marx & engels (grandes cientistas sociais)

1
6/2/2018 Whoops-DiscoverSharePresent-SLIDEPDF.COM http://slidepdf.com/reader/full/marx-engels-grandes-cientistas-sociais 1/1

Upload: gutemberg-junior

Post on 16-Oct-2015

164 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • Marx Engek;Organizador: Florestan Fernandes

    HISTORIA

    N.Cham 907.2 M355k 3. ed.-

    Autor: Marx, K arl.l 818-188 Ttulo: K. Marx, F. Engels : historia

    ,,IL0139874 Ac. 22625

  • \^ C ( p c 4 ) 8 VTf 4#

    2 1 , 10 /

    K.MarxEEngtkOrganizador: Florestan Fernandes

    HISTORIA3." edio

    - i 0 ,

    V"'

    : ED tBAL Ci3 J R ;UNIVERSIDADE F L ^ , ^ , ,Biblioteca da Cincias .da Sad t

    1

  • UQUCA CENTKA

    , TEXTO.A < i Consultoria geral

    ------- - ----- >__ piorestan FernandesI K) (n I ' I iCoordenao editorial

    , t f . Carolina de A. Boschi

    sTTraduo

    'lorestan Fernandes, Viktor von Ehrenreich, Flvio Ren Kothe, Rgis Barbosa e Mrio Curvello

    Reviso tcnica da traduo Jos Paulo Netto, Jos A. Giannotti e Viktor von Ehrenreich

    Copidesque N. Nicolai

    ARTECoordenao

    Antnio do Amaral Rocha Arte-final

    Ren Etiene Ardanuy Produo grfica

    Elaine Regina de OliveiraLayout da capaElifas Andreato

    ISBN 85 08 03288 9

    1989

    Todos os direitos reservados pela Editora tica S.A .R. Baro de Iguape, 110 Tel.: PABX 278-9322

    C. Postal 8656 End. Telegrfico Bomlivro S. Paulo

  • INTRODUO(por Florestan Fernandes), 9

    1 A conscincia revolucionria da histria, 171! A histria em processo, 47

    III. 0 curso histrico das civilizaes, 74IV Natureza e significado do materialismo histrico, 111

    1. A CONSCINCIA REVOLUCIONRIA DA HISTRIA1 K. Marx: Trabalho alienado e superao positiva

    da auto-alienao humana (M an u scr ito s econm ico-f i losficos de 1844), 146

    2. K. Marx e F. Engels: A histria dos homens [A ideologia a lem ), 182

    3. K. Marx: A libertao da classe oprimida (M is r ia da Fi losofia ) , 215

    4. K. Marx e F. Engels: Prtica subversiva e conscincia revolucionria ("Mensagem do Comit Central Liga de maro de 1850 ), 220

    5. K. Marx: Teoria e processo histrico da revoluo social (prefcio Contribu io critica da Economia Poltica), 231

    II. A HISTRIA EM PROCESSO1. F. Engels: Os grandes agrupamentos de oposio

    e suas ideologias Lutero e Mnzer (As guerras cam ponesas na A lem an h a), 236

    2. K. Marx: 0 13 de junho de 1849(As lutas de c lasses na Frana de 1848 a 1850), 253

    3. K. Marx: 0 coup de m ain de Lus Bonaparte (0 18 Brum rio de Lus Bonaparte), 280

    4. K. Marx: 0 que a Comuna? [A guerra c iv il na Frana), 293

    5. F. Engels: Manchester[A situao da c lasse operria na Ingla terra ) , 308

    GutiJuniorHighlight

  • III. 0 CURSO HISTRICO DAS CIVILIZAES1. F. Engels: Barbrie e civilizao

    (A origem da famlia , da propriedade privada e doEstado ), 319

    2. K. Marx: A evoluo da propriedade (Fundam entos da c rt ica da Econom ia P o l t ica ), 337

    3. K. Marx e F. Engels: Burgueses e proletrios ( M a n ife s to do Partido C om unista ), 365

    4. K. Marx: Reproduo simples e lei geral daacumulao capitalista [ 0 capital) , 376

    5. K. Marx: Produo progressiva de um excesso relativo de populao ou exrcito industrial de reserva ( 0 capital) , 394

    IV. NATUREZA E SIGNIFICADO DO MATERIALISMO HISTRICO1. F. Engels: 0 materialismo moderno

    (Do socia l ism o utpico ao socia l ism o c ientf ico), 4062. K. Marx: 0 mtodo da economia poltica

    ( Contribu io c rt ica da Economia Poltica), 4093. K. Marx: Auto-avaliao: porte e significado de

    0 cap ita l (prefcio 1.a edio e posfcio 2.a edio de 0 capita l) , 418

    4. K. Marx e F. Engels: Reflexes sobre a explicao materialista da histria,K. Marx: Crtica a Proudhon (carta a P. V. Annenkow),K. Marx: 0 que novo no materialismo histrico

    (Carta a J. Weydemeyer),K. Marx: Sobre a lei do valor (carta a L. Kugelmann),K. Marx: Tecnologia e revoluo industrial (carta a F. Engels), K. Marx: A comparao na investigao histrica

    (carta Redao da Otetschestwennyje Sapiski},K. Marx: A questo irlandesa (carta a S. Meyer e A. Vogt), F. Engels: -A concepo m aterialista da histria

    (cartas a C. Schmidt),F. Engels: Derivao, ao recproca e causao em uma

    perspectiva dialtica (carta a F. Mehring),F Engels: Necessidade e acidente na histria

    (carta a H. Starkenburg),F Engels: Um punhado de gente pode fazer a revoluo?

    (carta a V. I. Zassulitch),

    4314l

    44|1443445

    I447450

    455

    464

    468

    4715. F. Engels: Cincia e ideologia na histria:

    a situao do historiador marxista( L F.euerbach e o f im da F ilosofia c lssica a lem ), 475

  • INTRODUO

    Ftarestan FernandesProfessor de Sociologia da:

    Universidade de So Paulo (1945-69) Columbia University (1965-66)

    Universidade de Toronto (1969-72) Yale University (1977)

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

  • Textos para esta edio extrados de:M arx , K . e E n g e l s , F . Werke. Erganzungsband: Schriften, Manuskriple, Briefe

    bis 1844. Berlim, Dietz Verlag, 1977. t. I.M arx , K. e E n g e l s , F. Werke. Berlim, Dietz Verlag, 1969. v. III.M arx , K. Oeuvres. conomie I. Bibliothque de la Pliade. Paris, Gallimard,

    1965. M arx , K. e E n g e l s , F. Werke. Berlim, Dietz Verlag, 1980. v. IV.M arx , K . Contribuio crtica da Economia Poltica. Trad. e intr. de Florestan

    Fernandes. So Paulo, Ed. Flama, 1946.E n g e l s , F. Die Lage der arbeitenden Klasse in England. 5. ed. Berlim, Dietz

    Verlag, 1972.M a rx , K. Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie (Rohentwurf). 1857--1858. 2. ed. Berlim, Dietz Verlag, 1974.M arx , K . e E n g e l s , F . Manifesto do Partido Comunista. So Paulo, Escriba, s.d.M arx , K. Das Kapital. 21. ed. Berlim, Dietz Verlag, 1975.M arx , K. e E n g e l s , F. Ausgewhlte Werke. Berlim, Dietz Verlag, 7. ed., 1978,

    v. I; 9. ed., 1981, v. II; 8. ed. 1979, v. III; 8. ed., 1979, v. IV; 7. ed., 1979, v. V; 7. ed., 1979, v. VI.

    M arx , K. e E n g e l s , F . Briefe ber "Das Kapital. Berlim, Dietz Verlag, 1954.

  • Em 14 de maro de 1983 completou-se o centenrio do falecimento de Karl Marx. Ele foi um dos principais fundadores das cincias sociais, o maior terico do movimento operrio europeu e do comunismo revolucionrio e uma das grandes figuras histricas dos tempos modernos. Esta antologia constitui uma homenagem a sua memria.

  • Em toda a cincia o difcil o comeo.Karl Marx

    IntroduoUma antologia constitui um instrumento de trabalho do leitor. Ten

    tei, nos limites da minha experincia e do meu conhecimento, desincum- bir-me da tareia de organizador desta antologia tendo em vista esse fim. Imprimi seleo dos textos e elaborao dos comentrios pertinentes um carter didtico, com o fito de colaborar com o leitor na aventura que ele est iniciando. O propsito que me anima, do comeo ao fim, consiste em recapturar, tanto quanto isso possvel em uma obra desta natureza, as idias centrais de K. Marx e F. Engels sobre a cincia da histria. S depois disso que tentei ressaltar, quando me pareceu necessrio, o significado de suas posies e de suas contribuies para o (ou no) desenvolvimento posterior das cincias sociais. Como escreve um dos mais notveis historiadores marxistas:

    O marxismo, que ao m esm o tem po um m todo, um corpo de pensam ento terico e um conjunto de textos considerados por seus seguidores com o uma fonte de autoridade, sempre sofreu com a tendncia dos marxistas de com ear por decidir o que pensam que M arx deveria ter dito e depois procurar a confirm ao nos textos, dos pontos de vista escolhidos 1.

    Evitei cuidadosamente esta tendncia, que, alis, seria contraditria e contraproducente na preparao de uma antologia.

    A universidade e a especializao criaram um processo profundo e persistente de fragmentao do trabalho de investigao em todas as

    1 H o b sb a w m , E. J. Revolucionrios, p , 155.

  • 10

    cincias. Esse processo, porm, mais intenso e devastador nas cincias sociais. O socilogo, o historiador, o antroplogo, o cientista poltico, o psiclogo, mesmo quando marxistas, sucumbem a essa tendncia, r afir- mando-se primeiramente em nome de sua especialidade. Marx e Engels trabalharam numa direo oposta, defendendo uma concepo unitria de cincia e representando a histria como uma cincia de sntese. Se lidei com textos de K. Marx e F. Engels desde o incio da minha carre ira2, nem por isso escapei especializao dominante. como socilogo, portanto, que me lano a esta tarefa. Provavelmente um historiador poderia dar conta do recado com maior elasticidade e preciso. Mesmo a um historiador escrupuloso, no fcil ser completamente justo com dois autores como eles. Um dizia, a propsito de marxistas franceses da dcada de 1870: tudo o que sei que eu no sou um marxista 3. O outro atribua ao companheiro toda a originalidade e papel criativo. No me posso pr sua altura, mas tenho conscincia de que me esforcei para sair da pele do especialista e do adepto do marxismo, para entender melhor a sua concepo de cincia e da cincia da histria. De qualquer modo, em nenhum momento senti-me em contradio com as idias que cheguei a defender no campo da sociologia ou com as esperanas de todos os socialistas, de que as relaes entre cincia e sociedade sero profundamente alteradas no futuro.

    Alm dessas duas consideraes prvias, julgo que devo fazer uma pequena histria desta antologia. O Dr. Jos A rthur Giannotti quem deveria organiz-la. Infelizmente, as circunstncias no lhe permitiram, depois de vrios anos, que se encarregasse dessa obra e o substituto que ele escolheu no se animou a realiz-la. Inicialmente, o projeto se referia somente a K. Marx. Ao ter de encarregar-me da antologia, ampliei o projeto e incorporei F. Engels ao mesmo. Da resultou um volume duplo, contra as normas da coleo Grandes Cientistas Sociais . H

    2 Em 1946, saa a traduo que fiz da Contribuio crtica da Economia Poltica, editada com extensa introduo de minha autoria; em 1954, em um curso sobre Os Problemas da Induo na Sociologia, dado nesse ano a professores de sociologia de escolas normais, dediquei especial ateno a K. Marx (publicado nessa data, o ensaio foi includo em Fundamentos empricos da explicao sociolgica na Sociologia). Nos cursos ou nos livros que tratam de teoria sociolgica, as contribuies de K. Marx sempre foram consideradas em termos de sua importncia na histria da matria; por fim, em A natureza sociolgica da Sociologia, o significado de K. Marx entre os clssicos parte da temtica do captulo 1; o captulo 5 devotado Sociologia e marxismo e o captulo 6 focaliza as questes da transio para o comunismo. Nos cursos, a presena de K. Marx dependia da natureza do assunto. Na ps-graduao da PUC-SP, em 1980 e 1981, dei quatro cursos semestrais sobre o movimento operrio em So Paulo, e a tive oportunidade de empreender um melhor aproveitamento da contribuio terica de K. Marx.3 M arx , K. e E n g e l s , F. Selected correspondence, p. 415 (marxistas como no original).

  • 11

    a considerar, tambm, que a mesma coleo j contm duas obras sobre K. Marx e uma sobre F. Engels4. Fiz o possvel para evitar a repetio de textos. Mas falhei redondamente no que diz respeito coletnea organizada pelo Dr. Octavio Ianni. O mais grave que as repeties atingem diversos textos, dos quais no podia prescindir sem prejuzo da informao e da formao do leitor. O professor Ianni concordou generosamente com o meu alvitre, que, felizmente, no afeta a substncia do seu livro (pois, aqui, os textos so encarados luz da formao, desenvolvimento e significao do materialismo histrico). Alm disso, eu prprio decidi-me a adotar certa liberdade nos comentrios, do que decorre algumas superposies ou repeties, que um critrio mais estrito evitaria. No entanto, achei prefervel introduzir nos comentrios as concluses metodolgicas que eles sugerem. O leitor contar, assim, com a oportunidade d'e um amadurecimento gradativo. Ele poder, a partir dos textos e no das minhas idias (ou das de outro autor), localizar-se diante do materialismo histrico, como ele brotou da produo cientfica de K. Marx e F. Engels. Ao chegar ltima parte, propriamente metodolgica, estar em condies de entender melhor o significado e as implicaes da concepo materialista e dialtica da histria, bem como de avaliar com maior rigor sua importncia na formao e desenvolvimento das cincias sociais.

    *

    A presente coletnea visa proporcionar aos leitores, em particular aos estudantes, um painel das preocupaes e das realizaes de K. Marx e de F. Engels no campo da histria. Nenhum deles desfrutou (ou ostentou) a condio de historiador. No obstante, a orientao que infundiram crtica da especulao filosfica, da dialtica hegeliana, da economia poltica e do socialismo utpico os converteu em fundadores das cincias sociais (ou, como eles prefeririam dizer, da cincia da histria). Ambos compartilham uma situao incontestvel como criadores do conhecimento cientfico nessa esfera do pensamento e cou- be-lhes encarnar, na histria das cincias sociais, os interesses e as aspiraes revolucionrias das classes trabalhadoras. A conexo entre cincia social e revoluo, no sculo XIX, no s encontra neles os representantes mais completos, ntegros e corajosos. Eles a levaram s ltimas conseqncias, resolvendo a equao do que deve ser a investigao cientfica quando esta rompe com os controles conservadores externos ou internos ao pensamento cientfico propriamente dito. Por isso, eles legaram s cincias sociais um modelo de explicao estritamente objetivo e intrinsecamente revolucionrio (revolucionrio no

    4 I a n n i , O., org. Marx (Sociologia); N e t t o ; J. Paulo, orgv Engels (Poltica); S in g e r , P., org. Marx (Economia).

  • 12

    duplo sentido: das conseqncias da cincia independente e da imerso na transformao proletria da sociedade burguesa). espantoso que eles fossem to longe, excludos do mbito acadmico e da cincia oficial ; e tendo pela frente a mais impiedosa perseguio policial e poltica.

    No preciso que se recorde. K. Marx e F. Engels nunca se propuseram a profissionalizao institucionalizada (o primeiro quase foi envolvido por uma quimera dessas, que logo se evaporou). Tendo de dedicar-se histria, economia e sociologia, faziam-no a partir dos vnculos com o movimento operrio e como campees da tica comunista da revoluo social. Viveram os seus papis como fundadores de um modo muito difcil, altrusta e arriscado contando naturalmente com pouco tempo e estmulo para se dedicarem reflexo sobre o mtodo e o objeto daquelas cincias sociais. O que escreveram, a respeito, fizeram-no movidos pela necessidade terica extrema (sob forma polmica; com o intento de dar fundamento lgico sua concepo da histria; ou, ainda, para satisfazer a curiosidade de certos companheiros). Como o resto de sua obra, so escritos que nascem do com bate cotidiano e no so ocasionais ou marginais, como muitos pretendem. De qualquer modo, surpreendente o volume e a qualidade de tais escritos' impostos pela necessidade de auto-realizao e de comunicao. Os que pensam o contrrio nunca se deram ao trabalho de avaliar quantos socilogos, historiadores, economistas, etc., protegidos pelos muros da universidade e da carreira profissional, escreveram algo que valha a pena nesse terreno. Mesmo entre os clssicos, muitas figuras importantes no deixaram nada que ficasse altura de seu prestgio ou dos papis que desempenharam.

    Ambos pensavam que a histria era a verdadeira cincia ou a cincia magna entre as cincias sociais. Se tivessem de contrapor alguma cincia fsica newtoniana, ela no seria a economia poltica (uma emanao ideolgica dos interesses da burguesia), mas a histria. De outro lado, o cerne mesmo de sua concepo de revoluo e da conexo da cincia com o processo revolucionrio induziu-os a ver nas relaes sociais de produo (ou seja, na economia) o ncleo principal da investigao emprica e da elaborao terica. A burguesia fizera da economia poltica a sua trincheira ideolgica e os economistas se tornaram os porta-vozes da defesa racional do status quo. As classes trabalhadoras deveriam comear por a, pois sem uma teoria prpria da acumulao capitalista no poderiam articular uma viso independente de suas tarefas polticas na luta de classes. Nesse vasto esquema inter- pretativo, a sociologia era um ponto de vista inserido na concepo materialista e dialtica da histria (o equivalente do que muitos consideram uma cincia auxiliar e outros um mtodo). Contudo, esse ponto de vista possua extrema importncia, na medida em que as relaes de produo eram vistas como relaes sociais e histricas. Enquanto

  • 13

    a economia poltica dissociava a economia de seu contexto social e poltico; Marx e Engels insistiam no carter concreto dos fatos bsicos da produo e reproduo das formas materiais de existncia social. Concebiam, portanto, o modo de produo capitalista como uma categoria histrica. Opunham-se, assim, tanto reduo abstrata das relaes econmicas a um tipo ideal, quanto pulverizao dos eventos e processos histricos entre vrias cincias histricas especiais. Mesmo depois de recusarem validade incurso dos filsofos nas reas da cincia (da natureza e da histria) e de terem restringido seu campo lgica e crtica dos princpios da explicao cientfica, nunca abandonaram o recurso filosofia. Alm disso, nunca julgaram necessrio que a partilha do objeto se transferisse da cincia da natureza para a cincia do homem: economia, sociedade, superestruturas polticas e ideolgicas, ainda que decompostas em fatores determinantes ou em efeitos essenciais, deviam ser compreendidas em sua relao recproca. No plano da representao, da reconstruo emprica e da explicao caudal, partiam diretamente do concreto, isto , da unidade do diverso e defendiam com coerncia lgica uma viso materialista e dialtica do real, intrinsecamente totalizadora e histrica. possvel separar, no estudo de suas contribuies empricas e tericas, a histria da economia, da sociologia, da psicologia ou da poltica. Contudo, tal separao corre por conta dos analistas, empenhados na avaliao de sua importncia para o desenvolvimento ulterior desta ou daquela disciplina. O mesmo sucede com a relao entre teoria e pr-/ tica. O critrio de verificao da verdade, na pesquisa histrica, estaria na ao. Um conhecimento terico infundado ou incompleto no permitiria introduzir mudanas revolucionrias na sociedade. Sem a dimenso histrica do papel poltico do proletariado na luta de classes, a cincia da histria nem seria possvel no teria razo de ser e de existir e tampouco teria como provar a verdade e a validade de sua teoria (em sentido figurado, careceria de seu laboratrio e dos meios para as experincias cruciais). Ao contrrio dos modelos liberal-natu- ralistas de explicao nas cincias sociais, no estabeleciam um longo intervalo tcnico entre a descoberta da teoria e sua aplicao. Em sua relao ativa com a transformao da sociedade burguesa e a maturao de uma nova poca histrica revolucionria, as classes operrias absorvem rapidamente, em. sua prtica social e poltica, a teoria que explica com objetividade e independncia indomvel a forma de constituio, desenvolvimento e dissoluo dessa sociedade.

    Por pouco que represente, esta coletnea obriga a refletir sobre a natureza e a magnitude cientficas da obra de K. Marx e de F. Engels no campo da histria. Infelizmente, os intelectuais mais precisamente os acadmicos marxistas perderam muito tempo em repeties de uma sistematizao do marxismo que estril para o enri

  • 14

    quecimento daquela obra cientfica. Misturando os papis acadmicos com as tarefas de intelectuais de partido, deixaram margem o que era essencial para a cincia: encetar e multiplicar as investigaes originais, que usassem menos palavras como marxismo, materialismo dialtico, contradio, etc., (ou certas palavras rebarbativas, que no se encontram em M arx), e revelassem mais o verdadeiro esprito da anlise e da explicao causai subjacentes a O capital. K. Marx e F. Engels produziram fora do mundo acadmico e contra a corrente. uma irriso que eles se convertam principalmente em nome do marxismo e da dialtica materialista em meio de ganhar prestgio intelectual e de entreter modas filosficas. Eles no eram apenas escritores engajados e divergentes . Inauguraram um tipo de pesquisa histrica revolucionria, em sua forma e em seu contedo. Saram dos pequenos crculos intelectuais e extremistas para a atividade partidria em sentido amplo, realizando-se intelectual e cientificamente como ativistas de vanguarda do movimento operrio. preciso que tudo isso seja levado em conta, para que se preste maior ateno necessidade, urgente e permanente, de dar continuidade ao seu padro de trabalho cientfico e de aprofundar-se o significado de suas descoberts tericas na cincia a tu a l5.

    A antologia, para coordenar adequadamente os vrios tipos de textos, deveria ter uma diviso abrangente. Em primeiro lugar, acredito que se deve considerar o que especfico na pesquisa histrica de Marx e Engels: histria que se ligava a uma concepo cientfica revolucionria e feita por homens que eram revolucionrios de primeira linha. H, a, uma questo central: no s por que mas com o se constituiu a conscincia revolucionria da histria, que os compeliu a enlaar cincia e comunismo. A revoluo burguesa gerara uma nova gerao de historiadores, capazes de descrever as classes e de entender o significado histrico da luta de classes. Os trabalhos de K. Marx e de F. Engels no s se imbricam nessa orientao investigativa. Eles a suplantam, tanto no terreno emprico quanto no da teoria, porque projetaram a pesquisa histrica sobre a formao e o desenvolvimento da nova classe revolucionria e sobre o presente in flux, buscando na luta de classes uma chave para interpretar o futuro em perspectiva histrica. De um golpe, eles eliminam o arraigamento esttico da histria, que exclua o sujeito-investigador do circuito histrico e convertia o passado em um santurio de arquivos e documentos. Essa nova histria, que psicologia em uma face, economia e sociologia em outra, era to avanada para a sua poca e para a nossa que ainda hoje no

    5 Veja-se, por exemplo, o belo estudo de V il a r , P. Marxisme et histoire dans le dveloppement des sciences humaines. Pour un dbat mthodologique. In: Une Histoire en construction, p. 320-51,

  • 15

    foi inteiramente compreendida e aceita como o grande marco da instituio da histria como cincia. Nem todos os textos essenciais puderam ser incorporados a essa primeira parte. Porm, fiz um esforo para que ela abarcasse pelo menos os mais reveladores entre os textos essenciais.

    Em segundo lugar, vm as contribuies que tm sido usualmente encaradas como a expresso mais acabada do padro de pesquisa histrica e de explicao de acontecimentos e processos histricos no materialismo histrico: os famosos ensaios histricos de K. Marx e F. Engels, que focalizam a histria em processo (e, especialmente, o presente em processo). Esses ensaios so extremamente ricos e inspiradores, e ningum ningum mesmo, em nome de qualquer concepo da especificidade da histria pode negar-lhes categoria de investigao histrica exemplar. Seria impossvel incluir na antologia todas as leituras representativas. Isso lamentvel, porque marca a antologia pelo que falta! Contudo, as leituras escolhidas devem ser apreciadas como um elenco de exemplos ou uma amostragem: os textos que no foram contemplados possuem as mesmas qualidades que aqueles que esto aqui arrolados. Essa diviso tambm importante por outro motivo. No h nos textos ensasmo barato, mas histria verdadeira e de to alto nvel que deve pr em xeque os historiadores profissionais resistentes histria recente e histria do presente. De outro lado, notvel como os fundadores do materialismo histrico, entendidos como fanticos deterministas econmicos (?!), sabem separar a descrio histrica lmpida da algaravia economista vulgar, que nada explica. Eles se detm sobriamente sobre os fatos e os fatores econmicos mais relevantes, no quadro geral, traam a sua importncia na complexa rede de causas e efeitos histricos interdependentes, e cuidam concentradamente dos vrios desdobramentos do tema focalizado.

    Em terceiro lugar, esto as contribuies que permitem pr em equao problemas de investigao comparada ou da dinmica das civilizaes. Em sua maioria, os historiadores profissionais perfilham, como os antroplogos e os socilogos, o ponto de vista de que o teste cientfico da histria est na contribuio que ela d ao estudo das civilizaes. K. Marx e F. Engels se devotaram diretamente investigao dos modos de produo e aos efeitos da alterao ou dissoluo dos grandes modos de produo. Por a penetram no estudo das formas antagnicas de sociedade e, tambm, das civilizaes correspondentes. Eles nunca se identificaram com a histria da civilizao da sua poca, que se revelou incapaz de superar os resduos idealistas (e at mesmo as deformaes especulativas), herdados da filosofia da histria, e quando reagia contra isso no passava do empirismo abstrato, insuficiente para permitir que a investigao histrica interpretasse realisticamente as diversas manifestaes da ideologia na histria. No entanto, s para dar um exemplo, uma obra como O capital contm a chave da inter

  • 16

    pretao histrica da civilizao industrial moderna. preciso, pois, avanar na direo do que significam as suas contribuies cientficas, o que elas revelam sobre as bases econmicas e, por conseguinte, sobre os dinamismos (de reproduo e de transformao ou de dissoluo) das grandes civilizaes. Alm disso, a prpria substncia de sua teoria da histria no os convertia em observadores complacentes, estudassem o passado mais remoto ou os mais recentes conflitos operrios. Ambos procedem crtica da civilizao e, com referncia ao seu mundo histrico, essa crtica torna-se implacvel. Os textos selecionados retm as diversas gamas dessa posio interpretativa e exprimem convenientemente sua importncia para as cincias sociais.

    Em quarto lugar, so consideradas as questes do mtodo. A concepo materialista e dialtica da histria no foi, continua a ser uma novidade. Embora nos comentrios aos textos, por uma orientao didtica necessria, tenha sempre procurado salientar essas questes (tirando-as, portanto, diretamente do prprio texto), julguei indispensvel contar com uma diviso na qual o assunto fosse reconsiderado globalmente. Ainda aqui, nem tudo o que deveria entrar na antologia foi contemplado. A principal excluso refere-se a Anti-Dhring, presente s atravs de uma pequena passagem extrada de Socialismo utpico e cientfico. Mas existem outros escritos que mereciam ser submetidos ao leitor. No obstante, procurei fazer com que as leituras escolhidas cobrissem a maior parte possvel do vasto painel de uma concepo da histria que no ignora os aspectos empricos e lgicos da observao cientfica e lhe infunde, substantivamente, uma dimenso prtica intrnseca. Portanto, tambm no plano do mtodo aparece claramente o que significa aliar-se ativamente ou fazer parte permanentemente do movimento operrio. A burguesia engendrou um esquema liberal de cincia aplicada, pela qual afastou, na aparncia, a cincia da dominao de classe. O proletariado no poderia fazer a mesma coisa, como vtima que era dessa dominao e, mais ainda, como sujeito determinado que era de uma revoluo para acabar com a dominao de classe e com as prprias classes sociais. Por a se desvenda a natureza e o significado da concepo materialista e dialtica da histria, instrumento claro, aberto, direto da conscincia social e da atividade poltica revolucionrias das classes trabalhadoras.

    Resta-me comunicar ao leitor o que penso de um dos autores. Est em voga a depreciao de F. Engels. No compartilho dessa voga. Com freqncia, falo em K. Marx e F. Engels. Com isso, no pretendo confundi-los, metamorfoseando-os em irmos siameses espirituais. Um homem como Marx sabia muito bem o seu valor e no se confundia com ningum, mesmo com o amigo mais ntimo e com o companheiro de quase 40 anos de lutas em comum. Por sua vez, Engels tambm tinha a sua grandeza e uma esfera de autonomia pessoal como pensa

  • 17

    dor inventivo e como ativista poltico6. Basta lembrar uma coisa: A situao da classe operria na Inglaterra em 1844 um clssico nas cincias sociais e foi causa (e no produto) da simpatia de Marx por ele e da descoberta de ambos por seus fortes interesses comuns. As comparaes estreitas e falsas produzem conseqncias fantasiosas. bvio que K. Marx uma figura mpar na histria da filosofia, das cincias sociais e do comunismo. Engels foi o primeiro a proclamar isso e o fez com uma devoo ardente, considerando-o como um gnio do qual ele teve a sorte de partilhar o destino. Contudo, a modstia de F. Engels no deve ser um fator de confuso. Ser o segundo, o companheiro por deciso mtua e o seguidor mais acreditado no s na vida cotidiana, mas na produo cientfica e na atividade poltica de Marx, quer dizer alguma coisa. Alm disso, F. Engels no era s um segundo ou um seguidor : por vrias vezes foi ele quem abriu os caminhos originais das investigaes mais promissoras de K. Marx; a ele cabia, na diviso de trabalho comum, certos assuntos e tarefas; e Marx confiava em seu critrio histrico, cientfico e poltico, a ponto de convert-lo em uma espcie de sparring intelectual (como o demonstra a sua correspondncia de longos anos). Tudo isso quer dizer que ele no era um reflexo da sombra de Marx; ele projetava a sua prpria sombra. No se pode separ-los, principalmente se o assunto for a constituio do materialismo dialtico e seu desenvolvimento. Foi o que fiz, dentro de um senso de equanimidade que se impe pelo respeito mtuo que um tinha pelo outro. Se na soma das leituras cabe a K. Marx um maior nmero de entradas, isso se deve a sua importncia mpar seja na elaborao do materialismo dialtico (o que F. Engels sempre confirmou expressamente), seja na histria das-cincias sociais.

    I. A conscincia revolucionria da histria

    A questo 'que se deve colocar aqui, como a questo essencial, clara: podia existir uma conscincia revolucionria da histria em uma sociedade capitalista que enfrentava os transes da revoluo burguesa (Inglaterra e Frana) ou se debatia com a impotncia da burguesia para soltar sua revoluo (Alem anha), sem surgir uma classe capaz de opor-se, como e enquanto classe, contra a ordem existente e

    8 Ver N e t t o , J. Paulo. Engels, p. 27-50 ; o excelente estudo de J o n e s , G. Sted- man. Retrato de Engels. In: H o b s b a w m , E. J., org. Histria do marxismo, v. 1, p. 377-421 , e N e g t , O . O marxismo e a teoria da revoluo no ltimo Engels. In: H o b s b a w m , E. J., org. Histria do marxismo, v. 2, p. 125-200 (uma anlise que procura resgatar o pensamento terico de F. Engels dos dois enquadramentos subseqentes, o que se realizou atravs da II Internacional e o que se deu graas ao stalinismo).

  • 18

    encetar seu prprio movimento poltico revolucionrio? As abordagens que tratam da evoluo do 'pensamento de Marx e Engels, mesmo de autores reconhecidamente marxistas, pem nfase nos aspectos intelectuais dessa evoluo (a fase hegeliana, o neo-hegelianismo, o humanismo realista feuerbachiano, o contato com o socialismo francs e a economia poltica inglesa, o produto final: a elaborao, por ambos, do materialismo histrico e dialtico, como uma forma intelectual de superao e de sntese). Seria possvel agregar outras coisas a esse complexo e amplo mural. Por exemplo, por que certos historiadores, principalmente franceses e ingleses no incio, no so lembrados entre as influncias formativas 7? Por que essa autntica conspirao simplificadora, que ignora a biografia dinmica dos dois autores, sua sensibilidade diante do movimento histrico real (da Alemanha, da Frana, da Inglaterra, do resto da Europa e do m undo)? Alm disso, por que a importncia crescente da cincia em seu horizonte intelectual e a rpida substituio da filosofia pela cincia em seus critrios de anlise e de interpretao no costumam receber um tratamento cuidadoso? Enfim, por que rela- cion-los com o movimento operrio e socialista dfe uma perspectiva intelectualista, que no leva em conta seu precoce engajamento em uma tica comunista da luta de classes, o qual tornou a concepo materialista e dialtica primordialmente uma necessidade prtica? Sem dvida, a posio radical de ambos oferece um bom ngulo para avaliar o modo rpido, coerente e ntegro segundo o qual eles se confrontaram com a verdade histrica de sua conscincia, do mundo em que viviam e de sua poca. No entanto, a revoluo de que se tornaram porta-vozes e militantes no brotou das formas intelectuais da conscincia ela emergiu do prprio curso da histria. Se o radicalismo de ambos lhes permitia compreender essa revoluo no seu ntimo e incorpor-la a seu modo profundo de ser, de pensar e de agir, eles no a inventaram nem a criaram. Como eles testemunham de maneira eloqente, serviram-na. Serviram-na com todo o ardor e sem desfale- cimentos mesmo e principalmente quando a sorte se mostrou por demais severa e os fatos pareciam contrariar todas as esperanas revolucionrias.

    Nesse caso, bvio, eles refletiam, no plano intelectual, poltico e ideolgico, o que ocorria na sociedade real. S que eles refletiam sem deformaes, de forma direta, consciente e livre. A evoluo psicolgica, intelectual, moral e poltica, que vai dos anos de aprendizagem at o clebre encontro dos dois em Paris (na primavera de 1844), preparou-os e armou-os para fazer face s tarefas tericas e prticas que deveriam realizar, para suplantarem em um pice o extremismo burgus, o humanismo realista e o materialismo filosfico; para fun-

    7 Ver adiante, parte IV, tpico 4, carta reproduzida sob o ttulo O que novo no materialismo histrico.

  • 19

    drem cincia, dialtica materialista e comunismo de uma perspectiva proletria; e para se identificarem, objetiva e subjetivamente o que envolvia tanto a proletarizao de sua conscincia pessoal, quanto a proletarizao da relao de ambos com o mundo com a situao de classe, as lutas sociais e as aspiraes polticas do proletariado. De fato, uma situao histrica revolucionria engendrou formas de conscincia de classe revolucionrias. K. Marx e F. Engels captaram processo em sua manifestao decisiva e mais avanada exatamente porque tiveram perspiccia, coragem e sabedoria suficientes para se alinharem entre os proletrios, se engajarem em suas organizaes de luta de classe e fomentarem o internacionalismo. proletrio. Vista deste ngulo, a cincia social histrica, que nasce em conexo com o plo operrio da luta de classes/e com a revoluo social, no se mascara nem se mistifica. Ela se abre para o cotidiano da vida operria e para as grandes transformaes da sociedade burguesa, como teoria e como prtica, fundadas na fuso da cincia rigorosa e incorruptvel com a ao radicalmente inconformista do proletariado. Por isso, tal cincia , de um lado, dialtica e materialista, e, de outro, comunista (s que esta polarizao explcita o que a economia poltica, por exemplo, no o fazia com o liberalismo, que ficava submerso no ponto de vista cientfico ).

    Se se parte da Contribuio crtica da Filosofia do Direito de Hegel (1844) e se chega ao prefcio da Contribuio crtica da Economia Poltica (1859), passando-se pelo Manifesto do Partido Comunista (1 $48), verifica-se objetivamente como se constitui e se desenvolve essa cincia social histrica, que no um epifenmeno da revoluo burguesa] , mas uma manifestao viva e instrumental da revoluo proletria em gestao histrica.

    "Sem dvida, a arma da crtica no pode substituir a crtica das armas, a fora material no pode ser abatida seno pela fora material, mas a teoria, desde que ela se apodere das massas, tambm se torna uma fora- material. A teoria capaz de se apoderar das massas desde que ela demonstre ad hom inem , e ela demonstra ad hom inem desde que ela se torne radical. Ser radical tomar as coisas pela raiz. Ora, a raiz, para o homem , o prprio hom em . A o anunciar a dissoluo da ordem anterior do m undo, o proletariado no faz mais que ertunciar o segredo de sua prpria existncia , pois ele a dissoluo de fa to dessa ordem ( . . . ) A filosofia encontra no proletariado suas armas m ateriais assim com o o proletariado encontra na filosofia suas armas in telectuais, e desde que o raio do pensamento tenha atingido at a medula esse solo popular virgem se far a em ancipao que converter em hom ens os alem es ( . . . ) A filosofia no pode se realizar sem abolir o proletariado, o proletariado no pode se abolir sem realizar a filosofia 8.

    8 Ver M arx , K. Contribution la critique de la Philosophie du Droit de Hegel. In: Critique du Droit Politique hglien, p. 205 e 211-2.

  • 20

    Ora, atrs do Manifesto do Partido Comunista o que se descobre o inverso. a apropriao do intelectual revolucionrio e do pensamento revolucionrio pelo proletariado. A o servir, o intelectual incorpora-se vanguarda da classe e no fala em nome dela. Ao contrrio, ela quem fala atravs de seus intelectuais de vanguarda, que enunciam, pela tica do comunismo, as condies objetivas da formao e evoluo da classe, as quais so, por sua vez, as condies objetivas da revoluo proletria (isto , da dissoluo da sociedade burguesa e da instaurao de uma sociedade nova). Essa relao aparece de modo mais acabado e perfeito no prefcio da Contribuio crtica da Economia Poltica. Pois o cientista que se coloca fora da ordem estabelecida por causa de sua vinculao com o proletariado tambm fica acima das deformaes que ela impe pesquisa cientfica. O plo proletrio no , portanto, s uma opo, uma via de inspirao, de defesa e de auto-afirmao do intelectual revolucionrio. Ele , por sua prpria existncia, uma garantia de que o curso das coisas no pode ser alterado, e, por sua atividade inquebrantvel, a segurana de que os progressos do capitalismo desembocam em uma crise social insupervel e em uma nova poca histrica. Marx no se exprime nesse prefcio como um filho do Povo . A sua linguagem serena, sinttica e severa. Tal como convinha a algum que enunciava a teoria da revoluo social inerente conscincia de' classe e ao futuro poltico do proletariado, dos quais participava intimamente como militante proletrio, como cientista social e como estrategista do movimento socialista revolucionrio. O que interessa, aqui, que o centro de gravidade de uma posio de classe, por ser a posio de uma classe revolucionria em ascenso histrica, assegurava ao cientista social uma extrema autonomia. Ele no precisava curvar-se s deformaes ideolgicas impostas pela ordem. Tampouco estava sujeito a novas deformaes, porque uma classe social revolucionria no pode travar e vencer seus combates freando a contribuio da cincia ao alargamento e ao aprofundamento de sua conscincia histrica e de sua capacidade de ao coletiva histrica.

    As cinco leituras coligidas nesta parte do livro permitem acompanhar esse enlace entre classe operria, conscincia histrica e revoluo social. Os textos so desiguais, como desigual sua importncia para a histria como cincia. A primeira leitura, extrada dos Manuscritos econmicos e filosficos de 1844, de Karl Marx, fixa o momento de maior tenso entre o antigo compromisso com a filosofia e a plena identificao com os ideais comunistas. O texto escolhido de suma importncia, no obstante, para o estudo da gnese do materialismo histrico. Nele fica evidente que o compasso hegeliano, tanto quanto o feuerba- chiano, no podiam conter o pensamento cientfico com fundamento in re, a anlise dialtica das categorias apanhadas em seu movimento histrico real e as exigncias da incluso do comunismo na perspectiva cien- tfico-filosfica. Q uando se fala do jovem M arx, em funo dos

  • 21

    manuscritos de 1844, o que est em jogo o novo Marx, que se movia no sentido de buscar uma ponte entre o seu recente passado radical e o seu emergente futuro revolucionrio. A segunda leitura, retirada de A ideologia alem, de K. Marx e F. Engels, pe-nos diante de uma obra clssica na histria do marxismo e das cincias sociais. Como permaneceu indita por longos anos (a primeira edio de 1932, em alemo, e de 1933, em russo), tornou-se freqente omitir-se o significado clssico dessa obra. Nela se acha a nica sistematizao que empreenderam em comum da histria como cincia. E nela se encontra, tambm, o esboo de uma teoria geral da sociedade, o ncleo de uma fecunda teoria das classes sociais e da ideologia, focalizadas na perspectiva da revoluo burguesa em processo, e a incluso explcita do comunismo no ponto de vista cientfico. O texto selecionado abrange esses diferentes aspectos e demonstra quo rica de conseqncias foi a passagem da filosofia especulativa para a cincia da histria, no pensamento de Marx e Engels. O terceiro texto foi tirado de Misria da Filosofia, ensaio encarado por muitos como o ponto de partida do materialismo histrico. O trecho foi escolhido, porm, porque resume as idias centrais que K. Marx e F. Engels iriam desenvolver da em diante e contm os alicerces do primeiro captulo do M anifesto do Partido Comunista. Por essa razo, o trecho mereceu ser posto em relevo, como o preldio da obra que converteu Marx e Engels em tericos e estrategistas do movimento socialista revolucionrio. A quarta leitura, uma circular poltica de K. Marx e F. Engels de 1850, apresenta a elaborao terica mais pura e completa da natureza da revoluo proletria, que saiy^dos-vrebros de K. Marx e de F. Engels. Nela surge a idia da -Evoluo parmngrUsP. e a condenao mais completa das prticas burguesas e socialistas reformistas. Alm disso, o texto importante em virtude da anlise histrica de situaes concretas, evidenciando o quanto a prtica subversiva foi decisiva para moldar a conscincia revolucionria e vice-versa. Por fim, a ltima leitura, o clebre prefcio de Contribuio crtica da Economia Poltica, se impunha coletnea. So algumas pginas magistrais, nas quais K. Marx indica o seu percurso intelectual at a redao dessa obra. Em to poucas pginas, ele logrou marcar com clareza, simplicidade e preciso os vrios pontos essenciais do que viria, mais tarde, a ser conhecido como marxismo. O ttulo que atribu a essa leitura, Teoria e processo histrico da revoluo social , constitui uma tentativa de salientar os dois lados da medalha, que Marx logrou articular com rara felicidade. No tive a inteno de ordenar as leituras em um crescendo. Todavia, esta leitura sugere o mximo de conscincia (de classe) histrica clara que uma posio revolucionria pode encerrar. Por isso, defensvel aplicar a tal forma de conscincia histrica-limite a noo de teoria. Ela vira a realidade pelo avesso e a repe como categoria histrica do pensamento e da ao coletiva de uma classe, que deveria confrontar-se com

  • 22

    a mais complexa e prolongada crise revolucionria na histria das civilizaes.

    1) Trabalho alienado e superao positiva da auto-alienao humana(K. Marx)

    O primeiro texto 9 ( O trabalho alienado ) interessa ao objeto desta coletnea por duas razes. A primeira diz respeito ao modelo de explicao que decorre da crtica da economia poltica. Marx deixara claro, no prefcio, o que pretendia.

    Meus resultados foram conseguidos pelos meios de uma anlise totalmente emprica baseada em um estudo crtico consciencioso da economia poltica 10.

    A sua crtica no se propunha nem uma correo de mtodos (de observao, de anlise e de interpretao) nem uma reformulao parcial ou global de teorias. Ela suscitava uma nova forma, ao mesmo tempo histrica e dialtica, de explicao dos fatos da vida real . A seguinte passagem dos manuscritos de 1844 deixa isso bem claro (e tambm coloca em questo o socialismo reform ista):

    No preciso dizer que o proletrio, isto , o homem, que, existindo sem capital e renda, vive puramente do trabalho, e de um trabalho- -abstrato unilateral, considerado pela economia poltica somente como um trabalhador. A economia poltica pode, no obstante, sustentar a proposio de que o proletrio, tal e qual qualquer cavalo, pode obter tanto quanto lhe seja permitido trabalhar. Ela no o considera, quando ele no est trabalhando, como um ser humano; pois deixa essa considerao justia criminal, aos mdicos, religio, s tabelas estatsticas, poltica e ao zelador de asilo. Seja-nos permitido elevarmo-nos acima do nvel da economia poltica e tentarmos responder duas questes com base na exposio anterior, a qual quase foi mantida nos termos dos economistas polticos: 1.) Qual , na evoluo da humanidade, o significado dessa reduo da maior parte da humanidade ao trabalho abstrato? 2.) Quais so os erros cometidos pelos reformadores gradualistas, os quais ou desejam elevar os salrios e desse, modo melhorar a situao da classe trabalhadora, ou encaram a igualdade j i e salrios (como o faz Proudhon) como a meta da revoluo social? f l.

    Essa forma de explicao no envolvia, apenas, como alguns ainda hoje acreditam, uma plena saturao histrica dos conceitos da economia poltica e a eliminao, pela crtica histrico-sociolgica, da perverso que eles contivessem. Ela partia dos dados de fato e das teorias da economia poltica. Mas os subtaetia a um novo tipo de raciocnio cient

    9 A leitura composta de dois textos, debatidos em separado.10 Economic and philosophic manuscripts of 1844, p. 15.11 Idem, p. 29.

  • 23

    fico-filosfico, que repunha o trabalho, o trabalhador, a situao de trabalho, a desumanizao e a objetificao do trabalhador, etc. (bem como a propriedade, o no-trabalhador, o capital, etc.), como totalidade histrico-social concreta, vista simultaneamente em sua aparncia e em sua essncia, em suas origens, manifestao atual e iio vir-a-ser, etc. A segunda razo se refere ao modo de considerar a realidade em seu processo histrico real, como se pode, verificar atravs da descrio do movimento da propriedade . Os conflitos no resolvidos ou contradies so retidos em suas manifestaes e desenvolvimento, como contradies intrnsecas s relaes do homem com a natureza, db homem consigo prprio, com outros homens e com a sociedade, da forma de propriedade, de produo, de consumo, com a conscincia terica e prtica do trabalhador submetido ao trabalho alienado, etc. Ao movimento dialtico do pensamento corresponde um movimento dialtico da realidade. De fato, o primeiro no se apresenta como um reflexo do segundo. As categorias elaboradas dialeticamente retm as contradies em seu processo de manifestao real e de desenvolvimento histrico. Apesar da larga presena de Feuerbach e, principalmente, do predomnio da filosofia sobre a cincia, os manuscritos inauguram uma nova modalidade de aplicao da dialtica na investigao emprica e na. explicao do homem e da sociedade em seu movimento de vir-a-ser histrico. Neles aparecem alguns dos principais elementos que iriam confluir, em seguida, na elaborao das concepes centrais do materialismo histrico e que, portanto, foram ampliados, reformulados ou aperfeioados nas obras posteriores de K. Marx 1S.

    O texto trabalha de uma maneira magistral as limitaes lgicas e cientficas da economia poltica. O pargrafo inicial lmpido e de um vigor exemplar. Ele culmina na proposio, feita no pargrafo subseqente, de que a economia poltica se edifica sobre o fato da propriedade, mas no o explica. O que entra em jogo no s a linguagem empregada pelos economistas, a natureza da descrio e da explicao na economia poltica. Marx argi uma lei econmica que no exprime um curso necessrio de desenvolvimento e o escamoteamento que fica por trs de uma condio primordial fictcia , no obstante explorada como base do raciocnio dedutivo. A isso ele contrape o ponto de partida indutivo, que elabora um fato econmico real, e a-anlise das contradies por meio de conceitos variavelmente saturados de contedo

    12 Alis, I. Mszros faz uma afirmao que merece ser devidamente ponderada por todos os que colocam um fosso entre o jovem Marx e o Marx maduro : longe de exigir revises ou modificaes subseqentes de importncia, os Manuscritos de 1844 anteciparam, adequadamente, o Marx posterior, apreendendo numa unidade sinttica a problemtica de uma reavaliao ampla, centrada na prtica e radical de todas as facetas da experincia humana. (M szros, I. Marx: a teoria da alienao, p. 21. Sobre a crtica da economia poltica, em especial, cf. p. 111-8.)

  • 24

    histrico (anlise que permite passar de um conceito a outro, como ele faz com o par de conceitos trabalho alienado e propriedade privada). Assim, o que a economia poltica esconde, ele explicita e explica, o que lhe fornece razo para afirmar que uma nova formulao conduz soluo de um problema.

    Refletindo-se sobre as vrias investidas que Marx concentra em um texto to curto (algumas de carter ostensivamente reiterativo, como se ele pretendesse assinalar claramente o que se deve fazer para no cair nas armadilhas da economia poltica), o que se depara uma vigorosa condenao do uso precoce e incongruente do mtodo hipottico- -dedutivo em uma cincia que deveria ser (por seu objeto e por sua natureza) histrica e social. Um mtodo que, alm do mais, facilitava a construo arbitrria e negligente de tipos ideais; ignorava as condies reais de manifestao dos fatos, relaes e processos econmicog; e exclua os aspectos dinmicos no-sincrnicos (ou seja, de relaes de sucesso, no tempo histrico contnuo e descontnuo) da rbita da interpretao causai. No conjunto, apesar da precocidade do intento, as crticas possuam inegvel envergadura lgica e um alto teor positivo (pois so balizadas as condies opostas de uma verdadeira nova cincia, em gestao). No que tange contribuio principal de sua crtica, que se refere inadequao de construes tpico-ideais arbitrrias ou con- jeturais na explicao de situaes histrico-sociais concretas ou de processos de seriao histrica, a razo estava literalmente com Marx. Esquemas interpretativos gerais , que s apreendem certos aspectos dinmicos da realidade (abstrados de um suposto estado ideal de equilbrio), no podem servir como modelos lgicos de explicao dos aspectos dinmicos especificamente histricos, envolvidos na formao e transformao da economia (em termos de tempo histrico contnuo ou descontnuo). Mais tarde, K. Marx iria elaborar com maior elegncia e refinamento as solues que defendia. No obstante, nada do que afirmou ou fez posteriormente colidiu com as idias expostas neste texto, que adquire, por isso, uma importncia especial para o conhecimento dos passos percorridos por Marx na criao do materialismo dialtico e do materialismo histrico.

    Quanto segunda razo, este texto, como sucede com A sagrada famlia e, de modo marcante, com A ideologia alem, sintetiza os materiais expostos, relativos ao desenvolvimento da humanidade, a partir da elaborao dialtica das contradies antagnicas intrnsecas aos fatos naturais e sociais da vida humana em sociedade. S que nos Manuscritos de 1844, por se tratar de um projeto e de esboos de ensaios independentes, tal qualidade transparece com maior densidade e nos tons devidos a um estilo viril, que compensa e ameniza o teor lacnico da exposio. Se estamos longe da maestria de a Contribuio crtica da Economia Poltica e O capital, uma coisa certa: Marx j comeara a inverso da dialtica hegeliana, ficando rente ao real (ao dado con-

  • 25

    ereto, de um lado, e descrio histrico-sociolgica, de outro) em suas tentativas to originais de explicao do trabalho alienado e da origem da propriedade privada (o que confere a este texto, alis, uma importncia maior, decorrente do seu significado nas origens da sociologia). Na verdade, os resultados que ele alcanara na esfera da crtica lgica e metodolgica economia poltica testemunham, por si mesmos, os progressos realizados no sentido daquela inverso e implicam um elevado patamar no enlace da investigao crtico-emprica com a elaborao terica. Note-se que, apesar de se tratar de manuscritos, as descries do trabalho alienado, da propriedade privada e das conexes de causa e efeito existentes entre ambos (no plano dinmico-estrutural mais profundo e menos visvel) desvendam aquilo que se poderia designar como a estrutura ntima de uma sociedade de classes dividida por contradies antagnicas irreconciliveis. Alm disso, tambm o motor da histria focalizado luz de tais contradies reais: cabe aos trabalhadores a tarefa poltica de se emanciparem da sociedade do trabalho alienado, da propriedade privada, da objetificao e desumanizao dos homens, etc. J no se est, pois, sob a gide da liberao do proletariado pela filosofia e da liberao da filosofia pelo proletariado (a frmula radical enunciada na Contribuio crtica da Filosofia do Direito em Hegel ). A classe operria a classe revolucionria; ao emancipar-se, ela emancipar, universalmente, todos os seres humanos, oprimidos ou opressores. Em A ideologia alem, Misria da Filosofia e o Manifesto do Partido Comunista, Marx chegar, sozinho ou em colaborao com Engels, a formulaes mais precisas (em termos marxistas) dessas descobertas tericas. Contudo, as duas noes surgem sob a forma assinalada nos manuscritos de Paris, o que patenteia que Marx percorreu uma via prpria na elaborao, verificao e refinamento das grandes idias que esto por trs do seu esquema sociolgico de interpretao da dinmica e do colapso da sociedade burguesa (mutatis mutandis, a mesma afirmao aplica-se evoluo intelectual de Engels nesse perodo).

    O segundo texto 13 ( Propriedade privada e comunismo ), contido nesta leitura, mais famoso por causa das repercusses que teve entre os filsofos marxistas, que se dedicaram ao estudo da alienao, e por seu interesse para o conhecimento da reao de Marx s correntes socialistas da poca. Haveria pouco sentido em sugerir linhas de aproveitamento deste texto que teriam, agora, carter repetitivo. Na verdade, este texto o coroamento do anterior e leva o problema da alienao do trabalho s ltimas conseqncias (para quem o visse da perspectiva adotada por Marx e fosse, como ele, capaz de no abandonar uma questo enquanto ela no estivesse resolvida). O texto tem suscitado apreciaes entusiastas e decepcionadas. Nenhuma dessas atitudes se justifica. De fato, poder-se-ia esperar que Marx completasse o circuito de

    13 Ver nota 9, p. 22.

  • 26

    sua discusso anterior sobre o trabalho alienado e a forma poltica da emancipao do proletariado com a garra marxista". Entretanto, ele s situa o problema da superao (ou transcendncia) positiva da auto- -alienao humana e deixa explcito que a via histrica, sociolgica e psicolgica desse processo se encontra no comunismo. Se tivesse entrosado a nova discusso com a anterior e qualificado o papel ativo do proletariado no curso desse processo, a abordagem seria mais marxista . Ora, a garra de Marx est presente em todo o texto naturalmente do Marx que redigiu os manuscritos, no do Marx que dividiu com Engels a redao do Manifesto do Partido Comunista. . . Ele avanou muito, praticamente em menos de dois anos, e no se poderia exigir que o marxismo sasse pronto e acabado de sua cabea! essencial que se reconhea a congruncia de sua posio. Um dos pontos altos desse texto diz respeito, exatamente, s referncias soluo das antteses tericas como sendo possvel unicamente pelo caminho prtico. Sua soluo no , de modo algum, um problema meramente de conhecimento, mas um problema real de vida, etc. O outro ponto alto tem que ver com o modo de considerar o comunismo. Marx no o toma em termos de correntes de idias e de doutrinas ou escolas, mas como movimento social revolucionrio. Encara-o como um processo histrico-social intrnseco s contradies da sociedade do trabalho alienado e da propriedade privada e que, em sua instaurao prtica, teria de eliminar esses dois fatores, estabelecendo o novo eixo da vida social humana. Esses dois pontos so suficientes para demonstrar o quanto ele, caminhava (rapidamente) na direo do auto-esclarecimento revolucionrio e do domnio das idias-chaves que tornaram possvel o Manifesto do Partido Comunista.

    Dados os objetivos desta antologia, quatro aspectos do texto devem ser postos em relevo. Em primeiro lugar, o modo pelo qual K. Marx coloca a questo fundamental: A superao da auto-alienao segue o mesmo curso que a auto-alienao . O que quer dizer que, para ele, o problema no era meramente terico (ou, tampouco, utpico), e que o comunismo devia ser examinado luz das contradies que opunham entre si propriedade privada e trabalho alienado. Ao contrrio de Proudhon (e outros representantes do socialismo so mencionados), Marx j propunha uma posio objetiva (ou cientfica) diante do problema e da escolha da soluo. Ao referir o que comunismo, ele segue escrupulosamente essa orientao, o que faz tambm na fundamentao das crticas s solues alternativas. Portanto, a conscincia terica e a conscincia prtica so postas em interao a partir das exigncias da situao histrica. Por aqui se salienta uma caracterstica do marxismo e de sua tica revolucionria, que excluiria o subjetivismo, o voluntarismo e o idealismo revolucionrio .

    Em segundo lugar, o texto tambm rico de contribuies relevantes para a formao das cincias sociais. Ressalte-se, de passagem:

  • 27

    ele contm um exemplo marcante de como se deve proceder para apanhar as antteses como contradio (o leitor dever ler e reler, cuidadosamente, todo o pargrafo inicial). O que possui importncia essencial, todavia, so as reflexes pertinentes aos fundamentos sociolgicos da vida em sociedade e natureza da cincia do homem. Uma das tarefas que Marx enfrenta concerne ao movimento revolucionrio (comunismo) intrnseco superao positiva da propriedade privada como auto-alienao e, portanto, como apropriao real da essncia humana pelo e para o homem (conforme o tpico 3 do texto). A sociedade objetificada e desumanizada , no obstante, uma sociedade que no pode eliminar a sua dimenso humana, pois o trabalho alienado e, por conseguinte, a propriedade privada pressupem essa sociedade e as contradies que nela operam e conduzem extino de toda alienao. O que se manifesta, de modo positivo, so os requisitos humanos (e, por isso, sociais, no sentido de M arx) da realizao do comunismo. [Comunismo o enigma da histria resolvido, e ele conhece a si prprio como sendo essa soluo.] Marx escreve trs ou quatro pginas que so antolgicas para qualquer histria bem feita da formao do pensamento sociolgico. No que tange constituio da cincia do homem, duas passagens sobressaem no contexto geral. De um lado, as referncias psicologia so decisivas para entender-se que Marx exigia da cincia do homem que ela no fosse um livro fechado diante do reino da alienao, imperante na sociedade burguesa (alis, essa reflexo feita e qualificada na mesma linha da crtica economia poltica). De outro, Marx se mostra sensvel relao recproca entre o desenvolvimento da sociedade e o desenvolvimento das cincias naturais no mundo moderno e salienta que elas contriburam tanto para a emancipao do homem, quanto para a sua desumanizao. Na mesma linha de abordagem dialtica, que emprega para explicar a alienao, o trabalho alienado e a superao positiva da propriedade privada e da auto- -alienao, Marx situa a relao das cincias naturais com a presente sociedade burguesa e com o processo de vir-a-ser. De sua anlise, conclui que a cincia natural deveria tornar-se a base da cincia humana e que, com o tempo, elas deveriam subordinar-se reciprocamente uma outra existir uma cincia . Qualquer que seja a ressonncia feuer- bachiana de algumas premissas dessa anlise e de suas concluses especialmente as duas ltimas o que parece evidente que, j nessa fase, Marx se dissociava e se distanciava claramente tanto da tradio kantiana, quanto da tradio hegeliana. No obstante, estas duas tradies alimentam vrios expoentes do marxismo moderno, que relutam ou se negam a seguir a flexibilidade inteligente do jovem Marx diante da cincia. . .

    Em terceiro lugar, penso que preciso ressaltar todo o quarto tpico. As cincias sociais ficaram demasiado presas ao modelo da fsica clssica e, em conseqncia, aos processos de circuito fechado (descritos em

  • 28

    termos de um passado longnquo ou recente vivido ou de um presente que tenderia a repetir o passado indefinidamente, com a ordem existente convertida em fim em si e em valor). Ora, a descrio de Marx mergulha maravilhosamente no vir-a-ser, na histria real no antes e no agora, deixando implicado o depois: palavras cruas como em processo e ulterior ganham status fora e alm da filosofia da histria. A superao da propriedade privada aparece como emancipao completa de todos os atributos e sentidos humanos . No h interesse, em nossos dias, em acompanhar passo a passo os vrios momentos da discusso. O que me parece indispensvel chamar a ateno do leitor para o significado dessa contribuio, predominantemente sociolgica na problematizao e nos resultados; e para o modelo de explicao cientfica que ela pressupe, o qual engata passado (remoto e recente), presente em processo e em vir-a-ser, e futuro (imediato ou distante) em potencial. Os cientistas sociais, que voltaram as costas a um tal modelo global de investigao e de explicao, recorrem ao argumento falso da falta de base segura para previso ou, indo mais longe, falam da incredibilidade de qualquer previso. Contudo, evidente que as coisas esto mal postas. O grau de sensibilidade do investigador para os processos in flux, e, em especial, o alargamento do modelo de observao e de explicao at ao ponto de compreender o objeto nos vrios momentos de sua evoluo histrica que decidem o que cai e o que no cai no mbito da investigao cientfica. Se o socialismo e o comunismo, eles prprios dimenses concretas desse objeto e o ponto de partida da histria que nasce das contradies antagnicas da sociedade de classes, forem includos no interior do ponto de vista cientfico, os mais complicados e aparentemente imprevisveis aspectos do vir-a-ser do homem e da sociedade podero ser levantados, observados e explicados objetivamente.

    Em quarto lugar, cumpre chamar a ateno para o tema que alimenta, como uma chama, o ardor inventivo que atravessa todo o texto, de ponta a ponta: o comunismo, que no est presente na organizao da economia, da sociedade e do Estado, mas constitui um movimento social insopitvel, porque nasce e cresce da negao da ordem existente, de sua superao positiva. O que h de belo, nessas pginas, que elas no aparentam ser o que so. A incurso histrica s reponta aqui e ali. No entanto, elas no s compem um documento histrico (para quem queira proceder histria do comunismo), elas exibem a mais refinada e penetrante explicao do porqu das coisas de uma perspectiva histrica. Desdobra-se um amplo leque: constituio e desagregao de uma forma antagnica de sociedade cuja superao se desenha no comunismo. Retomando o conceito de cincia do homem, preferido nesse texto, o que se desvenda, por trs e acima da elaborao filosfica e do apurado travejamento sociolgico, a presena da histria em profundidade. Os historiadores profissionais torcem o nariz diante de tal modo de questionamento de uma civilizao, que no pode atingir

  • 29

    seu clmax sem passar pela ameaa de dissoluo que o acompanha. Uns, o condenariam como pura filosofia da histria ; outros, veriam nele uma primeira verso da macro-sociologia . A histria, rainha das cincias, no poderia transcender pulverizao de seu objeto, tentao da documentao invulnervel e iluso da transparncia, que confunde o visvel, consciente e datvel com o determinante? Ela ter de recuar ou de permanecer muda diante do que histrico na conscincia de classe revolucionria e nas correntes sociais que movimentam, do aqui e do agora para a frente, as grandes transformaes da sociedade e do seu padro de civilizao? O questionamento do comunismo e portanto do capitalismo e do futuro da humanidade empreendido por Marx, suscita assim outro enigma histrico : o da amplitude da histria como cincia de sntese. O leitor no pode esquecer a figura do livro fechado, referido psicologia. Ela serve para todas as cincias do homem. Abrir o livro significa desentranhar o futuro que est contido e oculto no presente, descobrir o comunismo e ter de decifrar o que ele representa em uma sociedade na qual no existe lugar para ele.

    2) A histria dos homens (K. Marx e F. Engels)

    Este texto 14 possui importncia capital nesta coletnea e para a caracterizao da histria como cincia, segundo K. Marx e F. Engels. A complexidade do texto no nasce s do propsito dos dois autores de ver claramente em ns mesmos, conforme as palavras de Marx. Ela provm da forma dialtica imprimida crtica e superao da filosofia neo-hegeliana. O muito que eles tinham de novo, para colocar no lugar das fantasias inocentes e infantis de filsofos que se haviam tornado companheiros de armas ultrapassados, veio luz misturado com um duro e difcil embate de idias, que s poderia ser entendido como necessrio de um ponto de vista alemo. Tratava-se de um acerto de contas, cuja natureza e urgncia se pode compreender mais facilmente a partir da Contribuio crtica da Filosofia do Direito de Hegel. O subdesenvolvimento, a preservao do regime estamental sob o crescimento do capitalismo e o desenvolvimento das classes sociais, o despotismo prussiano, a fora da aristocracia e a debilidade da burguesia, a intolerncia poltica e a brutalidade da represso policial, e outros fatos que no vem ao caso evocar aqui, criaram uma situao histrica peculiar. Ns, com efeito, participamos das restauraes dos povos modernos sem participar de suas revolues 15. Dois outros trechos rendem conta da condio do intelectual.

    14 Sbre as razes que levaram redao da obra entre 1845 e 1846, ver os esclarecimentos de K. Marx no prefcio reproduzido na parte I, tpico 5. As dificuldades que os compeliram a desistir de publicar The Germ an ideology so indicadas na nota 1 desse livro, p. 669-70.ir> M a rx , K . Contribution la critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Op. cit., p. 199.

  • 30

    Ns somos, no plano filosfico, contemporneos da atualidade, sem sermos historicamente contemporneos. Em poltica, os alemes tm pensado o que outros povos fizeram. A Alemanha tem sido sua conscincia moral terica I(i.

    Esse estado de atraso, compensado pelo avano do pensamento abstrato e pelas esperanas do fortalecimento do proletariado, encontrava-se no centro das preocupaes revolucionrias de Marx e Engels. Embora isso parea paradoxal, para eles acabava sendo mais fcil entender o verdadeiro significado da luta de classes e do porte mundial do movimento operrio, que para os franceses e ingleses. Eles prprios aludiam a uma capacidade terica herdada pela educao e refinada pela tradio filosfica. Mas notrio que o subdesenvolvimento lana os oprimidos e os desenraizados muito adiante dos padres estabelecidos pelas naes mais desenvolvidas, mesmo no campo do pensamento revolucionrio. O acerto de contas com a ideologia da filosofia alem assumiu, assim, o duplo carter de uma denncia e de uma superao (o que j se esboara em A sagrada fam lia). Porm, a superao foi muito mais longe, pois a relao negativa com a ideologia dos pases dominantes (e, portanto, tambm com as contra-ideologias) estava diretamente envolvida. O ataque conscincia falsa inerente ao idealismo objetivo e subjetivo, em sua forma alem, converteu-se em ataque conscincia falsa em geral, do materialismo contemporneo, do radicalismo burgus e do socialismo utpico e reformista, em suas formas francesas e inglesas. preciso que o leitor acompanhe esse complexo movimento de negao e de superao, para no perder o contedo pela forma ou vice-versa. H, pois, duas leituras simultneas possveis do texto, que no terei como acompanhar e comentar.

    Os trechos selecionados do apenas uma amostra da unidade maior (o primeiro captulo) e dos assuntos que so debatidos. O livro como um todo abrange uma enorme variedade de problemas. Muitos deles deixaram de ter importncia para a filosofia, a cincia ou o socialismo. Os textos escolhidos no so, pois, representativos do livro como um todo mas do primeiro captulo, uma pea forte na- produo conjunta de Marx e Engels. Pelos temas que trata e pela qualidade da contribuio, esse captulo fez com que Marx e Engels figurassem entre os pioneiros mais importantes da ecologia humana, da sociologia do conhecimento e da teoria da histria (ou em palavras mais simples, da cincia da histria). Nele, a fuso entre materialismo e dialtica deixa o terreno da filosofia e se revela como um dos grandes desenvolvimentos das cincias sociais no sculo XIX. Quanto a questes particulares, ele se

    Idem, p. 203 e 205, respectivamente. Adiante, Marx escreve, no mesmo sentido: Assim, a Alemanha se encontrar, um belo dia, ao nvel da decadncia europia, antes de jamais ter estado ao nvel da emancipao europia (idem, p. 207).

  • 31

    tornou clebre pela tcnica de desmascaramento , apontada como tpica do marxismo na anlise ideolgica do pensamento e da conscincia de classe. Alm disso, o captulo, em grande parte, confere ao livro o carter de um clssico das cincias sociais, a despeito de sua publicao tardia. Eis como eles se definiram perante estas cincias em uma passagem riscada dos manuscritos:

    Ns conhecemos somente uma cincia singular,, a cincia da histria. Pode-se encarar a histria de dois ngulos e dividi-la em histria da natureza e em histria dos homens 1T. Os dois ngulos so, entretanto, inseparveis; a histria da natureza, tambm chamada cincia natural, no nos diz respeito aqui; mas ns temos de examinar a histria dos homens, pois quase a totalidade da ideologia reduz-se seja interpretao adulterada dessa histria, seja completa abstrao dela. A ideologia em si mesma um dos aspectos dessa histria 18.

    Essa definio comprova que, no plo revolucionrio da sociedade de classes, a histria aparece como cincia inclusiva e se configura como a cincia dos homens. Embora se possa encarar o marxismo como uma sociologia (como assinalam K. Korsh e outros autores), para Marx e Engels o ponto de vista central, unificador e totalizador o da histria. Contudo, preciso tomar em considerao que, para eles, o histrico intrinsecamente sociolgico, pois deve explicar o lado social do humano e, reciprocamente, o lado humano do social. Isso desloca e inverte a tradio positivista, j que o mtodo seria, implicitamente, a sociologia (e no histria) e a cincia bsica seria, explicitamente, a histria (e no a sociologia).

    Em funo do objeto desta antologia, a questo principal repor- ta-se concepo da histria, que emerge de A ideologia alem (e ela , tambm, a questo principal levantada pelo texto transcrito). O livro constitua uma ruptura em regra e, nesse sentido, era em si mesmo uma manifestao da encruzilhada histrica transposta por Marx e Engels. Seria um erro conceb-lo como obra polmica, de querela entre filsofos. O acerto de contas foi feito com um presente recusado, com um m odo de ser intelectual repelido e com toda uma orgulhosa tradio filosfica, que parecia renovar-se mas se mantinha obstinadamente vazia perante as novas foras sociais e as novas correntes da histria, refugada. A militncia que o livro encerrava era to tensa e carregada, que os editores se retraram ou exigiam modificaes que os autores se recusaram a aceitar. indispensvel restabelecer essa conexo histrica, que foi quebrada e esquecida em virtude da publicao tardia. A repulsa a toda e qualquer forma de conscincia falsa no supunha um extremismo infantil no seio da filosofia. Ela se fundava numa revoluo

    17 O ttulo desta leitura foi tomado desta passagem.18 M a rx , K. e E n g e l s , F . The Germ an ideology. Op. cit., p. 28, nota de rodap.

  • 32

    do entendimento filosfico, cientfico e poltico, que nascia e se alimentava da relao dos dois autores com as convulses das sociedades burguesas mais avanadas da Europa. Eles se propunham ver e viver a histria do outro lado do rio, como protagonistas da luta de classes que haviam tomado partido pelos proletrios. Em conseqncia, sua concepo da histria lanava razes em uma conscincia de classe que no era concilivel com a impregnao ideolgica que adulterava tanto a especulao histrica, quanto o empirismo histrico abstrato, ambos frutos do idealismo e das fantasias idealistas na histria. Esse o ncleo do ataque frontal s falsas concepes da moderna filosofia dos jovens hegelianos, do repdio ideologia de classe mdia conservadora a que eles se apegavam e do impulso ardente no sentido de algo novo e revolucionrio, que levasse a histria a investigar realistica- mente a totalidade do desenvolvimento histrico. O que exigia uma histria na forma de cincia e que inclusse o comunismo no s em seu objeto, mas tambm em seu ponto de vista explicativo.

    Isso queria dizer, de um lado, investigao emprica precisa e rigorosa, anlise dialtica dos fatos e categorias histricas, explicao histrica objetiva e comprovvel de todos os aspectos dos fatos histricos, das formaes sociais e da evoluo humana I9. E tambm queria dizer, de outro lado, que tanto o objeto da histria, quanto o horizonte intelectual da observao histrica tinham de ser revolucionados. Centrar o sujeito-observador no mago da luta de classes, a partir de uma posio proletria, queria dizer, por sua vez, que o comunismo entrava em seu plano de ao e em seu plano de interpretao dos processos histricos in flux. Acabava uma ciso que identificara os proletrios com os outros, aquela parte da humanidade menos humana, que no contava na histria como no contava na sociedade civil, na cultura e no Estado. Todavia, localizar-se na e diante da histria nessa posio pressupunha ver a histria de uma forma proletria, transferir o comunismo do subterrneo da sociedade burguesa para a estrutura e os contedos do horizonte intelectual do historiador. O presente como objeto da investigao histrica sofria uma espantosa modificao. Ele se tornava o centro de tudo, do interesse pelo passado mais ou menos recente ou pelo passado mais ou menos remoto, de uma vinculao crescente dos desdobramentos da histria em processo, na direo do futuro imediato ou do futuro distante, com a busca de leis internas do desenvolvimento histrico e, por fim, da necessidade de converter a histria em cincia, pois s uma cincia poderia criar uma teoria capaz de fazer todas essas ligaes entre presente, passado e futuro, conferindo ao homem o poder da previso. Aparentemente, o roteiro era muito simples: passar de arte a cincia. Na substncia, as

    19 Ver, a propsito, o lcido balano que P. Vilar faz de A ideologia alem , como obra de historiadores ( V i l a r , P. Marx e a Histria. In: H o b sb a w m , E. J.. org. Histria do m arxism o, especialmente p. 112-4).

  • 33

    coisas eram mais complicadas. No s cincia sem deformaes ideolgicas que refletissem uma dominao de classe, mas cincia que incorporasse a si prpria o princpio comunista da auto-emancipao proletria. Portanto, no se tratava de uma cientifizao da histria em moldes positivistas e burgueses, nem de desencavar um historicismo absoluto, prole- tarizado. De repente, a histria foi colocada diante da totalidade do seu objeto, tendo de apanhar suas mltiplas faces e manifestaes, em termos de uma durao histrica que no se limitava e de uma revoluo que eclodia em uma sociedade ps-revolucionria (marcando-se o objeto a partir da Frana e da Inglaterra). As exigncias de explicar o presente em turbilho e de descobrir os requisitos, os rumos e as conseqncias da revoluo proletria guiavam a nova concepo da histria, impondo-lhe que ela prpria chegasse a um modelo integral de cincia, que combinasse teoria e prtica (no a prtica do historiador, mas a da classe operria na transformao revolucionria do m undo). Em suma, a fuso de cincia e comunismo o movimento real que abole o presente estado de coisas a pedra de toque da concepo de histria formulada em A ideologia alem. Ela instigou Marx e Engels a se ultrapassarem, completando sua reviso crtica do materialismo e da dialtica, isto , compeliu-os a inventar um mtodo cientfico novo, que possibilitava a instaurao da cincia da histria .

    Na verdade, A ideologia alem recolhe e sublima a experincia revolucionria concreta, acumulada por Marx e Engels de fins de 1843 em diante 20. O seu engolfamento no movimento revolucionrio passou, ento, da esfera das idias para a esfera da ao prtica. Se, no plano intelectual, evoluem rapidamente da admirao crtica dos grandes representantes do ativismo socialista sem revoluo e do socialismo utpico, no plano da prtica comprovam que, de fato, o proletariado s poderia emancipar-se por meio de uma revoluo 21. A atividade prtica abriu-lhes novas perspectivas de observao direta da realidade e os conduziu a uma conscincia revolucionria mais clara, comprometida e exigente. Eis como Marx se refere forma que tal atividade adquirira, no outono de 1846;

    Publicamos ao mesmo tempo uma srie de folhetos impressos e lito-grafados, nos quais submetamos a uma crtica impiedosa aquela misce-

    20 Ver M e h r in g , F. Carlos M arx, p. 55-7 e caps. III, IV e V. Uma atividade poltica in crescendo envolveu os dois em uma ao de propaganda direta e colocou-os no centro dos principais movimentos socialistas dos emigrados alemes, dos socialistas franceses e ingleses, etc.21 Cf. especialmente as referncias de F. Mehring s reflexes de K. Marx sobre a sublevao dos tecelos silesianos, em 1844, em artigo publicado no Vorwaerts. A aparece a sua definio de revoluo, apresentada no texto transcrito: Toda revoluo cancela a velha sociedade, neste sentido, toda revoluo social. Toda revoluo derroca o Poder antigo e, ao faz-lo, toda revoluo poltica (cf. M e h r in g , F. Op. cit., p. 80-1). _ , w

    ji

  • 34

    lnea de socialismo ou comunismo franco-ingls e de filosofia alem, que formava, naquele momento, a doutrina secreta do grupo, explicando em forma popular que no se tratava de implantar um sistema utpico qualquer, mas de participar, com conscincia prpria disso, do processo histrico de transformao da sociedade que se estava desenvolvendo diante de seus olhos 22.

    Por a se constata como se engatavam conscincia da situao histrica e revoluo. O essencial vinha a ser sair da disperso, da falta de organizao e de impulso, que prevaleciam no movimento socialista e comunista, tirando-o de sua debilidade terica e poltica crnica. Era preciso, sobretudo, desenraizar por completo aquele movimento dos tentculos da sociedade burguesa e, ao mesmo tempo, injetar o comunismo na cincia, para se estabelecer a base de uma produo terica adequada magnitude histrica da revoluo proletria. Assim se delineavam os fundamentos de uma nova cincia, que deveria brotar do solo histrico da revoluo proletria e, simultaneamente, antecipar pela teoria o curso histrico de tal revoluo.

    '-^Slo conjunto, sobressaem trs elementos em interao: situao histrica do proletariado; conscincia de classe revolucionria; e cincia da histria. Ao constituir-se como cincia, a histria tinha de sair de sua pele (o envoltrio burgus), destruir o seu pesado lastro filosfico- -especulativo e empirista-abstrato, armar-se com recursos apropriados pesquisa emprica rigorosa, reconstruo histrica objetiva, e explicao causai de totalidades histricas (isto , totalidades que pressupem ao histrica dos homens e que envolvem processos que se repetem e variam, que parecem uma coisa e so outra, que so parcialmente conscientes e amplamente inconscientes, que se elevam conscincia de forma ilusria e deformada, ou seja, ideolgica, etc.). A conscincia histrica burguesa podia contentar-se com uma histria ao nvel da superfcie, pulverizadora e mistificadora, porque a burguesia como classe s instrumentalizou revolucionariamente a liberdade da existncia das classes e sua prpria hegemonia. A conscincia histrica proletria requer uma histria cientfica, que investigue as relaes reais , a partir das relaes histricas primrias e dos fatores materiais do desenvolvimento histrico, isto , uma histria em profundidade, totalizadora e desmistificadora. O proletariado como classe defronta-se com a tarefa histrica de extinguir a diviso do trabalho social, a dominao de classe, o estranhamento ou a alienao do trabalho, a propriedade privada, o capital e o regime de classes. A sua histria desencava todas as relaes que encadeiam o homem e a sociedade natureza, todas as relaes que ligam a formao e a transformao dos modos de produo constituio e transformao das formaes sociais, da conscincia social, do Estado e das formas ideolgicas correspondentes. Ela pe no centro

    22 Apud M e h r in g . F . Op. cit., p. 129.

  • 35

    das investigaes a sociedade civil, o comrcio e a indstria e encara a sociedade civil como a verdadeira fonte e teatro de toda a histria .

    preciso .que se medite e se pese cuidadosamente essa concepo materialista e dialtica da histria. Ela no era revolucionria, ela e continuar a ser revolucionria. No por causa da circunstncia externa (mas essencial) de que a tenso revolucionria do proletariado com a sociedade burguesa no desapareceu. Mas porque o equacionamento da histria como cincia ainda no saiu da ordem do dia. Em uma avaliao global, os historiadores contam, sem dvida, entre os cientistas sociais que trouxeram a contribuio mais positiva e rica ao conhecimento das sociedades contemporneas. Eles se desvencilharam da especulao histrica (exercitada por vezes em seu nome, por colegas de outras reas que incursionam pelo campo da histria) e no se pode afirmar que tenham se devotado ao culto do moderno empirismo abstrato (monstro sagrado da sociologia sistemtica e da cincia poltica). Todavia, os historiadores ainda no decidiram, de uma vez por todas, se a histria uma cincia ou uma arte. E os que perfilham a primeira opo ainda no determinaram, de uma vez por todas, at onde chegam as fronteiras da histria e sucumbem, com freqncia, neutralidade tica e cincia em si e por si (mesmo que repudiem o naturalismo ou o positivismo como modelo de explicao cientfica). No seria exagerado dizer, de outro lado, que o isolamento acadmico e a insegurana pequeno-burgue- sa facilitaram a condenao prematura da concepo materialista e dialtica da histria. De fato, a pugna, contra M arx uma caracterstica da evoluo de todas as cincias sociais. No obstante, as reflexes e as contribuies de K. Marx e F. Engels sobre a histria como cincia real e positiva permanecem vivas e a tu ais23. Os chamados dilogos com M arx e as supostas superaes do materialismo histrico carecem de sentido, enquanto o ponto de partida proposto em A ideologia alem no for tomado em conta seriamente pelos historiadores (e, naturalmente, por seus colegas em outras reas das cincias sociais).

    fcil prognosticar que esse ponto de partida obsoleto, por ter atrs de si quase um sculo e meio. At onde tal afirmao seria verdadeira? Tome-se como paradigma a seguinte afirmao:

    As premissas das quais ns partimos no so arbitrrias, mas premissas reais, das quais a abstrao somente pode ser feita na imaginao. Elas so os indivduos reais, suas atividades e as condies materiais sob as quais eles vivem, tanto as que eles j encontram estabelecidas, quanto aquelas que so produzidas por sua atividade.

    23 P. Vilar traa um quadro alentador da presena e influncia de K. Marx na cincia social contempornea (cf. nota 5). bvio que isso ainda pouco. O que est em questo o prprio mtodo e a teoria do materialismo histrico: como tirar os cientistas sociais (os historiadores principalmente) de seu retrai- mento diante do materialismo histrico e do que este representa para o desenvolvimento atual dessas cincias (e, inclusive, da histria)?

  • 36

    Uma maneira clara e concisa de expor a exigncia elementar do mtodo cientfico no estudo do homem! Quanto concepo materialista e dialtica da histria, em que ela poderia ter envelhecido? Eis o que eles escrevem:

    Esta concepo da histria depende de nossa habilidade de expor os processos reais da produo, com eando da produo material da prpria vida, e de compreender a form ao social vinculada com e criada por esse m odo de produo (isto , a sociedade civil em seus vrios estgios), com o a base de toda a histria; e em mostr-la em sua ao com o Estado, para explicar todos os produtos tericos e todas as formas de conscincia, religio, filosofia, tica, etc., etc., e traar suas origens e crescim ento a partir de tais bases; por tais meios, naturalmente, o objeto todo pode ser descrito em sua totalidade (e, portanto, tambm, a ao recproca desses vrios objetos um sobre o ou tro).

    A passagem terminante e bem viva!O conjunto do texto sugere o que a histria como cincia, de uma

    perspectiva marxista e engelsiana, impe formalmente ao historiador. Primeiro, uma teoria geral mnima, elaborada pelo prprio historiador (se lhe cabe descrever e explicar a histria considerando as relaes histricas primrias e o curso do desenvolvimento histrico como igualmente importantes na constituio ou manifestao do objeto, ele no pode depender da contribuio do bilogo, do gegrafo, do antroplogo, do psiclogo, do socilogo, etc., para reconstruir a realidade e interpret- -la). Segundo, uma linguagem comum (o que uma conseqncia da condio anterior). Terceiro, uma estratgia de trabalho ativa (no isolar nem sua investigao nem a si^ prprio do fluxo histrico. O objeto da investigao inseparvel da situao histrica que o produz, do mesmo modo que o sujeito-investigador no pode desligar-se de sua atividade primria como sujeito histrico). Esses trs requisitos formais esbarram com vrios tipos de resistncia, a mais importante das quais consiste em defender o carter idiogrfico da histria. Todavia, no h como conciliar esta posio com a idia de que a histria uma cincia (por mais que os neo-kantianos afirmem o contrrio). No obstante, existe uma falcia grosseira na argumentao usual. A concepo materialista e dialtica da histria no impede que o historiador seja objetivo, fundamente empiricamente as suas descries e procure interpretar causal- mente ocorrncias, instituies ou processos histricos que variem especificamente. Quem quiser fazer um teste no precisa mais do que ler os textos coligidos adiante, na segunda e terceira partes desta antologia. No entanto, este texto postula exatamente isso:

    A observao emprica deve, em cada instncia separada, evidenciar empiricamente, e sem qualquer m istificao e especulao, a conexo da estrutura social e poltica com a produo.

    Com referncia famlia, por exemplo:

  • 37

    ela deve, portanto, ser tratada e analisada de acordo com os dados empricos examinados, no conform e o conceito de fam lia, com o costume na Alem anha.

    A cientifizao da histria no implica liquidao do que intrnseco e peculiar ao movimento histrico, nas condies particulares consideradas. Ela visa o inverso, revelar em toda a plenitude e explicar rigorosamente o que varia de modo histrico e especfico. Marx e Engels ficaram, pois, estritamente dentro do campo real da histria . Recus-los como interlocutores, por medo ou averso ao materialismo e dialtica, eqivale a querer que a histria seja uma cincia, mas no tan to . . .

    Dada a importncia que este texto possui para a antologia, julguei necessrio dar prioridade problematizao geral e s suas implicaes. Em conseqncia, foram negligenciados certos temas essenciais (como a conscincia social, a ideologia, classe e poder social, revoluo, etc.), que tornaram o primeiro captulo de A ideologia alem to famoso. Alm disso, os comentrios s apanharam o segundo grupo de excertos de maneira indireta. Os limites de espao no me permitem compensar as falhas da orientao adotada. De qualquer modo, a insero deles na antologia era inevitvel. H um fio condutor histrico em todo o captulo. Quebrado esse fio condutor, perder-se-ia a beleza do texto e ficaria desmontada a correlao de teoria e prtica nos seus aspectos mais conclusivos. O segundo grupo de excertos tambm rico de temas essenciais (as idias da classe dominante, sua generalizao na sociedade e a dominao cultural; a ruptura da hegemonia ideolgica e as idias de uma classe revolucionria, etc.; a histria como um painel ininterrupto de conflitos, provocados pela contradio entre as foras produtivas e as formaes sociais, como esses conflitos explodem numa revoluo social, etc.; o contraste entre a revoluo em uma sociedade de estamentos e de servos e a revoluo em uma sociedade de classes; o que representa para o proletrio a abolio completa de sua existncia e do trabalho, como sua afirmao coletiva conduz ao aniquilamento do _ Estado, etc.). Porm, sua importncia maior est no carter demonstrativo que eles detm. Pois estes excertos comprovam que o historiador, ao desempenhar ativamente os seus papis intelectuais, no se converte nem em propagandista, nem em agitador poltico (um receio muito em voga, que Marx e Engels ironizariam, como tpico do filisteu). Teoria e prtica esto relacionadas como dois plos inseparveis do conhecimento cientfico na histria. Elas no podem ser dissociadas na fase de levantamento e de reconstruo dos fatos histricos, na fase de anlise e de interpretao e, por fim, na fase de exposio. Contudo, a prtica s impe teoria que ela chegue ao fundo das coisas. Ou seja, que as opinies do historiador sejam fruto de longos e conscienciosos estudos, como se exprimiu Marx a respeito de si mesmo.

  • 38

    3) A libertao da classe oprimida

    realmente muito difcil extrair um fexto de Misria da Filosofia. Este livro tem sido encarado como a primeira manifestao mais completa do materialismo histrico, portanto, como o ponto de partida das concepes que Marx e Engels iriam desenvolver e aperfeioar da em diante. Isso verdade, mas em prte, pelo que se pode inferir dos textos anteriores (em especial tomando-se em conta A idelogia- alem e certas passagens de A sagrada fam lia). verdade que Marx escrevera, no prefcio Contribuio crtica da Economia Poltica, que foi nesse livro que exps cientificamente, pela primeira vez, os pon