marina kazumi okumura

Upload: daniel-vargas

Post on 19-Feb-2018

235 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    1/61

    MARINA KAZUMI OKUMURA

    A RESSONNCIA E A REPERCUSSO DA FLECHA NO FILMERAN,

    DE AKIRA KUROSAWA

    CURITIBA

    2007

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    2/61

    MARINA KAZUMI OKUMURA

    A RESSONNCIA E A REPERCUSSO DA FLECHA NO FILMERAN,

    DE AKIRA KUROSAWA

    Monografia apresentada disciplina

    Orientao Monogrfica em Ingls II, comorequisito parcial concluso do curso deLetras, Setor de Cincias Humanas, Letras eArtes, Universidade Federal do Paran.

    Orientadora: Prof. Dra. Luci Collin Lavalle

    CURITIBA

    2007

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    3/61

    ii

    Meus agradecimentos Prof. Luci Collin, pelo carinhoe dedicao na orientao, conselhos e revises;

    Prof. Liana Leo, pela Orientao Monogrfica Ie seu amor pela literatura e por Shakespeare;

    a meus filhos, pelo apoio.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    4/61

    iii

    Aos meus avs e meus pais,pela herana japonesa que recebi.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    5/61

    iv

    SUMRIO

    LISTA DE ILUSTRAES ...........................................................................................v

    RESUMO .......................................................................................................................vi1 INTRODUO........................................................................................................1

    2 SHAKESPEARE NO CINEMA.............................................................................2

    3 O FILME RAN.........................................................................................................4

    3.1 ENREDO.................................................................................................................4

    3.2 GNERO.................................................................................................................5

    4 O MOSAICO DE CITAES .............................................................................6

    4.1 O TEXTO VERBAL...............................................................................................7

    4.2 TEXTOS LITERRIOS.......................................................................................10

    4.3 O TEATRO NOH .................................................................................................12

    4.4 PINTURA .............................................................................................................13

    4.5 CINEMA..........................................................................................................................15

    5 RESSONNCIA E REPERCUSSO DA FLECHA ....................................................16

    6 RAN, O ESPELHO DO HOMEM MODERNO ...........................................................30

    7 CONCLUSO ..................................................................................................................35

    REFERNCIAS ..........................................................................................................37

    ANEXOS ......................................................................................................................41

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    6/61

    v

    LISTA DE ILUSTRAES

    FIGURA 1 CONTOS DE GENJI........................................................................ ..11

    FIGURA 2 - HIDETORA .........................................................................................14

    FIGURA 3 - CAADA.............................................................................................17

    FIGURA 4 - IDEOGRAMA "RAN" ........................................................................ 17

    FIGURA 5 - ANNCIO ..........................................................................................18

    FIGURA 6 - HIDETORA NA JANELA ..................................................................19

    FIGURA 7 - INSIGHT..............................................................................................20

    FIGURA 8 - GUERREIROS.....................................................................................22FIGURA 9 - CENA ILUSTRADA DE CONTOS DE GENJI ................................22

    FIGURA 10 - BIOMBO: A BATALHA DE ICHINOTANI....................................23

    FIGURA 11 - TERCEIRO CASTELO EM CHAMAS ...........................................24

    FIGURA 12 - HIDETORA E O FOGO....................................................................25

    FIGURA 13 - MSCARA AKUJ .........................................................................29

    FIGURA 14 - MSCARA SHIWAJ .....................................................................29

    FIGURA 15 - CENA FINAL DO FILME ................................................................31

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    7/61

    vi

    RESUMO

    Esta pesquisa tem como objeto de anlise a repercusso da imagem da flecha,

    da peaRei Lear, de Shakespeare, no filmeRan, de Akira Kurosawa, tendo como baseos conceitos de repercusso e ressonncia das imagens poticas, de GastnBachelard. Alm disso, h uma discusso dos intertextos que se entrelaam no filme ede suas reverberaes no homem moderno.

    Palavras-chave: Shakespeare no cinema,Ran,de Kurosawa, intertextualidade, homemmoderno.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    8/61

    1

    1 INTRODUO

    O filme Ran (1985), do diretor japons Akira Kurosawa (1910-1998),

    comumente associado pea de Shakespeare, Rei Lear, como sua adaptao no

    cinema ou, conforme JORGENS (1986:1-4) se refere em seu artigo, como uma

    verso samurai do Rei Lear. A afirmativa no incorreta, pois quem assiste ao

    filme, reconhece a grande proximidade com a obra do Bardo. Mas Ran muito mais

    do que uma adaptao literria, uma vez que nele encontramos sintetizado uma

    complexa trama de diversas fontes: cultural, esttica e histrica, na qual Shakespeare

    uma entre diversas referncias.No processo de criao/recriao, um artista no somente rediz ou imita outra

    obra, mas transforma as referncias que tm de forma prpria, criando uma nova obra,

    como confirma MALRAUX (1948:309):

    o mais inocente escultor da alta Idade Mdia, bem como o pintor contemporneo obsedadopela histria, quando inventam um sistema de formas, no o tiram nem da submisso natureza, nem unicamente do prprio sentimento, mas o devem a um conflito com uma outra

    forma de arte. Em Chartres como no Egito, em Florena como na Babilnia, a arte s nasceda vida atravs de uma arte anterior.

    Para sustentar a anlise da imagem da flecha, partimos da idia de

    intertextualidade; assim, vale esclarecer que o objetivo desta pesquisa no o de

    confrontar o filmeRan,de Kurosawa peaRei Lear,de Shakespeare, tendo em vista

    que so obras distintas, que inclusive usam linguagens diferentes, mas de explorar que

    em Ran h um mosaico de citaes (KRISTEVA, 1974:64)

    1

    que encontramos emRan, dialogando com diferentes artes, e privilegiar como objeto de anlise, a imagem

    da flecha, verbalizada por Lear, no incio da pea, no Ato I, Cena I e sua repercusso

    no filme, cuja reiterada presena observamos desde o captulo 1 at o captulo 7, que

    corresponde metade do filme.

    1

    Cf. KRISTEVA: todo texto se constri como mosaico de citaes, todo texto absoro etransformao de um outro texto. Em lugar da noo de intersubjetividade, instala-se a deintertextualidade e a linguagem potica l-se pelo menos como dupla.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    9/61

    2

    2 SHAKESPEARE NO CINEMA

    Apesar da fala proftica de SHAKESPEARE, por Cassius, na peaJulio Csar,

    no Ato III, Cena I: Quantas pocas por vir / Ser esta nossa elevada cena de novo

    encenada/ em estados ainda no nascidos e sotaques ainda desconhecidos2, o pblico

    original de Shakespeare nem imaginaria que sua obra atravessaria o tempo e quatro

    sculos depois, no sculo XX, seria popularizada atravs da indstria cinematogrfica.

    A produo cinematogrfica das peas de Shakespeare tem incio desde o

    surgimento do cinema, no final do sculo XIX e comeo do XX e um fenmeno em

    crescimento, especialmente nas ltimas dcadas, tendo um campo de estudoacademicamente consolidado, com vrias publicaes na rea e realizao de

    congressos e festivais em vrios pases.

    No fim do sculo XIX e incio do sculo XX, as peas teatrais de Shakespeare

    foram filmadas, rudimentarmente, para dar um signo de prestgio nascente forma de

    arte, em preto e branco, mudo e ainda com projees feitas manualmente. Alguns dos

    filmes dessa poca foram resgatados em formato DVD, pela British Film Institute,

    contendo: King John (Britain, 1899), The Tempest (Britain, 1908), A Midsummer

    Night's Dream(USA, 1909), King Lear(Italy, 1910), Twelfth Night(USA, 1910), The

    Merchant of Venice (Italy, 1910), Richard III (Britain, 1911).3Nos anos iniciais da

    industrializao, o cinema era uma forma de entretenimento para a classe trabalhadora,

    pois s freqentavam o teatro aqueles que tinham condies financeiras melhores.

    A partir do desenvolvimento tcnico da stima arte, suas peas tm inspirado

    produes para televiso e cinema. Entre os filmes memorveis, esto os realizadospor grandes diretores e atores como o britnico Laurence Olivier, o norte-americano

    Orson Welles, o italiano Franco Zeffirelli, o japons Akira Kurosawa, o russo Grigori

    2 How many ages hence/ Shall this our lofty scene/ In states unborn and accents yetunknown! traduo retirada da resenha Variaes de Shakespeare, de Daniel Piza, disponvel em:

    acesso em: 6 Mai 2007.3 Informaes adicionais sobre o DVD Silent Shakespeare (2004) est disponvel no site. Acesso em 13 Jun. 2007

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    10/61

    3

    Kozintsev e outros nomes como Peter Brook, Roman Polanski, Michael Almereyda,

    Kenneth Branagh.4

    Entre os estudiosos de Shakespeare e cinema, JORGENS (1991) classifica as

    peas teatrais em trs modos de adaptao: Teatral, Realista e Flmico. De uma

    maneira resumida, o modo Teatral (ou transparente) aquele que transcreve uma

    representao teatral para um filme, como o caso do Rei Lear, produzido para

    televiso em 1984,com Laurence Olivier; o modo Realista mostra atravs da cmera,

    o realismo fotogrfico das paisagens, figurino e cenrios, tendo como exemplo o

    estilo documental do Lear (1970), de Peter Brook; e o Flmico (ou film poet), usa o

    poder do filme para contar uma histria, superando as formas do mundo exterior -como espao, tempo, casualidade e acomodando os eventos s formas do mundo

    interior como ateno, memria, imaginao e emoo, seria o modo mais fiel ao

    efeito dos versos dramticos de Shakespeare, sendoRan, classificado nesta categoria.

    Paralelamente, JORGENS (1991:12-13) aponta ainda trs tipos de

    caracterizao, de acordo com o tratamento dado distncia entre o filme e o texto

    original: Apresentao, Interpretao e Adaptao. Na Apresentao, a relao com ooriginal com o mnimo de alterao e distoro possvel, a realizao da pea, no

    uma srie de notas de rodap ou um ensaio crtico e cita como exemplo, a cena final

    em Hamlet (1969), de Tony Richardson, a disputa entre Cassius e Brutus, em Julius

    Ceasar (1953), de Joseph Mankiewvicz, entre outros. O modo Interpretao requer

    formatar e representar a pea de acordo com um ponto de vista e na Adaptao, os

    textos de Shakespeare servem como referncia para os cineastas. Kurosawa5

    considerado por MCDONALD (2001)6 em sua anlise sobre adaptaes flmicas,

    como de estilo audacioso e experimental.

    4 A lista de filmes referente a Shakespeare no cinema ou filmes de Shakespeare extensa. No site da Enciclopdia Britnica podemos encontrar um registro atualizado da filmografia:

    http://search.eb.com/shakespeare/browse?browseId=248014#248074.tocacesso em 14 Jun 2007.5A partir daqui, Akira Kurosawa ser referido apenas como Kurosawa.6InDINIZ (2005:74).

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    11/61

    4

    3 O FILME RAN

    3.1 ENREDO

    A tragdia Rei Lear, de Shakespeare acontece em poca medieval remota e

    Kurosawa a transps para o Japo feudal do sculo XVI, conhecida como Sengoku

    Jidai (Era do Pas em Guerra), marcada pela ausncia de um governo central e

    disputas de poder entre cls rivais, traies e assassinatos. Essa mesma poca

    retratada em trs outros filmes alm de Ran: Trono Manchado de Sangue, Os SeteSamurais e Floresta Escondida.

    Hidetora, patriarca do cl Ichimonji, aos 70 anos, decide dividir o reino entre os

    trs filhos: Tar, Jir e Sabur. Tar, o mais velho, seguindo a tradio do patriarcado

    japons, torna-se o lder do cl e recebe o Primeiro Castelo, centro do poder. Jir e

    Sabur recebem, respectivamente, o Segundo e o Terceiro Castelo. Hidetora retm

    para si o ttulo de Grande Senhor para permanecer com os privilgios, sem se

    responsabilizar com os deveres do cargo. Nos planos de Hidetora, Jiro e Saburodariam apoio a Taro e os trs, unidos, manteriam as conquistas da famlia, utilizando

    como exemplo, a parbola da flecha, de Motonari Mori, senhor feudal japons que

    viveu entre 1497 1571. Sabur contraria a idia do seu pai, critica seu plano,

    lembrando-o da maneira como conquistou seus domnios, chamando-o de velho tolo

    ao esperar que seus filhos mantenham a lealdade a ele. Hidetora bane Sabur,

    entendendo essa reao como traio e tambm Tango, servo fiel que tenta persuadi-lo

    do erro que est cometendo.

    Porm, Hidetora segue adiante em sua deciso e o que ele vivencia a

    destruio de sua famlia, a derrocada do poder e a violncia descontrolada que atinge

    a todos, bons e maus. Ao presenciar o massacre que provocou, Hidetora enlouquece e

    vaga pelas runas como um fantasma, acompanhado de Tango e Kiyoami, o Bobo.

    Manipulando os dois irmos, est Kaede, esposa de Tar e depois de sua morte,

    amante de Jir. Kaede a vingana personificada, cuja famlia foi derrotada edestruda por Hidetora, legitimando a posse de seus territrios, casando-a com seu

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    12/61

    5

    filho mais velho. Da mesma maneira, Jir casado com Sue, cuja famlia foi destruda

    por Hidetora, seu castelo queimado e seu irmo, Tsurumaki, cegado. Diferente de

    Kaede, Sue dedica-se ao budismo e perdoa seu sogro das atrocidades cometidas,

    atitude que Hidetora no consegue entender. Sabur e Hidetora reconciliam-se em

    vida, mas ambos morrem quando faziam planos para desfrutar de uma convivncia

    pacfica.

    Assim como Shakespeare, Kurosawa elabora enquanto temtica do filme, a

    disputa pelo poder, a vingana, as paixes, a relao familiar, todos, temas atemporais

    porque espelham a natureza humana.

    3.2 GNERO

    Quanto ao gnero, Ran um filme jidaigeki, um gnero eminentemente

    japons, caracterizado com um termo temporal, poisjidaisignifica tempo, era ou

    perodo, sem ser eco a filme histrico. O perodo histrico utilizado com um

    propsito dramtico e normalmente focalizado na Era Tokugawa ou na Era Edo,

    aproximadamente do incio dos anos 1600 a meados de 1800. O gnero jidaigeki comparado ao gnero westernamericano, ambos ambientados em importante perodo

    histrico nacional do Japo e Estados Unidos, onde samuraie cowboyrepresentam um

    papel essencial na narrativa.

    Entre os onze filmes jidaigeki realizados por Kurosawa, quatro so de roteiros

    originais: Os Sete Samurais, A Floresta Escondida, Guarda-Costas e Sombra do

    Samurai; um adaptao de uma pea de kabuki: Os Homens que Pisaram na Cauda

    do Tigre; trs so adaptaes de obras literrias japonesas modernas: Rashomon,

    Sanjuro e Barba Ruiva; e trs so adaptaes de obras ocidentais: Trono de Sangue,

    Ral e Ran.

    Kurosawa inovou o gnerojidaigeki, transportando os elementos populares do

    gnero para uma composio dramaticamente diferente para colocar em primeiro

    plano suas convenes genricas (YOSHIMOTO, 2000:235). Atravs desse tipo de

    subverso, o diretor mantm uma relao metacrtica com esse gnero

    popular(IDEM). Uma das suas inovaes a posta em cena realstica de um duelo de

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    13/61

    6

    espadas ao invs da dana kabukiestilizada utilizada nos filmes convencionais. Assim

    como os diretores de cinema da dcada de 30, Yamanaka Sadao e Itami Mansaku, por

    quem Kurosawa nutria grande admirao, em seus filmes jidaigeki, os samurais no

    so apresentados como figuras hericas, mas tomam uma viso satrica do Bushid

    (cdigo de honra e conduta do samurai), focalizando os marginais sociais e preferindo

    humor ironia como um recurso narrativo. Apesar de no representar com fidelidade

    os fatos histricos, Kurosawa criou um elevado senso de realismo, sendo rigoroso nos

    detalhes ignorados pelos filmes jidaigeki convencional, como: cenrios e adereos,

    figurino e estilo de atuao, retratando a poca com minuciosa preciso.

    4 O MOSAICO DE CITAES

    Como mencionamos anteriormente, Ran dialoga com uma srie de intertextos

    ou mosaico de citaes que formam a imagem do filme. Eles so compostos por

    texto verbal ou dramtico (a pea Rei Lear, de Shakespeare), textos literrios

    tradicionais japoneses (O Conto de Heikee O Conto de Genji), textos extra-literrios

    (pintura, teatro e cinema).

    Segundo KUROSAWA (1983), os filmes so criados de muitos elementos:

    literrios, teatrais, pictrico e musical. Mas h algo no filme que puramente cinema

    (...) que pode ser chamado de beleza cinematogrfica.7. Para ilustrar o que

    cinema?, contou uma anedota sobre uma redao escrita pelo neto do escritor Shiga

    Naoya, com o ttulo Meu Cachorro: Meu cachorro parece um urso; tambm se

    parece a texugo, tambm se parece a uma raposa...e seguiu enumerando ascaractersticas, comparando cada uma delas com outro animal, numa longa lista do

    reino animal. No entanto, a redao finalizou com, Mas j que ele um cachorro, ele

    se parece mais a um cachorro. Fazendo um paralelo com a anedota, Kurosawa

    explicou: O cinema se parece com muitas outras artes. Se o cinema tem muitas

    7A partir daqui as citaes em ingls sero traduzidas por ns e o texto original aparecernas notas de rodap. Films are made up of many elements: literary, theatrical, painterly, and musical.

    But there is something in film that is purely cinematic.()There is something that might be calledcinematic beauty. Disponvel em: acesso em: 14 Jun 2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    14/61

    7

    caractersticas literrias, tambm tem qualidades teatrais, o lado filosfico, atributos de

    pintura e escultura e elementos musicais. Mas cinema , em ltima anlise, cinema.8

    Ou, conforme suas prprias palavras, citadas por RICHIE: a fora do cinema deriva

    do efeito multiplicador de som e imagem visual trazidas simultaneamente.9

    4.1 TEXTO VERBAL

    Shakespeare, talvez ele prprio um dos mais inventivose prolficos entre os adaptadores literrios e teatrais,tornou-se uma complexa rede de prticas discursivas,culturais e histricas, nem todas necessariamente

    literrias.(FISHLIN & FORTIER)

    10

    Rei Lear, de Shakespeare, transcende as barreiras do tempo e do espao, por ser

    um drama potico repleto de imagens e tambm por tratar da quintessncia da natureza

    do homem, do que significa ser um ser humano, do relacionamento entre os seres

    humanos, de questes sobre a justia, dever social e a compaixo pelo sofrimento

    individual.

    Na criao dessa pea, considerada por muitos a obra prima de Shakespeare,HELIODORA (In SHAKESPEARE, 1998:5) aponta um mosaico de citaes. Segundo

    a autora, o enredo no inveno de Shakespeare: J no sculo XII, Geoffrey of

    Montmouth contava a histria de Lear como sendo parte da histria da Inglaterra. Mas

    antes disso, Lyr ou Ler j era uma figura presente na lenda. Autores como Holinshed,

    Monmouth, Spencer e John OHiggins produziram textos sobre a histria do rei, todos

    usados por Shakespeare. Estes textos tinham em comum o final feliz para a histria,

    8 What is cinema? The answer to this question is no easy matter. Long ago the Japanesenovelist Shiga Naoya presented an essay written by his grandchild as one of the most remarkable prosepieces of his time. He had it published in a literary magazine. It was entitled My Dog, and ran asfollows: My dog resembles a bear; he also resembles a badger; he also resembles a fox It proceedto enumerate the dogs special characteristics, comparing each one to yet another animal, developinginto a full list of the animal kingdom. However, the essay closed with, But since hes a dog, he mostresembles a dog. I remember bursting out laughing when I read this essay, but it makes a seriouspoint. Cinema resembles so many other arts. If cinema has very literary characteristics, it also hastheatrical qualities, a philosophical side, attributes of painting and sculpture and musicial elements.

    But cinema is, in the final analysis,cinema.9RICHIE Akira Kurosawa: Obiturary.10In: RESENDE (1996:183)

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    15/61

    8

    com Lear voltando ao trono e Cordlia como sua herdeira. Mas foi Shakespeare que

    percebeu a potencialidade trgica da histria ao ler Gorboduc, de Norton Sackville,

    tragdia senequiana inglesa, na qual tudo acontece porque um rei divide seu reino

    ainda em vida entre dois filhos. (HELIODORA In SHAKESPEARE, 1998:5).

    De maneira semelhante, como relata PEARY (1986), a parbola das flechas de

    Motonari Mori lendria no Japo e Kurosawa decidiu focar Ran na conhecida

    histria ao perceber a potencialidade trgica: Quando eu li que trs flechas juntas

    eram invencveis, eu comecei a duvidar e foi quando comecei a pensar: a casa era

    prspera e os filhos eram corajosos. O que seria se esse homem fascinante tivesse

    filhos maus?11

    precisamente esse processo de criao, ou criao potica, que Gastn

    Bachelard, filsofo e poeta francs, estuda em sua obra A Potica do Espao. O

    mtodo de investigao utilizado a fenomenologia, da qual mantm a idia de

    estudar as imagens poticas por si mesmas, no momento em que emergem na

    conscincia, bem como a repercusso dessa imagem no sujeito-ouvinte-leitor. Para

    isso, BACHELARD (1993:7)faz uso dos conceitos de repercusso e ressonncia:

    Na ressonncia ouvimos o poema; na repercusso o falamos, ele nosso. A repercusso operauma inverso do ser. Parece que o ser do poeta o nosso ser. A multiplicidade dasressonncias sai ento da unidade de ser da repercusso. (...) A exuberncia e a profundidadede um poema so sempre fenmenos do par ressonncia-repercusso.

    A conseqncia desse intenso envolvimento do leitor com o poema a

    ocorrncia de multiplicidade de ressonncias. A repercusso provoca um verdadeiro

    despertar da criao potica na alma do leitor. Esse criador, ou poeta, tem como

    ofcio a tarefa subalterna de associar imagens. E prope considerar a imaginao

    como uma potncia maior da natureza humana e de que a imaginao a faculdade

    de produzir imagens. (BACHELARD, 1993:7,11,18)

    Kurosawa, em uma entrevista concedida a jovens aspirantes a cineasta, em

    1975, revelou a fonte de sua imaginao como roteirista dizendo que o poder da

    11

    When I read that three arrows together are invincible, I started doubting, and that's when Istarted thinking: the house was prosperous and the sons were courageous. What if this fascinating manhad bad sons?

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    16/61

    9

    memria d origem ao poder da imaginao. Desde jovem tinha o hbito de anotar

    suas impresses de leitura e quando escrevia um roteiro, eram essas anotaes que

    relia (KUROSAWA, 1983). Ele aconselhou os jovens a lerem e a estudarem o que

    consideram ser os grandes romances e dramas do mundo e perguntar:

    De onde vem as emoes que voc sente quando os l? Que grau de paixo os autores tiveremque ter? Que tipo de meticulosidade teve que dominar para retratar os personagens e osacontecimentos como ele fez? Deve ler cuidadosamente at o ponto que voc possacompreender todas essas coisas. (...) Ler a literatura clssica mundial como uma forma detreinamento e reler as obras dos seus autores favoritos repetidas vezes, ento ler e escrevertorna-se habitual.12(PRINCE, 1999:125)

    BACHELARD (1993:10) explica o fenmeno descrito por Kurosawa da

    seguinte maneira:

    todo leitor que rel uma obra que ama sabe que as pginas amadas lhe dizem respeito. (...) Emcertas leituras que vo ao fundo da simpatia, na prpria expresso somos parte beneficiada.(...) Nessa admirao que ultrapassa a passividade das atitudes contemplativas, parece que aalegria de ler o reflexo da alegria de escrever, como se o leitor fosse o fantasma do escritor..

    Sobre Shakespeare, disse Kurosawa, eu no sou um especialista, apenas um

    leitor. Se voc me citar alguma linha, eu no saberia.(In PEARY, 1986). No entanto,

    percebemos nele um leitor apaixonado, em quem o fenmeno da repercusso-

    ressonncia operou de maneira produtiva. Antes deRan,o filme Trono de Sangue13

    (1961) foi canonizado como obra prima por Peter Brook e o melhor dos filmes de

    Shakespeare, por Grigori Kozintsev (JORGENS, 1979:153) e Stephen Spielberg

    falou sobre Kurosawa: Ele o Shakespeare pictrico do nosso tempo14. De

    Shakespeare, o diretor japons realizou ainda Os Maus Dormem Bem15 (1960),

    inspirado emHamlet.

    12 Where does the emotion come from that you feel as you read them? What degree ofpassion did the authors have to have, what level of meticulousness did he have to command, in orderto portray the characters and events as he did? You must read thoroughly to the point where you cangrasp all these things. () Read the worlds classic literature as a form of training and reread theworks of favorite authors again and again reading and writing must become habitual.

    13 Tambm conhecido como Trono Manchado de Sangue. O subttulo oficial em ingls Throne of Blood, mas a traduo mais literal do ttulo em japons Spider Web Castleou Castelo deTeia de Aranha.

    14New York Post, 7/9/199815

    Traduo do ttulo em ingls, The Bad Sleep Well, porm conhecido tambm como TheWorse You Are, The Better You Sleepque corresponde melhor ao ttulo em japons, Warui Yatsu HodoYoku Nemuru. Em portugus seria Quanto Pior Voc , Melhor Dorme.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    17/61

    10

    4.2 TEXTOS LITERRIOS

    Eu li Shakespeare e escritores russos como Dostoyevskye Gorky muitas vezes, mas jamais permitiria que melevassem a fazer um filme at que eu os tivesseassimilado por completo. Somente ento, posso faz-lossurgir naturalmente como se fizessem parte de minhaprpria escrita. (PRINCE, 1999:126)16

    Alm de Shakespeare, Kurosawa era fascinado por literatura russa. WALSH

    (1998), conta o que o diretor disse sobre Dostoyevski: No conheo ningum to

    compassivo... pessoas comuns tiram seus olhos da tragdia; ele olha direto para ela. 17

    Essa viso que Kurosawa passa para o cinema, tem origem num episdio da infncia

    que conta em sua autobiografia, no captulo Um evento horrvel (KUROSAWA,

    1983)18:em setembro de 1923, Kurosawa e seu irmo, Heigo, caminhavam pela cidade

    de Tquio, observando a morte e destruio causada pelo Terremoto Kato e seu irmo

    o forava a ver as centenas de corpos que encontravam pelo caminho. No dia seguinte,

    comentou com o irmo que no teve nenhum pesadelo, apesar da cena que presenciara.

    Seu irmo respondeu, Se voc fecha seus olhos para uma cena aterrorizadora, vaiterminar ficando com medo. Se voc olha para tudo diretamente, no h nada a temer.

    Realizou tambm adaptaes da obra de Dostoyevsky, em O Idiota (1951),

    Gorky, em Ral (1957), o filme Viver (Ikiru - 1952) tem influncias de Tolstoy (A

    Morte de Ivan Ilych) eVladimir Arseniev, emDersu Uzala(1975).

    Alm de autores russos, adaptou o romance Kings Ransom, do norte americano

    Evan Hunter, em Cu e Inferno (1963) e vrios de autores japoneses como: Tsuneo

    Tomita, em Sanshiro Sugata (1943); Ryunosuke Akutagawa, em Rashomon (1950),

    Shinobu Hashimoto, em Dodeskaden (1970); Kyoko Mura, em Rapsdia em Agosto

    (1991); Hyakken Uchida, em Madadayo(1993).

    16Ive read Shakespeare and Russian writers like Dostoyevsky and Gorky many times, but Iwould never let them lead me into making a filme untill I have thoroughly assimilated them. Onlythen, can I let it come out naturally as if its part of my own writing

    17"I know of no one so compassionate.... Ordinary people turn their eyes away from tragedy;

    he looks straight into it."18 Disponvel em: acesso em: 16Jun 2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    18/61

    11

    Da literatura tradicional japonesa a inspirao veio de Contos de Genji e

    Contos de Heike. Genji Monogatari (Contos de Genji) considerado o primeiro

    romance literrio de todos os tempos (por volta do ano 1000). Escrito por Murasaki

    Shikibu, uma dama da corte do perodoHeian (794 d.C a 1192 d.C), tem 54 captulos e

    conta a histria de um prncipe em busca do amor e sabedoria, descrevendo a vida da

    sociedade aristocrtica nos sculos X e XI.

    FIGURA 1 CONTOS DE GENJI

    A ascenso dos guerreiros aristocratas regionais classe dominante gerou um

    perodo de cerca de 150 anos a partir do final do sculo XII, em que se popularizam oscontos de guerra, Heike Monogatari, ou Contos de Heike, escrito por volta de 1223,

    retrata a ascenso e queda do cl Taira(Heike), com nfase em suas guerras com o cl

    Minamoto (Genji).19 desse perodo a concepo das artes unidas pela aristocracia

    civil e pela cultura militar, que constituem a base de tradio esttica japonesa como o

    Sumi-, pintura monocromtica com tinta preta; o cha-no-yu, cerimnia do ch; o

    19informaes do Museu de Arte Fuji de Tquio. Disponvel em: acesso em 13 Jun 2007

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    19/61

    12

    ikebana, arte floral japonesa; o karesansui, jardim de pedra e areia e outras artes da

    poca utilizadas por Kurosawa como: a perspectiva da pintura da Escola Tosa, a

    referncia literria de Contos de Genji, o pico dos Contos de Heike e a esttica do

    teatro Noh.

    4.3 O TEATRO NOH

    Recorrente na obra de Kurosawa, os elementos do teatro Noh aparecem tambm

    no filme Trono Manchado de Sangue, criando o que PRINCE (In: Real Fusion of

    film and theatre)chama de real fuso do cinema e teatro. O Noh por sua vez, funde a

    poesia, o teatro e a msica e envolve diversos elementos: msica vocal, msica

    instrumental, bailado, teatro, mscaras, literatura, arquitetura e figurino suntuoso. O

    teatro Noh uma combinao da dana ritualstica shintosta, a dana da corte dos

    guerreiros, a pantomina sagrada budista e a poesia lrica da corte. Surgiu 100 anos

    antes de Shakespeare e sua continuidade no foi interrompida at hoje. (POUND,

    1917:104). Kurosawa amava o Noh e dele dizia: O Noh uma forma de arte

    totalmente exclusiva j que no existe em nenhum outro lugar no mundo20

    No filme Ran, Kurosawa tomou emprestado do Noh: a estrutura de trs partes

    da narrativa jo, ha, kyu (introduo, contraste, capitulao); o cenrio: paisagem

    natural e despovoado; a maquilagem imitando a mscara nos personagem Hidetora e

    Kaede; a msica que utiliza flauta e tambores para reforar a expresso dramtica das

    imagens visuais, simbolizando a dor, sofrimento, pranto, nas cenas em que o diretor

    suprime o som incidental; os gestos ritualsticos na interpretao dos atores e o

    figurino esplndido. Este ltimo conquistou o Oscar de figurino em 1985, sendo a

    designer Emi Wada responsvel pelos 1.400 figurinos confeccionados a mo, por

    mestres artesos, em Kyoto. Cada traje levou cerca de 3 a 4 meses para ser

    confeccionado, totalizando trs anos para terminar.

    O universo fantstico do teatro Noh, que explora o tempo mitolgico, serve ao

    propsito de Kurosawa para fazer-nos sentir como Claudius, tio de Hamlet (Ato II,

    20"The Noh is a truly unique art form that exists nowhere else in the world. Disponvel em: acesso: 7 Jun 2007

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    20/61

    13

    Cena III), confrontados com a verdade atravs do teatro, como veremos adiante, na

    Anlise da Flecha.

    4.4 PINTURA

    Com relao pintura tradicional japonesa, Kurosawa se inspira na perspectiva

    da vista de cima para baixo da Escola Tosa, que tem como caracterstica o uso de

    nuvens douradas para enquadrar as cenas, permitindo ao leitor uma viso clara do que

    acontece dentro dos edifcios e das batalhas. A Escola Tosa baseada no Yamato-e,

    estilo nativo de pintura japonesa, tradicionalmente usada para ilustrar os Contos de

    Genji.

    O crtico de cinema SATO (1999), conta que: Kurosawa Akira comeou sua

    carreira como pintor e ele tinha um especial talento at obsesso em criar drama

    atravs de imagens, na qual cada quadra do filme tratado literalmente como uma

    pintura. (...) estas pinturas no so simples story boardspara o filme, mas nos do uma

    compreenso fascinante da natureza da imaginao de Kurosawa.21

    Donald RICHIE (1996) lembra que, em 1978, foi visitar o diretor em seuescritrio na Toho justamente quando ele estava envolvido com o projeto do filme

    Kaguemusha (A Sombra do Samurai):

    O trabalho consistia em desenhar e pintar. Estava sem dinheiro para filmar tendo se tornadofamoso por estourar oramentos, prazos, recomendaes, ordens de produtores e empresasprodutoras tudo para criar o filme perfeito, sem concesses. Para fixar na memria oprximo filme que queria rodar, ele o estava fazendo mo. Uma imagem aps outra desamurais, batalhas, cavalos. Suas grandes mos de arteso estavam pintando uma cena atrs daoutra, com movimentos rpidos e seguros. Ele sempre sabia exatamente o que queria fazer. Ofilme inteiro estava em sua cabea e emergia atravs de seus dedos. Como no tinha dinheiro,faria o filme no papel. Que outro diretor perguntava-me faria isso, teria tal cuidado eestaria to imune ao desespero?

    O filme Kaguemusha foi realizado em dois anos graas ao apoio de seus

    admiradores, George Lucas e Francis Ford Coppola que produziram o filme. No caso

    21Kurosawa Akira started out his career as a painter and he possessed a special talent even

    obsession- for creating drama through images in which each frame of the film is treated literally like apicture. ()these paintings are not simply story boards for the movies, but give us fascinating insightsinto the nature of Kurosawas imagination.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    21/61

    14

    deRan,teve que esperar mais: 10 anos, pelos mesmos motivos - o recurso financeiro

    veio de Serge Silberman, produtor francs que anteriormente tinha realizado O

    Discreto Charme da Burguesia eAquele Obscuro Objeto de Desejo, ambos dirigidos

    por Louis Buuel.

    Nesse tempo de espera, Kurosawa produziu uma srie de litografia de seu story

    board do filme Ran, e algumas reprodues foram publicadas posteriormente como

    um livro, juntamente com o roteiro do filme. Algumas dessas gravuras ilustram esta

    monografia e, ao observarmos a fidelidade com que foram retratadas no filme, em

    termos de figurino e maquilagem, concordamos com KOBAK de que nos d a

    impresso de que emergiram direto do papel para o filme. Sobre seu estilo depintura, SATO (1999) descreve que:

    Seus trabalhos eram caracterizados por composies de violento movimento que transbordamsobre a borda da tela, cores intensas e vibrante tridimensionalidade, qualidades que socompletamente distantes da corrente principal da pintura japonesa e da pintura tradicionalacadmica. Elas exibem qualidades muito prximas herana da gravura ukiyo-e e artefolclrica, como se v na pintura tradicional das pipas.22

    FIGURA 2 HIDETORA

    22His works are characterized by compositions of violent movement that spill over the edges

    of the canvas, intense colors, and vibrant three-dimensionality, qualities that are quite far afield from

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    22/61

    15

    4.5 CINEMA

    Alm da literatura, Kurosawa tinha uma grande admirao pelo cinema mudo,

    assistiu a muitos deles quando seu irmo Heigo foi Beshi, ou narrador de filmes

    mudos: Eu gosto de filmes mudos (...) Frequentemente eles so muito mais bonitos

    do que filmes sonoros. Talvez tenham que ser. Em uma certa medida, eu quero

    restaurar algo dessa beleza. (RICHIE, 1996:112)

    Kurosawa, em sua autobiografia listou cerca de 100 filmes que o

    impressionaram durante sua infncia e juventude: obras dos diretores Griffith, Chaplin,

    Stroheim, Victor Sjstrm, Lupu Pick, Daisuke Ito. (PRINCE, 1999:20). Outros

    cineastas favoritos eram: Kajiro Yamamoto, de quem foi assistente, Eisenstein, Frank

    Capra e John Ford. Sobre o ltimo diretor, Chris Marker registrou em seu

    documentrio A.K.(1985) a histria do encontro entre os dois: Ford disse

    simplesmente voc realmente gosta de chuva, ao que Kurosawa respondeu voc est

    realmente prestando ateno em meus filmes.

    A chuva uma temtica constante na obra de Kurosawa, como na seqncia de

    abertura deRashomon, na batalha final de Os Sete Samuraise o nevoeiro em Trono deSangue. YOSHIMOTO (2000:429) observa que o que est sensivelmente ausente em

    Ran a imagem caracterstica de Kurosawa, a chuva. (...) o sol incandescente que

    leva Hidetora loucura e os Ichimonji sua auto-destruio23. A escolha do elemento

    fogo ser analisada no captulo da Imagem da Flecha, nesta pesquisa.

    Kurosawa foi um cineasta completo, que participava de todas as etapas de

    realizao de um filme: alm de desenhar as cenas e personagens, dirigia, escrevia o

    roteiro com mais duas pessoas, mas sempre reservando para si a traduo da prosa

    para a imagem visual; e ele mesmo editava seus filmes, considerado por muitos um

    mestre no assunto. Ran seu 27 filme, do total de 30, portanto uma obra de sua

    maturidade tanto artstica quanto de idade: tinha 75 anos quando filmou. Entre os

    prmios que recebeu, destacam-se: Oscar de Melhor Figurino, em 1985; 2 prmios no

    the mainstream Japanese painting an the painting of more academic traditions. They display qualities

    much closer to the heritage of ukiyoe-eprints and folk art such as seen in traditional kite painting.23What is conspicuously absent inRanis Kurosawas signature image, the rain. () It isthe blazing sun that leads Hidotora to madness and the Ichomjis to its self-destruction.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    23/61

    16

    BAFTA (British Academy of Film and Television Arts), nas categorias de Melhor

    Filme Estrangeiro e Melhor Maquiagem; Prmio Bodil (Associao de Crticos de

    Cinema de Copenhaguen) de Melhor Filme Europeu; Prmio OCIC (Organisation

    Catholique Internationale du Cinema et de lAudiovisuel), no Festival Internacional de

    San Sebastian.

    5

    A RESSONNCIA E A REPERCUSSO DA FLECHA

    Para a anlise da imagem da flecha e sua repercusso no filme Ran, tomamos

    como ponto de partida o que BACHELARD (1993:11-12) diz sobre a imagem potica:

    Um grande verso pode ter uma grande influncia na alma de uma lngua (...) o verso

    tem um movimento, a imagem se escoa na linha do verso, arrasta a imaginao como

    se esta criasse uma fibra nervosa.

    Como vimos anteriormente, de acordo com o relato do prprio Kurosawa em

    entrevista a Gerald PEARY (1986), Ran nasceu de sua reflexo sobre a parbola da

    flecha de Motonari Mori e podemos supor, considerando o processo de criao do

    diretor, que a imagem da flecha repercutiu em sua memria nas impresses de leitura

    de Rei Lear, de Shakespeare. Assim, seguindo Bachelard, consideramos a frase de

    Lear, no Ato I, Cena I, e sua repercusso-imagens emRan.:

    Lear se dirige a Kent, que tentava dissuadi-lo do banimento de Cordlia:

    Lear: Foge da flecha de um arco teso. [grifo nosso]24

    A imagem da flecha percorre o filme e registramos quatro momentos bastante

    marcantes em que esta imagem adquire grande fora expressiva. A primeira

    repercusso-imagem na cena de abertura: uma caada, onde Hidetora, o daimyo25do

    24Todas as citaes da peaRei Lear,apresentadas nesta pesquisa, correspondem traduo

    de Barbara Heliodora (SHAKESPEARE, 1998)25Literalmente, Grande Nome senhores feudais poderosos do perodo entre os sculos XIIe XIX da histria do Japo.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    24/61

    17

    cl Ichimonji, aparece, montando um cavalo, empunhando um arco teso, exatamente

    como na pintura do prprio diretor (figura 3). Na iminncia do disparo, a imagem

    cortada e passa para o ttulo do filme, em caligrafia kanjide cor vermelha (figura 4),

    escrito Ran, que significa conteno, desordem ou caos, como foi traduzido o

    ttulo do filme em ingls.

    FIGURA 3 - CAADA

    FIGURA 4 IDEOGRAMA RAN

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    25/61

    18

    A segunda repercusso-imagem da flecha ocorre no captulo 2, quando Hidetora

    rene os filhos, servos e os dois senhores feudais convidados, Fujimaki e Ayabe, para

    comunicar a sua deciso de transferir a autoridade e o governo de seus domnios para o

    filho mais velho, Tar. Na ocasio, utiliza a parbola das trs flechas, de Motonari

    Mori, dando a cada um dos trs filhos uma simples flecha e pedindo-lhes que a

    quebrassem. Depois disso, coloca as trs flechas unidas num feixe, passando-o para

    Tar e Jir que no puderam romp-lo,demonstrando dessa maneira que uma flecha

    fcil de quebrar, mas trs juntas so muito mais resistentes, fazendo referncia unio

    dos trs filhos para manter o cl sob a direo do primognito. Esse argumento foi

    contestado pelo terceiro filho, Sabur, que quebra as trs flechas com o joelho,argumentando contra a deciso do pai, chamando-o de velho e tolo. A pintura de

    Kurosawa retrata os personagens dispostos como no teatro Noh, em uma paisagem

    natural, ampla e vazia, com o personagem principal centralizado e circundado pelos

    demais, sua esquerda e direita, todos ricamente vestidos, como na figura 5. O filme

    reproduz fielmente a cena, onde a formalidade dos gestos estilizados dos atores

    contrasta com a intensidade dramtica na seqncia das reaes provocadas pelo

    anncio repentino e insensato de Hidetora.

    FIGURA 5 - ANUNCIO

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    26/61

    19

    A terceira imagem-repercusso na qual podemos identificar o fenmeno

    sugerido por Bachelard est no captulo 3 do filme, ocasio em que Hidetora de uma

    das janelas do castelo, atira uma flecha e mata um dos servos do filho Tar, que estava

    investindo contra o bobo, Kyoami, envolvido na confuso que se formou no ptio

    entre os soldados de Hidetora e de Tar, na disputa pela insgnia do cl. O filho Tar

    entregou a insgnia aos soldados de Hidetora, mas sua mulher, Lady Kaede, o

    persuadiu a obt-la de volta, como smbolo de poder e autoridade do chefe do cl,

    iniciando assim os desentendimentos que levam Hidetora a sair do primeiro castelo,

    com toda sua corte: 30 soldados, mulheres e servos. A pintura que corresponde cena

    da flecha, aparece abaixo, na figura 6:

    FIGURA 6 HIDETORA NA JANELA

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    27/61

    20

    E a repercusso final da imagem da flecha se d no captulo 7, na cena de

    batalha e do incndio do terceiro castelo. Depois de deixar o primeiro castelo, Hidetora

    se dirige ao segundo castelo, de seu filho Jir, mas no bem-vindo, uma vez que seu

    filho Tar j informara o irmo do incidente entre os soldados, recomendando que no

    o recebesse l. Jir diz ao pai que poderia receb-lo se estivesse s, ao que Hidetora

    responde que somente os pssaros e as bestas vivem s. Indignado, sai do segundo

    castelo e vaga pela plancie, at que seus generais lhe sugerem ir ao terceiro castelo, j

    que Sabur e seus soldados estavam exilados. Mas era uma emboscada. Hidetora

    acorda no meio da noite ouvindo um barulho e movimentao incomum. Quando

    alcana a janela, v com horror que est sendo atacado pelos exrcitos de Tar (coramarela) e Jir (de cor vermelha). No s v com os olhos, mas tambm com os

    ouvidos, como sugere oRei Leara Gloucestercego, no Ato IV, cena VI, pois junto

    janela o que ouve o som de muitas flechas que cortam o ar, de um lado para outro.

    - Lear: O qu? Est louco? O homem pode ver como anda esse mundo sem os olhos.Olhe com as orelhas...26

    Ao descer as escadas, Hidetora encontra um de seus soldados muito ferido, para

    confirmar-lhe o ataque e saber que foi trado pelos seus dois generais. Em outra sala

    assiste ao suicdio simultneo de duas de suas mulheres e o aniquilamento de seus

    soldados, numa luta desigual. Tenta reagir, mas est cercado, tenta o seppuku, suicdio

    honroso, mas no encontra nenhuma espada para realizar o ato.

    FIGURA 7: INSIGHT

    26

    Esta frase deLearreverbera na pea e no filme em vrias imagens que poderiam ser analisadas comofenmenos de repercusso de Bachelard, mas, para o momento, foge ao assunto tratado.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    28/61

    21

    Neste ponto, h uma manipulao sonora do diretor, que concorre para que a

    imagem da flecha adquira uma fora ainda maior: ao suspender o som incidental da

    batalha, o que se ouve a fnebre msica do compositor Toru Takemitsu, com

    sonoridade semelhante das flechas. Aqui vale citar Stu Kobak, cuja descrio da

    cena extremamente precisa:O som parece uma superposio de flechas cortando o

    ar, fazendo estremecer o Grande Senhor.27 Ao mesmo tempo, a cmera se

    movimenta, sem primeiros planos, apenas em planos gerais e de conjunto, formando

    composies de quadros, mostrando uma seqncia de morte e destruio, cenas cruis

    e sangrentas de massacre dos soldados fiis a Hidetora e a matana entre os exrcitos

    de seus filhos.Kurosawa explicou ao crtico de cinema, Michael SRAGOW (2000), em 1986,

    que a msica de Takemitsu surge para representar os sentimentos dos deuses: O que

    eu estava tentando colocar emRan, e isto est l desde o roteiro, era de que deuses ou

    Deus ou quem quer que esteja observando os eventos humanos est sentindo tristeza

    de como os seres humanos destroem uns aos outros e impotente para atuar sobre o

    comportamento do ser humano.28Uma msica que comea melancolicamente, como

    um lamento e vai num crescendo, dando a impresso de soluos.

    Podemos presumir que se fosse um filme de ao de guerra, primeiramente o

    soldado teria avisado Hidetora sobre a emboscada, o ataque dos exrcitos de seus

    filhos e a traio dos generais, mas como se trata de uma obra que, conforme estamos

    argumentando, amplia a imagem da flecha sugerida por Shakespeare, a construo se

    d de forma gradual: primeiro, Hidetora v com os ouvidos ouve as flechas no ar,

    depois v com os olhos, da janela, o ataque conjugado dos dois exrcitos, para

    somente ento, descer as escadas e encontrar o soldado verbalizar os acontecimentos e

    concluir: isto o inferno!. A imagem de inferno sugerida pelo soldado retratada no

    filme em quadros estticos, como numa seqncia de pintura: corpos mutilados,

    guerreiros ensangentados e enlouquecidos, amontoados de mortos.

    27The sound is like wave upon wave of arrows slicing through the air, quivering into thegreat Lord. In: The Epic Image of Kurosawa.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    29/61

    22

    (Cena do filme) (pintura de Kurosawa)

    ,

    FIGURA 8 GUERREIROS

    Kurosawa se utiliza de composio esttica, em uma perspectiva vista de cima,

    como nas pinturas da Escola Tosa29, estilo nativo de pintura japonesa, onde a presena

    de nuvens douradas cria um distanciamento, fazendo com que o espectador se sinta

    paradoxalmente como deuses, observando a batalha de cima e, ao mesmo tempo,

    impotentes por no poderem interferir na ao dos homens.

    FIGURA 9 CENA ILUSTRADA DE CONTOS DE GENJI(Acervo do Museu de Arte Fuji, de Tquio)

    28What I was trying to get at in 'Ran,'" he said, "and this was there from the script stage, was

    that the gods or God or whoever it is observing human events is feeling sadness about how humanbeings destroy each other, and powerlessness to affect human beings' behavior.

    29Estilo de pintura tradicional japonesa usado para ilustrar os Contos de Genji

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    30/61

    23

    FIGURA 10 BIOMBO: BATALHA DE ICHINOTANI(batalha entre os Genji e os Heike, cls guerreiros - Acervo do Museu de Arte Fuji, de Tquio

    O crtico de cinema, JACOBSON (2005) relata que o prprio Kurosawa

    comentou que diferente de Kaguemusha30,onde o ponto de vista do impostor fez com

    que a histria se tornasse bem terrena, Ranse desenvolve mais de um ponto de vista

    celestial, onde at mesmo Hidetora no tanto o foco, mas uma figura sendo arrastada

    ao longo da corrente de sua prpria tragdia.31

    Enquanto ns, como espectadores, estamos envolvidos nesse ponto de vista

    mencionado por Jacobson, de repente, somos inseridos abruptamente na cena de

    batalha, quando se ouve um nico tiro de mosquete que mata o Lord Tar. A sensao

    como se cassemos das nuvens bem no meio dos combates. A partir desse tiro de

    mosquete, Kurosawa introduz no filme toda a intensidade dos sons incidentais da

    guerra: tiros, sons da cavalaria, infantaria, gritos.

    em meio a esse clima de caos e confuso, na posio de vencido, que

    Hidetora se d conta do erro de discernimento em relao aos seus filhos e dos

    inmeros crimes que cometeu. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que ganha o

    entendimento, perde a razo e sai do castelo, sozinho, sem destino.

    30Filme de Kurosawa,A Sombra do Samurai, realizado em 1980.31

    Unlike Kaguemusha where the point of view of the imposter made the story veryearthbound,Ran was more from a heavenly point of view, where even Hidetora is not so much a focalpoint as a figure being swept along by the tide of his own tragedy.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    31/61

    24

    Os guerreiros de ambos os lados, atnitos, deixam passar o Grande Senhor

    visivelmente perturbado.

    FIGURA 11 TERCEIRO CASTELO EM CHAMAS

    Um paralelo pode ser estabelecido com a cena em que o Rei Lear, trado pelas

    filhas, desprotegido, sai errante, em companhia apenas do Bobo e de Kent:

    Um Cavalheiro responde pergunta Aonde est o Rei, de Kent:

    lutando com os inquietos elementospede ao vento que o mar afogue a terra,ou que subam as guas para os montes,que tudo cesse ou mude: se desgrenha,... (Rei Lear, Ato III, Cena I)

    Dirige-se aos cus, porque no tem mais a quem se dirigir:

    Soprai ventos; rasgai a face em fria!Vs cataratas e tufes, jorraiE afogai campanrio e catavento!Fogos de enxofre, que sois to velozesQuanto as idias, e que sois arautosDos raios que bifurcam os carvalhos,Queimai minha cabea branca. E vs,Trovo que tudo treme, golpeaiA espessura rotunda deste mundo!Quebrai a forma e ora espalhai os germesDa natureza que faz o homem ingrato!(Rei Lear, Ato III, Cena II)

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    32/61

    25

    Sua paixo, seu sofrimento da ordem dos deuses e s a prpria natureza

    oferece interlocutor altura. A natureza em fria tambm a expresso do estado

    interior do rei que, na medida em que compreende, enlouquece:

    Esperais que eu chore?No, no hei de chorar:Tenho causas pra isso, (ouve-se a tempestade ao longe) mas o peitoh de romper-se em cem mil estilhaosAntes que eu chore. Bobo, eu enlouqueo!(Rei Lear, Ato II, Cena IV)

    Vrias so as possibilidades interpretativas desta cena - Grigori Kotzintsev,

    cineasta russo que realizou Karol Lear, em 1969, utilizou a tempestade de gua como

    elemento da natureza no momento da compreenso da realidade por Lear. Kurosawa

    faz outra escolha: o fogo, trazido pelas flechas voadoras que atingem o terceiro

    castelo.

    FIGURA 12 O FOGO E AS FLECHAS

    Em uma anlise mais detalhada do trecho do solilquio de Lear em que se

    dirige natureza, percebemos os dois elementos: gua e fogo nos versos, alm do

    elemento ar, presente no vento, utilizado por ambos os diretores. A presena do

    fogo est nas imagens como: Fogos de enxofre que sois to velozes / Quanto as

    idias; nos raios que bifurcam os carvalhos e em Queimais minha cabea branca.

    BACHELARD (1999:25) nos diz que O fogo sugere o desejo de mudar, de

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    33/61

    26

    apressar o tempo, de levar a vida a seu termo e nos ajuda a compreender

    que se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda

    rpido se explica pelo fogo32.

    Se Lear um rei que se define como Sou pecador/contra quem inda

    mais outros pecaram33, este no o caso de Hidetora, que menciona

    claramente aos seus filhos e sditos, no captulo 2 do filme, que nasceu em

    um castelo modesto e os seus domnios foram conquistados graas s

    sucessivas batalhas ao longo de mais de cinqenta anos, tendo comeado

    quando ainda era um rapaz de 17 anos. Por isso, seu despertar para discernir

    a real natureza da situao no poderia ser diferente: como um fogoconsumidor interno e externo, que reconhece sua responsabilidade na morte

    de seus sditos leais e sua culpa nas atrocidades cometidas durante suas

    conquistas, incluindo as famlias de suas duas noras: Sue, a esposa de Jir,

    cuja famlia ele destruiu, queimando seu castelo e cegando seu irmo,

    Tsurumaru; e Kaede, esposa de Tar, de cuja famlia usurpou o castelo,

    matando toda sua famlia, gerando o sentimento de vingana que sua nora

    realiza, destruindo o cl Ichimonji. Kaede inspirada em Goneril, mas

    Kurosawa fez dela um personagem muito mais complexo e dramtico,

    revelado aos poucos, na medida em que conhecemos o seu passado e a

    histria de sua famlia.

    A percepo do Rei Lear se converte em uma nova atitude, na

    trajetria de transformao de um rei acostumado a pompas para um ser

    humano mais compassivo: primeiro, quando Kent avista uma choupana, Lear

    externa preocupao pelo bem estar do Bobo:

    Meus sentidos vo-se.Vem, menino. Como ests? Tens frio?Eu tenho frio. Onde h palha, homem? estranha a arte da necessidadeQue faz precioso o vil. Que da c houpana?Meu Bobo safado, parte do meu peitoSente pena de ti.(Rei Lear, final da Cena II, do Ato III)

    32

    : Si tout ce qui change lentement sexplique par la vie, tout ce qui change vite sexpliquepar le feu.

    33Rei Lear, Ato III, Cena II, dilogo entre Lear e Kent.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    34/61

    27

    Em seguida, antes de entrar na choupana, (deixando o bobo entrar

    pr imeiro), temos um dos seus mais belos so lilquios:

    ... (para o Bobo) Vai, menino. Vocs que no t m casa...

    ...Desgraados sem roupa, onde estiverem,Enfrentando o aoite da tormenta,Como poderiam assim, com flancos magros,Os seus trapos rasgados defend-losDe tempo assim? Ai eu cuidei bem poucoDe tudo isso. Cuida-te, Pompa;... (Rei Lear, Ato III, Cena III)

    A ttulo de ilustrao, vale lembrar outra interpretao tocante desta mesma

    cena, na qual o diretor Kotzintsev privilegia uma leitura social deste solilquio.

    Diferente do texto de Shakespeare, em que a fala acontece antes de o rei entrar na

    choupana, no filme, Edgar, que est dentro da choupana, v Lear se aproximar e vai se

    esconder no meio da palha. No mesmo instante em que Edgar est se escondendo e

    Lear est entrando, a cmera revela que h um amontoado de gente maltrapilha na

    choupana e nesse instante que o rei faz essa fala, dirigindo-se a esse povo miservel,

    dando uma dimenso nova ao solilquio. Dimenso esta entendida por RASMUS

    (1996:151), de que o cinema primeiramente um meio visual (...) o pblico

    elizabetano ia ao teatro para ouvir uma pea; o pblico contemporneo vai para

    ver um filme.34

    A cena da choupana o momento central da percepo de ambos: para Lear

    um reconhecimento do papel social do governante e da descoberta da essncia humana

    no indivduo; para Hidetora, um reencontro com Tsurumaru, herdeiro de um cl rival

    vencido, que mora escondido em uma edificao muito precria, cego e sozinho,disfarado de mulher. O fiel servo Tango (equivalente a Kent, de Lear) leva o Grande

    Senhor desvairado e exausto, para o nico abrigo com teto que encontrou. L, depois

    de revelada a identidade, Tsurumaru menciona a flauta, um presente que ganhou de

    sua irm, Sue, e a nica companhia de sua vida solitria. Faz questo de tocar a flauta

    para Hidetora. A msica que soa/ecoa, um solo em tons agudos, repercute em Hidetora

    34

    the cinema is primarily a visual medium () Elizabethans went to hear a play;contemporary audience goes to see a movie.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    35/61

    28

    de maneira acentuada, como se ele ouvisse (ou visse pelos ouvidos), todo o

    sofrimento, ampliando a tenso emocional e a crise mental.Aqui, o elemento sonoro

    utilizado como um solilquio, para precipitar o sofrimento, tanto de Tsurumaru,

    quanto de Hidetora. PARKER (1991: 75-90) enfatizou a cena que segue no filme: "a

    parede literalmente vem abaixo, sob o peso da culpa de Hidetora.35A parede, smbolo

    de proteo e limite de Hidetora, cai quando ele percebe com clareza, a profundidade e

    a dimenso da destruio causada por ele e a aceitao imediata de que uma grande

    loucura.

    A natureza da loucura de Lear e Hidetora , portanto, diferente. Em Lear, no

    Ato IV, Cena VI, uma loucura paradoxal, que suscita o seguinte comentrio deEdgar, ao ouvi-lo falar:

    Edgar ( parte)Verdade e irrelevncia se misturam;Razo na loucura.(Ato IV, Cena VI)

    Gloucester tambm comenta, no final da Cena VI, Ato IV:

    O Rei st louco: vil que eu continueDe p a rebuscar os sentimentosDe minhas dores! Antes star insano:Pensamentos e dores separavam-se,E o sofrimento, solto o imaginar,No mais se sentiria.

    A loucura de Lear minora o sofrimento, porque como os versos acima nos

    dizem, Pensamento e dores separavam-se. No caso de Hidetora, Kiyoami, o Bobo,

    define a loucura de seu amo da seguinte maneira:

    A mente falha v as falhas do corao.36

    GRILLI (2003), define Hidetora como louco espectral- o que o atormenta a

    conscincia de sua crueldade como tirano que foi, e ele vaga como um fantasma pelas

    runas do castelo que ele mesmo destruiu.

    35"the wall literally collapses under the weight of Hidetora's guilt"36The failed mind sees the hearts failings.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    36/61

    29

    Como conseqncia, a nova atitude do Daimyo no compassiva como a de

    Rei Lear. Kurosawa mostra a mudana de Hidetotra atravs da maquilagem que nos

    remete s mscaras do tradicional teatro Noh.. Antes do discernimento/loucura, sua

    expresso facial a violenta e cruel mscara do demnio Akuj: sobrancelhas e olhos

    arqueados para cima, pintura vermelha em volta dos olhos para realar a expresso do

    mal, cenho franzido em semblante severo e carrancudo.

    FIGURA 13 MSCARA AKUJ37

    Depois da cena da choupana, seu rosto transforma-se na mscara de Shiwaj,um esprito errante que vaga pelo mundo para redimir os seus pecados: seus olhos so

    suavizados, o rosto vincado e sofrido, seus gestos so atormentados.

    FIGURA 14 MSCARA SHIWAJ

    37As mscaras (Figuras 13 e 14) esto disponveis em: http://nohmask21.com/acesso em 14Jun,2007

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    37/61

    30

    6 RAN, O ESPELHO DO HOMEM MODERNO

    Essa trajetria de sofrimento de ambos a prpria trajetria de transformaode um rei adulado e um senhor feudal tirano que se tornam pessoas mais humanizadas,

    mais humildes, capazes de se humilharem e pedirem perdo a Cordlia / Sabur, e se

    reconciliarem com eles. Essa a parte confortante para o espectador, mas como

    Shakespeare e Kurosawa viram uma tragdia nessa histria, Cordlia e Sabur so

    mortos e Lear e Hidetora tambm morrem.

    Na ltima cena deRei Lear, a reconciliao vem atravs do restabelecimento da

    paz e da ordem social com Edgar e Albany, que assumem o governo do reino.

    Tambm em Ran, a ordem social se restabelece com Fujimaki e Ayabe que se aliaram

    no poder, depois do aniquilamento do cl Ichimonji. Mas Kurosawa faz um acrscimo,

    aumentando o tom dramtico na ltima cena do filme, colocando Tsurumaru, sozinho,

    nas runas do muro do castelo que fora de seu pai, esperando pela irm Sue, sem saber

    que ela fora morta.

    Cego, tateia o caminho e quando chega beira do abismo, quase cai, recua, e oque lhe escapa das mos a figura do Buda que sua irm lhe dera, para no deix-lo

    sozinho. Kurosawa faz uso dejump cuts38, tcnica em que ele era um mestre, para criar

    um distanciamento cada vez maior do quadro, nesta cena. Esse movimento cria um

    efeito de ligeira desorientao, sugerindo um mundo instvel, inquietante e de rpidas

    mudanas. O que permanece em nossa retina a frgil, minscula e indefesa figura de

    Tsurumaru, diante do vasto precipcio, tendo ao fundo um por do sol melanclico.

    Kurosawa comentou a cena dizendo: o homem perfeitamente s... Tsurumarurepresenta a humanidade moderna(WATANABE, 1985).

    38

    Jump cut- radical transio entre uma cena e outra feita atravs de corte, na edio dofilme; a tcnica quebra a continuidade no tempo e causa um efeito perturbador no espectador.Definio do dicionrio eletrnico acesso em: 5 Mai 2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    38/61

    31

    FIGURA 15 CENA FINAL DO FILME(trs progressivos cut-ins e cut-outs de Tsurumaru na cena final).

    O mesmo homem moderno tambm representado na literatura moderna por J.

    Alfred Prufrock, personagem do poema de T.S. Eliot, Cano de Amor de J. AlfredProfrock, um solilquio em que questiona os valores, fala da solido e de indecises,

    sente-se perdido. Segue um trecho do poema, traduzido por Ivan Junqueira39:

    Sigamos ento, tu e eu,Enquanto o poente no cu se estendeComo um paciente anestesiado sobre a mesa;(...)Tempo haver, tempo haverPara moldar um rosto com que enfrentarOs rostos que encontrares;Tempo para matar e criar,E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mosSobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questo;Tempo para ti e tempo para mim,E tempo ainda para uma centena de indecises,E uma centena de vises e revises,Antes do ch com torradas.(...)Pois j conheci a todos, a todos conheci- Sei dos crepsculos, das manhs, das tardes,Medi minha vida em colherinhas de caf;

    Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outonoSob a msica de um quarto longnquo.Como ento me atreveria?

    maneira de Prufrock, Hidetora, j louco, observa as runas do castelo onde se

    encontra, acompanhado de Kiyoami:

    Hidetora: Estou perdido...Kiyoami: Assim a condio humana.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    39/61

    32

    O poema de Eliot traz a carga de angstia e a inquietude que o homem carrega

    nos tempos modernos, ao lidar com o mundo catico ao redor dele; BRADBURY

    (1998:19) aponta alguns dos acontecimentos histricos como trama do nosso caos:

    a destruio da civilizao e da razo na Primeira Guerra Mundial, do mundo transformado ereinterpretado por Marx, Freud e Darwin, do capitalismo e da contnua acelerao industrial,da vulnerabilidade existencial falta de sentido ou ao absurdo, ... da destruio das noestradicionais sobre a integridade do carter individual...

    E podemos ainda adicionar: a transformao das comunidades rurais em

    metrpoles urbanas, a Segunda Guerra Mundial e os regimes totalitrios, o surgimento

    da cultura de massa, entendendo a cultura como produto comercial. O acrscimo de

    Kurosawa nesta cena final, que remete ao homem moderno em tom pessimista e triste

    inspirou autores como o professorAntonio Joo Teixeira, da Universidade Estadual de

    Ponta Grossa no artigoRan, o Rei Lear Japons40a classificar o filme como niilista:

    o final niilista, que no v sada para o caos, afirma caractersticas ligadas cultura

    japonesa.

    Transcrevo o comentrio da cena final pelo professor:

    Parece-me que essa cena, em sua corajosa negao da possibilidade de restaurao da ordem,ironicamente comenta a pea que lhe serviu como uma de suas fontes; o que torna Ranumfilme questionador, porque ele no est preocupado com a centralidade do texto dramtico. Ofilme deve muito a Rei Lear, sem dvida, mas apesar dos acenos que faz em direo culturaocidental e do jogo de influncias, emprstimos e homenagens, ele emerge como Ran, artecinematogrfica japonesa antes de tudo, no apenas o Rei Lear de Kurosawa.

    Niilismo vem do latim nihil, ou nada e o mais conhecido sentido deniilismo de Nietzsche, para quem a essncia consiste na morte de Deus, que

    representa todos os valores, normas, ideais e princpios que davam orientao e

    sentido. O Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa define nietzschianismo

    da seguinte maneira: negao, declnio ou recusa, em curso na histria humana e

    39Disponvel em: acesso em: 10 Jun

    2007. 40Disponvel em: acesso em:10 Jun 2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    40/61

    33

    especialmente na modernidade ocidental, de crenas e convices - com seus

    respectivos valores morais, estticos ou polticos - que ofeream um sentido

    consistente e positivo para a experincia imediata da vida.

    O niilismo impregnado de pessimismo, mas nem todo pessimismo niilista.

    Podemos dizer que Kurosawa usa um tom niilista, ao ambientar o filme na era da

    guerra civil japonesa, poca de conflito, traio, confuso e investidas militares, ao

    mostrar como o mal atua na esfera individual e arrasta a todos, bons e maus,

    provocando a derrocada das relaes familiares e a catstrofe social.

    Mas como PRINCE explicou, em seu artigo Shakespeare Transposed:

    Kurosawa d-nos batalhas filtradas atravs de sua percepo, como um artista dosculo XX, bem familiarizado com a chacina em larga escala de seu prprio tempo. O

    senso apocalptico nos seus filmes no do sculo XVI, mas de agora.41Em outras

    palavras, quando Kurosawa retrata o passado, ele se refere aos tempos modernos,

    onde vivenciamos o caos de morte e destruio. O que ele faz oferecer-nos um

    espelho, como fez Hamlet, na cena III, ato II: ... oferecer como se fosse um espelho

    natureza, mostrar virtudes seus prprios traos, ao ridculo sua prpria imagem, e

    prpria idade e ao corpo dos tempos, sua forma e aparncia.42

    Nosso mundo hoje o mesmo que Sabur define no captulo 2 do filme: um

    mundo estril de lealdade e sentimentos, confirmado por RYOSUKE (2007), da

    Universidade de Osaka, Japo, que disse:

    (...) deveramos nos questionar se o niilismo que domina o mundo moderno no de fato umduplo niilismo. A tragdia da Morte de Deus foi esquecida. Ns vivemos de uma maneiramais ou menos agradvel, tendo os produtos de tecnologia ao nosso redor, temos algum

    divertimento, mas no fundo h uma sensao de mal estar, de angstia que no encontra paz eque est sempre crescendo.43

    41Kurosawa gives us battles filtered through his perceptions as a 20th-century artist wellacquainted with the large-scale slaughters of his own time. The sense of apocalypse in the films is notof the 16th century but of now.

    42SHAKESPEARE (2004), traduo de Anna Amlia de Queiroz Carneiro de Mendona.43() we should ask ourselves if nihilism which dominates the modern world is not in fact

    a doubled nihilism. The tragedy of the Death of God itself has also been forgotten. We live in a

    more or less pleasant way, having the products of technology around of us, we have some fun, butnevertheless in the background theres a sensation of uneasiness, of anguish which doesnt find peaceand which is always growing.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    41/61

    34

    Assim, conclumos que o filme de Kurosawa no niilista, mas espelha um

    mundo niilista. Deus est presente, mas impotente ao ver que os homens traem e se

    matam uns aos outros, como observamos nas falas de Kiyoami e Tango, na cena de

    morte de Hidetora:

    Kiyoami No h deuses, no h Buda? Se existem, ouam-me. Voc so mesquinhos ecruis! Esto to entediados a em cima que nos matam como insetos, para brincar? divertido ver homens sofrendo?

    Tango No blasfeme! No v que os deuses esto chorando? Eles nos observam e estovendo que nos matamos continuamente ao longo dos tempos e no podem nos salvar de nsmesmos. No chore! assim que o mundo feito: os homens preferem pesar alegria,

    sofrimento paz, alegram-se com sangue e dor!

    Na entrevista concedida a PEARY (1986), o prprio Kurosawa, que a princpio

    no gostava de explicar seus filmes, comentou:

    O que eu quis dizer na ltima cena que a humanidade deve enfrentar a vida sem apoiar-seem Deus ou em Buda. Ns devemos tentar ao mximo edificar um futuro feliz, caso contrrio,teremos uma sucesso de guerras. Uma razo que no pude filmar este filme por tanto tempo

    foi porque os produtores reclamavam que o final era trgico. Ns estamos sempre fechandonossos olhos.44

    DELEUZE (1986:187-192) argumenta que o cinema de Kurosawa acima de

    tudo um cinema de discusso, de questionamentos, sem dvida, um cinema de ao,

    mas um cinema de ao questionadora.45

    O posicionamento que Deleuze nos d de Kurosawa, nos remete a POUND

    (1920:109), para quem "o artista a antena da raa." O artista capaz de captar asvibraes do que acontece ao nosso redor e tambm de retransmitir essas vibraes,

    por exemplo, atravs do cinema, que tem sido uma das mais potentes antenas do tempo

    em que vivemos. A tela grande, ou o espelho onde Kurosawa reflete em imagem de

    44"What I wanted to say in the last scene was that humanity must face life without relying onGod or Buddha. We must try to the maximum to build for a happy future, otherwise there will be asuccession of wars. A reason I couldn't shoot this film for so long was that producers complained that

    the ending was tragic. We are always closing our eyes."45 Kurosawa's cinema is above all a cinema of the question, of questioning, an actioncinema certainly, but a cinema of action in question.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    42/61

    35

    cinema o que Shakespeare captou em densa linguagem potica: a natureza humana em

    sua ampla variedade, complexidade e profundidade. As palavras poticas de

    Shakespeare que ecoam no espelho de Kurosawa, que reflete o sculo XVI elizabetano

    na era feudal da mesma poca no Japo, que por sua vez espelha a humanidade

    moderna.

    7 CONCLUSO

    De volta ao postulado de Bachelard, de que o elemento potico a base de um

    processo de criao e re-criao de imagens, que sero sempre novas, pudemosencontrar emRan, um entrelaamento de intertextos, como se fossem vozes ecoando,

    desde as lendas inglesas e japonesas, passando pelo texto dramtico Rei Lear, de

    Shakespeare, pelos textos literrios tradicionais japoneses, a pintura tradicional

    japonesa, o teatro Noh que sintetiza a poesia, a dana, a msica e o teatro, o cinema e a

    referncia aos tempos modernos.

    Esse eco de vozes ilustra o que ELIOT (1922) defende em seu artigo Tradition

    and the Individual Talent: Nenhum poeta, nenhum artista de nenhuma arte, tem seu

    total significado sozinho. Sua importncia, seu reconhecimento o reconhecimento de

    sua relao com os poetas e artistas mortos.46Para ele, o sentido histrico envolve

    uma percepo, no somente do que passou no passado, mas de sua presena 47 que

    faz do escritor mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua

    contemporaneidade.48

    Eliot diz que o poeta no pode alcanar o que ele chama de significantemotion a no ser que viva no que no somente o presente, mas o presente

    46 No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, hisappreciation is the appreciation of his relations to the dead poets and artists.

    47

    the historical sense involves a perception, not only of the pastness of the past, but of itspresence.

    48... it makes a writer most acutely conscious of his place in time, of his contemporaneity.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    43/61

    36

    momento do passado, a no ser que esteja consciente, no do que est morto, mas do

    que est vivo agora.49

    Nesse sentido, ambos, Kurosawa e Shakespeare valorizam as referncias do

    passado e produziram arte, no somente importante para a poca em que viveram, mas

    continuam provocando significant emotion aos que tomam contato com suas obras.

    Ainda, segundo BACHELARD (1993):

    Quanto mais um poema ressoa e repercute com seus leitores, maior ele . Os maiores poemasajudam a definir-nos e determinar como ns vemos o mundo. Todas as grandes artes fazemisso, desde uma famosa pintura como O Grito de Edvard Munch, Guernica, de Picasso ou

    filmes famosos, no somente poesia.

    Observamos que o fenmeno da repercusso-ressonncia que operou em Akira

    Kurosawa, continua, a partir de sua obra, operando sobre outros grandes cineastas que

    realizaram filmes memorveis, dos quais citamos alguns: Rashomon (1950) serviu de

    base para o filme Quatro Confisses (1964), de Martin Ritt; Floresta Escondida

    (1958) inspirouGeorge Lucas que realizou Star Wars (1977); Sete Samurais (1954)

    inspirou Sete Homens e Um Destino (1960), marco do western, dirigido por JohnSturges; Yojimbo (Guarda Costas, 1961) foi a base para Por Um Punhado de Dlares

    (1964), um clssico do western spaghetti, de Sergio Leone e para o policial O Ultimo

    Matador(1996), de Walter Hill.

    O alcance da obra de Kurosawa no se limita ao cinema e s artes visuais,

    tambm objeto de estudo em pesquisas mais recentes sobre a relao entre literatura

    e cinema, em vrias universidades no mundo inteiro, para o qual espero que esta

    pesquisa possa, ainda que modestamente, contribuir.

    49 unless he lives in what is not merely the present, but the present moment of the past, unless he isconscious, not of what is dead, but what is already living.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    44/61

    37

    REFERNCIAS

    BACHELARD, Gastn A Potica do Espao Martins Fontes, So Paulo: 1993.

    ______. A Psicanlise do Fogo Martins Fontes, So Paulo: 1999, p. 25.

    BRADBURY, Malcolm e MCFARLANE, James Modernismo Guia Geral 1890-1930So Paulo, Companhia das Letras:1998.

    DELEUZE, Gilles in Cinema One: The Movement-Image, trans. Hugh Tomlinson andBarbara Habberjam (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1986), pp.187-192.

    DINIZ, Thas Flores Nogueira (Org.) Cadernos de Traduo n 7 TraduoIntersemitica Florianpolis: Ncleo de Traduo - NUT Universidade Federal deSanta Catarina, 2001.

    ELIOT, Thomas Steams The Sacred Wood: Essays on Poetry and Criticism. Traditionand the Individual Talent London:Methune,1922. Disponvel em: acesso em: 16 Jun 2007.

    FISHLIN, D. & FORTIER,M. In: RESENDE, Aimara da Cunha De Grande Otelo pequena tela: a palavra shakespeareana como arena de confronto para discursos

    brasileiros Florianpolis: Ncleo de Traduo - NUT Universidade Federal de SantaCatarina. 1996, p.183.

    GRILLI, Peter In:Jims Films Reviews2003. Disponvel em: acesso em: 14 Jun 2007.

    HELIODORA, Barbara Reflexes Shakespearianas Rio de Janeiro, Lacerda Editores:2004.

    JACOBSON, Michael Review 22 Nov 2005. Disponvel em: acesso em: 14 Jun 2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    45/61

    38

    JORGENS, Jack Shakespeare On Film. Bloomington: Indiana UP, 1979.

    ______. Shakespeare on Film. Lanham: Bloomington University Press of America,

    1991.

    ______. Kurosawas Ran: A Samurai Lear. Shakespeare on FilmNewsletter, vol.10,n.2. 1986, Apr. pp 1,4.

    JUNQUEIRA, Ivan. Disponvel em: acesso em: 14 Jun 2007.

    KOBAK, Stu The Epic Images of Kurosawa.Disponvel em: acessoem: 14 Jun 2007.

    KRISTEVA, Julia.Introduo Semanlise. So Paulo: Perspectiva, 1974.

    KUROSAWA, Akira. Something Like an Autobiography. Translated by Audie E.Bock. New York: Vintage Books, 1983.

    _______. Ran. (diretor do filme). Estdio Greenwich Film Productions / Herald AceInc. / Nippon Herald Films Japo / Frana: 1985

    MCDONALD, Russ In DINIZ, Thas Flores Nogueira.Literatura e cinema- traduo,hipertextualidade e reciclagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005.

    MALRAUX, Andr Psychologie de l'art : La Cration artistique Genve Skira:1948,p.309.

    MARKER, Chris A.K.(1985) 71 min. documentrio sobre Akira Kurosawa, durante afilmagem deRan.

    RYOSUKE, Ohashi In: Interview with professor Ohashi Ryosuke 2007. Disponvelem: acesso em: 14

    Jun 2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    46/61

    39

    PARKER, R. B. The Use of Mise-en-Scne in Three Films of King Lear. ShakespeareQuarterly 42.1 (1991: 75-90).

    PEARY, Gerald In The Boston Herald, July 1986.Disponvel em: acesso em 14 Jun 2007.

    POUND, Ezra e FENOLLOSA, FranciscoNoh or Accomplishment N York, Knopf,1917. Pag 104.

    ______.Instigations of Ezra Pound: Together with an Essay on the Chinese WrittenCharacterBooks for Libraries Press, 1967.

    PRINCE, Stephen In: Shakespeare TransposedDisponvel em: acessoem: 14 Jun 2007.

    RASMUS, Agniezka I could a tale unfold from metatheatre to metacinema: filmswithin the film in Shakespeare on screen Cadernos de Traduo, UFSC, 1996, pag.151.

    RICHIE, Donald Akira Kurosawa: Obiturary Disponvel em:< http://www.bfi.org.uk/features/kurosawa/obituary.html> acesso em: 14 Jun 2007.

    ______. RICHIE, Donald The Films of Akira Kurosawa 3rd ed., expanded andupdated. Berkeley, Calif.: University of California Press, 1996.

    SATO, Tadao Kurosawa Akiras Legacy: the Printed Record Japanese Book News,number 25, Spring, 1999. Disponvel em: acesso em: 14 Jun 2007.

    SHAKESPEARE, William Hamlet traduo de Anna Amlia de Queiroz Carneiro deMendona. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar S/A: 2004.

    ______.Julius Caesar disponvel em:http://shakespeare.mit.edu/julius_caesar/julius_caesar.3.1.htmlacesso em: 13 Jun2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    47/61

    40

    ______. Rei Lear traduo de Brbara Heliodora Rio de Janeiro, Editora NovaAguilar:1998.

    SRAGOW, Michael In Lear meets the energy vampire, 2000. Disponvel em: acesso em:14 Jun 2007.

    TEIXEIRA, Antonio Joo Ran, um Rei Lear Japons. Disponvel em: acesso em: 14 Jun 2007.

    WALSH, David World Socialist Web Site, 9 September 1998. Disponvel em: acesso em: 14 Jun 2007.

    WATANABE, kiyoshi . In "Interview with Akira Kurosawa on Ran". Positif296October 1985.

    YOHIMOTO, Mitsuhiro Kurosawa Film Studies and Japanese Cinema DukeUniversity Press:2000.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    48/61

    41

    ANEXOS

    1 FILMOGRAFIA

    Ano Nomes dos Filmes Prmios

    1943 Sanshiro Sugata/ ud Saga

    1944 The Most Beautiful

    1945Sanshiro Sugata Part II/

    1945 Those Who Tread on the Tigers Tail(Os Homens que Pisaram na Cauda do

    Tigre)

    1946 Those Who Make Tomorrow(Asu o Tsukuru Hitobito)

    1946 No Regrets for Our Youth(Waga Seishun Ni Kuinashi)

    1947 One Wonderful Sunday(Subarashiki Nichiyobi)

    1948 Drunken Angel (O Anjo Embriagado)

    1949 The Quiet Duel (Duelo Silencioso)

    1949 Stray Dog (Co Danado)

    1950 Scandal ( Escndalo)

    1950 Rashomon - Leo de Ouro no Festival de Cinema de Veneza,em 1951- Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1952.

    1951 The Idiot (Hakuchi / O Idiota)

    1952

    Ikiru (Living/To Live / Viver)

    1954 Seven SamuraiSete Samurais

    Leo de Prata no Festival de Cinema de Veneza,em 1954.

    1955 I Live in Fear/To Live in Fear(Anatomia doMedo)

    1957 Throne of Blood/ Spider Web Castle(Trono Manchado de Sangue)

    1957 The Lower Depths (Ral)

    1958 The Hidden Fortress(A Floresta Escondida)

    - Urso de Prata, no Festival de Berlim- Prmio FIPRESCI (The In te rn at io na l

    Federation of Film Critics), no Festival deBerlim

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    49/61

    42

    1960 The Bad Sleep Well(Homens Maus Dormem Bem)

    1961 Yojimbo (Guarda-Costas)

    1962Sanjuro

    1963 High and Low (Cu e Inferno)

    1965 Red Beard (Barba Ruiva) Prmio OCIC, no Festival de Veneza(Organisation Catholique Internationale duCinma et de l'Audiovisuel)

    1970 Dodeskaden

    1974 Dersu Uzala - Grand Prix do Festival de Cinema de Moscou- Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1976.

    1980 Kagemusha( A Sombra do Samurai)

    - Palma de Ouro do Festival de Cinema deCannes, em 1980.

    - BAFTA de Melhor Diretor (British Academy ofFilm and Television Arts)- Cesar, na categoria de Melhor FilmeEstrangeiro,- Leo de Ouro, em homenagem sua carreira, noFestival de Veneza, em 1982.

    1985 Ran (Chaos)

    (maiores detalhes sobre premiaes destefilme, no Anexo 2)

    - Prmio Especial de Realizao no Festival deCinema de Cannes, em 1985- BAFTA (British Academy of Film andTelevision Arts) de Melhor Filme Estrangeiro eMelhor Maquiagem, alm de receber outras 4indicaes, nas seguintes categorias: MelhorRoteiro Adaptado, Melhor Fotografia, MelhorFigurino e Melhor Desenho de Produo.- Prmio Bodil (Associao de Crticos de Cinemade Copenhaguen).de Melhor Filme Europeu- Oscar de Melhor Figurino, alm de ter sidoindicado em outras 3 categorias: Melhor Diretor,Melhor Direo de Arte e Melhor Fotografia.- Recebeu uma indicao ao Globo de Ouro, nacategoria de Melhor Filme Estrangeiro.- Recebeu 2 indicaes ao Cesar, nas categoriasde Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Pster.

    - Ganhou o Prmio OCIC, no FestivalInternacional de San Sebastian.

    1990 Dreams (Sonhos) No mesmo ano, Akira Kurosawa recebeu o Oscarhonorrio pelo conjunto de sua obra.

    1991 Rhapsody in August(Rapsdia em Agosto)

    1993 Madadayo ( Not Yet/Ainda No)

    Disponvel em: .Acesso em: 15 Jun 2007

    Acesso em: 15 Jun 2007

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    50/61

    43

    2 PREMIAES

    Academy Awards, USA

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Won OscarBest Costume DesignEmi Wada

    Best Art Direction-Set DecorationYoshir MurakiShinobu Muraki

    Best CinematographyTakao SaitMasaharu UedaAsakazu Nakai

    1986

    Nominated Oscar

    Best DirectorAkira Kurosawa

    Amanda Awards, Norway

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1986 Won AmandaBest Foreign Feature Film (rets utenlandske spillefilm)Akira Kurosawa

    National Society of Film Critics Awards, USA

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best Cinematography

    Takao Sait1986 Won

    NSFC

    Award

    Best Film

    New York Film Critics Circle Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1985 WonNYFCC

    Award

    Best Foreign Language Film

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    51/61

    44

    San Sebastin International Film Festival

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1985 WonOCIC

    Award Akira Kurosawa

    Awards of the Japanese Academy

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best Art Direction

    Yoshir Muraki

    Shinobu MurakiAward of

    the

    Japanese

    Academy Best Music Score

    Tru Takemitsu

    Also for Himatsuri(1985) and Shokutaku no nai ie(1985).

    Won

    SpecialAward

    Masato Hara

    Best Cinematography

    Masaharu Ueda

    Takao Sait

    Best Lighting

    Takeji Sano

    Best Sound

    Fumio Yanoguchi

    Shtar Yoshida

    1986

    Nominated

    Award of

    theJapanese

    Academy

    Best Supporting Actor:

    Hitoshi Ueki

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    52/61

    45

    BAFTA Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best Foreign Language Film

    Serge Silberman

    Masato Hara

    Akira Kurosawa

    France/Japan.

    Won BAFTA Film AwardBest Make Up Artist

    Shohichiro Meda

    Tameyuki Aimi

    Chihako Naito

    Noriko Takemizawa

    Best Cinematography

    Takao Sait

    Masaharu Ueda

    Best Costume Design

    Emi Wada

    Best Production Design

    Yoshir Muraki

    Shinobu Muraki

    1987

    Nominated BAFTA Film Award

    Best Screenplay - AdaptedAkira Kurosawa

    Hideo Oguni

    Masato Ide

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    53/61

    46

    Blue Ribbon Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1986 Won Blue Ribbon AwardBest Film

    Akira Kurosawa

    Bodil Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1986 Won BodilBest European Film (Bedste europiske film)

    Akira Kurosawa(director)

    Boston Society of Film Critics Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best Cinematography

    Takao Sait

    Masaharu Ueda1986 Won BSFC Award

    Best Film

    Csar Awards, France

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best Foreign Film (Meilleur film tranger)

    Akira Kurosawa

    1986 Nominated Csar

    Best Poster (Meilleure affiche)

    Benjamin Baltimore

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    54/61

    47

    David di Donatello Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1986 Won David

    Best Director - Foreign Film (Migliore Regista

    Straniero)

    Akira Kurosawa

    Golden Globes, USA

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1986 Nominated Golden GlobeBest Foreign Film

    Japan.

    Independent Spirit Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1986 Nominated Special DistinctionAward

    Joseph Plateau Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    1986 Won Joseph Plateau Award Best Artistic Contribution

    London Critics Circle Film Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Director of the Year

    Akira Kurosawa1987 Won ALFS Award

    Foreign Language Film of the Year

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    55/61

    48

    Los Angeles Film Critics Association Awards

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best Foreign Film

    Tied with Historia oficial, La(1985).

    1985 Won LAFCA Award

    Best Music

    Tru Takemitsu

    Mainichi Film Concours

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best Director

    Akira Kurosawa

    Best Film

    Akira Kurosawa1986 Won Mainichi Film Concours

    Best Supporting Actor

    Hisashi Igawa

    Also for Tampopo(1985).

    National Board of Review, USA

    Year Result Award Category/Recipient(s)

    Best DirectorAkira Kurosawa

    1985 Won NBR Award

    Best Foreign Language Film

    Japan.

    Disponvel em: http://www.imdb.com/title/tt0089881/awardsAcesso em: 15 Jun 2007.

  • 7/23/2019 Marina Kazumi Okumura

    56/61

    49

    3

    ELENCO

    Diretor: Akira Kurosawa.Roteiristas: Akira Kurosawa, Hideo Oguni, Masato Ide.

    Produtores: Katsumi Furukawa, Serge Silberman, Masato Hara, Hisao Kurosawa.

    Msica Original: Tru Takemitsu.

    Edio: Akira Kurosawa.

    Cenrio: Jiro Hirai, Miysuyuki Kimura, Yasuyoshi Ototake, Tsuneo Shimura, Osumi Tousho

    Departamento de Maquiagem: Tameyuki Aimi, Yoshiko Matsumoto, Chihako Naito, Noriko Sato,

    Noriko Takamizawa, Shoshichiro Ueda.

    Principais Atores PersonagensTatsuya Nakadai Lord Hidetora Ichimonji

    Akira Terao Taro Takatora Ichimonji

    Jinpachi Nezu Jiro Masatora Ichimonji

    Daisuke Ryu Saburo Naotora Ichimonji

    Mieko Harada Lady Kaede

    Yoshiko Miyazaki Lady Sue

    Hisashi Igawa Shuri Kurogane

    Peter Kyoami

    Masayuki Yui Tango Hirayama

    Kazuo Kato Kage