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  1 «Da imagem literária à imagem cinematográfica: o “concreto” e o “icónico” como vocação narrativa»  Ma ri a d o R o ri o L up i B e llo (Universidade Aberta) 1. Quando se abordam as relações entre a literatura e o cinema, torna-se evidente aquele  ponto de ligação fundamental que r emete para o facto de ambas se constituírem como artes temporais, portanto aptas a construir e a comunicar histórias, no seu fluir e nas suas transformações. Se a narratividade constitui o traço distintivo de alguns dos  principais géneros literários (o romance, a novela, o conto)    enquanto actualização dessa virtualidade transtemporal do discurso que é o modo narrativo   , no caso do cinema não é menos evidente a estreita ligação da sua estrutura expressiva a uma sequencialidade temporal. De facto, também no filme é visível essa dimensão  profundamente dependente do fluxo temporal enquanto  sequência causal de acontecimentos e enquanto visibilidade da transformação em acção. Ainda que estreitamente ligado ao universo do espectáculo, o cinema revelou, desde o seu início, o irreprimível impulso de contar histórias, sendo evidente que o desenvolvimento das suas  principais linhas de força, enquanto fenómeno artístico, passou justamente pela exploração do seu potencial narrativo.  Na sua conhecida obra Temps et Récit , o filósofo francês Paul Ricoeur sublinha o carácter narrativo (ou pré-narrativo) da experiência temporal enquanto dimensão da acção humana, afirmando ser este o factor que assegura a compreensibilidade do fenómeno literário. É numa linha decorrente desta perspectiva que aqui tomamos o

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«Da imagem literária à imagem cinematográfica: o “concreto” e o “icónico” como

vocação narrativa»

 Maria do Rosário Lupi Bello

(Universidade Aberta)

1. Quando se abordam as relações entre a literatura e o cinema, torna-se evidente aquele

ponto de ligação fundamental que remete para o facto de ambas se constituírem como

artes temporais, portanto aptas a construir e a comunicar histórias, no seu fluir e nas

suas transformações. Se a narratividade constitui o traço distintivo de alguns dos

principais géneros literários (o romance, a novela, o conto)  –  enquanto actualização

dessa virtualidade transtemporal do discurso que é o modo narrativo  – , no caso do

cinema não é menos evidente a estreita ligação da sua estrutura expressiva a uma

sequencialidade temporal. De facto, também no filme é visível essa dimensão

profundamente dependente do fluxo temporal enquanto sequência  causal de

acontecimentos e enquanto visibilidade da transformação em acção. Ainda que

estreitamente ligado ao universo do espectáculo, o cinema revelou, desde o seu início, o

irreprimível impulso de contar histórias, sendo evidente que o desenvolvimento das suas

principais linhas de força, enquanto fenómeno artístico, passou justamente pela

exploração do seu potencial narrativo.

Na sua conhecida obra Temps et Récit , o filósofo francês Paul Ricoeur sublinha o

carácter narrativo (ou pré-narrativo) da experiência temporal enquanto dimensão da

acção humana, afirmando ser este o factor que assegura a compreensibilidade do

fenómeno literário. É numa linha decorrente desta perspectiva que aqui tomamos o

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conceito de narrativa, ou seja, enquanto estrutura que organiza a experiência humana

da  temporalidade, não podendo, portanto, ser reduzida a um acto essencialmente

linguístico ou de natureza “acessória”. Pelo contrário, ela manifesta a percepção do

fluxo temporal como fenómeno de transformação permanente, através do registo

sucessivo de acontecimentos, registo esse que evidencia uma determinada apreensão da

realidade, constituindo-se como particular forma de conhecimento (de acordo com a sua

raiz sânscrita gnâ). Monika Fludernik acentua esta dimensão cognitiva da narrativa,

afirmando que «ela é a única forma de discurso que pode retratar a tomada de

consciência […] a partir do seu interior» e sublinha que a narrativa é «um conceito de

estrutura de profundidade e não está restrita à prosa ou ao verso épico». Na sua opinião,

a narratologia não deve, pois, reduzir-se ao âmbito da narrativa ficcional, mas antes

estender-se à «narrativa natural» (ou à conversação espontânea - «spontaneous

conversational storytelling» - que é de carácter oral), bem como ao drama e ao filme1.

Se para muitos a afirmação da dimensão narrativa do cinema é uma constatação óbvia e

pacífica  –  o que não significa, no entanto, que as suas causas e consequências não

assumam uma complexidade merecedora de toda a atenção  –  para outros tal

consideração reveste-se de certa problematicidade. Em parte essa resistência radica

numa concepção redutora do conceito de narrativa cinematográfica, que a faz coincidir

exclusivamente com o chamado “cinema narrativo”, característico de uma certa estética

fílmica (dominante sobretudo nos anos 50 do século XX) que transpôs para a tela os

códigos da literatura do século XIX, onde o tratamento da temporalidade obedece

essencialmente a uma sequencialidade simplificada; no extremo oposto deste tipo de

reticência encontra-se a posição de um determinado cinema de arte, descendente

1 Fludernik, 1996:26-27.

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longínquo da “nouvelle vague”, que se sente desconfortável com a definição da obra

fílmica como objecto narrativo, passível de uma análise que faça uso de categorias

assumidamente narratológicas, uma vez que a sua natureza expressiva radica na

subversão radical da representação da temporalidade e, portanto, na recusa da

cronologia como dado constituinte do filme. Embora de modos antagónicos, ambos os

posicionamentos subestimam a dimensão mais profunda e complexa do conceito de

narrativa, onde a noção de sequência não coincide necessariamente com o tratamento de

um tempo cronológico linear, mas antes permite o cruzamento de diversos estratos

significativos, uma vez que diz respeito a todo um processo de transformações que se

verificam no tempo.

Ao procurar demonstrar que a noção de sequência não significa que a narrativa seja, em

sentido estrito, cronológica, Ricoeur afirmou que toda a narrativa é constituída por duas

diferentes dimensões: a cronológica   propriamente dita (que caracteriza a “história”

enquanto série de acções e experiências) e a não-cronológica ou configuracional (que

corresponde à “intriga” enquanto conjunto inteligível que governa a sucessão dos

eventos)2. Outros autores, como Propp, Greimas, Lévi-Strauss, Cesare Segre,

sublinharam a dimensão acrónica da narrativa, através da referência ao modelo

actancial, onde a relação paradigmática (que se estabelece ao nível semântico) assume

tanta ou mais relevância na produção de sentidos quanto a relação sintagmática

(respeitante à conexão das acções no eixo da cadeia discursiva). Referindo-se ao

conteúdo narrativo independente da matéria e da forma de expressão através da qual é

comunicado, Segre remete para o conceito aristotélico de  fábula, admitindo, desde logo,

que o seu carácter configuracional, enquanto estrutura de profundidade, permite

2 Cf. Ricoeur, «Narrative Time» in Mitchell, 1981:174.

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considerar a possibilidade da sua transposição: «Uma fábula pode narrar-se ou pode

representar-se: pode narrar-se com palavras ou com gestos (mimo), ou com uma

instrumentação de palavras, gestos, sons, etc. (filme)»; «são possíveis várias realizações

de uma mesma fábula, porque a fábula constitui um referente bem articulado e

autónomo  –  uma invariante representável mediante muitas variáveis (daí as possíveis

transposições de um tipo de realização para outro»3.

Mas o ponto que nos importa aqui sublinhar é o facto de ser precisamente este aspecto  –  

a narratividade  –  aquele onde o confronto entre literatura e cinema assume uma

profundidade mais significativa e fecunda. Muito mais do que a tantas vezes evocada (e

sem dúvida pertinente) capacidade imagética da literatura, é esta dimensão a principal

responsável pelo facto de a adaptação da literatura ao cinema ser um fenómeno

incomparável com qualquer outro tipo de relação entre a literatura e outras artes

(obviamente aproveitado ao máximo pela poderosa máquina de fabricar histórias e de

fazer dinheiro que é a indústria cinematográfica). Tal fenómeno tem lugar não apenas

 porque a primeira fornece um “material” já organizado e facilmente aproveitado pelo

segundo, mas porque a narrativa tem uma dimensão estrutural, estética e epistemológica

profunda, que ultrapassa em grande medida a mera “imposição” de uma estratégia

discursiva a um suposto “caos” da existência. Escusado será dizer que é também a

concepção que reduz a narrativa à mera artificialidade de uma ordem “construída” –  

concepção essa incapaz de penetrar no nível de profundidade em que a narratividade

realmente consiste  –  aquela que, ultimamente, subjaz à resistência ao valor dessa

categoria na abordagem da obra fílmica. Tal resistência radica, sobretudo, numa

determinada concepção ideológica, resultante de um aproveitamento redutor de certa

3 Segre, 1999:307.

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interpretação de cariz deleuziano, que julga defender a “essência” cinematográfica

libertando-a do “constrangimento” narrativo – como se a narratividade da imagem em

movimento pudesse ser uma mera via “opcional” (e, eventualmente, mais pobre), em

vez de uma evidência expressiva, intrínseca ao processo de captação da transformação

em acção.

Narrar, contar uma sequência de acontecimentos que se desenrolam num determinado

espaço e num determinado tempo - quer através da linguagem verbal, quer através da

representação iconográfica ou simbólica ou de qualquer outra forma de expressão

artística - é um impulso original no homem, fruto, não só do seu desejo de

conhecimento e de comunicação, mas também da sua permanente necessidade de

significado e da constatação, mais ou menos consciente, da contingência da experiência

terrena da vida humana. A questão da natureza e da importância da narrativa liga-se

directamente à questão da cultura (enquanto particular cosmovisão, o que aponta

também para as dimensões interpretativa e representativa da realidade que a narrativa

enforma) e, portanto, da natureza da própria humanidade. Afirma Hayden White:

«Como facto panglobal de cultura, a narrativa e a narração são menos problemas do que

simplesmente dados. Como o falecido (e já profundamente saudoso) Roland Barthes

notou, a narrativa "existe simplesmente como a própria vida… internacional,

transhistórica, transcultural"»4.

Ora o cinema, enquanto arte que, no dizer do grande cineasta e teórico Andrei

Tarkovsky, «capta o tempo em forma de facto», é um meio privilegiado de “dar a ver” e

de proporcionar a própria experiência do “acontecimento”, que é a categoria espácio-

 4 Hayden White, «The Value of Narrativity in the Representation of Reality» in Mitchell, 1981: 1.

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temporal na qual se fundamenta a acção de qualquer objecto narrativo. Poder-se-á

colocar, evidentemente, a pergunta acerca da relação entre o cinema e o teatro, lugar por

excelência da representação do «movimento total da acção», segundo a terminologia de

Hegel. Mas, embora reconhecendo a relação que o cinema manifesta com a forma de

expressão dramática (devido ao seu carácter de representação, arte de opsis)5, a

perspectiva que adoptamos sublinha a intimidade que ele revela com a arte literária,

devido à propriedade narrativa que o movimento da imagem cinematográfica implica.

Käte Hamburger é clara na defesa do motivo pelo qual as companhias cinematográficas

preferem geralmente os romances às peças de teatro: «De modo geral, a força narradora

do cinema é tão grande que o factor épico parece ser mais decisivo para a sua

classificação do que o dramático. […] A imagem móvel é narrativa e parece fazer 

constituir o filme numa forma épica e não dramática. Um drama filmado torna-se

épico»6. Por esta razão, alguns, como Paulo Filipe Monteiro, correctamente situam o

cinema, do ponto de vista genológico, na transversalidade entre o drama e a épica.

O realizador português Manoel de Oliveira tem demonstrado, quer através do estilo

adoptado na maioria da sua produção cinematográfica, quer através de entrevistas e

outros testemunhos acerca da natureza do cinema, uma particular percepção da força

narrativa que emerge do registo fílmico da encenação teatral. Não nos referimos aqui ao

modo como o realizador trata o tempo enquanto “durée”, usando abundantemente de

planos fixos ou muito longos, (o que introduz uma desaceleração narrativa que tem

sobretudo que ver com uma almejada possibilidade de contemplação) mas sim àquela

5 Aguiar e Silva (1990:206-207) estabelece uma distinção pertinente entre modo narrativo e mododramático: «A narrativa, com efeito, representa a interacção do homem com o seu meio físico, histórico esocial, correlacionando sempre uma acção particular com o “estado geral do mundo”, com a “totalidade

da sua época”, com o “terreno substancial” em que ela se inscreve e desenvolve. […] O drama, por suavez, procura representar também a totalidade da vida, mas através de acções humanas que se opõem, deforma que o fulcro daquela totalidade reside na colisão dramática».

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sua particular concepção de cinema assente no valor cénico e teatral da imagem e da

palavra. De facto, para Oliveira o cinema não é uma técnica de câmara, mas coincide

com aquilo que se coloca diante da câmara; o teatro é a representação da vida, a síntese

de todas as artes, e o cinema mais não é do que a possibilidade de fixação daquilo que o

teatro mostra. Através da extensão da visão do espectador para campos impossíveis de

alcançar no palco e, sobretudo, através da continuidade temporal que o registo fílmico

permite, o cinema revela um potencial narrativo que vai ao ponto de abrir as portas para

o eterno, para o intemporal. Ainda que aposte numa encenação do real que muitos

apelidam de “barroca” ou “artificial”, o realizador sublinha que a sua interferência vai

sempre no sentido da procura da verdade «objectiva». O seu propósito é declaradamente

“realista”, acreditando na possibilidade de encontro e na revelação da “essência” da

realidade através do recurso à arte como olhar interpretativo. Por isso, Oliveira afirma

que representar a realidade não é simulá-la, mas «representá-la apenas»7. É este desejo

que justifica a manipulação artística, uma manipulação que não se esconde, mas antes,

segundo a sensibilidade «moderna», se auto-expõe, se apresenta, como veículo para a

penetração da realidade.

2. Consideremos agora uma outra dimensão dos dois objectos narrativos que

abordamos: o peso da palavra, esse signo verbal que tanto os aproxima – na medida em

que é decisivo em ambos  –  como os afasta  –  pois, se constitui a base do sistema

semiótico secundário que é a literatura, tem, no cinema, um valor complementar ou

mesmo equivalente a outros códigos fílmicos.

6 Hamburger, 1975:161.7 Cf. A.A.V.V., 1981:34.

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Oliveira é, neste domínio, como em muitos outros, uma figura original. Para o

realizador, a palavra é de facto equivalente a uma imagem. Filmar uma palavra é como

filmar um rosto. A palavra não tem, pois, no seu cinema, um valor complementar, mas

antes existe lado a lado com a imagem e com a música, evidenciando o seu lugar e o seu

peso próprios, que é, nada mais nada menos, que o de ser «a vida, a representação da

vida»8, «a coisa mais rica do mecanismo humano»9. Além disso, como nos disse o

realizador numa entrevista em Coimbra, na Quinta das Lágrimas, é a palavra que

implica o movimento, é ela que é dinâmica. Sem a palavra, o cinema seria mero registo

de imagens “estáticas”, como a fotografia, ainda que sequenciais, ou desprovidas do seu

sentido último. Yann Lardeau, no artigo «Le théatre et son ombre», esclarece a este

propósito, com pertinência : «Não é o teatro que Manoel de Oliveira filma como teatro:

é o texto»10.

Mas este valor verbal é, de uma forma ou de outra, evidente em todo o cinema. É

corrente a afirmação de que o enunciado verbal pode ter uma correspondência no plano

cinematográfico (quando se considera o caso da adaptação cinematográfica), embora o

inverso não seja verdadeiro, pois o plano contém virtualmente uma pluralidade de

enunciados narrativos que se sobrepõem. Analisando o peso específico da imagem

publicitária, Roland Barthes atribui-lhe duas capacidades de fixação do sentido, através

de uma dupla função: a de «ancoragem» (que permite a escolha correcta do «bom nível

de percepção») e a de «etapa» (onde a palavra faz avançar a acção ao colocar sentidos

que não se encontram na imagem). Para Barthes a função de etapa é rara na imagem

fixa e torna-se muito importante no cinema11.

8 Baecque; Parsi, 1999:72.9 Cf. Decaux, 1983:46.10 Lardeau; Parsi; Tancelin, 1988:34.11 Cf. Barthes, 1977:32-51.

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O que importa reter da teoria barthesiana, no contexto da presente comunicação, é a

constatação de que a imagem visual, no plano da significação, tem necessidade da

palavra como factor de fixação do sentido. Esta clarificação é de extrema importância

por diversas razões, dentre as quais consideramos agora imprescindível a de não

simplificar (no sentido de não tornar simplista) a questão da iconicidade da imagem,

reduzindo esta característica a uma capacidade analógica exclusivamente visual12, como

tantas vezes se faz, ao querer opor a literatura, arte da palavra, ao cinema, arte da

imagem.

Paul Ricoeur discute bem este problema, recorrendo a Platão e à comparação

estabelecida, no Fedro, entre pintura e escrita13. Para o filósofo grego, as imagens de

ambas  –  pintura e escrita  –  são mais fracas e menos reais do que os seres vivos, na

medida em que apenas reproduzem a sua sombra, exteriorizando e, portanto,

contrariando o processo interior da reminiscência. O resultado torna-se uma simples

rememoração, que não coincide com a realidade mas apenas com a semelhança dela:

não se trata de sabedoria, mas da sua aparência. Ricoeur propõe um diverso conceito de

pintura, que não coincide com a mera reduplicação umbrática da realidade mas antes se

define, pelo contrário, como «aumento icónico» dessa realidade, através da estratégia de

reconstrução do real com base num alfabeto óptico limitado. «Deste modo, o principal

efeito da pintura é resistir à tendência entrópica da visão ordinária  –  a imagem

umbrática de Platão – e aumentar o sentido do universo apreendendo-o na rede dos seus

signos abreviados. Este efeito de saturação e culminação, dentro do pequeníssimo

12 Paulo Filipe Monteiro alerta, precisamente, para o risco de se cair numa visão simplista, que cole o

cinema unicamente à imagem, ou, pelo contrário, que o defina como texto em sentido estrito  – para nãofalar da visão essencialista, que já provou a sua fraca fecundidade teórica. Cf. Monteiro, 1995:502-514.13 Cf. Ricoeur, 1987:49-54.

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espaço de uma moldura e na superfície de uma tela bidimensional, em oposição à erosão

óptica própria da visão ordinária, é o que é significado por aumento icónico. […] A

iconicidade significa, pois, a revelação de um real mais real que a realidade ordinária»14.

De acordo com esta concepção de «aumento estético da realidade», a própria escrita

surge como «um caso particular de iconicidade», na medida em que a transcrição do

discurso não opera uma simples reduplicação da realidade mas antes produz uma

metamorfose que a evidencia. Escrever é re-escrever a realidade de modo estético e

revelador da sua essência.

Neste sentido, portanto, tanto a imagem cinematográfica como o signo verbal (escrito)

da literatura possuem valor icónico  –  ainda que alguns autores não se dispensem de

sublinhar que o possuem em grau variado, de acordo com os seus diversos modos de

recepção: «O signo verbal, com a sua baixa iconicidade e a sua elevada função

simbólica, funciona conceptualmente, enquanto que o signo cinematográfico, com a sua

elevada iconicidade e a sua incerta função simbólica, funciona directamente,

sensoriamente, perceptualmente»15.

O que temos vindo a sublinhar, portanto, é o risco de reduzir a distinção entre literatura

e cinema à oposição entre o signo arbitrário da literatura e o signo icónico do cinema, 

i.e., entre palavra e imagem  – como se a primeira nada tivesse de icónico e a segunda

fosse o espelho de uma analogia perfeita (é Mitchell quem nos alerta: a imagem visual é

o «sinal que finge não ser sinal»). Esta comparação tem frequentemente levado a uma

grande ambiguidade e a consequentes erros de análise, por não ter em mente, entre

14  Idem, Ibidem: 52.15 McFarlane, 1996:27.

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outros aspectos, o facto de a palavra não estar ausente do filme. A imagem

cinematográfica é, muitas vezes, acompanhada pela palavra escrita (sobretudo nos

intertítulos do cinema mudo, que alguns preferem, por isso mesmo, apelidar, de surdo,

uma vez que de facto “fala”, só que não se ouve) ou pela palavra efectivamente falada e

ouvida (no cinema sonoro). Este facto tem levado alguns críticos a referirem-se, por

isso, à «dupla narrativa» do cinema16 e revela, por si só, como o critério de separação

entre imagem e palavra pode ser tomado numa perspectiva simplista e pouco

esclarecedora, que esquece a dimensão de “vida” da palavra –   dessa “vida” que o

cinema não pode deixar de captar. Só uma concepção estritamente “literal” da palavra,

que a remeta para uma dimensão de “letra morta”, poderá ignorar a sua presença

determinante e activa no universo fílmico.

3. Também a distinção entre a natureza  conceptual  da literatura, por um lado, e a

natureza perceptual do cinema, por outro, tem proporcionado uma outra dicotomia que

consideramos inadequada para a abordagem dos estudos interartes no campo das

relações entre o cinema e a literatura. Trata-se da frequente inclusão da primeira no

universo da abstracção, por oposição à dimensão “concreta” do cinema. Queremos

aqui, antes de terminar, ressalvar esta imprecisão. Na nossa opinião, toda a obra de arte,

desde que narrativa (segundo a definição que expusemos no início), caracteriza-se por

se orientar para o concreto, já que constitui a representação de uma experiência, isto é,

tem como ponto de partida os sentidos humanos, que são o primeiro e essencial

instrumento de conhecimento. Ainda que a narrativa esteja totalmente centrada no

universo subjectivo de uma personagem (como no caso mais radical do romance ou do

filme de stream of   consciousness), tal universo assenta na informação sensorial que

16 Veja-se, por exemplo, o que a esse propósito afirmam Gaudreault e Jost, 1990:28.

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atinge a consciência, provocando os pensamentos e emoções, e procura exprimir essa

experiência, particularmente do ponto de vista temporal. Nunca se trata (quando se fala

de texto narrativo literário) de um mero fluxo de pensamento puro ou divagação

filosófica, onde impere a capacidade conceptual de abstracção. A narrativa literária

procura precisamente a representação da experiência sensível, recorrendo o leitor àquilo

a que Ingarden chama a «função de reprodução imaginativa», ao fazer uso da sua

«intuição imaginária»17.

É num sentido idêntico que uma autora como Flannery O'Connor afirma, de modo

inteligentemente sintético, que a narrativa ficcional é uma «arte encarnatória» 18. Para

O'Connor o mínimo denominador comum da narrativa é exactamente o facto de ser

“concreta”, embora seja este o aspecto tantas vezes incompreendido pelos escritores

principiantes ou pelos maus escritores: «Eles estão conscientes de problemas, não de

pessoas, estão conscientes de questões e temas, não da textura da existência, de casos e

de tudo o que tem um impacto sociológico, em vez de o estarem acerca de todos aqueles

pormenores concretos da vida que tornam presente o mistério da nossa posição na

terra»19. Obviamente que enquanto que a narrativa literária exprime esses objectos

concretos referindo-os e sugerindo-os, através de imagens conceptuais, o cinema

mostra-os, favorecendo a sua apreensão sensível. Julgamos que nesta simples frase está

contido muito daquilo que aproxima e muito daquilo que radicalmente distingue

literatura e cinema. Ambos desejam, no entanto, passar “para lá” desses mesmos

objectos  –  ou, através deles, “para dentro” – , atingindo os conteúdos e os significados

que o desvelamento desse outro mundo possível, construído no romance ou no filme,

sempre oferece, generosamente, à liberdade criativa do leitor ou espectador.

17 Ingarden, 1979:279-313.18 Cf. O'Connor, 1997:68.

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19  Idem, Ibidem:68.