biason,mary.os músicos e seus manuscritos

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 17 Recebido em: 20/10/2007 - Aprovado em: 16/05/2008 Os músicos e seus manuscritos Mary Angela Biason (Museu da Incondência, Ouro Preto) [email protected] Resumo: este artigo apresenta algumas considerações sobre o estudo dos documentos musicais a partir de seus suportes físicos, ferramentas utilizadas em sua confecção, a problemática do autógrafo na sucessão de cópias e suas trajetórias até serem incorporados aos nossos arquivos. Palavras-chave: musicologia, acervos de documentos musicais, crítica genética, autógrafo musical. Musicians and their manuscripts Abstract: This article proposes some considerations on the study of musical documents, departing from its physical supports, tools used for its making process, the question of the autograph, copies and their trajectories until they nally become part of our archives. Keywords: musicology, collections of musical documents, genetic criticism, musical autographs. PER MUS I – Revista Acadêmica de Música – n.18, 94 p. jul-dez, 2008 1 - Introdução Em arquivos nos quais existe a preocupação em não descontextualizar os documentos musicais de sua gênese mais abrangente, registros detalhados de como a incorporação se deu nos fornecem variados subsídios para a análise. Mas, no tocante ao estudo mais individualizado de determinada produção musical nos faltam elementos para inferir com precisão o que cada músico legou. Detalhes sobre o uso desses papéis não costumavam ser anotados pelos músicos e raramente constavam em espólios testamentários. Essa lacuna de informação restringe nossos conhecimentos sobre a origem e trajetória desses acervos. Muitas vezes o signicado dessa relação pessoal entre o músico e sua produção se perde em meio a hipóteses. Desde a chegada em terras americanas das naus vindas da Europa e as conseqüentes celebrações que procuravam teatralizar a conquista daquele “Novo Mundo” estava presente a execução e produção musical como parte da liturgia católica. Conforme a administração portuguesa ncava mais os pés em solo americano, a música necessária para enobrecer e “civilizar” a vida social na Colônia tomava maior vulto. Os indícios dessa prática pululam na documentação administrativa e eclesiástica. 1 Sobre o que teria sido aquela prática existem indícios em correspondências endereçadas a Portugal requisitando repertório novo. 2  Mas os documentos musicais possuíam uma relação simbiótica com seus executores - só tinham val or na mão de mús icos - e esse caráter pessoal determinou destinos diversos para as partes music ais que conseguiram sobreviver e chegar aos nossos dias. As músicas atendiam a escolhas pessoais e podiam ser guardadas ou descartadas de acordo com a mudança de gosto, função social ou esquema de trabalho. Os documentos musicais produzidos na América Portuguesa que resistiram estão distribuídos hoje de maneira desigual. Praticamente não conhecemos documentos dos séculos XVI e XVII e os datados na primeira metade do século XVIII são poucos, somente no último quartel desse século é que a documentação começa a ser numerosa. Os papéis referentes ao século XIX formam um corpus mais coeso e de certa maneira este estado de coisas se repete nos diversos acervos  já catalogados. As práticas culturais e sociais sobre a transmissão dos manuscritos em épocas passadas podem ajudar a explicar esse quadro. O caráter efêmero dos registros musicais em papel obviamente causou o desaparecimento dos manuscritos autógrafos restando as cópias, e seu estudo diz muito do seu uso, mas pouco de seu criador. No Brasil, a maior parte dos estudos que utilizaram o documento musical, fosse manuscrito ou impresso, resumiu sua análise a aspectos estilísticos da obra. 3 Contudo, outro universo de estudo tende a abrir-se quando a atenção da pesquisa se volta para o suporte de escrita e a todas as informações que dele podem advir. O papel, a marca d’água, a tinta, o instrumento de escrita, carimbos, BIASON, M. A. Os músicos e seus manuscritos. Per Musi, Belo Horizonte, n.18, 2008, p.17-27

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os músicos e seus manuscritos

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  • 17Recebido em: 20/10/2007 - Aprovado em: 16/05/2008

    Os msicos e seus manuscritos

    Mary Angela Biason (Museu da Inconfidncia, Ouro Preto)[email protected]

    Resumo: este artigo apresenta algumas consideraes sobre o estudo dos documentos musicais a partir de seus suportes fsicos, ferramentas utilizadas em sua confeco, a problemtica do autgrafo na sucesso de cpias e suas trajetrias at serem incorporados aos nossos arquivos.Palavras-chave: musicologia, acervos de documentos musicais, crtica gentica, autgrafo musical.

    Musicians and their manuscripts

    Abstract: This article proposes some considerations on the study of musical documents, departing from its physical supports, tools used for its making process, the question of the autograph, copies and their trajectories until they finally become part of our archives.Keywords: musicology, collections of musical documents, genetic criticism, musical autographs.

    PER MUSI Revista Acadmica de Msica n.18, 94 p. jul-dez, 2008

    1 - IntroduoEm arquivos nos quais existe a preocupao em no descontextualizar os documentos musicais de sua gnese mais abrangente, registros detalhados de como a incorporao se deu nos fornecem variados subsdios para a anlise. Mas, no tocante ao estudo mais individualizado de determinada produo musical nos faltam elementos para inferir com preciso o que cada msico legou. Detalhes sobre o uso desses papis no costumavam ser anotados pelos msicos e raramente constavam em esplios testamentrios. Essa lacuna de informao restringe nossos conhecimentos sobre a origem e trajetria desses acervos. Muitas vezes o significado dessa relao pessoal entre o msico e sua produo se perde em meio a hipteses.

    Desde a chegada em terras americanas das naus vindas da Europa e as conseqentes celebraes que procuravam teatralizar a conquista daquele Novo Mundo estava presente a execuo e produo musical como parte da liturgia catlica. Conforme a administrao portuguesa fincava mais os ps em solo americano, a msica necessria para enobrecer e civilizar a vida social na Colnia tomava maior vulto. Os indcios dessa prtica pululam na documentao administrativa e eclesistica.1 Sobre o que teria sido aquela prtica existem indcios em correspondncias endereadas a Portugal requisitando repertrio novo.2 Mas os documentos musicais possuam uma relao simbitica com seus executores - s tinham valor na mo de msicos - e esse carter pessoal determinou destinos diversos para as partes

    musicais que conseguiram sobreviver e chegar aos nossos dias. As msicas atendiam a escolhas pessoais e podiam ser guardadas ou descartadas de acordo com a mudana de gosto, funo social ou esquema de trabalho.

    Os documentos musicais produzidos na Amrica Portuguesa que resistiram esto distribudos hoje de maneira desigual. Praticamente no conhecemos documentos dos sculos XVI e XVII e os datados na primeira metade do sculo XVIII so poucos, somente no ltimo quartel desse sculo que a documentao comea a ser numerosa. Os papis referentes ao sculo XIX formam um corpus mais coeso e de certa maneira este estado de coisas se repete nos diversos acervos j catalogados. As prticas culturais e sociais sobre a transmisso dos manuscritos em pocas passadas podem ajudar a explicar esse quadro. O carter efmero dos registros musicais em papel obviamente causou o desaparecimento dos manuscritos autgrafos restando as cpias, e seu estudo diz muito do seu uso, mas pouco de seu criador.

    No Brasil, a maior parte dos estudos que utilizaram o documento musical, fosse manuscrito ou impresso, resumiu sua anlise a aspectos estilsticos da obra.3

    Contudo, outro universo de estudo tende a abrir-se quando a ateno da pesquisa se volta para o suporte de escrita e a todas as informaes que dele podem advir. O papel, a marca dgua, a tinta, o instrumento de escrita, carimbos,

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    textos, dedicatrias e as marcas de uso revelam muito sobre as pessoas que produziram, possuram e utilizaram o material. Pode ser muito cedo para se escrever uma histria definitiva sobre o msico e seus papis, todavia, possvel fazer algumas indicaes preliminares.

    A pesquisa sobre determinado compositor nunca dever se ater somente aos aspectos mais superficiais de sua vida nem tampouco a aquilo que esteja diretamente ligado a sua atividade musical. Parcialidades costumam induzir ao erro e o msico ou a obra devem ser estudados em um contexto histrico largo. Cartas, aes cveis, testamentos e outras notcias contemporneas ao objeto de estudo enriquecem a composio de um quadro abrangente e mais fiel ao que teria significado escrever determinada pea musical. Contextualizao, ou seja, embeber a anlise do objeto das condicionantes extra-musicais permite compreender as razes que resultaram na salvaguarda ou descarte de determinado manuscrito.

    Outra ferramenta de pesquisa utilizada chamada crtica gentica cujo objeto de estudo o prprio processo de criao musical a partir dos manuscritos ou documentos preparatrios. A crtica gentica foi usada primeiramente nos estudos literrios que visavam entender seus processos de criao;4 ao nos apropriarmos dessa ferramenta e transpondo-a para a anlise musicolgica seguimos os mesmos caminhos s que mirados no processo de criao musical.5

    2 - O sentido de autor e a crtica textualAntes da inveno da imprensa alargar o horizonte alcanado por uma obra, o livro manuscrito era o nico meio de difuso da cultura escrita. Atelis de copistas faziam reprodues a partir do autgrafo e as imperfeies e alteraes cometidas nesse processo se perpetuavam como se do autor proviessem. Preocupado com esse tipo de interveno, o escritor italiano Francesco Petrarca (1304-1374) dispensou o servio dos copistas e fez do manuscrito autgrafo o nico texto autntico. Este ideal percorreu os sculos XIV e XV e ganhou adeptos como Christine de Pizan (1364-1430) e Charles dOrleans (1394-1465), que, preocupados com o sentido de autoridade, tambm procuraram dar unidade s suas obras atravs do livro manuscrito. Aps a Idade Mdia, a histria da conservao dos autgrafos tambm a histria do reconhecimento do autor, culminando com a poca romntica e a consagrao de tudo o que carregava a marca de sua mo.

    Aps a edio do primeiro livro feito por Gutenberg, em 1455, ocorreu uma mudana no significado das palavras autor e escritor. Autor passou a significar o livreiro-impressor que publicou a obra, ou seja, trouxe luz de forma pblica. O escritor seria aquele que escreveu um texto, independente se permanecesse manuscrito ou fosse publicado (FRAISSE, 2001, p.34). Somente no sculo XVII as lnguas europias diferenciaram as palavras escrita e impressa, atribuindo-lhes significados diferentes.6 No

    sculo seguinte consolidou-se a definio de autor como aquele que criou a obra porque dela advm seu estilo, seus sentimentos, sua linguagem. A obra seria evidentemente transmitida pelos editores, mas sua realidade primeira seria legado do autor. Somente no final do sculo XIX todos os substratos produzidos at chegar obra final (os manuscritos de trabalho, os rascunhos e de maneira geral, os papis do autor), passam a ser considerados como uma classe especfica de objetos fundamentais para a discusso da gnese do texto.

    A Musicologia tem se beneficiado da crtica gentica e dessa preocupao surgiram trabalhos focados na gnese da obra.7 Em manuscritos musicais brasileiros que conhecemos muito raramente encontramos estes testemunhos - dos primeiros esboos precoces aos ltimos ajustes que consagrariam a obra acabada.

    Em acervos nacionais catalogados existem alguns exemplos onde se pode estudar um compositor atravs de sua produo autgrafa. Neles o corpus documental autgrafo acompanha o msico nas vrias fases de sua vida. So eles referentes a Andr da Silva Gomes (1752-1844, mestre-de-capela da S de So Paulo), ao Pe. Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830, msico da Capela Real de D. Joo VI no Rio de Janeiro), e a Antnio Carlos Gomes (1836-1896). Sobre este ltimo, pode-se inclusive acompanhar sua caligrafia musical desde a infncia, a partir da msica que copiava para a orquestra de seu pai em Campinas.

    Mas chamamos a ateno para o fato de que os esboos e manuscritos de trabalho, que comporiam uma obra desde a gnese at sua concluso, no encerram em si o caminho percorrido pela composio. As cpias manuscritas descoladas daquele ambiente gerador do original no podem ser menosprezadas. A apropriao de determinada obra pelos msicos subseqentes e sua reutilizao cria algo como um novo original e tal qual aquela clula mater tambm encerra informaes preciosas. Nossa experincia na organizao de acervos de documentos musicais, nomeadamente o acervo depositado no Museu da Inconfidncia em Ouro Preto, nos levou a refletir sobre o universo da produo de cpias.

    3 - Assinatura e propriedadeO manuscrito musical mais cobiado pelo musiclogo o documento autgrafo porque ele traz o universo sonoro imaginado pelo autor. A identificao da caligrafia e da assinatura pode ser feita confrontando-se o documento musical com outros tipos de documentos onde o compositor escreveu ou assinou de prprio punho. Temos que advertir que a simples presena de uma assinatura no define autoria da obra; necessrio abstrair o impulso inicial de atribuio identificando os rastros sonoros do compositor para ento corroborar ou no a autoria da obra.

    Num acervo composto em sua maioria por cpias do original autgrafo, todos os nomes deixados nos documentos devem

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    ser levados em considerao, assim como qualquer meno da presena das pessoas que de alguma forma passaram a interferir na obra - possuindo, doando, executando etc.A assinatura, elemento definidor por excelncia, pode indicar a propriedade do documento e a pgina de rosto de uma obra o melhor local para estudar os processos de transferncia de propriedade. Um exemplo existente no Museu da Inconfidncia ilustra bem essa prtica. Ele apresenta quatro proprietrios nomeados e um incgnito, num recorte temporal que inicia na 1 metade do sculo XIX, data provvel da criao do documento, at 1890:

    Ttulo: Credo a 4 Vozes / Com dois Viollinos / Trompas e Basso / Para uzo de / Liandro LopesSegue: Este Credo me foi dado pelo Professor de musica / o Illm Snr Joo Antonio Pimenta / em 7br de 1871

    Segue: Hoje pertence a Loureno Corr de MelloSegue: 9br 21 de 1890 / Pertence hoje ao Snr Ant Leo Lopes da

    Crz / Por offerta de Loureno Corra de Mello.8

    Existe outro tipo de assinatura, que no de prprio punho, mas idealizado pelo msico e por isso portador de sua marca. Trata-se dos carimbos de propriedade, muito comuns nos documentos do ltimo quartel do sculo XIX. Os msicos carimbavam no apenas os papis produzidos no seu tempo, mas todo tipo de papel de sua propriedade, inclusive os do sculo XVIII.

    To importante quanto as assinaturas e os carimbos so os avisos e frases grafados pelos msicos, e que, de certo modo, tambm so indcios de apropriao daqueles que fizeram uso do documento.9 Os mais interessantes so os avisos de virada de pgina. Alm do corriqueiro Vire Presto ou VVS (Vire

    Fig.1 Recibo de Marcos Coelho datado em 1805. Museu da Inconfidncia arquivo histrico.

    Fig.2 Hino Maria Mater Gratiae. Autgrafo de Marcos Coelho Neto. MI-FCLange 036.Num acervo composto em sua maioria por cpias

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    Vossa Senhoria), aparecem avisos dirigidos ao instrumentista: Volte p o Cum Sto Spiritus Snr Lopes. No documento podem ser encontrados lembretes de emprstimo da parte para estudo: Trompa est com os meninos do Baptista; indicao do copista: Foi o Nhonh do Jos Nunes quem copiou; ou ainda o recado deixado por um admirador da solista: Esta Ladainha para D. Joaninha brilhar.

    Alguns msicos relatam para qual ofcio tocaram: Faleceo um jovem na rua do Campo a honde / eu fui o msico e foi cepurtado na S / Ds a lembre de sua Alma. E outro, que deixou a interessante informao: Esta Missa / Foi dado a os muzicos em refem de / fazer as Quinquenas no Amparo / Pella Sra Maria Cndida. ficaro / sendo dono desta Missa os que tocarem / na festa toda. Esta ltima informao nos deu indcios sobre uma das prticas de transmisso de cpias. Ao cumprir a contento as determinaes da festeira, os msicos poderiam ficar com as partes para si.

    4 - Do autgrafo para a cpiaAutgrafos musicais so documentos fabulosos mas representam uma parcela muito pequena dos acervos. Cpias so os elementos que compem a maioria dos documentos musicais, so cpias de uso, cpias para presente, cpias de iniciante, cpias de rascunho, cpias profissionais, cpias de instrumentista, cpias enviadas pelo correio, cpias feitas a duas e at a trs mos. Finalidades diversas, mas o motivo central, certamente, era o zelo pela transmisso e preservao do repertrio.

    A cpia traz uma prtica muito prxima das operaes

    que se pode encontrar em um autgrafo, pois ela poder tambm projetar, escrever, corrigir, ratificar, reescrever, constituir uma forma que se adapte s suas necessidades, ou seja, transcrever o universo sonoro de outra pessoa, e ainda fazer algumas modificaes prprias. J o autgrafo construdo pelo autor, que controlou sua criao at a obra acabada, mesmo que ele tenha escrito outras verses desta mesma obra. A partir do momento em que cpias posteriores vo sendo feitas por outros msicos, ele j no controla a criao e seu autgrafo fica confinado a um grupo de msicos, ouvintes e discpulos.

    Mas que significado pode ter o autgrafo no momento em que as cpias difundem no mais a construo sonora imaginada pelo autor, mas a do copista, alm da facilidade da obra reproduzir-se indefinidamente? Um documento autgrafo a expresso da vontade do autor, cpias fiis ao autgrafo refletem o respeito do copista por aquele autor (no sentido de autoridade), cpias modificadas refletem no s a necessidade de instrumentao diferenciada da original devido a falta de instrumentos originais ou de quem os toque, como tambm uma mudana de funo e uso da obra. Isso acontece em obras sacras quando partes de um ofcio so excludas ou reduzidas por mudanas na liturgia. Uma cpia pode ainda refletir a necessidade de mudana estrutural da obra por questo de gosto com incluso de aberturas, intermezzi e finais instrumentais compostos pelo prprio copista, utilizando elementos da obra.

    O poder do msico e a unidade de sua escrita sero transgredidos de maneira radical, custa das cpias. A ruptura entre o autgrafo e a cpia acontece quando o copista capaz de fazer modificaes na obra original,

    Fig.3 Credo, pgina de rosto. MI-FCLange 409.

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    o que confere um novo status ao autgrafo, que pode ser destrudo e no mais participar de sua difuso, que ser feita a partir dessas cpias. Dois domnios assim se formam: um que rene e isola o autgrafo e outro no qual uma multido se torna co-autora.

    5 - O papel de msicaO conhecimento do objeto material o melhor caminho para o conhecimento do objeto intelectual. As mudanas sucessivas no desenvolvimento tecnolgico do conjunto de utenslios de escrita, ou seja, o papel, a pena e as tintas, fornecem subsdios importantes para a histria desses documentos (GRSILLON, 1991, p.89).

    Apesar do papel ter diversas aplicaes, no sculo XVIII ele no representava um produto de preo acessvel a todos. Na Europa eram produzidos basicamente quatro tipos de papel: o oficial, para documentos administrativos, o papel prprio para impresso, o papel de escrita, que era mais fino e no to branco como os anteriores, e o papel de uso geral, que por ser mais espesso prestava-se melhor para o desenho, pintura, confeco de cartas de jogar (baralhos), embalagens e para escrita musical. O motivo do uso de um papel mais espesso para notao musical se deve principalmente ao desgaste que as partituras sofriam na constante manipulao e porque a posse destas garantia a disponibilidade de repertrio para a ocasio em que os msicos fossem solicitados. Porm, pode-se encontrar muita msica escrita em papel comum e at em papel oficial usado nas reparties pblicas, o que denota que, na sua escolha, so determinantes muitos outros fatores como distribuio, custo e disponibilidade do material. Temos que levar em considerao a importncia da msica a ser registrada e a ocasio para que fosse executada,

    porque estes fatores tambm podem influir na qualidade do papel a ser utilizado.

    O papel que chegava ao Brasil no perodo colonial era proveniente do comrcio que Portugal mantinha com centros de produo europeus. Dessa compra, uma parte era destinada ao consumo interno, porque Portugal no possua produo significativa,10 e o restante era revendido s colnias. Do sculo XV ao XVII, Portugal comprou grande quantidade de papel francs e no sculo XVIII passou a comprar mais da Holanda e da Itlia. Nos arquivos nacionais atuais encontramos muito papel espesso in folio dobrado, usado quase sempre no sentido horizontal. As folhas no vinham pautadas: as resmas eram compradas e com o rastrum, uma espcie de caneta de cinco penas, se desenhava a pauta. Olhando com cuidado um manuscrito dessa poca, pode-se notar o vinco delimitando a margem esquerda e direita e, se prestarmos ateno nas extremidades da pauta, poderemos verificar um acmulo de tinta no incio da pauta e um certo desvio do rastrum no final. Somente no sculo XIX comea a aparecer a pauta impressa.

    As marcas dgua encontradas nos documentos musicais do Museu da Inconfidncia confirmam a procedncia do papel: muitos so italianos, como os do papeleiro Giorgio Magnani e seus descendentes, e outros que apresentam o desenho de trs luas crescentes. Estas duas marcas coincidem com as encontradas, por exemplo, no acervo de msica do Palcio Nacional da Ajuda em Lisboa, mas existem muitos outros papeleiros representados no acervo do Inconfidncia.

    Fig.4 Carimbo. MI-FCLange 069

    Fig.5 Cpia de Vicente Ferreira do Esprito Santo do Ofcio de 5 Feira Santa de Jernimo de Souza Lobo. MI-FCLange 200.

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    Pesquisando outras marcas como o selo branco que aparece em documentos datados da segunda metade do sculo XIX, j se pode observar a existncia das casas de comrcio de artigos musicais brasileiras como as cariocas Filippone & Arthur Napoleo e Irmos Bevilacqua e a paulista Casas Levy. Tambm so encontrados papis franceses Lard & Esnau e Gotrot Ain.

    6 - Tipos de cpias e instrumentos de escritaExistem dois modelos de cpia manuscrita: a profissional, chamada de copisteria musical, e a amadora, de uso corriqueiro, com alguns descuidos. A copisteria era formada basicamente por trs profissionais: um para riscar a pauta, ou pautador, outro para desenhar as notas, ou apontador, o escrivo para escrever os textos, e em alguns casos, um quarto profissional para fazer as ornamentaes. Todos juntos seguiam regras especficas para a legibilidade dos signos musicais e especial cuidado com as viradas de pgina para facilitar o trabalho do msico. Para tanto,

    Fig.6 - Uso do papel oficial. Mi-FCLange 044.

    Fig.7 - Marca do rastrum. MI-FCLange 090.

    Fig.8 - Marca dgua Gior Magnani. MI-FCLange 014.

    Fig.9 - Lyra Brasileira. MI-FCLange 240.

    era necessria uma anlise do manuscrito do autor antes de dispor os compassos na folha. J as cpias amadoras so mais despreocupadas, algumas com grafias feitas sem esmero, mas que no se afastam das convenes impostas para a leitura da notao musical.

    Os instrumentos utilizados para a escrita com tinta foram as penas de aves e penas de metal. O uso da pena de ave para esse fim remonta alta Idade Mdia e a maneira de talh-la condiciona o modo de escrita. Instrumentos de escrita de metal so conhecidos desde a Antigidade, mas vo efetivamente substituir as de aves a partir de 1830, quando o papel torna-se mais liso possibilitando o uso deste instrumento, enquanto que as penas de ave eram mais adaptadas a papis vergados de produo manual. Em fins do sculo XIX aparecem as canetas tinteiro e no sculo XX as esferogrficas.

    Dois tipos de tinta so encontrados nos manuscritos: a de carbono, tambm conhecida como tinta da ndia, e a ferroglica, feita a partir de uma combinao de sais de ferro. Esta ltima se acidifica com o tempo, desbotando de preto para marrom e migrando para outras folhas. Outro grande problema com a tinta ferroglica a corroso do papel, acentuada pelo acmulo de tinta nas notas musicais cheias (como semnimas e colcheias), causando o desaparecimento da nota, restando apenas um grande orifcio no papel.

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    Partindo do princpio que o documento musical deve ser definitivo e legvel e que permanece na estante um pouco distante do instrumentista, natural que seja escrito a tinta e no a lpis, cujos traos no penetram na superfcie do papel podendo ser apagados. Os lpis existem desde o sculo XV e so encontrados nos documentos musicais brasileiros do sculo XVIII ao XX, utilizados para pequenas correes. As marcas a lpis, pela sua prpria fragilidade material, no fornecem elementos suficientes, tanto quanto as tintas, para datar as intervenes. Neste caso temos que considerar o desenho das letras.

    7 Conservao versus deterioraoOs manuscritos nascem e envelhecem, mas uns envelhecem bem, outros mal, seja pelo uso, como vimos acima, seja pela qualidade do papel. Os papis produzidos no sculo XVIII, principalmente aqueles vindos da Holanda, mesmo ainda em bom estado, sofrero problemas de conservao por causa da introduo da pila holandesa11 que, esfiapando demais os trapos, fazem com que as fibras de celulose fiquem mais curtas e mais vulnerveis aos ataques de fungos. Os papis feitos a partir de outras fibras vegetais aparecem no mercado a partir de 1840, mas para seu desfibramento so utilizadas substncias qumicas aumentando sua acidez, tornando o papel quebradio e amarelado, tal como hoje encontramos nos arquivos. J os papis do sculo XX so de qualidade muito inferior e, como hoje j comearam a amarelar, pode-se perguntar em que estado estaro daqui a um sculo.

    Felizmente, o desenvolvimento tecnolgico nos d

    tambm os meios de remediar o mal feito. A utilizao de tcnicas bsicas de conservao cria condies para a sobrevida do papel como embalar o documento com papel neutro a fim de evitar a transmisso da acidez e controlar a umidade e a temperatura do ambiente que abriga o acervo. Entretanto, um papel de m qualidade, mesmo que conservado dentro de todos os parmetros ideais, se degradar de modo inevitvel. Existe um mtodo mais invasivo, o restauro, que pode desacidificar, matar fungos e branquear o papel por meio qumico, mas trata-se de um processo lento e caro, aplicado somente em documentos muito especiais e em grande grau de degradao. Graas aos processos de microfilmagem, os manuscritos so facilmente acessveis sem a necessidade da consulta ao original, este objeto insubstituvel.

    8 - Msica impressa e msica manuscritaNo Brasil, a produo de papel e a criao de uma imprensa nacional ocorreram no incio do sculo XIX aps a vinda da famlia real e a msica comearia a ser impressa por volta de 1840. O Brasil foi o pas sul-americano que mais imprimiu msica no sculo XIX, mas isto no significa que a partir daquele perodo o montante impresso ultrapassasse o manuscrito, pois o repertrio condicionado pelas vendas e pelo editor. O repertrio impresso direcionado mais s prticas domsticas, no para os msicos de corporaes musicais que tocavam nas festividades populares e religiosas. Por vezes, os msicos no tinham condies de executar, por exemplo, a instrumentao constante da edio, tendo que reescrever para os instrumentos disponveis. Outro fator de relevncia, principalmente em relao s festas religiosas a resistncia

    Fig.10 - Documento rendilhado pela ao de cupins. MI-FCLange fragmentos.

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    mudana de um repertrio j consagrado pela tradio, mantendo-se assim os papis antigos e no se utilizando de msica impressa, nova.

    9 - Arquivos de msicosOs manuscritos de trabalho pertenciam exclusivamente ao domnio privado e no saam da escrivaninha do msico. O nico documento divulgado era a composio que se deixava para os executantes. Quando recolhemos um arquivo pessoal temos a oportunidade de encontrar os rascunhos, mas quando a recolha feita em corporaes musicais este substrato quase impossvel de ser visto, uma vez que as obras servem exclusivamente para execuo. No acervo de manuscritos musicais do Museu da Inconfidncia consta o arquivo pessoal de Anacleto Nunes Maurcio Lisboa,12 natural e morador em Vila Rica, msico e escrevente nascido em 1821, parente de Joo Nunes Maurcio Lisboa, nascido em 1772, natural de Vila Rica, tambm msico e escrevente. Anacleto herdou os papis de Joo Nunes; notamos sua marca de posse sobre a do parente e, dentre os papis produzidos por duas geraes de msicos, encontram-se os chamados manuscritos de trabalho. So obras escritas em partitura, e no em partes cavadas, constando todos os erros e correes at chegar ao produto final. Como dissemos anteriormente, esse documentos so preciosos para construir a gnese da obra.

    Sobre a transmisso de um arquivo musical, ao analisarmos um lote significativo de testamentos e inventrios de msicos que viveram nas cidades de Ouro Preto e Mariana nos sculos XVIII at meados do XIX, notamos que seus papis no formam o corpus de bens a serem inventariados, somente em alguns raros testamentos existe a meno do arquivo musical sem fazer a relao desses papis. Diante desses indcios, achamos que o meio mais comum fosse a transmisso direta. Mas existem dois inventrios de msicos onde seus papis foram contestados pelos herdeiros - documentos importantes que mostram a disputa por esses bens.Em 1819 morre sem deixar testamento Florncio Jos

    Coutinho, msico e timbaleiro do regimento de milcias de Vila Rica, que, ainda em vida, deixou para Joo Jos de Arajo, tambm msico e companheiro de estante, seus papis de msica. Trata-se de um valioso arquivo com mais de trezentos ttulos, sendo metade deles de autoria do prprio Florncio e o restante de autores brasileiros e europeus, com msica sacra, peras, rias, marchas militares e msica instrumental. A posse destes papis foi contestada em juzo pelas filhas e herdeiras diretas do falecido msico obrigando a recolha e a avaliao dessas obras. A avaliao pode ser observada no inventrio de Florncio Jos Coutinho, hoje depositado no Arquivo Histrico do Museu da Inconfidncia (cdice 0054, auto 0644, 1o ofcio), que traz anexa a lista de obras com o valor atribudo a cada uma delas. O processo no conclusivo, no sabemos o caminho que este arquivo tomou, se ficou com as herdeiras, se foi vendido ou se ficou com o amigo Arajo, o fato que aps uma detalhada pesquisa no acervo depositado no Inconfidncia, conseguimos identificar alguns desses papis originais, inclusive, algumas obras citadas no processo com cpia de Arajo.13

    Outro processo est depositado no arquivo do IPHAN da cidade de So Joo del Rei (inv. n 128) e trata da disputa dos papis de msica deixados por Loureno Fernandes Braziel, morto em 1831 sem testamento. O litgio era entre seu filho Joaquim Bonifcio Braziel e seu genro Joo Leocdio do Nascimento, ambos msicos. Joo Leocdio pleiteava o direito aos papis, mas o acesso lhe foi negado por Joaquim Bonifcio. O genro pediu que fossem feitas a avaliao e diviso dos papis, uma vez que dependia das msicas para continuar a trabalhar. No documento consta a lista com cerca de 177 obras do mesmo gnero que aquelas encontradas no acervo de Florncio Coutinho, alm de treze instrumentos musicais. Segundo pesquisas feitas por Aluizio Jos Viegas, diretor da Orquestra Lira Sanjoanense de So Joo del Rei, em 1940 o arquivo foi queimado por um dos herdeiros.14

    Na documentao pertencente ao acervo de Curt Lange

    Fig.11 Manuscrito de trabalho de Anacleto Nunes Maurcio Lisboa. MI-FCLange fragmentos.

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    encontram-se trs listas de obras do arquivo pessoal dos msicos Vicente Ferreira do Esprito Santo, Justino da Conceio e Cndido Simplcio Maral, todos ouropretanos atuantes em fins do sculo XIX incio do XX. Estas listas, feitas pelos prprios msicos, foram entregues a Lange pelos seus herdeiros juntamente com os documentos musicais. A partir delas identificamos a origem de cerca de 200 obras do acervo.15

    10 - ConclusoPara melhor compreender os sinais deixados nos documentos seria necessria uma histria dos acervos e da sua transmisso. A origem da formao dos fundos possui causas muito diversas: uns renem prticas de uma poca num determinado local, outros trazem consigo a condio

    para a histria da msica brasileira, da escrita musical deixada no papel.

    RefernciasBELLOTTO, Helosa Liberalli. Arquivos permanentes tratamento documental. So Paulo: T. A. Queiroz, 1991.BIASON, Mary Angela. Linvenzione della stampa musicale. Monografia de final de curso. Istituto per lArte ed il Restauro

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    social e os hbitos pessoais do proprietrio. As informaes recolhidas nos documentos musicais servem para alargar nosso entendimento sobre as prticas musicais, tirando o acervo da condio de simples ajuntamento de papis e sua catalogao focada somente nos aspectos musicais. A possibilidade existe, mas se choca com a fragilidade das condies fsicas e funcionais dos arquivos: a fragilidade fsica, que expe os documentos s pssimas condies de armazenamento, e falta de formao tcnica das pessoas que lidam com o acervo.

    Por todo o sculo XVIII e XIX os msicos copiaram obras a partir de originais autgrafos e destes para novas cpias, expandindo a msica para vrias regies brasileiras. A princpio, estes testemunhos paralelos obra musical parecem sem importncia, mas hoje representam elos

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    NASCIMENTO Anna Amlia Vieira. Patriarcado e religio: As enclausuradas clarissas do convento do Desterro da Bahia, 1677-1890, Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 1994, p.218-221.

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    Mary Angela Biason completou seus estudos musicais na Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, estudou musicologia na Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Artes pela Universidade de So Paulo e doutoranda em Msica pela Universidade Estadual de Campinas. Tem-se destacado na organizao de acervos de documentos musicais, desenvolvendo trabalhos de organizao de arquivos no Museu da Inconfidncia em Minas Gerais, no Museu Carlos Gomes em So Paulo, como tambm a catalogao dos acervos das Bandas do municpio de Ouro Preto. Entre os vrios trabalhos realizados, destacam-se as publicaes de catlogos temticos como forma de garantir o acesso s fontes musicais primrias, e de obras transcritas vocacionadas fundamentalmente para o repertrio brasileiro dos sculos XVIII e XIX. Alm da musicologia, estudou museologia na Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo e restaurao de papis no Istituto per lArte ed il Restauro Palazzo Spinelli em Florena. Atualmente coordenadora do setor de Musicologia do Museu da Inconfidncia.

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    Notas1 Outras ocasies exigiam a contratao de msica como funerais e festas particulares, alm de entretenimentos populares nos teatros, mas

    no produziram documentao abundante. A produo conventual foi tambm considervel, mas conhecemos muito pouco sobre seus acervos administrativos e musicais. O trabalho de Ana Amlia Vieira Nascimento sobre o convento do Desterro da Bahia traz algumas informaes sobre a prtica musical desenvolvida pelas freiras. (NASCIMENTO, 1994, p.218-221).

    2 Em 1740, o bispo do Maranho d. frei Manoel da Cruz envia duas correspondncias solicitando repertrio para ser executado na S em So Luiz: uma Santa Igreja Patriarcal de Lisboa e outra abadessa do convento de Odivelas (COPIADOR de algumas cartas afls. 7v e 9v). Em 1741, o bispo do Rio de Janeiro d. Joo da Cruz recebe carta do mestre de capela Caetano de Santa Rosa listando obras de Palestrina, Orlando de Lassus, Alessandro Scarlatti, Lully, Rameau, Frescobaldi, Monteverdi e Pergolesi (REZENDE, 1989, p.220). Em 1788 o bispo de Minas Gerais, d. frei Domingos da Encarnao Pontevel recebe uma remessa de Portugal com 18 msicas de diversos autores, entre eles Joseph Haydn e Michael Haydn (COMBAT, 1985, p.73).

    3 Veja autores como: CARDOSO, Andr. 8 Lio para as Matinas de Quarta-Feira Santa; Uma Atribuio de Autoria entre Jernimo de Souza Lobo e Jos Joaquim Emerico Lobo de Mesquita. Dissertao de Mestrado, UNIRIO, 1996; DOTTORI, Maurcio. Ensaio sobre a msica colonial mineira. Dissertao de Mestrado, ECA-USP So Paulo, 1992; e CRESPO FILHO, Silvio Augusto. Contribuio ao estudo da caracterizao da msica em Minas Gerais no Sculo XVIII. Tese de Doutorado. ECA-USP, So Paulo, 1989. Somente para citar alguns.

    4 Disciplina criada em Paris no final da dcada de 1960, quando a Biblioteca Nacional da Frana contratou um grupo de germanistas para pesquisar os manuscritos do poeta romntico Henrich Heine. Aps grande discusso a soluo encontrada foi estudar o processo de criao do texto literrio, a partir de procedimentos estruturalistas.

    5 Para saber mais sobre o assunto ver: SALLES, Ceclia de Almeida; CARDOSO, Daniel Ribeiro. Crtica gentica em expanso. In: Cincia e Cultura, jan./mar. 2007, vol.59, n1, p.44-47.

    6 Fraisse faz a anlise a partir de vocabulrios franceses e espanhis dos sculos XVI, XVII e XVIII. Da nossa parte, conferimos no dicionrio de portugus do incio do sculo XVIII escrito pelo Pe. Rafael Bluteau, de onde recolhemos os seguintes verbetes: AUTOR: aquele que d princpio a alguma coisa, o instituidor ou executor dela; ESCRITOR: autor de algum livro; IMPRESSO: a arte de imprimir livros. () A impresso de um livro (falando na ao dos impressores que atualmente esto trabalhando) no acho palavra mais prpria do que impressio, se se falar na ao de dar o livro estampa e luz pblica, o que se pode assim do autor como do impressor. No verbete escrever, Bluteau d a definio de Ccero, que compor.

    7 Um trabalho desse gnero pode ser conferido em: FIGUEIREDO, Carlos Alberto. Editar Jos Maurcio Nunes Garcia. Tese de Doutorado. Centro de Letras e Artes, UniRio, Rio de Janeiro, 2000.

    8 Pgina de rosto de um Credo sem indicao de autor, Museu da Inconfidncia Coleo Francisco Curt Lange n 409. O primeiro nome citado, Leandro Lopes de Oliveira, nasceu em Vila Rica no ano de 1800, filho natural de Marcos Coelho Neto com a crioula forra, Maria Lopes de Oliveira.

    9 Todos os textos citados neste item encontram-se nas partes instrumentais e vocais das obras que compem a Coleo Francisco Curt Lange, depositada no Museu da Inconfidncia.

    10 Sobre o histrico da indstria papeleira portuguesa ver MELO, Arnaldo Faria de Atade e. O papel como elemento de identificao. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1926.

    11 Conjunto de cilindros acionados pela fora dos ventos, que batem alternadamente na formao da pasta de papel, feita a partir de trapos de tecido.12 Estes documentos esto espalhados dentro da Coleo Francisco Curt Lange.13 O documento em questo foi analisado por Cssio Lanari e reproduzido no trabalho no publicado de Tarqunio Jos Barbosa de Oliveira. A Msica

    Oficial em Vila Rica. [197?: datilo], p.105-109.14 Uma anlise completa do documento encontra-se nesta tese: RICCIARDI, Rubens Russomano. Manoel Dias de Oliveira: um compositor brasileiro dos

    tempos coloniais documentos e partituras. Tese de Doutorado. Escola de Comunicao e Arte-USP, So Paulo, 2000, p.73-84. 15 Projeto de pesquisa apresentado para o Plano de Ao 2001: MinC / IPHAN Museu da Inconfidncia e concludo em 2002. A listagem encontra-se

    no setor de Musicologia do Museu.