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  • 5/27/2018 Manuel Bandeira

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    BIBLIOTECALUSO-BRASILEIRA

    Srie Brasileira

    MANUEL BANDEIRAPOESIA E PROSA

    em do i s vo lumes

    V o l u m e Ipoesia

    A CINZA DAS HORAS, CARNAVAL,O RITMO DISSOLUTO, LIBERTINAGEM,

    ESTRLA DA MANHA, LIRA DOS CINQOENTANOS,BELO BELO, OPUS 10, ESTRLA DA TARDE,

    MAFUA DO MALUNGO, POEMAS TRADUZIDOS,POEMAS MUSICADOS

    V o l u m e II, prosa

    ITINERRIO DE PASRGADA,CRNICAS DA PROVNCIA DO BRASIL, FLAUTA DE PAPEL,

    GONALVES DIAS, GUIA DE OURO PRTO,ENSAIOS LITERRIOS, DE POETAS E DE POESIA,

    CRTICA DE ARTE, EPISTOLRIO

    EDITRA JOS AG VI LA R, LTD A. RIO DE JANEIRO, D .F . , 1958

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    MANUEL

    BANDEIRA

    POESIA E PROSA 2-*/^

    Introduo geral por i $ s rS r g i o B u a r q u e d e H o l a n d a e F r a n c i s c o d e A s s i s B a r b o s

    VOLUME II

    p r o s x

    X7 O*?' *-cotas preliminares aU1I a n k h n d e ,

    O t v io T a r q u i t o d e So u s a , O d i^ d C o s t a F i l h o ,

    A n t n i o C n Jm d o , O t o M a j ib v C a r p e a u x ,

    Klfea . ; R e n d e s

    EDITORA JOS AGUJLAR. LTD A. RIO D E JANEIRO, D-Fv 1958

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    CRNICAS DA PROVNCIA DO BRASIL

    A

    Ro d r i g o M. F. d e A n d r a d e

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    A maioria dstes artigos de jornal foram escritos s pressaspara A Provncia do Recife, Dirio Nacional de So Paulo, eO Estado de Minas de Belo Horizonte. Eram crnicas de um

    provinciano para a provncia . Alis ste m esm o R io de Janeiro de ns todos no guarda, at hoje, uma alma de provncia? O Brasil todo ainda provncia. Deus o conserve assim

    por m uito s anos!

    * * *

    NOTA: Suprimiram-se nesta edio as crnicas De Vila Rica deAlbuquerque a Ouro Prto dos estudantes, O Aleija-dinho e Carlos Drummond de Andrade. O motivo dasupresso que a matria delas foi aproveitada quaseipsis litteris em outras obras do autor.

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    BAHIA

    N u n c a v i cidade to caracteristicamente brasileira como aboa terra. Boa terra! isso mesmo. A gente mal pisouna cidade baixa e j se sente to em casa como se ali fsse agrande sala de jantar do Brasil, recesso de intimidade familiar de solar antigo com jacarands pesados e nobres.

    Ali a gente se sente mais brasileiro. Em mim confesso que,

    mais forte do que nunca, estremeceram aquelas fundas razesraciais que nos prendem ao passado extinto, ao presente maisremoto. Razes em profundidade e em superfcie. E fiquei comovidssimo, querendo mais bem no somente aos baianos,com que ali me irmanava, seno tambm aos patrcios maisafastados ou m ais esquivos paulistas, acreanos, gachos,matogrossenses. Comoo brasileira, como experimentei tam

    bm vendo o cro de anjinhos m ula to s de Tarsila do A maral.Um esprito amargo me foi logo advertindo minha chegada:

    Vai ter um a pssim a im presso disto aqui. Cidade semhigiene, sem gua, sem esgotos, sem iluminao.

    Que bem me importava tudo isso! Estou farto de tantauz crua voltaica. Um dia vir em que um governador bem

    nascido dar aos baianos todos sses bens preciosos. Noes d, porm, luz de mais, como fizeram a ste Rio de Ja-

    n?lro> lu e parece automvel noturn o de novo-rico. O

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    peador que tem desfigurado as~ nossas cidades lito rneas, queestragou completamente o meu Recife.

    H m uita gente ingnua "pra quem progresso u rban o avenida e arranha-cu. Modernidade asfalto e cimentoarmado. Pois eu estou pronto a sustentar para essas sensibilidades modernas, que os tais arranha-cus cariocas no passamde casares passadistas de muitos andares, ao passo que osvelhos sobrades de duas guas da Bahia, com trs, quatroandares e sotias, obedecem esttica despojada, linear, sin

    ttica dos legtimos arranha-cus.O que surpreende nos arquitetos e construtores do perodocolonial, do primeiro reinado e primeira metade do segundo, essa adaptao ao ambiente, s necessidades arquitetnicas, natureza do material.

    les bem que enfeitavam com amor e capricho um solartrreo ou de dois pavimentos. Mas nos tais sobrades, que

    nada! Serviam-se de linhas simples e poucas, dispondo dosclaros com uma cincia ou intuio admirvel da assimetria.O que h de variedade nas fachadas dos oites! Um velhoquarteiro baiano lembra muito as snteses plsticas dos pintores modernistas quando representam uma cidade.

    N o se pense que no tenham feito tolices na Bahia . Tantoa administrao pblica como os particulares. A casa da C

    mara Municipal, por exemplo, que deve ter sido um bonitoedifcio, est inteiramente desfigurada. O palcio do governo monstruoso, e faz rir o espetculo das lpides que assinalamem inscries bem legveis os nomes do governador que ordenou a obra, do arquiteto que a planeou, dos mestres deobra que a executaram, dos engenheiros civis que serviramna fiscalizao. Mas repito: o velho ambiente, pela abundn

    cia e fra de suas formas, abafa o mau gsto das construes recentes.

    Foram dias de tocante contemplao sses em que andeipelas praas, ruas e becos da Bahia na com panhia do guiamais inteligente e mais solcito que se me podia deparar: Go-dofredo Filho.

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    Foi graas a Godofredo Filho que pude conhecer muitacuriosidade escondida da boa terra.

    Ho comi, como os viajantes de escala, os vataps e carurus da Petisqueira, pratarrazes comerciais afinal de contas. Godofredo levou-me com mistrio cozinha modestaonde a gorda preta Eva preparava, com a simplicidade dotrivial mais fcil, as mais estupendas misturas de dends epim entas queimadas que j provei na m inha vida. E ra passarl s 9 da manh e encomendar: peixada de muqueca, ou

    vatap, ou caruru, ou ef, ou galinha de -xin-xin. Quando sevoltava ao meio-dia encontrava-se um prato cheiroso e complicadssimo que parecia exigir um ms ao menos de manipulao. E aparecendo de improviso era quase a mesma coisa.

    Mas tempo que eu comece a falar do que h de maisbelo na Bahia, as suas igrejas. E em prim eiro lugar damais rica maravilha de todo o Brasil: a igreja de S. Fran

    cisco.Os crticos de arte europeus no poupam o estilo barroco,considerado por les como uma degenerescncia do renascimento.

    a poca da decorao pela decorao, diz Reinach, intervindo em tda a parte e a contra-senso, comprazendo-senuma viso quase febril de linhas atormentadas e de relevosimprevistos. Entretanto, depois de dizer que o gnio da Renascena acabou por afundar naquela orgia decorativa, acrescenta: no sem ter produzido, todavia, at ao fim do sculoXVIII, edifcios notveis pela ousadia e elegncia.

    O interior da igreja de S. Francisco da Bahia um dssesexemplos de barroco depurado e harmonioso. Por prodigiosoc'ue seja o trabalho de talha dourada, no deixando pedaonu de parede, nunca a abundncia e a riqueza da ornamenta-

    5a obscurecem o relvo das grandes linhas, sempre bemacusadas em tda a sua fra e majestade.

    Em nossa terra exuberante, onde a natureza d o modlo0 roais fantstico capricho de curvas, o barroco o grande

    estilo religioso. Os nossos maiores sentiram isso. Agora e queeram para um gtico mofino, um gtico pobre, quase pro-

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    testante, que destoa insipidamente no cu brasileiro. Pois essa

    gente no compreende que o ogival foi uma coisa que aconteceu na Frana e acabou-se? Todos sses nossos gticos demeia tigela no valem a igrejinha pobre de Mangaratiba ououtra qualquer capelinha caiada de arraial.

    A histria da igreja e convento de S. Francisco est minuciosamente contada no Orbe Serfico, de Frei Antnio deSanta Maria Jaboato.

    Convidados por D. Antnio Barreiros, bispo de S. Salvador,vieram os franciscanos Bahia, onde levantaram no ano de1587 um pequeno convento e igreja no mesmo local do tem

    plo de hoje.Um sculo mais tarde, convento e igreja j eram acanhados

    para o desenvolvimento da ordem e da cidade, razo pelaqual se pensou em erguer casa mais vasta e mais rica.

    As obras do novo convento comearam em 1686. Em 1708lanava-se a pedra fundamental da igreja, segundo consta doL ivro dos Guardies:

    A o 1. de novembro de 1708 benzeu a primeira pedra o ilmo.Sr. D. Sebastio Monteiro da Vide, arcebispo metropolitano dsteEstado do Brasil, e a lanou no fundo a uma parte do Cruzeiro,quer dizer, onde se cruzam os rcos da capela-mor e da nave transversal, junto com o Sr. Lus Csar de Meneses, governador-geral.

    Esta memria se lanou neste livro para que se saiba a todo o tempo, e nos mostremos agradecidos a ste povo da Bahia, e seu Recncavo; pois nos deram esmolas com que fizemos ste Convento,e imos fazendo ste templo to grandioso.

    Era ento guardio Frei Vicente das Chagas.

    J em 1713, ainda longe de completado o templo, rezava--se nele a primeira missa para celebrar a festa do Serfico Pa

    triarca.A s s i m r e z a o c r o n i s t a d o L ivro dos Guardies:

    A 8 de outubro de 1713, vspera de N .P .S . Francisco, de tarde,benzeu a igreja dste Convento o ilmo. Sr. arcebispo desta me- trpole D- Sebastio Monteiro da Vide, e se fz uma procisso

    pelas ruas da cidade com aplauso e contentamento universal detodo o povo. Levou o Santssimo Sacramento o Sr. arcebispo, o

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    qual, recolhida a procisso, o colocou na igreja, e ao outro dia,que foi de N .P .S . Francisco, celebrou a primeira missa, dizendo-a

    de Pont i f ica] , o d i t o senhor.

    Os trabalhos de construo propriamente estavam concludos em 1723, mas a decorao interna se prolongou ainda pormuitos anos, s ficando pronta em 1750.

    Levou, pois, 42 anos o acabamento daquela grandiosa fbrica.

    H mais de duzentos anos l est ela, piedosamente conservada pelo zlo religioso e artstico dos irmos de S. Francisco.

    Tempo houve em que a mo do tempo exerceu o seu estrago. O decreto da Regncia que restringia s ordens a faculdade de admitir novios (1834) e o do govrno imperial quede todo a retirava (1855), causaram o despovoamento dosconventos, cujos patrimnios artsticos entravam a arruinar-se por falta de zeladores.

    Felizmente a Repblica restaurou a liberdade de profissoreligiosa. Da Europa, sobretudo da Alemanha, nos vieram numerosos religiosos de S. Francisco, e stes puseram logo mosa obra de reparao da majestosa casa.

    Compe-se o interior de uma vasta nave central, ladeadade duas outras mais baixas, abrindo-se para ela em quatroarcos e com trs capelas cada uma.

    A nave principal cortada em cruz por uma nave trans-versal, em cujos extremos esto colocados os altares de NossaS^hora da Glria e do Sagrado Corao de Jesus, primiti-vamente de S. Lus e mais tarde do Senhor Santo Cristo daa Sentena, ambos talvez mais ricos do que o santurio.

    As balaustradas que separam as naves laterais da central

    oram talhadas em jacarand por um irmo da ordem, Frei!s de Jesus, mais conhecido por Frei Lus Torneiro.

    Ve ra um artista habilssimo, que, alm daque la talha not- deixou as mesas e os ricos armrios da sacris tia, as ca-

    aru^ 6 es*antes do cro e a escadaria que leva ao primeirodar do convento, tudo de jacarand.

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    Os tetos so admirveis. O da nave principal faz meia voltajunto s paredes, sendo o mais corpo de este ira aquartelado

    com painis de molduras douradas. Os das capelas lateraisso abobadados, com arcos de barretes de talha. A abbada dacapela-mor retm longamente a vista do observador pela en-genhosidade com que o artista obteve o forte e rico efeito degirndola pela simples combinao de hexgonos e octgo-nos.

    Escreveu o autor do Orbe Serfico:

    Depois do material das suas paredes, se cuidou logo no seu interior ornato, mandando-se fazer retbulos, forros, douramentos,grades, sepulturas de mrmore, e o mais na perfeio e grandezaque se v... e tudo a benefcio e esmolas do povo em comum, ede muitos benfeitores em particular para que assim seja melhorservido, e mais glorificado Deus em si, e nos seus santos, que o

    princpio e fim para que se ordenam os templos. . .

    Entre sses benfeitores a que se refere Frei Antnio de Santa Maria Jaboato, est em primeiro lugar el-rei D. Joo V,que fz vultosas doaes ao convento. Foi le que mandourevestir de painis de azulejos o claustro do convento; quecusteou o douramento do altar de Santo Antnio e a stesanto conferiu o psto de capito intertenido do forte de Santo Antnio da Barra. Tambm foram oferta real as duas belas

    pias de m rm ore portugus.Doao magnfica foi a do Capito Antnio de Andrade

    Trres: a maravilhosa lmpada da capela-mor, tda de pratamacia do Prto, medindo mais de dois metros de altura e pesando oitenta quilos.

    Os irmos franciscanos tm especial ufania em mostrar aosvisitantes, como a mais bela imagem do Brasil, a figura em

    madeira de S. Pedro de Alcntara, obra do escultor baianoManuel Incio da Costa. realmente uma escultura notvelpela expresso de sofrim ento estam pada no rosto e nas mos.Quando d. Pedro II visitou o convento, em 1859, ficou toimpressionado pela imagem do seu padroeiro que se propsadquiri-la pela quantia de trinta contos. No o conseguiu.

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    Tambm de Manuel Incio da Costa so as belas imagensda Virgem da Conceio, da Senhora de SantAna e deSanto Antnio. No nicho em que se abriga ste ltimo venerava-se antigamente a milagrosa imagem de Santo Antnio deArgiiim, festejado anualmente pela Cmara e povo, por tersido le o protetor da cidade contra os invasores holandeses.

    A imagem de Nossa Senhora da Piedade, tambm notvel, obra de ou tro escultor baiano Antnio de Sousa P ara-nhos.

    Frei Matias Teves, de cuja monografia colhemos os dados

    para stes in form es, faz esta adm irada interrogao: Considerando as condies do tempo e das circunstncias em que foiplanejada e executada obra to grandiosa, com o foi isso possvel? Que homens eram stes que, s duzentos anos depois dodescobrimento, num meio apenas iniciado na civilizao, longe dos elementos que na velha Europa favoreciam o desenvolvimento das belas-artes, provocaram no Brasil uma prima

    vera de arte, exuberante e encantadora, de que o nosso templo testem unho magnfico e glria im orredoura?

    Anexado ao templo est o formidvel edifcio do convento,cujos fundos dominam com quase centena e meia de janelaso casario da cidade baixa.

    As celas so pobres, segundo os votos da ordem. Alm doclaustro de azulejos, a que j nos referimos, delicioso retiro

    de contemplao; digna de nota a sala da biblioteca, sem riqueza mas de harmoniosssimo efeito nos seus azuis e rosadosde tijolo.

    Modesto o convento dos frades carmelitas. Modesto emcomparao com o de S. Francisco, pois se trata tambm deuma imponente mole, onde outrora vivia uma multido derades. Hoje so apenas cinco monges, insuficientes para ze-

    ar pela grandeza do edifcio. O tempo, os maus abades, sadres despojaram a casa de muitos primores. Contudo, ain"a resta o que ver, e o guardio atual defende com solicitude

    0 patrimnio restante.

    No se imagina o que por sse Brasil afora a pilhagemas igrejas pelos antiqurios! Quando visitamos o convento

    B a n d e i r a - n - 5

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    do Carmo, ndava o abade s voltas com dois sujeitos quehavia uma semana o sitiavam para comprar por bom preo

    a linda moblia joanina que gUarnece a sala histrica em queos capites holandeses assinaram o tratado de entrega dacidade.

    Pela famosa cadeira de D. Joo V j houve quem oferecesse trinta e cinco contos. Quando D. Joo regente passou

    pela Bahia , hospedou-se num solar (hoje desfigurado!), fronteiro ao convento. E fazia transportar capela dos carmelitas

    a poltrona de jacarand e assento de couro furado, em querezava o ofcio com os frades. Retirando-se para o Rio, fzdoao da cadeira ao convento. Est hoje na sacristia, expostacomo uma jia.

    N a igreja so dignos de nota os grandes tocheiros de pratamacia, to pesados que os ladres no lograram carregarquando de uma feita assaltaram o templo, o revestimento do

    altar-mor igualmente de prata todo le, e a lpide singela quecobre os despojos do Conde de Bagnuolo.O conven to de S. Bento j n o foi obra daqueles homens

    de que se espantou Frei Matias Teves. A casa est tda infiltrada de mau gsto e da mediocridade do estilo Sagrado Corao. O velho cro de jacarand, removido para uma salainterior, onde assenta hoje o cabido, cedeu lugar a um pauamarelo todo requififeado.

    N ada que ver, seno uns belos mveis de ja carand, a livraria e uma pequena lpide quadrada no cho de uma saleta de passagem com esta simples inscrio: Aqui jaz unipecador. a sepultura de Gabriel Soares, o do rote iro.

    A livraria dos beneditinos que notvel pelos exemplares raros e preciosos que encerra. Infelizmente os monges sopoucos para cuidar convenientemente dos livros, muitos dos

    quais esto se esfarelando pela ao dos bichos. Entre outrasobras de valia vi la a l.a edio da Enciclopdia Franceschem bom estado.

    G o d o f r e d o Filho levou-me a quase tdas as velhas i g re j a sda Bahia, bisbilhotando nas sacristias e desvos escusos paradescobrir peas interessantes. Algumas merecem que nos de

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    tenhamos um pouco. E para comear, a macia, sombria SVelha, av rija e venervel. Erguida no stio onde se levantou

    a S de Palha, primeira igreja construda no Brasil, creio eu,a velha S ainda dos tempos em que as casas de Deus deveriam servir eventualmente de fortalezas, e da as suas paredesrobustas de poucas e acanhadas abertas. A fachada principal,que d para o mar, era tda de pedra. Como o pso ameaavaesbarrondar o morro, foi ela demolida pelo governador-geral,

    pensando-se substitu-la por um a frente trabalhada em barro.

    Coisa que nunca se fz. No interior, rica prataria guardadana pequena capela esquerda do altar-mor.

    A dois passos da S Velha fica a pequena igreja da Misericrdia, onde tantas vzes pregou o padre Vieira, com claustrorevestido de belos azulejos.

    Em estilo mais severo e inteiramente construdas de pedraso as duas igrejas da Conceio da Praia e Catedral. Esta

    tem a honra de guardar os restos de Mem de S no centroda cruz em face da capela-mor e os de Vieira, que esto naprim eira capela lateral direita. N o altar-m or se v o quadri-nho histrico da Virgem, ao qual os jesutas se abraaram eencomendaram por ocasio do naufrgio de que se salvarammilagrosamente. Era esta a casa dos jesutas. O Colgio aindase conserva em parte como foi no tempo de Vieira, cuja

    cela era a ltima no fundo do corredor.Outra maravilha, a sacristia da Catedral. Imaginem-se duas

    enormes cmodas de jacarand de uns sete metros de comprimento, ricamente embutidas de tartaruga e marfim, guarnecidas cada uma com oito pequenos painis a leo, cenas bblicas traadas com forte cincia de composio e grande do-SUra de colorido. Essas pinturas suscitaram a cobia de um

    nco arnericano, que ofereceu trs contos por cada painel.Quanta igreja bonita, meu Deus! S. Domingos, ao lado daa era que nasceu Gregrio de Matos, S. Pedro dos Clrigos,

    ^Pequenina capela do Monte Serrat, a de Nossa Senhora da

    reza^a ; Esta foi m andada levantar pe la P araguau, segundoa a inscrio tumular: Sepultura de D. Catarina Alvares

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    Paraguau, senhora que foi desta capitania da Bahia. A qualela e seu marido Diogo lvares, natural de Viana, deram aos

    senhores reis de Portugal. Edificou esta capela de Nossa Senhora da Graa e a deu com as terras anexas ao patriarcade S. Bento em o ano de 1589.

    Tive a sorte de passar na Bahia por ocasio da festa doSenhor do Bonfim. a grande romaria tradicional, a Penhados baianos com um pouco de carnaval carioca da Praa Onzede Junho, ternos e ranchos de pastorinhas, muito aprto de

    povo, nam ro grosso, barraquinhas de vataps, carurus e outras ardncias negras, isto madrugada a dentro dias a fio.ste ano quebrou-se a tradio na cerimnia da lavagem dotemplo. Em vez de feita pelo potiro de fiis, que parece davalugar a cenas folionas por demais, foi ela confiada a meiadzia de aguadeiros mercenrios. Nesses dias tda a populao da cidade se desloca para o adro da bonita igrejinha

    iluminada.A mania do neocolonial est se apoderando de todo o Bra

    sil. Seria bom que nossos amadores de estilo dessem um pulo Bahia para sentirem e apreenderem a razo, a fra, a dignidade daqueles velhos solares ou dos altos sobrades dos bairros comerciais. Para ver Se dariam depois outro rumo a estastentativas de arte brasileira, que, positivamente, enveredaram

    por caminho errado aqui no sul, fazendo bonitinho, engraadinho, enfeitadinho, quando o esprito das velhas casas brasileiras era bem o contrrio disso, caracterizando-se antes peloar severo, recatado, verdadeiramente senhoril.

    Parece que hoje no se gosta mais disso, mesmo na Bahia.Os velhos solares do bairro da S esto hoje reduzidos a cortios de gente pobre, e mesmo uma impresso curiosa ver

    o mais reles meretrcio da cidade, o meretrcio pretinho, aboletado em nobres casares arruinados, com braso de pedra ouazulej0 sbre as portas de batentes almofadados.

    Mas foi talvez essa desero da burguesia endinheirada quenos preservou os melhores bairros das restauraes em quetudo se abastarda.

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    Dois antigos solares pelo menos mereciam do govrno estadual algum zlo, a fim de se lhes restituir o esplendor pas

    sado: o do Saldanha e o dos Aguiares, aqule no centro dobairro da S e ste num arrabalde.

    O Saldanha foi um fidalgo portugus indicado po r el-reipara desposar um a m ulata espria, filh a de um riqussim osenhor de engenho do Recncavo. O dote era uma fabulosafortuna. O Saldanha aceitou e parece que foi feliz com a brasileira. A casa que fz levantar para sua moradia ostenta uma

    grande nobreza de linhas. O prtico da entrada uma belssima escultura em granito. Pude ver o interior, onde hoje estinstalado o Liceu de Ofcios, que aluga o antigo salo no

    bre, de bonito te to apainelado, para sala de projeo de umcinema. E o saguo, que um magnfico exemplo daqueleforte e plcido estilo dos nossos antepassados, est agora cheiodos grandes cares coloridos dos filmes americanos.

    Mais lastimvel ainda o estado de degradao do solardos Aguiares. Reduzido a casa de cmodos. O ptio internoameaando ruir. Os lindos azulejos, que contam a histria doFilho Prdigo, to maltratados! Na prpria capela duas camas de ferro miserveis. Cozinhavam a lenha no aposento

    pegado, de sorte que tda a fum aceira entrava para a capela,enegrecendo irremedvelmente a velha talha dourada doaltar. . .

    FALA BRASILEIRA

    q j PPosit o do livro do Prof. A nteno r Nascentes, intituladoexceip0? ^ s/aciona^ escreveu o Prof. Sousa da Silveira umse art- art*g de crtica no Jornal do Comrcio do Rio. Ds-

    'go destaco o seguinte perodo:

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    Um linguista como le [Nascentes] o , no podia absolutamente usar daquela denominao [Idioma Nacional] para encobrir

    a realidade das coisas, nem entrar na corrente delirante dos quepretendem, pela simples resoluo de adotar na lngua escrita t-das as licenas da lngua falada, criar uma lngua nova, uma lngua que querem no seja portugusa, sem se lembrarem de que,com sse processo, apenas conseguiriam (se veleidades humanas

    pudessem desviar o curso natural das coisas) escrever uma lnguaque seria a portugusa com alteraes numerosas e talvez profundas, mas sempre e em substncia a lngua portugusa.

    Nesse perodo em pregou Sousa da Silveira o adjetivo delirante no sentido etimolgico, para significar o que sai dosulco, no tendo, portanto, a palavra nenhuma inteno menos delicada para os adeptos daquela corrente. No menosvisvel, porm, que as expresses do sbio professor encerramalguma... direi injustia? para os que ultimamente se tmaplicado a aproveitar artisticamente na prosa e na poesiabrasileiras formas e dies da nossa gente, at agora condena

    das como incorretas.Que essa condenao existia, e existe ainda, um fato. O

    nosso grande Joo Ribeiro caoou de Tobias Barreto nas Pginas de Esttica, dizendo que sse se exprimir com certariqueza de idia, mas grande misria de gramtica nos doisversos famosos:

    Das pedras tdas que atiram-me

    Hei de fazer um altar!Ora', no h la nenhuma misria de gramtica, salvo para

    um ouvido poftugus.Lima Barreto, um morto de ontem, era por muitos consi

    derado escuitor desleixado e incorreto pelo fato de se servirem, p rosa Htarria de formas correntes na linguagem faladada boa sociedade.

    Isso, e inegvel, s se explicava pela influncia da tradioportugusa, sensvel at hoje em todos os escrito res brasileiros, mesmo naqueles que experimentaram a necessidade da in-s u b m i s s o , como Alencar, furiosamente atacado pelos gramticos do tempo, Lima Barreto e outros.

    Foi preciso que aparecesse um homem corajoso, apaixonado,sacrificado e da fra de Mrio de Andrade para acabar com

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    as meias medidas e empreender em literatura a adoo integral da boa fala brasileira. No cabe aqui discutir os erros, osexcessos, as afetaes da soluo pessoal a que le chegou.Nada disso tira o valor enorme da sua in iciativa, a segunda, emuito mais completa e eficiente que a primeira de Alencar.Aqueles mesmos excessos, aquelas mesmas afetaes contriburam para ferir as atenes, para promover reaes e discusses, para focalizar o problema em suma.

    O ambiente hoje mais favorvel que no tempo de Alen

    car. A filologia fz progressos enormes e os seus mestres atuaisso entre ns os Antenor Nascentes e os Sousa da Silveira, es

    pritos sem rano de gramatiquices estreitas, e com os quaisse pode conversar. Nenhum dles dar mais por incorretas aspobrezinhas das formas brasileiras, o que no acontecia nosanos em que se aprendia portugus pelas gramticas de So-tero, Jlio Ribeiro, Alfredo Gomes.

    Mas embora Sousa da Silveira admita nos outros as liberdades brasileiras, sente-se que a sua simpatia ainda est coma tradio literria escrita.

    O perodo do seu artigo, transcrito atrs, importa num ataque sem razo de ser. P orqu e quem falou at hoje emlngua brasileira? N o me consta que jamais M rio deAndrade tenha pretendido criar lngua nova. Nem ningum

    pensa que o portugus falado pelos brasileiros seja lngua nova.

    Nos seus livros j publicados o poeta paulis ta anuncia apublicao prxim a de um a Gramatiquinha da Fala Brasileira.Notem bem : no diz lngua brasileira, e sim fala brasileira.

    O que intenta aquela corrente a que aludiu o Prof. Sousada Silveira criar na linguagem escrita uma tradio mair*Prxima da linguagem falada natural, correta mas sem afeta-ao literria, da sociedade brasileira culta. Entre esta lingua

    gem e a tradio literria existe um abismo como no o hern Pais algum, inclusive o prprio Portugal. que a linguagem literria entre ns divorciou-se da vida. Falamos com Slngeleza e escrevemos com afetao.. ^u m be rto de C ampos repetiu num dos seus folhetins li-v- arios^ caso passado com A natole Fran ce que, tendo d-

    1 as sbre a correo gram atical de um perodo de sua au

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    toria, recorrera aos bons ofcios de Darmesteter, o fillogo

    ilustre. D e que terra o sr.? D e Paris, respondeu F rance . Ento ao Sr. que me cabe escla recer, respondeu o

    mestre.Darmesteter entendia que o francs falado por um pari

    siense culto no podia deixar de ser o bom francs. O mais literatura, e m literatura.

    A propsito da combinao dos pronomes oblquos me, te,lhe, nos, vos com o, a, os, as, combinao sempre evitada nalinguagem falada pelos brasileiros, cita o Prof. Sousa da Silveira um trecho de Alencar onde vem esta orao: Martim lhoarrebatou das mos. E comenta: Suprimam dali o o ousubstituam-no por o vaso, e vejam se a forma lapidar daquela frase no degenera em construo pobre e sem energia.

    N o passou pela cabea do mestre a construo que acudiria logo a Mrio de Andrade: Martim lhe arrebatou le dasmos. Bem sei a repugnncia que tal construo pode causara quem se educou na tradio clssica portugusa. Mas fra confessar que no h outra dentro do gnio da fala brasileira. Admito que tenha menor energia, menos conciso e elegncia. Tem contudo mais carter, do nosso ponto de vista,bem entendido. O ra todos sabemos que o carter um a escolade sacrifcios. . . Haver muito sacrifcio que fazer nessa tentativa de aproveitamento artstico da fala brasileira. E dentroda tradio clssica portugusa no h tanta coisa para lamentar entre as que se arcaizaram e morreram, sendo no entanto admirveis instrumentos de conciso e elegncia? Ospronomes en, endo por exemplo.

    O fato de um fillogo da mais pura formao clssica,

    como o Prof. Nascentes, j considerar lusitanizantes certasconstrues correntes na prosa literria brasileira de um Eu-clides, de um Monteiro Lobato, de um Lima Barreto muitosignificativo. E o meu sentimento que as formas brasileirasda linguagem falada sero chamadas a substituir as que oProf. Nascentes qualificou de lusitanizantes, com grande escndalo do Prof. Sousa da Silveira.

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    UM PURISTA DO ESTILO COLONIAL

    A d e r r u b a d a do antigo Solar de Megape provocou at aquino Rio muitos comentrios em conversa e artigos de jornais.Mais uma vez todos deploraram a falta de cultura artsticae histrica merc da qual vo desaparecendo as nossas relquias coloniais mais significativas.

    Jos Mariano (filho), mdico de gsto que em vez de darpara escrever castio virou no mestre arquiteto Diogo de Mu-

    ribara, autor do Solar Monjope, teve mesmo um momento demau humor e despejou uns remoques da mais fina ironia sobre a literatura plangente e lr ica dos tradicionalis tas de Pernambuco, que acabam de fundar um Museu para recolheras fotografias dos belos monumentos arquitetnicos que lesno puderam salvar.

    No tenho elementos para defender os tradicionalistas de

    Pernambuco que fundaram o tal Museu. Creio que ste deformao oficial. Ignoro as relaes entre os particulares eaqule instituto. J ouvi explicar o gesto lamentvel do atualProprietrio de Megape do seguinte modo: o usineiro teriabotado abaixo a velha casa para no entreg-la ao patrim nioPublico. Quem me contou sse caso estava cheio de admiraoPela faanha cvica do senhor de engenho, que le comparoua de no sei que heri da guerra dos holandeses incendiandoos sgus canaviais para no os abandonar nas mos do invasor.No acreditei. O Sr. Jlio Belo afianou que o Sr. Joo L o p e s

    e Siqueira Santos um homem bom, e um homem bom noProcederia assim.

    Tambm no acredito, como o Sr. Jlio Belo, que a culpaaquele feio gesto caiba Usina. Esta Usina com V grande

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    est a como smbolo de modernidade sem entranhas, de civilizao duramente materialista, de dinamismo atropelante.

    N o me parece razovel tanta preveno contra a usina. (Euvejo a usina com u pequeno, isto , um aparelhamento aperfeioado, fornecendo maior rendimento e permitindo aos nossos fabricantes de acar concorrerem com os produtores deJava e da Amrica Central. sses mtodos de uma tcnica industrial econmica podem perfeitamente co-existir com o amordas belas coisas e o culto da tradio aproveitvel, como de

    resto sei que coexistem no prprio Sr. Jlio Belo).Se preciso arran jar um a desculpa que nos tire o sentimento

    desagradvel de indignao contra o Sr. Siqueira Santos, noh seno levar o seu ato conta de indiferena ou ausnciaabsoluta de senso artstico e histrico. Quase todo o mundono Brasil como o Sr. Siqueira Santos. Portanto o que sepode fazer falar sempre que possvel nessas coisas para fo r

    mar ambiente. Quem dispe de gsto e fortuna, como JosMariano (filho) pode, alm de falar, agir: desvalijar conventos e solares em proveito nosso antes que judeus solertes ofaam para o seu e o do estrangeiro. Mas quem no temnada de seu, que h de fazer seno derramar lgrimas lricas?

    Jos Mariano (filho) foi de um sarcasmo incompreensvelpara com os pobres tradicionalis tas pernam bucanos, tanto

    mais quanto no fundo, bem no fundo, le talvez tivesse ganasde espinafrar com o tal Solar de Megape, sbre o qual achaque a crtica tem dito coisas nem sempre justas. Mariano ,em arquitetura colonial, tradicionalista, ou que melhor nometenha, um purista. Quer a tradio portugusa, alentejana. Megape no era para le a casa-grande mais bela do Estado.Preferia a ela as casas dos engenhos Anjos e Noruega. N o co

    nheo, infelizmente, nem uma nem outra. Por mim adoreiM e g a p e . N o sei de casa que ficasse m elhor no quadro da

    p a is a g e m pernam bucana. Eram linhas do passado que almde v e n e r v e i s por to bonitas, possuam tambm o encanto decondizer com as novas formas dos nossos dias: ela tinha emcomum com o arranha-cu o predomnio das geometrias retas.

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    Tradicionalistas pobres de Pernambuco, de Pernambuco ede todo o Brasil, o momento bem duro para ns que nodispomos, seno de lgrimas lricas. Depois da casa de Megape chegar a vez da S V elha da B ah ia. . . 1 O caso pior. N a Bahia m anda um hom em que conhece a im portncia enorme de um monumento como aqule. Recebeu o governo das mos de outro homem cuja residncia um riqussimomuseu das mais lindas antiguidades que j se colecionaramno Brasil. So dois cavalheiros de grande cultura e fino gsto.Como no fizeram nada para conservar e restaurar os belos

    monumentos coloniais de Salvador? Como deixam arrui-nar-se o Solar dos Aguiares?

    Certamente a ao dos governantes no basta. precisodespertar a conscincia do valor dessas relquias na mentalidade dos detentores eventuais delas. Criar o ambiente tradicionalista. Cho rar m uitas lgrimas lricas. . . E, na frase deHeine posta em epgrafe aos Manuscrito s de Stnio , esperar

    cem anos. . .

    AS CMARAS MUNICIPAIS NO BRASIL

    A i m p r e n s a do Rio comemorou em 1. de outubro de 1928 primeiro centenrio da Carta de Lei que organizou as Cmaras Municipais no Imprio. Destacou-se o servio do OIornl, com uma srie de artigos assinados por especialistas eacompanhados de algumas ilustraes curiosas, como a foto-Srafia da histrica igreja do Rosrio dos pretos, onde func>"n U o Senado da Cmara e de cujas sacadas foram a n u n c i a d a s

    1 Chegou: a velha S foi demolida.

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    ao povo em 9 de janeiro de 1822 as alegres palavras do fico;um desenho de Rugendas reproduzindo um aspecto da antiga

    Rua Direita; e outro de Debret, onde num bando solene daCmara Municipal se pode ver a indumentria aparatosa devereadores e almotacis de casaca prta, capa e volta, chapude dois bicos emplumado, e na mo a vara simblica.

    A quem conhece um pouco da nossa histria a lei de 1.de outubro de 1828 se apresenta antes como uma diminuioda autonomia e do esprito municipais em favor da centrali

    zao poltica que tem sido a tendncia constante dos governos desde a independncia at os nossos dias. O principalescopo daquela lei foi definir as atribuies municipais e regular o jgo das relaes entre municipalidades e governos

    provinciais e centra). Desde sse m om ento as Cm aras perderam aqule prestgio com que tantas vzes intervieramna vida nacional em ocasies decisivas.

    Durante os sculos coloniais elas foram os ncleos de cristalizao do nosso sentimento poltico. Em nome dle sabiam falar com firm eza e s vzes at com arrogncia, comoo fz em 1710 o presidente da Cmara de Olinda ao capito-general Sebastio de Castro Caldas.

    Sobretudo nas lutas e agitaes que precederam e seguiram o Sete de Setembro a sua atuao foi precpua. Quandoo prncipe entrou em conflito com as Crtes portugusas, choviam no pao as mensagens, moes e representaes dos Senados das Cmaras insistindo com le pela desobedincia aomandado de viagem. Foi o Senado da Cmara carioca que levou ao prncipe a representao dos oito mil patriotas; foiainda le que dias depois, subjugada a diviso reacionria deAvilez, ofereceu a D. Pedro o ttulo de Defensor Perptuo doBrasil e insinuou a convocao de uma assemblia constituinte.

    A evoluo poltica, com a organizao da vida nacionalindependente, tinha naturalmente que arrebatar s Cmaras opapel por elas representado com tanto brilho at a Independncia, principalmente a partir das franquias amplas das Ordenaes Filipinas, fonte de uma tradio liberal que a restaurao e o imprio respeitaram em linhas gerais.

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    Essa importncia poltica das nossas Cmaras no longoperodo colonial deixou vestgio at hoje no ardor que carac

    teriza as nossas polticas municipais. O brasileiro ainda notem educao poltica bastante para se interessar por umaeleio federal. Pouco se lhes d aos mineiros, por exemplo,que vena ste ou aqule numa campanha presidencial. Maspara bota r um hom em na chefia de um a vereao, so capazesde disputar a bala a vitria do seu candidato.

    A lei de 1828, retocada pelo Ato Adicional de 1834, querestringiu ainda mais a esfera da influncia municipal, prolongou-se at a queda da monarquia.

    curioso confrontar o Rio de hoje, movimentado e monumental, com a cidadezinha descrita no almanaque de TPlan-cher. O desenvolvimento foi enorme. Em 1828 a cidade'contava apenas 73 ruas, 23 becos, 6 praias, 1 caminho, 1 campo,10 largos, 5 ladeiras, 10 travessas e o Arco do Teles, queat hoje escapou inclume s transformaes de em trno.A cidade ficava limitada pelo bairro da Glria de um lado,

    pelo Saco do Alferes do outro. O Catete parecia to afastadodo centro, que era ento apenas lugar para passar as festasnas lindas chcaras que bordavam as faldas do morro de Gua-ratiba. No havia ainda a mania da consagrao patritica nanomenclatura das ruas. Elas traziam nomes ingnuos tiradosde um detalhe topogrfico ou do ofcio ou comrcio dominan

    te. Era a Rua do Sabo, a Rua das Violas, a Rua dos Lato-eiros, a Estrada de Mata-Cavalos... Esta quase uma personagem nos romances de Machado de Assis. So hoje raras asruas que guardaram sses nomes tradicionais. alis um maucostume antigo sse de andar trocando o nome das ruas. Em1857 Francisco Otaviano lamentava num dos seus folhetinsdo Jornal do Comrcio terem crismado prosaicamente, diz

    ele em Rua das M arrecas a R ua das Belas N oites, que le-Vava s alamedas ensombradas do Passeio Pblico.O Rio de 1828 era uma cidade de seus 130.000 habitantes

    cm uma receita orada em 31:000$000., o da capital comeou com a instituio da Prefeitura,

    regime republicano. Os jornais reco rdam a figura de

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    Barata Ribeiro, o prefeito que desrespeitou o mandado judi-dicirio com que se pretendeu embargar o arrasamento do c

    lebre cortio Cabea de Porco. Desde Barata Ribeiro notem faltado energia e dedicao aos administradores da cidade. O que faltou a todos porm foi o senso do urbanismo.Sob les a cidade cresceu desmedidamente, mas sempre leido capricho com que ela veio descendo pelas vielas dos morros s rechs pantanosas.

    VELHAS IGREJAS

    Q u a n d o e m 1926 voltei a Pernambuco aps uma ausncia detrinta anos, era de preferncia para Olinda que se voltava aminha curiosidade. Para Olinda, cujo oiteiro nunca subi emmenino e da qual no conservava seno a lembrana dos banhos de mar e da viagem no trenzinho de maxambomba quepartia da esquina da R ua da U nio, da escura estao em

    cuja calada fui tanta vez comer tapioca de cco nos tabuleiros das pretas, que ainda cobriam os ombros com vistososxales de pano da Costa.

    Apesar de vir da Bahia, to rica de monumentos e tradies do nosso passado, Olinda produziu em mim uma emoo nunca dantes sentida. Na Bahia fica-se um pouco vexadode parar no meio do tumulto das ruas para contemplar a fren

    te de algum velho sobrado. Em Olinda h o silncio e a tranquilidade que favorecem os passos perdidos dos que se comprazem nessa contem plao do passado e dos seus vestgiosimpregnados de to nobre melancolia.

    Mas chegado ao alto da colina, quebrou-se-me de sbito odoce encantamento que eu vinha tendo por aquelas ladeiras

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    velhinhas, quando me vi em face da nova S. Tinham transformado a velha capela barroca num detestvel gtico defancaria! Como havia sido possvel desconhecer a tal ponto o

    significado da igreja primitiva? Contaram-me ento que orro no se limitara a aquela monstruosa adulterao: o interior do templo fra tambm despojado dos seus painis deazulejos, que por muito tempo ficaram amontoados num canto como calia imprestvel, at que um amador dessas coisas

    pediu e obteve o consentimento de reconstrui-los para si clevou-os.

    Tremo sempre que leio nos jornais a notcia de que alguma das nossas velhas igrejas vai sofrer reparaes. Se as obrasse limitassem a uma simples consolidao e limpeza, restaurao no estilo geral de detalhes que trabalhos anteriores

    j desfiguraram, se deixassem como esto os seus ouros am ortecidos de ptina, no haveria decerto inconveniente. Mas desgraadamente sabemos todos como essas coisas se fazem.

    Mesmo quando existe confessa a inteno de poupar as linhas e a decorao primitivas, o resultado sempre desastroso.O ouro de hoje o ouro-banana. Quem no viu at dois anosatrs o interior de S. Francisco na Bahia no poder mais fazer idia do deslumbramento mstico que instilava na almao brilho velho da antiga douradura. Hoje um amarelo estridente. A capelinha de Nossa Senhora da Glria do Oiteiro no

    Rio perdeu tam bm com a restaurao a sua doce intimidade.1No entanto quer num quer no outro caso houve cuidado emaao sacrificar a feio tradicional. Diante dsses exemplos, fi-a-se com mdo de que toquem nas belas igrejas do passado, asutucas que do, independente de qualquer crena, a vontadede rezar, porque s elas suscitam pelo milagre artstico a emo-ao religiosa. Dos templos modernos que conheo s um ins

    pira igual sentimento a ig reja de S. Bento em S. Paulo. To-os os outros so pobres de arte, pobres de ambiente, pobrese sombra. Por tda a parte o mrmore (quando no a io-

    anc ^uve Posteriormente nova reparao, dirigida pelo DPHAN,repos o interior da Capela no seu estilo primitivo.

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    tao do mrmore), o cimento armado e o biscuit vo substituindo a madeira-de-Iei de talha caprichosa.

    Que procedam assim nas novas igrejas, v, que os tem pos no so mais de bastante f ou desprendim ento para queos ricos catlicos faam doaes como a do lampadrio de S.Fran cisco da Bahia, com os seus oitenta quilos de pratacinzelada... E os escultores quase que abandonaram a talhadireta pela fcil e espria modelagem (no atoa que a escultura anda em tal decadncia). Devemos contudo empregar

    todos os esforos para prolongar a conservao do patrimnio insubstituvel que nos legaram os nossos antepassados.Quando no fr possvel restaurar dignamente um velho monumento, melhor ser deix-lo arruinar-se inteiramente. Asrunas apenas entristecem. Uma restaurao inepta revolta,amargura, ofende.

    O QUE ERA O PERNAMBUCO DE 1821

    T e n h o u m a m i g o cuja leitura favorita so os velhos livrosde viagem: uma doce mania que est ficando to dispendiosa quanto a das antiguidades de prata e jacarands. . . O meuamigo distingue-se entre os amadores dessas coisas pelo amorquase de namorado que pe na procura e aquisio de cadavolume. No para le uma compra vulgar. No. sempre

    uma pequena aventura, uma deliciosa aventura em que leemprega tanto pudor e delicadeza como na aproximao ecrco de uma mulher. Obtido o volume cobiado, a sua leitura tem para le o sabor de um idlio.

    sua ultima conquista foi o livro de Maria GrahamJournal o f a Voyage to Brazil, exemplar velhinho ilustrado de

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    estampas amorveis desenhadas pela autora, em uma das quaistive o prazer de encontrar a prta das bananas da minha

    Evocao do Recife, com todos os detalhes caractersticosque faziam o encanto da minha meninice nas tardes da Ruada Unio: o largo tabuleiro de pau, o xale vistoso de panoda Costa, o colar de contas, o bracelete, a camisa muito alvadescaindo nos ombros magros.

    Maria Graham est carssima agora depois dos estudos deOliveira Lima sbre o tempo de D. Joo VI. O alfarrabista

    contou-me ter vendido alguns dias antes ao Sr. Paulo Pradoum exemplar de bela encadernao por quatrocentos mil-ris.Meu amigo pagou pouco menos que isso pelo seu. O livro emsi uma dessas coisas sem preo, to deleitoso vista noseu aspecto grfico, como agradvel ao esprito no interssee amenidade do texto. Maria Graham encanta como o prprionome.

    Vou repetir um pouco do que la escreveu sbre o Recife. o nico jeito de aliviar a minha paixo anacrnica.

    Atravessava a minha provncia natal um perodo memorvel.Os patriotas de Goiana sitiavam a cidade que Lus do Rgo,soldado experimentado nas campanhas da pennsula, defendiaem nome da causa realista. um homem severo, diz ela,

    e especialmente entre os soldados mais temido do que ama

    do. Precisamente na vspera de sua chegada o governadorrepelira o ataque dos rebeldes ao sul de Afogados.Longe de atemorizar-se, ficou ela encantada de desembar-

    car e observar a cidade em estado de crco, espetculo inteiramente novo para ela. Os seus primeiros passos foram paraPalcio, onde estve com o governador, a senhora e as filhas.Madame Lus do Rgo era agradvel, rather pretty, e fa-ando ingls como uma inglsa (sua me, a Viscondessa do

    Kjo Sco, era irlandesa). Nada mais afvel e lisonjeiro queas suas maneiras e as de suas meninas, uma das q u a i s degrande formosura.

    Cumprindo o dever de cortesia, a visitante p e r c o r r e u a ci-ade, de que d pormenores muito curiosos. S u r p r e e n d e u - a

    grandemente o hbito de instalar a cozinha no andar superior,

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    com o que se mantinham em temperatura fresca os andaresinferiores. O pavimento trreo era ocupado pelas lojas, apo

    sento de escravos e cocheiras; no segundo ficavam os escritrios e armazns; a famlia residia no terceiro andar. Emcima de tudo, a cozinha.

    Impressionaram-na muito as cenas da escravido, o mercado dos cativos crca de cinquenta criaturas m oas, m oleques e raparigas com tdas as aparncias da doena e dafome, sentadas ou deitadas na rua no meio dos mais imundosanimais. Do balco da casa do cnsul presenciou uma mulher branca, um demnio, bater numa negrinha, torcendo-lheos braos cruelmente. Em Olinda, perto do Varadouro, viu aopr-do-sol um co puxar da areia um brao de negro defuntoe devor-lo . . .

    Como andavam vestidas as recifenses daquele tempo? Dentro de casa usavam uma espcie de bata que deixava o seiomuito exposto. Na rua traziam um xale ou manta das cres

    mais alegres, cadeias de ouro no pescoo e nos braos, brincos de ouro.

    Ficou surpreendida com a extrema beleza de Olinda, ouantes do que dela resta, porque est agora em melanclicoestado de runa.

    Apesar da incerteza da hora, que era de expectativas graves eapreenses de luta iminente, o governador e a senhora no se

    descuidavam de obsequiar os hspedes da fragata inglsa, aosquais ofereceram um jantar em palcio. Jantava-se naquelestempos s 4 1/2. A recepo foi muito cordial. Fz-se depoisexcelente msica. Madame Lus do Rgo tinha uma voz admirvel, e houve alm dela vrios outros bons cantores e pianistas.

    Aventura engraada foi a que se passou com a roupa lava

    da de bordo. Os patriotas no a tinham querido deixar passarde volta, de sorte que l foi uma comisso de inglses enten-der-se com os revolucionrios nos postos de vanguarda deCapibaribe acima. Maria Graham aproveitou a ocasio paraver o que ela andava acesa em curiosidade por olhar: os arredores da cidade, de que registra uma encantadora descrio.

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    N o quartel-general dos revolucionrios, em face dos m em bros da junta do governo provisrio um hom enzin ho m uito

    smart, que servia de intrprete em francs passvel, comeou,a propsito daquela reclamao sbre barreia de roupa, umlongo discurso de ataque injustia do governo portugus

    para com o Brasil em geral e p ara com os pernam bucanosem particular. Os ingleses no pescavam quase nada mas Maria Graham sentiu que a respeitvel junta fazia a mais altaidia do talento e da eloquncia do orador. Depois do dis

    curso, a negociao sbre a roupa foi rpida e os estrangeiros obtiveram no s o que pretendiam como outros grandesfavores e provas de cortesia.

    Em outubro, acertado um armistcio entre os campos adversrios, pde a inglesa observar a cidade, restituda suaatividade normal. Chamou-lhe a ateno a grande preponderncia da popu lao negra em 7 0 .0 0 0 pessoas (includa

    Olinda) dois teros eram de pretos e mulatos, os mulatosmais ativos, mais industriosos, mais animados do que as outras classes. Muitos enriquecem e no ficam atrs em promover a independncia da ptria. J o negro frro, quandotinha o bastante para comprar uma bonita fatiota prta parasi e braceletes e colar para a madama, no queria saber maisde se cansar . . .

    Muitos, de qualquer cr, uma vez que podiam pagar-se oluxo de um escravo, no faziam mais nada. O prto trabalhavaou mendigava para les.

    Os europeus evitavam com horror o casamento de suas filhas com os brasileiros natos, preferindo d-las, filhas e fortunas, ao caixeirinho da mais humilde extrao europia.

    Maria Graham visitou uma famlia portugusa, curiosa queestava de notar a diferena entre um interior ingls e um interior portugus. A disposio dos aposentos era a mesma. Asala de visitas diferia s em dispor de melhor moblia, deresto tudo artigo ingls, at o bonito piano de B r o a d w o o d ; ^ as a sala de jantar era inteiramente ou tra: m uros cobertos

    estampas inglesas e pinturas da China; na parede menora sala, uma grande mesa apresentando sob redoma um pre

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    sepe completo: anjos, os trs reis magos, musgos, flres artificiais, conchinhas e missangas, gazes salpicadas de ouro e

    prata, os santos A ntnio e Cristvo, um direita , outro esquerda. Pendentes do teto, nove gaiolas de passarinhos enuma saleta de passagem uma poro de papagaios bem educados. Ao canto, as grandes talhas para refrescar a gua, ma-nufatura baiana. O ar e maneiras da famlia, perfeitos, s queos homens em casa no usavam colarinho.. .

    A casa de campo do cnsul ingls pareceu-lhe, como tdas

    as outras, comparvel a um bangal oriental: um s pavimentoesparramado, com larga varanda em volta e cercado de roseiras, coqueiros e mangueiras.

    N o foi sem saudades que M aria G raham deixou o Recife,onde, salvo as cenas de escravos, tudo foi alegria pitorescapara os seus olhos. Do que presenciou das lu tas entre os patriotas e a gente de Lus do Rgo levou a persuaso de que

    nunca mais aquela parte do Brasil se submeteria a Portugal.Acertou mais do que pensava. Ela mesma se demorou noBrasil o bastante para verificar que todo o pas sentia assim,quando um ano depois proclamou e defendeu de armas na moa sua independncia.

    B&STA DE N. S. DA GLRIA DO OITEIRO

    A l g u m , falando da festa de Santa Cruz, no Recife, notavaque onde o brasileiro mais sente nos olhos o gsto do Brasil decerto quando fica parado num ptio de igreja em dia defesta de Nossa Senhora. O cronista acentuava como aspectodominante nessas festas a democracia sincera da gente detda cr que se mistura.

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    sse prazer, que ainda subsiste forte no ambiente mais tradicional das provncias, quase desapareceu na capital do pas.

    So sempre as mesmas as festas de igrejas, mas sem aquelepitoresco popular que desenvolv ia no adro o movim ento ruidoso das romarias.

    Hoje no Rio s h duas solenidades religiosas a sustentar atradio da cidade: a festa da Penha e a festa da Glria.

    N unca fui festa da Penha. Parece que ela cara sobretudoaos portugueses. Na minha infncia eu olhava com uma certa

    repugnncia para os magotes de labregos que desde cedoacudiam de todos os pontos da cidade para o longnquo subrbio da baixada, em prestando s ruas uns to ns exticos dealdeia lusa. Iam a p ou em caminhes ou carros abertos.Levavam em evidncia grandes garrafes de vinho verde ouvirgem, o que fz dizer a Artur Azevedo que pareciam maisamigos do virgem do que da Virgem. A tiracolo traziam

    enormes fiadas de rscas coloridas. Estas rscas coloridaseram o complemento indispensvel, o distintivo mais caracterstico do folio da Penha.

    De tudo aquilo me ficou uma recordao de brdio portugus. Por isso a Penha nunca me interessou.

    Mais brasileira, mais tradicional, mais potica, incompar-velmente, a festa de Nossa Senhora da Glria. O pequeno

    oiteiro da Glria, com a sua capelinha duas vzes secular, urn dos stios mais aprazveis, mais ingnuamente pitorescosda cidade. As velhas casas da encosta cederam lugar a construes modernas. Entretanto a igrejinha tem tanto carterna sua simplicidade, que ela s e mais uma meia dzia dePalmeiras bastam a guardar a fisionomia tradicional da colina. Embaixo a paisagem se renovou completamente. Lem

    bro-me bem do Largo da G lria e da Praia da L apa da minha meninice: um desenho de Debret. Desapareceu o casaro do mercado que servia de caserna e despertou o interssePublico quando abrigou por algum tempo as jagunas e os ja-Suncinhos trazidos de Canudos. O largo estendeu-se at fal-

    a do oiteiro. O caminho da praia alargou-se em ampla aveni-a arborizada. O velho edifcio onde no imprio estava ins

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    talada a Secretaria dos Negcios Estrangeiros, foi substitudopelo Palcio do Arcebispado. Tdas essas mudanas vie ram realar ainda mais a graa ingnua da igrejinha. S uma coisaa prejudicou: a mole pesada do Hotel Glria. O observadorque olha do morro de Santa Teresa no v mais o perfil dacapela recortado no fundo das guas.

    O romance Lucola comea por um encontro no adro dapotica ermida no dia de Nossa Senhora da Gl ria . J naquele tempo, 1855, diz Alencar pela bca do heri, era aquela

    uma das poucas festas populares da Crte. Descreve-a o romancista:

    Tdas as raas, desde o caucasiano sem mescla at o africanopuro; tdas as posies, desde as ilustraes da poltica, da fortuna ou do talento, at o proletrio humilde e desconhecido; tdasas profisses, desde o banqueiro at o mendigo; finalmente, todosos tipos gostosos da sociedade brasileira, desde a arrogante nuli

    dade at a vil lisonja desfilaram.. .O cortejo de Alencar no est completo. Faltam a le as

    figuras principais que eram as dos soberanos. Os imperadores do Brasil, e antes dles os vice-reis e governadores-gerais.compareciam todos os anos festa, prestigiando com a suapresena a tradicio nal soleriidade, e isso dava aos festejos umcunho de comunho democrtica que singularizou entre tdas

    as comemoraes eclesisticas o dia da Glria do Oiteiro. Erauma festa a um tempo popular e aristocrtica. D. Pedro II,a Imperatriz, a Princesa, acompanhados de numeroso squito,onde se viam os homens mais ilustres e as senhoras mais lindas da Crte, subiam a ngreme colina e de volta da solenidade descansavam na Secretaria dos Estrangeiros.

    Com queda da monarquia os festejos perderam inteira

    mente o elemento aristocrtico. O progresso da cidade rou-bou-lhe muito da concorrncia . Em to do o caso, o dia deNossa Senhora da G lria ainda no decaiu categoria defesta de bairro. Ainda uma das raras festas populares dacidade.

    Tive ste ano particular interesse em visitar a ermida porque sabia que a irmandade levara a efeito grandes obras in

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    ternas de restaurao. Entrei o prtico receoso, embora tivesse lido nos jornais uma entrevista em que um dos membros

    daquela irmandade assegurava o respeito que presidira aostrabalhos de restaurao. O meu receio infelizmente se confirmou. A pequenina nave, despojada dos seus ouros e dassuas argamassas patinadas, perdeu o encanto que lhe vinha daidade. Tudo est novo ou renovado. Baixei os olhos e sa depressa para guardar nos olhos a im agem das velhas capelinhase tribunas, como eu as vi at o ano passado.

    Fora, no adro, faziam o clssico leilo de prendas. Rapazes e mas namoravam. Isso ao menos no mudara! S quea concorrncia amulatou-se bastante. A festa hoje exclusivamente do povo.

    As ladeiras de acesso ainda regurgitavam quando desci sonze da noite. No havia mais, como nos outros anos, asbandeirinhas e galhardetes enfeitando o Largo da Gl ria ,nem canela cheirosa espalhada no cho. Olhei ainda uma vezpara o cm oro octgeno dos versos detestveis de PrtoAlegre: a ermida luzia docemente. No se viam as luzes, estando o templo iluminado pela projeo de fortes focos el-tricos dissimulados na amurada do adro. O efeito muitobonito porque nada m ascara as linhas ingnuas da igreja. Todavia no deixei de ter saudades da iluminao primitiva queformava em trno da capelinha um como manto cintilante de

    Nossa Senhora.

    ARQUITETURA BRASILEl i l fc

    DE 1914 provocou em todo o m undo um a cotoo re-'^escencia do sentimento nacional, que andava adormecido

    r vrias dcadas de propaganda socialista ativa. As elites

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    sonhavam com uma organizao poltica e social mais justanuma humanidade sem fronteiras. Mal, porm, se declarou o

    conflito, o esprito feroz de ptria apoderou-se de todos, inclusive de socialistas. Nas naes beligerantes o movimentonacionalista assumiu naturalmente as formas do patriotismomais agressivo. Em pases mais remotamente interessados,como foi o caso do nosso, o sentimento nativista exprimiu-se nas artes por uma volta aos assuntos nacionais.

    A msica culta entrou a recolher sistemticamente a msica

    popula r desde o tem po da colnia. As artes plsticas tom aramum qu de primitivo, como que procurando imitar a ingenuidade de cr e desenho das promessas de Congonhas do Campo e Bom Jesus de Pirapora. Os modernistas da literatura,aps um breve perodo de treino tcnico em que refletirama sensibilidade dos poetas europeus de vanguarda, puseram-sede repente a considerar em que maneira a terra graciosa...

    E foi ento uma verdadeira corrida para aproveitar tudo.Foi sse movimento que a arquitetura procurou tambm

    acompanhar tentando criar a casa brasileira. O fim do segundo reinado assinalou a decadncia do esprito tradicionalna construo. No havia mais nem a lembrana daquelessargentos de engenheiros que riscavam com mo forte e sbria os projetos de igrejas e de casas de cm ara e governo.

    Os Calheiros e os Alpoins foram, falta de arquitetos, sucedidos pelo mestre-de-obras portugus, insigne introdutor dolambrequim, das compoteiras de platibanda e do mrmore fingido. Mas ste ainda fazia os casares retangulares com, aolado, a acolhedora varanda. O que veio depois era ainda pior:tinha pretenses a estilo. A Avenida Atlntica, coleo de aleijes, ilustra essa poca, a mais detestvel da arquitetura emnosso1pas.

    O mau gsto tomou tais propores, que as velhas casaspesadonas do tem po da colnia e da m onarquia assumirampor contraste um ar dis tinto e raado, um ar de nobreza parasempre extinta na repblica.

    F o i dessa contemplao melanclica que nasceu, de unsquinze anos para c, um movimento de elite em favor da

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    casa brasileira. Era preciso, aconselhava-se, construir a casabrasileira dentro da tradio secula r que a afeioara segundoas necessidades do nosso clima, dos nossos costumes e dasnossas necessidades.

    O movimento pegou, pegou demais. Fabricaram com de-talhezinhos de ornato um estilo, deram-lhe um nome errado,e a est, nas casinhas catitas de telhas curvas e azulejos enxeridos, em que deu o renascimento da velha arquitetura brasileira comeado a pregar em So Paulo pelo sr. Ricardo Se

    vero.O meu amigo Jos Mariano anda agora com um trabalho

    danado para mostrar que nada disso casa brasileira, queno basta azulejo e telha curva para fazer arquitetura brasileira, que os profi teurs da moda (porque hoje moda ter oseu bangal colonial) sacrificaram inteiramente o espritoarquitetnico da renovao a exterioridades bonitinhas.

    E de fato o que est acontecendo. Os grupos escolares,os edifcios de Cmaras municipais que se esto construindodentro do estilo representam o que h de mais contrrio aocarter da construo em que soi-disant se inspiram. Fiqueihorrorizado em Sabar quando vi a nova casa da Cmara, queapesar de todos os matadores neocoloniais no passa de umcasebrezinho ridculo, ao passo que ao lado o antigo sobrado

    da Cmara guarda uma linha de robusta dignidade, sse arde casa que no enfeite urbano, mas na definio de LeCorbusier m quina de mo rar. O caso da Cm ara de Sabar tpico, porque pe um ao lado do outro o padro ins-pirador e o pastiche desvirtuado, num contraste verdadeiramente grotesco.

    preciso repetir a essa gente as palavras de Lcio Costa,

    um dos poucos arquitetos novos que sentem o passado arquitetnico da nossa terra: a nossa arquitetura robusta, forte,macia; a nossa arquitetura de linhas calmas, tranquilas;tudo nela estvel, severo, simples, nada pernstico.

    E a sse carter de simplicidade austera e robusta que devemV)sar os que pretendem retomar o fia da tradio brasileirana arquitetura.

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    CRNICA DE 1880

    A l e i t u r a dos velhos almanaques proporciona muitas vzes gente surpresas bem curiosas. Quem diria, vendo o poucocaso com que hoje tratam aqui um Vila-Lbos, quem diriaque esta cidade do Rio de Janeiro j vibrou durante dois diasinteiros de puro entusiasmo por um artista?

    Pois foi lendo a Folhinha Dramtica para o ano de 1881,

    contendo a comdia em um ato O Segredo de uma Fidalga assim como a crnica nacional de 1879 a 1880, publicadae venda em casa de Eduardo & Henrique Laemmert, Ruado Ouvidor 60, que tomei conscincia da decadncia artsticaem que andamos nesta Repblica Nova, tda voltada para aconquista dos bens materiais em detrimento das glrias espirituais que outrora alvorotavam a ptria de Carlos Gomes!

    Porque se trata de Carlos Gomes, precisamente. Naqueleano de 1880 o autor d O Guarani regressava ao Brasil, depoisde uma longa ausncia, durante a qual tanto elevara no estrangeiro o nome da sua terra. A nossa mocidade acadmica,bem diversa da de agora, que deserta os prdios in telectuaispara correr aos encontros de box e jiu-jitsu , preparou-se comgrande antecedncia para honrar na pessoa do cisne de Campinas o m aio r gnio musical do Brasil. E eis como os fes

    tejos, que segundo o Jornal do Comrcio, de 19 de julho, chegaram exaltao, ao delrio mesmo, se desenrolaram.

    * * *

    s 5 horas da manh (acordava-se cedo!) estudantes dasEscolas Militar, Politcnica e Marinha, das Academias deMedicina de Direito de S. Paulo, das Belas-Artes, do Liceu

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    de Artes e Ofcios, do curso de preparatrios, carregando osrespectivos estandartes escolares e mais os paulistas residentes na Crte e o Crculo Italiano Vtor Manuel transpunhama porta do Arsenal de Marinha para tomar lugar a bordodo transporte M adeira e de numerosas lanchas de vapor (dizia-se, com mais vernaculidade, de vapor) que iriam ao encontro do paquete Guadiana. Acompanhavam-nos as bandasmilitares dos batalhes de engenheiros, do 7. e 10. de infantaria e dos imperiais marinheiros.

    Durante o trajeto, por iniciativa dos srs. estudantes Pa

    trocnio e Paula Ney (os jornais escreviam sempre os srs.estudantes), fz-se a coleta improvisada de 100$700, que reunida de 430$000 anteriormente obtida, seria levada conta da alforria do escravo Tito, avaliado em 800$000, e cujacarta deveria ser-lhe entregue pelo maestro na noite do seubenefcio.

    O Guadiana entrou a barra s 8 horas. s 9 os estudantes

    subiram s vergas do M adeira e acenaram com os lenos, saudando Carlos Gomes, que apareceu no convs do paquteagradecendo com o leno as aclamaes entusisticas dos ra

    pazes. Dezessete embarcaes de vapor e inmeros escaleres escoltavam ento o Guadiana. As girndolas espoucavamquer a bordo, qu er em te rr a . . .

    * * *

    As 10 horas, Carlos Gomes desembarcava no Arsenal eseguia para a casa do inspetor, onde almoou. Por essa oca-Sla foi-lhe oferecido um chapu de sda com a respectivadedicatria. Vo tomando nota.

    As 10 1/2 o maestro deixou o Arsenal. A sua passagem

    Pelas ruas do centro foi uma apoteose. As do Ouvidor e Primeiro de Maro estavam ornamentadas. As bonitas c o l c h a s

    e damasco e brocado, que hoje no se vem mais, bandeirasestes adornavam as sacadas, de onde as senhoras e me-as agitavam lenos e atiravam flres sbre a cabea dor d O Guarani.

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    A cada passo o cortejo parava para que se prestasse ao

    maestro uma homenagem. Aqui era uma distinta senhoraque lhe oferecia dois ramalhetes. Ali era uma comisso detipgrafos da casa dos srs. Leuzinger que lhe trazia um ramode flres de pena. Das redaes dos jornais partiam idnticas homenagens. E em frente Notre Dame no s lhe foirecitada uma poesia, como lhe fizeram presente de uma ricabengala de unicrnio com casto de ouro. Vo tom ando nota.

    N o Largo de S. Francisco havia vistoso coreto . O m aestro

    Mesquita empunhou a batuta, a orquestra executou a ouverture d O Guarani, o Sr. estudante Paula Ney soltou o verbo,entregando a carta de liberdade do alforriando Lino ao maestro, que a passou ao escravo, abraando-o com lgrimas nosolhos. Ento as bandas militares tocaram o Hino Nacional.

    E o cortejo prosseguiu pela Rua do Teatro, Largo do Rocio e Rua Visconde do Rio Branco, sempre debaixo de vivas

    ovaes. A Secretaria do Imprio estava repleta de senhoras.N o Club M ozart o m aestro recebeu as principais homenagens,sob forma de discursos das vrias comisses. S s 2 1/2 que pde le se retirar para o Engenho Velho, hospedando-se em casa do Sr. Casteles. E noite as principais ruas emuitos estabelecimentos iluminaram-se festivamente. No coreto do Largo de S. Francisco uma banda tocava. Parecia umadata nacional.

    * * *

    No dia seguin te continuaram os festejos. Diz o Jornal do Comrcio que tarde j era difcil o trfego por algumasruas, especialmente pela do Ouvidor.

    noite esta apresentava um tom verdadeiramente festivo (hoje os reprteres diriam ferico): eram lanterninhaschinesas, copinhos de cres e uma enorme profuso de bicos de gs, uns em linha reta, outros formando arcos e em

    b lem as N a Rua dos Ourives, por baixo de cada arco de gshavia uma estrela, tendo no centro o nome de uma dasperas do maestro e em semicrculo o seu nome. Depois das5 horas, vrias bandas tocavam em diversos pontos da cida

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    de. A Sociedade Euterpe Comercial Tenentes do Diabo (atm como comearam os Tenentes do Diabo) embandeirou

    e iluminou tda a fachada, onde se via rico trofu de instrumentos de msica encimado pelo retrato do maestro.

    E o Club dos Democrticos? Tambm embandeirou e iluminou a fachada. Sbre o frontal da entrada havia uma lirarodeada de flhas de louro, tendo ao centro a inscrio: Agratido um dever.

    Nessa noite a m ocidade das escolas realizou pela cidade

    uma passeata. Levavam todos lanternas chinsas, alguns arcos com transparentes no centro, onde se liam os nomes dasperas do campineiro, e cada escola carregava o seu estandarte. Atrs vinham as bandas de msica. Por tda a parterecebiam-nos coraes expandidos pela mais sincera satisfao, porfiando todos em honrar o laureado maestro. Assimdesfilaram finalmente diante do Club Mozart, onde se encontrava Carlos Gomes em companhia de seu filhinho.

    s 10 horas da noite, o grande brasileiro saa do club, dirigindo-se Rua do Ouvidor, que percorreu de ponta a ponta,seguido por mais de duas mil pessoas de tdas as gradaessociais. De instante em instante recitavam-se poesias, queeram calorosamente aplaudidas.

    Crca de quinhentas pessoas visitaram o maestro na casad Engenho Velho.

    * * *

    Como os tempos mudaram! Quando Vila-Lbos voltou dauropa no teve nada disso. No ganhou bengala de unicr-

    n' com casto de ouro, nem chapu de sda com a respecti-Va dedicatria. Nenhum sr. estudante fz discurso. Os seusconcertos estiveram s moscas. No entanto le tambm o

    ^ r gnio musical de nossa te rra . . .0,mara Que Vila-Lbos no leia esta minha crnica: tudo

    0 e muito triste!

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    N A C M A RA -A RD EN TE D E JOS DOPATROCNIO FILHO

    A i g r e j a do Rosrio dos Pretos tem aspecto despojado e pauprrim o. talvez a nave mais tris te do Rio, porque com sernua e modesta bem grande e faz pensar na frase de Burton,

    a quem as igrejas brasileiras davam a impresso de huge barns,celeiros ou paiis enormes. le dizia isso a propsito das belas igrejas mineiras do Aleijadinho. Na igreja do Rosriodos Pretos a impresso de Burton justa. O templo no temseno intersse histrico: em suas dependncias funcionou provisoriamente o Senado da Cmara da cidade: foi de l quesaiu o prstito levando ao Prncipe a moo assinada pelosoito mil patriotas, e foi de l, de uma das sacadas laterais,que Jos Clemente Pereira, de volta do Pao, anunciou aopovo as palavras memorveis do F ico. A velha ig re ja guarda ainda um jazigo ilustre, o de mestre Valentim, segun

    do assinala uma placa de bronze direita de quem entra.Al estve exposto em cmara-ardente o corpo de Jos do

    Patrocnio Filho, Jos Carlos do Patrocnio Filho, o Zeca Patrocnio. Estive l depois de meia-noite e demorei-me umahora vendo os crios arder e ouvindo a conversa de amigosque recordavam casos da vida agitada e bomia do extinto,j . B. Silva, o Sinh dos sambas estupendos, (no arredara

    p dali) me contava o fim de um a noitada em que o Zecao intimou com um navalho cheio de dentes a fazer umaserenata sob as janelas da atriz Lia Binatti.

    Q u e m tivesse encontrado uma vez com o Zeca tinha umahistria engraada para contar. Eu conheci-o ultimamente,numa farra em certa casa inconfessvel da Rua Riachuelo.

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    Estava l o Vila-Lbos, o Ovalle, o Joo Pernambuco, o Ca-tulo. O violo passava de mo em mo, porque todos toca

    vam- Catulo estava impossvel. Bebera cerveja demais e deupara declam ar poemas. Ns queramos que le cantasse umasmodinhas, bem bestas, bem pernsticas, como A Tua Coma,ou Clia, Adeus! ou Talento e Formosura. Mas o bardoestava em mar de grandeza e dizia muito srio a duas belezas venais:

    M inhas senhoras, eu tenho sessenta anos e j li todos

    os grandes poemas de tdas as literaturas; li todo o Homero,todo o Virglio; li Goethe, Shakespeare, Ariosto: nunca encontrei nada como ste poema da minha lavra que vou lhesrecitar!

    Quando le puxava o pigarro para comear e a versalhadaparecia inevitvel, o Zeca salvava a situao:

    Catulo, canta aquela modinha! Que m odinha? A quela em que voc com para um p a um pensam ento

    de Pascal.E como Catulo estava por conta da cerveja, esquecia ime

    diatamente o poema e cantava a modinha pedida.Zeca era pequeno, tez baa e magrssimo. Nunca vi nin

    gum mais magro. Magro assim, s quem est nas ltimas.Mas o Zeca era magro assim e tinha um porte, uma vivaci

    dade de rapaz com perfeita sade. sse contraste era coisasurpreendente. Ouvia-se falar de vez em quando que o Zecaestava muito doente, coitado do Zeca, e de repente aparecia0 Zeca de smoking na Avenida s 3 1/2 da madrugada, desenvolto, loquaz, cheio de planos.

    V olto p ra Paris. O Trll s me d uns trs contos eeu com menos de seis no posso viver aqui. Prefiro morar em

    aixo de uma ponte em Paris!E viveu tda a vida assim, do Rio pra Paris e de Parisd ri ^ ' : de po is da sinistra aventura passou aqui um

    ao mais duro, sobrecarregado de tanta tarefa jornahstica

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    vulgares que na excitao do whisky tomava como relquias dearte tradicionais. Ganhou contos de ris at em Ilhus.

    Ganhar dinheiro para Zeca Patrocnio parecia ser coisa tofcil quanto respirar. O seu esprito, a sua graa vivaz, asua capacidade de inveno, de improvizao cativavam primeira vista e dir-se-ia que os amigos tinham prazer em lheabrir a blsa. Zeca era um pardal que fazia gsto sustentar,que fazia gsto ver alegre, irrequieto. Tendo nascido poeta,s fz versos no tempo em que cursava os preparatrios.

    H sujeitos de pouco talento e no entanto com tanta habilidade para aproveitar sse pouco talento que com meia dzia de lugares-comuns organizam em alguns anos uma reputao literria ou cientfica, dominam a sociedade e chegamantes da maturidade s Academias. Zeca Patrocnio era otipo oposto, dos que no tomam a srio o dom que trouxeram do bero, desperdiam-no e morrem sem deixar atrs

    de si vestgio da riqueza malbaratada.Junto essa ladeada pelos seus crios, as pretinhas de cabeabranca (com o deviam ser velhas!) da Irm andade do Rosrioajoelhavam de hora em hora para rezar o tro em voz alta.Haver espritos e o de Zeca veria naquele momento o es-petculo tocante? pensava eu fitando o atade.

    N a m anh dsse dia foi o corpo inumado. 28 de setembro.O filho de Jos do Patrocnio foi levado ao cemitrio numadata famosa da campanha que fz a glria paterna.

    O ENTRRO DE SINHO

    J. B. S i l v a , o popular Sinh dos mais deliciosos sambas cariocas, era um dsses homens que ainda morrendo da mortemais natural deste mundo do a todos a impresso de que

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    morreram de acidente. Zeca Patrocnio, que o adorava e comquem le tinha grandes afinidades de temperamento, era assim

    tambm: descarnado, lvido, frangalho de gente, mas semprefagueiro, vivaz, agilssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra. Que doena era a sua?Parecia um tsico nas ltimas. Diziam que tinha muita sfilis.Certamente o rim estava em pantanas. Fgado escangalhado.Ouvia-se de vez em quando que o Zeca estava morrendo. Oraem Paris, ora em Todos os Santos, subrbio da Central. E

    de repente, na Avenida, a gente encontrava o Zeca s trs damadrugada, de smoking, no auge da excitao e da verve.Assim me aconteceu uma vez, e o que o punha to excitadonaquela ocasio era precisamente a ltima marcha carnavalesca de Sinh, o famoso Claudionor. . .

    que pra sustentar famliafoi bancar o estivador. . .

    Me apresentaram a Sinh na cmara-ardente do Zeca. Foina pobre nave da igreja dos pretos do Rosrio. Sinh tinha

    passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noiteali e no parava de evocar a figura do amigo extinto, contavaaventuras comuns, espinafrava tudo quanto era msico e

    poeta, estava danado naquela poca com o Vila e o Catu lo ,

    poeta era le, msico era le. Que lngua desgraada! Quevaidade! mas a gente no podia deixar de gostar dle desdeloS, pelo menos os que so sensveis ao sabor da qualidadecarioca. O que h de mais povo e de mais carioca tinha eminh a sua personificao mais tpica, mais genuna e mais

    Profunda. De quando em quando, no meio de uma poro detoadas que tdas eram camaradas e frescas como as manhs

    os nossos subrbiozinhos humildes, vinha de Sinh um sarn-3 definitivo, um Claudionor, um Jura, com um beijo purocatedral do amor, enfim uma dessas coisas incrveis 9ue

    Pareciam descer dos morros lendrios da cidade, Favela, Sal-^Udro, Mangueira, So Carlos, fina-flr extrema da malan-

    ragem carioca mais inteligente e mais herica. . - Sinh!

    b a n d e i r a - u - 6

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    le era o trao mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta s camadas profundas da ral

    urbana. Da a fascinao que despertava em tda a gentequando levado a um salo.

    Vi-o pela ltima vez em casa de lvaro Moreyra. Sinhcantou, se acompanhando, o No posso mais, meu bem, no

    posso mais , que havia composto na m adrugada daquele dia,de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afnico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira

    R. Repetiu-se a toada umses-nmero de vzes. Todos nssecundvamos em cro. Tern, que estava presente, ficouencantado.

    N o faz um a semana eu estava em casa de um amigo ondese esperava a chegada de Sinh para cantar ao violo. Sinhno veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa demsica, cantando ou contando vantagem, ou ento em algum botequim. Em casa que no estaria; em casa, de cama, que no estaria. Sinh tinha que morrer como morreu, paraque a sua morte fsse o que foi: um episdio de rua, comoum desastre de automvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante eacabou.

    Seu corpo foi levado para o necrotrio do Hospital Hahne-maniano, ali no corao do Estcio, perto do Mangue, vista

    dos morros lendrios... A capelinha branca era muito exguap ara conter todos quantos queriam bem ao Sinh, tu do gentesimples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (l estavao velho Oxun da Praa Onze, um preto de dois metros dealtura com uma belide num lho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Jlio do

    Carmo e Benedito Hiplito, mulheres dos morros, baianas detabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente no se veste tda de prto. O gsto pela cr persiste deliciosamente mesmo na hora do entrro. H prostitutazinhas em tecido opalavermelho. Aquele prto, famanaz do pinho, traja uma fatiotaclara absolutamente incrvel. As flres esto num botequim

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    em frente, prolongamento da cmara-ardente. Bebe-se desbra-gadamente. Um vaivem incessante da capela para o botequim.Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolamos sambas (Tu te lembra daquele chro?). No cinema da RuaFrei Caneca um bruto cartaz anunciava A ltima Canode Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidncia. OChico da Baiana vai trocar de automvel e volta com umlandaulet que parece de casamento e onde toma assento a famlia de Sinh. Prola Negra, bailarina da companhia pr-ta, assume atitudes de estrla. No tem ali ningum para

    quebrar aqule quadro de costumes cariocas, seguramente omais genuno que j se viu na vida da cidade: a dor simples,natural, ingnua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi porexcelncia intrprete de sua alma estica, sensual, carnavalesca.

    PEQ U EN IN O

    A Mo r t e de Frederico Nascimento Filho, de Pequenino, comoera conhecido dos ntimos, no surpreendeu a ningum. Olue surp reendia era a sua incrvel resistncia a um a v ida dedissipao em que tud o consum iu a voz, o talento, a rep utao, a sade. Dessas criaturas que fazem a gente repetir penalizado a interrogao dos versos de Raimundo Correia:

    P o r q u e t u d o o q u e t e m d e f r e s c o e v i r g e m g a s t ae des t r i ?

    Conheci Nascimento ainda mal sado da adolescncia na^asa de Tilda Aschof, que foi o ambiente onde ardeu numac ama to bela e to breve o gnio de Glauco V e l a s q u e z . Foi

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    ali que ouvi pela primeira vez essa voz de bartono que vinteanos de alcoolizao diria no conseguiram extinguir de

    todo. Mas os dons de Pequenino no se limitavam smente voz: tinha tudo o que era preciso para faz-la valer comperfeio a inteligncia e a cultu ra musical, a in tu io detodos os sentimentos humanos, a melhor dio. Tudo isso,que encantava pelo carter de dons naturais, frescos e virgens,le gastou e destruiu, com uma amargura implacvel, comoum homem apostado em se degradar. Por qu?. . .

    A voz lhe foi desmerecendo, mau grado se lhe apurassecada vez mais a arte do canto; acabou inteiramente branca e espantoso como de instrumento assim j quase imprestvel

    podia arrancar acentos por vzes t o com oventes.N a conversao que essa voz adquiriu todos os seus tem

    veis valores. J disseram, e com razo, que Nascimento era ocrtico da cidade. O crtico da Galeria Cruzeiro, o bca-de-

    inferno dos bars e dos cafs, onde era sempre de encontrar.O Rio tem tido dsses homens que fazem com brilho e bomhumor a crtica falada, compensando as limitaes do regimede censura crtica escrita ou o comodismo das reputaesfeitas. Nenhum, porm, tinha a agressividade inquietante deNascim ento . N o havia nle alegria nem bom humor. A vozdos outros um Em lio de M eneses, um Zeca Patrocnio -era afinal uma arma, coisa que sempre desperta nos homensdignos dsse nome o instinto de reao batalhadora. A de

    Nascim ento dava mais a sensao de um instrum ento requin tado de interveno cirrgica. A dio de Pequenino, apoiadaem mmica de impressionante seriedade, era um aparelho de

    preciso impossvel de deter ou contrariar. A rplica maisjusta quebrava-se sem fra nas pontas daquele virtuosismoverbal, que fascinava, mesmo quando desarrazoava. Nasci

    mento no compreendia as correntes mais modernas em msica, poesia ou artes plsticas. Em matria de poesia parara,nos poetas musicados por Debussy e Faur. Dizia bobagenscomo uma menina de Sion. Mas de que maneira as dizia!N o havia como fazer-lhe frente seno descaindo para o te rreno do sco e da bofetada.

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    Terreno que, de resto, aceitava porque tinha bravura pessoal, embora fsse mirrado. Quantas vzes no Bar Nacional,

    na Brahma ou na Americana foi visto a provocar pancada degente da natao ou do remo. Era um tcnico da insolncia.

    No meio de tda essa atm osfera de sarcasm o e negao,podia s vzes chorar com a m esma soberba impudncia, vista de tda a gente, numa mesa de bar. De uma feita quetrabalhou na temporada de pera do Teatro Municipal, nofoi levado com a companhia para So Paulo. Precisamente

    na noite em que a troupe viajava para So Paulo encontrei-obbedo e envenenado de despeito num a mesa do Bar N acional. Foi um sketch dramtico inesquecvel. Falou, falou, invectivou todo o mundo, depois chorou. Subitamente ergueu-se e num repente de orgulho:

    Porque apesar de dez anos de bebedeira constante euainda tenho mais voz do que todos sses. . . E abalou todos

    os ecos do Largo da Carioca e da Rua de Santo Antniocom uma tenuta formidvel.

    H um ano encontrei-o no mesmo estado de esprito s 2horas da madrugada na Galeria Cruzeiro j deserta. Comoestava magro e desfeito! Parecia que se ia desfazer de ummomento para outro na bruma de inverno da noite. A voz, noentanto, era sempre a mesma, cortante, incisiva, mordaz, como

    se tda a energia daquele corpo devastado pelo lcool estivesse concentrada nas cordas vocais. Vai morrer, pensei contigo. Hoje mesmo.

    Morreu agora. Vi-o na rua poucos dias antes, magrssimo,mas erecto, no ar distante e desdenhoso que tinha nas horasde absteno. No abdicou nunca.

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    UM GR ANDE AR T I ST A PE R NAM B UC ANO

    O e n c a n t o do Recife no aparece prim eira vista. O Recifeno uma cidade oferecida e s se entrega depois de longaintimidade.

    Se no fsse muito esquisito comparar cidades com mulheres, eu diria que o Recife tem o fsico, a psicologia, a graa arisca e sca, reservada e difcil de certas mulheres magras, morenas e tmidas. Porque, no repararam que h ci

    dades que so o contrrio disso? Cidades gordas, namoradeiras, gozadonas? O Rio, por exemplo, Belm do Par, SoLus do Maranho so cidades gordas. A Bahia gordssima.So Paulo enxuta. Mas Fortaleza e o Recife so magras.

    Essa magreza sensvel em tudo no Recife. A vida comercial da cidade estendeu-se a comprido da Avenida Marqus de Olinda at o fim da Rua da Imperatriz. Os sobradosso magros e magros todos os detalhes arquitetnicos. Mesmo nas velhas casas solarengas do bairro da Madalena h nosei qu de sco, de sbrio, de abstinente, de magro emsuma.

    Quase tdas as igrejas do Recife, as caractersticas pelomenos, so magras. So Pedro dos Clrigos a igreja maismagra do Brasil.

    A idia que se faz de um pernambucano de indivduo

    magro. A arma de sua predileo a faca de ponta armatambm magra.

    O prprio nome Recife palavra magrssim a, c o m ode resto o mesmo acidente natural por ela nomeado.

    Essa magreza, alis, no prejudica em nada a cidade. No magreza de doena ou de misria, seno de regime, ou me*

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    lhor, de constituio. Assuntando bem, parece-me que nessamagreza calada e desenfeitada que reside o encanto essen

    cial e caracterstico do Recife.Essa cidade magra tinha necessidade de dar um artista

    magro capaz de refletir em sua arte aquela graa caracterstica das suas linhas. Deu-o de fato na pessoa de Manuel Bandeira.

    H muita gente que toma como meus os desenhos do meuxar. Quem me dera que fssem! Eu no hesitaria um mi

    nuto em trocar por meia dzia de desenhos do xar tda aversalhada sentimentalona que fiz, em suma, porque no pudenunca fazer outra coisa.

    Manuel Bandeira desenha a bico de pena e faz aquarelas.Mas sobretudo no desenho a pena que reside a sua maiorfra. A que magro como as igrejas da sua cidade. Oseu trao forte, spero, duro. Todavia em tda essa fra

    a poesia reponta sempre e uma certa ternura bem cariciosa.Poesia e tern ura fortes, eis as caractersticas dos desenhosmelhores de Manuel Bandeira. E foram essas qualidades que otornaram o intrprete por excelncia dos velhos aspectos daarquitetura colonial, velhas ruas, velhas casas, velhas pedras. O Recife da Lingeta, Olinda. Igarau, Salvador, OuroPrto, Mariana, Sabar, S. Joo dEl-Rei assistem na arte do

    desenhista pernambucano com o mesmo misterioso sortilgioda realidade. le faz com preender sem inteno, alis, po rque no h nenhuma literatura nesse artista bem confinadona sua tcnica o que h de passado venervel nessa arquitetura dos nossos avs. Faz compreender que essa arquitetu-ra deliciosa no coisa que se deva repetir, imitar. QuemSente Profundamente o colonial no pode sofrer o neocolonial.

    Bandeira formou-se no Recife, creio que sem mestre ne-um. Vi os seus primeiros desenhos na saudosa Revista door e, dirigida, composta e impressa por Jos Maria de Al"

    b e r t 6rC'Ue' Quando o Dirio de Pernambuco encarregou Gil-te , F reyre de organizar a edio com emorativa do seu cen-a etT' ar*deira foi convidado para ilustr-la. Veio depois

    o do O Jornal consagrada a Pernambuco, a colaborao

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    efetiva na A Provncia do Recife e finalmente a sua obra maisimportante a ilustrao de todo o nmero do O Jornal de

    dicado ao Estado de Minas. Para execut-la Bandeira passoudois meses em Ouro Prto, trabalhando com tal ardor que osolhos se lhe fatigaram e adoeceram. Os desenhos de Minasmostram o artista na plena posse de todos os recursos da

    pena e do nanquim. N enhum a incerteza mais. U m a segurana impecvel na oposio dos brancos e dos negros, sensvel especialmente na Nossa Senhora do Carmo de Sabar, no

    solar do Conde de Assumar, na capelinha do Padre Faria,no renque de casinhas e nos burricos da Rua Baro de OuroBranco.

    de realar como Bandeira apanhou bem o carter decada uma das velhas cidades mineiras. O aspecto severo, s

    pero e melanclico da antig a Vila Rica, as runas ingnuas deSabar, onde as casas de porta e janela parecem sorrir con

    tentes de se sentirem to velhinhas, a grandeza processionaida encosta do Santurio de Congonhas do Campo, tudo Bandeira fixou com surpreendente fidelidade.

    Magistrais so tambm as reprodues de detalhes das esculturas de Ouro Prto: as pias de S. Francisco e Carmo deOuro Prto, os plpitos, os coroamentos dos portais, etc. Aotodo 51 desenhos magnficos que testemunham a beleza artstica em que floresceu o rush do ouro vista atravs da fraingnua e sbria de um grande artista da nossa atualidade.

    pena que os trabalhos de Manuel Bandeira permaneamsequestrados em colees particulares ou nas reprodues, nemsempre fiis, de edies jornalsticas esgotadas. No existe entre ns nem pblico nem editores para uma obra dessas. Seria caso de se promover a expensas do Governo Federal oudo Estado de Pernambuco uma edio dos melhores desenhos

    de Manuel Bandeira. Ela representaria um dos mais altos efinos padres da nossa cultura.

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    R E C I F E

    s t e m s que acabo de passar no Recife me reps inteiramente no amor da minha cidade. H dois anos atrs, quandoa revi depois de uma longa ausncia, desconheci-a quase, tomudada a encontrei. E sem discutir se essa mudana foi paramelhor ou para pior, tive um choque, uma sensao desagradvel, no sei que despeito ou mgoa. Queria encontr-la comoa deixei menino. Egoisticamente, queria a mesma cidade daminha infncia.

    Por isso diante do novo Recife, das suas