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Mar Zalez

Fundação Gregório de MattosSalvador, 2015

CRÔNICAS HIPERMODERNAS

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Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)Fundação Gregório de Mattos

Z22 Zalez, Mar

Crônicas hipermodernas / Mar Zalez. Salvador : Fundação ADM, 2015.

88 p.: il. - (Selo Literário João Ubaldo Ribeiro, Ano I)

ISBN: 978-85-88182-13-4

1.Literatura brasileira - Crônicas I. Fundação Gregório de Mattos II. Título

CDU: 82-94

PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR

Prefeito da Cidade do SalvadorAntonio Carlos Peixoto de Magalhães Neto

Secretário de Cultura e Turismo Érico Pina Mendonça Júnior

Presidente da Fundação Gregório de MattosFernando Ferreira de Carvalho

Chefe de Gabinete Silvia Maria Russo de Oliveira

Assessora Chefe Gildete Nascimento Ferreira

Assessora Jurídica Thais Conceição de Santana

Gerente de Arquivo Histórico Municipal, Museus e BibliotecasLucimar Oliveira Silva

Gerente de Promoção CulturalWilton Rafael Souza Magalhães

Gerente de Sítios HistóricosMilena Luisa da Silva Tavares

Gerente Administrativo-FinanceiroIvã de Araújo Oliveira

Gestor do Núcleo de Tecnologia da InformaçãoÉric Castro

COLEÇÃO SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO

CoordenaçãoLucimar Oliveira Silva Plutarco Drummond Magalhães NetoClaudius Portugal (consultor)

ProduçãoLídia Santos CostaFelisberto dos Santos Gomes

Comissão de Avaliação do Selo Literário João Ubaldo RibeiroAleilton Santana da Fonseca Elísio Ferreira Lopes Júnior Elidinei Maria Bonfim Gerana Costa Damulakis Iray Maria Galrão

Fazem parte do Selo Literário João Ubaldo Ribeiro - Ano I as seguintes publicações:

Contos A Devoção do Diabo - Ordep José Trindade SerraRomance Alzira Está Morta - Goli GuerreiroRepublicação Canudos: A Luta - José Guilherme da CunhaCrônicas Crônicas Hipermodernas - Mar ZalezPoesia Mar Interior - Renato de Oliveira PrataLiteratura infantil O Circo da Alegria - Betania Paz LisboaPrêmio Jovem autor inédito O Sangue é Agreste: Os livros do sertão - Ian FraserDramaturgia Partiste - Paulo Henrique Alcântara

Lídia Santos CostaLourdes de Fátima Santos Pinto Luis Antônio Cajazeiras Ramos Myriam de Castro Lima Fraga

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A Fundação Gregório de Mattos sente-se orgulhosa com o lançamento da Coleção Ano I do Selo Literário João Ubaldo Ribeiro. A coletânea reflete o esforço da Prefeitura de Salvador, da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (SECULT) e da Fundação Gregório de Mattos (FGM) para incentivar a cadeia produtiva do livro em toda sua extensão.

Aproximadamente uma centena de escritores e escritoras inscreveu suas obras no Edital do Selo Literário João Ubaldo Ribeiro, que foram avaliadas por uma comissão de notáveis do setor da literatura baiana. A expressiva participação e o alto nível das obras inscritas compro-varam a demanda da área por um concurso de excelência literária em Salvador.

A intensa relação de João Ubaldo Ribeiro e sua obra com a cidade de Salvador, ao tempo em que reafirma a relevância universal de sua literatura, o credencia para denominar o Selo, cujos objetivos são fomentar e promover a leitura e a produção literária no âmbito do município. Eleito para a Cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, João Ubaldo, romancista, contista, cronista e roteirista de renome internacional, recebeu, entre outros, os prêmios Jabuti, em 1972, e Camões, em 2008. Suas obras são traduzidas para várias línguas e adap-tadas para o cinema, o teatro e a televisão.

A publicação da Coleção do Selo Literário João Ubaldo Ribeiro - Ano I é de suma importância para o desenvolvimento e consolidação do campo da literatura na capital baiana. Ademais, cumpre o disposto no Decreto Municipal 24.883 de 02 de abril de 2014, que instituiu o Selo, e dispõe que “incumbe ao poder público garantir a todos o acesso às fontes de cultura, apoiando e incentivando a produção, valorização e difusão das manifestações culturais”, consoante o que dispõe o art. 262 da Carta Orgânica Municipal e as diretrizes da Lei 8.551/2014, que instituiu o Sistema Municipal de Cultura.

A primeira coleção do Selo João Ubaldo Ribeiro conta com oito títulos de diversos gêneros literários. A FGM mais uma vez ratifica a sua missão de órgão gestor da política cultural do município e de instituição integrante do Plano Municipal do Livro, Leitura e Biblioteca (PMLLB).

Fernando GuerreiroPresidente da Fundação Gregório de Mattos

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Para Dedé, In Memoriam

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Agradeço à Prof. Dra. Serafina Pondé, intrépida pilota de prova das minhas crônicas,

por suas sugestões e críticas.

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A procura pela felicidade é o discurso dos infelizes. A felicidade não se busca.

Ela sempre está ou nunca vai chegar.

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O Triângulo dos Faróis e suas Crônicas 11

O Cão da Meia Noite 13

Crônicas Hipermodernas 15

Crônicas Hipermodernas II 17

Somente os Chatos são Conclusivos 18

Vamos Chamar o Vento 20

Sabe o Leitor o que é uma Tulha? 22

Nostradamus, o Calendário Maia e a Última Carta de Amor 25

Om Mani Padme Hum 27

Gênesis 30

Verbo de Exótica Conjugação 32

Dois Expressos 34

O Carimbo e o Garimpo 37

Ei, Juiz, Vá Tomar No... 40

Amoras e Amores Amorais 43

Na Rede com Caymmi 45

Normas da Empresa 47

Índice

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Os Donos da Rua 50

O Motivo da Separação 52

O Sovaco da Cobra 55

Tão Pequeno 57

Se Alguém Partir seu Coração, Agradeça 58

Se Alguém Partir seu Coração, Agradeça II 60

Disse a Loira: Não me Suicidaria nem Morta! 62

Operária da Literatura 66

Já viu o Leitor um Pé de Jambo em Flor? 68

A Bailarina Cintilante que Prateia a Paisagem 70

Verdade Afogada 72

Cajá, Mangaba, Siriguela, Graviola, Coco e Amendoim 74

Um Animal ao Volante 75

Crônicas Hipermodernas III 77

Todo Dia os Pássaros Cantam Perto da Minha Janela 81

Letargia da Paixão 83

Quando as Rosas Roseiam Corderosamente 85

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 11

O Triângulo dos Faróis e suas Crônicas

Minha cidade é um triângulo com um farol em cada ponta – em Monte Serrat, na Barra e em Itapoã –, que ao girar iluminam crônicas na terra e no mar.

No Porto da Barra, há uma crônica protegendo-se do calor debaixo do guarda sol, reverberando na temperatura da areia ou disfarçando-se na refração do mar. Há uma crônica pronta para ser colhida no pé de jambo que colore de cor de rosa o asfalto e surpreende após a curva, na descida do Calabar. No Barbalho, uma crônica perene e espessa está encravada nas paredes bastas do Forte. Mas na Pituba, enquanto esperava o semáforo abrir, vi na janela da casa uma cortina branca de tecido diáfano, que deixava passar a luz e volteava a convite do vento, revelando as formas de uma crônica leve e fugaz.

Na Boa Viagem, uma crônica verde, aromática e luminosa brota no pé de jasmim encostado ao muro antigo como se o apoiasse. O mar liso adornado por espumas murmurantes nas enseadas de Ondina, ou encrespado por ondas que quebram estrondosamente em Armação, é uma crônica liquefeita, escrita com palavras salgadas e azuis. Na Gamboa, em uma varanda debruçada sobre a Baía de Todos os Santos, cedo pela manhã um bem-te-vi canta reclamando uma crônica e alpiste, ou farelos de biscoito, mas hoje alguém dormiu até mais tarde. E entre as Sete Portas e a Barroquinha vendedores tentam chamar a atenção dos clientes oferecendo crônicas promocionais: duas pelo preço de uma.

Uma crônica efêmera aparece impressa nas nuvens estriadas sobre a igrejinha no alto de São Lázaro, para logo em seguida esvanecer. No Cabula, quando o vento de chuva balançou a amendoeira, várias crônicas secas caíram; o gari as varria e elas se divertiam caindo mais. A melodia do vendedor de vassouras quando canta na ladeira do Sodré é uma crônica tecida sob a forma de rede, que balança quando a tarde se vai. Na Ribeira, alguém toma uma crônica com sabor de tapioca tentando

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I12

forçar o fim da primavera e antecipar a estação de calor, mas uma crônica só não faz verão. E tarde da noite, lá mesmo na Ribeira, enquanto todos dormem, uma crônica vaga entre as carcaças encalhadas dos saveiros procurando pelo espírito de velhos pescadores do passado, ou tentando localizar aquele em que Quincas Berro D Água morreu pela segunda vez.

Vi crônicas em cachos nas barracas de São Joaquim. São crônicas que se deve antes tirar a casca para depois consumir. Algumas estão prontas para comer, outras é preciso ferver ou cozinhar. Todas, porém, são crônicas frugais. Existem as transparentes, as honestas e sinceras e as ambivalentes; as que já nascem crônicas e as que se tornam ao se educar; algumas delas, animadamente, passeavam juntas no Largo do Papagaio, ouvindo no coreto central a filarmônica tocar. Entre Periperi e Paripe, uma moto passou roncando, lançando uma nuvem de crônicas no ar. E na Palma, uma crônica visitava a casa onde foi filmado “Dona Flor” mas não encontrou marido algum, seguindo até a Mouraria para tomar um caldo de sururu.

Na Saúde, uma crônica risonha bate palmas e samba, festejando o encontro do cavaquinho com o pandeiro. No bairro da Graça, um homem sai da floricultura com um sorriso tolo no rosto, um buquê de crônicas perfumadas nas mãos e planos, muitos planos para mais tarde. Mas nem tudo são flores. Outro dia, em frente à barraca de coco, em Amaralina, tropecei e custei a me equilibrar. É que entre as pedras portuguesas da calçada faltava uma crônica. Neste exato momento, porém, estou na fila de uma crônica com vatapá e camarão, no Rio Vermelho, enquanto respondo a mensagem que acaba de aparecer na tela do meu celular: “A lua está cheia. Vamos andar na areia da Praia de Aleluia e molhar os pés na crônica que nos espera na beira do mar”.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 13

O Cão da Meia Noite

Um jovem cão vira latas vagueia pela madrugada chuvosa. É negro como

o asfalto e sua esbelteza desafia a falta de raça. Agora ele cruza a avenida molhada

como se tivesse rumo definido. Não fuça lixos a procura de restos. Sua ati-

tude é nobre, elegante, desfila seu passo leve e sozinho conduz a noite. Não

demonstra melancolia. Altivo como um cavalo que leva o rei na garupa, pros-

segue satisfeito até que para, e ao sacudir a água que brilha em seu pelo que

roubou a escuridão da madrugada sem lua, lança um leque de gotas que a luz

do poste incendeia de ouro. O vento sacode a árvore que deixa cair sobre ele

uma profusão de folhas, como confete atirado para reverenciar sua passagem.

Se fosse meu o chamaria de Meia Noite. Seríamos amigos. Posso vê-lo

passeando comigo na praia. Brincaríamos na beira do mar, correríamos. Eu lhe

atiraria um galho ou pedra, que satisfeito iria buscar, deitando o objeto resgatado

aos meus pés para que renovasse o lançamento. Ensinaria truques – Sente, Meia

Noite. Dê a pata. Bom menino! –. Depois voltaríamos para casa. Ele estaria com

fome e sede. Eu providenciaria o necessário. Antes lhe daria um banho de

mangueira e ele sacudiria seu pelo negro brilhante, como o fez a pouco ao

passar pelo poste.

Mas Meia Noite não é meu. Já vai ele lá longe, atravessando novamente a

rua como se houvesse diferença entre um lado e outro, como se não vagasse

sem rumo. O brilho de seu pelo é o único ponto luminoso que se move na rua

vazia e desolada, deserta de sons e cor.

Um cão dentro dos limites dos muros de uma casa rasga o silêncio com um

uivo longo. Deve ter percebido a passagem do cão da madrugada. Mas este não

responde. Apenas olha o portão de onde parte o latido e segue, sem se abalar.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I14

Continua seu passo resoluto como se estivesse em uma missão. Nada deverá detê-lo. É possível que tenha mesmo uma tarefa a cumprir. Talvez seja ele quem

conduz o fio da noite e tece a madrugada até que vire manhã, na eterna trama do dia seguinte. Ou talvez o rei, sentado em sua garupa, tenha pressa de chegar ao fim da estrada que me é invisível, onde todos os cães são nobres, altivos e brilhantes, como este que não é meu, nunca será de ninguém, nem se chama Meia Noite.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 15

Crônicas Hipermodernas

Crônicas hipermodernas acabam antes de começar. Esta aqui já terminou. Pode parar de ler.

Muito bem, se você insiste, vamos continuar. Ou talvez já estejamos come-çando outra. Tanto faz. Mesmo sem assunto, pois no Hipermodernismo já se disse tudo a respeito de qualquer coisa. Não há o que acrescentar. Só nos resta partir para as releituras, os relançamentos e as novas roupagens para velhos textos, especialmente se o público alvo ainda não era nascido quando foram originalmente lançados. Isso cola. E ainda ajuda a educar o público teen. Mas não me importa o público teen. Espere, retiro isso. Meu editor mandou retirar.

Aqui estamos nós. Você se recusa a interromper a leitura e eu me disponho a continuar enrolando. Talvez se eu propusesse temas sem os desenvolver. Lançaria no ar tópicos interessantes, mas, com a urgência do Hipermodernismo, não haveria espaço para me alongar. Acho que faria boa figura.

Olho para o teto. Ele e eu já tivemos diálogos incríveis. Não. Parece que hoje não está disposto a colaborar. Mas sou tenaz. Aposto com você que chego até o final desta crônica sem uma só frase que valha a pena ser lida. Assim mesmo você continua aí. Não saberia dizer qual de nós dois é o mais teimoso. E não sei o motivo da sua resistência. Eu, pelo menos, tenho a justificativa de continuar escrevendo porque preciso pagar o aluguel. Mas é uma desculpa esfarrapada, pois moro em casa própria.

Então analise este insight – meu editor acha que anglicismos, que devem vir sempre escritos em itálico, pegam bem, e devo agradá-lo –. Pois bem, como escrevia, leia meu insight: Um grande escritor não é aquele que escreve muito, e sim o que é bastante lido. Pode ser... Mas isso desafia Nelson Rodrigues, para

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I16

quem toda unanimidade é burra – observe que temos aqui um tema para discussão. Agora que já lancei o debate com uma tirada inteligente, posso retirar-me

de fininho, disfarçadamente. Faço de conta que escrevo bem e você finge que gosta da leitura. Agradeço sua fundamental participação, sem a qual esta pseudocrônica jamais seria possível. Ela só passou a existir, só ganhou vida, depois que você a leu. Obrigada!

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 17

Crônicas Hipermodernas II

Começo

Meio

Fim

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I18

Somente os Chatos são Conclusivos

A República Livre da Nossa Mesa, antes uma província rebelde e separatista,

tornou-se independente do resto do salão. E o fez sem pegar em armas, mas

apenas levantando copos. Pois em nossa revolução não atiramos coquetéis

Molotov. Nós os bebemos com limão e gelo. Explico no próximo parágrafo as

bases do nosso movimento libertário.

Acontece que em nossa roda de amigos é assim: um tema é lançado e

causa reboliço. Instaura-se a polêmica. Segue-se o desenvolvimento: espe-

culações, conjecturas, filosofias que adornariam os melhores parachoques

de caminhão. Vários debatedores se apresentam no círculo de discussões;

argumentações acaloradas são compartilhadas. Provas e comprovações, jus-

tificativas, pareceres, depoimentos e testemunhos. Surgem definições, arbí-

trios, opiniões contrárias e favoráveis, algumas mais fecundas, outras menos

frutíferas, porém todas válidas, quero crer. Várias escolas do pensamento são

evocadas e então...

Então, no momento previsto para a conclusão, o mediador deixa que o

oxigênio permeie as ideias que ainda flutuam na atmosfera em ebulição, seguindo

caminhos que levam ao “pode ser...”, “ou não...”, “talvez...”. E essas reticências

permanecem escavando o espaço de possibilidades, penetrando vãos desconhe-

cidos e abrindo picadas ou desvios por rotas alternativas.

Assim, os itens lexicais absolutistas foram depostos: Abaixo o nunca e o

sempre! Fora com o tudo ou nada! Entretanto, mesmo abolidos eles até podem

voltar, quem sabe... Mas a tirania das paixões intelectuais e a fobia aos enganos

se liquefazem, e depois evaporam formando nuvens de riso. Nossa bandeira é

o bom humor. Nosso Ministro da Sabedoria é uma interrogação. Por que não?

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 19

A inverdade, o irreal e o impossível, sob diferentes óticas, se tornam a

verdade, o real e o possível. A verdade pode ser uma interpretação; o possível, uma

concepção de limite; e o real sequer existe, mas somente a percepção sobre a

realidade, prismas onde se localiza o observador, que modifica o objeto obser-

vado. Não é?

Nossa inconclusão é um silêncio purificador que valoriza o dito, mas não

deixa de enaltecer o não dito. E ainda abre espaço para as subjetividades, as

entrelinhas e os discursos alojados entre as lâminas de afirmações. Conteúdos

se metamorfoseiam; sentidos se alargam até evanescerem disformes. O sim está

cheio de não. E o não, mesmo disfarçando, vive louco para ser sim...

As ciências são também um grande circo, um teatro talvez. O texto mais

balizado e criterioso deveria terminar com a sensação de incompletude e

uma interrogação. Depois de afirmar alguma coisa categoricamente, haveria de

perguntar, com elegante sutileza: mas será mesmo somente isso? Pois, como

questiona Luigi Pirandello, “a materialidade da vida tão variada e complexa não

contradiz asperamente todas essas simplificações ideais e artificiosas?”

Por isso fundamos a Confraria Dos Que Duvidam De Si e nos orgulhamos

disso, eu acho... Somente os chatos têm certeza, juram de pés juntos, brigam por

suas opiniões. Pior que tudo, para qualquer assunto buscam a conclusão, fechando

atrás de si a porta por onde deveriam passar, e, se tivermos sorte, sumir. Ou não...

– Gigante, desce outra rodada!

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I20

Vamos Chamar o Vento

Na praia de Piatã, eu corria contra e a favor do vento. Corríamos eu e o vento. E acho que ele também se divertia. Meu pai pescava e eu corria na beira do mar. Depois parava um pouco, tecia cabeleiras verdes com o sargaço novo, catava conchas e tentava arrumá-las em pares, cavava diques de areia, atirava pedri-nhas, desorganizava o alisamento da areia recém arrumado pela espuma da última onda que me seguiu; eu a desfiava e ela a mim. E eu corria mais.

Após algum tempo, quando já não importava o tempo, meu pai aparecia com peixes brilhantes. Eram dourados, prateados, vermelhos, e eu gostava de saber que os vermelhos se chamavam Vermelhos. O mundo fazia muito sentido na praia. Então meu pai os arrumava no samburá e voltava a pescar mais. Antes, porém, reorganizava os molinetes, pois era importante limpar as algas que insis-tiam em vir com os peixes, mesmo sem ter sido convidadas. Era preciso colocar novas iscas. Aquilo tudo era muito ritualizado. E eu costumava assistir e ajudar em pequenas tarefas, como segurar a caixinha de isopor onde estavam os cama-rões que iriam ser pendurados nos anzóis.

Em seguida, ele voltava a atirar a linha bem longe. Depois fincava com movimentos firmes a vara na areia fofa, fundo até o vento não poder perturbar. Porque o vento, mesmo ocupado brincando comigo, ainda achava energia para molestar a vara, provocar a tampa do samburá dos peixes, ou ameaçar o isopor com as iscas de camarão, se não cuidássemos.

Não levava brinquedos para a praia. Tudo o quanto precisava estava disponível na areia ou no mar. E havia uma grande piscina formada pelos arrecifes, com água na altura ideal mesmo quando a maré subia, onde podia mergulhar com segurança entre peixes pequeninos e corais, para onde meu pai olhava e confir-mava que estava tudo bem. Eu acenava e ele sorria.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 21

Quando se aproximava o meio dia, meu pai me chamava com um assobio potente, que ouvia até submersa. Então corria ao seu encontro e ele lavava meus pezinhos e me carregava para que não voltasse a sujá-los. Ele me embrulhava em uma toalha e com suas mãos grandes enxugava delicadamente o meu cabelo, escuro como o dele. Àquela altura, estávamos com a fome intensa e prazerosa de quem passou o dia ao sol, correndo na praia e pescando. Tínhamos peixe fresco no samburá e nos orgulhávamos disso.

Meu pai não dizia nada, nunca. Nem eu. Nos entendíamos tanto que não era preciso. Mas ele cantava Dorival Caymmi – “Vamos chamar o vento...” – e juntos assobiávamos o resto. E o mundo todo parecia um lugar bom e salgado.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I22

Sabe o Leitor o que é uma Tulha?

Espere. Não precisa ir ao Google, Wikipédia ou Michaelis. Aqui mesmo elucidaremos a questão. Até porque nenhum desses sítios tem a informação cor-reta fornecida por Seu Juvenal, que conheci em uma tulha da Vasco da Gama. Isto se o leitor não estiver com uma pressa tal que nem possa esperar até o próximo parágrafo.

Você ainda está aí? Ótimo. A tulha é uma mistura pitoresca de bar com arma-rinho, casa de ferragens, papelaria, farmácia e armazém. E acreditem: o equilí-brio é perfeito. Muito antes das lojas de conveniências a tulha já existia. Sempre foi o socorro para aquele que esqueceu o presentinho do afilhado, que precisou de um joelho de meia para terminar o serviço de encanamento, ou quando acabou a linha branca no meio da costura de uma bainha.

A tulha tem inúmeras vantagens sobre um bar qualquer. O indivíduo consegue tomar sua “loira gelada”, ou uma dose da “água que passarinho não bebe”, sem se comprometer. Pode sempre fazer ares de quem veio buscar alguma necessi-dade da “patroa”. Por isso, o verdadeiro frequentador da tulha sempre sai de lá com um pacote de biscoitos em baixo do braço. Quem sabe, sabe.

Em São Felix, do outro lado da ponte para quem está em Cachoeira, existe um bar chamado “O Colégio”, que não é uma tulha, mas tem um princípio seme-lhante. Aliás, diga-se de passagem, um gênio, o dono, pois escolheu este nome. O camarada está tomando uma, quando alguém liga para o seu celular, talvez por conta do anúncio de um carro à venda, e já se acha no direito de perguntar: “Você está aonde?”. “No Colégio”, responde o cidadão, com solenidade. Pronto. Estão dominados os instintos selvagens do curioso invasivo.

Outra vantagem é o caldo de cultura que se pode sorver no local, pois grandes filósofos são assíduos frequentadores das tulhas. Ainda ontem, em uma tulha no

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 23

Rio Vermelho, um senhor de cabelos brancos apontou-me com aprovação e disse, respeitosamente: – Só confio em mulher assim, da cintura fina. A mulher sem cintura sempre bagunça a cabeça do sujeito, ou trai –. Temos aqui um cientista antenado com as tendências interdisciplinares, pensei, que aliou os conceitos da anatomia e fisiologia aos princípios comportamentais de alta complexidade. Aposto que leu o tratado arqueológico sobre os fósseis recentemente encontrados ao norte de algum lugar distante, e imagino que a academia sueca deve estar de olho em suas publicações. Foucault teorizou o corpo como o lugar de todas as interdições, mas na tulha se vai mais além. No mínimo, o advento desta tese é capaz de poupar desavisados de passar por desilusões desnecessárias.

Em frente à Baía de Aratu há uma tulha cujo balconista é tão velho que você não sabe se lhe pede alguma coisa, ou se o faz descansar e vai buscar você mesmo. O estabelecimento é perfeito: não tem lugar para sentar; você mal consegue se mexer lá dentro, pois corre o risco de bater com a cabeça em uma boneca de plástico ou jogo de chaves de fenda, pendurados ao teto; e de vez em quando você tem que sair para tirar seu veículo do caminho, pois algum carrinho de mão quer passar e a ruela é muito estreita. Mas aí é que está o charme. Quer conforto? Vá ao shopping e morra de tédio! Acrescente-se que o lugar é minúsculo, mas a vista para o mar é maiúscula.

Agora cite o leitor um bar de shopping com vista para o mar... E a resposta, como previsto, é um silêncio abissal.

Na Fazenda Garcia há uma tulha cujo dono é aposentado e sente-se à vontade servindo o balcão de pijamas e chinelo – qual o problema? –. É preciso estar atento, pois o atendimento pode ser interrompido a qualquer momento, se forem transmitidos os gols da rodada. Ele, afinal, tem obrigação de saber todos os resultados, para o caso de algum cliente solicitar a informação.

Na tulha é só esperar um pouco e lá vem outra filosofia. Se quiser provocar pérolas do conhecimento pergunte a opinião do proprietário sobre qualquer coisa

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I24

– pois donos de tulhas, como exige a natureza do negócio, são generalistas –, especialmente se a resposta estiver relacionada aos anos em que ele está no ramo ou naquele endereço. Certamente vai ouvir uma boa história que rende uma crônica. Por isso, se algum cronista disser que está sem imaginação para escrever, pode ter certeza: ele nunca esteve em uma tulha. Ou acabou de conhecer uma mulher sem cintura.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 25

Nostradamus, o Calendário Maia e a Última Carta de Amor

De tempos em tempos algum futurista prevê o fim do mundo que se frustra quando a época chega. Mas isso só acontece porque o apocalipse não será mar-cado por uma data, mas um evento. Vai acontecer um segundo depois que a última carta de amor tenha acabado de ser escrita. Destarte, para proteger a esfera combalida e pálida, em cuja órbita circulam a indiferença e o ódio – e também o pior de todos os sentimentos, o medo, esse carrasco que aprisiona a alma –, nem que seja uma única vez na vida, escreva uma carta de amor.

Se for patética, se a enviar por e-mail e se arrepender logo depois, melhor. A verdadeira carta de amor dispensa sutilezas estilísticas e deve abster-se de ser balizada pelo crivo de uma análise racional de riscos. Ao contrário. É imprescindível que seja arrebatada pelo descontrole de um impulso. Exagerada. Ela expressa uma dor insuportável, ou uma imensurável alegria. Alguma coisa entre o tolo e a glória de alcançar o inatingível. É. Assim mesmo. Menos que demais será pouco. Uma carta de amor econômica não merece sequer forrar o lixo. Não serve nem para embrulhar peixe. Ser desvairado e perder o bom senso é condição sine qua non.

Vale escrever “por você eu largo tudo”, mesmo que você não possua absolu-tamente nada. Antes o descaramento do amor declarado do que a ironia do sen-timento contido, fervendo na surdina do cinismo. No Recife, há um bloco carnava-lesco chamado “Diz que me ama, porra!”. Esses sabem do que estou falando.

Ser contido no amor é mais vexatório do que qualquer coisa ridícula que um enamorado possa dizer. Porque ninguém pode estar meio apaixonado ou quase amando. A paixão é território do tudo ou nada, do now or never. E a carta de amor é a catarse absoluta. O alívio para os corações inoculados pelo vírus do apaixonamento.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I26

Apaixonar-se é dizer “eu Titanic, você Iceberg”. E aceitar colidir e afundar, pois é inevitável. Não há o que fazer, não dá para controlar. Se está cego de paixão não tente racionalizar. Deixe-se levar. Lembre-se de que assim como você o amor é cego e também a justiça. Você está em boa companhia. Portanto, não pense duas vezes. Não pense nem uma vez. Não pense. Ame. Haverá todo o tempo do mundo para pensar depois, quando estiver sem ter alguém para amar. Enquanto estiver amando, ame. E escreva uma carta de amor.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 27

Om Mani Padme Hum

No Santo Antônio Além do Carmo, tentando um golpe de capoeira, torci o

braço. Vim parar na Garibaldi, na sala de espera do fisioterapeuta, aguardando

minha vez para consertar o estrago. A música ambiente é um teste para os ner-

vos. Mas não o é sem motivo. Ela carrega esse senso de vazio propositadamente,

para levar os indivíduos a um profundo encontro com as questões fundamentais

da vida. Estou convencida de que o lugar para o extremo existencialismo não

fica nos Himalaias, mas em uma sala de espera como esta. Se tivesse vindo aqui

todas as tardes, teria eu escrito as novecentas e cinquenta e sete páginas de

“A Montanha Mágica”, e não Thomas Mann. Preciso descobrir qual médico ele

frequentava...

Depois dos primeiros quinze minutos, comecei a traçar conjecturas sobre

o sexo dos anjos e a divagar sobre a mais profunda entre as dúvidas filosó-

ficas de todos os tempos: Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Finalmente

descobri a resposta e de quebra ainda especulei sobre os motivos que levaram

o frango a cruzar a estrada: Sentia-se livre, pois tinha asas e não braços, claro!

Completados trinta minutos, fui tomada por um estado de consciência,

paz e serenidade. Ouvi minha respiração e tive vontade de entoar mantras

– Om mani padme hum... –. Considerei a possibilidade de Siddhartha Gautama

ter encontrado a iluminação em um lugar como este, e não sob uma árvore.

Compreendi a essência do Zen e estive a um passo do Nirvana. Foi quando notei o

aroma do incenso de sândalo invadindo a sala. Mas era apenas a fragrância com

a qual a funcionária limpava o balcão. E ao juntar as palmas das mãos analisei:

a esquerda simboliza a sabedoria; a direita, compaixão. Somando as duas

conclui que ninguém ali tinha pena de mim...

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I28

Aos quarenta e cinco minutos, percebi que, na verdade, tratava-se de um jogo de resistência. Mantive um olho na revista do ano passado, simulando interesse, enquanto com o outro investigava os demais competidores. “Conheça seus oponentes”, escreveu Sun Tzu em “A Arte da Guerra”.

Pois bem. A senhora ao meu lado está fora de combate. Acredito que esteja congelada. Não o digo somente pela fina capa de gelo que cobre seu rosto. É muito mais por ela ter parado de respirar e seu nariz ter adotado um tom entre o roxo e o verde. Imagino por quantos dias deve estar aí sentada, para que suas pernas tenham mimetizado o mesmo padrão da estampa do sofá.

O senhor instalado à minha frente começou bem. Passou um longo período exercitando a fina arte de torturar insetos com a ponta da caneta. Um compe-tidor a altura do desafio, pensei. Mas agora está com cara de quem quer meter uma bala na cabeça. Estou certa de que há uma pistola de emergência em uma dessas gavetas. Ele, porém, deverá descobrir qual. Ou apertar o botão vermelho e desistir. Assim eu levo o prêmio.

O rapaz que foi até a varanda jamais voltou. Há indícios de que, em um momento de desespero, jogou-se. Foi logo após ter recebido uma dose maciça do café local, morno e adoçado além da conta – felizmente suspeitei daquela garrafa térmica dissimulada desde o início e me mantive firme na determinação de não ceder aos seus apelos. Somente os fortes sobrevivem aqui! –. É possível, ainda, que tenha sido abduzido. Certamente irá descobrir se há vida, e fisioterapeutas, em outros planetas.

Agora a recepcionista está sorrindo pra mim enquanto ouvimos Celine Dion. Isso é lavagem cerebral! E eu pensava que Celine Dion e Kenny G haviam sido banidos das salas de espera pelo Tratado de Viena, junto com o napalm...

Devo considerar como uso de força desproporcional. Responderei com uma estratégia agressiva e requintes de crueldade: vou pintar os rostos das celebridades em todas as revistas da sala. Bigode e barba nas mulheres; tapa

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olho, cicatriz e papagaio no ombro para os homens. Estou pronta para a guerra psicológica mais pesada. Agora ela vai saber que não está lidando com amadores!

Mas o que significa esse rizinho irônico em seu rosto? Será que percebeu que necessito usar o banheiro? É perigoso, vou ficar muito vulnerável nesse terri-tório hostil. Preciso adotar uma tática de guerrilha. Corro de assalto como em um desembarque anfíbio na praia inimiga, do sofá para detrás da palmeirinha, logo desta para a porta do lavabo. E ainda tenho que evitar as minas terrestres...

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Gênesis

Os criacionistas acreditam que no início não havia nada, até que Deus teria dito “faça-se a luz!” e a vida começou. Para os evolucionistas nada existia até o big bang, quando a vida aconteceu. Outros defendem a incidência de raios elétricos sobre o caldo primordial, causando uma evolução química que propiciou a formação de organismos. Particularmente, acho que nada havia então Deus criou um homem belo, forte, nu. E depois tudo o mais que existe para emoldurá-lo. É apenas mais uma hipótese, entre tantas outras de difícil comprovação.

O que sei com certeza é que, pelo menos na terra, a vida começou em preto e branco, como nas fotografias de Sebastião Salgado. E semelhante às transmis-sões da TV, só mais tarde chegaram as cores. Os rios, os primeiros humanos, os grandes paquidermes, as montanhas e seus vales, o mar, o céu, florestas inteiras: tudo era preto e branco.

Mas se cor não havia, ganhava-se em expressão. Uma dramaticidade maior conferida pelas sombras, e as formas eram exaltadas. Tal qual uma nouvelle vague francesa, havia um charme noir que enchia de poesia a paisagem, revelando nuances originais. Assim como em uma fotografia, uma gama de incontáveis negros, variações infinitas de branco e uma profusão de cinzas se apresentava. Tudo isso só se notava pela ausência da cor.

Depois, da mesma forma que o “faça-se a luz”, fez-se o azul, a cor primor-dial. Foi assim que o mar tomou-se de um azul tão intenso e profundo como ele próprio, azulando consigo os rios que nele deságuam. E através do contato no horizonte contagiou também o céu, que se acalmou em azuis mais sutis e vaporo-sos. Em seguida o verde e o marrom se encarregaram de cobrir a superfície seca, espalhando com surpreendente velocidade coloridos densos e racionais. Essas eram as cores básicas.

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O primeiro vermelho só surgiu bem mais tarde, nervoso e passional, lançado das entranhas de um vulcão, que sob a forma de lava incandesceu um colorido em ebulição. Ao esfriar e sedimentar-se foi levado no bico por um pássaro gigan-tesco e ruidoso, que acabou por jogá-lo do alto, multiplicando-o como semente em pequenos detalhes salpicados aqui e ali na desordem da beleza.

Serviço semelhante prestaram os insetos, polinizando amarelos e laranjas que tingiram sítios escolhidos pelo sol. A chuva, frágil e insegura em sua trans-parência, fez o lilás e o roxo surgirem em uma poça, que brilhava de água e luz. As primeiras rosas ainda não eram rosa. A cor definiu-se um dia, quando uma criança sorridente e corada, sem se dar conta a inventou.

A noite preservaria o negro e a nuvem não abandonaria o branco, a não ser para avançar com detalhes de cinza em situações eventuais. Assim já se estava e assim ficou.

A partir daí ocorreram as colisões de cores, e desses impactos surgiam novos tons e semitons. Ainda surgem até hoje, assombrando a humanidade com pores do sol absurdos e auroras boreais.

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Verbo de Exótica Conjugação

Foi então que me fizeram a original pergunta: qual o seu verbo preferido, na língua portuguesa? Ora, eu tenho todas as respostas, desde que seja feita a pergunta certa. E esta, certamente, é uma delas. O meu verbo favorito eu sequer conjugo. Nem eu nem o prezado leitor. É o verbo “farfalhar”. Eu não farfalho, tu não farfalhas. Farfalham, porém, as folhas orquestradas pela brisa mansa que acaricia a face do mar, ou sob a ação da ventania inclemente que anuncia a tempestade e aderna os veleiros. As folhas farfalham. É a sua voz. Talvez estejam dizendo: “Ouçam todos, já vem a chuva! Notem que o mar, ontem tão azul, hoje tem um verde acinzentado! Vejam como está encarneirado!”.

Moro em uma rua sem saída, silenciosa a maior parte do tempo, em cujo final, bem perto da minha janela, existe uma pequena mata. Lá habitam saguis, jandaias, bem-te-vis, sabiás, assanhaços e colibris, que balançam pousados nas árvores e arbustos quando o vendo sacode seus galhos e provoca o farfalhar das folhas. Os pássaros cantam ou lançam seus apelos, os saguis apresentam seu curioso repertório vocal e as folhas farfalham. Eu ouço.

Perguntei a diversos vizinhos o que pensam do farfalhar. Todos afirma-ram jamais o terem notado. No ano passado, trezentos gaviões carijó sobrevo-aram nosso prédio, provavelmente em fase de acasalamento. Chiavam e cris-pavam o céu com vocalizações agudas do seu canto típico. Nenhum morador parece ter escutado. Sua majestade o carcará nos visita regularmente, altisso-nante e grandiloquente. Mas ninguém sabe, ninguém ouviu.

Dona Lourdes, entretanto, informou ter ouvidos sensíveis, por isso sofre quando o rapaz do 522 buzina na entrada da garagem, tarde da noite. Seu Amaral, por seu turno, disse estar incomodado com a música alta da moça do 810. Mas

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ninguém atentou para os gaviões ou o carcará, muito menos o farfalhar das folhas reportando as novidades sobre o vento e a chuva, trazendo notícias que chegam de além-mar.

Ainda bem que não vão interromper sua performance só porque não possuem grande audiência. Mesmo assim, só para registro, informo que todos os dias as escuto. Sei dizer se chove, se faz sol ou até se neva em Genebra, só pelo seu farfalhar. Por isso peço que farfalhem, farfalhem muito, farfalhem mais. Eu, se pudesse, também farfalhava.

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Dois Expressos

Nos Dois Leões pego o retorno e sigo até Brotas, onde levo o carro para trocar o óleo no posto de gasolina. O calor severo, em oposição à generosidade do ar condicionado, me convence a aguardar na loja de conveniências, folheando uma revista.

Lá dentro, no balcão de lanches, uma mulher olha o cardápio, indecisa. Mas, em seguida, interrompe a leitura das opções para prestar atenção em uma viatura policial, da qual desembarca um indivíduo que parece ter saído direto de um seriado americano. É bonito, cheio de pose e com uma indumentária pesada que, se não é absolutamente necessária para o desempenho da função, pelo menos serve para alimentar o fetiche da farda: colete à prova de balas, coturno, protetores para diversas partes do corpo, pistola, punhal, algemas...

Ele pode ter saído somente para fazer um lanche, mas tem equipamento suficiente para matar três jacarés e desafiar Rambo, ou Django, dependendo do diretor da fita. Está pronto para uma missão e se esta for apenas comer um cro-quete, representará bem as Forças Armadas.

Decidido, diante do balcão pede com gravidade, depois do “boa tarde!”: “Um expresso, por favor!”. A mulher, até então hesitante, acha por bem apro-veitar a resolução do recém-chegado e completa: “Dois!”.

Rapidamente o atendente traz a primeira xícara, colocando-a perto de onde ambos aguardam, provocando um diálogo:

– Por favor – diz ele, sugerindo que ela se sirva do café que se lhes apresenta.– Não, o senhor pediu antes de mim – recusa com gentileza.– Primeiro as damas.– Absolutamente. Primeiro quem está a serviço.– A senhora, por favor, me dê a honra.

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– Senhorita. E faço questão que o senhor aceite.– Peço desculpas, mas as mulheres elegantes servem-se antes.– Os policiais cavalheiros têm preferência também.– Agradeço, mas terei que recusar.– Eu insisto.– A senhorita não me faça essa desfeita.– Não se trata de desfeita. É que também tenho o direito de ser gentil.– Tem o direito de fazer o que quiser, mas não de recusar minha oferta.– Por que não?– Prefiro assim. – Aposto que está acostumado a mandar. Todo mundo sempre faz o que

você quer?– Normalmente.– Então esta é uma situação anormal. Vai ter que aceitar que quero lhe

dar prioridade.– É melhor desistir; estou determinado a lhe ceder a vez. – Mas eu não abro mão. – Está fora de negociação.– O senhor é intransigente.– A senhorita é teimosa.– Todo mandão me chama de teimosa.– Toda mulher teimosa me chama de mandão.– Só falta dizer que é culpa minha que o senhor seja inflexível.– A senhorita é complicada.– O senhor é um chato. – A senhorita é problemática. Cria caso à toa...A discussão segue acalorada, quando noto o frentista acenando para sinalizar

ter concluído o serviço do meu carro. E exatamente quando me dirijo à saída da

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loja, o atendente traz o segundo café. O primeiro já devia estar frio após tanto tempo de conversa. Ainda pude testemunhar quando os dois investiram sobre a xícara recém chegada, dando início a mais um debate, invertendo a situação:

– Primeiro as damas! – ela se apressa em dizer.– Primeiro quem está a serviço! – ele retruca com determinação.E prosseguem o embate, enquanto o novo expresso esfria.

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O Carimbo e o Garimpo

Acordo cedo e sigo, acompanhada de uma pasta de documentos, em busca de solução para entraves burocráticos pendentes. No caminho encontro Bituca, o maluco do bairro de Ondina. Como sempre, anda pelo meio da rua, equilibrando-se sobre as duas linhas amarelas que separam o fluxo de ida e vinda dos carros, dançando sua curiosa coreografia, talvez seguindo um bloco carnavalesco imaginário, enquanto canta em um idioleto indecifrável. Motoristas desavisados se assustam e desviam com manobras plásticas, maltratando a buzina e os ouvidos da vizinhança. Mas a população residente, acostumada a esta performance habitual, apenas cuida para preservar a integridade física do nosso doido local, prosseguindo sem maiores sobressaltos.

Como de costume, ele usa vários paletós, um sobre o outro, alheio ao verão de Salvador que teima em contradizer sua indumentária composta por lâminas de cores e padrões. Leva na cabeça sua exótica coroa de arame, à qual eventualmente acrescenta algum elemento inusitado, como cabos elétricos e tampas, ou objetos que alhures tinham outra função em outro tempo. É evidente que a seleção desses materiais é criteriosa, privilegiando peças que agregam valor por seu brilho ou colorido atraente e especial.

Entretanto, não devo deter-me nem distrair-me com as extravagâncias e idiossincrasias de Bituca, pois assuntos sérios e inadiáveis aguardam importantes providências no mundo formal, com seus pragmatismos e racionalidades.

Chego à repartição. Entro em uma fila com o objetivo de conseguir a senha, que me dará direito a fazer parte de outra fila, até que meu número seja chamado no painel luminoso. Então devo seguir para a sala de triagem e novamente aguardar a minha vez de ser chamada em outra sala. Lá dentro, em intermináveis prateleiras, caixas estão colocadas dentro de caixas, que confinam

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I38

caixas, que servem de continente para fichários, que guardam pastas, que arquivam documentos, que confirmam fatos, junto com mais tantos que os negam, questionam, ou voltam a confirmar. Tiro do meu classificador diversos recibos de pagamento, comprovantes de recebimento, garantias de funciona-mento, de validade, de nulidade, de incertezas, de possibilidades e improbabili-dades. E os entrego junto aos contratos firmados que acompanham certidões e atestados, anexados à minha paciência, de preferência em duas vias, com firma reconhecida e depois esquecida, na grande pilha de papéis que o vento se recusa a soprar.

Enquanto isso uma circular vai circulando, apesar de exibir todo o quadra-dismo da sua geometria limitada e mesquinha. Ela circulando e eu paralisada aguardando um pouco mais. Somente meus olhos se movimentam de um lado a outro, acompanhando as pessoas que não param de passar, todas muito pre-ocupadas com a papelada a providenciar e maços de originais a serem copia-dos para depois autenticar.

Até que um funcionário me fornece a guia e solicita que eu preencha o formu-lário para juntá-lo ao relatório e me encaminha ao protocolo, onde aguardo que o encarregado analise meus dados, rubricando alguns documentos e descartando outros. Finalmente me entrega o boleto para que efetue o pagamento do valor respectivo à taxa de licença e autorização. Mas é preciso antes refazer cálculos.

Para tanto, desloco-me até o balcão onde deverá ser determinada a alíquota, levando-se em conta o exercício atual, mais multa de mora e correção monetária de acordo com a tabela vigente. De posse do montante referente à fração equivalente, entro na fila da agência bancária que se encontra nas depen-dências da repartição, onde recebo um novo número que passa a me identificar e me faz esperar.

Quando o momento aguardado se apresenta, efetuo o recolhimento do im-posto devido e recebo o comprovante de quitação, na posse do qual me dirijo ao

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guichê para nova conferência de todos os papéis, agora grampeados de acordo com a sequência estabelecida, dispostos em um envelope pardo, tamanho ofício, quando sou informada de que está quase tudo certo. Entretanto, falta o carimbo...

Nada pode ser feito e devo retornar amanhã para repetir todo o processo...Na volta para casa encontro novamente Bituca, que garimpa no lixo do

meu prédio mais algum adereço para sua coroa de arame. Ele me pareceu a pessoa mais sensata que vi hoje.

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Ei, Juiz, Vá Tomar No...

Que espetaculares as novas arenas padrão FIFA! Coisa de primeiro mundo! Projetadas para receber a Copa, cumpriram com brilhantismo seu papel e hoje temos como legado esses primores da arquitetura contemporânea!

São tão monumentais que quase ofuscam os dois elementos mais impor-tantes de um estádio: o jogo que ocorre em campo e o público presente, com sua vibração. Com a beleza frígida de uma modelo loira, alta e magérrima, a arena parece distante da ebulição e da taquicardia futebolística. Especialmente os espaços reservados ao público disposto a pagar mais, ou Lounge Premiuns, impes-soais como shopping centers ou aeroportos. E foi lá que, miseravelmente, em um desses clássicos entre meu time e seu arquirrival, fui parar, coitadinha de mim...

Os seguranças estilo man in black e as recepcionistas de tailleur, desde a entrada, quebravam a atmosfera descontraída, própria a esse esporte. Até o que parecia muito bom estava ruim – os banheiros eram chiques demais... –. Tanto que tive que fazer um esforço mental para lembrar, a cada instante, que me encontrava em um estádio de futebol. E antes de reconhecer o campo com suas medidas oficiais e marcações típicas, cheguei a pensar que estava em um torneio de Polo, em algum Country Club paulista quatrocentão; ou que fui tele-transpor-tada para uma corrida de cavalos em Londres, com a presença da Família Real. Faltavam, entretanto, os indispensáveis chapéus esculturais.

De qualquer forma, não me surpreenderia se o fraque ou smoking fossem traje obrigatório para os cavalheiros, e o longo para as senhoras. Nesse caso, eu deveria ter escolhido o vestido que usei nas bodas do meu primo, e pérolas, talvez...

Eu sei, eu sei. O leitor vai alegar que o advento do luxo e da sofisticação trouxe frequentadores novos para o templo do futebol. Eu mesma vi “peruas” e “patricinhas” que jamais teriam vindo ao estádio antigo. Mas eis a questão: para

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que serve um público indiferente, que não ama esse esporte, que não é louco por um time e só está ali para passear ou desfilar a roupa nova?

Torcedor é aquele que vai onde seu time estiver. Que segue seu clube, na terceira divisão, a um campinho de várzea, rezando para ele subir. Não porque esteja reclamando de frequentar um estádio ruim, pois ele se sente nobre ao fazê-lo. Mas porque não gosta de ver seu time assim maltratado, como um pai que quer para seu filho a melhor escola.

Notei que as “patricinhas” pareciam bastante à vontade. Mantinham-se dis-tantes da partida, mas como estavam soltas em um ambiente semelhante ao shopping, sentiam-se em seu habitat natural. E por não se interessarem pela disputa esportiva que se desenrolava, consumiam salgadinhos e refrigerantes frenetica-mente, pois julgavam ser aquela uma praça de alimentação, como em algum mall. Conversavam bastante, tendo como tema recorrente os capítulos favo-ritos de “Cinquenta Tons de Cinza”. Nenhuma palavra, entretanto, sobre futebol.

Adiante, vi um grupo de “peruas” em uma discussão acalorada, enquanto uma votação se desenrolava. Julguei que escolhiam o melhor homem em campo, ainda que fosse um pouco cedo para isso. Até o momento é o nosso lateral direito, que deu o passe para o primeiro gol e quase fez o segundo, pensei. Mas, ao apro-ximar-me, descobri que elegiam o ambiente mais criativo da recente Casa Cor.

Enquanto isso, em um universo paralelo, um jogo acontecia em campo. Sem qualquer tom de cinza ou cores da casa, mas apenas o verde gramado. Afastei-me o quanto pude do quadrante dos saltos agulha e fui dar atenção ao pessoal da chuteira com cravos, que desempenhava seu papel no estádio. Entretanto, mesmo o público que acompanhava o jogo vibrava pouco. Alguns comiam ou batiam papo, comportados e contidos por influência do ambiente. Até em um lance revoltante, no qual o nosso zagueiro entregou a bola nos pés do artilheiro deles, ou quando nosso centroavante, sozinho, de cara para o gol vazio, isolou a bola e cobriu o rosto humilhado, nem assim uma manifestação mais acalorada.

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Ninguém levantou. Nada. Notei, inclusive, que a maioria não olhava para o campo, pois assistia ao jogo no telão.

Então aconteceu o momento fatal: o árbitro não marca um pênalti claro a nosso favor. Com ansiedade aguardei o coro iniciar, pois nos serviria como consolo e vingança. Inutilmente. Um adolescente à minha frente ainda tentou começar com o clássico “ei, juiz, vá tomar no...”, mas foi contido por olhares críticos, que o fizeram sentir como uma criança que não soubesse se comportar na igreja, em plena hora da comunhão. Até que...

Até que um filho de Deus, um irmão de fé revoltado com a injustiça do senhor árbitro, soltou um sonoro e redondo “seu filho de uma puta!”, prosseguindo com o estilo linguístico que salvaria o jogo da frieza polar ao qual havia sido con-denado naquele ambiente glacial. Aleluia! Estava salva a catarse e com ela resga-tavam-se os espíritos dos craques de todos os tempos, que agora desciam de volta ao estádio, pois haviam sido banidos por não portarem o crachá ou a pulseirinha.

A pureza lexical de um impecável “puta que pariu” articulado com exatidão fonética nas consoantes plosivas; e a elegância estilística de um “vá tomar no cu” verbalizado com o requinte de recursos prosódicos de inequívoca sonoridade, nos devolveram, enfim, a harmonia e o estado de contemplação. Só nos resta louvar esse torcedor anônimo iluminado, um herói desconhecido. E, ainda, render home-nagens àquela que foi abandonada por todos, condenada ao ostracismo pelo frio concreto das novas arenas: viva a senhora santa mãezinha do juiz!

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Amoras e Amores Amorais

Em um Museu no Corredor da Vitória, sentei-me na varanda da cafeteria para tomar um expresso, quando fui testemunha de um violento atentado ao pudor. Enquanto ninguém mais parecia notar, me vi diante de uma cena de sexo grupal explícito mais desavergonhada que os filmes do canal para adultos da TV por assinatura. Ali, bem na minha frente, em plena luz do dia. Ruborizei constran-gida. E tive que distrair os olhos com o prospecto de uma exposição, evitando encarar. Explico no parágrafo seguinte, prometo.

É que as flores constituem-se como os órgãos sexuais das plantas. Isso equi-vale a dizer que naquela amoreira florida, à frente da minha mesa, estava em curso um verdadeiro bacanal. E não eram os únicos. Vários integrantes do reino vegetal daquele jardim estavam entregues a atividades semelhantes, despudoradamente.

Evidencia-se, portanto, que não há qualquer critério na escolha dos sítios para os affairs verdejantes, pois não precisam se importar em causar espanto ou constrangimento aos indivíduos do reino animal, mais particularmente aos supostos possuidores de massa encefálica, que desconhecem suas práticas. Dessa forma, é possível encontrar árvores e arbustos com seus galhos em plena inflores-cência defronte de igrejas, ou em frente às escolas e creches. E sequer esperam que a noite chegue para evitar que as crianças presenciem a cópula nas copas. Acontece tudo às claras.

Assim, se as plantas possuem uma existência dita secreta, isso se deve à cegueira humana. Uma histórica cegueira antropológica, pois os ritos de acasa-lamento dos entes vegetais são mais escancarados que os nossos. E apesar de muitos os ignorarem, ocorrem a todo instante, sem qualquer discrição.

Nas noites de tempestade, com os vizinhos humanos adormecidos ou resguardados em suas casas, a situação toma ainda maiores proporções. É quando

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I44

grandes orgias vegetais regadas às bebedeiras de chuva se desenrolam com intensidade. Então refestelam-se e enlameiam-se, banhando-se com desmesura e cruzando sem recato ou contrição.

Na manhã seguinte às madrugadas dos temporais é possível notar a massa verde pesada, dopada pela overdose de águas pluviais. Há no ar o cheiro molhado do mato de ressaca, amanhecendo após uma noite inteira entregue à lascívia das flores e embriaguez de chuva. Levam vários dias nesse estado estupefaciente e letárgico, pois não parecem ter qualquer pressa em restabelecer um padrão descente.

Estou convencida de que se não lhes foi dado falar ou caminhar é porque sua vida sexual é tão ativa, que as demais propriedades ficaram em segundo plano. Dessa forma, as flores, noite ou dia, chuva ou sol, seguem realizando aberta-mente seus festins licenciosos que fariam de Sodoma e Gomorra uma distração juvenil. Há, especialmente, práticas que a sociedade humana considera devassas ou libertinas. Refiro-me à intensa troca de parceiros que acontece sistematica-mente, enquanto realizam transferências de pólen entre si ou com os pássaros, besouros, abelhas, borboletas e até com o vento. Principalmente com o vento, um amante misterioso e sedutor.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 45

Na Rede com Caymmi

Os japoneses se orgulham de sua disciplina; os alemães da sua eficiência; os franceses por serem sofisticados; os ingleses porque são pontuais. Que coisa mais sem graça é o assim chamado “primeiro mundo”...

Há, felizmente, uma luz no fim do túnel, capaz de lançar um clarão sobre o tédio de concreto revestido de azulejo do hemisfério norte, com a voluptuosa incandescência que só se revela abaixo da linha do equador. A salvação para o descaminho dessas almas apáticas e desvalidas somos nós, baianos, o único povo do mundo que se orgulha da sua inigualável capacidade de realizar as melhores bagunças do planeta.

E são bagunças superproduzidas, com uma grandiosa estrutura de apoio de impecável competência e profissionalismo, mas que dão conta de fazer pare-cer que se trata de uma celebração espontânea, organizada de última hora por um povo festeiro que resolveu sair às ruas para dançar e comemorar. Talvez por esse motivo sejam admiradas e prestigiadas por cidadãos de todas as nacionalidades. Refiro-me ao Carnaval e às Lavagens que o precedem.

Já tentaram, em vão, nos imitar. Os franceses importaram a Lavagem do Bonfim e a lançaram em Paris. Pobres franceses... Gabam-se tanto de sua gastro-nomia, mas não conseguem preparar sequer um churrasquinho de “gato”, nem um bom queijinho de coalho no palito, que perde totalmente o sabor de festa se não for assado na frente do freguês, em um autêntico fogareiro de lata e carvão.

Os japoneses, treinados para diversos tipos de emergência, não saberiam o que fazer diante do rapaz que abre a multidão gritando “olha o gelo!”, com uma imensa barra nas costas. Não é só sair do caminho. Há que se fazer graça, levar ou fingir levar susto, pois na Bahia até o gelo eleva a temperatura da festa.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I46

Os alemães deixam muito a desejar em eficiência, pois insistem em atirar ao lixo a latinha de cerveja vazia. Um erro crasso, com consequências ambientais desastrosas. O correto seria jogá-la direto ao chão, em meio à multidão dançante, para imediatamente ver em ação o catador da cooperativa de reciclagem, que amassa o objeto com surpreendente habilidade, desaparecendo no instante seguinte. Muito perto deve haver uma tenda onde toda a coleta é reunida para mais tarde ser transportada. Por conta desse trabalho, o Brasil é hoje o maior reciclador de latas de alumínio do mundo. E se o prezado leitor não sabe qual a importância dessa conquista, consulte a Monografia de conclusão do curso de Especialização em Gerenciamento Ambiental desta autora sobre o tema, que mostra o quanto a prática é responsável pela redução da extração de alumina, mineral que produz o alumínio, uma atividade de altíssimo impacto para o meio ambiente.

E os ingleses que nos desculpem, mas aqui a festa começa muito antes do dia e não tem hora para acabar.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 47

Normas da Empresa

Saí de casa disposta a comprar um aparelho eletrônico, munida de tempo e paciência, posto que se tratava de uma compra eletiva, supostamente um ato cercado de puro prazer. Dirigi-me a um dos grandes shoppings de Salvador e, após demorada e criteriosa análise, que incluía uma composição de custo/benefício e apreciação estética, encontrei a opção ideal. A transação seguia azeitada nos trilhos, quando um balde de água fria – não no sentido literal que seria bom para a circulação – me atingiu através do vendedor, que me pedia dados para preen-cher um longo cadastro.

– Mas eu vou pagar à vista...– São normas da empresa.– Vou pagar em dinheiro...– São normas da empresa.– Afinal, qual o objetivo do cadastro?– É necessário para eu estar podendo fornecer a garantia.– Dispenso a garantia. Os aparelhos são feitos para quebrar somente

depois desse prazo. – Infelizmente não vamos estar podendo dispensar o cadastro –.“São normas

da empresa”, pronunciamos em uníssono, e foi a última coisa que eu disse antes de agradecer e desistir da compra.

O problema é que os cadastros não apenas invadem nossa privacidade – nesses tempos em que as pessoas se dão ao trabalho de fazer isso por elas mesmas nas redes sociais –, mas a falta de imaginação das perguntas: nome, endereço, escolaridade, profissão, referências bancárias...

Por essa razão, me permiti imaginar um questionário ideal, mais divertido e até, se analisado por um bom observador, muitíssimo mais esclarecedor, que seria assim:

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– Signo?– Touro com ascendente em Aquário.– Sabor de sorvete preferido?– Umbu.– Livro que está lendo?– “O Albatroz Azul”, de João Ubaldo. Na verdade, estou relendo. – Perfume favorito?– Gosto de diversos extratos franceses, especialmente os que têm cheiro

de comida. Mas o meu sonho é um perfume com fragrância de jaca. É a grande fruta injustiçada da perfumaria.

– Se você fosse um animal seria...– Uma onça ou um colibri. Estou em dúvida...– Tudo bem, temos espaço para dois.– Excelente.– Beatles ou Rolling Stones?– Led Zeppelin.– Estilo musical?– Todos. Do Gangsta Rap de Ice Cube às Gymnopédies de Satie, nesse

espaço onde David Bowie, Koko Taylor, James Brown e Aretha Franklin dialogam com Psirico e Pablo: depende da situação. Um hip hop russo ou grego, por exemplo, é ideal para ouvir durante o banho, especialmente se você não entende a letra. Mas um blues ou jazz com solos instrumentais elaborados pode ser perfeito para apreciar a lisura do mar sob a complexa tecedura cromática de longilíneas nuvens estriadas, em uma preguiçosa tarde de domingo...

– Com certeza... Toca algum instrumento?– Pandeiro e berimbau. São simpáticos e sociáveis, especialmente em uma

roda de capoeira.– Cinema ou Teatro?

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– Teatro, desde que seja uma tragédia bem densa; e adoro monólogos.– Cão ou gato?– Pássaros. Soltos. Em bandos ou rapinas solitárias.– Uma cidade?– Aqui e agora.– Uma paisagem?– O Farol da Barra no fim da tarde, quando a brancura da balaustrada apazigua

a disputa entre as cores do por do sol, especialmente se visto a partir do Morro do Cristo, onde o Banco de Santo Antônio convida a orla para dançar no vasto salão do Atlântico.

– Sei... Uma viagem inesquecível?– Cruzar o deserto de Wadi Hum, na Jordânia, em um táxi.– Um filme?– Qualquer road movie.– Quem levaria para uma ilha deserta?– Um laptop com bateria solar. Eu ficaria escrevendo à sombra de um coqueiro.– A resposta deveria ser o nome de uma pessoa...– Ok. Podem mandar o Cauã Reymond nos fins de semana. Mas precisam

pegá-lo de volta toda segunda pela manhã. Eu prefiro estar só para escrever.– Certo, terminamos.– Que pena, estava tão divertido...– Volte na semana que vem. Teremos excelentes promoções e novas

perguntas para o cadastro.– Ótimo! É sempre assim?– São normas da empresa!

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Os Donos da Rua

Avenida Tancredo Neves; dezoito e trinta. Fim de uma tarde chuvosa de segunda-feira. A cidade mergulhada no caos tenta se mover, arrastando-se desordenadamente em todas as direções. Luzes começam a se acender, dos pré-dios, dos postes e faróis dos carros. O semáforo abre e fecha, enquanto bandos de carros cruzam, descruzam, param. Turbas de transeuntes atravessam a rua apressadamente. Hordas disputam o ônibus; a fila ninguém respeita. Um shopping traga automóveis enfileirados. O viaduto os lança para o alto e depois os devolve ao chão, pois os que estão lá querem vir para cá, enquanto os daqui seguem para alhures. As pequenas ruas deságuam rios de carros no mar de trânsito da larga avenida. A noite começa barulhenta. Em Brasília dezenove horas, diz o rádio do veículo que buzina ao da frente, que buzina ao próximo, que responde buzinando ao que passa, que buzina já nem sabe o porquê. E seguem trocando de fila ainda que de nada adiante, pois todas andam bem devagar. Motos ziguezagueiam, cortam o rumo de um coletivo que resfolega, assovia o freio, ronca o motor em ameaça. Táxi! Ele mergulha na poça e molha quem está no ponto. Sombrinhas se entrecruzam, rodopiam, descem, sobem, abrem, fecham, balançam, dançam.

Uma ambulância passa gritando, afirmando histericamente que ééééééé... Mas não tenho certeza se é mesmo. Pois a cidade não faz sentido, entretanto permanece, continua, porque ainda não sabe parar. Ainda algo precisa ser feito, há o que comprar, o que buscar, a quem buscar, aonde ir. Filas se formam nos supermercados: fila do pão, fila do caixa, fila da fila. Fila para entrar no shopping, fila para sair dele. Cidadãos disputam a vaga e a vez, como se disso lhes dependesse a vida. Apertam-se, empurram-se, comprimem-se, esticam-se, encolhem-se, aglo-meram-se. Empunham carrinhos de compras, cestas, sacolas, sacos, pacotes, que pegam, pesam, pagam. Ensacam, embrulham, cobram. Próximo! A cidade articula-se,

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engendra-se, aposta, troca, vende, compra, copia, reduz, aumenta, lota, entre placas e prédios. Sobe! Como não sabe o que quer a cidade quer tudo, quer qual-quer coisa, quer mais...

Então, de repente como começou sua movimentação ensandecida, a cidade para. Aquieta, cala e amansa. Desaparece cada um para seu canto, seu esconderijo, seu bunker. A chuva ainda estala, mas já não tem a quem molhar. Ela empapa as calçadas, faz sopa de lama, enquanto poucos carros ainda deslizam sobre o asfalto brilhante de água e luz. Um semáforo abre e fecha para ninguém, esverde-ando, amarelando, avermelhando ou vermelhecendo. Envelhecendo o dia. Anoite-cendo. Os últimos pedestres apaziguam a noite. E o solitário vira latas fica com a rua toda para si e a divide apenas com o mendigo seu dono, os donos da rua, os reis da noite, da chuva e da solidão.

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O Motivo da Separação

O fim do casamento, em geral, vai se desenvolvendo paulatinamente, na medida em que a lista de insatisfações tem mais itens que a do supermercado. Até que a melhor solução é encontrar a maior distância entre dois pontos, que atende pelo nome de divórcio, cujo objetivo é delegar à justiça o poder de aparar as últimas arestas.

Mesmo assim, caberá ao ex casal tornar pública a razão que os levou a esta decisão. E quando dá por si, você está diante da fatídica pergunta: qual o motivo da separação? O que responder? Que acabou? Pouco elucidativo. Que as rosas já não falam nem exalam? Muito subjetivo. Que a razão do fim é não haver mais razões para continuar? Filosófico demais. A lei exige que você pra-tique a evasão de privacidade, que lave alguma roupa suja e arremate o término, deixando-o claro e inegociável.

Mas você e seu (sua) ex acabaram a relação com elegância. Não houve litígio ou contenda. Tornaram-se apenas bons amigos e pronto. Finda quando ter-mina. Ponto final. Contudo, toda essa naturalização é inútil, pois lá está o item em branco, um imenso vazio esperando para ser preenchido. Uma caverna inabitada onde, ao mínimo ruído, ecoa uma enorme interrogação – o motivo...tivo...tivo... –. E só resta encontrar o que dizer quando não há mais nada a dizer. É hora, portanto, de buscar o indizível, e dizê-lo.

A maioria dos casais que se encontra – ou melhor, se desencontra – diante desta situação, pensando apenas na praticidade, opta pela desgastada “incom-patibilidade de gênios” ou “convivência insuportável”. É, as letras jurídicas não estão necessariamente preocupadas com a criatividade...

As vítimas dessa mesmice, entretanto, não são os desnubentes, pois estes só pensam em se livrar o quanto antes da burocracia que envolve o desenlace,

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partindo para nova e esperançosa fase da vida. Os verdadeiros vitimados são os funcionários do cartório, em sua obrigação diária de engolir mais uma justificativa entediante.

O tabelião, com olhar distante, ainda busca vislumbrar um sinal de vida pela fresta da única janela da sala, enquanto envelhece consumido pela rotina dos seus dias, apodrecendo na sombra úmida do desânimo sem jamais ser tocado pela indulgência da inspiração. Os funcionários cochilam pelos cantos, abatidos diante mais um término enfadonho, respirando a poeira da desesperança junto com os gases tóxicos da sequência de eventos insossos e invariáveis que impregnam a atmosfera da repartição.

É nesse território estagnado e esquecido pela luz que você vai parar, tragada (o) involuntariamente até o ambiente repleto de papéis e mais papéis embolorados, que repousam abandonados em prateleiras iguais, ao lado de cadeiras impessoais onde tantos já sentaram para nada de novo acrescentar. O desânimo domina a paisagem empedernida onde paira acima das cabeças um pensamento mofado, e um sentimento amorfo aprisiona as sensações provo-cando uma analgesia nas almas esgotadas pela previsibilidade das declarações.

A monotonia é cadenciada por um relógio cujos ponteiros se movimentam pesadamente e sem motivação, marcando os minutos que se sucedem invariá-veis, preso a uma parede ensebada pelo desalento das horas petrificadas pelo rigor mortis. O fastio se adensa a ponto de quase tornar-se mais um objeto na sala cinzenta e fria, onde todos se arrastam como zumbis, desgastando o piso que evidencia a rota percorrida, uniformemente, outra e outra vez mais...

Entretanto esta, muito mais que qualquer outra, deve ser uma oportunidade para por em prática a sutileza e a inventividade. Nem tudo está perdido. Você ainda pode salvar a situação e oferecer um alento aos funcionários e ao tabelião; alongar a manhã, torná-la ereta, elegante, altiva, não se deixar abater pela palidez mesquinha e murcha que ameaça anuviar o sol das sensações, desbotando o

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I54

colorido da vida, roendo e puindo seus encantos até os ossos. A inovação buscada, entretanto, não sinaliza para a prolixidade de longos

textos ou embates despropositados. Não. É possível apresentar uma performance que seja ao mesmo tempo sumária, plástica, exótica e eloquente. Manter-se no padrão da escola Bauhaus, cujo conceito fundamental preconiza que o menos é mais, optando por algo como: “Incompatibilidade de agendas”. Preciso, cirúrgico! Em seguida, surpreenda a todos com o elemento inusitado, que fará o tabelião saltar da velha cadeira que range a melodia de uma nota só, ao arrematar reticenciando: “Jamais fomos juntos a Paris...”.

O escrivão, animado pelo oxigênio que invade a sala, vai comentar solida-rizando-se: “Não sei como ela (ele) suportou por tanto tempo...”. E todos os pre-sentes ao Fórum, tomados por um sentimento misto de euforia e alívio, com os olhos iluminados pela gratidão, em uníssono, vaticinarão: “Irreconciliável!”.

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O Sovaco da Cobra

O Sovaco da Cobra não é um lugar para existir. Por isso mesmo recebeu esse nome que faz parte do universo imaginário. Não é um lugar para ser, mas para ter sido. Foi criado para acabar e se tornar uma saudade.

O Sovaco da Cobra fechou e pode-se especular o motivo: porque a per-feição assusta, ou porque a sua áurea etérea era mais leve que o ar, ou, ainda, porque rivalizava com o paraíso. Entretanto, é mais provável que tenha sido pela falta de pagamento do aluguel.

O Sovaco da Cobra era um bar dançante no qual a democracia sócio--econômico-racial foi levada às últimas consequências. O Sovaco da Cobra não podia dar certo porque era perfeito demais. Lá ninguém conhecia ninguém e todo mundo era amigo de todo mundo. A gente ia chegando, ia ficando, sempre estava cheio e sempre tinha lugar.

Normalmente alguém oferecia cadeira a quem entrava e este aceitava, mas acabava por nunca sentar, pois o Sovaco da Cobra era lugar para ficar de pé, dançando. Sempre havia pessoas com quem conversar muito em uma noite e jamais voltar a encontrar. Todos os rostos eram familiares e ao mesmo tempo pareciam ser caras novas, e quem vinha pela primeira vez logo ficava tão à vontade como se fizesse parte do mobiliário.

Havia, sobretudo, uma elegância em sua simplicidade, na ambientação cujo sucesso era uma arrumação desarrumada, um capricho despretensioso, um charme casual. Tudo era colorido e musical. E até a fila do banheiro era simpática, pois promovia mais um momento de interação e cumplicidade na espera: uma fila socializante.

Sim, o Sovaco da Cobra era elegante. Talvez o bar mais sofisticado de Salvador. Entre cervejas em copo americano disputando espaço com a “branquinha”, e tira-

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I56

-gostos dos mais severos aos mais frugais, o Sovaco da Cobra exibia sorrisos, corpos suados dançantes, palmas no ar, batuques por todos os lados. O som era ao vivo e os músicos, misturados aos frequentadores, pareciam estar em toda parte. A banda operava o mistério da onipresença divina.

O Sovaco da Cobra era, enfim, uma utopia. Possivelmente um bar conceito ou um protótipo criado para ser testado por um grupo de habitantes da esfera cambiante. E por certo ainda não estávamos preparados para um lugar assim tão elevado. Reabrirá daqui a cinquenta ou cem anos, talvez...

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Tão Pequeno

Há uma tristeza no olhar de Miranda que grita ao interlocutor enquanto pede baixinho. Seus olhos lamentam, mas Miranda não chora. Inspira sua vida de privação e em silêncio expira sua dor. Onde está o pai do pequeno que ela embala? Tão mirrado, não dá para adivinhar que idade tem. Seus olhinhos herda-ram o desencanto e a incerteza, e desde cedo não parecem inocentes sobre a dureza que lhe aguarda.

Nos olhos de Miranda há dias de solidão, noites em claro, esperanças perdidas. Pereceu-lhe a fé, pisoteada qual tomate velho no fim da feira. Enquanto alguns compram o que vão comer Miranda os observa. Diz alguma coisa que ninguém ouve e lhes estende a mão. Não se anima com a moeda que lhe foi jogada. Com mais duas iguais compra um pacote de biscoitos que divide com o miúdo. Comida mesmo, hoje não vai encontrar.

Seu corpo franzino tem marcas de um passado violento. Cicatrizes nas pernas e mãos são relatos encarnados de que a situação, tão penosa, pode ter sido ainda pior. Miranda refugiou-se na miséria da cidade, escondendo em sua pequenez uma desilusão enorme, porém invisível ao fluxo de gente correndo em busca do que julgam que o destino resolveu lhes premiar.

O homem da faxina varre seus pés como se lá não estivesse. Levanta-se assustada ao vê-lo ameaçá-la com um balde d água. Muda-se para outro canto onde não incomodará os que possuem vida. Onde sua mendicância causará menos transtorno e constrangimento aos passantes, enquanto assiste o lugar onde estava ser lavado, para que se remova o ranço da sua malfadada sina.

Há no jovem rosto de Miranda uma dor madura, um “já não importa”, sem direito a sonhar. Expectativas são inúteis. Só quer conseguir a próxima refeição. Além disso, Miranda não espera nada, não quer mais nada, nada mais pede. Criará desse jeito seu rebento e desde tão pequeno lhe ensinará: Esse mundo, meu filho, não presta...

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Se Alguém Partir seu Coração, Agradeça

Sim, porque a melhor das musas não é a criatura adorável que o ama, nem aquele ser dedicado que o enche de atenção e carinho. A musa ideal, a musa de verdade é aquela miserável que o fez de tolo, aquela insensível que o desprezou, que riu dos seus nobres sentimentos e o largou por outro, que você suspeita ser bem melhor que você.

Agora mesmo ela deve estar com ele, se divertindo, dançando, rindo, bei-jando, amando, conjugando todos os gerúndios insuportáveis para a imaginação de alguém que daria tudo por mais um minuto com ela. E enquanto gerundeia fagueira, você enche a cara com um whisky vagabundo, ou com a cachaça mais barata, esperando que essa pese na sua cabeça como chumbo e tire, ao menos por alguns momentos, essa mulher do pensamento.

Mas não tira. Ela gerundeia e você come o pão que o diabo amassou, faz das tripas coração para continuar vivendo sem ela, se é que se pode chamar de vida o vazio que restou, com um rombo no peito destroçado.

Nada a elimina do pensamento. Ela permanece e aí é que está o milagre da transcendência. Como não pode tirá-la da cabeça você a transforma em letra de música, em cores de um quadro cheio de paixão e ódio. Porque essa é a única maneira de exorcizá-la, de expurgá-la pelo menos um pouco.

Ela pode se tornar o refrão pungente de uma canção passional, ou um romance de seiscentas páginas. Em qualquer dos casos esta poderá ser a sua melhor obra. E é aconselhável aproveitar o momento, pois talvez nunca mais escreva tão bem como então. Porque esta é a fase da vida em que você fala do amor de dentro para fora, e das dores da desilusão amorosa na qualidade de especialista. Descreve a paixão como um expert, com domínio e propriedade.

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Os termos exatos virão à mente e sua mão será guiada no teclado do computa-dor, ou nas cordas do instrumento para a rima contundente. As cores certas irão pousar na sua palheta e depois na tela esticada, para desenhar ocisão e prazer que irão representá-la. Ela. Sempre Ela.

Ela está em tudo, principalmente onde não está, onde sua falta apunhala as entranhas impiedosamente. Sempre Ela. Só Ela. Você tenta esquecê-la com outras. Não consegue. Cada outra que surge só aumenta a certeza de que em todas falta aquilo que nela exorbita, que Ela exala, ostenta e esbanja.

Mas nem pense em reclamar. Afinal, quem seria você se a musa não o tivesse desprezado? Nada, ninguém. Um a mais na multidão. Por isso agradeça àquela que jamais será sua, que nunca levou seu amor a sério, que o menosprezou, que zombou da sua paixão, que passou de carro na poça da vida jogando lama em seu coração.

Agradeça a essa santa mulher, que merece um altar. Ela é a padroeira da criação. Verdadeira fada da inspiração que você, de tanto amor e ódio amalga-mados, chamou de bruxa. Pois exatamente ao enfeitiçar e depois partir seu coração, essa criatura cercada de magia transformou você de escritor medí-ocre em inventivo poeta. Fez de um ser normal um indivíduo superior. E você ainda tem pena de si mesmo, com medo de morrer de amor. Só porque não sabe que todo aquele que ama é imortal. Ela o premiou com a imortalidade.

Então, se alguém partir seu coração seja honesto, seja justo, seja humilde, seja, pelo menos, educado: agradeça!

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Se Alguém Partir seu Coração, Agradeça II

Caro leitor, você que correu os olhos sobre a crônica anterior pode estar se perguntando: E se eu não for artista, nem poeta, nem pintor, músico ou compositor, o que a musa pode fazer por mim? Não é artista, mas é ser vivente, carece de energia dinamizadora, de inspiração para evoluir, de estímulo para se superar, transcender. Talvez precise sacudir o pó de uma vida medíocre, estática e partir para a ação.

Inicialmente, vai fazer isso para mostrar a Ela – sim, sempre Ela, tudo Ela –, mas quem ficará com o legado é você. Impulso transformador que opera a reconstrução do você melhor que você; decibéis de potência contra o tédio da vida. Ela é a luz que iluminará o caminho em busca de si mesmo. É o farol que norteia a transformação que a vida precisa.

Você não sabe, mas sem Ela talvez nem valesse a pena existir. Ela é quem faz seu mundo girar. Ela tem esse dom. Quando cruzou sua estrada a vida ofereceu um presente. Sinta-se um privilegiado, pois Ela passará por você e por outros poucos sorteados do destino deixando atrás de si um rastro, sim devastador, mas com a força da reconstrução.

Essa força, ainda que não se dê conta, flui dentro de você, e Ela, a musa, novamente Ela, é quem dispara o gatilho para que o processo se inicie. É a mola propulsora, o estopim, a gota d água que faz derramar a torrente, que se torna o seu dilúvio pessoal até que surja a pomba branca que traz no bico o ramo de oliveira, a esperança, o início, o novo gênese de você.

Os países que perderam a guerra e foram destroçados estão hoje entre as maiores potências do mundo. É o poder inigualável da destruição e criação, que juntos formam a ordem natural. Não há renascimento sem morte, luz sem escu-ridão, bonança sem tempestade.

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Tomemos o salitre, que corrói o ferro, destrói a matéria, desgasta superfícies. Mas também renova o ar, purificando-o. Estudos mostram que em zonas de praia fora de baías, em orlas de mar aberto onde o salitre se faz presente e abundante, o ar é o mais límpido possível. A poluição não permanece onde ele está. Eis novamente a força destruidora que depura. De quantos exemplos ainda precisa?

Entretanto, é indispensável que o seu lugar nesta história não seja de passivo espectador. Deve aprender a manipular essa energia que tem em mãos e usá-la a seu favor, para obter o poder transformador e criador através dela. Para tanto, é necessário abraçar o lado iluminado desse agente operador e abandonar sua face sombria, a vingança. Fazer desse processo de ruptura interior uma evolução, uma ignição. E decolar.

Nesse ponto, portanto, caro leitor, só me cabe repetir: se alguém partir seu coração seja honesto, seja justo, seja, pelo menos, educado: agradeça!

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I62

Disse a Loira: “Não me Suicidaria nem Morta!”

Por conta da reforma do meu apartamento, aluguei outro onde deveria

passar cerca de um trimestre. O detalhe é que, desde a primeira noite na nova

residência, descobri que estava morando em um sítio mal assombrado, onde

habitava um fantasma bem humorado e gozador, que me pregava peças.

De quando em vez, o desencarnado sumia com alguma coisa da casa e

depois de horas vasculhando todo o perímetro, eu encontrava o objeto em algum

lugar onde já havia procurado e não estava. Uma evidente necessidade de

chamar minha atenção.

Logo de início resolveu mexer em meu pen drive, exatamente na pasta onde

se localizava minha produção literária. Ao notar a intrusão fiquei muito aborrecida.

Mas, depois, ao descobrir uma crônica que ele havia escrito, percebi que era

muito melhor escritor do que eu. E ainda consertou, aprimorou e até terminou

outros textos que se encontravam inacabados. Um editor fantástico! Portanto,

resolvi contabilizar o lucro assinando suas crônicas como minhas. Assim, ele

tornou-se, literalmente, um escritor fantasma.

Analisando a situação com mais clareza, conclui que não poderia me

sentir invadida. Afinal, provavelmente ele já morava no imóvel por mim locado e

fui eu quem surgiu para tirar sua tranquilidade. Mas preferia pensar que ele vivia

um tédio sem fim, até que eu aparecesse trazendo luz e animação para sua vida

de sombras e trevas.

A cada dia o seu material redigido tinha mais qualidade. Só precisava des-

cobrir se ele fazia daquele apartamento seu domicílio perene, ou se era ape-

nas população itinerante, para que me sentisse segura em aceitar a oferta de

emprego em um jornal, para o qual deveria fornecer crônicas diárias. Pois para

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tanto necessitaria contar com o suporte do meu escritor fantasma. Sim, passei a chamá-lo de meu; tornei-me possessiva com relação àquela entidade. E ao perceber sua assiduidade, assumi a função que me foi confiada.

Aviso, entretanto, caso integrantes de alguma ONG que protege os direitos dos fantasmas estejam lendo estas linhas, que estou certa de não ter cometido qualquer ilícito ao não dividir com ele meus rendimentos. Fantasmas não têm contas a pagar, nem precisam comer. Ainda julgo que se encontrava em van-tagem, pois passou a auferir dos benefícios de morar com todo o conforto e a tecnologia doméstica – quantos espíritos do além possuem TV a cabo e internet wireless à disposição? –, e apenas eu tinha responsabilidade sobre taxa do con-domínio e demais encargos ou custos que incidiam sob a moradia em questão.

Julgo, portanto, que seu trabalho estivesse bem remunerado. Não posso ser considerada exploradora, nem corro o risco de ser acusada de ter mantido mão de obra escrava. Novamente preocupo-me com esse pessoal dos direitos humanos, cada dia mais intransigente – observem como o “politicamente correto” tornou-se, de alguma forma, terrivelmente limitador. As piadas de loiras, minhas preferidas, considerando a posição confortável na qual me encontro, tendo os cabelos negros como o café coado, foram praticamente extintas porque essas histéricas agora possuem o poder de levar qualquer pobre comediante aos tribunais... –. Mesmo assim, voltando à minha alma penada hospedeira, suspeito que os direitos dos fantasmas estejam estabelecidos em algum código, e, por-tanto, agora que divulgo sua participação em meu labor, prefiro me acautelar.

Da jornada de trabalho ele não poderia reclamar. Não a impunha; sequer estipulava carga horária. Ele mesmo determinava seu turno e horas trabalhadas. Apenas esperava que desse conta da produção.

Notava que era bastante criativo aos domingos, quando o prédio ficava mais silencioso, especialmente se chovia. Nisso nos parecíamos muito, pois fico particularmente inspirada em dias chuvosos, ainda que não tanto quanto ele.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I64

Este meu ghost writer era padrão Nobel, o equivalente ao padrão FIFA na lingua-gem do futebol.

Nas sextas-feiras ensolaradas, entretanto, costumava faltar ao serviço sem qualquer justificativa. Fingia que não notava e não anotava suas ausências. Foi uma política que adotei. Sempre achei que essa gente que trabalha com cria-tividade, mesmo depois de morta, precisa do oxigênio da liberdade para alimentar--lhes o fogo da imaginação.

Em épocas de festas na cidade seu trabalho também sofria uma queda significativa. Não sabia se ele frequentava os eventos, ou se era o barulho oriundo desses que o incomodava. Assim, apresentava-se um impasse entre extremos: estava diante de um fantasma festeiro contumaz, que não perdia uma “balada” sequer e ainda levava alguns dias para curar a ressaca; ou, ao contrário, tratava-se de um recluso absoluto, desses que ao primeiro toque de pandeiro enclausura-se a meditar, eliminando os sons de fundo ao concentrar-se no seu zazen, isolando-se na mais alongada padmasana, ou postura da flor de lótus.

Em determinada oportunidade aderiu à greve geral deflagrada por inúmeras classes laborais e não produziu nada. Depois, sem mais nem menos, voltou às atividades normais. Não fui convocada a participar de qualquer rodada de nego-ciações, e sequer fui informada da pauta de reivindicações. Suspeitei, por-tanto, que estivesse apenas tentando ser um fantasma engajado, seguindo os movimentos sociais e mostrando-se politizado. Assim, talvez protestasse sem saber exatamente contra o quê, pois também deve haver, entre os desencar-nados, algum rebelde sem causa. Fui imediatamente verificar o estado do blindex do banheiro, mas, felizmente, nada se quebrou. Salvou-se a minha caução.

Um dia, porém, a reforma do apartamento foi concluída. Já poderia voltar ao domicílio próprio. Estava tudo pronto, mas eu não retornava ao meu imóvel. Ao invés disso, renovei o contrato de locação por mais um pequeno período, alegando alergia ao cheiro da tinta. Na verdade, as tintas atualmente não pos-

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suem odores ativos. Entretanto, por algum tempo a desculpa colou.Depois foi ficando esquisito. Ninguém conseguia entender porque me man-

tinha no sítio alugado. A minha resistência, contudo, era causada pela incerteza de que o meu escritor fantasma se mudaria comigo, pois estava completamente dependente de sua produção. Eu não escrevia mais uma linha sequer.

Então fiz o que deveria. O momento exigia medidas radicais. Coloquei meus livros em caixas e as levei para o imóvel reformado. Todas. Voltei para a re-sidência locada e fiquei encarando um quadrinho que mandei emoldurar, onde estava escrito “home is where my books are”. Funcionou. Foi como ouvir um cha-mado. Tomei coragem e me mudei.

Nas manhãs seguintes, já de volta ao domicílio próprio, acordava e ia direto para o computador, verificar se havia algum texto produzido. Nada. Um dia, porém, descobri qualquer coisa nova no pen drive, que abri muito animada. Ele havia redigido uma única frase. Era uma piada de loira. E nunca mais voltou a escrever lá em casa.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I66

Operária da Literatura

Acontece muito no meio do sono: ela impiedosamente vem me chamar. Tento fingir que continuo dormindo. Ela insiste – levante-se! –. E sempre acabo cedendo. Em seguida vai até o computador e fica voando em círculos ao seu redor, como um cachorro em volta do dono quando anseia passear. Permanece seu voo até que abro e ligo o notebook.

Então senta no alto do monitor, pequenina e leve, com suas diáfanas asinhas furta-cor. Parece muito com a Sininho de Peter Pan, mas não se veste de verde. Se demoro a começar ela sai de sua postura e vem para perto das teclas, parando no ar como um colibri que suga a seiva de uma flor, batendo as asinhas tão velozmente que engana a visão.

Considero a possibilidade ignorá-la, voltar para a cama. Mas ela não desis-tirá. Sua aproximação incisiva não deixa espaço para renúncias. Diante desses apelos que posso eu fazer? Ponho-me a trabalhar, operária da literatura, enquanto ela, novamente sentada no alto do monitor, dita uma sequência de parágrafos que vou digitando, como um chefe e sua secretária em um escritório.

Sem demora já não estamos ao redor do computador e sim suspensas no ar, ambas, sem espaço ou tempo a nos apoiar. Ela não fala, mas me comunica o que quer dizer. E daqui de cima vejo meu corpo lá em baixo pressionando as teclas, fazendo surgir um texto enquanto levito.

Ao final estou de volta ao meu corpo e já não reclamo de ter perdido uma parte do sono. Sinto a satisfação do dever cumprido, como o peão que acordou cedo, ordenhou o rebanho de vacas e agora as solta no pasto. Ou o pedreiro que subiu uma parede, toma distância e observa orgulhoso seu trabalho concluído.

É quando ela desaparece e estou liberada para voltar à cama; retomar o

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sono de onde parei. Ou recomeçar um sonho leve e novo, do qual nem precisarei lembrar ao acordar, pois tenho crédito a meu favor. Somente na manhã seguinte irei reler o texto, avaliar se precisa ser editado ou se já chegou todo pronto.

Este que o prezado leitor tem agora diante dos olhos foi produzido na noite passada, nas condições descritas. Hoje só tive que acrescentar este último parágrafo. Os demais foram escritos ontem, ditados por ela, a Fada da Inspiração.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I68

Já Viu o Leitor um Pé de Jambo em Flor?*

Deveria. Pelo bem da cidade, pela diminuição do estresse, pela preservação da sensibilidade ameaçada por estímulos hipermodernos e seus apelos midiáticos exacerbados, pela defesa de valores mais elevados em um mundo carente da noção de qualidade e merecimento, pela apreciação estética do belo que não se pode comprar.

Um jambeiro, quando floresce, cobre o chão com um carpete cor de rosa fúcsia luminoso. Uma imagem de absoluta sublimação. As flores caem e viram pó, tonalizando o solo. Quando isso acontece, ele é capaz de oferecer um silêncio contemplativo em meio ao caos da cidade histérica.

Há classificações científicas que o colocam encerrado em espécie, gênero e família. Mas não se engane com garbosas nomenclaturas em latim. Devemos fazer ressalva aos limites da academia, que desconhece reinos onde coexistem faunos, sereias, bichos falantes e pés de jambo em flor, claro.

No Google há mapas para situar tudo. E qualquer coisa se encontra pelo GPS. Deveria haver um localizador de pés de jambo que estão florindo. Na verdade, o ideal seria um aplicativo a ser baixado em tablet ou smart phone, informando, em tempo real, sempre que a floração iniciar.

Seus filhos nunca viram um pé de jambo com flores? Não descuide da edu-cação. Descubra qual o mais próximo da sua casa. Vai pedir alguém em casa-mento? Procure saber se há algum pé de jambo em fase de inflorescência nas imediações. Não há cenário mais adequado.

Há festas para um monte de datas sem tanta envergadura. Por que não temos o Dia da Floração do Jambo? Sugiro, pelo menos, um feriado municipal.

*O título parafraseia o Príncipe da Crônica, Rubem Braga, em O pé de milho: “Já viu o leitor um pé de milho?”

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No Japão a florada da cerejeira é comemorada nacionalmente, atraindo visitantes do mundo inteiro.

O pé de jambo pode, ainda, servir de oráculo. O melhor teste para saber se um casal é compatível, por exemplo, é o beijo sob o jambeiro pleno de flores, sobre seu tapete de fulgor intenso e original. Se o resultado for decepcionante, não adianta chorar ao pé do Caboclo. Coma um jambo maduro e mande a fila andar.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I70

A Bailarina Cintilante que Prateia a Paisagem

No alto da Federação, onde reinam as antenas de TV, vimos quando começou o espetáculo. Primeiro as nuvens acortinaram o sol para que sua peformance reinasse absoluta. A trovoada, então, se introduziu ruflando um solo de timbales. Efeitos especiais de luz cortaram o céu com raios e clarões. Lá em baixo iniciou-se a valsa das sombrinhas, que rodopiavam no salão da avenida. E no centro do palco estava ela, a bailarina cintilante que prateia a paisagem, rutilante e iridescente, com seu apelo gris. Na ponta dos pés realizava um solo, com elegância longilínea e metálica.

Mas, mesmo com toda essa produção, verdadeiro ofertório do firmamento, a chuva tem pouco crédito na mídia, que em sua banalidade repetitiva só é capaz de afirmar que o dia será bonito se for ensolarado. Quando ela se insinua consideram o clima feio e triste, lamentando pelo leitor, ou telespectador. Será o pessoal do informe meteorológico assim tão limitado, incapaz de apreciar essa ópera que o azul do céu e até o horizonte respeitam e saem de cena fazendo questão de lhe ceder a vez?

Alheia às críticas redutoras da mídia, entretanto, ela permanece com seu esplendor fugaz entre vapores grafite, exibindo a plenitude do seu repertório que vai da frugal garoa até a mais densa tempestade. Engrossa e afina. Horas sussurra e chia, horas crispa e estala. E até em uma simples poça deixa seu brilho de opala.

A chuva é um rio vertical que também corre para o mar e cai sobre ele ado-çando-lhe a imensidão salgada enquanto diz shhhh... E induz ao silêncio contem-plativo. Lavando, refrescando e renovando a tarde, removendo e dissolvendo marcas para sugerir um recomeço, é um dos símbolos da sorte e da fartura, que leva a seca e traz a fé. É filha de Oxum se desce fininha e de Iansã quando cai abun-dante e generosa, como agora.

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– Vem, meu amor, aqui na varanda. Vamos dançar juntinho, de rosto colado, uma dança lenta sob a chuva e dar beijos molhados. Aproveitemos, pois logo ela partirá em sua carruagem de nuvens para onde não sei. Antes, nos livremos dessas roupas.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I72

Verdade Afogada

No fim da tarde, em Stella Maris, o mar prateado e calmo nada mais tem a declarar. No máximo talvez sussurre aos ouvidos da noite, que ao plantar-se no horizonte, dele se aproxima. Antes esbravejava incandescente e efervescia, dragão de fogo crepitante e passional. Agora cala e sossega, não ronca nem resfolega. Deita e relaxa, linear e longo; sutil.

Sobre o mar já se disse quase tudo. Que é o símbolo da liberdade ou a imagem da vastidão do mundo. Mas ele é também o lugar de perder-se e de não se achar. Senão para que ia ser tão fundo? Quem o conhece bem sabe: seu ofício é arrastar e levar embora. Quando alguma coisa traz é sargaço, salitre e má notícia. Gosta de arquivar a história, de tragar verdades e ocultar aviões que caem, vidas que desaparecem, navios que afundam e não voltam mais. Engolidor de barcos, sumidouro de cascos, velas, mastros, lemes, redes e gente. E depois, sonso, não sabe, não viu, em sua desfaçatez de inocente.

É guardião de segredos profundos, porém, não porque seja de confiança. Se o que sabe não revela, não é por ser discreto, ou para preservar quem quer que seja. E sim porque lhe apraz ser misterioso. Porque se julga o detentor único das verdades afogadas, ocultas em suas vagas. Em sua escuridão abissal o mar nada revela. Sabe, mas esconde. Viu, não conta. Guarda, não mostra. Artista das refrações que falseiam o que a visão tenta interpretar.

O mar é assim. Quem quiser que o defenda. Beleza ele tem como argu-mento, com seu charme azul e seu vai e vem espumante que hipnotiza como os diamantes falsos do seu brilho sedutor. Dissimulado. Que ninguém nele se fie, pois é instável e temperamental. Combina que vai ficar liso e por razão nenhuma muda de idéia sem aviso prévio, só se revelando em cima da hora, para encrespar

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encarneirado e cinzento. Ou promete vento, jura ondas grandes e sem mais nem menos é uma placa de calmaria.

Belo, grande e mentiroso mar, que puxa, que leva; você que se vire pra voltar. E com tudo isso ainda gosto dele, mas prefiro Marius, que também era bonito e salgado, mas sabia ser doce.

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I74

Cajá, Mangaba, Siriguela, Graviola, Coco e Amendoim

Na calçada da Manoel Dias da Silva, enquanto aguardávamos a agência do banco abrir, sem mais o que fazer para passar o tempo, alguns integrantes da fila iniciam um debate filosófico:

– Nem sempre se pode programar o futuro. Eventualmente é preciso esperar – pondera o obstetra.

– Só sei que a vida vai deixando marcas, manchas que não conseguimos apagar – lamenta a dona da lavanderia.

– Às vezes é chapa quente... – adverte a funcionária da lanchonete.– E às vezes é estupidamente gelada – completa o garçom do bar.– O eterno sobe e desce está no cerne da humanidade – infere o ascensorista.– A existência não passa de uma sequência interminável de furos e remen-

dos – advoga o borracheiro. – Quebro, logo existo – considera a ortopedista. – É preciso buscar compreendê-la em profundidade – aconselha o cavador

de poços artesianos. – Mesmo assim, muitas vezes não faz qualquer sentido – argumenta o

orientador de trânsito.– Apesar de tudo, a vida é cheia de sabores. Vale a pena experimentar! –

arremata Seu Moreira, o velho vendedor de sorvetes que ia passando com sua clássica caixa de metal.

Então nos esquecemos, por alguns minutos, a abertura da agência bancária, para formar nova fila junto ao sorveteiro – tem de quê?

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Um Animal ao Volante

Felpudo iniciava a travessia da larga avenida, em frente à Igreja da Con-ceição da Praia, quando foi covardemente abalroado por um carro, cujo moto-rista não quis se dar ao trabalho de reduzir. Sequer tentou desviar, seguindo sem se importar com o trágico acidente.

Com as patinhas traseiras totalmente quebradas e sem capacidade de movimento da cintura para baixo, Felpudo arrastou o corpinho mal nutrido com a força de suas frágeis patas dianteiras, realizando um esforço descomunal, com a expressão crispada de dor, para acabar de cruzar a via e salvar a metade da vida que lhe restou.

Diante do drama do cachorro, os carros foram parando um a um. A cena tocante imobilizou todo o trânsito, comovido com a tenacidade do animal, e até que ele acabasse de cruzar a avenida nenhum veículo se mexeu. Felpudo foi atropelado só porque um motorista não quis perder alguns segundos ao reduzir ou parar. E agora ele paralisava toda a rua.

Entretanto, seu nome não é Felpudo. Ele não tem nome. É um cachorro de rua. Atende por qualquer assobio. Come restos, quando os encontra; mata a sede com água da sarjeta e fica feliz quando acha uma poça de chuva ainda fresca para beber; ou um pedaço de jornal velho pra se deitar, até ser escorraçado. Não decidiu viver assim. Foi sentenciado ao abandono. A rua não é seu habitat natural. Sofre, apanha, passa fome, sede e frio.

Segundo a Wikipédia, a mãe dos burros hipermodernos, o cão (Canis lupus familiaris) é talvez o mais antigo animal domesticado pelo ser humano. Teorias postulam que surgiu do lobo cinzento no continente asiático há mais de cem mil anos. As designações “vira-lata” (no Brasil) e “rafeiro” (em Portugal) são

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SELO LITERÁRIO JOÃO UBALDO RIBEIRO | ANO I76

destinadas aos que não possuem raça definida. Tornou-se um animal de grande utilidade, podendo ser adestrado para executar diversas tarefas, como auxiliar na caça, para a guarda, pastor de rebanhos, ou simplesmente como companhia. Ainda segundo a enciclopédia virtual, sua afetividade, fidelidade e companhei-rismo são os motivos para a fama de melhor amigo do homem, considerando que não há registro de relacionamento tão forte e duradouro entre espécies distintas. Só faltaram informar que, nas cidades, seus maiores predadores são os carros com animais ao volante.

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Crônicas Hipermodernas III

O Pós-Modernismo acabou. Já podemos falar dele com nostalgia e saudades. Vivemos o Hipermodernismo, a era do indivíduo bombardeado por excesso de estímulos que provocam uma excitação mental constante, resultando em per-manente estado de tensão e estresse, que o torna...

– “Eu não tenho carro, não tenho teto e se ficar comigo é porque gosta do meu rá, rá, rá, rá, rá rá, rá, do lepo lepoooo...” –. Desculpe, é o meu celular. – Oi, Virgílio. Não, combinamos na quinta; hoje é terça. Não, não escolhi a foto ainda. Acabei de chegar de viagem. Mas eu tenho que enviar agora, agorinha? Estou um pouco ocupada. Em preto e branco fica melhor? Está bem.

Agora perdi o fio da meada... Mas o que importa é que no Hipermodernismo o futuro perde força para entrar em cena o “aqui e agora”. E o “para sempre” foi abolido em um cenário onde nem mais o papado é perene, não durando até o final dos dias de vida do Papa. Sob esse prisma, o indivíduo hipermoderno vive em um ritmo ditado pela velocidade com que tudo passa, e todas as transformações são justificáveis pela natureza efêmera dos elementos que circulam na órbita cultural atual, cunhados por avanços tecnológicos como a internet, pois não há como...

– “Eu não tenho carro, não tenho teto e se ficar comigo é porque gosta do meu...” –. Desculpe, tenho que atender. – Oi Fabiana, tudo bom? Sim, pode confirmar minha presença; vinte horas. Vou sim, com certeza. Não, prefiro improvisar. Se eu não preparar nada, sai melhor. Mesmo assim tenho que enviar um resumo? Até quando? Para ontem? Entendi... Outro para você.

Onde parei? Bom, é interessante ressaltar que esse é um indivíduo cujos ouvidos recebem diariamente uma dose não eletiva de música alta da mala aberta de um veículo estacionado, de buzinas desnecessárias, dos alto-falantes das kombis e carros de propaganda; sem contar o rugido impiedoso da cidade grande produ-

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zindo e construindo para ficar cada vez maior, quando já parece grande e con-fusa demais; e existe ainda o bombardeio das propagandas que o interpelam em todas as mídias, cada vez mais apelativas, que dizem o que ele precisa ter e ser; e quanto mais o mundo ideal é apresentado, mais se sente oprimido pela miséria do garoto que faz malabarismos apáticos no sinal fechado, questionando silenciosamente sua parcela de culpa; enquanto habita um mundo cujo arsenal atômico – somados todos os países – poderia destruir 30 planetas iguais a Terra, mas que não é capaz de...

– “Eu não tenho carro, não tenho teto e se ficar comigo...” –. Um momento, por favor. – Alô. Como? Não, não quero experimentar um mês gratuito de internet e TV a cabo. Não, querida, eu não tenho que te explicar o motivo. É não e ponto. Desculpe, preciso desligar. Por favor, não insista.

Prosseguindo, eu diria que existe no Hipermodernismo uma nova Arca de Noé, uma cyber-arca ou uma arca ponto net, que vai partir levando apenas quem estiver conectado. Nesse contexto, o celular é o novo canivete suíço, que é rádio, televisão, máquina fotográfica, agenda, correio, computador, além de também servir como...

– “Au au au...” –. Meu celular late quando tem mensagem de texto – “Mande agora mesmo um torpedo para 666 com a palavra “zodíaco”, e receba todos os dias no celular o seu...” –. Me recuso a ler o resto.

Desculpe, não posso desligar o celular neste horário. Pelo menos não tenho WhatsApp. Não sei por quanto tempo vou suportar a pressão para ter... Retomando, foi também com a inspiração na urgência hipermoderna que surgiram padrões estéticos que valorizam, por exemplo, o uso indiscri-minado de anabolizantes para obter rapidamente um corpo avolumado por músculos – em lugar de tentar adquirir a boa forma através de longos meses em uma academia de ginástica –, sem a preocupação com graves consequ-ências futuras, porque o que importa é o resultado instantâneo. O sonho jubi-

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loso de toda a sociedade contemporânea, destarte, é consumir já, e buscar a satisfação imediata através de...

– “Eu não tenho carro, não tenho teto e se ficar comigo é porque gosta do meu...” –. Um momento, por favor, é a secretária do editor. – Diga, Rosana. Fale devagar. Como é? A Universidade me ofereceu uma passagem para Porto Alegre, saindo de Salvador, só que a escala é em Natal? Isso não é uma reserva, Rosana, é uma punição. Eu vou medir o Brasil, ou participar de um debate? Nem Euclides da Cunha pegava esse voo! Eles têm pressa da resposta senão a reserva cai? Se for para pagar penitência prefiro ir a pé ao Bonfim, comendo tamarindo verde. Não, Rosana, não é pra dizer isso a eles. Diga só que não, obrigada. Agora tenho que desligar.

Pois, muito bem. Devemos considerar que o homem hipermoderno é bombardeado por informações demais, a partir das inúmeras revistas, dos diversos jornais e telejornais, alguns com duplas barras de rolamento que fornecem mais e mais notícias, e, principalmente, pela internet, seus sites e suas incontáveis janelas, links e possibilidades. E ele sabe que não é capaz de processar a quantidade de dados produzidos a cada segundo. Será que esse indivíduo hipermoderno poderá ser salvo por um download da mente ou um orgasmo por e-mail? Será que ele...

– “Eu não tenho carro, não tenho teto e se ficar comigo é porque gosta do meu rá rá rá rá rá rá rá, do lepo lepoooo... É tão gostoso quando eu rá rá rá...” –. Rosana, não posso falar com você agora. Quem não para de ligar? E tenho que enviar imediatamente? Está bem. Mas agora não posso falar. Quem mais ligou? Quem? E queria o quê? Hoje ainda? Vou tentar. Tenho que desligar. Lembre de mandar o pen drive azul. Não, o azul. Só tem um azul. Obrigada.

Então, é exatamente isso. Vivemos em uma sociedade – interpelada pelo assédio comercial e midiático, e fragmentada pelas urgências pragmáticas do cotidiano – na qual tudo parece estar à venda, mas os artigos de luxo mais raros

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são a privacidade, o silêncio e tempo para si próprio. Assim, esse texto acabou sem que eu pudesse concluir um parágrafo sequer. Isso seria uma Crônica Hipermoderna.

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Todo Dia os Pássaros Cantam Perto da Minha Janela

Mesmo se o tempo amanheceu abafado, com um céu todo branco e o vento faltou; mesmo se alguém morreu e o rabecão estacionou bem debaixo da minha janela; mesmo se o delegado ligou e disse que estou sob investigação, por causa de um conto que escrevi; mesmo se a moça da limpeza, sempre desairosa e indiligente, não veio, a cozinha está uma bagunça e o banheiro sem água; mesmo se ele foi embora batendo a porta e achei que já ia tarde; ou se o café tem gosto de ferrugem e o cigarro acabou; mesmo se o meu time está na segunda divisão; mesmo se a inspiração passa ao largo do laptop e não tenho vontade de escrever; mesmo se um casal de vizinhos discute desde cedo, gritando termos impublicáveis, ainda que, eventualmente, eu mesma os publique; mesmo se agora há uma fumaça escura provocando a turbidez do céu e tosse nos mora-dores, enquanto ouve-se a sirene do carro de bombeiros, as pessoas começam a abandonar suas casas, o tumulto é geral e...

Brincadeira. Estava apenas tentando enaltecer a determinação dos pássaros. Porque, na verdade, o dia amanheceu com uma garoa gentil sobre o céu luminoso de setembro; ninguém morreu e uma criança corada ensaiava seus primeiros passinhos debaixo da minha janela, segurada aos braços pelo pai; o delegado é meu amigo e ligou para pedir sugestões sobre um livro que pretende dar de presente; encontrei a moça da limpeza cantando na cozinha quando saí do banho e o chuveiro novo tem uma vazão convincente; não fumo e o café que fiz há pouco está perfeito, em aroma e sabor, e eu o tomava de pé, na janela, ouvindo solos de um trinado que não identifiquei o autor, enquanto Nina Simone cantava “Feeling Good”, quando ele acenou lá de baixo, após voltar da corrida, trazendo o jornal que acabou de comprar, além de uma sacola de conteúdo indecifrável que

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tentou inutilmente esconder, pois era surpresa, mas ao chegar descobri que se tratava de uma dúzia de sapotis – doces, nem moles nem duros: no ponto certo –, me olhou com um ar maroto – parece que o incêndio vai ser aqui em casa assim que a moça da limpeza se retirar – e perguntou sorrindo sobre o assunto da crônica que eu escrevia. Expliquei que era sobre os pássaros que todo dia cantam perto da minha janela, mesmo meu time estando realmente na segunda divisão...

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 83

Letargia da Paixão

Vagava vadio o dia, sem rumo, falando sozinho. Parecia vazio, além de vadio. Foi quando chegou a garoa. Era tão leve, tão linda, tão fina, que o dia, que até então lançava palavras ao vento, emudeceu. E emudeceu também a janela, e dentro dela a sala, na penumbra do céu anuviado.

Acostumado ao colorido do sol, às festas e fanfarras, mas farto deles, o dia olhava perplexo a garoa e perguntava: é neve, é chuva, é água? Prosseguiu a interrogar: cai ou paira no ar? Fechou os olhos, o dia, mas continuou a vê-la.

Impassível às indagações do dia, desprendia-se vaporosamente a garoa, levitava, descia lenta, desafiava a gravidade, a física, inventava uma nova veloci-dade, embaçava a visão, planava na paisagem difusa.

Primeiro precipitou-se na vertical. Depois, influenciada pela brisa marinha, andou de lado, horizontalizou-se, voava lateralmente traçando uma paralela com a linha do mar.

Em seguida, soprada por um vento em sentido contrário, multifacetou-se e fracionou sua trajetória nas possíveis direções. Dividiu-se para cima, abriu-se para os lados, desceu, subiu; girou.

E o dia entontecia inebriado, enlevado com o redemoinho de garoa. Minús-culas gotas, gotículas, invadiam a paisagem vespertina qual enxame de insetos em torno da luz, enlouquecendo o dia de paixão.

Atônito, letárgico de encantamento e inseguro, queria o dia manifestar-se, mas não conseguia. Estava mudo. Sabia que o verbo legitima os fatos. Mas não era capaz de organizar qualquer forma de expressão. Estava apaixonado, o dia. E amava calado.

Esperou, a garoa, que o dia dissesse alguma coisa, qualquer coisa. Olhou nos olhos do dia e só viu confusão.

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Mas, enfim escureceu e no lugar do dia se instalou um céu leitoso, mistura de nuvem e lua. Era o entardecer, que vendo a garoa se espalhou lânguido e serenou sem medo, mesmo tendo todas as estrelas se escondido. Abraçou a garoa e dançaram, beijaram-se, encontraram-se no breu profundo do firmamento. Então a garoa sorriu. E o dia a perdeu para sempre.

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CRÔNICAS HIPERMODERNAS 85

Quando as Rosas Roseiam Corderosamente

Eu sei, eu sei: as rosas não falam. Já o disse Cartola. Mas, neste vaso à minha frente, uma dúzia delas me espreita com sofreguidão. E, sim, elas dizem “me des-culpe”. Elas dizem “vamos retomar de onde paramos”. Dizem “não desista de mim”.

Não, não há qualquer cartão no celofane que as envolve, cuja transparência evidencia a dedicação dos caules e a inocência das folhas com seus graciosos picotes. E, candidamente, sobressai a leveza das pétalas rosa chá, com capilares que se ramificam como mapa hidrográfico e as irriga por caminhos tênues e sutis.

Estes seres inocentes vieram dedicar seus últimos instantes de vida a me trazer uma mensagem codificada. No entanto, não parecem protestar por isso. Ao contrário. Aí estão com altivez e orgulho, cumprindo sua missão. Pacien-temente aguardam que a solicitação cifrada em seu discurso silencioso, porém eloquente, transmita uma emoção.

Nobres criaturas que me encaram, sem olhos; e se expressam através de um idioma transliterado sob a forma de perfume. Vida que pulsa, que respira e transpira, e cuja delicada tez ainda carrega gotas da última rega, lembrança dos tempos em que sentiam o frescor do orvalho sob as estrelas e a lua. Hoje confi-nadas em um vaso, há poucos dias recepcionavam abelhas, sintetizavam a luz do sol e aguardavam das nuvens o frescor das tardes de garoa; nostalgia do campo.

O telefone toca. O silêncio, mesmo quebrado pelo ruído da chamada, aumenta, adensa, toma de assalto a sala toda. Neste momento não há qualquer outro som no mundo. Somente um aparelho que se manifesta imperativo. E flores que sugerem, corderosamente: – Atenda... atenda... atenda... –. Elas não param de pedir.

Saio de casa. Evito o clamor das rosas. Vou até a Ribeira. As carcaças dos

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velhos saveiros e escunas rendidas foram retiradas da beira do mar. Já não podem mais me oferecer auxílio. E a areia escaldante e vazia, inclemente, nada tem a declarar. Dou uma volta na orla. Não, não quero sorvete. Bebo uma água de coco; como um beiju – só queijo, por favor.

Mas a quem estou enganando? Não paro de pensar naquelas rosas. Elas me aguardam. Me cobram. Mesmo longe não cesso de ouvi-las. Atormenta-me a culpa de tornar vão o sacrifício de sua existência breve. Haverão de degradar-se, definhar, secar, perder a plasticidade e o aroma, para enfim morrer sem obter a sensação prazerosa do dever cumprido. Seria um holocausto inútil, vidas desper-diçadas em uma tentativa frustrada por ninguém menos que eu mesma. Sinto-me uma impiedosa algoz de rosas. Pesa-me a consciência. Não consigo mais passear. Volto para casa.

Elas lá estão, lindas e plácidas. Porém determinadas e persuasivas. Tento um acordo. Elas não se manifestam, apenas roseiam. Acabo propondo uma rendição incondicional: – Está bem, está bem, vocês venceram. E farei mais do que atendê-lo da próxima vez que ligar. Vou eu mesma telefonar para ele. Está bem assim? Estão felizes agora? Então, por favor, façam silêncio por um minuto, ou vamos falar de outra coisa. E parem de me encarar! Obrigada.

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Projeto GráficoFundação ADM

Capa e IlustraçãoAugusto Mattos

Produção e Impressão GráficaFundação ADM

CTP e Impressão GráficaGrasb

Formato 20 x 21Tipologia das famílias Open Sans, A Massa Falida 1

Cartão Supremo 250g/m² capa - Alto alvura 90gm² miolo - 88p. Tiragem: 2000 exemplares

Ano: 2015