manuscritos econômico-filosóficos, de karl marx

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MIA > Biblioteca > Marx/Engels Manuscritos Econômico- Filosóficos Karl Marx Agosto de 1844 Escrito: entre abril e agosto de 1844 Primeira Edição: 1932 Fonte: Antivalor Transcrição: Alexandre Moreira Oliveira , abril 2007. HTML: Fernando A. S. Araújo , setembro de 2007 . Índice Prefácio Primeiro Manuscrito Trabalho alienado Segundo Manuscrito A relação da propriedade privada Terceiro Manuscrito Propriedade privada e trabalho Propriedade privada e comunismo Necessidades, Produção e Divisão do Trabalho Dinheiro

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Page 1: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

MIA  >  Biblioteca  >  Marx/Engels

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Agosto de 1844

Escrito: entre abril e agosto de 1844 Primeira Edição: 1932 Fonte: AntivalorTranscrição: Alexandre Moreira Oliveira, abril 2007.HTML: Fernando A. S. Araújo, setembro de 2007 .

Índice

Prefácio

Primeiro Manuscrito

Trabalho alienado

Segundo Manuscrito

A relação da propriedade privada

Terceiro Manuscrito

Propriedade privada e trabalho

Propriedade privada e comunismo

Necessidades, Produção e Divisão do Trabalho

Dinheiro

Crítica da Filosofia Dialética e Geral de Hegel

Page 2: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Prefácio

Já anunciei, no Deutsch-Franzoesischer Jahrbücher , uma crítica do Direito e

da Ciência Política sob a forma de crítica à filosofia Hegeliana do Direito.

Entretanto, ao preparar o trabalho a ser publicado, ficou evidente que seria assaz

inconveniente uma combinação da crítica dirigida somente à teoria especulativa

com a crítica de vários assuntos; isso tolheria a exposição da argumentação e

tornaria esta mais difícil de ser acompanhada. Ademais, eu só poderia comprimir

tal riqueza e diversidade de assuntos em um único livro se escrevesse em estilo

aforismático, e uma apresentação assim aforismática daria a impressão de

sistematização arbitrária. Por conseguinte, publicarei minha crítica do Direito,

Moral, Política, etc., em diversos opúsculos separados, e, por fim, tentarei, em uma

obra a parte, apresentar o conjunto inter-relacionado, mostrando as relações entre

as várias partes e apresentando uma crítica do tratamento especulativo desse

material. É por isso que, no presente trabalho, as relações da Economia Política

com o Estado, o Direito, a Moral, a vida civil, etc., são apenas abordadas na

medida em que a própria Economia Política trata desses assuntos.

Não é necessário assegurar ao leitor familiarizado com a Economia Política

que minhas conclusões são o fruto de uma análise inteiramente empírica, baseadas

em um meticuloso estudo crítico da Economia Política.

É claro que além de aos socialistas franceses e ingleses também recorri a

trabalhos de socialistas alemães. Mas as obras alemães originais e importantes a

este respeito - fora as de Weitling - limitam-se aos ensaios publicados por Hess no

Einundzwanzib Bogen , e ao de Engels, "Umrisse zur Kritik der

Nationaloekonomie" no Deutsch-Franzoesischer Jahrbücher. Nesta última

publicação, eu mesmo indiquei, de forma bastante genérica, os elementos básicos

do presente trabalho.

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Page 3: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

A crítica positiva, humanista e naturalista tem início com Feuerbach. Os

trabalhos menos espetaculares de Feuerbach são os mais certos, profundos,

extensos e duradouros em sua influência; eles são os únicos, desde a

Fenomenologia e a Lógica de Hegel que contêm uma verdadeira revolução teórica.

Ao contrário dos teólogos críticos de nossa época, considerei o capítulo final do

presente trabalho, uma exposição crítica da dialética hegeliana e de sua filosofia

geral, como absolutamente essencial, pois isso ainda não foi feito. Esta falta de

meticulosidade não é acidental, pois o teólogo crítico continua a ser um teólogo.

Ele tem de partir, seja de certos pressupostos da filosofia aceita como oficial, ou

então, se no decurso da crítica e como resultado de descobertas de outras pessoas

surgirem-lhe na mente dúvidas acerca dos pressupostos filosóficos, abandona-os de

forma covarde e sem justificativa, abstrai a partir deles, e demonstra ao mesmo

tempo dependência servil face a elas e seu ressentimento a essa dependência de

maneira negativa, inconsciente e sofística.

Olhada mais de perto, a crítica teológica, que foi no começo do movimento um

fator genuinamente progressista, é vista como sendo, em última análise, nada mais

que a culminação e conseqüência do antigo transcendentalismo filosófico, e

especialmente hegeliano, deformado numa caricatura teológica. Descreverei

alhures, com maior minúcia, esse ato interessante de justiça histórica, essa

nêmese que agora destina a teologia, sempre o setor infectado da filosofia, a

espelhar em si a mesma dissolução negativa da filosofia, isto é, o processo de sua

decadência.

Karl Marx, 1844

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Primeiro Manuscrito

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Page 4: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Trabalho Alienado

(XXII) Partimos dos pressupostos da Economia Política. Aceitamos sua

terminologia e suas leis. Aceitamos como premissas a propriedade privada, a

separação do trabalho, capital e terra, assim como também de salários, lucro e

arrendamento, a divisão do trabalho, a competição, o conceito de valor de troca,

etc. Com a própria economia política, usando suas próprias palavras,

demonstramos que o trabalhador afunda até um nível de mercadoria, e uma

mercadoria das mais deploráveis; que a miséria do trabalhador aumenta com o

poder e o volume de sua produção; que o resultado forçoso da competição é o

acumulo de capital em poucas mãos, e assim uma restauração do monopólio da

forma mais terrível; e, por fim, que a distinção entre capitalista e proprietário de

terras, e entre trabalhador agrícola e operário, tem de desaparecer, dividindo-se o

conjunto da sociedade em duas classes de possuidores de propriedades e

trabalhadores sem propriedades.

A economia Política parte do fato da propriedade privada; não o explica. Ela

concebe o processo material da propriedade privada, como ocorre na realidade,

por meio de fórmulas abstratas e gerais que, então, servem como leis. Ela não

compreende essas leis; isto é, ela não mostra como surgem da natureza da

propriedade privada. A Economia Política não dá nenhuma explicação da base para

a distinção entre trabalho e capital, entre capital e terra. Quando, por exemplo, a

relação entre salários e lucros é definida, isso é explicado em função dos interesses

dos capitalistas; por outras palavras, o que devia ser explicado é admitido.

Analogamente, a competição é referida a todos os pontos e explicada em função

das condições externas. A Economia Política nada nos diz a respeito da medida em

que essas condições externas, e aparentemente acidentais, são simplesmente a

expressão de uma evolução necessária. Vimos como a própria troca se afigura um

fato acidental. As únicas forças propulsoras reconhecidas pela Economia Política

são a avareza e a guerra entre os gananciosos, a competição.

Justamente por deixar a Economia Política de entender as interconexões

dentro desse movimento, foi possível opor a doutrina de competição à de

monopólio, a doutrina de liberdade da profissão à das guildas, a doutrina de

divisão da propriedade imobiliária a dos latifúndios; pois a competição, liberdade

de ocupação e divisão da propriedade imobiliária foram concebidas tão-somente

como conseqüências fortuitas produzidas pela vontade e pela força, em vez de

conseqüências necessárias, inevitáveis e naturais do monopólio, do sistema de

guildas e da propriedade feudal.

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Page 5: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Por isso, temos agora de apreender a ligação real entre todo esse sistema de

alienação - propriedade privada, ganância, separação entre trabalho, capital e

terra, troca e competição, valor e desvalorização do homem, monopólio e

competição - e o sistema do dinheiro.

Não iniciaremos nossa exposição, como o faz o economista, por uma legendária

situação primitiva. Uma tal situação arcaica nada explica; simplesmente afasta a

pergunta para uma distância turva e enevoada. Ela afirma como fato ou

acontecimento o que deveria deduzir, ou seja, a relação necessária entre duas

coisas; por exemplo, entre a divisão do trabalho e a troca. Da mesma maneira, a

teologia explica a origem do mal pela queda do homem; isto é, ela assegura como

fato histórico aquilo que deveria elucidar.

Partiremos de um fato econômico contemporâneo. O trabalhador fica mais

pobre à medida que produz mais riqueza e sua produção cresce em força e

extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que

cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do

aumento de valor do mundo dos objetos. O trabalho não cria apenas objetos; ele

também se produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e, deveras,

na mesma proporção em que produz bens.

Esse fato simplesmente subentende que o objeto produzido pelo trabalho, o

seu produto, agora se lhe opõe como um ser estranho, como uma força

independente do produtor. O produto do trabalho humano é trabalho incorporado

em um objeto e convertido em coisa física; esse produto é uma objetificação do

trabalho. A execução do trabalho é simultaneamente sua objetificação. A execução

do trabalho aparece na esfera da Economia Política como uma perversão do

trabalhador, a objetificação como uma perda e uma servidão ante o objeto, e a

apropriação como alienação.

A execução do trabalho aparece tanto como uma perversão que o trabalhador

se perverte até o ponto de passar fome. A objetificação aparece tanto como uma

perda do objeto que o trabalhador é despojado das coisas mais essenciais não só

da vida, mas também do trabalho. O próprio trabalho transforma-se em um objeto

que ele só pode adquirir com tremendo esforço e com interrupções imprevisíveis.

A apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais

objetos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado

pelo seu produto, o capital.

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Page 6: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Todas essas conseqüências decorrem do fato de o trabalhador ser relacionado

com o produto de seu trabalho como com um objeto estranho. Pois está claro que,

baseado nesta premissa, quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto

mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criado em face dele mesmo,

tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e tanto menos ele se pertence a si

próprio. Quanto mais de si mesmo o homem atribui a Deus, tanto menos lhe resta.

O trabalhador põe a sua vida no objeto, e sua vida, então, não mais lhe pertence,

porém, ao objeto. Quanto maior for sua atividade, portanto, tanto menos ele

possuirá. O que está incorporado ao produto de seu trabalho não mais é dele

mesmo. Quanto maior for o produto de seu trabalho, por conseguinte, tanto mais

ele minguará. A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que

o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas

ainda que existe independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que com

ele se defronta como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se

contra ele como uma força estranha e hostil.

(XXIII) Examinemos agora, mais de perto, o fenômeno da objetificação, a

produção do trabalhador e a alienação e perda do objeto por ele produzido, nisso

implícitas. O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior

sensorial. Este ultimo é o material em que se concretiza o trabalho, em que este

atua, com o qual e por meio do qual ele produz coisas.

Todavia, assim como a natureza proporciona os meios de existência do

trabalho, na acepção de este não poder viver sem objetos aos quais possa aplicar-

se, igualmente proporciona os meios de existência em sentido mais restrito, ou

sejam os meios de subsistência física para o próprio trabalhador. Assim, quanto

mais o trabalhador apropria o mundo externo da natureza sensorial por seu

trabalho, tanto mais se despoja de meios de existência, sob dois aspectos:

primeiro, o mundo exterior sensorial se torna cada vez menos um objeto

pertencente ao trabalho dele ou um meio de existência de seu trabalho; segundo,

ele se torna cada vez menos um meio de existência na acepção direta, um meio

para a subsistência física do trabalhador.

Sob os dois aspectos, portanto, o trabalhador se converte em escravo do

objeto: primeiro, por receber um objeto de trabalho, isto é, receber trabalho, e em

segundo lugar por receber meios de subsistência. Assim, o objeto o habilita a

existir, primeiro como trabalhador e depois como sujeito físico.

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Page 7: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

O apogeu dessa escravização é ele só poder se manter como sujeito físico na

medida em que é um trabalhador, e de ele só como sujeito físico poder ser um

trabalhador.

(A alienação do trabalhador em seu objeto é expressa da maneira seguinte, nas

leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para

consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais

aperfeiçoado o seu produto, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto

mais civilizado o produto, tão mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o

trabalho, tão mais frágil o trabalhador; quanto mais inteligência revela o trabalho,

tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza.)

A economia Política oculta a alienação na natureza do trabalho por não

examinar a relação direta entre o trabalhador (trabalho) e a produção. Por certo, o

trabalho humano produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o

trabalhador. Ele produz palácios, porém choupanas é o que toca ao trabalhador.

Ele produz beleza, porém para o trabalhador só fealdade. Ele substitui o trabalho

humano por maquinas, mas atira alguns dos trabalhadores a um gênero bárbaro de

trabalho e converte outros em máquinas. Ele produz inteligência, porém também

estupidez e cretinice para os trabalhadores.

A relação direta do trabalho com seus produtos é a entre o trabalhador e os

objetos de sua produção. A relação dos possuidores de propriedade com os objetos

da produção e com a própria produção é meramente uma conseqüência da

primeira relação e a confirma. Apreciaremos adiante este segundo aspecto.

Portanto, quando perguntamos qual é a relação importante do trabalho, estamos

interessados na relação do trabalhador com a produção.

Até aqui consideramos a alienação do trabalhador somente sob um aspecto,

qual seja o de sua relação com os produtos de seu trabalho. Não obstante, a

alienação aparece não só como resultado, mas também como processo de

produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador ficar

numa relação alienada com o produto de sua atividade se não se alienasse a si

mesmo no próprio ato da produção? O produto é, de fato, apenas a síntese da

atividade, da produção. Conseqüentemente, se o produto do trabalho é alienação, a

própria produção deve ser alienação ativa - a alienação da atividade e a atividade

da alienação A alienação do objeto do trabalho simplesmente resume a alienação

da própria atividade do trabalho.

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Page 8: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo

ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e por conseguinte, ele não se

realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento

em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas

mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto,

só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente

contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele

não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras

necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato, de logo que

não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O

trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um

trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do

trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas

trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a

outra pessoa.

Tal como na religião, a atividade espontânea da fantasia, do cérebro e do

coração humanos, reage independentemente como uma atividade alheia de deuses

ou demônios sobre o indivíduo, assim também a atividade do trabalhador não é sua

própria atividade espontânea. É atividade de outrem e uma perda de sua própria

espontaneidade.

Chegamos a conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente

ativo em suas funções animais - comer, beber e procriar, ou no máximo também

em sua residência e no seu próprio embelezamento - enquanto que em suas

funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se

torna animal.

Comer, beber e procriar são, evidentemente, também funções genuinamente

humanas. Mas, consideradas abstratamente, à parte do ambiente de outras

atividades humanas, e convertidas em fins definitivos e exclusivos, são funções

animais.

Consideremos, agora, o ato de alienação da atividade humana prática, o

trabalho, sob dois aspectos: 1) a relação do trabalhador com o produto do trabalho

como um objeto estranho que o domina. Essa relação é, ao mesmo tempo, a

relação com o mundo exterior sensorial, com os objetos naturais, como um mundo

estranho e hostil; 2) a relação do trabalho como o ato de produção dentro do

trabalho. Essa é a relação do trabalhador com sua própria atividade humana como

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Page 9: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

algo estranho e não pertencente a ele mesmo, atividade como sofrimento

(passividade), vigor como impotência, criação como emasculação, a energia física e

mental pessoal do trabalhador, sua vida pessoal (pois o que é a vida senão

atividade?) como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele e

não pertencente a ele. Isso é auto-alienação, ao contrário da acima mencionada

alienação do objeto.

(XXIV) Temos, agora, de inferir uma terceira característica do trabalho

alienado, partindo das duas já vistas.

O homem é um ente-espécie não apenas no sentido de que ele faz da

comunidade (sua própria, assim como as de outras coisas) seu objeto, tanto prática

quanto teoricamente, mas também (e isto é simplesmente outra expressão da

mesma coisa) no sentido de tratar-se a si mesmo como a espécie vivente, atual,

como um ser universal e conseqüentemente livre.

A vida da espécie, para o homem assim como para os animais, encontra sua

base física no fato de o homem (como os animais) viver da natureza inorgânica, e

como o homem é mais universal que um animal, assim também o âmbito da

natureza inorgânica de que ele vive é mais universal. Vegetais, animais, minerais,

ar, luz, etc., constituem, sob o ponto de vista teórico, uma parte da consciência

humana como objetos da ciência natural e da arte; eles são a natureza inorgânica

espiritual do homem, se meio intelectual de vida, que ele deve primeiramente

preparar para seu prazer e perpetuação. Assim também, sob o ponto de vista

prático, eles formam parte da vida e atividade humanas. Na prática, o homem vive

apenas desses produtos naturais, sob a forma de alimento, aquecimento, roupa,

abrigo, etc. A universalidade do homem aparece, na prática, na universalidade que

faz da natureza inteira o seu corpo: 1) como meio direto de vida, e igualmente, 2)

como o objeto material e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo

inorgânico do homem; quer isso dizer a natureza excluindo o próprio corpo

humano. Dizer que o homem vive da natureza significa que a natureza é o corpo

dele, com o qual deve se manter em contínuo intercâmbio a fim de não morrer. A

afirmação de que a vida física e mental do homem e a natureza são

interdependentes, simplesmente significa ser a natureza interdependente consigo

mesma, pois o homem é parte dela.

Tal como o trabalho alienado:

1) aliena a natureza do homem e

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Page 10: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade

vital, assim também o aliena da espécie. Ele transforma a vida da espécie em uma

forma de vida individual. Em primeiro lugar, ele aliena a vida da espécie e a vida

individual, e posteriormente transforma a segunda, como uma abstração, em

finalidade da primeira, também em sua forma abstrata e alienada.

Pois, trabalho, atividade vital, vida produtiva, agora aparecem ao homem

apenas como meios para a satisfação de uma necessidade, a de manter sua

existência física. A vida produtiva, contudo, é vida da espécie. É vida criando vida.

No tipo de atividade vital, reside todo o caráter de uma espécie, seu caráter como

espécie; e a atividade livre, consciente, é o caráter como espécie dos seres

humanos. A própria vida assemelha-se somente a um meio de vida.

O animal identifica-se com sua atividade vital. Ele não distingue a atividade de

si mesmo. Ele é sua atividade.

O homem, porém, faz de sua atividade vital um objeto de sua vontade e

consciência. Ele tem uma atividade vital consciente. Ela não é uma prescrição com

a qual ele esteja plenamente identificado. A atividade vital consciente distingue o

homem da atividade vital dos animais: só por esta razão ele é um ente-espécie. Ou

antes, é apenas um ser auto-consciente, isto é, sua própria vida é um objeto para

ele, porque ele é um ente-espécie. Só por isso, a sua atividade é atividade livre. O

trabalho alienado inverte a relação, pois o homem, sendo um ser autoconsciente,

faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência.

A construção prática de um mundo objetivo, a manipulação da natureza

inorgânica, é a confirmação do homem como um ente-espécie, consciente, isto é,

um ser que trata a espécie como seu próprio ser ou a si mesmo como um ser-

espécie. Sem dúvida, os animais também produzem. Eles constróem ninhos e

habitações, como no caso das abelhas, castores, formigas, etc. Porém, só produzem

o estritamente indispensável a si mesmos ou aos filhotes. Só produzem em uma

única direção, enquanto o homem. produz universalmente. Só produzem sob a

compulsão de necessidade física direta, ao passo que o homem produz quando

livre de necessidade física e só produz, na verdade, quando livre dessa

necessidade. Os animais só produzem a si mesmos, enquanto o homem reproduz

toda a natureza. Os frutos da produção animal pertencem diretamente a seus

corpos físicos, ao passo que o homem é livre ante seu produto. Os animais só

constróem de acordo com os padrões e necessidades da espécie a que pertencem,

enquanto o homem sabe produzir de acordo com os padrões de todas as espécies e

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Page 11: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

como aplicar o padrão adequado ao objeto. Assim, o homem constrói também em

conformidade com as leis do belo.

É justamente em seu trabalho exercido no mundo objetivo que o homem

realmente se comprova como um ente-espécie. Essa produção é sua vida ativa

como espécie; graças a ela, a natureza aparece como trabalho e realidade dele. O

objetivo do trabalho, portanto, é a objetificação da vida como espécie do homem,

pois ele não mais se reproduz a si mesmo apenas intelectualmente, como na

consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um

mundo por ele construído. Por conseguinte, enquanto o trabalho alienado afasta o

objetivo da produção do homem, também afasta sua vida como espécie, sua

objetividade real como ente-espécie, e muda a superioridade sobre os animais em

uma inferioridade, na medida em que seu corpo inorgânico, a natureza, é afastado

dele.

Assim como o trabalho alienado transforma a atividade livre e dirigida pelo

próprio indivíduo em um meio, também transforma a vida do homem como

membro da espécie em um meio de existência física.

A consciência que o homem tem de sua espécie é transformada por meio da

alienação, de sorte que a vida como espécie torna-se apenas um meio para ele.

(3) Então, o trabalho alienado converte a vida do homem como membro da

espécie, e também como propriedade mental da espécie dele, em uma entidade

estranha e em um meio para sua existência individual. Ele aliena o homem de seu

próprio corpo, a natureza extrínseca, de sua vida mental e de sua vida humana.

(4) Uma conseqüência direta da alienação do homem com relação ao produto

de seu trabalho, à sua atividade vital e a sua vida como membro da espécie, é o

homem ficar alienado dos outros homens. Quando o homem se defronta consigo

mesmo, também está se defrontando com outros homens.

O que é verdadeiro quanto à relação do homem com seu trabalho, com o

produto desse trabalho e consigo mesmo, também o é quanto à sua relação com

outros homens, com o trabalho deles e com os objetos desse trabalho.

De maneira geral, a declaração de que o homem fica alienado da sua vida como

membro da espécie implica em cada homem ser alienado dos outros, e cada um

dos outros ser igualmente alienado da vida humana.

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Page 12: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

A alienação humana, e acima de tudo a relação do homem consigo próprio, é

pela primeira vez concretizada e manifestada na relação entre cada homem e os

demais homens. Assim, na relação do trabalho alienado cada homem encara os

demais de acordo com os padrões e relações em que ele se encontra situado como

trabalhador.

(XXV) Principiamos por uma fato econômico, a alienação do trabalhador e de

sua produção. Exprimimos esse fato em termos conceituais como trabalho alienado

e, ao analisar o conceito, limitamo-nos a analisar um fato econômico.

Examinemos, agora, mais além, como esse conceito de trabalho alienado deve

expressar-se e revelar-se na realidade. Se o produto do trabalho me é estranho e

enfrenta-me como uma força estranha, a quem pertence ele? Se minha própria

atividade não me pertence, mas é uma atividade alienada, forçada, a quem ela

pertence? A um ser, outro que não eu. E que é esse ser? Os deuses? É evidente,

nas mais primitivas etapas de produção adiantada, por exemplo, construção de

templos, etc., no Egito, Índia, México, é nos serviços prestados aos deuses, que o

produto pertencia a estes. Mas os deuses nunca eram por si sós os donos do

trabalho humano; tampouco o era a natureza. Que contradição haveria se quanto

mais o homem subjugasse a natureza com seu trabalho, e quanto mais as

maravilhas dos deuses fossem tornadas supérfluas pelas da industria, ele se

abstivesse da sua alegria em produzir e de sua fruição dos produtos por amor a

esses poderes!

O ser estranho a quem pertencem o trabalho e o produto deste, a quem o

trabalho é devotado, e para cuja fruição se destina o produto do trabalho, só pode

ser o próprio homem. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas o

enfrenta como uma força estranha, isso só pode acontecer porque pertence a um

outro homem que não o trabalhador. Se sua atividade é para ele um tormento, ela

deve ser uma fonte de satisfação e prazer para outro. Não os deuses nem a

natureza, mas só o próprio homem pode ser essa força estranha acima dos

homens.

Considere-se a afirmação anterior segundo a qual a relação do homem consigo

mesmo se concretiza e objetiva primariamente através de sua relação com outros

homens. Se, portanto, ele está relacionado com o produto de seu trabalho, seu

trabalho objetificado, como com um objeto estranho, hostil, poderoso e

independente, ele está relacionado de tal maneira que um outro homem, estranho,

hostil, poderoso e independente, é o dono de seu objeto. Se ele está relacionado

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Page 13: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

com sua atividade como com uma atividade não-livre, então está relacionado com

ela como uma atividade a serviço e sob jugo, coerção e domínio de outro homem.

Toda auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, aparece na relação

que ele postula entre os outros homens, ele próprio e a natureza. Assim a auto-

alienação religiosa é necessariamente exemplificada na relação entre leigos e

sacerdotes, ou, já que aqui se trata de uma questão do mundo espiritual, entre

leigos e um mediador. No mundo real da prática, essa auto-alienação só pode ser

expressa na relação real, prática, do homem com seus semelhantes.

O meio através do qual a alienação ocorre é, por si mesmo, um meio prático.

Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação

com o objeto e o processo da produção como com homens estranhos e hostis, mas

também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a

relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como ele cria sua própria

produção como uma perversão, uma punição, e seu próprio produto como uma

perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do

não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria

atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é deste.

Apreciamos até aqui essa relação somente do lado do trabalhador, e

posteriormente a apreciaremos também do lado do não-trabalhador.

Assim, graças ao trabalho alienado o trabalhador cria a relação de outro

homem que não trabalha e está de fora do processo do trabalho, com o seu próprio

trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho também provoca a relação do

capitalista (ou como quer que se denomine ao dono da mão-de-obra) com o

trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado inevitável, do

trabalho alienado, da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo

mesmo.

A propriedade privada, pois, deriva-se da análise do conceito de trabalho

alienado: isto é, homem alienado, trabalho alienado, vida alienada, e homem

afastado.

Está claro que extraímos o conceito de trabalho alienado (vida alienada) da

Economia Política, partindo de uma análise do movimento da propriedade privada.

A análise deste conceito, porém, mostra que embora a propriedade privada pareça

ser a base e causa do trabalho alienado, é antes uma conseqüência dele, tal e qual

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Page 14: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

os deuses não são fundamentalmente a causa, mas o produto de confusões da

razão humana. Numa etapa posterior, entretanto, há uma influência recíproca.

Só na etapa final da evolução da propriedade privada é revelado o seu segredo,

ou seja, que é, de um lado, o produto do trabalho alienado, e do outro, o meio pelo

qual o trabalho é alienado, a realização dessa alienação.

Esta elucidação lança luz sobre diversas controvérsias não solucionadas:

(1) A Economia Política inicia tomando o trabalho como a verdadeira alma da

produção e, a seguir, nada lhe atribui, concedendo tudo à propriedade privada.

Proudhon, defrontando-se com essa contradição, decidiu em favor do trabalho

contra a propriedade privada. Percebemos, contudo, que essa aparente

contradição é a contradição do trabalho alienado consigo mesmo e que a Economia

Política meramente formulou as leis do trabalho alienado.

Observamos, também, por conseguinte, que salários e propriedade privada são

idênticos, porquanto os salários como o produto ou objetivo do trabalho, o próprio

trabalho remunerado, são apenas conseqüência necessária da alienação do

trabalho. No sistema de salários, o trabalho aparece não como um fim por si mas

como o servo dos salários. Mais tarde nos entenderemos sobre isto, limitando-nos,

aqui, a desvendar algumas das conseqüências (XXVI).

Um aumento de salários imposto (desprezando outras dificuldades, e

especialmente a de que uma anomalia dessas só poderia ser mantida pela força)

não passaria de uma remuneração melhor de escravos, e não restauraria, seja para

o trabalhador seja para o trabalho, seu significado e valor humanos.

Mesmo a igualdade das rendas que Proudhon exige só modificaria a relação do

trabalhador de hoje em dia com seu trabalho em uma relação de todos os homens

com o trabalho. A sociedade seria concebida, então, como um capitalista abstrato.

(2) Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada também

decorre que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão,

assume a forma política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só

estar em jogo a emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de

toda a humanidade. Pois toda servidão humana está enredada na relação do

trabalhador com a produção, e todos os tipos de servidão são somente

modificações ou corolários desta relação.

14

Page 15: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Como descobrimos o conceito de propriedade privada por uma análise do

conceito de trabalho alienado, com o auxílio desses dois fatores também podemos

deduzir todas as categorias da Economia Política, e em cada uma, isto é, comércio,

competição, capital, dinheiro, descobriremos só uma expressão particular e

ampliada desses elementos fundamentais.

Sem embargo, antes de considerar essa estrutura, tentemos solucionar dois

problemas.

(1) Determinar a natureza geral da propriedade privada como resultou do

trabalho alienado, em sua relação com a propriedade humana e social genuína.

(2) Tomamos como fato e analisamos a alienação do trabalho. Como sucede,

podemos indagar, que o homem aliene seu trabalho? Como essa alienação se

alicerça na natureza da evolução humana? Já fizemos muito para resolver o

problema, visto termos transformado a questão referente ã origem da propriedade

privada em uma questão acerca da relação entre trabalho alienado e o processo de

evolução da humanidade. Pois, ao falar de propriedade privada, acredita-se estar

lidando com algo extrínseco à espécie humana. Mas, ao falar de trabalho, lida-se

diretamente com a própria espécie humana. Esta nova formulação do problema já

encerra sua solução.

ad (1) A natureza geral da propriedade privada e sua relação com a

propriedade genuína.

Decompusemos o trabalho alienado em duas partes, que se determinam

mutuamente, ou melhor, constituem duas expressões distintas de uma única

relação. A apropriação aparece como alienação e alienação como apropriação;

alienação como aceitação genuína na comunidade.

Consideramos um aspecto, o trabalho alienado, em seus reflexos no próprio

trabalhador, isto é, a relação alienada do trabalho humano consigo mesmo. E

constatamos ser corolário obrigatório dessa relação, a relação de propriedade do

não-trabalhador com o trabalhador e com o trabalho. A propriedade privada, como

expressão material sinóptica do trabalho alienado, inclui ambas as relações: a

relação do trabalhador com o trabalho, com o produto de seu trabalho e com o

não-trabalhador, e a relação do não-trabalhador com o trabalhador e com o

produto do trabalho deste.

15

Page 16: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Já vimos que em relação ao trabalhador, que apropria a natureza por

intermédio de seu trabalho, a apropriação se afigura uma alienação, a atividade

própria como atividade para outrem e de outrem, a vida como sacrifício da vida, e

a produção do objeto como perda deste para uma força estranha, um homem

estranho. Consideremos, agora, a relação deste homem estranho com o

trabalhador, com o trabalho e com o objeto do trabalho.

Deve ser observado, de início, que tudo que aparece ao trabalhador como uma

atividade de alienação, aparece ao não-trabalhador como uma condição de

alienação. Em segundo lugar, a atitude prática real do trabalhador na produção e

face ao produto (como estado de espírito) afigura-se ao não-trabalhador, que com

ele se defronta, como uma atitude teórica.

(XXVII) Em terceiro lugar, o não-trabalhador faz contra o trabalhador tudo que

este faz contra si mesmo, mas não faz contra si próprio o que faz contra o

trabalhador.

Examinemos mais de perto essas três relações.

[o manuscrito interrompe-se aqui]

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Segundo Manuscrito

A Relação da Propriedade Privada

(XL) . . . forma os juros de seu capital. O trabalhador é a manifestação

subjetiva do fato de o capital ser o homem inteiramente perdido para si mesmo,

assim como o capital é a manifestação objetiva do fato de o trabalho ser o homem

perdido para si mesmo. Contudo, o trabalhador tem o infortúnio de ser um capital

vivo, um capital com necessidades, que se deixa privar de seus interesses e, 16

Page 17: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

conseqüentemente, seu ganha-pão, todo momento em que não se acha

trabalhando. Como capital, o valor do trabalhador varia conforme a oferta e a

procura, e sua existência física, sua vida, foi e é considerada um estoque de

mercadoria, similar a qualquer outra. O trabalhador produz capital e o capital

produz o trabalhador. Assim, ele se produz a si mesmo, e o homem como

trabalhador, como utilidade, é o produto de todo esse processo. O homem é

simplesmente um trabalhador, e como tal suas qualidades humanas só existem em

proveito do capital que lhe é estranho. Como trabalho e capital são estranhos um

ao Outro, e por isso relacionados unicamente de maneira acidental e exterior, esse

caráter de alienação tem de aparecer na realidade. Logo que ocorre ao capital —

seja forçada seja voluntariamente — não existir mais para o trabalhador, ele não

mais existe para si mesmo: ele não tem trabalho, nem salários, e como existe

exclusivamente como trabalhador e não como ser humano, pode perfeitamente

deixar-se enterrar, morrer a míngua, etc, O trabalhador só é trabalhador quando

existe como capital para si próprio, e só existe como capital quando há capital para

ele. A existência do capital é a existência dele, sua vida, visto determinar o

conteúdo de sua vida independentemente dele. A Economia Política, pois, não

reconhece o trabalhador desocupado, o homem capaz de trabalhar, uma vez

colocado fora dessa relação de trabalho. Vigaristas, ladrões, mendigos, os

desempregados, o trabalhador faminto, indigente e criminoso, são figuras não

existentes para a Economia Política, mas apenas para os olhos de outros: médicos,

juízes, coveiros, burocratas, etc. Eles são figuras fantasmagóricas fora do domínio

da Economia. As necessidades do trabalhador, portanto, reduzem-se à necessidade

de mantê-lo durante o trabalho, de molde a não se extinguir a raça de

trabalhadores. Conseqüentemente, os salários têm exatamente o mesmo

significado da manutenção de qualquer outro instrumento de produção e do

consumo de capital em geral, de modo a que este possa reproduzir-se a si mesmo

com juros. Ë como o óleo aplicado a uma roda para conservá-la rodando. Os

salários, portanto, formam parte dos custos necessários do capital e do capitalista,

e não devem exceder ao montante assim necessário. Por isso, era assaz lógico para

os donos de fábricas ingleses, antes da Emenda de 1834, deduzir dos salários as

esmolas públicas recebidas pelos trabalhadores através das taxas estabelecidas

pela lei de assistência aos pobres, tratando-as como parte integrante dos

respectivos salários.

A produção não apenas produz o homem como uma utilidade, a utilidade

humana, o homem sob a forma de mercadoria; de acordo com essa situação,

produz o homem como um ser mental e fisicamente desumanizado. — Imoralidade,

17

Page 18: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

aborto, escravidão de trabalhadores e capitalistas. — Seu produto é a mercadoria

com consciência própria e capacidade grande passo dado à frente por Ricardo,

Mill, etc., em contraposição a Smith e Say, declarar a existência de seres humanos

— a maior ou menor produtividade humana da mercadoria —como indiferente, ou

deveras nociva. O verdadeiro objetivo da produção não é o número de

trabalhadores sustentados por determinado capital, porém o volume de juros que

ele adquire, a poupança total anual. Foi, analogamente, um grande avanço lógico

da recente economia política inglesa (XLI) que, embora estabelecendo o trabalho

como seu princípio exclusivo, distinguisse claramente a relação inversa entre

salários e juros do capital e observasse que, via de regra, o capitalista só poderia

aumentar os ganhos pelo rebaixamento dos salários e vice-versa. A relação normal

é considerada como sendo não a burla do consumidor, mas a trapaça mútua de

capitalista e trabalhador. A relação da propriedade privada inclui em seu íntimo,

em estado latente, a relação da propriedade privada como trabalho, a relação da

propriedade privada como capital, e a influência recíproca de ambos. Por um lado,

é a produção da atividade humana como trabalho, isto é, uma atividade alheia a si

mesma, ao homem e à natureza, e portanto alheia à consciência e à realização da

vida humana; a existência abstrata do homem como um mero trabalhador que, por

conseguinte, diariamente salta de sua nulidade realizada para a nulidade absoluta,

para a não-existência social, e por isso real. Por outro lado, há a produção de

objetos do trabalho humano sob a forma de capital, onde toda característica

natural e social do objeto é dissolvida, onde a propriedade privada perdeu sua

qualidade natural e social (e, portanto, perdeu totalmente seu disfarce político e

social e não mais se afigura vinculada às relações humanas), e onde o mesmo

capital permanece o mesmo nas mais diversas circunstâncias naturais e sociais,

sem relevância para o conteúdo real dele. Esta contradição, em seu auge, é

forçosamente o apogeu e o declínio da relação inteira.

É, por conseguinte, outra grande conquista da recente Economia Política

inglesa ter definido o arrendamento da terra como a diferença entre os

rendimentos da terra pior cultivada e da melhor, ter posto abaixo as ilusões

românticas do proprietário de terras — sua suposta importância social e a

identidade de seus interesses com os do conjunto da sociedade (uma opinião

sustentada por Adam Smith ainda após os Fisiocratas) — e ter antecipado e

preparado a evolução da realidade que transformará o proprietário de terras em

um capitalista comum e prosaico e, portanto, simplificará a contradição,

superando-a e preparando sua solução. A terra como terra, o arrendamento de

terra como arrendamento de terra, perderam sua diferenciação de status,

18

Page 19: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

convertendo-se em meros capital e juros, ou, melhor, capital e juros que só

entendem a linguagem do dinheiro.

A distinção entre capital e terra, lucro e arrendamento de terra, e a distinção

entre salários, indústria, agricultura, propriedade privada imóvel e móvel, é uma

distinção histórica, nunca uma distinção inscrita na natureza das coisas. Ë uma

etapa fixa na formação e desenvolvimento da antítese entre capital e trabalho. Na

indústria, etc., ao contrário da propriedade agrária imóvel, só o modo de origem e

a antítese face à agricultura graças à qual a indústria se desenvolveu, é

manifestada. Como um género particular de trabalho, como uma distinção mais

significativa, importante e global, ela existe apenas na medida em que a indústria

(vida urbana) se estabelece em oposição à propriedade agrária (vida feudal

aristocrática). Em uma situação assim, o trabalho ainda parece ter um significado

social, ainda tem o significado de genuína vida comunal, e ainda não progrediu

para a neutralidade face a seu conteúdo, para uma auto-suficiência completa, isto

é, para um estado de abstração de todas as outras existências e, pois, para o

capital liberado.

(XLII) Mas, o desenvolvimento forçoso do trabalho é a indústria liberta,

constituída somente para si mesma, e o capital liberado. O poder da indústria

sobre seu opositor é atestado pelo surto da agricultora como uma indústria

verdadeira, enquanto outrora a maior parte do trabalho era deixada ao próprio

solo e ao escravo do solo, graças ao qual a terra se cultivava a si mesma. Com a

transformação do escravo em trabalhador livre, isto é, em assalariado, o próprio

dono da terra é transformado em um senhor da indústria, em um capitalista.

Esta transformação tem lugar a princípio por intermédio do lavrador rendeiro.

Este, porém, é o representante, o segredo revelado, do dono da terra. Só por meio

dele o dono da terra tem existência econômica, como possuidor de propriedades;

pois o arrendamento da terra só existe como resultado da competição entre

rendeiros. Assim, o dono da terra já se converteu, na pessoa do rendeiro, em um

capitalista comum. E isso tem de Ser realizado na realidade; o capitalista que

dirige a agricultura (o rendeiro) tem de transformar-se em dono da terra, ou vice-

versa. O negócio industrial do rendeiro é o do proprietário, pois a existência

daquele estabelece a deste.

Recordando suas origens e ascendência contrastantes, o proprietário de terras

identifica no capitalista seu sublevado, liberado e enriquecido escravo de ontem, e

vê-se como uni capitalista ameaçado por ele. O capitalista vê o proprietário de

19

Page 20: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

terras como o ocioso, crue1 e egoísta senhor de ontem; ele sabe que o prejudica

como capitalista, e, sem embargo, que a indústria é responsável por sua presente

importância social, por suas posses e prazer. Ele encara o proprietário de terras

como a antítese da livre iniciativa e do capital livre, que independe de toda

limitação natural. Esta oposição é extremamente acerba de ambos os lados e cada

um exprime a verdade acerca do outro. Basta ler os ataques contra a propriedade

imobiliária feitos pelos representantes da propriedade móvel, e vice-versa, a fim de

se obter um quadro nítido de sua respectiva indignidade. O proprietário de terras

ressalta a nobre linhagem de sua propriedade, reminiscências feudais, a poesia das

recordações, seu caráter generoso, sua importância política, etc., e quando fala em

termos econômicos afirma que somente a agricultura é produtiva. Ao mesmo

tempo, descreve seu oponente como um indivíduo sonso, regateador, impostor,

mercenário, rebelde, impiedoso e desalmado, um bandido extorsionista,

mesquinho, servil, adulador, lisonjeiro e ressequido, sem honra, princípios, poesia

ou qualquer outra coisa, alienado da comunidade que ele vende livremente, e que

alimenta, nutre e acalenta a competição e, com esta, a pobreza, o crime e a

dissolução de todos os laços sociais. (Ver, entre outros, o fisiocrata Bergasse, que

Camille Desmoulins fustiga em seu diário Révolutions de France et de Brabant;

ver, também, von Vincke, Lancizolle, Halle, Leo, Kosegarteu (1) e Sismondi.)

A propriedade móvel, por sua parte, indica o milagre da indústria moderna e

de sua expansão. E o filho, o filho nativo e legítimo da era moderna. Apiada-se de

seu oponente como um simplório, ignorante de sua própria natureza (e isso é

inteiramente verdade) que quer substituir o capital moralizado e o trabalho livre

pela coação brutal e imoral e pela servidão. Representa-o como um Don Quixote

que, sob a aparência de franqueza, decência, o interesse geral e estabilidade,

oculta sua incapacidade para expandir-se, cobiça, egoísmo, interesse parcial e má

intenção. Expõe-no como monopolista; despeja água fria sobre suas

reminiscências, poesia e romantismo, por uma récita histérico-satírica da baixeza,

crueldade, degradação, prostituição, infâmia, anarquia e revolta que pululavam

nos românticos castelos.

Ela (a propriedade móvel) alega ter conquistado a liberdade política para o

povo, retirado os grilhões que tolhiam a sociedade civil, unido entre si mundos

diferentes, estabelecido o comércio que promove a amizade entre os povos, criado

uma moral pura e cultura agradável. Deu ao povo, em lugar de suas necessidades

cruéis, outras mais civilizadas, assim como os modos de satisfazê-las. Mas, o

proprietário de terras — esse ocioso especulador de cereais — aumenta o preço

das necessidades básicas da vida do povo e, por isso, obriga o capitalista a elevar 20

Page 21: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

os salários sem ser capaz de aumentar a produtividade, tolhendo assim e

finalmente impedindo o crescimento da renda nacional e a acumulação de capital

da qual depende a criação de trabalho para o povo e de riquezas para o país. Ele

dá lugar a um declínio generalizado, e parasitariamente explora todas as

vantagens da civilização moderna sem fazer a mínima contribuição para esta, e

sem abandonar qualquer de seus preconceitos feudais. Finalmente, faz com que

ele — para quem o amanho do solo e a própria terra só existem como uma fonte de

dinheiro mandada pelo céu —encare o rendeiro e diga se ele próprio não é um

canalha íntegro, fantástico e ladino que, no fundo do coração e realmente, de há

muito foi conquistado pela livre indústria e pelas delíciais do comércio, por mais

que possa resistir-lhes e murmurar acerca de recordações históricas ou de

objetivos morais e políticos. Tudo que ele de fato pode apresentar em justificativa

sé é verdade no tocante ao cultivador da terra (o capitalista e seus empregados) de

quem o dono da terra é antes o inimigo; assim, ele depõe contra si mesmo. Sem

capital, a propriedade imobiliária é coisa sem vida e sem valor. E, com efeito, a

vitória civilizada da propriedade móvel ter descoberto e criado o trabalho humano

como fonte da riqueza, em vez de coisas sem vida. (Ver Paul Louis, Courier, Saint-

Simon, Ganilh, Ricardo, Mill, MacCulloch, Destutt de Tracy e Michel Chevalier.)

Da verdadeira marcha da evolução (a ser inserida aqui), decorre a vitória fatal

do capitalista, isto é, da propriedade privada adiantada sobre a propriedade

privada subdesenvolvida e imatura representada pelo proprietário imobiliário. Em

geral, o movimento tem de triunfar da imobilidade, a baixeza franca e

autoconsciente da baixeza disfarçada e inconsciente, avareza do esbanjamento, o

interesse próprio e capaz e confessadamente irrequieto do esclarecimento do

interesse próprio da superstição local, prudente, simples, inativo e fantástico, e o

dinheiro das outras formas de propriedade privada.

Os Estados que pressentem o perigo representado pela livre indústria

plenamente desenvolvida, pela moralidade pura e pelo comércio fomentador da

amizade entre os povos, tentam, mas assaz em vão, obstar a capitalização da

propriedade agrária.

A propriedade agrária, ao contrário do capital, é propriedade privada, capital,

ainda afligido por preconceitos locais e políticos; é capital que ainda não emergiu

de seu envolvimento com o capital mundial não-desenvolvido. No decurso de sua

formação numa escala mundial ela tem do alcançar sua expressão abstrata, isto é,

pura.

21

Page 22: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

As relações da propriedade privada são capital, trabalho, e suas interconexões.

Os estágios por que esses elementos têm de passar são:

Primeiramente, união mediata e não-mediata dos dois – O capital e o trabalho a

princípio ainda estão unidos; depois, com efeito, separam-se e alienam-se um do

outro, mas desenvolvendo-se e fomentando-se reciprocamente como condições

positivas.

Oposição entre os dais — eles excluem-se mutuamente; o trabalhador identifica

o capitalista como sua própria não-existência e vice-versa; cada um procura privar

o outro de sua existência.

Oposição de cada um a si mesmo – Capital trabalho acumulado = trabalho.

Como tal, divide-se em capital propriamente dito e juros; estes se dividem em juros

e lucro. Sacrifício completo d0 capitalista. Pie afunda na classe trabalhadora, tal

como o trabalhador — mas só excepcionalmente — torna-se um capitalista.

Trabalho como um momento do capital, seu custo. Por isso, os salários são um

sacrifício de capital.

O trabalho divide-se em trabalho propriamente dito e salários do trabalho. O

próprio trabalhador como um capital, uma mercadoria.

Choque das contradições recíprocas

[O segundo manuscrito termina aqui]

(1) Ver o palavroso teólogo hegeliano à moda antiga, Funke, que, segundo

Herr Leo, contou com lágrimas nos olhos como um escravo recusara, quando foi

abolida a servidão, cessar de ser uma propriedade nobre. Ver, também, o livro

Patriotische Phantasien, de Justus Moser, que se destaca pelo fato de nunca

abandonar, por nenhum momento, o horizonte ingênuo, pequeno-burguês, "feito

em casa", comum e limitado do filisteu, e no entanto permanece sendo pura

fantasia. Essa contradição tornou essas fantasias tão aceitáveis ao espírito alemão.

Notas:

22

Page 23: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

(1) Ver o palavroso teólogo hegeliano à moda antiga, Funke, que, segundo

Herr Leo, contou com lágrimas nos olhos como um escravo recusara, quando foi

abolida a servidão, cessar de ser uma propriedade nobre. Ver, também, o livro

Patriotische Phantasien, de Justus Moser, que se destaca pelo fato de nunca

abandonar, por nenhum momento, o horizonte ingênuo, pequeno-burguês, "feito

em casa", comum e limitado do filisteu, e no entanto permanece sendo pura

fantasia. Essa contradição tornou essas fantasias tão aceitáveis ao espírito alemão.

(retornar ao texto)

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Terceiro Manuscrito

Propriedade Privada e Trabalho

(1) ad página XXXVI. A essência subjetiva da propriedade privada, a

propriedade privada como atividade em si mesma, como sujeito, como pessoa, é

trabalho. É evidente, portanto, que só a Economia Política que reconheceu o

trabalho por princípio (Adam Smith) e que não mais viu na propriedade privada

unicamente uma condição extrínseca ao homem, pode ser considerada tanto um

produto do dinamismo real e expansão da propriedade privada[N1], um produto da

indústria moderna, quanto uma força que acelerou e exaltou o dinamismo e o

desenvolvimento da industria e tornou-a uma potência no plano da consciência.

Assim, em vista dessa economia política esclarecida que descobriu a essência

subjetiva da riqueza dentro da estrutura da propriedade privada, os partidários do

sistema monetário e do mercantilismo, para quem a propriedade privada é uma

entidade puramente objetiva para o homem, não fetichistas e católicos. Engels está

certo, por isso, de chamar Adam Smith o Lutero da Economia Política. Assim como

Lutero reconheceu a religião e a fé como a essência do mundo real, e por essa

razão assumiu uma posição adversa ao paganismo cristão; assim como ele anulou a

religiosidade externa ao mesmo passo que fazia da religiosidade a essência interior

do homem; assim como ele negou a distinção entre sacerdote e leigo porque

23

Page 24: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

transferiu o sacerdócio para o coração do leigo; também a riqueza extrínseca ao

homem e dele independente (só podendo, pois, ser adquirida e conservada de fora)

é anulada. Isso quer dizer, sua objetividade externa e indiferente é anulada pelo

fato de a propriedade privada ser incorporada ao próprio homem, e de ser o

próprio homem reconhecido como sua essência. Mas, como resultado, o próprio

homem é levado para a esfera da propriedade privada, exatamente como, com

Lutero, é levado para a da religião. Sob o disfarce de reconhecer o homem, a

economia política, cujo princípio é o trabalho, leva à sua lógica conclusão a

negação do homem. O próprio homem não mais é uma condição da tensão externa

com a substância externa da propriedade privada; ele próprio se converteu na

entidade oprimida por tensões, que é a da propriedade privada. O que era

anteriormente um fenômeno de ser extrínseco a si mesmo, uma manifestação

extrínseca real do homem, transformou-se, agora no ato de objetivação, de

alienação. Esta economia política parece, por conseguinte, a princípio, reconhecer

o homem com sua independência, sua atividade pessoal, etc. Ela incorpora a

propriedade privada à essência mesma do homem, e não é mais, portanto,

condicionada pelas características locais ou nacionais da propriedade privada

considerada como existente fora dela mesma. Ela manifesta uma atividade

cosmopolita, universal, que destrói todos os limites e todos os vínculos, reputando-

se a si mesma como a única orientação, a única universalidade, o único limite e o

único vínculo. Em seu desenvolvimento ulterior, contudo, vê-se obrigada a rejeitar

essa hipocrisia e a mostrar-se em todo o seu cinismo. Faz isso, sem qualquer

consideração pelas contradições aparentes a que sua doutrina conduz, revelando

por uma outra maneira unilateral, e por isso com maior lógica e clareza, que o

trabalho é a única essência da riqueza, e demonstrando que essa doutrina, ao

contrário da concepção original, tem conseqüências daninhas ao homem.

Finalmente, ela aplica o golpe de morte à renda da terra, aquela última forma

individual e natural da propriedade privada e fonte de riqueza existente

independentemente do movimento do trabalho que foi a expressão da propriedade

feudal, mas tornou-se inteiramente sua expressão econômica e não mais consegue

oferecer qualquer resistência à economia política. (A Escola de Ricardo.)

Não só o cinismo da Economia Política aumenta a partir de Smith, passando

por Say, Ricardo, Mill, etc., uma vez que para este último as conseqüências da

industria se afiguraram cada vez mais ampliadas e contraditórias; sob um ponto de

vista positivo elas tornaram-se mais alienadas, e mais conscientemente alienadas,

do homem, em comparação com suas predecessoras. Isso é somente porque sua

ciência se expande com maior lógica e verdade. Posto que eles fazem a

24

Page 25: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

propriedade privada em sua forma ativa formar o tema, e posto que ao mesmo

tempo fazem o homem como não-entidade tornar-se uma entidade, a contradição

na realidade corresponde inteiramente à essência contraditória por eles aceita

como princípio. A realidade dividida (II) da indústria está longe de refutar, antes

confirma, seu princípio de autodivisão. Seu princípio, com efeito, é o princípio

dessa divisão.

A doutrina fisiocrática de Quesnay constitui a transição do sistema

mercantilista para Adam Smith. A Fisiocracia é, em seu sentido direto, a

decomposição econômica da propriedade feudal, mas, por essa razão, é da mesma

forma direta a transformação econômica, o restabelecimento, desta mesma

propriedade feudal, com a diferença de sua linguagem não ser mais feudal porém

econômica. Toda a riqueza se reduz a terra e cultivo (agricultura). A terra ainda

não e capital, mas sim um modo particular de existência de capital, cujo valor se

diz residir em sua particularidade natural, da qual provém; a terra, não obstante, é

um elemento natural e universal, ao passo que o sistema mercantilista só encarava

os metais preciosos como riquezas. O objeto da riqueza, sua matéria, por esse

motivo recebeu sua máxima universalidade dentro dos limites naturais - uma vez

que é também, como natureza, riqueza diretamente objetiva. E é só pelo trabalho,

pela agricultura, que a terra existe para o homem. Conseqüentemente, a essência

subjetiva da riqueza já está transferida para o trabalho. Mas, simultaneamente, a

agricultura e o único trabalho produtivo. O trabalho, pois, ainda não assumiu sua

universalidade e sua forma abstrata; ele ainda se acha unido a um elemento

particular da natureza como sendo a sua matéria, e só é reconhecido em um modo

especial de existência determinado pela natureza. O trabalho é ainda, apenas, uma

alienação determinada e específica do homem, e seu produto também é concebido

como parte determinada da riqueza devida mais à natureza do que ao trabalho

propriamente dito. A terra ainda é vista como algo existente naturalmente e sem

levar em conta o homem, e não ainda como capital, isto é, como fator do trabalho.

Pelo contrario, a terra parece ser um fator da natureza. Porém, desde que o

fetichismo da antiga riqueza externa, existente somente como objeto, foi reduzido

a um elemento natural bastante simples, e desde que sua essência foi em parte, e

de certa maneira, reconhecida em sua existência, subjetiva, realizou-se o

necessário progresso ao identificar-se a natureza universal da riqueza e ao elevar o

trabalho à sua forma absoluta, ou seja, em abstrato, ao princípio. Demonstra-se,

contra os fisiocratas, que, sob o ponto de vista econômico (i. é, sob o único ponto

de vista válido), a agricultura não difere de qualquer outra indústria, não sendo,

por conseguinte, um gênero específico de trabalho, ligado a um elemento

25

Page 26: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

particular, ou a uma manifestação particular do trabalho, mas o trabalho em geral

que e a essência da riqueza.

A aristocracia nega a riqueza específica, externa, puramente objetiva, ao

declarar que o trabalho é essência dela. Para os fisiocratas, entretanto, o trabalho

é, antes de mais nada, apenas a essência subjetiva da propriedade imobiliária.

(eles partem daquele tipo de propriedade que aparece historicamente como o

predominantemente reconhecido.) Simplesmente convertem a propriedade

imobiliária em homem alienado. Anulam seu caráter feudal ao declarar ser a

indústria (agricultura) a essência, mas rejeitam o mundo industrial e aceitam o

sistema feudal ao declarar que a agricultura e a única indústria.

É evidente que quando a essência subjetiva - indústria em oposição a

propriedade agrária, indústria formando-se a si mesma como tal - é percebida, ela

inclui a oposição dentro de si mesma. Pois, assim como a indústria incorpora a

propriedade agrária por ela desbancada, sua essência subjetiva abarca a desta.

A propriedade agrária (ou imobiliária) é a primeira forma de propriedade

privada, e a indústria aparece pela primeira vez na história simplesmente em

oposição a ela, como uma forma particular de propriedade privada (ou melhor,

como o escravo libertado da propriedade agrária); essa seqüência se repete no

estudo científico da essência subjetiva da propriedade privada, e o trabalho

aparece, a princípio, apenas como trabalho agrícola, mas depois estabelece-se

como trabalho em geral.

(III) Toda riqueza transformou-se em riqueza industrial, a riqueza do trabalho

e a indústria é trabalho concretizado; exatamente como o sistema fabril é a

essência concretizada da indústria (i. é, do trabalho) e o capital industrial é a

forma objetiva concretizada da propriedade privada. Assim, vemos que é só nesta

etapa que a propriedade privada pode consolidar seu domínio sobre o homem e

tornar-se, em sua forma mais genérica, uma potência na história mundial.

Notas:

[1] É o movimento Independente da propriedade privada tornando-se consciente de si

mesma; é a industria moderna como Pessoa. (retornar ao texto)

26

Page 27: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Terceiro Manuscrito

Propriedade Privada e Comunismo

ad página XXXIX. Todavia, a antítese entre a não-posse de propriedade (*) e

propriedade ainda é uma antítese indeterminada, não concebida em sua referência

ativa às relações intrínsecas, não concebidas ainda como uma contra dição, desde

que não é compreendida como uma antítese entre trabalho e capital. Mesmo sem a

expansão evoluída da propriedade privada, p. ex., na Roma antiga, na Turquia,

etc., esta antítese pode ser expressa em uma forma primitiva. Nesta forma, ela não

aparece ainda como estabelecida pela própria propriedade privada. O trabalho,

porém, a essência subjetiva da propriedade privada como exclusão de propriedade,

e o capital, trabalho objetivo como exclusão de trabalho, constituem propriedade

privada como a relação ampliada da contradição e, pois, uma relação dinâmica que

tende a resolver-se.

ad ibidem. A substituição do auto-alheamento segue a mesma marcha do auto-

alheamento. A propriedade privada é primeiro considerada somente em seu

aspecto objetivo, mas considerado o trabalho como sua essência. Sua maneira de

existir, portanto, é o capital, que é necessário abolir, "como tal". (Proudhon.) Ou,

então, a forma específica de trabalho (trabalho que é levado a um nível comum,

subdividido e, por isso, não-livre) é visto como a fonte da nocividade da

propriedade privada e de sua alienação em relação ao homem. Fourier, de acordo

com os Fisiocratas, encara o trabalho agrícola como sendo, no mínimo, o tipo

exemplar de trabalho. Saint-Simon assevera, pelo contrário, ser o trabalho

industrial, como tal, a essência do trabalho, e em conseqüência pleiteia o papel

exclusivo dos industriais e um melhoramento da situação dos operários.

Finalmente, o comunismo e a expressão positiva da abolição da propriedade

privada e, em primeiro lugar, da propriedade privada universal. Entendendo essa

relação em seu aspecto universal, o comunismo é (1) em sua primeira forma,

apenas a generalização e concretização dessa relação. Como tal, ele aparece numa

27

Page 28: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

forma dupla; a ascendência da propriedade material avulta de tal maneira que visa

a destruir tudo que for incapaz de ser possuído por todos como propriedade

privada. Ele quer abolir o talento, etc., pela força. A posse física imediata parece-

lhe a única meta da vida e da existência. O papel do trabalhador não é abolido,

mas ampliado a todos os homens. A relação da propriedade privada continua a ser

a da comunidade com o mundo das coisas. Por fim, essa tendência a opor a

propriedade privada em geral à propriedade privada é expressa de maneira

animal; o casamento (que é incontestavelmente a forma de propriedade privada

exclusiva) é posto em contraste com a comunidade das mulheres, em que estas se

tornam comunais e propriedade comum. Pode-se dizer que essa idéia de

comunidade das mulheres é o segredo de Polichinelo desse comunismo

inteiramente vulgar e irrefletido. Assim como as mulheres terão de passar do

matrimônio para a prostituição universal, igualmente todo o mundo das riquezas (i.

é, o mundo objetivo do homem) terá de passar da relação de casamento exclusivo

com o proprietário particular para a de prostituição universal com a comunidade.

Esse comunismo, que nega a personalidade do homem em todos os setores, é

somente a expressão lógica da propriedade privada, que é essa negação. A inveja

universal estabelecendo-se como uma potência é apenas uma forma camuflada de

cupidez que se reinstaura e satisfaz de maneira diferente. Os pensamentos de toda

propriedade privada individual são, pelo menos, dirigidos contra qualquer

propriedade privada mais abastada, sob a forma de inveja e do desejo de reduzir

tudo a um nível comum; destarte, essa inveja e nivelamento por baixo constituem,

de fato, a essência da competição. O comunismo vulgar é apenas o paroxismo de

tal inveja e nivelamento por baixo, baseado em um mínimo preconcebido. Quão

pouco essa eliminação da propriedade privada representa uma apropriação

genuína é demonstrado pela negação abstrata de todo o mundo da cultura e da

civilização, e pelo retorno â simplicidade inatural (IV) do pobre e indigente que não

só ainda não ultrapassou a propriedade privada, mas nem ainda a atingiu.

A comunidade é só uma comunidade de trabalho e de igualdade de salários

pagos pelo capital comunal, pela comunidade como capitalista universal. Os dois

aspectos da relação são elevados a uma suposta universalidade; o trabalho como

uma situação em que todos são colocados, e o capital como a universalidade e

poder admitidos na comunidade.

Na relação com a mulher, como presa e serva da luxúria comunal, manifesta-se

a infinita degradação em que o homem existe para si mesmo; pois o segredo dessa

relação encontra sua expressão inequívoca, inconteste, franca e patente na relação

do homem com a mulher e na maneira pela qual se concebe a relação direta e 28

Page 29: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

natural da espécie. A relação imediata, natural e necessária de ser humano como

ser humano é também a relação do homem com a mulher. Nesta relação natural da

espécie, a relação do homem com a natureza é diretamente sua relação com o

homem, e sua relação com o homem é diretamente sua relação com a natureza,

com sua própria função natural. Portanto, nessa relação se revela sensorialmente,

reduzida a um fato observável, até que ponto a natureza humana se tornou

natureza para o homem e a natureza se tornou natureza humana para ele. Dessa

relação, pode-se estimar todo o nível de evolução do homem. Conclui-se, do caráter

dessa relação, até que ponto o homem se tornou, e se entende assim, um ser-

espécie, um ser humano. A relação do homem com a mulher é a mais natural de

ser humano com ser humano. Ela indica, por conseguinte, até que ponto o

comportamento natural do homem se tornou humano, e até que ponto sua essência

humana se tornou uma essência natural para ele, até que ponto sua natureza

humana se tornou natureza para ele. Também mostra até que ponto as

necessidades do homem se tornaram necessidades humanas e, conseqüentemente,

até que ponto a outra pessoa, como pessoa, se tornou uma de suas necessidades, e

até que ponto ele é, em sua existência individual, ao mesmo tempo um ser social. A

primeira anulação positiva da propriedade privada, o comunismo vulgar, é,

portanto, apenas uma forma fenomenal da infâmia da propriedade privada

representando-se como comunidade positiva.

(2) O comunismo (a) ainda político em sua natureza, democrático ou despótico;

(b) com a abolição do Estado, mas ainda incompleto e influenciado pela

propriedade privada, isto é, pela alienação do homem. Em ambas as formas, o

comunismo já se dá conta de ser a reintegração do homem, seu retorno a si

mesmo, o repúdio da auto-alienação do homem. Porém, como ainda não aprendeu

a natureza positiva da propriedade privada, ou a natureza humana das

necessidades, ainda se acha cativo e contaminado pela propriedade privada.

Compreendeu bem o conceito, mas não a essência.

(3) O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada, da auto-

alienação humana e, pois, a verdadeira apropriação da natureza humana através

do e para o homem. ele é, portanto, o retorno do homem a si mesmo como um ser

social, isto é, realmente humano, um regresso completo e consciente que assimila

toda a riqueza da evolução prece dente. O comunismo como um naturalismo

plenamente desenvolvido é humanismo e como humanismo plenamente

desenvolvido é naturalismo. É a resolução definitiva do antagonismo entre o

homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. É a verdadeira solução

do conflito entre existência e essência, entre objetificação e auto-afirmação, entre 29

Page 30: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. É a resposta ao enigma da

História e tem conhecimento disso.

(V) Assim, todo o desenvolvimento histórico, tanto a gênese real do comunismo

(o nascimento de sua existência empírica) quanto sua consciência pensante, e seu

processo entendido e consciente de vir-a-ser; ao passo que o outro, o comunismo

ainda não desenvolvido procura, em certas formas históricas contrarias a

propriedade privada, uma justificação baseada no que já existe e, com esse fito,

arranca de seu contexto elementos isolados desse desenvolvimento (Cabet e

Villegardelle destacam-se entre os que se dedicam a esse passatempo),

apresentando-os como provas de seu pedigree histórico. Ao fazê-lo ele deixa claro

que, de longe, a mor parte desse desenvolvimento contradiz suas próprias

afirmações e que, se jamais existiu, sua existência pretérita refuta sua pretensão a

entidade essencial.

É fácil entender a necessidade que leva todo movimento revolucionário a

encontrar sua base empírica, assim como a teórica, na evolução da propriedade

privada e, mais precisamente, do sistema econômico.

Essa propriedade privada material, diretamente perceptível, é a expressão

material e sensória da vida humana alienada. Seu movimento produção e consumo

- e a manifestação sensória do movimento de toda a produção anterior, i. é, a

realização ou realidade do homem. A religião, a família, o Estado, o Direito, a

moral, a ciência, a arte, etc., são apenas formas particulares de produção e

enquadram-se em sua lei geral. A substituição positiva da propriedade privada

como apropriação da vida humana, portanto, é a substituição de toda alienação, e

o retorno do homem, da religião, do Estado, da família, etc., para sua vida humana,

i.é, social. A alienação religiosa como tal, ocorre somente no campo da

consciência, na vida interior do homem, mas a alienação econômica e a da vida

real, e por isso, sua substituição afeta ambos os aspectos. Está claro, a evolução

em diferentes nações tem início diferente, conforme a vida efetiva e estabelecida

das pessoas esteja mais vinculada ao reino da mente ou ao mundo exterior, seja

mais uma vida real ou ideal. O comunismo começa onde começa o ateísmo

(Owens), mas o ateísmo de início está bem longe de ser comunismo; de fato, ele é,

na maior parte, ainda uma abstração. Assim, a filantropia do ateísmo é, a princípio,

unicamente uma filantropia filosófica abstrata, enquanto a do comunismo é desde

logo real e orientada e voltada para a ação.

30

Page 31: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Vimos como, na suposição da propriedade privada ter sido positivamente

revogada, o homem produz o homem, a si mesmo e a outros homens; como o

objeto que é a atividade direta de sua personalidade, ao mesmo tempo é a

existência dele para outros homens e a destes para ele. Analogamente, o material

do trabalho e o próprio homem como sujeito são o ponto de partida, bem como o

resultado, desse movimento (e porque deve haver esse ponto de partida, a

propriedade privada é uma necessidade histórica). Por conseguinte, o caráter

social e o caráter universal de todo o movimento; da mesma forma que a sociedade

produz o homem como homem, também ela é produzida por ele. A atividade e o

espírito são sociais em seu conteúdo, assim como em sua origem; eles são

atividade social e espírito social. O significado humano da natureza só existe para

o homem social, porque só neste caso a natureza é um laço com outros homens, a

base de sua existência para outros e da existência destes para ele. Só, então, a

natureza e a base da própria experiência humana dele e um elemento vital da

realidade humana. A existência natural do homem tornou-se, com isso, sua

existência humana, e a própria natureza tornou-se humana para ele. Logo, a

sociedade é a união efetiva do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição

da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da

natureza.

(VI) A atividade social e o espírito social não existem apenas, de forma alguma,

sob a forma de atividade ou espirito que sela diretamente comunal. Sem embargo,

a atividade e o espírito comunais, i. é, atividade e espírito que se exprimem e

confirmam diretamente em associação real com outros homens, ocorrem sempre

onde essa expressão direta de sociabilidade brote do conteúdo da atividade ou

corresponda à natureza do espírito.

Ainda quando realizo trabalho cientifico, etc., uma atividade que raramente

posso conduzir em associação direta com outros homens, efetuo um ato social, por

ser humano. Não é só o material de minha atividade - como a própria língua que o

pensador utiliza - que me é dado como um produto social. Minha própria existência

é uma atividade social. Por essa razão, o que eu próprio produzo, o faço para a

sociedade, e com a consciência de agir como um ser social.

Minha consciência universal é apenas a forma teórica daquela cuja forma viva

é a comunidade real, a entidade social, embora no presente essa consciência

universal seja uma abstração da vida real e oposta a esta como uma inimiga. Por

isso é que a atividade de minha consciência universal como tal é minha existência

teórica como um ser social.

31

Page 32: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Acima de tudo, é mister evitar conceber a "sociedade" uma vez mais como uma

abstração com que se defronta o indivíduo. O indivíduo é o ser social. A

manifestação da vida dele - ainda quando não apareça diretamente sob a forma de

manifestação comunal, realizada em associação com outros homens - é, por

conseguinte, uma manifestação e afirmação de vida social. A vida humana

individual e a vida-espécie não são coisas diferentes, conquanto o modo de

existência da vida individual seja um modo mais especifico ou mais geral da vida-

espécie, ou da vida-espécie seja um modo mais específico ou mais geral da vida

individual.

Em sua consciência como espécie, o homem confirma sua verdadeira vida

social, e reproduz sua existência real em pensamento; reciprocamente, a vida-

espécie confirma-se na consciência como espécie e existe por si mesma em sua

universalidade como ser pensante. Embora o homem seja um indivíduo original, e

é justamente esta particularidade que o torna um indivíduo, um ser comunal

realmente individual - ele é igualmente o conjunto, o conjunto ideal, a existência

subjetiva da sociedade como é imaginada e vivenciada. Ele existe na realidade

como a representação e o verdadeiro espirito da existência social, e como a soma

da manifestação humana da vida.

Pensar e ser são deveras distintos, mas também formam uma unidade. A morte

parece ser uma impiedosa vitória da espécie sobre o indivíduo e contradizer sua

unidade; porém, o indivíduo em particular é apenas um determinado ente-espécie,

e, como tal, mortal.

(4) Tal e qual a propriedade privada é a mera expressão sensorial do fato de o

homem ser ao mesmo tempo um fato objetivo para si mesmo e tornar-se um objeto

estranho e não-humano para si mesmo; tal e qual sua manifestação de vida é

também sua alienação da vida e sua realização própria uma perda da realidade, o

aparecimento de uma realidade estranha, assim também a revogação positiva da

propriedade privada, i. é, a apropriação sensorial da essência humana e da vida

humana do homem objetivo e das criações humanas, pelo e para o homem, não

devem ser consideradas exclusivamente na acepção de fruição imediata e

exclusiva, ou na de possuir ou ter. O homem apropria seu ser multiforme de

maneira global, e portanto como homem integral. Todas as suas relações humanas

com o mundo - ver, ouvir, cheirar, saborear, pensar, observar, sentir, desejar, agir,

amar - em suma, todos os órgãos de sua individualidade, como órgãos que são de

forma diretamente comunal (VII), são, em sua ação objetiva (sua ação com relação

ao objeto) a apropriação desse objeto, a apropriação da realidade humana. A

32

Page 33: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

maneira pela qual eles reagem ao objeto é a confirmação da realidade humana. (1)

É efetividade humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, considerado

humanamente, é uma fruição do eu pelo homem.

A propriedade privada tornou-nos tão néscios e parciais que um objeto só e

nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é

diretamente comido, bebido, vestido, habitado, etc., em síntese, utilizado de

alguma forma; apesar de a propriedade privada propriamente dita só conceber

essas várias formas de posse como meios de vida e a vida para a qual eles servem

como meios ser a vida da propriedade privada - trabalho e criação de capital.

Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples

alienação de todos eles, pelo sentido de ter. O ser humano tinha de ser reduzido a

essa pobreza absoluta a fim de poder dar à luz toda sua riqueza interior. (Sobre a

categoria de ter ver Hess em Einundzwanzig Bogen. )

A anulação da propriedade privada é, pois, a emancipação completa de todos

os atributos e sentidos humanos. Ela é essa emancipação porque esses atributos e

sentidos tornaram-se humanos, tanto sob o ponto de vista subjetivo quanto sob o

objetivo. O olho tornou-se olho humano quando seu objeto passou a ser um objeto

humano, social, criado pelo homem e a este destinado. Os sentidos, portanto,

tornaram-se direta mente teóricos na prática. Eles se relacionam com a coisa em

atenção a esta, mas a própria coisa é uma relação humana objetiva consigo mesma

e com o homem, e vice-versa. (2) A necessidade e a fruição, portanto, perderam

seu caráter egoísta, e a natureza perdeu sua mera utilidade pelo fato de sua

utilização ter-se tornado utilização humana.

Semelhantemente, os sentidos e os espíritos dos outros homens tornaram-se

sua própria apropriação. Logo, além desses órgãos diretos, são constituídos órgãos

sociais sob a forma de sociedade; por exemplo, a atividade em associação direta

com outros tornou-se um órgão para a manifestação da vida e um modo de

apropriação da vida humana.

(1) Por conseguinte, ela valia tanto quanto as tendências da natureza e das

atividades humanas.

(2) Na prática, só posso relacionar-me de maneira humana com uma coisa

quando esta se relaciona de maneira humana com o homem.

33

Page 34: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

É evidente que o olho humano aprecia as coisas de maneira diferente do olho

bruto, não-humano, assim como o ouvido humano diferentemente do ouvido bruto.

Conforme vimos, é só quando o objeto se torna um objeto humano, ou humanidade

objetiva, que o homem não fica perdido nele. Isso somente é possível quando o

objeto se torna um objeto social, e quando ele próprio se torna um ser social e a

sociedade se torna para ele, nesse objeto, um ser.

Por um lado, é só quando a realidade objetiva em toda parte se torna para o

homem-em-sociedade a realidade das faculdades humanas, a realidade humana, e

portanto a realidade de suas próprias faculdades, que todos os objetos se tornam

para ele a objetificação dele próprio. Os objetos, então, confirmam e realizam a

individualidade dele, eles são os objetos dele próprio, i. e, o próprio homem torna-

se o objeto. A maneira pela qual esses objetos passam a ser dele, depende da

natureza do objeto e da natureza da faculdade correspondente, pois é exatamente

o caráter determinado dessa relação que constitui o modo real específico de

afirmação. O objeto não e o mesmo para o olho que para o ouvido, para o ouvido

que para o olho. O caráter distintivo de cada faculdade é precisamente sua

essência característica e, pois, também, o modo característico de sua objetificação,

de seu ser objetivamente real, vivo. Portanto, não é apenas em pensamento (VIII),

mas por intermédio de todos os sentidos que o homem se afirma no mundo

objetivo.

Consideremos, a seguir, o aspecto subjetivo. O sentido musical do homem só é

despertado pela música. A mais bela musica não tem significado para o ouvido não-

musical, não e um objeto para ele, porque meu objeto só pode ser a corroboração

de uma de minhas próprias faculdades. Ele só pode existir para mim na medida em

que minha faculdade existe por si mesma como capacidade subjetiva, porquanto o

significado de um objeto para mim só se estende até onde o sentido se estende (só

faz sentido para um sentido adequado). Por essa razão, os sentidos do homem

social são diferentes dos do homem não-social. E só por intermédio da riqueza

objetivamente desdobrada do ser humano que a riqueza da sensibilidade humana

subjetiva (um ouvido musical, um olho sensível à beleza das formas, em suma,

sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como faculdades

humanas) é cultivada ou criada. Pois não são apenas os cinco sentidos, mas

igualmente os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (desejar, amar,

etc.), em suma, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos, que só

podem vingar através da existência de seu objeto, através da natureza

humanizada. O cultivo dos cinco sentidos é a obra de toda a história anterior. O

sentido subserviente às necessidades grosseiras só tem um significado restrito. 34

Page 35: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Para um homem faminto, a forma humana de alimento não existe, mas apenas seu

caráter abstrato como alimento. Poderia muito bem existir na mais tosca forma, e é

impossível afirmar de que modo essa atividade de alimentar-se diferia da dos

animais. O homem necessitado, assoberbado de cuidados, não é capaz de apreciar

o mais belo espetáculo. O vendedor de minerais só vê seu valor comercial, não sua

beleza ou suas características particulares; ele não possui senso mineralógico.

Assim, a objetificação da essência humana tanto teórica quanto praticamente, é

necessária para humanizar os sentidos humanos, e também para criar os sentidos

humanos correspondentes a toda a riqueza do ser humano e natural.

Exatamente como no início a sociedade encontra, graças ao desenvolvimento

da propriedade privada com sua riqueza e pobreza (tanto intelectual quanto

material), os materiais necessários para essa evolução cultural, assim também a

sociedade plenamente constituída produz o homem em toda a plenitude de seu ser,

o homem rico dotado de todos os sen tidos, como uma realidade permanente. E só

em um contexto social que subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e

materialismo, atividade e passividade, deixam de ser antinomias e, assim, deixam

de existir como tais antinomias. A resolução das contradições teóricas somente é

possível através de meios práticos, somente através da energia prática do homem.

Sua resolução não é, de forma alguma, portanto, apenas um problema de

conhecimentos, mas um problema real da vida, que a filosofia foi incapaz de

solucionar exatamente porque viu nele um problema puramente teórico.

Pode ser notado que a história da indústria, e a indústria como existe

objetivamente, é um livro aberto das faculdades humanas, e uma psicologia

humana que pode ser apreendida sensorialmente. Essa história não foi até aqui

concebida com relação à natureza humana, mas só sob um ponto de vista utilitário

superficial, desde que na situação de alienação só era viável conceber faculdades

humanas reais e ação da espécie humana sob a forma de existência humana em

geral, como religião, ou como história em seu aspecto geral, abstrato, como

política, arte e literatura, etc. A indústria material quotidiana (que pode ser

concebida como parte daquela evolução geral; ou igualmente, a evolução geral

pode ser concebida como parte específica da industria, visto que toda a atividade

humana até agora tem sido trabalho, i. é, indústria, atividade auto-alienação)

revela-nos, sob a forma de objetos úteis sensoriais, de maneira alienada, as

faculdades humanas essenciais transformadas em objetos. Nenhuma psicologia

para a qual esse livro, i. é, parte mais sensivelmente presente e acessível da

História, permaneça fechado, pode tornar-se uma ciência de verdade com um

conteúdo genuíno. Que se deve pensar de uma ciência que se mantém apartada de 35

Page 36: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

todo esse enorme campo do trabalho humano e que não se sente sua própria

inadequação, mesmo que essa grande riqueza de atividade humana nada mais

signifique para ela senão, quiçá, o que pode ser expresso na simples expressão -

"necessidade", "necessidade comum"?

As ciências naturais desenvolveram uma atividade tremenda e reuniram uma

sempre crescente massa de dados. Mas a filosofia tem-se mantido alheia a essas

ciências, exatamente como elas o têm feito em relação à filosofia. Seu momentâneo

rapprochement foi somente uma ilusão fantasiosa. Havia um desejo de união, mas

faltou o poder para efetivá-la. A própria historiografia só leva a ciência natural em

conta fortuitamente, encarando-a como um fator de esclarecimento, de utilidade

prática e de determinados grandes descobrimentos. A ciência natural, contudo,

penetrou mais praticamente na vida humana por intermédio da indústria. Ela

transformou a vida humana e preparou a emancipação da humanidade, conquanto

seu efeito imediato fosse acentuar a desumanização do homem. A indústria é a

relação histórica concreta da natureza, e portanto da ciência natural, com o

homem. Se a indústria é concebida como a manifestação exotérica das faculdades

humanas essenciais, a essência humana da natureza e a essência natural do

homem também podem ser entendidas. A ciência natural, então, abandonará sua

orientação materialista abstrata, ou melhor, idealista, e se tornará a base de uma

ciência humana, tal como já se converteu - malgrado de forma alienada - em base

da vida humana prática. Uma base para a vida e outra para a ciência é, a priori ,

uma falsidade. A natureza, como se desenvolve através da história humana, no ato

de gênese da sociedade humana, é a natureza concreta do homem; assim, a

natureza, como se desenvolve por intermédio da indústria, embora de forma

alienada, é verdadeiramente natureza antropológica.

A experiência dos sentidos (ver Feuerbach) tem de ser a base de toda ciência.

A ciência só é ciência genuína quando procede da experiência dos sentidos, nas

duas formas de percepção sensorial e necessidade sensória, i. é, só quando

procede da natureza. O conjunto da História é uma preparação para o 'homem"

tornar-se um objeto da percepção sensorial, e para o desenvolvimento das

necessidades humanas (as necessidades do homem como tal). A própria História é

uma parte real da História Natural, do aperfeiçoamento da natureza até chegar ao

homem. A ciência natural algum dia incorporará a ciência do homem, exatamente

como a ciência do homem incorporará a ciência natural; haverá uma única ciência.

O homem é o objeto direto da ciência natural, porque a natureza diretamente

perceptível é para o homem experiência sensorial. Sua própria experiência

36

Page 37: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

sensorial só existe como a outra pessoa que lhe é diretamente apresentada de

maneira sensorial. Sua própria experiência sensorial só existe como experiência

sensorial humana através da outra pessoa. Mas, a natureza é o objeto direto da

ciência do homem. O primeiro objeto para o homem - o próprio homem - é a

natureza, a experiência sensorial; e as faculdades humanas sensórias em

particular, que só podem encontrar realização objetiva em objetos naturais, só

podem alcançar o conhecimento próprio na ciência do ser natural. O próprio

elemento do pensamento, o elemento da manifestação viva do pensamento, a

linguagem, é de natureza sensorial. A realidade social da natureza e ciência

natural humana ou ciência natural do homem, são expressões idênticas.

A partir daqui, ver-se-á como, em lugar da riqueza e pobreza da Economia

Política, teremos o homem rico e a plenitude da necessidade humana. O homem

rico é, ao mesmo tempo, aquele que precisa de um complexo de manifestações

humanas da vida, e cuja própria auto-realização existe como uma necessidade

interior, como uma carência. Não só a riqueza como também a pobreza do homem,

adquire, em uma perspectiva socialista, o significado humano, e portanto social. A

pobreza é o vinculo passivo que leva o homem a experimentar uma carência da

máxima riqueza, a outra pessoa. O ímpeto da entidade objetiva dentro de mim, a

rotura sensorial de minha atividade vital, é a paixão que aqui se torna a atividade

de meu ser.

(5) Um ser não se encara a si mesmo como independente a menos que seja seu

próprio senhor, e ele só é seu próprio senhor quando deve sua existência a si

mesmo. Um homem que vive pelo favor de outro, considera-se um ser dependente.

Mas, eu vivo completamente por favor de outra pessoa quando lhe devo não

apenas a continuação de minha vida, como igualmente sua criação; quando ele é a

origem dela. Minha vida tem forçosamente uma causa assim extrínseca quando

não é de minha própria criação. A idéia de criação, pois, é difícil de eliminar da

consciência popular. Essa consciência e incapaz de conceber a natureza e o

homem existindo por sua própria conta, pois tal existência contraria todos os fatos

tangíveis da vida prática.

A idéia da criação da Terra recebeu sério golpe da ciência da geogenia, i. é, da

ciência que descreve a formação e o desenvolvimento da Terra como um processo

de geração espontânea. Generatio aequivoca (geração espontânea) é a única

refutação prática da teoria da criação.

37

Page 38: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

É fácil, todavia, deveras, dizer a um indivíduo em particular do que Aristóteles

disse: você foi gerado por seu pai e sua mãe, e conseqüentemente foi o coito de

dois seres humanos, um ato da espécie humana, que produziu o ser humano. Vê-se,

pois, que mesmo em um sentido físico o homem deve sua existência ao homem. Por

conseguinte, não basta ter em mente apenas um dos dois aspectos, a progressão

infinita e perguntar a seguir: quem gerou meu pai e meu avô? Também se tem de

ter em vista o movimento circular, perceptível nessa progressão, segundo o qual o

homem, no ato da geração, reproduz-se a si mesmo: destarte, o homem sempre

permanece como sujeito. Mas, responder-se-á: admito esse movimento circular,

mas em troca você deve aceitar a progressão, que leva ainda mais adiante ao ponto

onde eu pergunto: quem criou o primeiro homem e a natureza como um todo? Só

posso responder: sua pergunta é, em si mesma, um produto da abstração.

Pergunte a si mesmo como chegou a essa pergunta. Pergunte-se se sua pergunta

não nasce de um ponto de vista a que eu não posso responder por que ele é

deturpado. Pergunte-se se essa progressão existe como tal para o pensamento

racional. Se você indaga acerca da criação da natureza e do homem, você está

abstraindo estes. Você os supõe não-existentes e quer que eu demonstre que eles

existem. Replico: desista de sua abstração e ao mesmo tempo você abandonará sua

pergunta. Ou então, se você quer manter sua abstração, seja coerente, e se pensa

no homem e na natureza como não-existentes (XI) pense também em você como

não-existente, pois você também é homem e natureza. Não pense nem formule

quaisquer perguntas, pois logo que você o faz sua abstração da existência da

natureza e do homem se torna sem sentido. Ou será você tão egoísta que concebe

tudo como não-existente, mas quer que você exista?

Você pode retrucar: não quero conceber a inexistência da natureza, etc.; só lhe

pergunto acerca do ato de criação dela, tal como indago do anatomista sobre a

formação dos ossos, etc.

Como, no entanto, para o socialista, o conjunto do que se chama história

mundial nada mais é que a criação do homem pelo trabalho humano, e a

emergência da natureza para o homem, ele, portanto, tem a prova evidente e

irrefutável de sua autocriação, de suas próprias origens. Uma vez que a essência

do homem e da natureza, o homem como um ser natural e a natureza como uma

realidade humana, se tenha tornado evidente na vida prática, na experiência

sensorial, a busca de um ser estranho, um ser acima do homem e da natureza

(busca essa que é uma confissão da irrealidade do homem e da natureza) torna-se

praticamente impossível. O ateísmo, como negação desse irrealismo, não mais faz

sentido, pois ele é uma negação de Deus e procura afirmar, por essa negação, a 38

Page 39: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

existência do homem. O socialismo dispensa esse método assim tão circundante;

ele parte da percepção teórica e prática sensorial do homem e da natureza como

seres essenciais. É autoconsciência positiva humana, não mais uma

autoconsciência alcançada graças à negação da religião; exatamente como a vida

real do homem é positiva e não mais alcançada graças à negação da propriedade

privada, por meio do comunismo. O comunismo é a fase de negação da negação e

é, por conseguinte, para a próxima etapa da evolução histórica, um fator real e

necessário na emancipação e reabilitação do homem. O comunismo é a forma

necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não é em

si mesmo a meta da evolução humana - a forma da sociedade humana.

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Terceiro Manuscrito

Necessidades, Produção e Divisão do Trabalho

(XIV) (7) Vimos que a importância deve ser atribuída, em uma perspectiva

socialista, à riqueza das necessidades humanas, e conseqüentemente também a um

novo sistema de produção e a um novo objeto de produção. Uma nova

manifestação das forças humanas e um novo enriquecimento do ser humano.

Dentro do sistema da propriedade privada, ela tem o significado diametralmente

oposto. Cada homem especula sobre a criação de uma nova necessidade no outro a

fim de obrigá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo sob nova dependência, e induzi-lo a

um novo tipo de prazer e, em conseqüência, à ruína econômica. Todos procuram

estabelecer um poder estranho sobre os outros, para com isso encontrar a

satisfação de suas próprias necessidades egoístas. Com a massa de objetos, por

conseguinte, cresce também o reino de entidades estranhas a que o homem se vê

submetido. Cada novo produto é uma nova potencialidade de mútua fraude e

roubo. O homem torna-se cada vez mais pobre como homem; ele tem necessidade

39

Page 40: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

crescente de dinheiro para poder apossar-se do ser hostil. O poder de seu dinheiro

diminui na razão direta do aumento do volume da produção, i. é, sua necessidade

cresce com o poder crescente do dinheiro. A necessidade de dinheiro é, pois, a

necessidade real criada pela economia moderna, e a única necessidade por esta

criada. A quantidade de dinheiro torna-se cada vez mais sua única qualidade

importante. Assim como ele reduz toda entidade a sua abstração, também se reduz

a si mesmo, em seu próprio desenvolvimento, a uma entidade quantitativa. Excesso

e imoderação passam a ser seu verdadeiro padrão. Isso é demonstrado

subjetivamente, em parte pelo fato de a expansão da produção e das necessidades

tornar-se uma subserviência engenhosa e sempre calculista a apetites desumanos,

depravados, antinaturais e imaginários. A propriedade privada não sabe como

transformar a necessidade bruta em necessidade humana; seu idealismo é

fantasia, capricho e ilusão. Nenhum eunuco lisonjeia a seu tirano de forma mais

desavergonhada nem procura por meios mais infames estimular seu apetite

embotado, a fim de granjear algum favor, do que o eunuco da indústria, o homem

de empresa, a fim de adquirir algumas moedas de prata ou de atrair o ouro da

bolsa de seu amado próximo. (Todo produto é uma isca por meio da qual o

indivíduo tenta engodar a essência da outra pessoa, o dinheiro desta. Toda

necessidade real ou potencial é uma fraqueza que atrairá o passarinho para o

visgo. A exploração universal da vida humana em comunidade. Como toda

imperfeição do homem é um vínculo com o céu, um ponto em que seu coração é

acessível ao sacerdote, assim também toda necessidade material é uma

oportunidade para a gente aproximar-se do próximo, com uma atitude amistosa, e

dizer: "Caro amigo, dar-lhe-ei aquilo de que você precisa, mas você conhece a

conditio sine qua non . Você sabe qual tinta tem de usar para entregar-se a mim.

Eu o trapacearei ao proporcionar-lhe satisfação.") O homem de empresa concorda

com os mais depravados caprichos de seu próximo, desempenha o papel de

alcoviteiro entre eles e suas necessidades, desperta apetites mórbidos, nele, e

presta atenção a cada fraqueza a fim de, posteriormente, reivindicar a

remuneração por esse serviço de amor.

Essa alienação é em parte mostrada pelo fato de o requinte das necessidades e

dos meios de satisfazê-las produzir, como correspondente, uma selvajaria bestial,

uma simplicidade completa, primitiva e abstrata das necessidades; ou melhor,

simplesmente reproduzir-se no sentido oposto. Para o trabalha dor, até a

necessidade de ar fresco deixa de ser uma necessidade. O homem volta novamente

a morar em cavernas, mas agora é envenenado pelo ar pestilento da civilização. O

trabalhador só tem um direito precário a habitá-las, pois elas se transformaram em

40

Page 41: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

residências estranhas que de repente podem não estar mais disponíveis, ou de que

ele pode ser despejado se não pagar o aluguel. Ele tem de pagar por esse sepulcro.

A residência cheia de luz que Prometeu, em Ésquilo, indica como uma das grandes

dádivas por meio das quais converteu selvagens em homens, deixa de existir para

o trabalhador. Luz, ar, e a mais singela limpeza animal deixam de ser necessidades

humanas. A imundície, essa corrupção e putrefação que corre pelos esgotos da

civilização (isto deve ser tomado literalmente), torna-se o elemento em que o

homem vive. Negligência total e antinatural, a natureza putrefata, passa a ser o

elemento em que ele vive. Nenhum de seus sentidos sobrevive, seja sob forma

humana, seja mesmo em forma não-humana, animal. Os processos (e instrumentos)

mais grosseiros de trabalho humano reaparecem; assim, o moinho acionado pelos

pés dos escravos romanos tornou-se o modo de produção e o modo de existência de

muitos operários ingleses. Não basta que o homem perca suas necessidades

humanas; até as necessidades animais desaparecem. Os irlandeses não mais têm

nenhuma necessidade senão a de comer - comer batatas, e ainda assim só da pior

espécie, batatas bolorentas. Mas a França e a Inglaterra já possuem em toda

cidade industrial uma pequena Irlanda. Selvagens e animais podem, ao menos,

satisfazer suas necessidades de caçar, fazer exercício e ter companheiros. A

simplificação da maquinaria e do trabalho, porém, é utilizada para fazer operários

dos que ainda estão crescendo, que ainda estão imaturos, crianças, enquanto o

próprio operário converteu-se em uma criança desatendida de qualquer cuidado. A

maquinaria é adaptada à fraqueza do ser humano, de modo a transformar o fraco

ser humano em máquina.

O fato de o aumento das necessidades e dos meios de satisfazê-las resultar em

uma falta de atendimento das necessidades e meios de satisfazê-las, é

demonstrado de várias maneiras pelo economista (e pelo capitalista; com efeito, é

sempre a homens de negócios empíricos que nos referimos quando falamos de

economistas, que são sua auto-revelação e existência científica). Primeiramente,

reduzindo as necessidades do trabalhador às míseras exigências ditadas pela

manutenção de sua existência física, e reduzindo a atividade dele aos movimentos

mecânicos mais abstratos, o economista assevera que o homem não tem

necessidade de atividade ou prazer além daquelas; e no entanto declara ser esse

gênero de vida um gênero humano de vida. Em segundo lugar, aceitando como

padrão geral de vida (geral por ser aplicado à massa dos homens) a vida mais

pobre que se possa conceber; ele transformar o trabalhador em um ser destituído

de sentidos e necessidades, assim como transforma a atividade dele em uma

abstração pura de toda atividade. Assim, todo o luxo da classe trabalhadora

41

Page 42: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

parece-lhe condenável, e tudo que ultrapasse a mais abstrata exigência (quer se

trate de uma satisfação passiva ou uma manifestação de atividade pessoal) é

encarada como luxo. A Economia Política, a ciência da riqueza, portanto, ao

mesmo tempo, a ciência da renúncia, da privação e da poupança, que de fato

consegue privar o homem de ar fresco e de atividade física. A ciência de uma

indústria maravilhosa é, concomitantemente, a ciência do ascetismo. Seu

verdadeiro ideal é o sovina, ascético porém usurário, e o escravo ascético porém

produtivo. Seu ideal moral é trabalhador que leva uma parte do salário para a

caixa econômica. Chegou mesmo a achar uma arte servil para corporificar essa

idéia favorita, que foi apresentada de forma sentimental no palco. Assim, a

despeito de sua aparência mundana e sequiosa de prazeres, ela é uma ciência

verdadeiramente moralista, a mais moralista de todas as ciências. Sua tese

principal é a renúncia à vida e às necessidades humanas. Quanto menos se comer,

beber, comprar livros, for ao teatro ou a bailes, ou ao botequim, e quanto menos se

pensar, amar, doutrinar, cantar, pintar, esgrimir, etc., tanto mais se poderá

economizar e maior se tornará o tesouro imune à ferrugem e às traças - o capital.

Quanto menos se for, quanto menos se exprimir nossa vida, tanto mais se terá,

tanto maior será nossa vida alienada e maior será a economia de nosso ser

alienado. Tudo o que o economista tira da gente sob a forma de vida e

humanidade, devolve sob a de dinheiro e riqueza. E tudo que não se pode fazer, o

dinheiro pode fazer para a gente; pode-se comer, beber, ir ao baile e ao teatro. Ele

pode adquirir arte, saber, tesouros históricos, poder político; e pode-se viajar. Ele

pode apropriar todas essas coisas para a gente, pode comprar tudo; ele é a

verdadeira opulência. Mas, apesar de poder fazer tudo isso, ele só quer criar a si

mesmo, e comprar a. si mesmo, pois tudo mais se lhe submete. Quando se possui o

dono, também se possui o servo, e ninguém precisa do servo do dono. Dessa

maneira, todas as paixões e atividades têm de ser submersas na avareza. O

trabalhador deve ter apenas o que lhe é necessário para desejar viver, e deve

desejar viver para ter isso.

É verdade que apareceu certa controvérsia no campo da Economia Política.

Alguns economistas (Lauderdale, Malthus, etc) advogam o luxo e condenam a

poupança, enquanto outros (Ricardo, Say, etc.), advogam a poupança e condenam

o luxo. Mas, os primeiros admitem que desejam luxo a fim de criar trabalho, i. é,

poupança absoluta, ao passo que os últimos admitem que advogam a poupança a

fim de criar a riqueza, i. é, luxo. Os primeiros têm a idéia romântica de que a

avareza não deve determinar por si só o consumo dos ricos, e contradizem suas

próprias leis ao representar a prodigalidade como sendo um meio direto de

42

Page 43: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

enriquecer; seus opositores, então, demonstram com grande minúcia e convicção,

que a prodigalidade diminui ao invés de aumentar minhas posses. O segundo

grupo é hipócrita, ao não admitir que são o capricho e a fantasia que determinam a

produção. Esquecem-se das "necessidades requintadas", e que sem consumo não

haveria produção. Esquecem-se de que, através da competição, a produção tem de

tornar-se sempre mais universal e luxuosa, que é o uso que determina o valor das

coisas e que o uso é função da moda. Eles querem que a produção seja limitada a

"coisas úteis", mas esquecem que a produção de um número excessivo de coisas

úteis resulta em muitas pessoas inúteis. Ambos os lados esquecem que

prodigalidade e parcimônia, luxo e abstinência, riqueza e pobreza, são

equivalentes.

Não se tem de ser abstinente apenas na satisfação de nossos sentidos diretos,

como comer, etc., mas também em nossa participação em interesses gerais, nossa

compaixão, confiança, etc., se se deseja ser econômico e evitar arruinar-se devido

a ilusões.

Tudo o que se possui deve ser tornado venal, i. é, útil. Suponhamos que eu

pergunte ao economista: estou agindo de acordo com as leis econômicas se ganhar

dinheiro com a venda de meu corpo, prostituindo-o à concupiscência de outra

pessoa (na França, os operários chamam à prostituição de suas esposas e filhas a

enésima hora de trabalho, o que é literalmente verdadeiro); ou se eu vender meu

amigo aos marroquinos (e a venda direta de homens ocorre em todos os países

civilizados sob a forma de alistamento nas forças armadas)? Ele responderá: você

não está agindo contra as minhas leis, mas tem de levar em conta o que a Prima

Moral e a Prima Religião têm a dizer. Minha moralidade e religião econômicas

nada têm a objetar, porém Mas, a quem se deve dar crédito, ao economista ou ao

moralista? A moral da economia política é ganho, trabalho, parcimônia e

sobriedade - no entanto, a economia política promete satisfazer minhas

necessidades. A economia política da moral é a riqueza de uma boa consciência,

virtude, etc., mas como posso ser virtuoso se não estiver vivo e como posso ter

uma boa consciência se não me der conta de nada? A natureza da alienação

subentende que cada esfera aplica uma norma diferente e contraditória, que a

Moral não aplica a mesma norma que a Economia Política, etc., porque cada uma

delas é uma alienação particular do homem; (XVII) cada uma está concentrada em

uma área específica de atividade alienada e, por sua vez, acha-se alienada da

outra.

43

Page 44: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

É assim que M. Michel Chevalier censura Ricardo por não levar em conta a

Moral. Mas Ricardo deixa a Economia Política falar sua língua própria; não se deve

condená-lo se essa língua não é a da Moral. M. Chevalier ignora a Economia

Política, ao preocupar-se unicamente com a Moral, mas ignora de fato e

necessariamente a Moral quando se preocupa com a Economia Política; pois o

reflexo desta naquela é arbitrário e acidental, carecendo, assim, de qualquer base

ou caráter científico, uma mera impostura, ou então é essencial e só pode ser

então uma relação entre as leis econômicas e a Moral. Se não existe uma relação

assim, pode Ricardo ser chamado à responsabilidade? Outrossim, a antítese entre

Moral e Economia Política é em si mesma apenas aparente; há uma antítese e

igualmente não há antítese. A Economia Política exprime à sua própria maneira, as

leis morais.

A ausência de exigências, como princípio da economia política, é atestada da

forma mais chocante em sua teoria da população. Há homens em demasia. A

própria existência do homem é puro luxo, e se o trabalhador for "moralizado" , ele

será econômico ao procriar. (Mill sugere louvor público aos que se mostrarem

abstêmios nas relações sexuais, e condenação pública aos que pequem contra a

esterilidade do matrimônio. Não é essa a doutrina moral do ascetismo?) A

produção de homens afigura-se uma desgraça pública.

O significado da produção com relação aos ricos é revelado no que tem para os

pobres. No alto, sua manifestação é sempre requintada, disfarçada, ambígua, uma

aparência; nas camadas inferiores, ela é crua, franca, sem rodeios, uma realidade.

A necessidade áspera do trabalhador é fonte de muito maior lucro do que a

necessidade requintada do abastado. As moradias em porões de Londres dão mais

aos senhorios do que os palácios, i. é, elas constituem maior riqueza no que toca ao

senhorio e, assim, em termos econômicos, maior riqueza social.

Assim como a indústria se reflete no refinamento das necessidades, também o

faz em sua rudeza, e na rudeza delas produzida artificialmente, cuja verdadeira

alma é a auto-estupefação, a satisfação ilusória das necessidades, uma civilização

dentro da barbárie grosseira da necessidade. As tavernas inglesas, são, portanto,

representações simbólicas da propriedade privada. Seu luxo desmascara a relação

real do luxo industrial e da riqueza com o homem. Elas são, pois, adequadamente,

o único divertimento dominical do povo, pelo menos tratado com brandura pela

polícia inglesa.

44

Page 45: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Já vimos como o economista estabelece a unidade do trabalho e do capital de

várias maneiras: (1) o capital é trabalho acumulado; (2) a finalidade do capital

dentro da produção - em parte a reprodução do capital com lucro, em parte o

capital como matéria-prima (material do trabalho), em par te o capital como ele

mesmo um instrumento de trabalho (a máquina é capital fixo, que é idêntico ao

trabalho) - é trabalho produtivo; (3) o trabalho é capital; (4) os salários fazem parte

dos custos do capital; (5) para o trabalhador, o trabalho é a reprodução de seu

capital-vida; (6) para o capitalista, o trabalho é um fator na atividade de seu

capital.

Por fim, (7) o economista pressupõe a união original de capital e trabalho como

união de capitalista e trabalhador. Essa é a situação paradisíaca original. Como

esses dois fatores (XIX), tal como se fossem duas pessoas, avançam para a

garganta do outro, é, para o economista, um acontecimento fortuito que por isso

pode ser explicado apenas pelas circunstâncias exteriores (ver Mill).

As nações ainda estonteadas pelo fulgor físico de metais preciosos e, por isso,

ainda fetichistas do dinheiro metálico, não são ainda nações financeiras

plenamente desenvolvidas. Com pare-se a França com a Inglaterra. A medida em

que a solução de um problema teórico incumbe à prática, e é conseguida pela

prática, e a medida em que a prática correta é a condição para uma teoria verídica

e positiva, é demonstrada, por exemplo, no caso do fetichismo. A percepção

sensorial de um fetichista difere da de um grego porque sua existência sensorial é

diferente. A hostilidade abstrata entre sentidos e espírito é inevitável enquanto o

sentido humano para a natureza, ou o significado humano da natureza, e

conseqüentemente o sentido natural do homem, não tiver sido produzido por meio

do trabalho do próprio homem.

A igualdade nada mais é que o alemão "Ich-Ich", traduzido para a forma

francesa, i. é, política. A igualdade como base do comunismo é uma fundação

política e é a mesma de quando os alemães apóiam sobre ela o fato de conceberem

o homem como autoconsciência universal. Está claro, a transcendência da

alienação sempre provém da forma de alienação que é a força dominante; na

Alemanha, autoconsciência; na França, igualdade, por causa da política; na

Inglaterra, a necessidade real, material, auto-suficiente, prática. Proudhon deve

ser apreciado e criticado sob este ponto de vista.

Se agora caracterizarmos o próprio comunismo (pois, como negação da

negação, como a apropriação da existência humana que medeia entre uma e outra

45

Page 46: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

por meio da negação da propriedade privada não é a posição verdadeira, originada

por si mesma, mas antes, uma que parte da propriedade privada)[N2] . . . a

alienação da vida humana continua e uma alienação bem maior continua quanto

mais a gente tem consciência disso) só pode ser realizada pelo estabelecimento do

comunismo. A fim de revogar a idéia de propriedade privada bastam as idéias

comunistas, mas é necessária atividade comunista genuína no sentido de revogar a

propriedade privada real. A História produzirá, e a evolução que já em pensamento

reconhecemos como autotranscendente na realidade implicará em um processo

severo e prolongado. Temos, entretanto, de considerá-lo um avanço, pois

obtivemos previamente uma noção da natureza limitada e do alvo da evolução

histórica e podemos ver para além dela.

Quando artesãos comunistas formam associações, o ensino e a propaganda são

seus primeiros objetivos. Mas, sua própria associação cria uma necessidade nova -

a necessidade da sociedade - o que parecia ser um meio torna-se um fim. Os

resultados mais notáveis desse fato prático podem ser vistos quando operários

socialistas franceses se reúnem. Fumar, comer e beber não mais são meios de

congregar pessoas. A sociedade, a associação, o divertimento tendo também como

fito a sociedade, é suficiente para eles; a fraternidade do homem não é frase vazia,

mas uma realidade, e a nobreza do homem resplandece sobre nós vindo de seus

corpos fatigados.

(XX) Quando a Economia Política afirma que a oferta e a procura sempre se

equilibram, esquece imediatamente sua própria tese (a teoria da população) de

que a oferta de homens sempre excede a procura, e conseqüentemente, que a

desproporção entre oferta e procura é mais chocantemente expressa no fim

essencial da produção - a existência do homem.

O grau até o qual o dinheiro, que tem a aparência de um meio, é o poder real e

o único fim, e em geral o grau até que o meio que me assegura a existência e posse

do ser objetivo estranho é um fim em si mesmo, podem ser vistos no fato da

propriedade agrária onde a terra é a fonte da vida, e cavalo e espada onde estes

são os verdadeiros meios de vida, são também reconhecidos como os verdadeiros

poderes políticos. Na Idade Média, um estado torna-se emancipado quando tem o

direito de levar espada. Entre povos nômades, é o cavalo que torna livre o homem,

fazendo-o membro da comunidade.

Dissemos, acima, que o homem está regressando à habitação da caverna, mas

numa forma alienada e maligna. O selvagem em sua caverna (um elemento natural

46

Page 47: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

que lhe é livremente oferecido para uso e proteção) não se sente um estranho; pelo

contrário, sente-se tão em casa quanto um peixe na água. Mas, a habitação do

pobre num porão é uma habitação hostil, "um poder estranho, constrangedor, que

só se entrega em troca de suor e sangue". Ele não pode considerá-la como seu lar,

como um lugar onde afinal possa dizer "aqui estou em casa". Pelo contrário, ele se

encontra na casa de outra pessoa, a casa de um estranho que está à sua espera

diariamente e o despeja se não pagar o aluguel. Ele também se dá conta do

contraste entre sua própria morada e uma residência humana, como as que

existem naquele outro mundo, o paraíso dos ricos.

A alienação é evidente não só no fato de meu meio de vida pertencer a outrem,

de meus desejos serem a posse inatingível de outrem, mas de tudo ser algo

diferente de si mesmo, de minha atividade ser outra coisa qualquer, e, por fim (e

isso também ocorre com o capitalista), de um poder desumano mandar em tudo.

Há uma espécie de riqueza que é inativa, pródiga e devotada ao prazer, cujo

beneficiário se comporta como um indivíduo efêmero de atividade sem propósito,

que encara o trabalho escravo dos outros, sangue e suor humanos, como a presa

de sua cupidez e vê a humanidade, e a si mesmo, como um ser supérfluo e votado

ao sacrifício. Assim, ele adquire um desprezo pela humanidade, expresso na forma

de arrogância e de malbaratamento de recursos que poderiam sustentar cem vidas

humanas, e também na forma da ilusão infame de que sua extravagância

irrefreada e interminável consumo improdutivo é condição indispensável ao

trabalho e à subsistência de outros. Ele vê a realização dos poderes essenciais do

homem apenas como a realização de sua própria vida desordenada, de seus

caprichos e de suas idéias inconstantes e bizarras. Tal riqueza, contudo, que vê a

riqueza somente como um meio, como algo a ser consumido, e que é, portanto,

tanto senhora como escrava, generosa como mesquinha, caprichosa, presunçosa,

vaidosa, refinada, culta e espirituosa, ainda não descobriu a riqueza como uma

força inteiramente estranha, mas vê nela seu próprio poder e fruição antes que

riqueza. . . meta final. [N3]

(XXI) . . .. e a fulgente ilusão acerca da natureza da riqueza, produzida por sua

estonteante aparência física, é defrontada pelo industrial trabalhador, sóbrio,

econômico e prosaico, que está esclarecido a respeito da natureza da riqueza e

que, embora incrementando a amplitude da vida regalada do outro e lisonjeando-o

com seus produtos (pois seus produtos são outros tantos ignóbeis mimos para os

apetites do perdulário), sabe como apropriar para si mesmo, da única maneira útil,

os poderes decadentes do outro. Malgrado, portanto, a riqueza industrial pareça à

primeira vista ser o produto de riqueza pródiga e fantástica, não obstante despoja 47

Page 48: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

o último de maneira ativa por seu próprio desenvolvimento. A queda da taxa de

juros é uma conseqüência necessária da evolução industrial. Assim, os recursos do

arrendatário esbanjador minguam proporcionalmente ao aumento dos meios e

oportunidades de divertimento. Ele se vê obrigado, seja a consumir seu capital e

arruinar-se, seja a tornar-se ele próprio um industrial. . . Por outro lado, há um

aumento constante da renda da terra no decorrer do progresso industrial, mas

consoante já vimos deve chegar uma hora em que a propriedade imobiliária, como

qualquer outra forma de propriedade, recai na categoria de capital que se

reproduz por meio do lucro - e isso é resultado do mesmo progresso industrial.

Assim, o perdulário proprietário de terras tem de entregar seu capital e arruinar-

se, ou então tornar-se um rendeiro de sua própria propriedade - um industrial

agrícola.

O declínio da taxa de juros (que Proudhon considera como abolição do capital e

uma tendência para a socialização do capital) é, pois, antes um sintoma direto da

vitória completa do capital ativo sobre a riqueza pródiga, i. é, a transformação de

toda propriedade privada em capital industrial. É a vitória completa da

propriedade privada sobre suas qualidades aparentemente humanas, e a

submissão total do dono da propriedade à essência da propriedade privada - o

trabalho. É evidente que o capitalista industrial também tem seus prazeres. Ele

não retorna absolutamente a uma simplicidade antinatural em suas necessidades,

mas sua fruição é somente questão secundária; é recreação subordinada à

produção, e, assim, um divertimento calculado, econômico, pois ele anota seus

prazeres como um desembolso de capital e o que esbanja não deve ser mais do que

pode ser substituído com lucros pela reprodução do capital. Destarte, o

divertimento fica subordinado ao capital e o indivíduo amante de prazeres e sujeito

ao acumulador de capital, enquanto outrora ocorria o contrário. A queda da taxa

de juros é, por conseguinte, um mero sintoma de abolição do capital, na medida

em que é um sintoma de seu crescente domínio e alienação que acelera sua

própria abolição. De maneira geral, essa e a única maneira pela qual o que existe

afirma seu contrário.

A disputa entre economistas a respeito de luxo e poupança, portanto, é apenas

uma disputa entre a economia política que se deu bem conta da natureza da

riqueza e a que ainda está sobrecarregada com recordações românticas, anti-

industriais. Nenhum dos lados, entretanto, sabe como expressar o assunto da

disputa em termos simples, ou é capaz, por conseguinte, de resolver a pendenga.

48

Page 49: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Além disso, a renda da terra, qua renda da terra, foi posta abaixo, pois contra a

argumentação dos Fisiocratas de ser o dono da terra o 'único produtor legítimo, a

economia moderna demonstra, antes, que o dono da terra como tal é o único

arrendatário completamente improdutivo. A agricultura é um negócio do

capitalista, que emprega seu capital nela quando pode contar com uma taxa de

lucro normal. A afirmação dos Fisiocratas de que a propriedade agrária, como

única propriedade produtiva, devia ser a única a pagar impostos e, em

conseqüência, ser a única a aprová-los e a participar dos negócios públicos, é

transformada na convicção oposta de que os impostos sobre o arrendamento da

terra são os únicos impostos sobre um rendimento improdutivo e, assim, os únicos

não nocivos ao produto nacional. Está claro que sob este ponto de vista, nenhum

privilégio político para os proprietários de terras decorre de sua situação como

principais contribuintes de impostos.

Tudo o que Proudhon concebe como um movimento do trabalho contra o

capital é somente o movimento do trabalho sob a forma de capital, de capital

industrial contra o que não é consumido como capital, i. é, industrialmente. E a

esse movimento segue seu caminho triunfante, o caminho da vitória do capital

industrial. Ver-se-á que só quando o trabalho é concebido como a essência da

propriedade privada é que podem ser analisadas as características reais do

movimento econômico propriamente dito.

A sociedade, como é vista pelo economista, é a sociedade civil, em que cada

indivíduo é uma totalidade de necessidades e apenas existe para outra pessoa,

como esta existe para ele, na medida em que cada um é um meio para o outro. O

economista (como a política em seus direitos do homem) reduz tudo ao homem, i.

é, ao indivíduo, a quem ele despoja de todas as características com o fito de

classificá-lo como capitalista ou como trabalhador.

A divisão do trabalho é a expressão econômica do caráter social do trabalho no

quadro da alienação. Ou, visto ser o trabalho apenas uma expressão da atividade

humana no quadro da alienação, de atividade vital como alienação da vida, a

divisão do trabalho nada mais é que a instituição alienada da atividade humana

como uma real atividade da espécie ou a atividade do homem como um ente-

espécie.

Os economistas mostram-se muito confusos e contradizem-se a si mesmos

acerca da natureza da divisão do trabalho (que, naturalmente, tem de ser olhada

como uma força motivadora principal na produção da riqueza desde que o trabalho

49

Page 50: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

é reconhecido como a essência da propriedade privada), i. é, acerca da forma

alienada da atividade humana como atividade da espécie.

Adam Smith [N4] :

"A divisão do trabalho. . . não é originariamente o efeito de qualquer

sabedoria humana. . . E a conseqüência obrigatória, se bem que muito

lenta e gradativa, da propensão a barganhar, trocar e cambiar uma

coisa por outra. [Quer essa propensão seja um daqueles princípios

originais da natureza humana. . .] ou quer, como parece mais provável,

seja a conseqüência necessária das faculdades da razão e da fala [não

cabe aqui investigar]. É comum a todos os homens e não pode ser

encontrada em nenhuma outra raça de animais. . . [Em quase todas as

outras raças de animais, o indivíduo] quando atinge a maturidade está

inteiramente independente. . . Mas o homem tem oportunidade quase

constante para necessitar do auxílio de seus irmãos, e é em vão que ele

esperará obtê-lo unicamente da benevolência deles. É mais provável

que seja bem sucedido se puder interessar o egoísmo deles em seu

favor, mostrando-lhes que será vantajoso para eles fazer-lhe o que lhes

solicita. . . Não nos dirigimos à demência deles, mas a seu egoísmo, e

nunca falamos de nossas necessidades porém das vantagens deles

(págs. 12-13).

"Como é por meio de tratado, de troca e de compra que obtemos de

outros a maior parte dos bons ofícios de que mutuamente carecemos,

assim também é essa mesma disposição para negociar que

originariamente enseja a divisão do trabalho. Em uma tribo de

caçadores ou pastores, uma de terminada pessoa faz arcos e flechas,

por exemplo, com maior rapidez e perícia que qualquer outra.

Freqüentemente as troca por gado ou carne de veado com seus

companheiros, e acaba verificando que dessa maneira pode conseguir

mais gado ou carne de veado do que se fosse pessoalmente ao campo

para pegá-los. Tendo em vista seu interesse próprio, então, a

confecção de arcos e flechas passa a ser seu principal negócio. . .

(págs. 13-14) .

"A diferença de talentos naturais de homens diferentes. . . não é. . .

tanto a causa quanto o efeito da divisão do trabalho. . . Sem a

disposição para negociar, trocar e cambiar, cada homem teria que

50

Page 51: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

providenciar por si mesmo tudo que desejasse de necessário e

conveniente. Todos teriam de ter. . . o mesmo trabalho a fazer, e não

poderia ter havido essa diferença de ocupação, a única capaz de dar

margem a qualquer diferença grande de talentos (pág. 14).

"Assim como é essa distribuição que forma aquela diferença de

talentos. . . entre os homens, também é ela que torna útil tal diferença.

Muitas tribos de animais. . . da mesma espécie recebem da natureza

uma diferenciação de índole muito mais notável do que, precedendo o

costume e a educação, parece ter lugar entre os homens. Por natureza,

um filósofo não é no temperamento e na inclinação nem a metade

diferente de um carregador do que o é um mastim de um galgo, ou um

galgo de um spaniel, ou este último de um cão-pastor. Essas diferentes

tribos de animais, contudo, apesar de todas da mesma espécie, são de

pouca utilidade uma para a outra. O vigor do mastim (XXVI) não é,

pelo me nos, assistido seja pela agilidade do galope, seja. . . Os efeitos

desses diferentes temperamentos e talentos, à falta de capacidade ou

inclinação para trocar e cambiar, não podem ser congregados em um

cabedal comum, e em nada contribuem para melhor acomodação e

utilidade da espécie. Cada animal continua obrigado a sustentar-se e a

defender-se, separada e independentemente, e não obtém qualquer

gênero de superioridade dessa variedade de talentos com que a

natureza distinguiu seus semelhantes. Entre os homens, pelo

contrário, os mais diversos pendores são de utilidade mútua; os

diferentes produtos de seus respectivos talentos, graças à inclinação

geral para trocar, negociar e cambiar, são reunidos, por assim dizer,

em um cabedal comum, onde cada homem pode adquirir qualquer

parte da produção dos talentos de outros homens para que tenha

aplicação (págs. 14-15).

"Como é a capacidade de trocar que dá oportunidade à divisão do

trabalho, a extensão dessa divisão tem sempre de - ser limitada pela

extensão daquela capacidade, ou, por outras palavras, pela extensão

do mercado. Quando o mercado é muito pequeno, ninguém pode

encontrar qualquer estímulo para dedicar-se inteiramente a um

emprego, por falta de capacidade para cambiar a parte excedente de

seu próprio trabalho, acima e além de seu próprio consumo, por partes

análogas da produção do trabalho de outros homens para que tiver

aplicação." (pág. 15). 51

Page 52: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Num estágio adiantado da sociedade: "Todo homem, pois, vive por

meio da troca, ou torna-se, em certa medida. um mercador, e a própria

sociedade alcança o que é propriamente uma sociedade comercial"

(pág. 20). (Ver Deustutt de Tracy[N5]: "A sociedade é uma série de

trocas recíprocas; o comercio é toda a essência da sociedade.") A

acumulação de capital aumenta com a divisão do trabalho e vice-versa.

- Até aqui falou Adam Smith.

"Se toda família produzisse tudo o que consome, a sociedade poderia

prosseguir sem que tivesse lugar qualquer espécie de intercâmbio. Em

nosso estado adiantado de sociedade, a troca, apesar de não ser

fundamental, é indispensável."[N6] "A divisão do trabalho é um hábil

desdobramento das capacidades do homem; ela aumenta a produção

da sociedade - seu poder e seus prazeres - mas diminui a capacidade

de cada pessoa considerada individualmente. A produção não pode ter

lugar sem a troca."[N7]

- Assim falou J. B. Say.

"As faculdades intrínsecas do homem são sua inteligência e sua

capacidade física para trabalhar. As oriundas da situação da sociedade

consistem na capacidade para repartir o trabalho e distribuir tarefas

entre diferentes pessoas e no poder trocar os serviços e produtos que

constituem os meios de subsistência. O motivo que impele o homem a

dar seus serviços a outro é o interesse próprio; ele exige uma

retribuição pelos serviços prestados. O direito à propriedade privada

exclusiva é indispensável ao estabelecimento das trocas entre os

homens. . . Troca e divisão do trabalho são mutuamente

dependentes."[N8]

- Assim falou Skarbek.

Mill apresenta a troca aperfeiçoada - o comércio - como uma conseqüência da

divisão do trabalho:

"A atuação do homem pode ser reconstituída por elementos muito

simples. Ele não pode, com efeito, fazer mais nada se não produzir

movimento. Pode aproximar as coisas uma da outra, (XXXVII) e pode

separá-las uma da outra: as propriedades da matéria desincumbem-se

52

Page 53: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

do resto. . . No emprego do trabalho e da maquinaria, constata-se,

amiúde, que os efeitos podem ser aumentados pela distribuição hábil,

pela separação das operações que têm qualquer tendência a se

obstarem mutuamente, e pela conjugação de todas as operações que

podem ser feitas de modo a auxiliarem-se umas às outras. Como os

homens em geral não podem executar muitas operações diferentes

com a mesma rapidez e destreza com que pela prática aprendem a

executar algumas, é sempre vantajoso limitar tanto quanto possível o

número de operações impostas a cada um. Para dividir o trabalho, e

repartir os esforços dos homens e máquinas, com a máxima vantagem,

em muitos casos e necessário operar em grande escala; por outras

palavras, produzir as utilidades em grandes quantidades. E essa

vantagem que dá existência às grandes manufaturas, de que umas

poucas, instaladas nos locais mais convenientes, freqüentemente

abastecem não um país, porém muitos, com a quantidade desejada da

utilidade produzida."[N9]

- Assim falou Mill.

Toda a moderna Economia Política, entretanto, está acorde em que a divisão

do trabalho e riqueza da produção, a divisão do trabalho e acumulação de capital,

determinam-se mutuamente; e também que só a propriedade privada livre e

autônoma pode produzir a mais eficaz e extensiva divisão do trabalho.

O raciocínio de Adam Smith pode ser sintetizado da seguinte forma: a divisão

do trabalho confere a este uma capacidade de produção ilimitada. Ela se origina da

propensão a trocar e barganhar, uma propensão especificamente humana que

provavelmente não é acidental porém determinada pelo uso da razão e da fala. O

motivo dos que se empenham nas trocas não é a bondade, mas o egoísmo. A

diversidade dos talentos humanos é mais o efeito que a causa da divisão do

trabalho, i. é, do intercâmbio. Ademais, é só a última que torna útil essa

diversidade. As qualidades particulares das diferentes tribos dentro de uma

espécie animal são naturalmente mais pronunciadas que as diferenças de aptidões

e atividades dos seres humanos. Mas como os animais não são capazes de

estabelecer troca, a diversidade de atributos dos animais da mesma espécie,

porém de tribos diferentes, não beneficia qualquer animal individualmente. Os

animais são incapazes de combinar as varias qualidades de sua espécie, ou de

contribuir para a superioridade e conforto comum da espécie. Dá-se o contrario

com os homens, cujos mais diversos talentos e formas de atividade são úteis uns

53

Page 54: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

aos outros, porque eles podem reunir seus diferentes produtos em um cabedal

comum, de que cada homem pode comprar. Como a divisão do trabalho surge da

propensão a trocar, ela se desenvolve e é limitada pela extensão da troca, pela

extensão do mercado. Em condições adiantadas, todo homem é um mercador e a

sociedade é uma associação comercial. Say encara a troca como acidental e não

fundamental. A sociedade poderia existir sem ela. Torna-se indispensável em um

estágio adiantado da sociedade. Todavia, a produção não pode ocorrer sem ela. A

divisão do trabalho é um meio cômodo e útil, um hábil desdobramento das

faculdades humanas para a riqueza social, mas diminui a capacidade de cada

pessoa considerada individualmente. O último comentário é um progresso da parte

de Say.

Skarbek distingue as faculdades inatas individuais do homem, inteligência e

capacidade física para trabalhar, das oriundas da sociedade - troca e divisão do

trabalho, que se determinam mutuamente. A condição prévia indispensável da

troca, porém, é a propriedade privada. Skarbek exprime aqui objetivamente o que

dizem Smith, Say, Ricardo, etc., ao designar o egoísmo e o interesse próprio como

base da troca e o regateio comercial como a forma de troca essencial e adequada.

Mill representa o comércio como conseqüência da divisão do trabalho. Para

ele, a atividade humana reduz-se a movimento mecânico. A divisão do trabalho e o

uso de maquinaria promovem a abundância da produção. A cada indivíduo deve

ser dada a menor amplitude possível de operações. A divisão do trabalho e o uso

de maquinaria, por sua vez, exigem a produção em massa da riqueza, i. é, de

produtos. Essa é a razão para a manufatura em larga escala.

(XXXVIII) A consideração da divisão do trabalho e da troca é do máximo

interesse, posto que são a expressão perceptível, alienada, da atividade e

capacidades humanas como a atividade e as capacidades próprias de uma espécie.

Declarar que a propriedade privada é a base da divisão do trabalho e da troca

é simplesmente afirmar que o trabalho é a essência da propriedade privada; uma

afirmação que o economista não pode provar e que desejamos provar para ele. É

precisamente no fato de a divisão do trabalho e da troca serem manifestações da

propriedade privada que encontramos a prova, primeiro de que a vida humana

necessitava da propriedade privada para sua realização, e, segundo, que ela agora

exige a revogação da mesma.

54

Page 55: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

A divisão do trabalho e a troca são os dois fenômenos que levam o economista

a gabar o caráter social de sua ciência, enquanto, ao mesmo tempo,

inconscientemente exprime a natureza contraditória dessa ciência - o

estabelecimento da sociedade graças a interesses não-sociais, particulares.

Os fatores que temos de considerar agora são os seguintes: a propensão a

trocar - cuja base é o egoísmo - é encarada como a causa do efeito recíproco da

divisão do trabalho. Say considera a troca como não sendo fundamental para a

natureza da sociedade. A riqueza e a produção são explicadas pela divisão do

trabalho e pela troca. O empobrecimento e o desnaturamento da atividade

individual devido a divisão do trabalho, são admitidos. A troca e a divisão do

trabalho são reconhecidas como as fontes da grande diversidade dos talentos

humanos, que por sua vez se torna útil em decorrência da troca. Skarbek distingue

duas partes nas faculdades produtivas dos homens: 1) as aptidões específicas ou

habilidades, as individuais e inatas, e a sua inteligência; 2) as provindas não do

indivíduo real, mas da sociedade - a divisão do trabalho e a troca. Além disso, a

divisão do trabalho é limitada pelo mercado. O trabalho humano é simples

movimento mecânico; a maior parte é feita pelas propriedades materiais dos

objetos. O menor número possível de operações deve ser atribuído a cada

indivíduo. Fissão do trabalho e concentração do capital; a nulidade da produção do

indivíduo e a produção em massa de riqueza. Significado da propriedade privada

livre na divisão do trabalho.

Notas:

[2] Uma parte da página está rasgada neste ponto, e seguem-se fragmentos de seis linhas

que são insuficientes para reconstruir a passagem. - Nota do T. (retornar ao texto)

[3] O fim da página está rasgado e faltam várias linhas do texto. - Nota do T. (retornar ao

texto)

[4] As passagens seguintes são de A Riqueza das Nações, Livro I, Cap. II, III e IV. Marx

refere-se à tradução francesa: Recherches sur la nature et les causes de la richesse des

nations, por Adam Smith. Marx cita com omissões e em alguns casos, parafraseia o texto

original, usando a edição Everyman, colocando dentro de colchetes as partes que foram

parafraseadas. - Nota do T. (retornar ao texto)

55

Page 56: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

[5] Destutt de Tracy, Éléments d'idéologie. Traité de Ia volonté et ses effets:, Paris, 1826,

págs. 68, 78. (retornar ao texto)

[6] Jean-Baptiste, Say, Traité d'économie politique. 3éme édition, Paris, 1817. T. I, pág.

300. (retornar ao texto)

[7] Ibid, pág. 76. (retornar ao texto)

[8] F. Skarbek, Théorie des richesses sociales, suivie d'une bibliographie de l'économie

politique, Paris, 1829, T. I, págs. 25-27. (retornar ao texto)

[9 ] James Mill, Elemeats of Political Economy, Londres, 1821. Marx cita da traduçao

francesa por J. T. Parisot (Paris, 1823). - Nota do T. (retornar ao texto)

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Terceiro Manuscrito

Dinheiro

(XLI) Se os sentimentos, paixões, etc. do homem não são meras características

antropológicas no sentido mais restrito, mas sim afirmações verdadeiramente

ontológicas do ser (natureza), e se só são realmente afirmadas na medida em que

seu objetivo existe como um objeto dos sentidos, então é evidente:

(1) que seu modo de afirmação não e um só e imutável, mas, antes, que os

diversos modos de afirmação constituem o caráter distintivo de sua existência, de

sua vida. A maneira pela qual o objeto existe para eles é a forma distintiva de sua

gratificação;

(2) onde a afirmação sensorial é uma anulação direta do objeto em sua forma

independente (como ao beber, comer, trabalhar um objeto, etc), esta é a afirmação

do objeto;

56

Page 57: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

(3) na medida em que o homem, e daí também seus sentimentos, etc., são

humanos, a afirmação do objeto por outra pessoa também é sua gratificação

própria;

(4) só por meio da indústria evoluída, i. é, por meio da propriedade privada,

concretiza-se a essência ontológica das paixões humanas, em sua totalidade e

humanidade; a própria ciência do homem é um produto da autoformação do

homem graças à atividade prática;

(5) o significado da propriedade privada - liberta de sua alienação - é a

existência de objetos essenciais ao homem, como objetos de divertimento e

atividade.

O dinheiro, já que possui a propriedade de comprar tudo, de apropriar objetos

para si mesmo, é, por conseguinte o object par excellence . O caráter universal

dessa propriedade corresponde à onipotência do dinheiro, que é encarado como

um ser onipotente. . . o dinheiro é a proxeneta entre a necessidade e o objeto,

entre a vida humana e os meios de subsistência. Mas, o que serve de medianeiro à

minha vida também serve à existência de outros homens para mim. Ele é para mim

a outra pessoa.

"Com a breca! pernas, braços peito,

Cabeça, sexo, aquilo é teu;

Mas, tudo o que, fresco, aproveito,

Será por isso menos meu?

Se podes pagar seis cavalos,

As suas forças não governas?

Corres por morros, clivos, valos,

Qual possuidor de vinte e quatro pernas."

(GOETHE, Fausto, Mefistófeles)[N10]

Shakespeare em Tímon de Atenas:

"Que é isto? Ouro? Ouro amarelo, brilhante, precioso? Não, deuses: eu

não faço protestos vãos. Raízes quero, ó céus azuis! Um pouco disto

tornaria o preto branco; o feio, belo; o injusto, justo; o vil, nobre; o

velho, novo; o covarde, valente. Mas, oh, ó deuses! por que é isso? isto

que é, deuses? Isto fará com que os vossos sacerdotes e os vossos

servos se afastem de vós; isto fará arrancar o travesseiro de debaixo

das cabeças dos homens fortes. Este escravo amarelo fará e desfará

57

Page 58: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

religiões; abençoará os réprobos; fará prestar culto à alvacenta lepra;

assentará ladrões, dando-lhes título, genuflexões e aplauso, no mesmo

banco em que se assentam os senadores; isto é que faz com que a

inconsolável viuva contraia novas núpcias; e com que aquela, que as

úlceras purulentas e os hospitais tornavam repugnante, fique outra vez

perfumada e apetecível como um dia de abril. Anda cá, terra maldita,

meretriz, comum a toda a espécie humana, que semeia a desigualdade

na turba-malta das nações, vou devolver-te à tua verdadeira natureza."

E mais adiante:

"Ó tu, amado regicida; caro divorciador da mútua afeição do filho e do

pai; brilhante corruptor dos mais puros leitos do Himeneu! valente

Marte! tu, sempre novo, viçoso, amado galanteador, cujo brilho faz

derreter a virginal neve do colo de Diana! tu, deus visível, que tornas

os impossíveis fáceis, e fazes como que se beijem! que em todas as

línguas te explicas para todos os fins! Ó tu, pedra de toque dos

corações! trata os homens, teus escravos, como rebeldes, e, pela tua

virtude, arremessais a todos em discórdias devoradoras, a fim de que

as feras possam ter o mundo por império!"[N11]

Shakespeare retrata admiravelmente a natureza do dinheiro. Para entendê-lo,

comecemos interpretando o trecho de Goethe.

O que existe para mim por intermédio do dinheiro, aquilo por que eu posso

pagar (i. é, que o dinheiro pode comprar), tudo isso sou eu, o possuidor de meu

dinheiro. Meu próprio poder é tão grande quanto o dele. As propriedades do

dinheiro são as minhas próprias (do possuidor) propriedades e faculdades. O que

eu sou e posso fazer, portanto, não depende absolutamente de minha

individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher para mim.

Consequentemente, não sou feio, pois o efeito da feiúra, seu poder de repulsa, é

anulado pelo dinheiro. Como indivíduo sou coxo, mas o dinheiro proporciona-me

vinte e quatro pernas; logo, não sou coxo. Sou um homem detestável, sem

princípios, sem escrúpulos e estúpido, mas o dinheiro é acatado e assim também o

seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, e por isso seu possuidor é bom. Além

do mais, o dinheiro poupa-me do trabalho de ser desonesto; por conseguinte, sou

presumivelmente honesto. Sou estúpido, mas como o dinheiro é o verdadeiro

cérebro de tudo, como poderá seu possuidor ser estúpido? Outrossim, ele pode

comprar pessoas talentosas para seu serviço e não é mais talentoso que os

58

Page 59: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

talentosos aquele que pode mandar neles? Eu, que posso ter, mediante o poder do

dinheiro, tudo que o coração humano deseja, não possuo então todas as

habilidades humanas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas

incapacidades em seus contrários?

Se o dinheiro é o laço que me prende à vida humana, e a sociedade a mim, e

me liga à natureza e ao homem, não é ele o laço de todos os laços? Não é ele

também, portanto, o agente universal da separação? Ele é o meio real tanto de

separação quanto de união, a força galvano-química da sociedade.

Shakespeare ressalta particularmente duas propriedades do dinheiro:

(1) ele é a divindade visível, a transformação de todas as qualidades humanas e

naturais em seus antônimos, a confusão e inversão universal das coisas; ele

converte a incompatibilidade em fraternidade;

(2) ele é a meretriz universal, o alcoviteiro universal entre homens e nações.

O poder de inverter e confundir todos os atributos humanos e naturais, de

levar os incompatíveis a confraternizarem, o poder divino do dinheiro reside em

seu caráter como a vida espécie alienada e auto-alienadora do homem. Ele é a

força alienada da humanidade.

O que sou incapaz de fazer como homem, e, pois, o que todas as minhas

faculdades individuais são incapazes de fazer, me é possibilitado pelo dinheiro. O

dinheiro, por conseguinte, transforma cada uma dessas faculdades em algo que ela

não é, em seu antônimo.

Se estou com vontade de comer, ou desejo de viajar na diligência da posta por

não ser bastante forte para ir a pé, o dinheiro proporciona-me a refeição e a

diligência, i. é, ele transforma meus desejos de representações em realidades, de

seres imaginários em seres reais. Atuando assim como mediador, o dinheiro é uma

força genuinamente criadora.

A procura também existe para o indivíduo sem dinheiro, mas sua procura é

mera criatura da imaginação, que não tem efeito nem existência para mim, para

um terceiro, para. . . (XLIII) e que, assim, permanece irreal e sem objeto. A

diferença entre a procura efetiva, apoiada pelo dinheiro, e a inefetiva, baseada em

minhas necessidades, minha paixão, meu desejo, etc., é a diferença entre ser e

59

Page 60: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

pensar, entre a representação meramente interior e a representação existente fora

de mim mesmo como objeto real.

Se não disponho de dinheiro para viajar, não tenho necessidade - nenhuma

necessidade real e auto-realizável - de viajar. Se tenho vocação para estudar, mas

não disponho do dinheiro para isso, então não tenho vocação, i. é, não tenho

vocação efetiva, legítima. O dinheiro é o meio e poder, externo e universal (não

oriundo do homem como homem ou da sociedade humana como sociedade) para

mudar a representação em realidade e a realidade em mera representação. Ele

transforma faculdades humanas e naturais reais em meras representações

abstratas, i. é, imperfeições e torturantes quimeras; e, por outro lado, transforma

imperfeições e fantasias reais, faculdades deveras importantes e só existentes na

imaginação do indivíduo, em faculdades e poderes reais. A esse respeito, portanto,

o dinheiro é a inversão geral das individualidades, convertendo-as em seus opostos

e associando qualidades contraditórias às qualidades delas.

O dinheiro, então, aparece como uma força demolidora para o indivíduo e para

os laços sociais, que alegam ser entidades auto-subsistentes. Ele converte a

fidelidade em infidelidade, amor em ódio, ódio em amor, virtude em vício, vício em

virtude, servo em senhor, boçalidade em inteligência e inteligência em boçalidade.

Posto que o dinheiro, como conceito existente e ativo do valor, confunde e

troca tudo, ele é a confusão e transposição universais de todas as coisas, o mundo

invertido, a confusão e transposição de todos os atributos naturais e humanos.

Aquele que pode comprar a bravura é bravo, malgrado seja covarde. O

dinheiro não é trocado por uma qualidade particular, uma coisa particular ou uma

faculdade humana especifica, porém por todo o mundo objetivo do homem e da

natureza. Assim, sob o ponto de vista de seu possuidor, ele troca toda qualidade e

objeto por qualquer outro, ainda que sejam contraditórios. Ele é a confraternização

dos incomparáveis; força os contrários a abraçarem-se.

Suponhamos que o homem seja homem e que sua relação com o mundo seja

humana. Então, o amor só poderá ser trocado por amor, confiança, por confiança,

etc. Se se desejar apreciar a arte, será preciso ser uma pessoa artisticamente

educada; se se quiser influenciar outras pessoas, será mister se ser uma pessoa

que realmente exerça efeito estimulante e encorajador sobre as outras. Todas as

nossas relações com o homem e com a natureza terão de ser uma expressão

específica, correspondente ao objeto de nossa escolha, de nossa vida individual

60

Page 61: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

real. Se você amar sem atrair amor em troca, i. é, se você não for capaz, pela

manifestação de você mesmo como uma pessoa amável, fazer-se amado, então seu

amor será impotente e um infortúnio.

Notas:

[10] Goethe, Fausto, Parte 1, Cena 4. Esta passagem foi tirada da trad. por Bayard Taylor,

The Modem Library, Nova York, 1950 - N. do T (N. do T. - Em português, recorremos à

trad. de Jenny Klabin Segail, S. Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949, pàg. 106.)

(retornar ao texto)

[11] Shakespeare, Timon of Athens, Act Iv, Scene 3. Marx citou a traduçao (alemã) de

Schlegel-Tieck. - Nota do T. (N. do T. - Recorremos à tradução portuguesa de Henrique

Braga, Pôrto, Livraria Chardron, de Leilo & Irmao, 1913, págs. 119 e 145.) (retornar ao

texto)

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

Terceiro Manuscrito

Crítica da Filosofia Dialética e Geral de Hegel

(6) Este talvez seja um ponto apropriado a explicar e substanciar o que foi dito,

e a tecer certos comentários gerais a respeito da dialética de Hegel, especialmente

como se acha exposta na Fenomenologia e na Lógica, e a respeito de sua relação

com o moderno movimento crítico.

A crítica alemã moderna tem estado tão preocupada com o passado, e tão

tolhida por seu enredamento com o tema, que tinha uma atitude totalmente pouco

crítica face aos métodos de crítica e ignorava completamente a pergunta, em parte

61

Page 62: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

formal, mas de fato essencial qual nossa posição relativamente à dialética

hegeliana? Essa ignorância da relação da crítica moderna com a filosofia geral de

Hegel, e em particular com a dialética, era tão grande que críticos como Strauss e

Bruno Bauer (o primeiro em todos os seus trabalhos; o último em seu Synoptiker,

onde em oposição a Strauss, ele substitui a "autoconsciência" do homem abstrato

pela substância da - "natureza abstrata", e mesmo em Das entdeckte Christentum)

viram-se, pelo menos implicitamente, presos na armadilha da lógica hegeliana.

Assim, por exemplo, em Das entdeckte Christentum, argumenta-se: "Como se a

autoconsciência ao postular o mundo, o que é diferente, não se produzisse a si

mesma ao produzir seu objeto; pois então ela anula a diferença entre si mesma e o

que produziu, já que só tem existência nessa criação e movimento, só tem sua

finalidade nesse movimento, etc." Ou então: "Eles (os materialistas franceses) não

podiam ver que o movimento do universo só se tornou real e unificado em si

mesmo na medida em que é o movimento da autoconsciência." Essas expressões

não só não diferem do conceito hegeliano, como o reproduzem textualmente.

(XII) Quão pouco esses autores, ao empreenderem sua crítica (Bauer em seu

Synoptiker) se davam conta de sua relação com a dialética de Hegel, e quão pouco

essa percepção brotou de sua crítica, é demonstrado por Bauer em seu Gute Sache

der Freiheit quando, em vez de responder à pergunta indiscreta feita por Gruppe,

"E agora, o que fazer com a lógica?", ele a transfere a futuros críticos.

Agora que Feuerbach, em sua "Thesen" em Anecdotis, e com maior minúcia em

sua Philosophie der Zukunft, demoliu o princípio interior da dialética e da filosofia

antigas, a "Escola Crítica", que foi incapaz de fazer isso por si mesma mas viu-o

realizado, proclamou-se a crítica pura, decisiva, absoluta e finalmente esclarecida,

e em sua soberba espiritual reduziu todo o movimento histórico à relação existente

entre ela mesma e o resto do mundo, enquadrado na categoria de a massa". Ela

reduziu todas as antíteses dogmáticas a única antítese dogmática entre sua

própria sagacidade e a estupidez do mundo, entre o Cristo crítico e a humanidade -

a ralé. Em todos os instantes do dia, demonstrou sua própria excelência vis-à-vis a

estultícia da massa, e anunciou, finalmente, o juízo final crítico, proclamando estar

iminente o dia em que toda a humanidade decaída se reunirá diante dela e será

dividida em grupos, a cada um dos quais será entregue o respectivo testimoniu

paupertatis (certificado de pobreza). A Escola Critica tornou pública sua

superioridade sobre todos os sentimentos humanos e o mundo, acima do qual ela

está sentada num trono em sublime solidão, contente de ocasional mente deixar

escapar dos lábios o riso dos deuses do Olimpo. Após todas essas momices

divertidas do idealismo (do Jovem Hegelianismo) que está expirando sob a forma 62

Page 63: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

de crítica, a Escola Crítica ainda nem insinuou até agora ser necessário examinar

criticamente sua própria fonte, a dialética de Hegel, nem deu qualquer indicação

de sua relação com a dialética de Feuerbach. Esse é um procedimento

completamente desprovido de senso crítico.

Feuerbaché a única pessoa que tem uma relação séria e critica com a dialética

de Hegel, efetuou descobrimentos verdadeiros nesse campo e, acima de tudo,

levou de vencida a velha filosofia. A grandeza do feito de Feuerbach e a modesta

simplicidade com que apresenta sua obra ao mundo, contrastam incrivelmente

com a conduta de outros:

A grande realização de Feuerbach é:

(1) ter mostrado a filosofia nada mais ser do que a religião trazida para o

pensamento e desenvolvida por este, de vendo ser igualmente condenada como

outra forma e modo de existência da alienação humana;

(2) ter lançado os fundamentos do materialismo genuíno e da ciência positiva,

ao fazer da relação social de "homem com homem" o principio básico de sua teoria;

(3) ter-se oposto à negação da negação que alega ser o positivo absoluto um

princípio auto-suficiente, positivamente baseado em si mesmo.

Feuerbach explica a dialética de Hegel e, ao mesmo tempo, justifica a adoção

do fenômeno positivo, aquele que é perceptível e indubitável, como ponto de

partida, da seguinte maneira: Hegel principia pela alienação da substância

(logicamente, pelo infinito, pelo universal abstrato), pela abstração absoluta e fixa;

i. é, em linguagem comum, pela religião e pela teologia. Em segundo lugar,

cancela o infinito e postula o real, o perceptível, o finito e o particular. (Filosofia,

cancelamento da religião e da teologia.) Em terceiro lugar, a seguir revoga o

positivo e restabelece a abstração, o infinito. (Restabelecimento da religião e da

teologia.)

Destarte, Feuerbach concebe a negação da negação como sendo apenas uma

contradição dentro da própria filosofia, que afirma a teologia (transcendência, etc.)

após tê-la anulado, e assim a afirma em oposição à filosofia.

Pois o postulado ou auto-afirmação e autoconfirmação implícito na negação da

negação é encarado como um postulado ainda incerto, oprimido pelo seu contrário,

duvidando de si mesmo e por isso incompleto, não demonstrado por sua própria

63

Page 64: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

existência, e implícito. (XIII) O postulado perceptualmente indubitável e alicerçado

em si mesmo, opõe-se-lhe diretamente.

Ao conceber a negação da negação, sob o aspecto da relação positiva a ela

inerente, como a única verdadeiramente positiva, e sob o aspecto da relação

negativa a ela inerente, como o único ato verdadeiro, e que se confirma a si

próprio, de todo o ser, Hegel descobriu simplesmente uma expressão abstrata,

lógica e especulativa do processo histórico, que ainda não é a verdadeira história

do homem como um dado sujeito, mas apenas a história do ato de criação, da

gênese do homem.

Explicaremos tanto a forma abstrata desse processo quanto a diferença entre o

processo como foi ideado por Hegel e pela crítica moderna, e por Feuerbach em

Das Wesen des Christentums; ou melhor, a forma crítica desse processo, ainda tão

pouco crítico em Hegel.

Examinemos o sistema de Hegel. É necessário começar pela Fenomenologia,

porque aí nasceu a filosofia de Hegel e aí seu segredo tem de ser descoberto.

Fenomenologia

A. Autoconsciência

1. Consciência.

(a) Certeza da experiência sensorial, ou o "isto" e o significado.

(b) Percepção, ou a coisa com suas propriedades, e ilusão.

(c) Poder e compreensão, fenômenos e o mundo supra-sensível.

II. Autoconsciência. A verdade da certeza de si mesmo.

(a) Independência e dependência da autoconsciência, dominação e

servidão.

(b) Liberdade da autoconsciência. Estoicismo, ceticismo, a consciência

infeliz.

III. Razão. Certeza e verdade da razão.

(a) Razão perceptível: observação da natureza e da autoconsciência.

(b) Auto-realização da autoconsciência racional. Prazer e necessidade. A

lei do coração e o frenesi da vaidade. A virtude e a trajetória do mundo.

(c) A individualidade que é real em si e para si mesma. O reino animal

espiritual e a burla, ou a própria coisa. Razão legislativa. Razão que põe

à prova as leis.

B. Espirito

I- Espírito verdadeiro; moral consuetudinária.

II- Espírito auto-alienado; cultura.

III- O espírito certo de si mesmo; moral.

C. Religião 64

Page 65: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Religião natural, a religião da arte, religião revelada.

D. Conhecimento absoluto.

A Encyclopaedia de Hegel começa com a lógica, com o pensamento

especulativo puro, e termina com o conhecimento absoluto, a inteligência filosófica

ou absoluta, autoconsciente e capaz de conceber a si mesma, i. é, a inteligência

sobre-humana, abstrata. O conjunto da Encyclopaedia nada mais é que o ser

prolongado da inteligência filosófica, sua auto-objetificação; e a inteligência

filosófica nada mais é do que a inteligência alienada do mundo pensando dentro

dos limites de sua auto-alienação, i. é., concebendo-se a si mesma de forma

abstrata. A lógica é o dinheiro da mente, o valor-pensamento especulativo do

homem e da natureza cuja essência é indiferente a qualquer caráter real

determinado e, portanto, irreal; o pensamento que é alienado e abstrato e ignora o

homem e a natureza reais. O caráter externo desse pensamento abstrato. . . a

natureza como existe para esse pensamento abstrato. A natureza é externa a ele,

uma privação dele mesmo, e só concebida como algo externo, como pensamento

abstrato, mas pensamento abstrato alienado. Finalmente, o espírito, esse

pensamento retornando à própria origem e que, como espírito antropológico,

fenomenológico, psicológico, consuetudinário, artístico-religioso, não é válido para

si mesmo até se descobrir e relacionar-se com conhecimento absoluto no espírito

absoluto (i. é, abstrato), quando recebe sua existência consciente e adequada. Pois

seu verdadeiro modo de existência é a abstração.

Hegel comete um duplo erro. O primeiro aparece mais claramente na

Fenomenologia o berço de sua filosofia. Quando Hegel concebe a riqueza, o poder

do Estado, etc., como entidades alienadas do ser humano, ele as concebe somente

em sua forma de noções. Elas são entes de razão e, assim, simplesmente uma

alienação do pensamento puro (i. é, filosófico abstrato). O movimento inteiro, por

conseguinte, acaba no conhecimento absoluto. É exatamente o pensamento

abstrato de que esses objetos se acham alienados e enfrentam com sua presunçosa

realidade. O filósofo, ele próprio uma forma abstrata de homem alienado, instala-se

a si mesmo como a medida do mundo alienado. Toda a história da alienação, e do

retraimento da alienação, portanto, é apenas a história da produção de

pensamento abstrato, i. é, de pensamento absoluto, lógico, especulativo. O

alheamento, que assim forma o verdadeiro interesse dessa alienação e da

revogação dessa alienação, é a oposição de em si e para si, de consciência e

autoconsciência, de objeto e sujeito, i. é, a oposição, no próprio pensamento, entre

pensamento abstrato e realidade sensível ou existência sensorial real. Todas as

outras contradições e movimentos são a mera aparência, a máscara, a forma

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Page 66: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

exotérica desses dois opostos, os únicos importantes e que constituem a

significância do outro, contradições profanas. Não é o fato de o ser humano

objetificar-se desumanamente, em oposição a si mesmo, mas o de ele objetificar-se

distinguindo-se e opondo-se ao pensamento abstrato, que constitui alienação como

existe e como tem de ser transcendida.

(XVIII) A apropriação das faculdades objetificadas e alienadas do homem é,

pois, em primeiro lugar, apenas uma apropriação efetuada na consciência, no

pensamento puro, i. é, em abstração. E a apropriação desses objetos como

pensamentos e como movimentos do pensamento. Por essa razão, a despeito de

sua aparência perfeitamente negativa e crítica, e a despeito da critica genuína nela

encerrada freqüentemente antecipar progressos ulteriores, já estão implícitos na

Fenomenologia, como germe, potencialidade e segredo, o positivismo e idealismo

não-críticos de obras posteriores de Hegel - a dissolução filosófica e restauração do

mundo empírico existente. Em segundo lugar, a defesa do mundo objetivo para o

homem (por exemplo, o reconhecimento da percepção dos sentidos não ser

percepção sensorial abstrata, mas percepção sensorial humana, de a religião, a

riqueza, etc., serem apenas a realidade alienada da objetificação humana, de

faculdades humanas postas em ação e, portanto, um caminho para a realidade

humana genuína), essa apropriação, ou o discernimento desse processo, aparece

em Hegel como o reconhecimento do sensacionalismo, religião, poder estatal, etc.,

como fenômenos mentais, pois só a mente é a verdadeira essência do homem, e a

verdadeira forma da mente é a mente pensante, a mente lógica e especulativa. O

caráter humano da natureza, da natureza produzida historicamente, dos produtos

do homem, é demonstrado por eles serem produtos da mente abstrata e, pois,

fases da mente, entes de razão. A Fenomenologia é uma crítica velada, obscura e

mistificadora, mas, na medida em que concebe a alienação do homem (conquanto o

homem apareça exclusivamente como mente) todos os elementos da crítica acham-

se nela contidos, e são amiúde apresentados e trabalhados de forma que

ultrapassa de longe o ponto de vista do próprio Hegel. As seções dedicadas à

consciência infeliz", à "consciência honesta", à porfia entre a consciência "nobre" e

a "vil", etc., etc., encerram os elementos críticos (se bem que ainda sob forma

alienada) de áreas inteiras, como a religião, o Estado, a vida civil, etc. Assim como

a entidade, o objeto, aparece como um ente de razão, também o sujeito é sempre a

consciência ou autoconsciência; ou melhor, o objeto aparece apenas como

consciência abstrata e o homem como autoconsciência. Assim, as formas

distintivas da alienação manifestadas são meras formas diferentes de consciência e

autoconsciência. Com a consciência abstrata (a forma em que o objeto é

66

Page 67: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

concebido) é em si mesma unicamente um momento distintivo da autoconsciência,

o resultado do movimento é a identidade de autoconsciência e consciência -

conhecimento absoluto - o movimento do pensamento abstrato não se voltando

para fora, mas para dentro de si mesmo; i. é, daí resulta a dialética do pensamento

puro.

(XXIII) A proeza extraordinária da Fenomenologia de Hegel - a dialética do

negativismo como principio motor e criador - é, primeiramente, Hegel perceber a

autocriação do homem como um processo, a objetificação como perda do objeto,

como alienação e transcendência dessa alienação, e, por isso, perceber a natureza

do trabalho, e conceber o homem objetivo (verdadeiro, porque real) como o

resultado de seu próprio trabalho. A orientação real, ativa, do homem para si

mesmo como ente-espécie, ou a afirmação de si mesmo como verdadeiro ente-

espécie (i. é, como ser humano) só é possível na medida em que ele de fato põe em

ação todas as potencialidades da espécie (o que somente é possivel graças à

cooperação da humanidade e como produto da História) e trata esses poderes

como objetos, o que de inicio só pode ser feito sob a forma de alienação.

Mostraremos, a seguir, pormenorizadamente, o unilateralismo e as limitações

de Hegel, como são revelados no capitulo final de sua Fenomenologia sobre o

conhecimento absoluto, capítulo esse que contém o espírito concentrado de todo o

livro, sua relação com a dialética, e também a consciência do próprio Hegel quanto

a ambas e à sua inter-relação.

No momento, façamos estas observações preliminares: o ponto de vista de

Hegel é o da moderna Economia Política. Ele concebe o trabalho como a essência,

a essência autoconfirmadora do homem; observa somente o aspecto positivo do

trabalho, não o seu aspecto negativo. O trabalho é a marcha do homem para se

tornar ele próprio dentro da alienação, ou como homem alienado. Assim, o que

acima de tudo constitui a essência da filosofia, a alienação do homem conhecendo-

se a si mesmo, ou a ciência alienada concebendo-se a si mesma, Hegel percebe

como essência dela. Consequentemente, ele fica em condições de reunir os

elementos separados da filosofia anterior e apresentar a sua própria como sendo a

Filosofia. O que outros filósofos fizeram, isto é, conceber elementos isolados da

natureza e da vida humana, como fases da autoconsciência e, deveras, da

autoconsciência abstrata, Hegel sabe por fazer filosofia; por conseguinte, sua

ciência é absoluta.

Passemos agora ao nosso tema:

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Page 68: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Conhecimento absoluto

O capítulo final da Fenomenologia

O ponto capital é o objeto da consciência nada mais ser do que

autoconsciência, o objeto ser apenas autoconsciência objetificada, autoconsciência

como um objeto. (Homem que postula = autoconsciência.)

É necessário, pois, vencer o objeto da consciência. A objetividade como tal é

considerada apenas uma relação humana alienada não correspondente à essência

do homem, a autoconsciência. A reapropriação da essência objetiva do homem,

produzida como algo alheio ao homem e determinado pela alienação, significa a

revogação não só da alienação mas também da objetividade; isto é, o homem é

visto como um ser não-objetivo, espiritual.

A processo de superação do objeto da consciência é descrito por Hegel da

seguinte maneira: o objeto não se revela apenas como retornando ao Eu (segundo

Hegel, essa é uma concepção unilateral do movimento, considerando somente um

aspecto). O homem e igualado ao eu. O Eu, no entanto, é apenas o homem

concebido abstratamente e produzido por abstração. O homem é auto-referível.

Seu olho, seu ouvido, etc., são auto-referíveis; todas as suas faculdades possuem

essa qualidade de auto-referência. É inteiramente falso, todavia, dizer, por isso, "A

autoconsciência tem olhos, ouvidos, faculdades." A autoconsciência é antes uma

qualidade da natureza humana, do olho humano, etc.; a natureza humana não e

uma qualidade da (XXIV) autoconsciência.

O Eu, abstraído e determinado por si mesmo, é o homem como um egoísta

abstrato, egoísmo puramente abstrato elevado ao plano do pensamento.

(Voltaremos a esse ponto mais adiante.)

Para Hegel, a vida humana, o homem, é equivalente a autoconsciência. Toda a

alienação da vida humana é, assim, nada mais que alienação da autoconsciência. A

alienação da autoconsciência não é vista como a expressão, refletida no

conhecimento e no pensamento, da verdadeira alienação da vida humana. Ao

invés, a alienação efetiva, que parece real, em sua mais íntima natureza oculta

(que é pela primeira vez desvendada pela filosofia) é apenas a existência

fenomenal da alienação da vida humana real, da autoconsciência. A ciência que

abrange isso é, por conseguinte, denominada Fenomenologia. Toda reapropriação

da vida objetiva alienada aparece, assim, como uma incorporação à

autoconsciência. A pessoa que se apodera do ser humano é apenas a

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Page 69: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

autoconsciência que se apodera do ser objetivo; a volta do objeto para dentro do

Eu, portanto, é a reapropriação do objeto.

Expressa de maneira mais lata, a revogação do objeto da consciência significa:

(1) que o objeto como tal se apresenta à consciência como algo que desaparece; (2)

que é a alienação da autoconsciência que estabelece o característico de "coisa"; (3)

que essa alienação tem significado positivo assim como negativo; (4) que ela tem

esse significado não apenas para nós ou em si, mas também para a própria

autoconsciência; (5) que para a autoconsciência a negação do objeto, sua

revogação, tem significado positivo, ou a autoconsciência conhece a nulidade do

objeto porquanto ela se aliena a si mesma, pois nessa alienação ela se estabelece

como objeto ou, em prol da união indivisível de existir por si mesma, estabelece o

objeto como ela própria; (6) que, por outro lado, esse outro "momento" está

igualmente presente, a auto consciência revogou e reabsorveu essa alienação

objetivamente, e está, assim, em casa em seu outro ser como tal; (7) que esse e o

movimento da consciência, e esta é, então, a totalidade de seus "momentos"; (8)

que, analogamente, a consciência deve ter-se relacionado com o objeto em todas

as suas determinações, e tê-lo concebido em função de cada uma delas. Essa

totalidade de determinações faz o objeto intrinsecamente, um ser espiritual, e ele

se torna assim, deveras, para a consciência, pela apreensão de cada uma dessas

determinações como o Eu, ou pelo que foi anteriormente chamado de atitude

espiritual para com elas.

ad (1) Que o objeto como tal se apresenta à consciência como algo que

desaparece, é a acima mencionada volta do objeto para o Eu.

ad (2) A alienação da autoconsciência estabelece o característico de "coisa".

Porque o homem se iguala à autoconsciência, seu ser objetivo alienado ou "coisa" e

equivalente à autoconsciência alienada, e essa alienação estabelece a situação de

"coisa". ("Coisa" é o que é um objeto para ele, e um objeto para ele só é realmente

aquilo que é um objeto essencial, consequentemente essência objetiva dele mesmo.

E como ela não é o homem verdadeiro, nem sua natureza - o homem sendo

natureza humana - que se torna como tal um sujeito, mas apenas uma abstração do

homem, a autoconsciência, a "coisa" só pode ser autoconsciência alienada.) É bem

compreensível um ser natural, vivo, dotado de faculdades objetivas (i. é, materiais)

ter objetos naturais reais de seu ser, e igualmente sua auto-alienação ser o

estabelecimento de um mundo objetivo, real, mas sob a forma de exterioridade,

como um mundo que não pertence a, e domina, o seu ser. Nada há de ininteligível

ou de misterioso acerca disso. O inverso, sim, seria misterioso. Mas, é igualmente

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Page 70: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

claro que uma autoconsciência, i. é, sua alienação, só pode estabelecer a situação

de "coisa", i. é, somente uma coisa abstrata, uma coisa criada pela abstração e não

uma coisa real. É claro (XXVI), ademais, que a situação de "coisa" carece

totalmente de independência, em ser, vis-à-vis, a autoconsciência; e um mero

construto estabelecido pela autoconsciência. E o que é estabelecido não é

confirmável por si mesmo; é a confirmação do ato de estabelecimento que, por um

instante, e só por um instante, fixa sua energia como produto e, aparentemente,

confere-lhe o papel de ser independente e real.

Quando o homem real, corpóreo, com os pés firmemente plantados no chão,

aspirando e expirando todas as forças da natureza, postula suas faculdades

objetivas reais, como resultado de sua alienação, como objetos alienados, o

postulador não é o sujeito desse ato mas a subjetividade da faculdade objetiva cuja

ação, pois, também deve ser objetiva. Um ser objetivo age objetivamente, e não

agiria objetivamente se a objetividade não fizesse parte de seu ser essencial. Ele

cria e estabelece apenas objetos porque é estabelecido por objetos e porque é

fundamentalmente natural. No ato de estabelecer, não desce de sua "atividade

pura" para a criação de objetos; seu produto objetivo simplesmente confirma sua

atividade objetiva, sua atividade como ser natural, objetivo.

Vemos aqui como o naturalismo ou humanismo coerente se distingue tanto do

idealismo como do materialismo e, ao mesmo tempo, constitui a sua verdade

unificadora. Vemos, também, como só o naturalismo está em condições de

compreender o processo da história mundial.

O homem é diretamente um ser natural. Como tal, e como ser natural vivo, ele

é, de um lado, dotado de poderes e forças naturais, nele existentes como

tendências e habilidades, como impulsos. Por outro lado, como ser natural, dota

dotado de corpo, sensível e objetivo, ele é um ser sofredor, condicionado e

limitado, como os animais e vegetais. Os objetos de seus impulsos existem fora

dele como objetos dele independentes; sem embargo, são objetos das necessidades

dele, objetos essenciais indispensáveis ao exercício e a confirmação de suas

faculdades. O fato de o homem ser dotado de corpo, vivo, real, sensível e objetivo,

com poderes naturais, significa ter objetos reais e sensíveis como objetos de seu

ser, ou só poder expressar seu ser em objetos reais e sensíveis. Ser objetivo,

natural, sensível e, ao mesmo tempo, ter objeto, natureza e sentidos fora de si

mesmo, ou ser ele mesmo objeto, natureza e sentidos para um terceiro, é a mesma

coisa. A fome é uma necessidade natural; ela exige, portanto, uma natureza a ela

extrínseca, um objeto a ela extrínseco, a fim de ser satisfeita e aplacada. A fome e

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Page 71: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

a necessidade objetiva que um corpo tem de um objeto existente fora dele e

essencial para sua integração e a expressão de sua natureza. O sol é um objeto, um

objeto necessário e assegurador de vida para a planta, tal como a planta é um

objeto para o sol, uma expressão do poder vivificador e dos poderes essenciais

objetivos do sol.

Um ser que não tenha sua natureza fora de si mesmo não é um ser natural e

não compartilha da existência da natureza. Um ser sem objeto fora de si mesmo

não é um ser objetivo. Um ser que não seja, ele próprio, o objeto para um terceiro

ser, não possui ser para seu objeto, i. é, não é relacionado objetivamente e seu ser

não é objetivo.

(XXVII) Um ser não-objetivo é um não-ser. Suponhamos um ser que não seja

objeto por si mesmo nem tenha objeto. Em primeiro lugar, um ser assim seria o

único ser; nenhum outro existiria fora dêle, e êle estaria sôzinho e solitário. Pois,

desde que existam objetos fora de mim, logo que eu não esteja só, sou um outro,

uma outra realidade com relação ao objeto exterior a mim. Para êsse terceiro

objeto, portanto, sou uma outra realidade, que não é, i. é, o objeto dele. Supor um

ser que não é objeto de outro, seria supor não existir ser objetivo nenhum. Logo

que tenho um objeto, êsse objeto tem a mim para objeto dêle. Um ser não-objetivo,

porém, é um ser irreal, insensível, meramente concebido; i. e, um ser

simplesmente imaginado, uma abstração. Ser sensorial, i. é, real, é ser um objeto

dos sentidos ou objeto sensorial e, pois, ter objetos sensoriais fora de si mesmo,

obje tos de suas próprias sensações. Ser sensível é sofrer (expe rienciar).

O homem, como ser sensível objetivo, é um ser sofredor, e como sente seu

sofrimento, um ser apaixonado. A paixão é o esfôrço das faculdades do homem

para atingirem seu objetivo.

Contudo, o homem não é apenas um ser natural; êle é um ser natural humano.

Ele é um ser por si mesmo e, portanto, um ente-espécie; como tal, tem de

expressar-se e autenticar-se ao ser assim como ao pensar. Consequentemente, os

objetos humanos não são objetos naturais como se apresentam diretamente, nem é

o sentido humano, como é dado imediata e objetivamente, sensibilidade e

objetividade humanas. Nem a natureza objetiva nem a subjetiva são apresentadas

diretamente de forma adequada ao ser humano. E como tudo o que é natural tem

de ter uma origem, o homem tem então seu processo de gênese, a História, que é

para êle, entretanto, um processo consciente e, portanto, conscientemente

autotranscendente. (Voltaremos a isso mais tarde.)

71

Page 72: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

Em terceiro lugar, como êsse estabelecimento da situação de "coisa" e em si

mesmo so' mente uma aparência, um ato que contradiz a natureza da atividade

pura, tem de ser novamente anulado e a situação de "coisa" tem de ser negada.

ad 3, 4, 5, 6. (3) Essa alienação da consciência não tem só significado negativo,

mas também positivo, e (4) tem êsse significado positivo não apenas para nós ou

em si mesma, mas para a própria consciência. (5) Para a consciência a negação do

objeto, ou sua anulação de si mesmo por êsse meio, tem significado positivo; ela

sabe da nulidade do objeto pelo fato de alienar-se a si mesma, porque nesta

alienação ela se conhece como o objeto ou, em benefício da união indivisível do

ser-para-si-mesmo, conhece o objeto como êle próprio. (6) Por outro lado, êsse

outro "momento" está igualmente presente, em que a consciência revogou e

reabsorveu essa alienação e objetividade e está, assim, em casa em seu outro ser

como tal.

Já vimos que a apropriação do ser objetivo alienado, ou a revogação da

objetividade na situação de alienação (que tem de evoluir da não-identidade

indiferente para a alienação antagônica de verdade) significa para Hegel, também,

ou primordialmente, a revogação da objetividade, uma vez que não é o caráter

determinado do objeto mas seu caráter objetivo que é o próbrio da alienação para

a autoconsciência. O objeto, portanto, é negativo, auto-anulador, uma nulidade.

Essa nulidade do objeto tem significado positivo, assim como negativo, para a

consciência, pois êle é a autoconfirmação da não-objetividade, (XXVIII) o caráter

abstrato dêle mesmo. Para a própria consciência, por conseguinte, a nulidade do

objeto tem significado positivo por ela conhecer essa nulidade, ser objetivo, como

sua auto-alienação, e saber que essa nulidade só existe graças à sua auto-

alienação. . .

O modo em que a consciência é, e em que algo é para ela, o conhecimento.

Conhecer é sua única ação. Assim, algo chega a existir para a consciência na

medida em que ela conhece esse algo. Conhecer e sua única relação objetiva. Ela

conhece (ou sabe), então, a nulidade do objeto (i. é, sabe a não-existência da

distinção entre si mesma e o objeto, a não-existência do objeto para ela) por ela

conhecer o objeto como sua auto-alienação. Isso quer dizer, ela conhece a si

mesma (conhece, conhecendo como um objeto) porque o objeto é apenas uma

imagem de um objeto, uma ilusão, que intrinsecamente nada é senão o conhecer-se

que se defrontou consigo mesmo, estabeleceu em face de si mesmo uma nulidade,

um "algo" que não tem existência objetiva fora do próprio conhecimento. O saber

sabe que ao se relacionar com um objeto está apenas fora de si mesmo, aliena-se, e

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Page 73: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

que ele só lhe parece como um objeto; ou, por outras palavras, que aquilo que lhe

aparece como objeto é apenas ele próprio.

Por outro lado, Hegel diz, esse momento" está presente ao mesmo tempo; ou

seja, que a consciência igualmente revogou e reabsorveu essa alienação e

objetividade e, consequentemente, está em casa em seu outro ser como tal. Neste

exame, todas as ilusões da especulação acham-se congregadas.

Primeiro, a consciência - autoconsciência - está em casa em seu outro ser como

tal. Ela está, portanto - se nos abstrairmos da abstração de Hegel e substituirmos a

autoconsciência por autoconsciência do homem - em casa em seu outro ser como

tal. Isso subentende, primeiramente, que a consciência (saber como saber,

pensamento como pensamento) alega ser diretamente o outro de si mesma, o

mundo sensorial, a realidade, a vida; é o pensamento ultrapassando-se a si mesmo

em pensamento (Feuerbach). Este aspecto é nela contido, na medida em que a

consciência como mera consciência não é afrontada pela objetividade alienada mas

pela objetividade como tal.

Em segundo lugar, isso implica no homem autoconsciente, na medida em que

tenha reconhecido e revogado o mundo espiritual (ou o mundo espiritual universal

de existência de seu mundo) o confirmar, a seguir, novamente, nessa forma

alienada e apresentá-lo como sua existência verídica; ele o restabelece e alega

estar em casa em seu outro ser. Assim, por exemplo, após revogar a religião,

quando a reconheceu como produto da auto-alienação, em seguida ele encontra

uma confirmação de si mesmo na religião como religião. Essa é a raiz do falso

positivismo de Hegel, ou de sua meramente aparente crítica; o que Feuerbach

denomina de pressuposto, negação e restabelecimento da religião ou teologia, mas

que tem de ser concebido de maneira mais generalizada. Assim, a razão está em

casa no absurdo como tal. O homem, que reconheceu estar levando uma vida

alienada no direito, política, etc., vive sua vida verdadeiramente humana nessa

vida alienada como tal. A auto-afirmação, em contradição consigo mesma, e com o

conhecimento e a natureza do objeto, é, pois, o verdadeiro conhecimento e vida.

Não pode haver mais dúvida acerca da transigência de Hegel com a religião, o

Estado, etc., pois esta mentira é a mentira de toda sua argumentação.

(XXIX) Se conheço a religião como autoconsciência humana alienada, o que

conheço nela como religião não é minha autoconsciência, porém minha

autoconsciência alienada nela confirmada. Assim, meu próprio eu, e a

73

Page 74: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

autoconsciência que e a essência dele, não são confirmados na religião, mas na

abolição e revogação da religião.

Em Hegel, portanto, a negação da negação não é a confirmação do verdadeiro

ser pela negação do ser ilusório. E a confirmação do ser ilusório, ou do ser auto-

alienado em sua negação; ou o repúdio desse ser ilusório como ser objetivo

existente fora do homem e independentemente dele, e sua transformação em

sujeito.

O ato de revogação desempenha parte estranha, onde repúdio e preservação,

repúdio e afirmação, se acham entre-laçados. Assim, por exemplo, na Filosofia do

Direito de Hegel, o direito privado revogado é igual à moral, a moral revogada

igual à família, a família revogada igual à sociedade civil, a sociedade civil

revogada igual ao Estado e o Estado revogado igual à história mundial. Mas,

concretamente, direito privado, moral, a família, a sociedade civil, o Estado, etc.,

permanecem; só se transformaram em "momentos", modos da existência do

homem, sem validade quando isolados mas que mutuamente se dissolvem e geram

um ao outro. Eles são momentos do movimento.

Em sua existência efetiva, essa natureza móvel é escondida. E pela primeira

vez revelada no pensamento, na filosofia em conseqüência, minha verdadeira

existência religiosa e minha existência na filosofia da religião, minha verdadeira

existência política é minha existência na filosofia do Direito, minha verdadeira

existência natural é minha existência na filosofia da natureza, minha verdadeira

existência artística é minha existência na filosofia da arte, e minha verdadeira

existência humana é minha existência na filosofia. Da mesma maneira, a

verdadeira existência da religião, do Estado, da natureza e da arte, é a filosofia da

religião do Estado, da natureza e da arte. Mas, se a filosofia da religião é a única

existência verdadeira da religião, só sou verdadeiramente religioso como filósofo

da religião, e contesto o sentimento religioso efetivo e o homem religioso concreto.

Ao mesmo tempo, entretanto, eu os confirmo, em parte por minha própria

existência ou na existência alienada com que os enfrento (pois essa é apenas, a

expressão filosófica deles), e em parte em sua própria forma original, desde que

são para mim o meramente aparente outro ser, alegorias, os contornos de sua

verdadeira existência própria (i. é, de minha existência filosófica) disfarçada por

cortinas sensoriais.

Da mesma maneira, a qualidade revogada é igual a quantidade, a quantidade

revogada igual a medida, medida revogada igual a ser, ser revogado igual a ser

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Page 75: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

fenomenal, ser fenomenal revogado igual a realidade, realidade revogada igual a

conceito, conceito revogado igual a objetividade, objetividade revogada igual a

idéia absoluta, idéia absoluta revogada igual a natureza, natureza revogada igual a

espírito subjetivo, espírito subjetivo revogado igual a espírito objetivo ético,

espírito objetivo ético revogado igual a arte, arte revogada igual a religião, e

religião igual a conhecimento absoluto.

Por outro lado, essa revogação é a de um ente de razão; assim, a propriedade

privada como pensamento é revogada pelo pensamento de moral. E mesmo que o

pensamento imagina ser ele mesmo, sem intermediário, o outro aspecto de si

mesmo, ou seja, a realidade sensorial, e considera sua própria ação como sendo

ação real, sensorial, essa revogação em pensamento, que deixa seu objeto

existindo no mundo real, acredita ter ela mesmo realmente superado ele. Por outro

lado, como o objeto agora se tornou para ela um "momento" do pensamento, ele e

encarado em sua existência real como confirmação do pensamento, da

autoconsciência, da abstração.

(XXX) Sob um aspecto, portanto, o existente que Hegel revoga em filosofia não

é a religião, Estado ou natureza real, mas a própria religião como objeto do

conhecimento, i. é, a dogmática; e analogamente com a jurisprudência, a ciência

política e a ciência natural. Sob este aspecto, pois, ele se coloca em oposição tanto

ao ser real quanto à ciência direta, não-filosófica (ou os conceitos não-filosóficos)

desse ser. Logo, ele contradiz os conceitos convencionais.

Sob o outro aspecto, o homem religioso, etc., pode encontrar em Hegel sua

confirmação definitiva. (a) A revogação como movimento objetivo que reabsorve a

alienação em si mesma. Este é o discernimento, expresso dentro da alienação, na

apropriação do ser objetivo graças à revogação de sua alienação. E o

discernimento alienado da objetificação real do homem, da apropriação real de seu

ser objetivo pela destruição do caráter alienado do mundo objetivo, pela anulação

de seu modo alienado de existência. Da mesma maneira, o ateísmo como anulação

de Deus é o surgimento do humanismo teórico, e o comunismo como anulação da

propriedade privada é a defesa da vida humana real como propriedade do homem.

O último é, também, o surto do humanismo prático, pois o ateísmo é o humanismo

atingido por intermédio da anulação da religião, ao passo que o comunismo é o

humanismo atingido mediante a anulação da propriedade privada. Só pela

revogação desse intermediário (que, no entanto, é condição prévia indispensável)

pode aparecer o humanismo positivo autogerado.

75

Page 76: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

O ateísmo e o comunismo, entretanto, não são uma fuga ou abstração, ou ainda

perda, do mundo objetivo, que os homens criaram pela objetificação de suas

faculdades. Eles não são um retrocesso empobrecido à primitiva simplicidade

antinatural. São, antes, o primeiro surto real, a legítima concretização, da natureza

do homem como algo real.

Hegel, pois, pelo fato de ver o significado positivo da negação auto-referível

(apesar de sob forma alienada), concebe o auto-alheamento do homem, sua

alienação do ser, perda de objetividade e realidade, como autodescoberta,

mudança de natureza, objetificação e realização. Em resumo, Hegel concebe o

trabalho como o ato de autocriação do homem (embora em termos abstratos); ele

percebe a relação do homem consigo mesmo como um ser alienado e o

aparecimento da consciência de espécie e da vida-espécie como a demonstração de

seu ser alienado.

(b) Em Hegel, porém, à parte da, ou antes, como conseqüência da inversão já

descrita por nós, esse ato de gênese surge, antes de mais nada, como ato

meramente formal, por ser abstrato e por ser a própria natureza humana tratada

como natureza abstrata, pensante, como autoconsciência.

Em segundo lugar, por ser formal e abstrata a concepção, a anulação da

alienação torna-se confirmação da alienação. Para Hegel, esse movimento de

autocriação e auto-objetificação, sob a forma de auto-alheamento, é a expressão

absoluta, e por isso final, da vida humana, que tem seu fim em si mesma, está em

paz consigo mesma e unida à sua própria natureza.

Esse movimento, em sua forma abstrata (XXXI) como dialética, é então visto

como vida humana verdadeira, mas como, sem embargo, é uma abstração, uma

alienação da vida humana, é visto como processo divino e, portanto, o processo

divino da humanidade; é um processo por que passa o ser abstrato, puro e

absoluto do homem, e não ele próprio.

Em terceiro lugar, esse processo tem de ter um portador, um sujeito, mas este

emerge inicialmente como um resultado. Este resultado, o sujeito conhecer-se a si

mesmo como autoconsciência absoluta, é portanto Deus, o espírito absoluto, a

idéia que se conhece e se manifesta por si mesma. O homem real e a natureza real

convertem-se em meros predicados, símbolos desse homem e natureza irreais e

ocultos. Sujeito e predicado, por conseguinte, têm uma relação inversa entre si;

um sujeito-objeto místico, ou uma subjetividade que ultra passa o objeto, o sujeito

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Page 77: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx

absoluto como processo de auto-alienação e o retorno da alienação para si mesmo,

e, ao mesmo tempo, de reabsorção dessa alienação, o sujeito como esse processo;

puro, incessante movimento de repetição dentro de si mesmo.

Primeiramente, a concepção formal e abstrata do ato de autocriação ou auto-

objetificação do homem.

Visto Hegel igualar homem e autoconsciência, o objeto alienado, o ser real

alienado do homem, é simplesmente consciência, a mera idéia de alienação, sua

expressão abstrata, e por isso vazia e irreal, a negação. A anulação da alienação é

também, portanto, apenas uma anulação abstrata e inane dessa abstração vazia, a

negação da negação. A atividade repleta, viva, sensória e concreta da auto-

objetificação reduz-se, destarte, a mera abstração, negatividade absoluta, uma

abstração que é a seguir cristalizada como tal e concebida como uma atividade

independente, como a própria atividade. Já que essa assim chamada negatividade é

meramente a forma abstrata e vazia daquele ato real vivo, seu conteúdo só pode

ser um conteúdo formal produzido pela abstração de todo conteúdo. Essas são,

pois, formas de abstração gerais, abstratas, que se referem a qualquer conteúdo e

são, portanto, neutras face a, e válidas para, qualquer conteúdo; formas de

pensamento, formas lógicas destacadas do espírito e da natureza reais.

(Exporemos, adiante, o conteúdo lógico da negatividade absoluta.)

A realização positiva de Hegel em sua lógica especulativa é mostrar que os

conceitos determinados, as formas de pensamento fixas, em sua independência da

natureza e do espírito, são resultado necessário da alienação generalizada da

natureza humana e também do pensamento humano, e descrevê-los em conjunto

como momentos do processo de abstração. Por exemplo, ser revogado é essência,

essência revogada é conceito, o conceito revogado. . . a idéia absoluta. Mas, o que

é a idéia absoluta? Ela tem que se revogar a si mesma se não quiser passar

novamente por todo o processo de abstração, desde o começo, e contentar-se em

ser uma totalidade de abstrações ou uma abstração capaz de se entender a si

mesma. Mas, a abstração capaz de se entender a si mesma sabe que ela mesma

nada é; ela tem de abandonar-se a si mesma e assim chegar a uma entidade que é

exatamente o seu oposto, a natureza. Toda a Lógica, portanto, é uma

demonstração de que o pensamento abstrato nada é por si mesmo, a idéia absoluta

é nada para si mesma, e só a natureza é alguma coisa.

(XXXII) A idéia absoluta, a idéia abstrata que, "encarada sob o aspecto de sua

unidade consigo mesma, é intuição" (Hegel, Encyclopaedia, 3ª ed., pág. 222) e "em

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sua própria verdade absoluta resolve permitir o momento de sua particularidade

ou de determinação inicial a ser-outro, a idéia imediata, como seu reflexo, emergir

livremente de si mesma como natureza". (ibid.) Toda esta idéia, que se comporta

de maneira assim tão bizarra e caprichosa e tem dado aos hegelianos tão terríveis

dores de cabeça, nada mais é do que abstração, i. é, o ser pensante abstrato. E a

abstração que, tornada prudente pela experiência e esclarecida a respeito de sua

própria verdade, resolve, em condições várias (falsas e ainda abstratas)

abandonar-se e estabelecer seu outro ser, o particular, o determinado, em lugar de

sua auto-absorção, não-ser, universalidade e indeterminação; e resolve deixar a

natureza, escondida dentro dele somente como uma abstração, como um ente de

razão, emergir livremente de si mesma. Isto é, ela decida renunciar à abstração e a

observar a natureza livre da abstração. A idéia abstrata, sem a qual mediação se

converte em intuição, não passa de pensamento abstrato que se abandona e opta

pela intuição. Toda essa transição da lógica à filosofia da natureza é simplesmente

a transição do abstrair para o intuir, extremamente difícil para o pensador abstrato

efetuar e, por isso, descrita por ele em termos tão estranhos. O sentimento místico

que impele o filósofo do pensamento abstrato para a intuição é o ennui [N.T.- tédio,

aborrecimento, fastio], a aspiração de um conteúdo.

(O homem alienado de si mesmo é também o pensador alienado de seu ser, i. é,

de sua vida natural e humana. Seus pensamentos são, em conseqüência, espíritos

extrínsecos a natureza e ao homem. Em sua Lógica, Hegel aprisionou juntos todos

esses espíritos, concebendo-os, um por um, primeiro como negação, i. é, alienação

do pensamento humano, e depois como negação da negação, i. é, como revogação

dessa alienação e expressão real do pensamento humano. Visto como, todavia, essa

negação da negação é em si mesma restrita à alienação, ela é em parte uma

restauração daquelas formas espirituais fixas em sua alienação e em parte uma

imobilização no ato final, o ato de auto-referência como o verdadeiro ser dessas

formas espirituais.[N12] Além disso, na medida em que essa abstração concebe a si

mesma e experiência uma crescente fartura de si mesma, aparece em Hegel um

abandono do pensamento abstrato que se movimenta unicamente na esfera do

pensamento e é destituído de olhos ouvidos, dentes, tudo enfim, e uma resolução

de reconhecer a natureza como um ser e apelar para a intuição.)

(XXXIII) A natureza também, contudo, tomada abstratamente, por si e

rigidamente separada do homem, nada é para o homem. Não é mister dizer que o

pensador abstrato entregue à intuição, intui a natureza abstratamente. Como a

natureza acha-se encerrada no pensador de forma obscura e misteriosa até para

ele mesmo, como idéia absoluta, quando a deixou surgir dele mesmo ela era ainda 78

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apenas natureza abstrata, a natureza como um ente de razão, mas agora com o

significado de ser o outro ente do pensamento, é a natureza real, intuída, distinta

do pensamento abstrato. Ou, usando linguagem humana, o pensador abstrato

descobre, ao intuir a natureza, que as entidades que ele julgava estar criando do

nada, da abstração pura, criando na dialética divina como produtos puros do

pensamento interminavelmente em vaivém dentro de si mesmo e sem nunca levar

em conta a realidade exterior, são simplesmente abstrações de características

naturais. A natureza inteira, por conseguinte, reitera para ele as abstrações

lógicas, mas de uma forma sensível, exteriorizada. Ele analisa a natureza e essas

abstrações, uma vez mais. Sua intuição da natureza é simplesmente, pois, o ato de

confirmação de sua abstração da intuição da natureza; sua representação

consciente do processo de geração de sua abstração. Assim, por exemplo, o Tempo

iguala-se à Negatividade auto-referível (loc. cit., pág. 238). Na forma natural, o

Movimento revogado como Matéria corresponde ao Vir-a-Ser revogado como Ser.

Na forma natural, a Luz é Reflexo-em-si. O corpo como Lua e Cometa é a forma

natural da antítese que, segundo a Lógica, é de um lado o positivo alicerçado em si

mesmo, e de outro o negativo alicerçado em si mesmo. A Terra é a forma natural

do terreno lógico, como a unidade negativa da antítese, etc.

A natureza como natureza, i. é, na medida em que é distinguida sensorialmente

daquele sentido secreto oculto dentro dela, a natureza separada e distinguida

dessas abstrações é nada (uma nulidade demonstrando sua nulidade), é desprovida

de sentido, ou tem apenas o sentido de uma coisa externa que foi revogada.

"No ponto de vista finito-teleológico, encontra-se a premissa correta de

a natureza não encerrar em si a finalidade absoluta." (loc. cit., pág.

225.) Sua finalidade é a confirmação da abstração. "A natureza

mostrou-se como sendo a idéia sob a forma de ser-outro. Como idéia é,

sob esta forma, a negativa de si mesma, ou exterior a si mesma, a

natureza não é apenas relativamente exterior vis-à-vis essa idéia,

porém a exterioridade constitui a forma em que ela existe como

natureza." (loc. cit., pág. 227.)

A exterioridade não deve ser aqui entendida como o mundo auto-exteriorizador

dos sentidos, aberto à luz e aos sentidos do homem. Deve ser considerada na

acepção de alienação, um erro, um defeito, que não devia existir. Pois o verdadeiro

é ainda a idéia.

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A natureza é aparentemente a forma de seu ser-outro. E como pensamento

abstrato é ser, o que é exterior a ele por sua própria natureza é meramente coisa

exterior. O pensador abstrato reconhece ao mesmo tempo que sensorialidade,

exterioridade, em oposição ao pensa mento que fica em vaivém dentro de si

mesmo, é a essência da natureza. simultaneamente, contudo, ele exprime essa

antítese de tal maneira que essa exterioridade da natureza, e seu contraste com o

pensamento, aparece como uma deficiência, e a natureza se distinguindo da

abstração se afigura um ser deficiente. (XXXIV) Um ser deficiente, não

simplesmente para mim ou para meus olhos, mas em-si tem algo fora dele que lhe

falta. Isso equivale a dizer, seu ser e, outra coisa que não ele mesmo. Para o

pensador abstrato, a natureza tem, pois, de revogar-se a si mesma, porque já está

pressuposta por ele como um ser potencialmente revogado.

"Para nós, o espírito tem a natureza como sua premissa, sendo a

verdade da natureza e, por conseguinte, seu primus absoluto. Nessa

verdade, a natureza desapareceu e o espírito capitulou como a idéia

que alcançou ser-por-si, cujo objeto, assim como o sujeito, é o conceito.

Essa identidade e negativamente absoluta, pois enquanto na natureza

o conceito encontra sua perfeita objetividade exterior, aqui sua

alienação foi revogada e o conceito identificou-se a si mesmo. Ele é

essa identidade somente na medida em que é um retorno da natureza."

(loc. cit., pág. 392.)

"A revelação, como a idéia abstrata, é uma transição sem mediação

para o vir-a-ser da natureza; como a revelação do espírito livre é o

estabelecimento da natureza como seu próprio mundo,

estabelecimento esse que, como reflexo, é simultaneamente a

pressuposição do mundo como natureza existente independentemente.

A revelação em conceito é a criação da natureza como o próprio ser do

espírito, no qual ele adquire a afirmação e verdade de sua liberdade."

"O absoluto é espírito; esta é a mais alta definição do absoluto."

Notas:

[12] Isto é, Hegel substitui essas abstrações fixadas pelo ato de abstração rodopiando

dentro de si mesmo. Ao fazê-lo, antes de mais nada ele tem o mérito de haver indicado a

fonte de todos aqueles conceitos Inadequados que originariamente pertenciam a

diferentes filosofias, e havê-los reunido e estabelecido a amplitude global das abstrações,

em vez de uma determinada abstração, como o objeto da crítica. Veremos mais tarde por

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que Hegel separa o pensamento do sujeito. Já esta claro, todavia, que se o homem não for

humano a expressão de sua natureza não poderá ser humana e, consequentemente, o

próprio pensamento não poderá ser concebido como uma expressão da natureza humana,

como uma expressão de um sujeito humano e natural, com olhos, ouvidos, etc., vivendo na

sociedade, no mundo e na natureza. (retornar ao texto)

Retirado em 16 de maio de 2008, de:http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/08/man_eco_filo/index.htm

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