mary stewart - a torre de marfim

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Mary StewartA Torre de Marfim "Aluga-se torre de marfim", dizia o anncio. Umamoradia numa pequena ilha escocesa, com prados cintilando deflores e bandos de pequenas aves, chamadas painhos, enchendo ocu ao crepsculo. Para Rose Fenemore, que procurava um lugarcalmo para escrever, era o ideal. Foi ento que, emergindo deum temporal terrvel, lhe apareceram porta dois atraentesdesconhecidos, cada um com a sua histria. Mas se uma eraverdadeira, a outra devia ser falsa. Qual seria a verdadeira equal seria a falsa? E o que que levou aqueles homens at dita torre de marfim?UmDEVO comear por uma coincidncia, que no me atreveria anarrar se esta obra fosse de fico. Acontecem diariamentecoincidncias na "vida real" que seriam ridicularizadas sefossem relatadas numa mera histria e por isso os escritorestentam evit-las. Mas elas acontecem. Acontecem diariamente. Enaquele dia aconteceram, ou melhor, uma coincidncia aconteceuduas vezes. Eu estava a trabalhar no meu quarto quando um bater porta anunciou a entrada de quatro estudantes do segundo ano.Habitualmente, recebo-os bem, pois eles at so o meutrabalho. Como professora de Ingls no Haworth College, emCambridge, lido com eles todos os dias. Mas naquela tardesoalheira de uma tera-feira de Maio, eu no receberia nenhumintruso, nem que ele fosse o contnuo da faculdade com umacarta registada anunciando que eu ganhara o primeiro prmio dalotaria. Eu estava a escrever um poema. Dizem que depois dos trinta ou do casamento, dependendodo que acontecer primeiro, j no se consegue escrever poesia. verdade que depois dos trinta anos alguns poetas parecem serincapazes de escrever algo que valha a pena ler; h excepes,mas apenas servem para confirmar a regra. Na realidade, achoque a questo do casamento s se pe relativamente smulheres, o que revela alguma coisa sobre aquilo que se esperaque o casamento lhes faa. Mas naquela tarde nenhuma dessassituaes se aplicava a mim. Tinha vinte e sete anos, erasolteira, o meu corao estava inteiro, at ver, eencontrava-me completamente imersa no meu trabalho.Devia receber os estudantes, que queriam falar comigo sobre apoesia do incio do sculo XIX de George Darley, que um colegameu despropositadamente incluira numa srie de conferncias, ena qual alguns dos meus alunos mais perspicazes noconseguiram ver qualquer mrito. Mas fora assolada por aquiloque, naquela altura do perodo lectivo, geralmente, era umarara inspirao e estava a escrever um poema da minha autoria.Seria mais importante do que os de George Darley? De qualquermaneira, melhor era, o que tambm no seria difcil. Mandei-os sentar, ouvi-os, depois falei e, finalmente,vi-me livre deles e regressei ao meu poema. Tinhadesaparecido. A primeira estrofe estava ali, em cima da minhasecretria, mas a ideia fugira. Reli o que tinha escrito,debati-me com a desvanecida viso durante alguns minutosextenuantes, depois desisti, praguejei, amarrotei a folhatoda, arremessei-a para a lareira vazia e disse em voz alta: - O que eu realmente preciso de um retiro numa torre demarfim moda antiga. Empurrei a minha cadeira para trs, atravessei a sala at janela aberta e olhei l para fora. As tlias estavammagnficas com as suas folhas verdes novas, o canto das avesproliferava por todo o lado e da trepadeira ao lado da janelavinha o odor a mel e o murmrio de inmeras abelhas. Tennyson.Ali estava, pensei, uma das verdadeiras e honrosas excepes regra: nunca falhando, nunca enfraquecendo, mesmo na velhice,enquanto eu, aos vinte e sete anos, nem sequer era capaz deacabar um poema que, pouco tempo antes, parecia irinevitavelmente a caminho do acorde final. Bem, ento eu no era Tennyson e, provavelmente, nemsequer era um George Darley. Ri-me de mim prpria, senti-memelhor e instalei-me no assento junto janela para apreciar oque restava da tarde. Ojornal The Times, semilido, jazia nolugar ao meu lado. Ao pegar nele para o atirar para o lado,umas linhas midas chamaram-me a ateno: Aluga-se torre de marfim. Por perodo longo oucurto. Moradia isolada numa pequena ilha das Hbridas ao largoda costa de Mul. Ideal para retiro de escritor ou artista procura de sossego. Modernas condies de habitabilidade. uma posta-restante. Um retiro com modernas condies de habitabilidade.Comentei em voz alta: - No acredito.- Em que que no acredita, Dra. Fenemore? Uma das minhas alunas regressara e estava, hesitante,junto porta de entrada. Era Megan Lloyd, a filha de umtrabalhador agrcola gals de Dyfed, que conseguira o seulugar na faculdade atravs de uma bolsa que obtivera comgrande mrito. Baixa, um tanto rechonchuda, com cabelo pretoencaracolado, olhos escuros e sardas, parecia que estariamuito vontade no meio de ces e cavalos, e talvez estivesse,mas tambm era muito inteligente, extraordinariamente criativae de longe a minha melhor aluna. Um dia viria a ser uma boaescritora. Lembrei-me de que lhe prometera receb-la por causade uns poemas que ela tinha escrito e que, nervosamente, mepedira para ler. Ainda parecia estar nervosa. - Oh, Megan, entre. Desculpe, estava a pensar com os meusbotes. Sim, tenho aqui o seu dossier e li-os. Dirigi-me secretria, peguei no dossier e fiz um gesto,indicando-lhe a cadeira. Os olhos dela estavam com o dobro dotamanho normal e apercebi-me da tenso em cada um dos seusmsculos. Eu sabia muito bem como ela se sentia: sempre que onosso trabalho lido, morremos vrias vezes por cada palavra.Por isso, fui direita ao assunto. - Gostei deles. De alguns at bastante, de outros nemtanto... - Continuei a falar sobre os poemas, enquanto Meganlentamente se descontraia e comeava a ficar com ar feliz,tornando-se at mesmo, no fim, alegremente argumentativa. Por fim, fechei o dossier: - Bom, aqui tem. Se os quiser publicar, v em frente eboa sorte. Acontea o que acontecer, deve continuar aescrever. Megan engoliu em seco, em seguida inclinou a cabeaafirmativamente sem falar. Entreguei-lhe o dossier. - No vou dizer-lhe mais nada. Escrevi algumas notasrazoavelmente detalhadas sobre alguns deles. Penso que seriamelhor que as visse com tempo. claro que, se houver algumacoisa que no perceba ou sobre a qual queira conversar,sinta-se vontade para o fazer. Est bem? - Sim. Obrigada. Era s que... uma pessoa no se conhece - Sim, eu sei. Megan sorriu subitamente, com o rosto iluminado dointerior. - Claro que sabe. E, em retribuio, posso dar-lhe umconselho? - Que conselho? - perguntei, surpreendida. Megan olhou de relance para a lareira, para onde cara apgina amarrotada e que parcialmente se desdobrara. Era bvio,mesmo do stio onde ela se encontrava sentada, que a folhacontinha versos de um poema inacabado. Com uma razovelimitao da minha voz, mas com um sorriso que retiravaqualquer nota de impertinncia, Megan repetiu: - Acontea o que acontecer, deve continuar a escrever. -E depois, j sria, disse: - Tenho a certeza de que nodeveria deit-lo fora, Dra. Fenemore. Adorei o seu ltimopublicado no Jornal. Aps uma pausa, eu disse bastante desajeitadamente: - Bom, obrigada. Mas durante o perodo de aulas... No sepode escolher a altura. Subitamente embaraada, Megan reuniu as suas coisas elevantou-se. - Desculpe. No era nada da minha conta, mas no pudedeixar de ver. Mais para a pr de novo vontade do que por qualqueroutro motivo, peguei no Times e mostrei-lhe: - Estava a tentar, sabe. Uma ilha das Hbridas... pareceum local onde se poder trabalhar em paz e, na realidade, atlhe chamaram torre de marfim, ou seja um retiro para criaoartstica. ali. Onde fiz um crculo. Megan levantou os olhos, que brilhavam. - Uma ilha ao largo de Mul? Mas que extraordinrio! AnnTracy e eu vamos para Mul este Vero passar duas semanas.Nunca l estive, mas a famlia de Ann costumava passar friasl, e ela diz que pode ser fabuloso. Que coincidncia! comose fosse o destino, na realidade. Vai responder ao anncio,no vai? - Parece que o melhor que eu tenho a fazer - disse. -Vou responder ainda hoje noite. MAS o DESTINO no se resolveu a ficar por ali. Nessanoite, o meu irmo Crispin telefonou-me. Crispin mdico e scio de uma clnica no Hampshire. seis anos mais velho do que eu, casado e tem dois filhos numcolgio interno. Ele teria preferido que eles ficassem emcasa, mas a sua mulher, Ruth, impusera-se nessa matria, comoalis acontecia em muitas outras. No que Crispin fosse umhomem fraco, mas era muito ocupado e tinha de se contentar emdeixar a gerncia da vida domstica, na sua maior parte, nasmos da mulher, de resto altamente competente. Eramtoleravelmente felizes, felicidade essa conseguida em partepela aceitao do direito de divergirem.Uma das coisas em que divergiam era nas frias. Ruth adoravacidades, lojas e teatros. Crispin, sempre que tinha frias dasua exigente rotina, ansiava por sossego e espaos abertos.Ele, tal como eu, adorava a Esccia e ia l sempre que tinhaoportunidade. Quando l estava, passeava, pescava e tiravafotografias. A sua verdadeira paixo era fotografar aves, e aolongo dos anos reunira uma coleco notvel de diapositivos.Quando as nossas frias coincidiam, frequentementepassvamo-las juntos, satisfeitos nas nossas respectivassolides. Por isso, quando ele telefonou nessa noite para me dizerque ia tirar quinze dias de frias l para o fim de Junho e asugerir-me uma viagem at ao Norte, senti realmente como se osdestinos tivessem dado as mos. - Estava a planear exactamente a mesma coisa. -Contei-lhe do anncio do jornal e ele ficou entusiasmado.Deixei-o falar sobre as raras e maravilhosas aves queindubitavelmente estariam sua espera para serem fotografadase em seguida coloquei a habitual questo:- E a Ruth?- No vai. Desta vez, no. - A habitual resposta trivial. -Ela no gosta das Terras Altas e vai estar muito ocupada nessaaltura. Mais tarde, ir fazer umas frias no estrangeiro,depois de John e Julie voltarem para o colgio. Mas seconseguisses essa casa, era ptimo. A maior parte das avesnovas ainda estaro no ninho. Olha, Rose, porque no? Pareceexcelente. Escreve para l e pede informaes detalhadas, edepois eu volto a entrar em contacto contigo. E assim foi tratado. Escrevi nessa noite para o nmero daposta-restante e obtive a minha torre de marfim. A ILHA DE MOILA a primeira paragem depois de Tobermorvno ferrv-boat que navega pela costa norte de Mul. Moila no uma ilha grande, talvez com uns quinze quilmetros por oito, etem uns penhascos fantsticos a noroeste. Desde os pradosngremes aparados pelas ovelhas at ao cimo destes penhascos,a terra inclina-se suavemente at a um vale estreito onde onico rio digno desse nome existente na ilha corre em direcoao mar, partindo de um lago), que se encontra aninhado numabacia pouco profunda entre montes baixos. A costa da ilha essencialmente rochosa, mas, excepodos rochedos a norte, os rochedos costeiros so baixos,estendendo-se aqui e ali pelo mar adentro, formando pequenaspraias curvas, a maioria das quais so de seixos, mas asviradas a oeste so de areia, tendo como fundo o machair,aquele maravilhoso prado selvagem que em Maio e Junho estcheio de flores e de aves a construrem os ninhos. Eu vi a ilha de Moila pela primeira vez num dia bonito naltima semana de Junho. As minhas frias tinham comeado unsdias antes das de Crispin, por isso tnhamos combinado viajarseparados e encontrar-nos em Moila. O ferry-boat fazia atravessia todas as segundas-feiras, quartas e sbados de Oban,no continente, at Tobermory e depois seguia para oeste, paraMoila. Eu descobrira que havia pouca utilidade em ter um carroem Moila, por isso decidimos viajar de comboio. Foi uma viagem agradvel. Apanhei o comboio para FortWilliam, onde entrei no pequeno comboio regional que seguepara Oban, na costa ocidental. O barco para as ilhas deveriapartir s 6 horas da manh seguinte, por isso hospedei-me noColumba, um hotel que dava para o mar, e depois passei o dia aexplorar Oban. s 5 e 30 da manh seguinte, entrei a bordo dofer-boat e encontrava-me na etapa final da minha viagem. O mar estava calmo enquanto navegvamos tranquilamentepor entre as ilhotas e rochas com os cimos em forma decastelos, com as aves marinhas planando ao sabor do vento nonosso encalo e por todo o lado, mesmo sobrepondo-se aosodores do cheiro a sal e do vento, os aromas do Vero.Idlico. O cenrio perfeito para uma torre de marfim. Ou, pelo menos, assim o esperava eu. Nenhuma das pessoascom quem falara, tanto no comboio como no barco, j tinha idoa Moila, que, segundo me contaram, no tinha mais de trintahabitantes. Quando atracmos e o comissrio de bordo apontoupara o mar, para um grupo de pequenas rochas (ou assimparecia) em fila no horizonte, como uma pata com os seuspatinhos atrs, senti um assomo de cobardia e dei comigo apensar quais seriam as "modernas condies de habitabilidade". - Alm, aquela ilha grande, v? Moila - disse ocomissrio de bordo. - E as outras? - Ah, tm todas nome, mas no lhos sei dizer. No h lgente, s aves. - Pode ir-se at l? - Oh, sim, com um pouco de sorte num dia bonito. Vo paral grupos com cmaras para filmar as aves. Nesta altura, o comissrio de bordo teve de me deixarpara ir receber os abastecimentos que estavam a ser trazidospara bordo, e uns vinte minutos depois eu podia ver o stiocom os meus prprios olhos.O FERRY no era grande, mas o porto de Moila tornava-seminsculo ao p dele, por isso teve de manter-se distnciado cais e fomos para terra de bote: A povoao, tanto quantome era dado ver, tinha umas oito ou nove casas alinhadas juntoa uma estrada estreita que circundava a baa. O edifcio maisperto do cais servia de posto dos Correios e de loja. Umcartaz artesanal informava-me que o dono era Mr. McDougal,que tambm alugava quartos com o pequeno-almoo includo. Aalguns metros de distncia, encontrava-se um edifcio caiado -a escola da povoao, vim posteriormente a saber. Um rioestreito deslizava suavemente, passando pelos Correios, e eraatravessado por uma ponte estreita e abaulada, do tipopitoresco, que seguramente danificaria qualquer carro que porl passasse. Mas, tal como me tinham avisado, no haviacarros. Um Land-Rover todo amolgado estava parado junto aosCorreios e, encostadas ao muro da escola, viam-se umas quantasbicicletas, mas no havia mais nenhum meio de transporte. Etanto quanto a minha vista conseguia alcanar, a estrada nemsequer continuava para l da povoao. A minha moradia, segundo me haviam informado, ficava nooutro lado da ilha. Bom, a culpada era eu. Deixei as minhas malas no cais edirigi-me aos Correios. Dado que o barco, nas suas visitas ilha, trs vezes porsemana, levava todos os mantimentos e correspondncia. apequena estao dos Correios estava apinhada. e a encarregada,atarefada, separando correspondncia e jornais enquantotrocava notcias com o capito do barco em galico, nem sequertinha tempo de olhar para mim. A lojinha estava organizadacomo mini-supermercado. por isso peguei num cesto e ocupei-mea juntar mantimentos para os prximos dias. O apito da sirenedo barco fez-me voltar realidade, deparando com a loja jvazia e a encarregada contornando apressadamente o balco parase ocupar da forasteira. - a jovem que vai para Camus na Dobhrain? A meninaFenemore, no verdade? Era uma mulher um tanto magra, de cerca de cinquentaanos, com o cabelo a ficar grisalho e uns olhos muito azuis.Vestia uma bata s flores e tinha a bonita pele das gentes dasilhas, quase sem rugas, apenas as do sorriso junto aos olhos.A sua expresso estava repleta de curiosidade benevolente, e asuave pronncia das ilhas, acentuada pela cadncia galica,aqueceu-me to palpavelmente como se o sol tivesse entrado napequena loja sombria e atravancada.- Sim, sou Rose Fenemore. E a senhora Mrs. McDougall? Comoest? -Demos um aperto de mo. - verdade, venho para a casado anncio da Agncia Harris. a essa que se referiu? -Lamento, mas no entendo galico. - E como haveria de entender? Sim, essa. O nome emingls Baa das Lontras. o nico lugar em Moila que alugado. - Sorriu, ocupando-se das minhas compras enquantofalava. - Se o tempo continuar bom, vai ter a oportunidade defazer agradveis passeios. E, tanto quanto sei, a casa estbastante confortvel. Mas muito isolada. Veio sozinha, veio? - At quarta-feira. Nessa altura, chega o meu irmo. Oferry na quarta-feira chega mesma hora do de hoje? - Sim, chega. No ps a nenhum acendedor. muito maisfcil manter o lume aceso com um daqueles. Est acostumada como lume de turfa? - No, mas espero conseguir aprender. Mrs. McDougall,como que se vai daqui at casa? Disseram-me que eram cercade trs quilmetros. Posso facilmente fazer o percurso a ppara fazer as compras ou coisas do gnero, mas trouxe umasmalas e com elas no vou ser capaz de o fazer de certeza. - No se preocupe com isso. O Archie McLaren vai llev-la no Land-Rover. Ento, vai querer uns sacos de carvopara a ajudar a fazer o lume? Temos tido bom tempo, mas melhor que armazene agora para o que a prxima semana nospossa reservar. - Sim, obrigada. Dois sacos de carvo, ento, se fazfavor, e os acendedores, e... Ah, que acha de eu levar leite epo? - uma longa caminhada desde a Baa das Lontras com mautempo. melhor levar dois pacotes de leite. O po vem nobarco. Quer que lhe guarde um po na quarta-feira e outro nofim-de-semana? - Acho que sim. Obrigada. Quanto tudo, Mrs. McDougall? Ela disse-me quanto era e eu paguei-lhe. Um rapaz moreno,baixo, robusto, com uma camisola da Marinha, calas de ganga egalochas, entrou para vir buscar os sacos de carvo,colocando-os no Land-Rover ao lado das minhas malas. Peguei nosaco de compras, no qual a encarregada dos Correios enfiara asminhas mercearias. - No deve haver telefone na casa para onde vou, poisno? - No h, no. S h um aqui e outro na Casa. E o da Casaest cortado desde que a velha senhora morreu. - A Casa? - Por qualquer razo, a forma como o dissedava-lhe um aspecto de letra maiscula.- A Casa Grande. No fica longe de si, a uns oitocentos metrospela costa. Chamam-lhe Taigh na Tuir, o que significa Casa daTorre. H mesmo ali ao p uma pequena ilha ao largo com asrunas de uma broch, uma torre de pedra pr-histrica. Julgoque foi essa torre que deu origem ao nome da Casa. A Casa foiconstruda como pavilho de caa nos velhos tempos, e depoisos Hamiltons compraram-na e passaram a viver l. A velha Mrs.Hamilton, a ltima a desaparecer, morreu em Fevereiro passado.Por isso, agora est vazia e provvel que assim continue. -Sorriu. - Nem toda a gente quer o tipo de paz e sossego quetemos em Moila. - Posso imaginar. Bem, de qualquer maneira, estou todapronta para apreciar. E, na realidade, eu no quero telefone,a no ser para me certificar da vinda do meu irmo. Por isso,venho at aqui amanh para lhe telefonar, se no se importa. Aque horas fecha? - s cinco e meia, mas se quer telefonar, bata ali emcasa. No, no incmodo nenhum. o que toda a gente faz. -Pegou no segundo saco de compras e acompanhou-me at porta.- Ficarei sua espera amanh. Adeus. Agora, toma conta dasenhora, Archie. Archie deu a entender que sim. Entrei no carro,sentando-me a seu lado, e partimos. O Land-Rover j conheceramelhores dias, e quando samos da estrada da povoao entrandono carreiro que serpenteava desde a povoao at charneca,tornou-se difcil conversar. O caminho, acidentado e juncado de pedras, subia, aoprincpio suavemente, atravs da turfa, roda pelas ovelhas,cercada de juncos e cardos e salpicada por extenses de fetos.Quando deixava de se ver a povoao, o caminho tornava-se cadavez mais ngreme e tortuoso. Em todo o redor havia urze, aindaescura e por florir, excepto em pequenos pedaos de terra ondeuma outra variedade de urze, a campainha-do-monte, salpicavacom a sua cor prpura-forte as rochas cinzentas. O tojo era deum ouro resplandecente, e por toda a parte, na erva,espalhavam-se as minsculas flores brancas e amarelas datormentila e da granza-brava. Ao longe, para a direita,vislumbrei o brilho fugaz e plano do loch. No se ouvia nada acima do barulho do motor, mas vi umacotovia saltando da urze em direco ao cu e depois, quando oLand-Rover atingiu o topo e comeou a descer para o valeestreito, um btio elevou-se no ar em crculos lentos at seperder de vista no cume da charneca. A seguir, descemossuavemente a encosta ao lado de um ribeiro emdireco ao brilho distante do mar. Ali, abrigadas dosvendavais do Atlntico, rvores altas apinhavam-se bemjuntinhas. Sobretudo carvalhos, mas tambm havia faias efreixos, e ainda btulas e aveleiras. O caminho aplanava-se, o vale alargava-se e l em baixoficava a baa. A Baa das Lontras era pequena, uma meia-lua deseixos secundada por uma praia, batida pelas tempestades, comrochas lisas. Curvas pretas e grossas de algas marinhas secasmarcavam a linha at onde chegavam as mars. nossa esquerda,um penhasco escarpado tirava-nos a vista, e, direita, umpromontrio baixo projectava-se no mar. Franzindo os olhoscontra o brilho do Atlntico, vi um caminho que subia desde abaa e seguia pelo promontrio para oeste. Ento, o Land-Rover parou ao lado de um cais rudimentarfeito de calhaus empilhados e amarrados com arame paravedaes. E ali, de costas para o penhasco, que ficava umpouco acima de ns, estava a minha casa.DoisA CASA ERA maior do que eu esperava. Originalmente, foraconstruda de acordo com o padro habitual: um minsculo hallquadrado, com portas dos dois lados dando para duas divisesda frente, e uma escada ngreme que conduzia a dois quartosgeminados. Mas algum, bastante recentemente, fizera umtrabalho de reconverso. As duas divises do rs-do-chotinham sido transformadas numa grande sala, apenas com aescada a dividi-la ao meio. A zona de estar, direita, tinhauma agradvel lareira, duas poltronas, uma mesa baixa e umsof de aspecto duvidoso encostado parede da escada. A salade jantar e a cozinha, no outro lado, ostentavam os habituaisguarda-louas e aparadores e uma mesa junto janela comquatro cadeiras. Num dos aparadores havia uma chaleiraelctrica e uma torradeira. E estas eram as nicas "modernascondies de habitabilidade" que se avistavam. Uma porta na parte de trs dava para a copa, uma divisoestreita ao longo de toda a largura da casa. Debaixo de umajanela, ficava um moderno lava-loua com um termo-acumuladorelctrico montado na parede e ao lado havia um fogo a gs. Ea modernizao no avanara mais que isto. A outra ponta dacopa tinha, como sempre tivera, um tanque de lavar, velho efundo. No havia frigorfico, mas a casa devia ser fresca,mesmo no Vero. Espreitando pela janela, constatei que deviater existido um jardim entre a casa e o penhasco; agora, ummuro em runas circundava apenas um emaranhado de silvas erosas silvestres, quase escondendo um caramancho.- Eu levo-lhe as malas l para cima - disse Archie.- No, no se incomode... Bem, muito obrigada. Larguei os sacos com as compras na mesa da cozinha ecomecei a desembrulh-las. Ouvi-o a movimentar-se no andar decima, e, passado um minuto ou dois, ele desceu. - Estive s a dar uma vista de olhos. Ainda no tinhavisto os quartos l de cima depois de prontos. Mas lembro-medo trabalho que tiveram com a casa de banho. - Olhou suavolta com interesse. - Isto aqui era muito diferente quando afamlia c morava. Alastair Mackay viveu aqui, era ojardineiro da Casa. Saram de c apenas h dois anos, forampara o continente, e depois Mrs. Hamilton mandou arranjar istopara alugar. - No me tinha apercebido de que esta casa pertencera aMrs. Hamilton. Mrs. McDougall disse-me que ela tinha morridorecentemente. - verdade. Era uma boa senhora, e o marido era umentusiasta da caa e da pesca. Costumava ir para o Norte todosos anos, para a pesca do salmo, mas ela ficava aqui. Depoisde o coronel Hamilton morrer, ela nunca mais saiu daqui, nemmesmo durante o Inverno. Mas este ltimo Inverno foi demaispara ela, pobre senhora. - O que que acha que vai acontecer agora casa grande? - No sei. Acho que h um parente algures no estrangeiro.Vai ser vendida, creio eu, mas quem que ir compr-la? - Algum que aprecie a paz e o sossego, julgo eu. - Uma torre de marfim? - Uma qu?! - perguntei, estupefacta. - Uma torre de marfim. Era o que Mrs. Hamilton costumavachamar-lhe. Ela dizia que era uma forma potica de uma pessoadizer que queria ser deixada em paz. - Estou a perceber. Ser que vo tambm tentar venderesta casa ou iro continuar a alug-la? - Foi sempre s alugada no Vero, e ainda c no tinhaestado ningum este ano, a no ser no ms passado, umaspessoas da Cornualha, acho eu. Vieram no seu prprio barco efaziam todas as compras em Tobermory, por isso vimo-las muitopouco. - Acho que faz sentido ter um barco, se se estiver aquibastante tempo. Ah, quase me esquecia. Trouxe o carvo docarro? - Sim. Est l fora nas traseiras, onde se guarda aturfa. Mesmo ao lado da porta. Encontra imensos gravetos l embaixo na praia. - Muito obrigada, Archie.Paguei-lhe e ele foi-se embora. Observei o Land-Rover rangendoao longo do caminho, e pouco depois o barulho do seu motordesvanecera-se no silncio. Silncio? O marulhar das ondas na praia de seixos, ogrito das gaivotas girando no cu e, em remate final, obarulho abafado da sirene do ferry'-boat afastando-se emdireco a oeste. O ltimo elo de ligao desaparecera.Solido. Solido completa e inexpugnvel. Fechei a porta da rua suavemente e subi as escadas paraver o que aquela simptica senhora, Mrs. Hamilton,providenciara relativamente aos quartos. As CAMAS eram razoveis, os quartos, minsculos,encolhidos sob a inclinao do telhado, e encantadores:pintados de branco, com papel de parede s flores, o mnimo demobilirio e, claro, aquela magnfica vista para sudoeste. Ohabitante original deve ter partido para o Atlntico numpequeno barco em muitas noites de tempestade. Mas naquele diao mar estava maravilhoso, sedoso, salpicado do brilho de asasbrancas sob a luz do Sol, medida que as gaivotas saam dospenhascos. Aquilo servia. Servia at muito bem. Eu ia acabar dedesembrulhar as compras, preparar as coisas para o jantar;depois, iria passear at ao mar e apanhar gravetos, no fossea noite arrefecer. HAVIA, como Archie assegurara, imensos e bons gravetos napraia. Rapidamente arranjei uma braada. Depois, trepei comdificuldade pelos seixos em direco ao melhor caminho daturfa, molhada pela gua do mar, onde o ribeiro cortavacaminho para a costa. Cravinas abundavam por todo o lado. Gradualmente, fui tomando conscincia de uma sensaocrescente de desconforto. Uma sensao de ardor na cara e nasmos, umas picadas desagradveis que subitamente se tornaraminsuportveis. Mosquitos. Tinha-me esquecido dos mosquitos. A maldiodas Terras Altas. O inimigo infinitesimal. A serpente doparaso. Aconchegando a minha carga de pauzinhos debaixo de umbrao e esfregando a cara com a mo livre, desatei a andarapressadamente em direco segurana da minha casa. Afinal, a noite manteve-se amena, por isso a lareira nofoi acesa. Jantei, lavei a loua, depois observei a paisagem,alterando-se com a noite, refugiada na janela e fui cedo paraa cama. ACORDEI na manh seguinte com uma luminosidade brilhantee rosada, mas quando cheguei janela, no se via o mar. Narealidade, no se via nada. O Mundo estava coberto por umacortina de nevoeiro, um vu de um branco suave corrido entre aTerra e o Sol. Nem sequer conseguia ver para alm da foz doribeiro. Por isso, hoje no ia haver passeio, pelo menosenquanto eu no soubesse melhor o caminho. No estava desapontada. Disse-o a mim mesma, firmemente,vrias vezes. Tinha a paz e a privacidade que desejara, um dias para mim, antes da chegada de Crispin, e uma totalobrigao de olhar de novo para o poema, que fora interrompidopelas funes docentes em Cambridge. Pelo menos, hoje, no eraprovvel ser interrompida por algum. Ningum o fez. O dia foi calmo e silencioso, excepodo grito abafado das aves marinhas e do triste chilrear de umatarambola anelada nos seixos da praia. Sentei-me mesa dacozinha, fitando aquela palidez de um branco-bao minhafrente, e, lentamente, como uma nascente lmpida brotando daterra, o poema surgiu, espalhou-se e preencheu-me, imparvelcomo um dilvio. Quando surge, vale tudo no Mundo. Fala-se emdemasia e de uma forma v sobre a inspirao, mas emmomentos como este que se v exactamente o que ela : oinspirar de toda a experincia, de toda a apreenso da beleza,de todo o amor. Quando, finalmente, levantei os olhos, foi para ver ospenhascos brilhando ao sol da tarde e o mar, com a sua espumabranca, batendo calmamente contra a praia na mais suave dasmars altas. O cu estava lmpido, deixando a promessa de umfim de tarde encantador. Um fim de tarde com uma boa brisa.Era-me possvel ver alguma agitao nos fetos que circundavamo caminho. Pouco importavam os mosquitos, e ainda deveria sermelhor no topo do monte. Ia fazer uma chvena de ch, decidi,e depois iria passear at aos Correios para fazer o meutelefonema para Crispin. A MINHA cunhada atendeu o telefone num tom de voz que,quer ela faa de propsito ou no, soa sempre abrasivo eressentido quando fala comigo. Tinha muita pena, mas Crispinfora chamado e sara. No, no sabia quando voltaria. Ocomboio? Bem, parecia que ele queria ver uma pessoa emGlasgow, por isso passava por l na viagem. Tinha feito umareserva no wagon-lit de amanh noite e seguiria para Oban nasexta-feira. Depois, apanharia o ferry-boat na manh seguinte,sbado. Seria assim? - possvel. Estava com esperanas de que eleconseguisse vir no barco de amanh, mas no sbado tambm estptimo. J tenho mais informaes sobre o barco, por isso, nose importa de lhe transmitir uma mensagem, Ruth? Tem um lpis mo? Bem, oferry-boat parte s seis da manh, o que vai paraColl e Tiree... Sim. So duas das ilhas das HbridasInteriores. Crispin sabe. Fiquei no Hotel Columba, mesmo ao pdo cais. No me ofereo para o ir esperar ao barco. Ele atracas oito da manh, mas arranjo-lhe transporte at casa.Conseguiu apanhar tudo? - Sim. Mas no seria melhor ele telefonar-lhe quandochegar a casa? Dei uma gargalhada. - um bocado difcil. H apenas o telefone pblico noposto dos Correios, e eu ainda agora andei trs quilmetrospara telefonar. Mas vou dar-lhe o nmero de l e se ele quiserdeixar-me um recado, Mrs. McDougall toma nota. - Mrs. McDougall. Est bem. - Agora era a sua vozprofissional, rpida e fria, a mulher do mdico. Depois,voltou a ser ela de novo. - Rose, como isso por a? Com otelefone a trs quilmetros... Devo dizer que parece mesmo otipo de lugar que Crispin adora. - Ele vai adorar. perfeitamente encantador. - Com totalfalta de sinceridade, acrescentei: - Devia vir tambm, Ruth. - Mas o que que h a parafazer? - Bem, nada. Nada, abenoada afirmao para o trabalhador Crispin epara mim mesma, depois da agitao dos exames e do fim doperodo. - Simplesmente no suporto estar sem fazer nada. Vou aMarrakech em Setembro. O hotel maravilhoso, as excursestursticas so imensas, e as compras fascinantes. - Parece excelente. Tenho de desligar, Ruth. Volto atelefonar quinta-feira noite para saber se Crispin semprevem. Adeus. - Adeus. - E desligou. Mrs. McDougall estava na sua cozinha tirando uma fornadade po. Paguei-lhe a chamada e fiquei a conversar um pouco,contando-lhe que o meu irmo poderia telefonar para me deixarum recado. - Se ele realmente vier no sbado - acrescentei -, seriapossvel Archie estar aqui e lev-lo, a ele e bagagem, atl a casa? - Ele vai estar aqui. Ele vem sempre receber o barco. Hsempre mantimentos, que foram encomendados, para transportar.Bom, vai ser bom para si ter c o seu irmo, e vamos esperarpelo melhor. Infelizmente, h uma previso de mau tempo.- Oh, meu Deus. Suficientemente mau para oferty-boat no poderfazer a travessia? - Bem, teria de ser mesmo muito mau para que issoacontecesse. No se preocupe; o seu irmo chega c. Mas podervir a achar a casa um pouco ventosa se o tempo ficar mesmomau. - Eu corro as escotilhas - disse eu, e ela riu-se. Quando parti, levava uma embalagem de repelente demosquitos no bolso e uma oferta de po acabado de fazer, aindaquente, num saco de plstico. NUNCA fica muito escuro numa noite lmpida de Junho nasTerras Altas. E durante as longas noites iluminadas, nunca asaves marinhas deixam de piar e de voar. Mesmo antes de medeitar, fui at l fora para ver as estrelas. Numa abbada luminosa de um cinzento-metalizado, lestavam elas, fracas e brilhantes e to numerosas comopapoilas no campo. Mas o tempo estava a mudar, at mesmonaquele momento. Durante a noite, levantou-se vento, e o dia amanheceucinzento e tempestuoso, com rajadas de chuva intensa.Felizmente, tinha lenha seca, acendi a lareira e rapidamenteobtive um bom lume. Uma vez acabados os afazeres domsticos, no havia maisnada a fazer, a no ser escrever. Creio que altura de fazer uma confisso. Embora eufosse, ou assim me considerasse, uma professora razoavelmenteboa, e embora fosse, alm disso, uma poetisa com seriedade quegozava de um pequeno reconhecimento, a minha vida de escritorano estava confinada a poemas e artigos. Eu escrevia ficocientfica. No s escrevia como publicava. Sob um outro nome, claro. E os voos da imaginao de Hugh Templar pagavambastante bem a Rose Fenemore. Por isso, durante aquele dia sombrio, Hugh Templarsentou-se mesa da cozinha e foi no encalo das aventuras deum grupo de viajantes do espao que tinham descoberto ummundo, mesmo por detrs do Sol, que era a imagem reflectida donosso prprio planeta Terra, mas com uma populao bastantediferente da nossa - uma raa com ideias estranhas e, esperavaeu, contestatrias sobre como governar o seu planeta... s 10 horas, as luzes apagaram-se. As nuvens tempestuosas que se tinham avolumado ao longodo dia tornavam tudo muito escuro. O lume dera lugar a cinzasfrias, todavia dirigi-me s apalpadelas at ao local ondetinha visto um castial, j pronto, na consola da lareira.Atravessei at janela e espreitei l para fora. O ventoestava mais forte do que nunca e punhados de chuva arremetiamcontra ajanela. Uma noite tempestuosa e desagradvel. Acabei o pargrafo que estava a escrever - uma ideiadeixada a meio tem tendncia a desaparecer muito rapidamente -e a seguir peguei no castial e fui cedo para a cama. As PAREDES da casa eram suficientemente grossas para nodeixarem passar os piores barulhos das rajadas da tempestade,e mesmo o ranger das portas e o matraquear das janelas noforam capazes de me deixar acordada durante muito tempo. Masalgo, um som mais agudo e pouco habitual, me arrancou do meuprimeiro sono profundo, pondo-me em viglia, escuta. A tempestade continuava assoladora; eu ouvia a rebentaodas ondas na praia de seixos e o intermitente assobioestridente do vento. Mas o barulho que me sobressaltara,acordando-me, era diferente. Vinha do interior da casa. Era umsom discreto, mas que se sobrepunha completamente a todo obarulho do exterior. Uma porta a ser fechada, pensei. E depoisbarulhos vindos da copa. Uma torneira a correr. Uma chaleira aser enchida. Crispin? Contra todas as expectativas, teria o meu irmoconseguido chegar at ali, mesmo apesar da tempestade? Demasiado aturdida pelo sono para pensar que aquilo eraimpossvel, deslizei para fora da cama, vesti o meu roupo pressa e abri a porta do meu quarto. Havia luz no andar debaixo. Por momentos, pensei que talvez tivesse deixado ointerruptor ligado antes de a luz ter falhado, mas no, tinhaa certeza de o ter desligado. E tinha fechado chave a portadas traseiras. Corri escada abaixo. Ele estava mesmo a virar-se do lava-loua, com a chaleirana mo. Um homem novo, relativamente alto, magro, de cabelopreto todo desgrenhado pelo vento e rosto plido e esguio. Umrosto bonito, olhos azuis, nariz rectilneo, faces molhadaspela chuva e barba a despontar. Vestia uma camisola depescador, galochas e um grosso anorak escorrendo gua. Nunca o tinha visto na minha vida. Fiquei petrificada porta. Ele permaneceu com a chaleirana mo. Falmos ambos ao mesmo tempo, dizendo inevitavelmenteas mesmas palavras: - Mas quem voc?ELE POUSOU a chaleira bruscamente. Parecia ter ficado maissurpreendido do que eu, facto que me deu coragem, portantodisse, mostrando-me razoavelmente calma: - O senhor fique vontade para se abrigar da tempestade,mas costuma entrar em casa das outras pessoas sem bater porta? Eu at pensava que a porta estava fechada chave. - Casa das outras pessoas? - Fez a pergunta sem ter amnima noo de que era uma pergunta idiota. - Sim, temporariamente. Aluguei-a por quinze dias. Ah,estou a perceber. Conhece os donos e pensou que poderiasimplesmente entrar - Na realidade, pensei que isto era a minha casa. Fuicriado aqui. Percebe? - Enfiou a mo no bolso e retirou umachave, o duplicado da que me tinham dado. - No fazia qualquerideia de que isto tinha mudado de mos. Peo desculpa. - Quer dizer que os seus pais viveram aqui? Esta era asua casa? - Sim, verdade. - Detectei ento na sua voz, sob a capada pronncia uniforme do continente, a inconfundvel cadnciadas ilhas. O meu pai costumava tratar dos jardins em Taigh naTuir. Alis, o meu pai adoptivo. - Bem... - Parei, sem saber oque dizer. Ento, ele sorriu pela primeira vez, e o sorriso iluminouo seu rosto com um sbito e intenso encanto. - uma situao um pouco embaraosa, no ? - Eles mudaram-se h uns anos atrs, contaram-me. Nosabia mesmo que eles se tinham ido embora? Entrou na sua casapensando que eles estariam a dormir l em cima? - Isso mesmo. - Mas... isso horrvel. Voc... - Voltei a parar. -Voc est a levar tudo com muita calma. O que que vai fazer? - O que que posso fazer para alm de esperar queamanhea? - O sorriso mantinha-se, mas por detrs dele haviaagora um assomo de preocupao. - No foi um choque assim togrande quanto possa imaginar. Eu realmente sabia que a velhasenhora, Mrs. Hamilton, falecera no princpio do ano, e claro que isso poderia ter significado que o trabalho do meupai tivesse acabado e que eles tivessem de se mudar. Masdisse-me que eles j se foram embora h uns anos... - Fez umapausa e tomou flego. J no sorria agora. - Se ela no estavabem, ento talvez lhes tenha dito para se irem embora? Terminou em tom de interrogao, mas eu abanei a cabea.- No fao ideia. No sei de mais nada, a no ser o que lhecontei. Mas no soube que eles se foram embora? - Estive fora, no estrangeiro. Andando de um lado para ooutro, perde-se o contacto, infelizmente. Acabei de regressarao Reino Unido. -Disse que sabia que Mrs. Hamilton tinha morrido? - verdade. Aluguei o meu barco em Faarsay, que umapequena ilha ao sul de Mul, e l tinham sabido de Mrs.Hamilton. Mas no conheciam a minha famlia, por isso nosabiam que a casa fora alugada. Parecia no haver mais nada a dizer. A gua pingavaperseverantemente do seu anorak, fazendo uma poa no cho. Eleestava com um ar plido, cansado e relativamente perdido. - Tem ar de quem lhe sabia bem uma bebida quente, eacontece que comigo se passa o mesmo - disse eu num tomanimado. Levei a chaleira para a outra sala e liguei-a tomada. - Porque que no tira esse anorak encharcado eacende a lareira enquanto eu preparo as bebidas? Ele seguiu a minha sugesto, deixando o anorak atrs daporta das traseiras. - muito simptica a sua atitude. O carvo continua aestar porta de casa? - Sim, mas euj trouxe algum c para dentro. Est naquelebalde e h turfa ali tambm. Julgo que deve saber lidar comlume de turfa. Podia mostrar-me como . O que que vai tomar?Caf? Ch? Cacau? Lamento, mas ainda no estou fornecida debebidas fortes. - Se h caf, preferia, se faz favor. O instantneo serveperfeitamente. Veio da copa com o balde do carvo numa das mos e naoutra um pequeno cilindro de metal. - No sabia que havia isto? - Um atiador a gs? Que maravilha! Onde estava? - No fundo do guarda-loua. uma grande ajuda e muitorpido. - Ajoelhou-se junto lareira da sala e empilhou aturfa e o carvo no centro frio da lareira. Eu preparei as bebidas e segui-o, pousando as canecas namesa baixa perto da lareira. - Quer acar? - Sim, se faz favor. - Ele pegou na caneca que lheestendi e em seguida tirou um frasco do bolso, do qualdespejou uma generosa quantidade para dentro da caneca.Estendeu-me o frasco, mas eu abanei a cabea. A turfa pegoufogo, espalhando um brilho quente. Sentindo-me como seestivesse a ter um sonho peculiar, sentei-me do outro lado dalareira e bebi um gole de cacau quente e apresentei-me. - Chamo-me Rose Fenemore e sou de Cambridge. - Ewen Mackay, sou de Moila, mas j h muito tempo que cno estou. Est a aceitar isto muito bem, Rose Fenemore.Algumas mulheres teriam vindo escada abaixo com o atiador emriste. - Eu podia t-lo feito, s que estou espera que o meuirmo venha ter comigo. Estava demasiado ensonada para pensarcomo que ele teria conseguido chegar aqui a esta hora danoite. - Olhei de relance para ajanela. - Veio mesmo de barcono meio daquilo? - Porque no? Contornar o cabo Horn pior. - Riu-se. -Na realidade, o pior bocado foi, quando vinha a p para aqui,passar pelo topo do penhasco, ali ao vento. - Por cima do penhasco? Ento, no ancorou aqui na baa? - No. Com o vento e a corrente nesta direco, muitoperigoso trazer um barco para aqui. H uma pequena enseada ameio caminho da Casa Grande, a casa dos Hamiltons. umancoradouro seguro, faa o tempo que fizer, e o mais perto decasa. A ltima palavra soou de uma forma estranha. Bebi o cacaue interroguei-me sobre como e quando poderia eu devolv-lo noite. Asjanelas escorriam gua, e de tempos a tempos asportas e janelas chocalhavam como se a casa estivesse a seratacada. "Bem, Rose Fenemore, agora talvez fosse a altura dealargares os teus horizontes um pouco." Podia nomear pelomenos trs amigas minhas que estariam prontas a oferecerquele jovem, inegavelmente atraente, uma dormida no sof. Ele estava a perguntar qualquer coisa sobre a casa dosHamiltons. - Desculpe? - disse eu. - Perguntei se j l esteve? -No. - Devia l ir. um percurso bastante bonito, por cima dopenhasco, e a ilha com a broch vale uma visita. H tambm umaboa baa, muito abrigada. De qualquer maneira, atraquei bem omeu barco em Halfway House, a enseada, e vim a p at Taigh naTuir, o stio da casa dos Hamiltons. Queria rever aquilo - psmais um pouco de turfa no lume -, embora soubesse que nohavia l ningum. Pareceu-me esquisito ver as janelas todasescuras. Pode dizer-se que Taigh na Tuir representou tantopara mim como esta casa. - Archie McLaren, acho, disse-me que Alastair Mackay, oseu pai, tomava l conta do jardim. - O meu pai adoptivo. - De novo aquela nfase. - Fuiadoptado. Sim, ele trabalhou na Casa e a minha me tambm. Maseles, o coronel e Mrs. Hamilton, no tinham famlia, apenas umirmo que vivia no estrangeiro, e, bem, tratavam-me como umfilho ou um neto. Foi o prprio coronel quem me ensinou aatirar com a espingarda, e eu ia sempre pesca com ele. Pelaforma como eles lidavam comigo, s vezes dou comigo apensar... - Interrompeu-se. - Estava a dizer? - Nada. Nada mesmo... - Atiou a turfa e o galicoapareceu subitamente acentuado na sua voz. - Mas estranhoser despojado das duas casas numa mesma noite de tempestade. "Ser que ele est a dramatizar tudo isto", perguntei-me,"para obter compaixo e uma cama para dormir ou esta amaneira de ser do celta?" O assomo frio de censura fez-medespertar. Queria que ele se fosse embora. Endireitei-me nacadeira. - Lamento, lamento sinceramente. - Mas Subitamente, sorriu-me, um lampejo rpido daqueles olhosazuis. - Isso no foi uma deixa para me oferecer uma cama parapassar a noite. J foi muito amvel da sua parte, e eu tambmj dormi no barco em noites piores do que esta. Bom, deixe-meque lhe lave as canecas antes de me ir embora. - No, obrigada, isso no tem qualquer importncia. D-mea sua. No momento em que me levantei para receber a caneca,ouviu-se uma pancada seca na porta da frente. Ewen Mackaylevantou-se, e uma das mos dirigiu-se, de formainacreditvel, a um bolso. Era um movimento que euj viracentenas de vezes na televiso, mas nunca na vida real. Ele deixou tombar a mo. Eu disse em voz dbil: - Importava-se de ir ver quem , se faz favor? E se for omeu irmo, no lhe d um tiro. Ele no sorriu. Olhou-me de soslaio, de uma formacuriosamente desconcertante, e dirigiu-se porta. Esta abriu-se, deixando o ar entrar impetuosamente. Lfora, estava um homem novo de anorak, com o capuz impelidopara trs pelo vento, exibindo um cabelo castanho encharcado etodo emaranhado e uma mo agarrando uma mochila. Ewen Mackay desviou-se para o deixar entrar. - Faa o favor de entrar. A chaleira est mesmo a ferver. Mr. Fenemore, presumo? O recm-chegado ficou quieto, ensopando o tapete,enquanto Ewen Mackay fechava a porta atrs dele. Pareciacompletamente aturdido.- Afinal o seu irmo sempre conseguiu c chegar - disse-meEwen Mackay, mas eu abanei a cabea e retorqui: - Eu nunca o vi na minha vida.Trs- PEO IMENSA desculpa por me intrometer desta maneira. O recm-chegado olhava de Ewen Mackay para mim, evice-versa, tomando-nos, compreensivelmente, por um casal emfrias, embora fosse difcil imaginar porque estaramossentados lareira quela hora, eu com um roupo poucoelegante e Ewen de calas de ganga manchadas e camisola. Algosemelhante a isto devia estar a ocorrer-lhe. Fez uma pausa eterminou com alguma hesitao: - A minha tenda foi levada pelo vento juntamente comalgumas das minhas coisas. Tentei apanh-las, mas com o escurono me valeu de nada. Vi a vossa luz, por isso apanhei o queme restava e dirigi-me para aqui. Se no se importassem, euficava aqui at a tempestade passar para depois ir tentarencontrar as minhas coisas. - claro - disse Ewen Mackay calorosamente, sem eusequer ter tempo de falar. Olhei-o surpreendida, mas ele ignorou-me. - Venha para aqui e dispa essas coisas molhadas. amostomar uma bebida quente. Faz-nos companhia? - Obrigado. muito simptico da vossa parte. Sabia-mebem. Enquanto falava, tirava a sua roupa molhada e deitou-meum olhar de relance, indicando quem deveria despachar-se aarranjar-lhe a bebida quente. Consegui falar. Lancei um olhar glido a Ewen,declarando: - Se o anfitrio, prepare a bebida. Sabe onde est achaleira. O recm-chegado pareceu surpreendido, mas Ewen sorriu edisse: - Claro! - E depois dirigiu-se ao outro homem: - Apropsito, chamo-me Mackay e apresento-lhe Rose Fenemore. Hcaf, se quiser. - Sim, perfeitamente. Obrigado. - Largou as suas coisasmolhadas numa cadeira e foi para junto da lareira. - Chamo-meJohn Parsons. Falou por cima da minha cabea para a copa, onde Ewen seencontrava a encher a chaleira. Obviamente que continuava atomar-nos por um casal, e o seu embarao por se terintrometido assumiu a forma de me ignorar.Eu estava ocupada a pensar porque que Ewen Mackay, aoassumir o papel de anfitrio, se tinha dado a tanto trabalhopara causar aquela impresso. Uma demonstrao de vaidademachista? Descoberto a ss numa casa remota com uma jovem aqual o irmo uma vez descrevera como "uma doutora, ai de mim!,mas uma brasa quando se d ao trabalho" -, teria eledeliberadamente induzido em erro o recm-chegado? Ou teriacomeado a ter esperanas de passar ali a noite e,consequentemente, utilizara aquele meio para se ver livre dooutro homem? - Leite e acar? - Ewen, continuando a ser ohospitaleiro anfitrio, estava a deitar a gua a ferver. Parsons estava aconchegado junto da lareira. - Sim, as duas coisas, se faz favor. - Aceitou a caneca afumegar das mos do outro homem e depois perguntou: - Est defrias ou vive aqui? Ewen Mackay retomou o seu lugar, no outro lado dalareira. Fez um ar ligeiramente apologtico. E bem que deviafaz-lo, pensei. Teria ele realmente pensado que eu ia alinharnaquilo? Esticou um p em direco ao lume. - Vivi realmente aqui h uns anos atrs. Fui criado aqui,mas neste momento sou como voc, um rfo da tempestade. MissFenemore tambm me abrigou a mim. - Ah, sim. Estou a perceber. - Parsons finalmente olhoupara mim. Detectei um outro tipo de embarao, substituindo oprimeiro, quando enfrentou o meu olhar irnico. - Bem, Miss... ah... extraordinariamente amvel da suaparte. Lamento imenso causar tanto incmodo. - No tem importncia. Onde que est a acampar, Mr....ah? Por instantes, pensei que tinha ido longe demais. Nosolhos cinzentos que me fitavam vi uma centelha do que podiasignificar divertimento, mas que poderia significar igualmenteaborrecimento. No entanto, desapareceu logo em seguida e elerespondeu docilmente: - No machair. - Consegue mesmo ver-se as nossas luzes do machair? -perguntei-lhe. Houve uma pausa perceptvel enquanto Parsons se voltavapara pousar a sua caneca na cornija da lareira. - Duvido. Mas quando as vi hoje, h bocado, j chegara acusto estrada. - Estava perto da Casa? - perguntou Ewen.- Que casa? - perguntou Parsons. - Ns, as pessoas daqui, chamamos-lhe a Casa Grande ousimplesmente a Casa. Aquela que fica em frente ilha, ondefica a torre de pedra pr-histrica. - Ah, sim, claro. No essa a casa dos Hamiltons? - Ento, conhece-a? J esteve c em Moila. - Sim, h muito tempo, quando era estudante. Ewen Mackay estivera a fitar insistentemente o outrohomem enquanto falavam e a seguir aventou: - Ento, talvez nos tenhamos conhecido nessa altura. - Talvez, mas no me parece. - Ento, o que que o traz c outra vez? - Sou gelogo. - Parsons bebeu tranquilamente a suabebida. Tinha aceitado um cheirinho do frasco de Ewen. -Pensei que seria um local interessante para passar as minhasfrias. Tenho estado a trabalhar na Austrlia, em Sydney. Hum afloramento igneo no ilhu da torre pr-histrica, comfragmentos de peridotite vermelho-granada. Estou a planearmudar a minha tenda para l. Mas isto no um assunto que vosinteresse A conversa j h muito que tinha deixado de meinteressar. Sentia a necessidade de voltar a dormir.Levantei-me para ver as horas no relgio, na consola dalareira, e uma outra coisa despertou-me a ateno. Enfiadoatrs do relgio, estava um mao de papis, cartas e contasantigas, presumivelmente esquecido pelos ltimos inquilinos.Tinha uma direco escrita:J. R. Parsons,Baa das LontrasIlha de Moila, Argyll Ento, o "John Parsons" talvez no fosse genuno! QuandoEwen Mackay sugerira que j antes se teriam encontrado,pareceu-me que o outro homem ficara com uma expressocautelosa. E o prprio Ewen, apesar de todo o seu encanto,tinha certamente agido de uma maneira que dava que pensar.Alm do mais, eu no conseguia esquecer aquele movimento dasua mo em direco ao bolso quando "Parsons" batera porta. Levei a minha caneca vazia para o lava-loua e depoisfiquei soleira da porta a observ-los. Nenhum deles dera amnima ateno aos meus movimentos. excepo do facto deParsons j estar sentado na minha cadeira. Estavam ambos afalar da pesca ao salmo. Um assunto que, pensei secamente,propiciava um grande campo de aco aos mentirosos. Ajogada seguinte era minha. Mackay dissera que poderiadormir no seu barco, mas no fizera nada no sentido deconvidar Parsons a partilh-lo. Talvez no houvesse espaosuficiente para dois, e naquele momento dificilmente poderiapr o outro na rua. O melhor era jogar pelo seguro. Iadeix-los ficar aos dois. Eu podia ser uma brasa, mas tambmera uma doutora de Cambridge e no era propensa a ver o perigoonde ele no existia, por isso disse: - J passa das trs horas da manh. Vou deitar-me.Atiro-vos c para baixo umas toalhas e uns cobertores e vocspodem deitar sorte quem fica no sof e quem fica no cho. -Acrescentei: - Boa noite. Durmam bem. A MANH estava calma e radiosa, com os raios de solcintilando pela baa. O mar ainda repercutia a tempestade, comas ondas, com cerca de meio metro de altura, a rebentarem comum longo marulhar contra a praia de seixos, mas o cu estavaazul e lmpido. No se ouvia nenhum barulho l em baixo.Deslizei para fora da cama, vesti o meu roupo e desci asescadas silenciosamente. Sim, ambos se tinham ido embora. Os cobertores e astoalhas jaziam impecavelmente dobrados no sof. Na copa,encontrei um bilhete apoiado no escorredor do lava-loua quedizia: "Muitssimo obrigado pela hospitalidade. Espero quetenha dormido bem. Sa cedo para procurar a tenda, etc. At umdestes dias, talvez." No estava assinado. A referncia tenda significava queou fora "John Parsons" que o escrevera e esperava voltar aencontrar-se comigo, ou que eles se tinham associado numastrguas declaradas. Coloquei cautelosamente a mo na chaleira. Estava quente.Pelos vistos, eles tinham arranjado qualquer coisa para opequeno-almoo sem me acordarem. Uma atitude que evidenciavamais delicadeza da parte deles do que tinham mostrado na noiteanterior. Coloquei a chaleira de novo ao lume e subi para mevestir. ZELOSA dos meus deveres, passei a manh no espao sideralde Hugh Templar e fui recompensada com uma nova ideia para ocaptulo seguinte da histria. Pus em dia as anotaes, fizuns ovos mexidos, depois decidi ir at aos Correios saber se omeu irmo telefonara na noite anterior.Mrs. McDougall, ocupada com os clientes, apenas me fez um meroaceno com a cabea, indicando a porta nas traseiras da lojaque dava para a sua casa. Entrei de bom grado, dirigindo-me aotelefone. A minha cunhada atendeu to depressa que deveria estarmesmo ao lado do telefone. - Est l? do hospital? - No - respondi. - a Rose. No me diga que apareceualguma coisa nesta altura dos acontecimentos que vai impedirChris de se ausentar. - Oh,....... - No havia nenhum tom spero na voz deRuth. Ouvi-a respirar fundo. A minha mo segurou com fora o auscultador. - Diga-me. Crispin est bem? - Sim, est bem. Est ferido, mas no gravemente. otornozelo. Pensavam que estava partido; depois, disseram quefora apenas uma distenso forte, mas querem fazer mais raiosX, portanto, simplesmente, no sei. Ele tentou telefonar-lhe,mas havia um problema qualquer com a linha. Ele ia naquelecomboio, naquele que descarrilou a noite passada a sul deKendal. Pensei que tivesse ouvido no rdio. - No tenho rdio. Continue. - Uma carruagem foi atirada para fora da linha, mas nose virou at toda a gente ter sado. No morreu ningum, mashouve alguns feridos. Cris tentou ajudar, claro, mas assim quea ambulncia chegou, mandaram-no para o hospital local e lque ele est agora. A voz dele parecia bastante normal quandotelefonou, estava apenas aborrecido por causa das frias.Disse que voltava a telefonar assim que soubesse o resultadoda nova radiografia. No vai poder andar muito, claro, masmesmo assim continua a querer ir. Terminou num tom de surpresa tal que no consegui deixarde me rir. - Vou desligar, no v ele estar a tentar telefonar-lhe.Mas volto a telefonar hoje noite. - Vou dar-lhe um nmero, e voc pode telefonar-lhe. -Anotei o nmero. - Ento, e voc, Rose? Est bem sozinha? Nocreio que ele consiga chegar a antes de segunda-feira. Fiquei surpreendida e comovida. - Eu fico bem, obrigada. A casa bastante acolhedora, eeu estou ocupada com uma nova histria, por isso vou ter muitoque fazer. D saudades minhas ao Crispin, Ruth. Eutelefono-lhe logo noite. - Eu digo-lhe. Adeus, Rose.- Adeus. Voltei para a loja e reuni o que precisava. Quandocheguei ao balco, encontrei Mrs. McDougall e as suas vizinhasa falarem sobre o acidente do comboio. Mrs. McDougall tirou-meo cesto das mos com um olhar preocupado. - Espero que no tenham sido ms notcias, Miss Fenemore. - O meu irmo ia no comboio, infelizmente. No. No hproblema. Ele no ficou gravemente ferido, uma distenso notornozelo, e dizem que no muito grave, mas isso significaque ele ainda no pode vir at c acima... Todas soltaram exclamaes e expressaram a suasolidariedade, aps o que paguei as minhas compras e meescapuli. J ia a meio caminho de casa quando me apercebi de que,com toda aquela conversa sobre o acidente, me tinha esquecidode falar com Mrs. McDougall sobre Ewen Mackay e at sobre JohnParsons. No que os quisesse voltar a ver, a qualquer deles,mas a cena da vspera noite fora estranha. Comeando por Parsons. Eu tinha a certeza de que ele eraum impostor, a no ser que fosse o anterior inquilino da casae tivesse, por qualquer razo, regressado a Moila sem quererser detectado. Mentira certamente ao dizer que vira as luzesda casa. Se tinha andado a perseguir a sua tenda, levada pelovento, desde o machair,; no lado ocidental da ilha,seguramente que as luzes da minha casa no se avistariam senodepois de ele ter percorrido a estrada pela encosta abaixo,passado a curva e quase chegar Baa das Lontras.Consequentemente, a sua desculpa para se dirigir l a casa erauma fraude. Agora, vejamos Ewen Mackay. Aquilo que dissera sobre acasa ter sido a sua poderia facilmente ser verificado. Ele atsabia onde se guardava o carvo e o atiador de brasas a gs,e tinha uma chave... Mas houvera aquela reaco de inquietaoao baterem porta e depois o logro despropositado que seseguira. Parei a meio de uma passada. Algo se moveu no lado maisafastado do iochan, algo volumoso de um branco-sujo apanhadona murta do lodo, onde ondulava com a brisa. A tenda de JohnParsons? Pousei o saco com as compras no cho, ao lado da estrada,e atravessei a charneca. Se o objecto viesse a ser a tendalevada pelo vento, o dono iria precisar dela. Era uma velha saca de plstico. Encontrei o covil de umaraposa, h muito abandonado, e meti-a l. Enfiei a saca bempara dentro at a esconder e endireitei-me, constatando que aminha busca me levara at acima de uma fenda atravs da qualavistava o machair ocidental. Era uma faixa de costa belssima: areia branca e turfamordiscada pelas ovelhas, tendo como fundo um prado florido eplano com margaridas amarelas ondulando na brisa martima,como um vu colorido sobre o verde. Acima, esquerda, haviaum macio de rvores e, destacando-se dele, as chamins de umacasa. A casa dos Hamiltons, presumivelmente. Taigh na Tuir.Caminhei mais alguns metros e estiquei o pescoo para ver. Nohavia sinal de vida na pequena baa do outro lado, que tinhauma casa de barcos e um molhe. Para l da baa, a seguir a uma estreita extenso degua, havia uma pequena ilha, um ilhu mais propriamente. Eracomprido e baixo, com um outeiro no extremo norte. Mesmo porbaixo do outeiro, distingui o contorno escuro do que deveriaser a broch em runas, e ao seu lado estava uma pequena manchaestranha de um laranja-vivo. Uma tenda. Ele encontrara a tendae j se mudara para a ilha da torre. Fosse como fosse, ambos os homens tinham regressado aosseus afazeres e muito provavelmente no voltariam aincomodar-me. "Esquece; retoma mais um captulo de ficofantasiosa." E enquanto caminhava pela lama, contornando olochan, em direco estrada, vi um mergulho: uma grande avecastanha e cinzenta com o pescoo vermelho. "Deve estar achocar", pensei. Com um pio estranho, o mergulho levantou evoou em direco ao mar, alarmado. E ali, a dois passos dosmeus ps, estava o ninho. Dois ovos enormes de um castanho-esverdeado, com a cascabaa, sarapintada como musgo, encontravam-se numa concavidadepouco profunda, mesmo na margem do loch: uma casa muito bemcamuflada. O mergulho provavelmente estava a observar-me.Regressei estrada, peguei nas minhas compras e deixei a aveem paz. NESSA noite, no vi Mrs. McDougall. Estava uma rapariga atomar conta da loja, uma criana de talvez doze anos, que medisse chamar-se Morag e que a sua tia a avisara de que a jovemsenhora de Camus na Dobhrain devia l aparecer para telefonar. Perguntei-lhe se ela conhecia um tal Ewen Mackay que emtempos teria vivido na Baa das Lontras, mas ela abanou acabea. - No. - A pronncia dela era de uma suavidade extrema. -Havia um senhor e uma senhora Mackay que viviam l, masforam-se embora para o continente. - Tinham filhos?Hesitou, depois inclinou a cabea afirmativamente. Sim, haviaum rapaz, h muito tempo, mas nessa altura ela era muitopequena e no se lembrava dele. Agora, j devia ser um homemcrescido. A tia devia saber Parti do princpio de que aquilo corroborava uma parte dahistria de Ewen Mackay. Agradeci a Morag e dirigi-me aotelefone. Liguei directamente para o meu irmo, para o nmero dohospital de Kendal que Ruth me dera. - Que histria essa de outra radiografia? -perguntei-lhe. - J tens os resultados? mesmo s umadistenso? - , mas ainda est muito inchado. Deram-me uma muleta eposso perfeitamente fazer a viagem, mas nunca podia fazermuita coisa depois de chegar a a Moila, pois no? Como queisso ? - encantador. A casa pequenina, mas tem tudo o queprecisamos, h muitos stios para explorar sem transporte.Infelizmente, s h o Land-Rover de Archie McLaren, o que tevai transportar desde o porto. Mas o que que isso importa?Vais descansar. Claro que, se te muito doloroso, esquece. Eufico lindamente sozinha e, se me fartar da inactividade, possosempre ir para outro lado - No. No faas isso. Eu estava apenas com dvidas porcausa de poder estragar as tuas frias. Eu c me arranjo edetestaria ficar sem conhecer Moila. - Estragavas-me muito mais as frias se no viesses -comentei eu. - Isto aqui realmente encantador. Hoje,encontrei o ninho de um mergulho-de-pescoo-vermelho, umaperfeita maravilha, com dois ovos, e no tinha a mquinafotogrfica. - No vou faltar - disse ele. - Conta comigo no barco desegunda-feira. - Doutor, cura as tuas prprias feridas... - disse eu,rindo, e desliguei com o corao aliviado.QuatroA MANH seguinte estava bonita, soalheira e com uma ligeirabrisa, mas viajei diligentemente at ao espao sideral,embrenhando-me nos problemas do meu grupo na Terra Secunda. Asdificuldades ameaavam rapidamente tornar-se demasiadas paraeles e, consequentemente, para mim tambm. Em taiscircunstncias, sempre achei sensato no fazer nenhum esforoe deixar que o subconsciente resolvesse por si as coisas,enquanto o consciente se dedicava a fazer algo completamentediferente. Ir dar um passeio, por exemplo, e uma olhadela casa dos Hamiltons. Fui pelo caminho do penhasco, que subia a pique para forada Baa das Lontras, virando depois para oeste cerca de umquilmetro sobre o promontrio, e deparei com a panormica dabaa que avistara na vspera. Mesmo na direco desta, para ointerior, contra um fundo de rvores que a protegiam, ficava aCasa. Um muro alto de pedra circundava o terreno em volta delanuma extenso de cerca de dois hectares, e dentro dele haviamais rvores acima do amontoado colorido dos rododendros. Umarco de pedra no lado do muro virado para o mar enquadrava umporto alto de ferro forjado que conduzia aos jardins de Taighna Tuir. Mesmo em frente da Casa, ficava o ilhu com a broch.Naquela altura, com a mar baixa, o passadio que ligava oilhu a Moila elevava-se, seco. Era constitudo por pedraslascadas que formavam um caminho por onde se podia passar. Masmesmo com a mar baixa, a travessia devia ser traioeira. O canal era suficientemente profundo para um barcoconseguir entrar na casa dos barcos, que se encontrava porbaixo do penhasco, do lado sul da baa, abaixo do caminho ondeeu estava. Ao lado da casa dos barcos, havia um molhe do qualsaa um caminho cheio de ervas daninhas que ia dar ao portodo jardim. Pus-me a caminho, descendo para a baa. Nunca vira nadaigual, uma meia-lua deslumbrante de uma areia magnfica cor deprola, apenas com marcas das ondas e, acima destas, marcasentrecruzadas de patas de aves marinhas. Era totalmente irresistvel. Descalcei sapatos e meias,deleitando-me com a sensao da areia quente nos ps nus.Dirigi-me imediatamente at beira-mar, mas a gua estavafria, por isso retrocedi para a areia seca e voltei a calaros sapatos. Feito isto, permaneci de p a olhar para o ilhu, umaextenso de turfa verde e fetos erguendo-se at ao crculoescuro da broch. Todo aquele lugar emanava vida com os voos egritos de aves marinhas. Era muito tentador, mas seria umaestupidez fazer a travessia antes de conhecer melhor as mars.Perguntei a mim mesma onde estaria John Parsons. De onde meencontrava, avistava a tenda, montada perto do muro da broch.A entrada estava fechada. Subi pelo caminho que levava ao porto no muro do jardime espreitei pelas grades. O caminho continuava por dentro dapropriedade, serpenteando por entre os rododendros demasiadograndes em direco Casa. Hesitei. Devia haver um caminhopara carros das traseiras da casa at estrada - o caminhomais fcil para minha casa. Ir at l, contornando o muro dojardim, significaria abrir caminho pelo meio de urtigas que medavam pela cintura e moitas de silvas. Portanto? Portanto,abri o porto e entrei. Para l do emaranhado bravio dos rododendros, eu s via oandar de cima da Casa: pedra cinzenta, janelas de guilhotinaaltas, telhado de ardsia cinzenta e chamins que nofumegavam. Havia cortinas nas janelas. A Casa ainda deviaestar mobilada. Archie dissera que a Casa provavelmente seriavendida. Com certeza que no haveria qualquer problema em umapessoa dar uma olhadela a um stio que, de qualquer maneira,brevemente iria ser posto venda. Atravessei um relvado porcortar at janela principal e espreitei l para dentro. A sala de estar. Uma lareira bastante engraada, com umacornija hedionda. Cortinados e tapetes desbotados. Os quadroseram os tpicos retratos de famlia, imitaes de grandesmestres, sombrios, e com inverosmeis ces e cavalos. Mesas decamilha a abarrotar de fotografias. Cadeires bambos. Numcanto um vaso bastante horroroso cheio de erva seca. Na sala de jantar havia mais retratos - ainda maissombrios, se possvel - e duas horrendas naturezas-mortas:lebres e aves domsticas; mesmo o tipo de coisas para abrir oapetite s refeies. Era uma vulgar e agradvel casa de Vero das TerrasAltas; no tinha qualquer tipo de aquecimento para alm daslareiras, e a cozinha, no que dizia respeito a modernascondies de habitabilidade, era bastante semelhante daminha casa na Baa das Lontras. A nica coisa verdadeiramentefora do normal foi o que encontrei quando cheguei straseiras: a porta estava aberta. BATI PORTA; depois, como no obtive resposta, entreipara um corredor com cho de pedra, com baldes de carvo e umcabide com velhas roupas de jardinagem. Cheirava a bafio e afalta de uso. A porta da cozinha ficava minha direita. Empurrei-a,abrindo-a. De novo o vazio; de certa forma, a cozinha, que ocorao de qualquer casa, o pior dos lugares sem os cheirose o calor da comida e sem o pulsar da vida diria. Ao virar-mepara sair, algo me chamou a ateno:um chaveiro, mesmo ao lado da porta, com chaves penduradas,identificadas com rtulos. Um dos ganchos do chaveiro estavavazio: o rtulo dizia C. NA DOBHRAIN. A minha casa na Baa dasLontras.Fosse qual fosse o motivo que me levara a entrar na Casa, foiultrapassado por uma mera curiosidade avassaladora. Teria omeu visitante nocturno passado primeiro por ali para ir buscara chave que me mostrara, deixando a porta das traseirasaberta? Mas se ele estava apenas procura de abrigo, porque que no ficara ali? Porque que percorrera o caminho, debaixode chuva no meio da tempestade, at Baa das Lontras? Sehavia algum mistrio sobre a visita de Ewen Mackay minhacasa, a pista podia muito bem estar ali, na casa que eleafirmara conhecer muito bem. Para comear, avancei para o corredor da frente,iluminado apenas por uma janela de vitral em forma de lequepor cima da porta da entrada. Num dos lados, encontrava-se umapesada mesa de carvalho com pilhas de revistas e jornais, duaslanternas elctricas e umas caixas no identificadas. Havia umcabide de lato com bengalas e um canap de carvalho escurocom arca sob o assento, para cima do qual algum atirara umcasaco e um anorak velho. Alguns pares de botas de vriosfeitios estavam alinhados ao lado do canap. Tive a forte sensao de que era uma casa cujos ocupantestinham acabado de sair para dar um passeio. A minha presenaali pareceu subitamente uma intruso. Virei-me para me irembora, mas exactamente quando me ia a virar, ouvi qualquercoisa. No andar de cima: o ranger de uma porta. O meu corao deu um pulo, depois voltou ao ritmo normalao registar o facto de que mesmo numa casa vazia haviacorrentes de ar e portas a mexerem-se e a rangerem sem queningum lhes tocasse. Mas, mesmo assim, dirigi-me rapidamentepara a porta e, na obscuridade, tropecei numa das botas. Sconsegui evitar a queda segurando-me ao brao do canap decarvalho. Algo veio pelas escadas abaixo como uma avalancha. Um parde braos fortes agarraram-me por trs, levantando-mebruscamente. Apertada com fora contra o peito de uma camisolade l, gritei. Os braos largaram-me subitamente, e a camisola de lafastou-se. Ca no canap, bati com o cotovelo no braotorneado e tomei flego para gritar outra vez. - No grite! - disse John Parsons apressadamente. - Porfavor, no grite. Peo imensa desculpa. Pensei que era... nopercebi que era voc. Pus de parte o meu grito e esfreguei o cotovelo. Eleinclinou-se sobre mim com um ar ansioso e nada perigoso. Eento eu disse: - O que que est aqui a fazer? Sei que encontrou a suatenda; se calhar achou que aqui arranjaria um abrigo maisconfortvel do que a minha casa, no? - No, nem por isso. E na realidade a tenda nunca esteveperdida, mas... - Onde que est Ewen Mackay? Tambm dorme aqui? - No. Porque que haveria de estar aqui? Ento, ele noest consigo? - No, no est. - Como me sentia simultaneamente culpadae embaraada, respondi asperamente: - Espero que voc notenha cado naquela encenao dele. Eu nunca o tinha visto naminha vida! Julgo que ele deve ter levado a chave da minhacasa daqui. Se ele forou a entrada aqui... mas ento por querazo teria ido l para casa? E voc, porque que l foi?Tambm forou a entrada aqui? Ele respondeu apenas a uma da minha sucesso de perguntase foi o suficiente. - No - disse. - Eu tinha uma chave. - Tinha uma chave?! - A repetio soou de forma idiota.Mas a situao era uma repetio da noite de quarta-feira. -Voc tambm. - Tomei flego. - Tinha marcado vir ver a Casa? - No bem isso. A casa minha. - Oh! No. Outra vez no. - Devo ter soado, se possvel,ainda mais idiota. - Sua? Subitamente, ele sorriu. - Sim, minha. Eu era o nico parente vivo da tia Emily, esempre esteve subentendido que a propriedade ficaria para mim.Sou Neil Hamilton. - Estou a ver. Bom, obrigado por me dizer, Mr. Parsons. Ento, ele disse num tom apologtico: - Peo imensa desculpa, mas houve motivos para o fazer.Porque no vamos at a um stio mais confortvel paraconversarmos sobre esses motivos? Sinto que realmente lhe devoisso. Aqui? Abriu a porta da sala de estar e fez-me entrar suafrente. Atravessou a sala at janela de sacada e abriu-a. luz daquilo que acabara de dizer-me, observei-o novamente. Era alto e parecia bronzeado pelo sol. No era bonito,mas era bem-parecido, de uma forma que eu habitualmentedesaprovava bastante, se no mesmo desprezava: no tinha asfeies magras e marcadas que eu sempre admirara, mas um rostocom feies difusas, uma boca grande, olhos escuros com oscantos exteriores ligeiramente inclinados para baixo e umacabeleira castanha desalinhada, da qual caam umas madeixassobre a testa. Reparei que ele, por sua vez, me observava.Pensei que ele devia estar a ver uma jovem sem traosmarcantes, demasiado solene, de cabelos castanhos e olhoscinzentos, nariz e boca tolerveis e - os meus nicosrequisitos de beleza - com boa figura e uma pele boa e bonita. - Ento, depreendo que esteja aqui apenas a passarfrias, Miss Fenemore? Ou prefere Mss? - Isso parece um silvo de ganso. impronuncivel. Narealidade, se isso fosse a abreviatura de mistress, ou sejaprofessora, que bastante simptico e muito escocs, com todaa certeza que eu aceitaria de bom grado esse tratamento. Bom,mas Rose seria o mais fcil, no acha? Desculpe, estou a serpedante, mas eu gosto de palavras, e isso um dos melhoresexemplos de no-palavra que eu conheo. - Bom, um excelente passatempo. - Passatempo, qual passatempo? Eo meu trabalho. Souprofessora de Ingls em Cambridge. No Haworth College. E, verdade, estou simplesmente de frias. O meu irmo devia virter comigo esta semana, mas o comboio em que viajava teve umacidente, por isso ele ficou retido com um tornozelo magoado.Provavelmente, chegar aqui na segunda-feira. E tudo sobremim. Agora, a sua vez Mr. Hamilton Parsons. - Essa parte do Parsons no foi uma mentira muitoinspirada. Viu a carta na consola da lareira, no viu? - Vi. Mas a questo : porqu? - No podia dizer o meu nome verdadeiro antes de saber oque que aquele tipo pretendia. Devia ter pensado em qualquercoisa quando ia a caminho para l. Olhe, porque que no sesenta? O melhor eu comear pelo princpio. Segui a sugesto, mas ele continuou de p junto janela. - Chamo-me Neil Hamilton, como j lhe disse, e Mrs.Hamilton era a minha tia-av. Sou gelogo, essa parte eraverdadeira... e at h pouco tempo estive a trabalhar emSydney. Foi l que soube da morte da tia Emily, e apanhei oavio para aqui assim que me foi possvel. No h maisningum. Eu gostava muito dela e costumava passar a maiorparte das minhas frias aqui, mas ultimamente vinha c muitopouco; j c no devia vir h pelo menos quinze anos. Festejeiaqui os meus catorze anos. Lembro-me de que o tio Fergus meofereceu uma espingarda. Ele ainda tinha esperanas em mim,mas na realidade nunca gostei de andar a matar coisas. -Sorriu. - No sou mesmo nada o ideal proprietrio escocs.Enquanto falava, andava pela sala, pegando distraidamente emfotografias, olhando para os livros, pondo-se em frente aosquadros. Eu fi-lo regressar ao assunto em questo. - E o que que o levou at minha casa no meio da noitecom a histria da tenda levada pelo vento? Todas essasmentiras por causa de Ewen Mackay, antes mesmo de o conhecer? Ele virou-se para mim. - Sim, foram mentiras, mas eu j o conhecera h muitosanos, quando ramos rapazes. Ele quase me reconheceu, masquinze anos, a passagem de rapaz a homem, uma grande mudanae duvido que ele tenha percebido. - Est a dizer-me que montou toda aquela charada porque oreconheceu? Que tinha razes para desconfiar dele? Ele acenou afirmativamente com a cabea. - Quando ele era rapaz... bem, digamos, no era digno deconfiana. Mas no foi por isso. Eu j o vira antes naquelanoite, aqui em casa, comportando-se de uma forma que me fezficar bastante ansioso por descobrir o que que ele estava afazer aqui em Moila. - Ento, voc estava aqui? Toda a gente disse que a casaestava vazia. - E estava. Eu tinha acabado de chegar e ainda no fora povoao nem vira ningum. E, alis, ainda no vi. - Como veio para c? - Aluguei um barco. A tia Emily vendeu o que c havia.Vim de Oban a toda a pressa, com o tempo a ficar cada vezpior, mas cheguei aqui so e salvo. Meti o barco na casa dosbarcos e depois subi at Casa. Tinha ido falar com osadvogados da minha tia, em Glasgow, e eles deram-me as chaves.Comprei tudo aquilo de que precisava em Oban, e como j eramuito tarde e estava cansado, dirigi-me ao meu antigo quarto efui direito para a cama. J passava bem da meia-noite quandofui abrir a janela do quarto e vi uma pessoa a atravessar ojardim, vinda da baa. Deixou-se cair numa das poltronas minha frente eprosseguiu: - A princpio, pensei que fosse algum de um barcoarrastado at aqui pelo temporal. O tipo tinha uma lanterna.Chegou at ao relvado, ali mesmo, e depois parou e ficouquieto a fitar a casa debaixo de toda aquela chuva. Bom, eudesci as escadas. A porta da frente ainda estava fechada chave; eu apenas utilizara a das traseiras desde que chegara.No acendi as luzes, e quando entrei nesta sala, regozijei-mepor no o ter feito. Dei com ele a tentar entrar pela janela.- Bem, no meio daquela tempestade e se ele pensava que a casaestava vazia.... - disse eu, tentando ser razovel. - Eu sei. Mas ele no experimentou apenas a maaneta.Tinha uma ferramenta com que estava a tentar abrir a porta,levantando-a. Fiquei ali como um idiota a observ-lo...Depois, pensei: "Bem, eu vou ter que enfrentar o tipo dequalquer maneira, por isso o melhor, com ou sem chuva, irpelas traseiras e apanh-lo por trs." - Ele tinha uma arma - disse eu. Ele ficou deveras surpreendido. -A srio?! - Acho que sim. Continue, por favor! - No sou propriamente um homem de aco... deste tipo deaco. Costumava haver armas c em casa, claro, mas nem sequerme ocorreu ir ver se ainda estavam no mesmo stio. Mas quandocheguei parte de trs da casa, ele j l estava, juntojanela da cozinha. Depois, por qualquer razo, desistiu: nummomento estava l e depois, de repente, desapareceu. Corriescada acima para ver o que pudesse, e l ia ele, de lanternae tudo, a correr pelo jardim fora e depois enfiando-se pelocaminho do penhasco, como se soubesse exactamente para ondeia. claro que eu sabia que o caminho dava para Camus naDobhrain, e os advogados tinham-me dito que a casa estavaalugada a uma rapariga, por isso pus-me a pensar por que razose dirigiria ele para l, e decidi segui-lo e ver o que sepassava. - Mas voc levava uma mochila... Era s cenrio para asua histria sobre a tenda? - Mais ou menos. Tenho uma tenda, porque quero trabalharem Eilean na Rom, a Ilha das Focas, onde fica a broch, e asmars so estranhas, por isso preciso de l ter uma base.Levei a tenda para l hoje de manh. - Eu sei, vi-a. Mas no esteve aqui quando era estudanteuniversitrio, pois no? Se tivesse conhecido Ewen Mackaynessa altura... - Ele ter-me-ia reconhecido, claro. Sim, isso tambm foiuma mentira. Bom, mas, quando ele me abriu a porta,reconheci-o. E como ele no me reconheceu, eu no quis ligar omeu nome casa at descobrir qual era ojogo dele. - Eo meu? - Bem, sim. o seu. Sorri. - justo. Mas, independentemente dos seus motivos para irat l, ainda bem que o fez. Se ele realmente no estava comboas intenes, a situao poderia ter-se tornado esquisita...embora eu no estivesse nervosa. - Sim, eu percebi. E foi isso que me fez pensar se noestaria envolvida tambm. - Fez uma pausa, franzindo osobrolho, depois acrescentou: - Bem, ainda no conseguivislumbrar qual ojogo dele. - Quando saram para irem procurar a sua tenda, o que que aconteceu? - Nada de especial. Fizemos uma busca insignificante nocaminho para a baa, mas depois ele foi direito para o seubarco e desapareceu, e no fao a mnima ideia para onde foi.No h sinais dele algures perto de sua casa? - Nenhum. Ento, o que que se segue? - Nada, espero eu, a no ser mantermos os olhos bemabertos. O homem no fez nada que justifique comunicarmos Polcia - Estou a perceber o seu ponto de vista. S mais um outrodetalhe: h um stio no seu chaveiro, junto porta, para achave da minha casa e falta l a chave. A no ser que voc atenha tirado. Ele abanou a cabea. - Ento, se foi Ewen quem a tirou, isso significa queessa no foi a primeira visita dele a esta casa. J aqui tinhaestado e... - E deixou a porta envidraada aberta para poder entraroutra vez. Tem razo! Realmente encontrei-a aberta e fui euque a tranquei. No dei qualquer importncia ao facto, apenaspensei que quem tinha fechado a casa se esquecera. Mas deveter sido isso: ele voltou e, encontrando a entrada de novotrancada, deve ter-se assustado. - Ele realmente disse-me que tinha estado aqui -continuei eu. - Claro que no disse que tentara entrar cdentro. Mas insinuou... Parei. -Sim?O qu? -No. Era... bem, pessoal. No tinha nada a ver com isto. - At sabermos o que "isto" - disse ele sensatamente -,tudo pode ter a ver com isto. Portanto, continue, se fazfavor. - Duvido que tenha alguma importncia. No quero... Bom,est bem. Ele insinuou que teria uma ligao sua famlia. - Para meu alvio, ele riu-se. - mesmo dele. A criana adorada do tio-av Fergus,adoptada presumivelmente por considerao pelo jardineiro. Jtinha ouvido essa. E outras ainda mais absurdas. J em garotoele costumava mentir sem qualquer motivo. Deu-lhe mais algumasindicaes? Disse-lhe onde esteve desde que saiu de Moila?- Apenas disse que esteve no estrangeiro... Ah, e que tinhadobrado o cabo Horn. - S acreditarei nisso quando vir o dirio de bordo -disse Neil secamente. - Vou passar revista casa para ver sefalta alguma coisa. Os advogados deram-me um inventrio.Diga-me uma coisa, tem mesmo a certeza de que ele tinha umaarma? - No tenho a certeza absoluta. Foi apenas a forma comolevou a mo ao bolso quando voc bateu porta. - Vamos esperar que isso tambm no passasse de fachada.Bom... - Fez meno de se levantar e depois perguntou: -Quando que disse que o seu irmo chegava? - Segunda-feira, espero. - Bem, at l a nica coisa que podemos fazer manter osolhos abertos. - isso que eu vou fazer. E voc? - Como viu, tenho a minha tenda montada na ilha. Voutrabalhar para l, mas venho dormir a casa. Se Ewen vir atenda, pensar que o "Parsons" est fora do caminho. Ento,seja qual for o interesse que tem na casa, ir mostr-lo. E euc estarei para o apanhar. Levantou-se e eu segui-o. O Sol, com os seus raiosoblquos entrando pela janela aberta, revelava a runadesbotada da sala, mas l fora as copas das rvores estavamdouradas e as abelhas faziam-se ouvir nitidamente nasroseiras. Ele dirigiu-se porta que dava para o hall eabriu-a. - Antes de eu a acompanhar a casa, no quer tomar umachvena de ch? - Sim, agradeo. Mas no h necessidade de me acompanhara casa. - Provavelmente, no. Mas vou na mesma - afirmoualegremente. - Por aqui, ento, Mistress Fenemore. Mas j meesquecia de que j esteve a explorar a minha cozinha, no verdade? Faa favor de passar. DEPOIS do ch, atravessmos o que restava do jardim. Ocaminho estava coberto de ervas daninhas pela altura dotornozelo, e de ambos os lados os rododendros, demasiadograndes, estavam cheios de flores. - Vamos por um atalho - disse Neil, seguindo minhafrente por uma abertura entre os arbustos que dava para umaalameda ampla e relvada. No fim desta, por uma abertura entreas rvores e o matagal, via-se o brilho do mar e a ponta doilhu da broch.Eu ia a olhar para aquilo e no para onde punha os ps. Baticom o meu dedo do p, praguejei, tropecei e s no ca porquefui salva por uma mo forte que me agarrou acima do cotovelo. - Magoou-se? - Ele segurou-me enquanto eu permanecia dep, apoiada s numa perna, para massajar o dedo. - Sim. J passou. Obrigada. - Ento, ele largou-me e euolhei de relance para o cho. - Olhe, veja isto! Bem enfiada na erva, como se estivesse a dormir num sofverde, estava uma figura nua. Talvez tivesse um metro e vintede altura: uma rapariga delicadamente esculpida. Uma raparigade mrmore que j fora branca, mas que agora estava raiada deverde do musgo, olhos cegos em alvo. De certa forma, via-seque os olhos estavam toldados de lgrimas. - Quem ela? - perguntei. - Acho que deve ser a figura de Eco. - Parou para afastara erva e os fetos. - Estava ali. Consegue ver o plinto? O carotio Fergus trouxe-as de Itlia. Tinha muito orgulho nelas. Defacto, eu acho que elas so bastante boas. - Gosto muito de Eco. Voc disse: elas. H mais? - Devia haver outra em frente a esta. Sim, aqui est. Empurrou para o lado uns ramos emaranhados, descobrindoum bebedouro de pedra semicheio com gua escura das chuvas. Umrapaz de mrmore, um jovem, ajoelhava-se sobre a gua, olhandofixamente para baixo. - Narciso? - Julgo que sim - disse ele. - No me lembro. H mais nofim desta alameda. Mas as rvores crescem de tal forma que malse conseguem ver. Neil virou-se e ficou a olhar para trs, para a casa. Coma luminosidade que estava, via-se claramente a deteriorao. Algo no seu rosto fez-me dizer-lhe em voz baixa: - Mas a beleza desaparece, a beleza parte, Por muitorara, rara que seja. - De quem isso? - de Walter De la Mare. Deus sabe, aqui h beleza e emabundncia, sem nada do que o homem construiu. Ele estava silencioso, continuando a olhar para a casa.Finalmente, acabou por murmurar, como se falasse com os seusbotes: - Ainda bem que voltei. - Depois, mais animado, disse-me:- Talvez quem comprar a casa a arranje de novo.- Vai mesmo vend-la? - Que outra coisa hei-de eu fazer? No posso viver aqui. - Bom, para casa de frias fica um pouco longe de Sydney. - No, Sydney no. J era para lhe ter dito. Vou paraCambridge no prximo perodo. Vou viver para o EmmanuelColiege. - Ora, parabns. Deve estar ansioso. - Claro. E agora mais do que nunca. No explicou o que queria dizer com aquilo, mas continuouimediatamente a falar-me daquela nova colocao comoprofessor, e por momentos conversmos sobre Cambridge, oslugares e as pessoas que ambos conhecamos. Iria comear porviver na faculdade, mas afirmou que gostaria de arranjar umacasa, de preferncia fora da cidade. Isto trouxe-nos de volta ao assunto da casa que elerealmente possua. Parecia que, apesar de Taigh na Tuirformalmente ainda no ter sido posta venda, j haviainteressados. Um agente de Londres, aparentemente actuando emnome de algum ansioso por possuir uma propriedade numa ilha,fizera uma boa oferta mesmo sem ver, e os advogados de Neiltinham-no aconselhado vivamente a aceit-la. Neil seguira oconselho e j houvera uma troca de missivas, que, pelo quepercebi, na Esccia eram vinculativas; serviam de contrato depromessa de compra e venda. - Vincula-me a mim - disse Neil -, pois o comprador,depois de ver a propriedade, pode ainda retirar a oferta. - Ento ainda h uma possibilidade de ficar com ela? Neil abanou a cabea: - Na realidade, no. Mesmo se eu no tivesse um empregoque me obriga a ficar no outro lado do pas, este stio nopoderia fornecer-me meios de sustento. Originalmente, afamlia possuia quatro quintas, mas j foram todas vendidas. -Encolheu os ombros num gesto de pesar resignado. - Mas mesmoque a propriedade ainda estivesse intacta, hoje em dia mal sepode subsistir com a lavoura, e muito menos eu. Vamos? Quando alcanou o promontrio, parou por instantes paraolhar o ilhu. As gaivotas circulavam sobre ele, e o barulhoera incessante. Ouvia-se tambm algo diferente, e ali entre asgaivotas que voavam em crculos, como um avio de caa entreavies comerciais, um falco-peregrino voava a grandevelocidade. - Se o meu irmo conseguir c chegar - disse eu -, possolev-lo at ilha para ver as aves? Como se chama a ilhota,mais uma vez? - Eilean na Rom, que significa "Ilha das Focas". Elas vm costa para terem as crias. Pode ir l, com certeza, mastenha muito cuidado com as mars. A travessia s seguradurante mais ou menos duas horas durante a mar baixa. Dequalquer forma, no precisa da minha autorizao para ir atl. No h nenhuma lei sobre a invaso de propriedade alheiana Esccia. - Nem mesmo em sua casa? - Isso foi um prazer. - Ele sorriu. - Alis, toda a suavisita foi um prazer para mim. Gostaria de a prolongar,convidando-a parajantar, mas... - Um gesto acabou a frase porele: a casa vazia, a cozinha abandonada. - Muito bem engendrado - comentei eu num tom elogioso. -Mas no estar a arriscar-se? Bem, quero dizer, eu sou umaprofessora universitria. O que que o leva a pensar quecozinho to bem como jogo com as palavras? - O facto de ter vindo at Moila - disse ele alegremente.- Alm disso, vi ovos, queijo e todo o tipo de coisas noarmrio. Posso depreender que estou convidado, MistressFenemore? - Bem, claro, e por amor de Deus pare de me lembrar aminha profisso. O meu nome Rose. Diga-me s, se no nostivssemos encontrado hoje, o que que estava a pensar fazer?Chupar ovos de gaivotas? - Voltar outra vez Baa das Lontras e pedir abrigo. Quemais podia eu fazer? - Tendo em conta que me disse ter comprado provises emOban e que o seu barco deve estar a abarrotar de latas e atde garrafas... - Garrafas! A est uma boa lembrana. Vamos buscar agoraumas quantas... E capaz de ter razo acerca dos mantimentos.Janta comigo amanh, se faz favor? - Em sua casa? Luzes acesas, a chamin a deitar fumo?Esqueceu-se do seu plano, Mr. Parsons? - E que esqueci mesmo. - A sua voz soou subitamenteirritada.- Est bem, vamos adiar isso para daqui a um dia ou dois. Masagora vou acompanh-la a casa e no tente dissuadir-me. Estouesfomeado. E, por amor de Deus, trate-me por Neil. - Est bem. - Era extraordinrio, mas de repenteparecamos ter uma relao completamente diferente. - Estbem, eu dou-lhe de comer. Mas s se for buscar as taisgarrafas e depressa. Tambm estou esfomeada. - Tinto ou branco? E quer gin ou xerez? - Estava portada casa dos barcos, tirando uma chave do bolso. - No,esquea, levo a caixa toda. E prometo ajudar a lavar a loua.CincoSBADO de manh, mais outro dia bonito e fresco; to bonitoque decidi conceder a mim mesma um feriado na minha prosa eir, logo a seguir ao pequeno-almoo, buscar os mantimentos deque precisava para o fim-de-semana. Mrs. McDougall prometeraguardar-me leite e po, que tinham chegado no barco da manh. Com o cu cheio de cotovias, e as bermas da estradaapinhadas de dedaleiras e rosas-bravas, os estranhosacontecimentos de quarta-feira noite pareciam distantes.Enquanto caminhava, ocupei-me a fazer planos para o jantar desegunda-feira, dia em que esperava j ter c o meu irmo.Tinha convidado Neil para jantar connosco. Ao chegar perto da povoao, vi duas raparigas sentadasno parapeito da pequena ponte. Uma delas acenou-me, e percebique eram Megan Lloyd e Ann Tracy, as minhas duas alunas quetinham planeado ir de frias at ali. Ann, a amiga de Megan, era o total oposto da raparigagalesa, que era morena e viva. Era de Norfolk, alta e bonita,com o cabelo de um louro carregado caindo em caracis sobre osombros. O seu rosto oval, rosado e com olhos azuis, pareciaenganadoramente meigo. Na realidade, eu sabia que ela era umarapariga inflexvel, bastante mais interessada nas polticasestudantis do que seria desejvel para o seu trabalhoacadmico. Depois de nos termos cumprimentado, disseram-me quetinham estado uns dias numa penso, com dormida epequeno-almoo, em Muil e que haviam acabado de chegar a Moilae se tinham hospedado em casa de Mrs. McDougall. - Ela disse-nos onde ficava a sua casa. Estvamos aplanear visit-la hoje - disse Ann. Megan interps rapidamente: - Soubemos que estava sozinha. Mrs. McDougall contou-noso que se passou com o seu irmo. Lamentamo