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REFLEXÃO SOBRE OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DA OBRA DE VIGOTSKI Natália Cristina Luciano UNESP/Assis; Talitha Priscila Cabral Coelho UNESP/Assis. PROGRAD/UNESP. [email protected]; [email protected] . Eixo Temático: Teoria Histórico-Cultural e Educação REFLECTION ON THE ONTOLOGICAL FUNDAMENTALS OF VIGOTSKI WORK Resumo: A presente pesquisa discute a ontologia materialista histórico-dialética que fundamenta a obra do psicólogo soviético L. S. Vigotski (1896-1934). Resulta de uma investigação teórico-conceitual dos pressupostos de uma ontologia presentes na teoria vigotskiana que investiga as origens daquilo que diferencia os homens dos animais incorporando o desenvolvimento histórico da humanidade. Nosso objetivo é contribuir para a superação das leituras superficiais da obra de Vigotski, que rebaixam seu trabalho a uma caricatura da ênfase no social, já que são recorrentes as tentativas de leituras ecléticas de Vigotski, especialmente por um viés interacionista. Retornamos aos escritos de Marx para demonstrarmos as raízes basilares das ideias de Vigotski, no que tange a sua metodologia de análise e sua compreensão da atividade consciente fundada, prioritariamente, pela teleologia do trabalho. Entendemos que a teoria marxista fornece um método e categorias de análise indispensáveis para que possamos evidenciar a filiação da teoria vigotskiana ao materialismo histórico-dialético. Desta maneira, concluímos que os estudos fundamentados na Psicologia Histórico-Cultural

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REFLEXO SOBRE OS FUNDAMENTOS ONTOLGICOS DA OBRA DE VIGOTSKI Natlia Cristina Luciano UNESP/Assis; Talitha Priscila Cabral Coelho UNESP/Assis. PROGRAD/UNESP. [email protected]; [email protected]. Eixo Temtico: Teoria Histrico-Cultural e Educao

REFLECTION ON THE ONTOLOGICAL FUNDAMENTALS OF VIGOTSKI WORK

Resumo: A presente pesquisa discute a ontologia materialista histrico-dialtica que fundamenta a obra do psiclogo sovitico L. S. Vigotski (1896-1934). Resulta de uma investigao terico-conceitual dos pressupostos de uma ontologia presentes na teoria vigotskiana que investiga as origens daquilo que diferencia os homens dos animais incorporando o desenvolvimento histrico da humanidade. Nosso objetivo contribuir para a superao das leituras superficiais da obra de Vigotski, que rebaixam seu trabalho a uma caricatura da nfase no social, j que so recorrentes as tentativas de leituras eclticas de Vigotski, especialmente por um vis interacionista. Retornamos aos escritos de Marx para demonstrarmos as razes basilares das ideias de Vigotski, no que tange a sua metodologia de anlise e sua compreenso da atividade consciente fundada, prioritariamente, pela teleologia do trabalho. Entendemos que a teoria marxista fornece um mtodo e categorias de anlise indispensveis para que possamos evidenciar a filiao da teoria vigotskiana ao materialismo histrico-dialtico. Desta maneira, conclumos que os estudos fundamentados na Psicologia Histrico-Cultural investigam o ser social como resultado, ponto de chegada de mltiplas determinaes do real.

Palavras-chave: Materialismo Histrico-Dialtico; Ontologia; L. S. Vigotski; Psicologia Histrico-Cultural

Abstract: This research discusses the historical materialist-dialectical ontology that underlies the work of Soviet psychologist L.S. Vygotsky (1896-1934). Results of a theoretical and conceptual investigation of the assumptions of an ontology present in Vygotskian theory that investigates the origins of what distinguishes men from animals incorporating the historical development of mankind. Our goal is to contribute to overcoming the superficial readings of the work of Vygotsky, who debase their work to a caricature of the social focus, as are recurrent attempts eclectic readings of Vygotsky, especially for interactional gore. We return to the writings of Marx to demonstrate the basic roots of the ideas of Vygotsky, with respect to its methodology for analyzing and understanding the conscious activity based primarily on the rationale of the work. We understand that the Marxist theory provides a method and categories of analysis necessary for us to show the affiliation of Vygotskian theory to historical and dialectical materialism. Thus, we conclude that studies grounded in the Historic-Cultural Psychology investigates the social being as a result, the point of arrival of multiple determinations of the real.

Keywords: Historical Materialism, Dialectical; Ontology; L. S. Vygotsky; Historic-Cultural Psychology

A presente pesquisa resulta de uma investigao terico-conceitual que discute a ontologia materialista histrico-dialtica que fundamenta a obra do psiclogo sovitico L. S. Vigotski (1896-1934). Nosso objetivo contribuir para a superao das leituras superficiais da obra de Vigotski, que rebaixam seu trabalho a uma caricatura da nfase no social, j que so recorrentes as tentativas de leituras eclticas, especialmente por um vis interacionista.Carmo (2008) evidencia que a difuso do pensamento vigotskiano no Brasil ocorreu de modo tardio (no incio da dcada de 1980, portanto, no final do perodo da ditadura militar) e destaca os anos de publicao brasileira das primeiras obras de Vigotski: A formao social da mente em 1978 e Pensamento e Linguagem em 1987. Sawaia (2006) afirma que as publicaes feitas pela professora Silvia Lane (1933-2006) no campo da Psicologia Social, na primeira metade dos anos de 1980, foram responsveis por introduzir o nome de Vigotski no Brasil. Tuleski (2002) concorda que as publicaes nacionais fazendo referncia obra de Vigotski so recentes e acusa como caracterstica no rara desses estudos, as prticas de fragmentao e a falta de rigor epistemolgico com o significado dos conceitos vigotskianos (TULESKI, 2002). Silva (2013) tambm constata a ocorrncia de uma descaracterizao da obra de Vigotski, no somente no Brasil, mas no Ocidente como um todo retirando a historicidade de suas ideias na tentativa de dissoci-lo do marxismo. Para a autora, quando se desconsidera os fundamentos filosficos marxistas da obra vigotskiana, alm de esvaziar o contedo de seus textos tambm se desdobra na divulgao distorcida da obra de outro psiclogo sovitico, A. N. Leontiev (1903-1979). notrio, portanto, que a pura e simples oportunidade de fazermos a leitura de textos originais do Vigotski em nossa prpria lngua no resulta, necessariamente, em um domnio de fato das suas ideias. Estamos diante da obra de um pensador cujas contribuies deixadas proporcionaram uma verdadeira virada copernicana no campo da Psicologia (DELARI JUNIOR, 2006). Cnscios deste valor e atentos aos riscos de uma reviso incorrer na deformao ou vulgarizao do pensamento do autor, fizemos uma anlise sistemtica da base terica que fundamenta seus escritos. Retornamos s ideias de Marx para demonstrarmos as razes basilares do pensamento de Vigotski, no que tange a sua metodologia de anlise e sua compreenso da atividade consciente fundada, prioritariamente, pela teleologia do trabalho. Entendemos que a teoria marxista fornece um mtodo e categorias de anlise indispensveis para que possamos evidenciar a filiao da teoria vigotskiana ao materialismo histrico-dialtico.Ao fundar a Psicologia Histrico-Cultural, na dcada de 20 do sculo XX, Vigotski filia-se aos pressupostos de uma ontologia materialista e dedica-se a investigar as origens daquilo que diferencia os homens dos animais, reconhecendo nas funes rudimentares o ponto de partida que une o passado ao presente, do mais primitivo compreenso das etapas superiores do desenvolvimento humano. Vigotski liderou pesquisas experimentais e elaborou revises crticas de diversas publicaes de seu tempo. Como sntese deste percurso intenso de investigaes, props uma nova psicologia, que incorpora o desenvolvimento histrico da humanidade na investigao da ontognese, ou seja, que articula o entrelaar da linha de desenvolvimento filogentico (evoluo biolgica), ontogentico (do homem particular, sua histria de vida, seus interesses, seu pensamento, sua linguagem) com o desenvolvimento histrico da humanidade. Nesta perspectiva, o homem se constitui em uma unidade biolgico/cultural e indivduo/sociedade. Na medida em que cria e se apropria de instrumentos e signos da cultura, modifica no somente seu corpo orgnico, mas tambm sua forma de agir no mundo. Isso equivale a dizer que o indivduo s existe como um ser social determinado prioritariamente pelo momento histrico. Ao longo da sua obra[footnoteRef:1], em meio ao processo revolucionrio russo, Vigotski salienta a complexidade de se pensar o sujeito como membro de uma sociedade que o reveste, anterior e independente de sua vontade, de modo que a composio de sua personalidade contm um carter dependente deste modo de sociabilidade (VIGOTSKI 1991, 1996, 1997, 1999, 2000, 2004, 2009). Tendo em vista que as razes basilares destas ideias de Vigotski se encontram nos clssicos do marxismo, retornamos aos escritos de Marx, auxiliados pelas explicaes de um dos seus destacados intrpretes, o filsofo hngaro G. Lukcs (1885-1971). [1: Vigotski morreu de tuberculose com 37 anos. Em funo da sua breve carreira, diferentemente de outros autores, no teve oportunidade de revisar e reformular sua teoria. ]

A obra de Marx resulta de uma densa investigao da sociedade burguesa pela via analtico-abstrativa[footnoteRef:2]. Isso significa que, para o autor, o abstrato aparece no pensamento como o processo da sntese de mltiplas determinaes do concreto, como resultado e no como ponto de partida. Assim, desvendar o real, ou seja, aquilo que est aparente, visvel aos nossos olhos, sntese de um diverso, exige que faamos uma anlise das mltiplas determinaes que o constitui. [2: Este mtodo, que permeia toda sua obra, objeto de exposio de Marx (1974) no texto O mtodo da economia poltica.]

Deste modo, em termos metodolgicos, para compreender o capitalismo (a sociedade da troca de mercadorias que visa acumulao de capital), o ponto de partida seria o estudo da mercadoria, clula me do capital, unidade do diverso, cujas determinaes no so apreendidas na aparncia (MARX, 2011). De acordo com Marx, se ao invs disso, partssemos, por exemplo, da populao, teramos apenas uma abstrao, por desprezarmos as classes sociais que a compem. Se elegssemos a classe social como ponto de partida, ainda assim, teramos um termo vazio de sentido se ignorssemos os elementos que lhe do forma (como a diviso social do trabalho, o trabalho assalariado, o capital, etc.). Por meio deste caminho metodolgico que parte do abstrato ou concreto sensvel, aparente na empiria, no caso do exemplo dado a mercadoria ao concreto sntese do diverso (as relaes capitalistas), possvel obter conceitos cada vez mais simples (ex.: fora de trabalho, meios de produo, trabalho excedente, etc.); samos do concreto idealizado at atingirmos as determinaes mais simples. Na obra principal de Marx, O Capital, a sociedade atual apresentada como uma coleo de mercadorias, algo possvel de se constatar na aparncia e que, ao longo de sua exposio, vai perdendo seu carter abstrato, visvel, aparente, e vai ganhando concretude, complexidade. Ao discorrer e analisar as mltiplas determinaes da sociedade capitalista, Marx supera importantes pensadores da economia poltica de at ento (entre eles A. Smith, D. Ricardo, S. Mill) medida que segue desvelando a essncia do modo capitalista de produo. Explicita, inclusive, que o trabalho na forma social do capital transformado em mais uma mercadoria[footnoteRef:3]. [3: A respeito da emergncia da fora de trabalho como mercadoria, Marx explica que: O produtor direto, o trabalhador, s pode dispor de sua pessoa depois que deixou de estar vinculado gleba e de ser escravo ou servo de outra pessoa. Para vender livremente a sua fora de trabalho, levando sua mercadoria a qualquer mercado, tinha ainda de livrar-se do domnio das corporaes, dos regulamentos a que elas subordinavam os aprendizes e oficiais e das prescries que entravavam o trabalho. Desse modo, um dos aspectos desse movimento histrico que transformou os produtores em assalariados foi sua libertao da servido e da coero corporativa; e esse aspecto o nico que existe para nossos historiadores burgueses. Mas os que se emanciparam s puderam se tornar vendedores de si mesmos depois que lhes roubaram todos os seus meios de produo e os provaram de todas as garantias que as velhas instituies feudais asseguravam sua existncia. Os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram de remover os mestres das corporaes e os senhores feudais, que possuam o domnio dos mananciais das riquezas. Sob esse aspecto, representa-se sua ascenso como uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privilgios revoltantes, contra as corporaes e os embaraos que elas criavam ao livre desenvolvimento da produo e livre explorao do homem pelo homem (MARX, 1998, p. 829).]

Consideramos que, graas ao desenvolvimento das foras produtivas, vivenciado por Marx em meados do sculo XIX, as condies materiais estavam postas e tornou-se acessvel ao pensamento humano a essncia do capital (materializada na obra O Capital) no como a representao catica do todo, e sim com uma rica totalidade de determinaes e relaes, representao do concreto pensado (MARX, 1974, p. 122). Marx, que contou com a colaborao de Frederich Engels (1820-1895), contribuiu para compreenso da gnese do humano, do salto do natural (orgnico) ao social. Com base em suas investigaes, consideramos as manifestaes dos fenmenos tipicamente humanos (pensamento, linguagem, memria lgica, domnio da ateno, criatividade, etc.) como resultado, ponto de chegada, produto de um desenvolvimento, portanto, chave para compreenso do que o precedeu (da sua gnese). Marx provou, atravs de reviso bibliogrfica-documental, que os estgios mais primitivos do humano, bem como as sociedades antigas podem ser reconstrudos no pensamento, tendo como base as manifestaes atuais, superiores, no capitalismo. Nos Manuscritos Econmicos Filosficos, ele afirma que:

A sociedade burguesa a organizao histrica mais desenvolvida, mais diferenciada da produo. As categorias que exprimem suas relaes, a compreenso de sua prpria articulao, permitem penetrar na articulao e nas relaes de produo de todas as formas de sociedades desaparecidas, sobre cujas runas e elementos se acha edificada, e cujos vestgios, no ultrapassados ainda, leva de arrasto, desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significao etc. A anatomia do homem a [uma] chave da anatomia do macaco. O que nas espcies animais inferiores indica uma forma superior no pode, ao contrrio, ser compreendido seno quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia da antigidade etc. (MARX, 1978, p. 120).

Por este mtodo de anlise, elaborado e posto em exerccio por Marx na investigao do capitalismo, em que o mais complexo uma chave para entendermos o menos complexo, temos tambm uma concepo do que a realidade e do que o homem, para alm da aparncia, em sua gnese e desenvolvimento. Portanto, compreender o humano pelo mtodo materialista e dialtico exige que se faa uma abordagem gentica (que busque a origem) da complexidade deste objeto real, em seu processo histrico, que articule a sua gnese com a configurao presente. Notadamente, os estudos de Marx, de modo geral, se objetivaram como um desvendamento da sociedade burguesa com contribuies inclinadas ao campo filosfico, sociolgico e econmico. Todavia, sua obra nos fornece, para alm de uma discusso metodolgica (como fizemos acima), categorias de anlise indispensveis para que possamos evidenciar a filiao da teoria vigotskiana ao materialismo histrico-dialtico.Para tanto, nos debruamos, inicialmente, sobre a categoria trabalho, por meio da qual se desdobram todas as outras categorias (tais como: conscincia, diviso social do trabalho e alienao do trabalho). Aqui, aventuramo-nos na difcil tarefa de sintetizar e destacar alguns elementos que julgamos indispensveis para compreenso dos conceitos e definies desenvolvidas por Vigotski ao tratar da atividade consciente (contedo que no trataremos neste trabalho).No livro Para uma Ontologia do Ser Social, Lukcs (1981a, 1981b) expe os fundamentos ontolgicos das categorias especficas do ser social[footnoteRef:4], apreendendo a manifestao do humano em sua origem (formas precedentes) e desenvolvimento. O autor explica que Marx destacou como categoria fundante do ser social o trabalho, ou seja, a atividade vital de reproduo do homem. Encontramos nela uma ontologia, ou seja, uma teoria explicativa da gnese do humano que parte da prpria vida dos homens, da atividade que eles realizam objetivada no mundo concreto. [4: Oldrini (1996) esclarece que, nesta obra, Lukcs concebe ontologia criticamente, partindo do conceito hartmanniano e indo alm; portanto, se afasta de uma ontologia dogmtica, apriorstica, j condenada por Kant. Lessa (2007) sugere como fio condutor destes seus ltimos estudos: (...) explicitar as mediaes sociais que fazem do homem o nico demiurgo de seu prprio destino, de tal modo a demonstrar a possibilidade ontolgica (que no significa a viabilidade prtica imediata, nem implica num programa) da revoluo comunista (na acepo marxiana do termo) (p. 86). Na defesa de uma ontologia marxista, Lukcs estabeleceu uma adeso crtica ao stalinismo e tambm um dilogo crtico com o que de mais significativo ocorreu no debate terico do sculo XX (LESSA, 2007).]

A maioria das vezes em que os mais importantes filsofos do nosso tempo e do passado trataram da ontologia do ser social, elucida Lukcs (1981b), fizeram-no ora considerando o ser social tal qual os outros seres da natureza, ora considerando o homem como algo radicalmente diverso dos outros seres em geral[footnoteRef:5]. J em Marx, encontramos a anlise de toda uma srie de determinaes categoriais imbricadas trabalho, linguagem, cooperao, diviso do trabalho, etc. , as quais possibilitam novas relaes da conscincia com a realidade e, em decorrncia, consigo mesma. Nesta perspectiva, com a anlise da gnese e desenvolvimento destas categorias, podemos obter o carter ontolgico concretamente apreendido como um momento de passagem (salto qualitativo) da prevalncia da vida social com relao vida orgnica (LUKCS, 1981b). [5: Encontramos semelhana nesta ideia com a crtica de Vigotski chamada velha Psicologia que, ora objetivista, ora subjetivista, desconsidera o carter social e qualitativamente diferente da atividade humana.]

Do salto ontolgico, necessrio para transformao do ser em outro ser qualitativamente diferente, Marx destacou, dentre outras, a categoria trabalho, por ter o trabalho um carter intermedirio, enquanto as outras categorias se desdobram no ser social j constitudo: quaisquer manifestao delas [outras categorias], ainda que sejam muito primitivas, pressupem o salto como j acontecido (LUKCS, 1981b, p. 2).Portanto, o trabalho possui papel prioritrio no salto ontolgico. o produto do trabalho que o homem pode usar apropriadamente (pois possui um valor de uso[footnoteRef:6]) para a reproduo da vida, a condio de sua existncia. Mas o que o torna categoria ontolgica central que esta necessidade de manuteno da subsistncia, imbricada a certo domnio dos elementos da natureza, se transforma em um posicionamento diferente diante da realidade, uma nova posio teleolgica (um agir intencionalmente) na produo de meios para garantir a subsistncia, que se cristaliza no produto do seu trabalho. [6: A utilidade de uma coisa faz com que ela tenha um valor-de-uso. Mas esta utilidade no algo areo. Determinada pelas propriedades materialmente inerentes mercadoria, s existe atravs delas (Marx, 2011, p. 58).]

A finalidade nasce de uma necessidade humano-social; mas, para que ela se torne uma verdadeira posio de um fim, necessrio que a busca dos meios, isto , o conhecimento da natureza, tenha chegado a um certo nvel adequado; quando tal nvel ainda no foi alcanado, a finalidade permanece um mero projeto utpico, uma espcie de sonho, como, por exemplo, o vo foi um sonho desde caro at Leonardo e at um bom tempo depois. Em suma, o ponto no qual o trabalho se liga ao pensamento cientfico e ao seu desenvolvimento , do ponto de vista da ontologia do ser social, exatamente aquele campo por ns designado como busca dos meios (LUKCS, 1981b, p. 14).

Esta posio teleolgica consistiu inicialmente na ao direcionada a um fim e mediada pela memorizao do nexo (lgica) entre o real e a satisfao das necessidades vitais. Um exemplo de teleologia na vida do homem primitivo o domnio de um elemento da natureza como a pedra e o efeito de despeda-la e torn-la mais pontiaguda, aps o choque de uma pedra com outra, para facilitar o abate da presa. Temos aqui uma ao sobre as duas pedras, cuja finalidade ser o abate do animal para alimentar-se, lascar a pedra, obviamente, no sacia a fome, mas entre a fome e o abate temos a mediao da pedra e da ao de lasc-la para melhor abater. Destarte, na gnese das criaes humanas encontramos a imbricao dialtica entre realizar trabalho e conhecer a realidade, em que o ato de conhecer transforma a realidade conhecida e o sujeito que conhece.

Antes de tudo, o trabalho um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua prpria ao impulsiona, regula e controla seu intercmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas foras. Pe em movimento as foras naturais de seu corpo, braos e pernas, cabea e mos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma til vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua prpria natureza (MARX, 2011, p. 211).

Quando, antes da ao (consciente), j se espera um determinado resultado, temos o germe do reflexo consciente, da especificidade humana de idealizar antes de concretizar.

Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele figura na mente sua construo antes de transform-la em realidade. No fim do processo do trabalho, aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do trabalhador. Ele no transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 2011, p. 212).

Nesta passagem, temos enunciada a categoria ontolgica central do trabalho. por intermdio dele que se realiza, no mbito do ser material, uma posio teleolgica que d origem a uma nova objetividade. O trabalho se torna o modelo de toda prxis social, que, atravs de mediaes s vezes muito complexas, sempre so transformadas em realidade as posies teleolgicas, as quais, em ltima anlise, so materiais (LUKCS, 1981b, p. 5).Ao compreendermos a gnese do ser social marcada pela posio teleolgica e a capacidade especificamente humana de produzir idealmente, ou seja, o concreto pensado na conscincia antes da produo material, temos maior evidncia contedos afetos ao campo da psicologia. O resultado da teleologia do trabalho se materializa nas criaes humanas, no mundo objetivo, incorpora-se ao tempo e vida ( histria), transformando dialeticamente a realidade e o prprio homem, fundando a humanidade. O homem, produto e produtor, salta para novas possibilidades/alternativas de produzir sua subsistncia em contnuas realizaes de posies teleolgicas. Embora jamais possa se desvincular da base biolgica, sofre uma ruptura, um recuo dos limites naturais e concomitante desenvolvimento da sociabilidade que, por sua vez, move que movido pelo desenvolvimento da linguagem, do pensamento, etc. Quando um projeto ideal se realiza materialmente, ou seja, quando uma finalidade pensada transformada em uma finalidade material, ao confrontarmos seu resultado com a natureza, encontramos algo que qualitativamente novo, algo que espontaneamente no surgiria na natureza, possibilitando compreender a peculiaridade da atividade humana consciente. Exemplificando:

A casa tem um ser material tanto quanto a pedra, a madeira, etc. No entanto, a posio teleolgica faz surgir uma objetividade inteiramente diferente com relao aos elementos primitivos. Nenhum desenvolvimento imanente das propriedades, das legalidades e das foras operantes no mero ser-em-si da pedra ou da madeira pode fazer derivar uma casa. Para que isto acontea, necessrio o poder do pensamento e da vontade humanos que organize tais propriedades de uma forma inteiramente nova em seus fundamentos (LUKCS, 1981b, p. 11).

Por este exemplo, notamos que Lukcs (1981b) enfatiza o papel decisivo da conscincia na ao do homem e como momento essencialmente separatrio (homem X animal), ao invs de frisar a mera fabricao de produtos em si. O autor define o homem como um ser que d respostas diante das carncias (adversidades do meio). Se ele d respostas porque perguntas foram feitas, as quais demandaram elementos, ou seja, um certo domnio do que existe (de como a natureza se movimenta) para serem formuladas. Por meio da atividade laborativa o homem generaliza estas possibilidades de soluo da carncia, desenvolve a vontade e o pensamento, o que pem a conscincia no mais como um epifenmeno da reproduo biolgica.

A realizao de finalidade, como categoria da nova forma de ser, tem, alm disso, uma importante conseqncia: a conscincia humana, com o trabalho, deixa de ser, em sentido ontolgico, um epifenmeno. (...) Somente no trabalho, quando pe os fins e os meios de sua realizao, com um ato dirigido por ela mesma, com a posio teleolgica, a conscincia ultrapassa a simples adaptao ao ambiente o que comum tambm quelas atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza de modo involuntrio e executa na prpria natureza modificaes que, para os animais, seriam impossveis e at mesmo inconcebveis (LUKCS, 1981b, pp. 17-18).

Portanto, ao homem, caracterizado como ser de necessidades, o carecimento material motor das perguntas e respostas humanas da reproduo consciente individual e social, colocando em movimento o enriquecimento da atividade com novas mediaes.De acordo com esta viso de homem, que recorre materialidade para explicar a vida, o ser humano cria, pensa, escolhe a partir das condies materiais que lhe so postas, pelas conquistas e transformaes anteriormente objetivadas e acumuladas, pelas suas necessidades e pelas novas relaes que vai estabelecendo com o mundo e com os outros homens (MARX & ENGELS, 1987). Encontramos semelhante compreenso em Lenin (1982) quando afirma que, para Marx, a natureza gozou de existncia sem a presena humana, deu base para seu aparecimento; e a apario de um mundo humanizado inaugura uma nova esfera ontolgica. Isso equivale dizer que a realidade existe, anterior ao homem, cognoscvel (possvel de ser mais ou menos captada pela mente humana), embora o reflexo do real no possua identidade com o real, mas a sua imagem aproximada condicionada pela materialidade (LENIN, 1982). Vigotski (1996, p. 164), ao tratar do incessante movimento do reflexo consciente identifica claramente as razes de sua concepo ontolgica e metodolgica nas teses matriciais do materialismo histrico-dialtico, reafirma sua filiao tese geral de todo o materialismo, e conclui: conscincia reflete a existncia.

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