manuscritos de felipa xiv
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Manuscritos de Felipa XIV
Manuscritos de Felipa XIV
Adlia Prado
como achar na calada objeto de valor o descobrir sozinho certos porqus. No se pode mesmo
chamar dedo anelar ao dedo de pr anis, anular que se diz, devido origem da palavra, pois vem
de nus, o anel por excelncia, meu caro Uxinton. Isto me distancia imensamente da Margarida, que
jamais o descobriria sozinha. No por falta de inteligncia, mas porque a ocupa com caminhes de
areia, fazendo de sua prosa uma grande praia sem mar, sem o encanto e os perigos do deserto: "...
est l, agora, a maior confuso, s missa de stimo dia ele ganhou quatro, em igrejas bem longe uma
da outra, porque as cunhadas no queriam se encontrar. Gente que foi na matriz no pde abraar a
viva, nem os filhos, nem ningum. o morto mais sem missa que eu j vi. Tudo por causa do lote. A
lei no deixa pr nele a placa de Vende-se. O inquilino que tem oficina nos fundos no paga nem
assina acordo". Teodoro quis interferir, colaborar com informaes legais, Margarida no deixou, foi at
o amargo fim da histria cheia de lotes, apartamentos, contas no banco, dios varamente
degustados entre missas e novenas. A um pequeno flego, j no fim, Teodoro que s prestara
ateno na parte jurdica do cipoal, disse, com didtica preciso, das medidas necessrias para se
colocar a placa no lote. Foi quando Margarida completou: mas agora a placa j est l. Por que voc
no falou no comeo da histria que no podia mas j pode? Olha aqui, Margarida, se voc vai me
contar que algum morreu, por favor, no comece pela doena ou perguntando se me lembro dele,
essas coisas. Diga logo, o fulano morreu, depois, SE FOR O CASO, d os detalhes. Ela no ficou com
raiva, porque Teodoro falava brincando e ela tinha feito um caf muito bom, era domingo e a
lengalenga, at que, de certa forma, bem, estvamos ali pra visit-la, gostamos dela. Mas se Teodoro
no a interrompesse, era capaz de eu, muito despistadamente, ficar lendo a Revista da TV, dando
palpites s pra marcar presena, expediente de pouca valia, no fundo estava sofrendo por causa do
Hermnio que morreu brigado com as irms, dos filhos dele que tomaram o partido da me contra as
tias e, principalmente, principalmente porque no estavam juntos na missa. Isto me desconcertou,
morte que no abranda os coraes, a missa como uma placa de Vende-se, um carto de visitas,
valendo menos que um telegrama de psames. Tudo me serviu para corajosa deciso, corajosa porque
zelo muito por minha imagem diante de Deus e da humanidade em geral, estendendo meu zelo aos que
amo, vigiando se um irmo se lembrou do aniversrio do outro, dando mil disfarados jeitinhos para que
se lembre por amor de deus e telefone, canseira. J posso fazer isto agora, um prmio, pois o filho
se esqueceu do meu aniversrio e fiquei normalssima. Mais: fiquei feliz! Foi uma coisa nova. Ele no se
lembrou e o amor resistiu vigoroso, vitaminado, desembaraado, caminhando a p. Mais amei o
esquecido. Por isso tudo no vou telefonar Zuleide pela morte do pai. No o fiz na hora esperada,
faz-lo agora pagar tributo lei que no respeito, aceitar que, enquanto falsamente me agradece,
me chame sem corao, grosseira, ndia pegada a lao. Nada disso eu sou. Quando a sabedoria da
vida providenciar, perguntarei de todo o corao: Zuleide, voc j se acostumou sem o seu pai? A
filha dela, a neta do morto, vai me criticar, mas ela prpria, a quem pude cumprimentar, no queria
falar de bitos, queria cigarros, recomendar a melhor clnica pra se ter um beb, enfim, falava
sinceramente do que lhe ia no corao, exatamente como desejo fazer. "Que os mortos enterrem seus
mortos" no para os parentes do Hermnio, que acreditam em lotes e etiquetas como em pessoas
vivas. para mim que acredito nos mortos e assim o compreendo: Felipa idiota, v cuidar da vida.
Texto extrado do livro "Manuscritos de Felipa", Editora Siciliano So Paulo, 1999, pg. 57.