casinha e

um terreno para morar, aqui no centro de

Garopaba. E l vocs no mexem numa

telha da casa que minha, que est dentro

do camping. [exaltado] A o Jovino me

chamou e disse que fazia uma casa aqui no

centro de Garopaba, atrs do posto de sade,

foi uma casa de madeira, uma das primeiras

casas que tinha banheiro foi a minha. Ai eu

aceitei, pois para a poca eu sa ganhando no

negcio21

.

A situao vivenciada em Garopaba comeou a ser

desenhada pelos interesses do turismo e a lgica capitalista

21

PASSOS, Maurcio dos. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

Albuquerque. Garopaba, 09 de julho de 2013. Entrevista.

56

tornou-se a propulsora de todas as aes. Brancos, negros e

pobres foram vtimas da astcia dos empreendedores

visionrios que ora aportavam na cidade. Como bem lembra

Manfredo Hbner:

Muitos chegaram e trataram logo de comprar

uma rea de terra para construir uma casa. As

pessoas foram rapidamente desalojadas, por

venderem suas terras muito barato, como eles

nunca tinham dinheiro nas mos, a chegavam

esses gachos espertos e compravam o cho

das casas deles, levando-os a morar em outros

lugares do municpio 22

.

Assim, aconteceu com grande parte das pessoas que

moravam em frente praia ou prximo a ela, venderam ou

trocaram suas terras por pouco dinheiro ou carro de pouco

valor. Porm, esse tipo de episdio no aconteceu somente em

Garopaba, mas em quase todos os municpios do litoral

catarinense, como por exemplo, na Praia do Rosa, no vizinho

municpio de Imbituba. Segundo Damzio (2011):

Quando os primeiros ganchos ou

veronistas, como foram chamados,

chegaram, um mundo novo foi apresentado aos

nativos: mquinas fotogrficas, rdio e

televiso a bateria, fogareiro a gs, foram

algumas das muitas novidades que viriam.

Apesar do estranhamento, os nativos

simpatizaram com os veranistas, pois esses,

mesmo sendo gente rica, da cidade, se

alojavam em barracas ou nos engenhos e no

tinham luxo com a comida. (p. 84).

22

HBNER, Manfredo. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

Albuquerque. Garopaba, 19 de junho de 2013. Entrevista.

57

Aos poucos, os nativos se transformaram em mo de

obra barata e os negcios dos estrangeiro