manual política internacional novo

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MANUAL DO CANDIDATO POLTICA INTERNACIONAL

MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

Ministro de Estado Secretrio-Geral

Embaixador Celso Amorim Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente

Embaixador Jeronimo Moscardo

A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br

Manual do Candidato

Poltica Internacional

Cristina Soreanu Pecequilo

Braslia, 2010

Copyright , Fundao Alexandre de Gusmo Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028 Fax: (61) 3411 9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]

Equipe Tcnica: Eliane Miranda Paiva Maria Marta Cezar Lopes Cntia Rejane Sousa Arajo Gonalves Erika Silva Nascimento Juliana Corra de Freitas Jlia Lima Thomaz de Godoy Programao Visual e Diagramao: Juliana Orem e Maria Loureiro

Impresso no Brasil 2010 Pecequilo, Cristina Soreanu. Manual do candidato : poltica internacional / Cristina Soreanu Pecequilo. Braslia : Fundao Alexandre de Gusmo, 2009. 356p. ISBN: 978-85-7631-181-2 1. Poltica internacional. I. Ttulo. CDU 327

Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

Existem duas respostas freqentes para qualquer grande evento histrico, ambas inapropriadas, seno totalmente equivocadas: dizer que tudo mudou ou dizer que nada mudou. Fred Halliday, 2002 A meus pais

Cristina Soreanu Pecequilo Professora de Relaes Internacionais da UNESP Pesquisadora Associada NERINT/UFRGS e do Grupo de Pesquisa Relaes Internacionais do Brasil Contemporneo da UnB Mestre e Doutora em Cincia Poltica pela FFLCH/USP Autora de diversos livros e artigos sobre as Relaes Internacionais Contemporneas e a poltica externa do Brasil e dos EUA e-mail: [email protected]

SumrioIntroduo, 13 Captulo 1- As Relaes Internacionais, 17 1.1 As Bases da Disciplina, 18 A) Conceitos e Atores, 18 B) As Teorias: As Origens Clssicas e o Sculo XX, 27 B.1) O Realismo Poltico, 28 B.2) O Liberalismo, o Idealismo e a Interdependncia, 32 B.3) O Marxismo e as Vises Crticas, 35 1.2 O Ps-Guerra Fria: Interpretaes e Hipteses, 38 A) O Fim da Histria, a Nova Ordem Mundial e o Momento Unipolar, 38 B) A Globalizao e a Regionalizao, 47 C) A Desordem, o Choque das Civilizaes e um Outro Mundo Possvel, 51 D) A Multipolaridade, a Desconcentrao de Poder e a No-Polaridade, 55 Captulo 2- O Sistema Internacional Ps-Guerra Fria (1989/2009), 59 Parte I- O Ocidente e a Rssia, 59 2.1 Os Estados Unidos, 59 A) George Bush e o Status Quo Plus (1989/1992), 60 B) Bill Clinton e o Engajamento e Expanso (1993/200), 66 C) George W. Bush (2001/2008), 73 D ) Barack Obama (2009), 85 2.2 A Europa e a Integrao Regional, 87 A) Da Queda do Muro ao Tratado de Maastricht (1989/2002), 88 B) De Maastricht a Nice (1992/2003), 94 C) Os Desafios da UE e o Tratado de Lisboa (2004/2009), 98 2.3 Da URSS Rssia, 103 A) O Fim da Guerra Fria e a URSS (1989/1991), 104

B) Boris Ieltsin: Alinhamento e Crise (1992/1999), 105 C) A Rssia de Vladimir Putin e Dmitri Medvedev: Autonomia e Pragmatismo (1999/2009), 113 Parte II- O Mundo Afro-Asitico, 122 2.4 O Leste Asitico e o Subcontinente Indiano, 122 A) O Japo, 123 B) A ASEAN e a Pennsula Coreana, 128 C) A China, 132 D) O Subcontinente Indiano: ndia e Paquisto, 144 2.5 A frica, 148 A) As Crises: Um Breve Balano (1989/2009), 149 B) O Renascimento Africano: Dos Anos 1990 ao Sculo XXI, 154 2.6 O Oriente Mdio e a sia Central, 159 A) O Processo de Paz Israel/Palestina e o Mundo rabe, 159 B) O Ir, 169 C) A sia Central e os Conflitos Estratgicos, 176 Captulo 3- As Relaes Internacionais do Brasil, 179 Parte I - Os Princpios Clssicos e os Temas Contemporneos, 179 3.1 As Tradies da Poltica Externa Brasileira (1902/1989), 179 3.2 A Dcada de 1990 e o Debate Ps-Guerra Fria (1990/2002), 194 3.3 A Poltica Externa do Sculo XXI: Os Eixos Combinados (2003/2009), 202 Parte II- O Brasil e as Amricas, 212 3.4 As Relaes Hemisfricas: o Brasil, os EUA e a Amrica Latina, 212 A) O Projeto Americano e o Bilateralismo: IA e NAFTA (1989/1992), 213 B) A Agenda Econmico-Estratgica: ALCA (1993/2000), 218 C) O Sculo das Amricas e o Dilogo Estratgico Brasil-EUA (2001/2008), 225 D) A Poltica de Obama: Reflexes Iniciais (2009), 231

3.5 O Espao Sul-Americano, 232 A) O Cone Sul, 234 A.1) O Mercosul , 239 A.2) A Poltica Externa Argentina e as Parcerias Complementares: Paraguai, Uruguai e Chile, 249 B) A Regio Andina, 253 C) A Integrao Sul-Americana: a IIRSA, a CASA e a UNASUL, 261 Captulo 4- O Brasil e o Mundo, 267 4.1 O Eixo Horizontal: a Cooperao Sul-Sul, 267 A) IBAS, 268 B) G20 Comercial, 272 C) BRIC, 279 D) As Parcerias Africanas, o Mundo em Desenvolvimento e os PMDRs, 283 4.2 O Eixo Vertical: a Cooperao Norte-Sul, 285 A) A UE e as Parcerias Bilaterais na Europa Ocidental, 286 B) O Japo, 288 C) G4, 289 D) G20 Financeiro, 290 Captulo 5- O Brasil e o Multilateralismo, 295 5.1 As Naes Unidas, 295 A) Os Ajustes e as Propostas de Reforma: Agenda e Estrutura, 296 B) Os Temas Sociais e as Conferncias Internacionais, 303 C) As Operaes de Paz da ONU, 314 D) A Agenda de Segurana, 321 5.2 O Sistema Financeiro-Comercial, 325 A) A OMC, 326 B) As Instituies Financeiras: FMI, Banco Mundial e BID, 329 Concluso, 333

Introduo

Em 1989, o final da Guerra Fria simbolizado pela Queda do Muro de Berlim deu incio ao perodo de transio do ps-Guerra Fria. Depois de duas dcadas, o uso desta mesma terminologia para caracterizar o sistema e a poltica internacional revela um sentido de mudana e permanncia. No que se refere mudana, o fim da bipolaridade Estados Unidos (EUA) e Unio Sovitica (URSS) trouxe uma clara transformao no ncleo de poder mundial. Depois de mais de quarenta anos de conflito sistmico e indireto entre dois modos de vida distintos, o capitalista norte-americano e o socialista sovitico, sustentado em formas multidimensionais de competio militar, poltica, econmica, estratgica, cultural, social e diplomtica, um destes modelos, o socialista sovitico, sucumbiu ao desgaste da confrontao. Encerrou-se a competio por zonas de influncia regionais e globais, esgotando-se a dinmica da corrida armamentista, primeira vista inaugurando uma era de paz e estabilidade. A era das superpotncias em choque seria substituda pela existncia de uma nica superpotncia restante, os EUA, e potncias aliadas conformando um cenrio liberal democrtico na poltica e economia, que integraria naes e blocos individuais. A lgica do conflito seria substituda pela da cooperao. A estabilidade seria fornecida pelas slidas instituies internacionais remanescentes como a Organizao das Naes Unidas (ONU), ajustadas aos novos tempos, sintetizando a ordem mundial.13

CRISTINA SOREANU PECEQUILO

Entretanto, estas imagens obscureceram fenmenos de desequilbrio. Se a crise atingira uma das superpotncias em maior intensidade, a URSS, os EUA tambm se viam desprovidos de recursos e estratgias polticas para lidar com a mudana. A continuidade e expanso do segundo sculo americano era questionada pela ascenso de potncias dentro do bloco ocidental com destaque Europa integrada e ao Japo na sia. Nesta mesma sia, naes em desenvolvimento como China e ndia consolidavam seu poder econmico e sua autonomia, fortalecendo-se como plos regionais. Seguindo ao Oriente Mdio e a frica, os desafios de redesenhar fronteiras e democratizar naes em meio construo de Estados, a dificuldade da convivncia mtua e da insero global pressionavam seus atores, imersos em um misto de crise e esperana. Na Eursia, a URSS, depois Rssia, buscava reencontrar seu papel. Nas Amricas, a agenda envolvia a reforma social, poltica e econmica advinda da democratizao, a recuperao da dcada perdida dos anos 1980 e a reinsero global. Para o Brasil, o desafio consistia-se de teor similar. Do hemisfrio ao mundo, o pas buscava sustentar sua atuao de global trader e player, reforando sua identidade nacional e suas parcerias mltiplas bi e multilaterais no sistema, com foco em suas tradies e em sua reinveno. Nos EUA, um momento de vitria, mas de contestao, de reviso e polarizao estratgica. De Bush (1989/1992) a Bush (2001/2008), passando por Clinton (1993/2000), at a renovao com a eleio do democrata Barack Obama em 2008, o primeiro presidente afro-americano a chegar Casa Branca, o pas rev suas prioridades e valores em meio a uma ampla transformao social. Dentro das organizaes internacionais governamentais, impunham-se constrangimentos ao multilateralismo devido a opes polticas e a necessidade de reforma de suas estruturas. Crises humanitrias, instrumentalizao de componentes tnicos e religiosos para sustentar conflitos demonstravam a permanncia de conflitos. Em termos de sociedade civil, ao otimismo da globalizao contrapunham-se as demandas do desenvolvimento e a permanncia das assimetrias, com a expanso de atores margem dos Estados e, por vezes, em choque com sua soberania. Do ncleo do poder periferia, das relaes interestatais s transnacionais, portanto, a poltica internacional mantinha-se em ebulio, tanto para a mudana positiva como para a negativa como ecloses peridicas de guerras, genocdios, atentados (incluindo no centro do poder14

INTRODUO

norte-americano em 11/09/2001), a crise econmica global, demonstrando a complexidade deste cenrio que se acostumou a definir de ps-Guerra Fria. Diante deste contexto, o objetivo deste Manual de Poltica Internacional apresentar a evoluo e ambigidades deste perodo, oferecendo um panorama destes ltimos vinte anos. Para isso, o texto ser dividido em cinco captulos. No primeiro captulo, As Relaes Internacionais, apresenta-se uma breve discusso sobre as Relaes Internacionais, destacando suas principais questes, atores e paradigmas, a partir de um prisma mais terico e conceitual. Alm disso, examina a evoluo da poltica internacional de 1989 a 2009 e as interpretaes desenvolvidas para explicar este cenrio. No Captulo 2, O Sistema Internacional Ps-Guerra Fria (1989/2009) estas hipteses so avaliadas a partir dos atores, estando dividido em duas partes: O Ocidente e a Rssia, que aborda os EUA, a Europa (Ocidental e Oriental) e a Rssia, e O Mundo Afro-Asitico, com foco sobre o Leste Asitico e o Subcontinente Indiano, a frica, o Oriente Mdio e a sia Central. Frente a este cenrio, os prximos captulos analisam os desafios e agenda do Brasil. Este panorama inicia-se no Captulo 3 As Relaes Internacionais do Brasil, composto por duas partes: Os Princpios Clssicos e os Temas Contemporneos traz um panorama das tradies externas do pas, enfatizando o debate contemporneo, e O Brasil e as Amricas, examina o intercmbio bilateral com os EUA, Argentina, Venezuela, dentre outros, somado s iniciativas de integrao regional na Amrica do Sul do MERCOSUL UNASUL. Na sequncia, o Captulo 4 O Brasil e o Mundo aborda os eixos horizontal e vertical das Relaes Internacionais, avaliando as parcerias SulSul e Norte-Sul, em suas dimenses bi e multilaterais. A atuao no G20, passando pelo IBAS (Frum de Dilogo India, Brasil, frica do Sul), os BRIC (Brasil, Rssia, India e China), o G4 e presena na frica e no mundo so objeto de discusso. A estes debates agregam-se, no Captulo 5, O Brasil e o Multilateralismo, estudos sobre a atuao no sistema das Naes Unidas e no financeiro-comercial (OMC, FMI). Desafiadora, esta agenda demonstra a existncia de um mundo ainda em construo neste incio de sculo XXI, no qual o Brasil pode, e deve, desempenhar um papel decisivo amparado por suas tradies, capacidades, potencialidades e viso de futuro. Para o pas, e seus futuros diplomatas, analistas e cidados, o momento traz uma significativa quantidade de15

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indagaes, que somente podero ser respondidas a partir de uma perspectiva autnoma e soberana. Antes de encerrar a Introduo, no poderia deixar de agradecer aos alunos do curso de Relaes Internacionais da UNESP, Alessandra Aparecida Luque, bolsista de IC/FAPESP, que contribuiu para a elaborao do texto sobre a Rssia, com pesquisas de dados estatsticos e temas multilaterais, e Glauco Fernando Numata Batista, bolsista PIBIC/CNPq, por suas reflexes sobre a poltica externa dos EUA. Tambm preciso agradecer aos demais alunos da UNESP pelo apoio e questes, aos colegas professores do DCPE e Edna. Por fim, no poderia deixar de mencionar Mrcia Pires de Campos e o colega Corival Alves do Carmo por seu incentivo, comentrios e revises do plano de trabalho, e o Dr Hitoshi, a Vanessa, Tais e Marina pela ajuda e pacincia. Outubro 2009

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Captulo 1 As Relaes Internacionais

O estudo da poltica internacional envolve o conhecimento dos acontecimentos, atores, fenmenos e processos que ocorrem alm das fronteiras dos Estados nacionais. Para analisar estas dimenses, a disciplina das Relaes Internacionais uma ferramenta essencial. Nas palavras de Braillard,Relaes Internacionais (...) constituem um objeto cujo estudo hoje um local privilegiado de encontro de diversas Cincias Sociais (...) O que caracteriza propriamente as Relaes Internacionais o fato delas constiturem fluxos que atravessam as fronteiras (...) Podemos por em evidncia a especificidade das Relaes Internacionais definindo-as como as relaes sociais que atravessam as fronteiras e que se estabelecem entre as diversas sociedades. (BRAILLARD, 1990, p. 82-83 e p. 86)

Neste captulo, os conceitos, atores e teorias desta disciplina so apresentados de forma introdutria em 1.11. Na sequncia, o item 1.2 discute as principais tendncias da poltica internacional a partir das interpretaes e hipteses sobre o ps-Guerra Fria.1

As referncias bsicas para o desenvolvimento deste captulo so Marcel Merle (1981), Duroselle (2000) e BAYLIS and SMITH, (2001). As partes 1.1 e 1.2 possuem perfil mais terico, buscando apresentar alguns dos principais, conceitos e debates da rea de Relaes Internacionais, mas sem a pretenso de esgotar o tema ou abordar sua evoluo histrica. Para estes estudos histricos ver VISENTINI e PEREIRA, 2008.

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1.1 As Bases da Disciplina Traando algumas linhas gerais, os temas examinados neste item so: o Sistema Internacional (SI), os Atores Internacionais (Estados, OIGs, FTs) e as Foras Internacionais. A) Conceitos e Atores O primeiro conceito a ser apontado na rea de Relaes Internacionais o do espao no qual ocorrem as interaes sociais mencionados por Braillard, o do Sistema Internacional (SI). Outros termos que podem ser indicados como sinnimos de SI so cenrio e ambiente. Sua caracterstica bsica a anarquia, representada pela ausncia de um governo ou leis que estabeleam parmetros regulatrios para estas relaes, em contraposio ao sistema domstico dos Estados. A partir deste princpio bsico, a ordem internacional definida por meio dos intercmbios e choques que se estabelecem entre os atores da poltica internacional. O ponto de partida desta viso clssica o surgimento do Estado Moderno e a Paz de Westphalia em 1648 (o outro marco o Tratado de Utrecht, 1713). Avaliando o SI2 a partir desta viso, trs caractersticas definem este ambiente: a sua dimenso global e fechada, resultante do processo de expanso do mundo ocidental iniciada pelas potncias portuguesa e espanhola nos sculos XV e que atingiu no sculo XX o limite de todo os fluxos e Estados que compem o SI; a heterogeneidade que corresponde s diferenas entre2

A concepo de sistema internacional apresentada por Hedley Bull (representante da escola realista inglesa e tambm chamado de neogrociano ) distinta desta definio baseada em Merle. Bull define o sistema internacional como um sistema de Estados quando dois ou mais Estados tm suficiente contato entre si, com suficiente impacto recproco nas suas decises, de tal forma que se conduzam, pelo menos at certo ponto, como partes de um todo. (BULL, 2002, p. 15). Na anlise de Bull, o conceito central o de Sociedade Internacional, como resultante da evoluo da poltica internacional alm das concepes do realismo hobbesiano (Estado de Natureza) e do idealismo kantiano. Para o autor, a Sociedade Internacional se constitui quando um grupo de Estados, conscientes de certos valores e interesses comuns formam uma sociedade no sentido de se considerarem ligados no seu relacionamento por um conjunto comum de regras e participam de instituies comuns. (BULL, 2002, p. 19). Para Bull, trs etapas podem ser identificadas na evoluo da sociedade internacional, isto, da sociedade anrquica: a crist (sculos XVI/XVII), a europeia (XVIII/XIX) e a global (XX). Jackson and Owens (2001) inserem outras divises nesta evoluo: Grcia Antiga ou Helnica (500-100 a.c), Renascena Italiana (1300-1500), Europa Pr-Moderna (1500-1650), Europa Ocidental (1650-1950) e Global (1950 em diante). Para leituras adicionais ver WIGHT, 2002 e WATSON, 2004.

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os atores que ocupam o espao internacional, a diversidade destes mesmos atores (Estados, OIGs e FTs) e dos fenmenos que ocorrem no ambiente global (igualmente conhecidas como foras que se subdividem em naturais, demogrficas, econmicas, tecnolgicas e ideolgicas); e, por fim, a estrutura, que representa a ordem do SI, ou seja, o Equilbrio de Poder (EP) que se estabelece entre os Estados e define uma determinada hierarquia. Em termos tericos, o EP um dos principais pilares da teoria realista clssica das Relaes Internacionais do sculo XX, mas suas origens podem ser encontradas nos escritos de Tucdides (A Guerra do Peloponeso, 2001) e nas dimenses prticas das relaes intra-europeias dos sculos XVII a XIX, sendo o Concerto Europeu estabelecido no ps-Congresso de Viena considerado o tipo ideal deste modelo. Mas, em que consiste o EP e qual sua importncia para as Relaes Internacionais3? Entidades soberanas, os Estados no possuem nenhuma autoridade acima da sua para regular suas relaes no cenrio internacional, cujo princpio central , como citado, a anarquia. Diferente do ambiente domstico no qual se estabelecem pactos e/ou contratos para regular as interaes internas, o mbito externo no possui princpios organizadores, assemelhando-se ao Estado de Natureza de Thomas Hobbes. A ordem internacional emerge a partir da dinmica de competio e choque mtuo entre os Estados que se anulam mutuamente ao perseguir seus interesses nacionais (a razo de Estado orienta o seu comportamento). A prioridade primeira a manuteno da soberania e da segurana de cada unidade poltica individual. Este processo de conteno e dissuaso mtuas entre os diferentes plos produz uma condio de estabilidade que se no satisfaz plenamente a todas as naes, evita a ecloso constante de guerras e o extremo dos jogos de soma zero. Neste contexto, tais relaes ocorrem sob a sombra da guerra e visam a estabilidade de no a paz, percebida como um objetivo utpico. Com o surgimento da arma nuclear, estes equilbrios se tornaram mais sensveis, dado o poder de destruio mtua assegurada desta tecnologia. Para se referir a esta dinmica contempornea, Raymond Aron (2001) faz uso do termo Equilbrio do Terror que simboliza a possibilidade da poltica voltar a ser um jogo de soma zero e o congelamento do poder mundial por aqueles que detm esta tecnologia, caracterstico de toda a bipolaridade.3

Bull, inclusive, reconhece a importncia do EP na evoluo e estabilizao das Relaes Internacionais.

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Ao longo da histria, trs tipos de ordem podem ser encontradas: a unipolar,com a proeminncia de um plo de poder (Imprio Romano); a bipolar, com a existncia de dois plos principais (Guerra Fria, 1947/1989 entre EUA e URRS); e a multipolar composta por diferentes plos. Como indicado, o tipo ideal do EP foi o Concerto Europeu de 1815 a 1914, composto pelos plos Frana, Gr-Bretanha, Prssia (Alemanha depois de 1870 com a unificao), Rssia e Imprio Austro-Hungaro4. No ps-Guerra Fria, observam-se articulaes complexas entre os modelos uni e multipolar (abordado no 1.2). Definido o SI, cabe analisar as categorias de atores que interagem em seu ambiente: os Estados (estatais), as OIGs e as FTs (no-estatais, i.e, que no so Estados). - Estados - Unidades polticas centralizadas surgidas a partir da Paz de Westphalia em 1648, contrapondo-se s instncias fragmentadas e noseculares da Idade Mdia. Os princpios bsicos do Estado Moderno so a territorialidade com base em fronteiras definidas, a soberania poltica sobre este territrio, constituindo um governo organizado, e a existncia de uma populao que habita este espao geogrfico. Juridicamente, os Estados reconhecem-se mutuamente, respeitando seus limites territoriais (respeito aos princpios de no-interveno e no-ingerncia), e estabelecem relaes diplomticas entre si. Em sntese, trs componentes materiais compem estas unidades polticas, o territrio, a populao e o governo. Todos os Estados so, portanto, soberanos dentro de seu determinado territrio. Ainda que os Estados sejam iguais de direito, no o so de fato. As diferenas referem-se a suas histrias (processo de construo e idade como Estados Westphalianos), constituies domsticas (regimes, formas de governo e dinmica dos atores da sociedade civil5) e a seus recursos de poder. medida que o poder um elemento essencial da poltica (seja ela domstica ou internacional), a posse destes recursos por um determinado Estado delimita sua capacidade de atuao e projeo no sistema e sua medida de vulnerabilidade. Estes elementos correspondem ao nvel de autonomia.Mesmo no EP europeu, a Gr-Bretanha possua uma posio mais destacada do que estes outros plos devido a seu poder poltico-econmico e, durante o sculo XIX, construiu sua hegemonia na era que ficou conhecida como Pax Britannica. Porm, sua ttica de ao preservava o EP (isolamento esplndido), atuando como mantenedora do equilbrio e reguladora de suas aes (primus inter pares). 5 Os partidos polticos, os grupos de interesse e a opinio pblica nacional, alm de atores individuais compem as foras da sociedade civil.4

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A anlise dos recursos de poder disposio do Estado deve levar em conta duas dimenses, a da posse e a da converso dos recursos. A partir desta premissa preciso fazer a distino entre o poder potencial de um Estado, aquele que existe em sua condio bruta, e o seu poder real, definido por sua capacidade de converso. Exemplificando: um Estado pode ser detentor das maiores reservas petrolferas do mundo, mas se no possuir capacidade tecnolgica para explorar este recurso, o seu potencial energtico no se concretizar em recursos disposio de sua populao. Outra distino a ser realizada quanto ao poder refere-se tipologia dos recursos: o poder duro (hard power) e o poder brando e de cooptao (soft and cooptive power)6. O poder duro corresponde aos recursos de carter tradicional: dimenses territoriais, posicionamento geogrfico, clima, demografia, capacidade industrial instalada, disponibilidade de matrias-primas e status militar. Por sua vez, o poder brando e de cooptao refere-se s fontes de poder econmicas, ideolgicas, tecnolgicas e culturais que correspondem capacidade de adaptao, flexibilidade e convencimento de um determinado Estado sobre seus pares. A habilidade poltica, da disseminao de valores e de produo de modos de vida (modelos ideolgicos) inserem-se nesta dimenso. Tendo como base estes recursos, algumas categorias de Estado podem ser identificadas7: - Superpotncias ou Potncias Globais, que detm recursos nestes dois nveis, exercendo e projetando seu poder de forma multidimensional em nvel mundial, o que lhes capacita ao exerccio da hegemonia. O grau de autonomia elevado, mesmo que estas naes eventualmente possuam vulnerabilidades especficas (como os EUA e o petrleo). Os recursos brando e duro so utilizados de forma alternada, ou simultnea, para a realizao de seus interesses nas relaes estatais e no estatais; - Potncias Regionais, com capacidade para ao em nvel regional em suas respectivas esferas de influncia, com menor disponibilidade de recursos que as naes de projeo global. Sua presena definidora do equilbrio ou do desequilbrio em seu espao geogrfico (Estados piv). Detm quantidade razovel de poder brando e duro, mas com deficincias de capacitao em algumas reas. Pode-se inserir uma definio adicional neste grupo,6 7

Esta classificao desenvolvida por Nye Jr (1990). Estas categorias, assim como as de recursos de poder, possuem diferentes interpretaes e nomeaes dependendo dos autores. Os debates do 1.1 encontram-se em maior extenso em PECEQUILO, 2008

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identificando potncias regionais localizadas no mundo desenvolvido (Alemanha e Japo, por exemplo) e as naes em desenvolvimento (Brasil, China e ndia). Avaliando as naes em desenvolvimento do Sul, classificaes alternativas so as de Grandes Estados Perifricos (GEP8), Potncias Mdias e Pases Emergentes (termos como pases baleias e continentais eram utilizados, mas se tornaram menos freqentes). Devido a sua condio, estes Estados possuem caractersticas paradoxais: ao mesmo tempo em que detm quantidade significativa de recursos de poder duro, sua capacitao branda ainda apresenta vulnerabilidades. Outro termo que passou a ser aplicado a estas naes de novo Segundo Mundo (durante a Guerra Fria o termo correspondia ao mundo comunista) referente aos emergentes. O Primeiro Mundo mantm-se como dos pases desenvolvidos e o Terceiro Mundo abrigaria as naes mais pobres, tambm conhecidas como Pases de Menor Desenvolvimento Relativo (PMDR). Esta diferenciao Segundo-Terceiro Mundo no aceita de forma ampla, havendo a preservao do conceito do Terceiro Mundo como mundo em desenvolvimento que abarca os GEPs aos PMDRs9. - Papel Local/Restrito- pases de baixa projeo global e regional, cujas polticas externas tradicionalmente so satlites destes outros nveis e que exercem um papel limitado, restrito a seu espao fsico. Duas categorias podem ser identificadas: a dos pases menores e estabilizados, como o Chile, e a de Estados menos desenvolvidos e com elevada vulnerabilidade, vide o Haiti. Esta segunda categoria corresponde aos PMDR e, na classificao da poltica externa norte-americana, aos Estados falidos. Porm, como citado, os Estados no se constituem nos nicos atores das Relaes Internacionais, apesar de se manterem como os principais. O campo dos atores no estatais divide-se em Organizaes Internacionais Governamentais (OIGs) e as Foras Transnacionais (FTs). - Organizaes Internacionais Governamentais ou Intergovernamentais (OIG)- referem-se aos grupos polticos formados por Estados que ganharamOs Grandes Estados Perifricos (GEP) so aqueles pases no desenvolvidos de grande populao e de grande territrio no inspito, razoavelmente passvel de explorao econmica e onde se constituram estruturas industriais e mercados internos significativos (GUIMARES, 1999, p. 21). 9 Neste texto, optou-se por utilizar a opo Estado emergente, em desenvolvimento, Terceiro Mundo e GEP para naes como Brasil, China, ndia e Rssia, e PMDRs para os mais pobres.8

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impulso a partir de 1945 no encerramento da Segunda Guerra Mundial. Seu antecedente contemporneo foi a Liga das Naes proposta pelo Tratado de Versalhes a partir dos Quatorze Pontos de Woodrow Wilson (para a contextualizao histrica ver VISENTINI e PEREIRA, 2008). Naquele momento, as OIGs surgem como espaos de negociao diplomtica e construo de consensos, estabelecendo relaes diretas entre os Estados que facilitem a mediao de suas relaes, a cooperao e a perseguio de objetivos comuns. Estes fruns multilaterais permitem o aumento dos contatos entre as unidades polticas e canais alternativos de ao. As OIGs atuam em dimenses diversas da poltica internacional, dividindo-se segundo seus propsitos e extenso (esfera de ao, membros e dimenso): as de Propsito Abrangente (PA) e as de Propsito nico (PU) e as Globais e Regionais. A ONU, por exemplo, uma PA global, enquanto o FMI e a OMC so OIGs de PU global. Em termos regionais, a OTAN apresenta PU, enquanto a UE e o Mercosul seriam PAs. Formadas por Estados, as OIGs possuem uma relao complexa e paradoxal com seus membros fundadores. medida que se comprometem com as OIGs, os Estados concordam em abrir mo de parte de sua soberania e a respeitar a Carta/Tratado que constituem estas instituies. Com isso, as OIGs ganham autonomia para discutir e propor polticas, fortalecendo seu papel como frum de negociao e tomada de decises. Esta autonomia relativa medida que o seu funcionamento depende da ao dos Estados membros que contribuem para a sua manuteno em diversas reas, desde a financeira at a militar e estratgica. O poder das OIGs no se sobrepe soberania dos Estados, o que gera, por vezes, desrespeito a suas decises e prescries. No so inditas as oportunidades nas quais os pases alegam questes de segurana e interesse nacional para ultrapassar o mbito multilateral e agir individualmente. A ao dos EUA na conduo da Guerra do Iraque 2002/2003 ilustra esta situao como ser abordado no 2.1 e os dilemas associados preservao da credibilidade e integridade destas OIGs. preciso igualmente fazer uma distino entre as perspectivas que os Estados de diferentes portes trazem para o mbito multilateral. Para as naes menores, as OIGs so elementos essenciais de ao, uma vez que o multilateralismo permite sua atuao mais equilibrada e equitativa no sistema internacional diante das naes mais fortes e permite a insero de demandas e reivindicaes nestes espaos. Para os Estados com maiores recursos, alm de funcionarem como canais diplomticos, as OIGs podem ser23

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criticamente percebidas como meios alternativos de presso e exerccio de poder. Existe, assim, uma relao ambgua entre as OIGs e os Estados, sustentada em uma dinmica de autonomia e dependncia, de igualdade e presso. Porm, estas dificuldades no eliminam o papel fundamental que estas instituies desempenham na poltica mundial contempornea e sua relevncia para as Relaes Internacionais do Brasil em particular. Superando a lgica conflitiva do EP, as OIGs so um mecanismo que facilita as interaes entre os Estados, inserindo, ao lado do conflito, possibilidades de cooperao. - Foras Transnacionais (FTs)- Pertencentes categoria dos atores noestatais, as FTs diferenciam-se das OIGs por representarem fluxos privados mltiplos ligados sociedade civil (comunicaes, transportes, finanas e pessoas) que afetam a poltica dos Estados tanto positiva quanto negativamente. O progresso tecnolgico permitiu a acelerao deste fenmeno, dinamizando sua intensidade e relevncia na poltica internacional. As Organizaes NoGovernamentais (ONGs), as Multinacionais (ou Companhias Multinacionais ou Transnacionais, CMNs ou CTNs), os Grupos Diversos da sociedade civil e, por fim, a Opinio Pblica Internacional representam as FTs. Analisando-as individualmente, as ONGs representam foras da sociedade civil, entidades no lucrativas podendo ser locais, regionais ou mundiais, detendo carter privado, espontneo e solidrio. A base de sua unidade so valores comuns e a busca da conscientizao, focando em reas como o meio ambiente e os direitos humanos, aes comunitrias. Ocupando espaos tradicionalmente no atendidos pelo Estado, as ONGs ganharam impulso considervel com o fim da Guerra Fria. Positivamente, incentivam a cidadania e a participao popular, mas do lado negativo podem atuar como poderes paralelos (em particular em pases em desenvolvimento). Dentre as ONGs mais conhecidas podem ser citadas a Cruz Vermelha, o Greenpeace, a Anistia Internacional, o Human Rights Watch e a Fundao Mata Atlntica, o Banco do Povo, dentre outros. As Companhias Multinacionais ou Transnacionais (CMNs ou CTNs) so empresas de atuao global em diversos Estados, cuja sede localiza-se em um determinado pas de origem. Ao se instalarem em naes fora desta base nacional, as CMNs seguem as regras destes Estados e influenciam, principalmente em pases menores, a poltica interna destas naes por conta de questes tributrias e financiamentos. Para os Estados mais poderosos, representam, mesmo que indiretamente, fontes de poder brando.24

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Os Grupos Diversos da Sociedade Civil correspondem a sindicatos, Igrejas, Partidos Polticos, Mfias, Grupos Terroristas. A Opinio Pblica Internacional ainda um movimento embrionrio, mas que com as interaes cada vez mais rpidas das comunicaes e transportes tem desenvolvido um perfil prprio. As manifestaes globais contra Guerra do Iraque em 2003, a defesa do meio ambiente so alguns acontecimentos relacionados a esta consolidao. Finalmente, preciso discutir, rapidamente, o papel das Foras Internacionais, tambm chamados de fatores ou acontecimentos, e que correspondem a aes dos agentes internacionais e a fenmenos que independem de sua deciso. Cinco foras podem ser citadas: a natural, a demogrfica, a econmica, a tecnolgica e a ideolgica. Os elementos natural e demogrfico correspondem a dimenses de poder duro, enquanto as seguintes referem-se ao brando. A fora natural corresponde aos elementos geogrficos, climticos e de recursos/matrias-primas. Ainda que os desenvolvimentos tecnolgicos tenham permitido aos homens melhor administrar estes fatores naturais ao longo dos sculos, muitos fenmenos continuam no dependendo das aes humanas como terremotos e desastres naturais similares. A temtica ambiental relacionase maneira como as sociedades relacionam-se com a natureza, gerando efeitos positivos (irrigao em terras de deserto) ou negativos (aquecimento global). A segunda fora, o fator demogrfico, refere-se aos impactos populacionais. Os principais componentes relacionados a este tema so o crescimento populacional10 e os deslocamentos (migraes). Atualmente, enquanto algumas naes continuam sofrendo problemas relativos exploso demogrfica e controle de natalidade no Terceiro Mundo, os pases do Norte apresentam ndices de crescimento negativo (e mesmo algumas potncias mdias como o Brasil tambm observam declnio populacional e envelhecimento). O fluxo Sul-Norte das migraes contemporneas, as questes relativas aos direitos e condies de vida das populaes (representadas pelo ndice de Desenvolvimento Humano das ONU-IDH), os temas de sade (HIV/AIDS, epidemias de gripe como a suna e aviria,10 Os trabalhos de Malthus e a avaliao de que a populao cresce em proporo geomtrica, enquanto a produo de alimentos em aritmtica representam algumas das principais preocupaes na passagem do sculo XIX ao XX. O desenvolvimento da tecnologia, contudo, no levou confirmao das previses.

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retorno de doenas como tuberculose e poliomielite em naes pobres) tambm se inserem neste conjunto de preocupaes. A terceira fora, o fator tcnico ou tecnolgico, representado pelo campo das inovaes tecnolgicas, que ao longo da histria do sistema internacional, permitiu s sociedades que tomaram frente destes processos alarem posies de destaque no equilbrio de poder mundial. A primeira onda de colonizao martima, as Revolues Industriais (englobando a criao da mquina a vapor na primeira, os desenvolvimentos da indstria qumica na segunda, a cientficoteconolgica na terceira e, possivelmente, a quarta da gentica e biotecnologia), o avano do poderio blico e estratgico (advento do poder nuclear e de outros meios de destruio em massa), a renovao das comunicaes com a internet, so alguns dos fenmenos que podem ser mencionados de forma no exaustiva. O fator tecnolgico impacta diretamente as relaes sociais, os modos de vida e os meios de produo, apresentando profunda interdependncia com a fora econmica que delimita o progresso e a riqueza das naes. O fator econmico influencia as esferas sociais, produtivas, ideolgicas e culturais das sociedades modernas, resultando em diferentes formas de diviso de trabalho no cenrio global e na separao interna das classes dependendo do modelo adotado. Durante o sculo XX, dois modelos econmicos confrontaram-se, o capitalista e o socialista. A Guerra Fria representou o auge desta confrontao, respectivamente entre os blocos liderados pelos EUA e a antiga URSS, e a precedncia do capitalismo liberal norte-americano sobre este outro modo de vida (ver 1.2). Estes modelos no eram nicos, apresentando variaes: no capitalismo, alm do norte-americano, a Europa desenvolveu a social-democracia (um capitalismo regulado) e os pases asiticos um capitalismo de Estado. No campo socialista, os modelos sovitico e chins apresentavam diferenas. No sculo XXI, o modelo hbrido da Economia Socialista de Mercado chinesa ganhou destaque, assim como as teorias da globalizao e, mais recentemente, da crise. A fora ideolgica representa o conjunto de valores e percepes desenvolvidas pelas sociedades humanas para explicar e compreender sua realidade. As ideologias so instrumentos de construo poltica e produzem sistemas de pensamento e agendas capazes de motivar e comandar Estados e suas populaes (e coopt-los). O liberalismo, o nacionalismo, o fascismo,26

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o socialismo so exemplos destas construes e smbolos que prescrevem e orientam certos modelos de comportamento e modos de vida, sustentando paradigmas sociais, culturais e econmicos. A partir desta breve abordagem, o prximo item apresenta uma viso panormica das principais correntes tericas da rea. B) As Teorias: As Origens Clssicas e o Sculo XX Ainda que o desenvolvimento das Relaes Internacionais como disciplina em separado no quadro das Cincias Humanas localize-se no sculo XX a partir da ascenso da hegemonia norte-americana11, as bases de seu pensamento datam das reflexes poltico-sociais-econmicas que emergem a partir do sculo XV. A classificao destas bases, que originam as divises tericas do campo das Relaes Internacionais, no so consensuais entre a literatura, havendo uma razovel quantidade de terminologias para expresslas: alguns autores tendem a dividir as escolas de pensamento somente entre realismo e idealismo, outros entre realismo, pluralismo e globalismo, existindo tambm a opo das teorias sistmicas, da integrao, da paz e conflito ou ambientais12. Apesar do predomnio das perspectivas anglo-saxnicas, outras escolas de Relaes Internacionais devem merecer ateno como as tradies francesa de Pierre Renouvin (1967), Marcel Merle e Jean Baptiste Duroselle, assim como as reflexes de Raymond Aron e os estudos crticos. Ainda que aqui mencionadas, estas escolas e alguns de seus conceitos no podem ser trabalhados em maior extenso. A opo aqui desenvolvida inspira-se nos estudos Michael Doyle (1997) e de Baylis and Smith (2001) que agrupam as teorias conforme as linhas clssicas da cincia poltica, o realismo, o liberalismo e o marxismo13.Esta associao leva alguns autores a definirem as Relaes Internacionais como uma Cincia Social norte-americana. (HOFFMAN, 1987). 12 Para estas discusses ver ARON, 2001, KAUPPI and VIOTTI, 2008, DOUGHERTY and PFALTZGRAFF, 1997 13 O construtivismo e as abordagens alternativas das Relaes Internacionais precisam ser mencionadas como vises tericas possveis: a sociologia histrica, a teoria normativa, a teoria feminista, o ps-modernismo e o ps-colonialismo. O construtivismo ganha cada vez mais espao devido a seu enfoque sociolgico, focando sua preocupao na construo das identidades, valores e o estudo da relao entre agentes e estruturas (ver WENDT, 1999). Estas teorias mais especficas, entretanto, no sero aqui abordadas em extenso dado o escopo deste texto.11

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B.1) O Realismo Poltico Conhecida como a mais tradicional abordagem terica das Relaes Internacionais, o Realismo Poltico sistematiza suas preocupaes em torno de dois conceitos chave, o poder e o conflito. A percepo da natureza humana sustentada em uma avaliao que a identifica como propensa conquista, egosta e predatria (segurana, glria, prestgio so objetivos a serem perseguidos). Desde suas fontes clssicas na Cincia Poltica como Maquiavel e Hobbes, ao anterior estudo de Tucdides sobre as interaes Atenas e Esparta, passando por Max Weber e chegando a E.H Carr e Hans Morgenthau no sculo XX, alm das novas vertentes estruturais e neoclssicas14 com Kenneth Waltz, John Mearsheimer, Randal Schweller, Joseph Grieco e Christopher Layne, estas orientaes mantm-se praticamente as mesmas, com variaes de nfase. Avaliando rapidamente esta progresso, como mencionado, as origens clssicas do Realismo remetem s reflexes de Tucdides em Histria da Guerra do Peloponeso (2001) que examina o conflito entre Atenas e Esparta na Grcia. As formulaes de Tucdides abordam o funcionamento do mecanismo do equilbrio de poder, demonstrando as interaes e choques entre as cidades gregas. O Dilogo Meliano apontado como um dos exemplos mais claros da dinmica realista de contraposio de interesses e preparao da Guerra (ver Dunne e Schmidt, 2001). Em um diferente contexto e perodo histrico, referente ao processo de formao dos Estados na Europa Ocidental, Maquiavel examina em O Prncipe a dinmica da conquista, manuteno e expanso do poder. O objetivo da poltica refere-se ao poder e as aes do governante devem ser julgadas quanto a sua eficincia na perseguio deste alvo especfico15. A estas percepes agrega-se a de Thomas Hobbes16 em O Leviat, cuja imagem do Estado de Natureza pr-pacto social simboliza o cenrio deDe acordo com Tim Dunne e Brian Schmidt (2001), a abordagem realista pode ser dividida em Realismo Clssico, Realismo Estrutural, Realismo Neoclssico e Realismo da Escolha Racional. Tambm no se pode esquecer da Escola Inglesa das Relaes Internacionais de Hedley Bull. No campo da guerra e da segurana, os trabalhos clssicos de Clausewitz, as preocupaes de geopoltica (Mackinder) e a atualidade dos estudos de securitizao de Barry Buzan e da Escola de Copenhagen relacionam-se ao campo realista, preservando, contudo, sua identidade prpria que as aproxima de premissas sociolgicas. 15 As reflexes de Weber sobre a separao do poder e da moral e a lgica da ao poltica tambm se incluem neste campo (tica da responsabilidade e da convico). Outro elemento essencial do estudo weberiano para a constituio do Estado Moderno o uso legtimo da fora e a anlise sobre as formas de dominao derivadas da lei, da tradio e do carisma. 16 Rousseau tambm considerado um autor realista por alguns analistas como Doyle, Dunne and Schmidt.14

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anarquia das Relaes Internacionais. Soberanos, os Estados organizam-se dentro de suas fronteiras por meio do contrato, o que estabelece controles e leis sobre a vida dos cidados. No campo internacional, contudo, prevalece o Estado de Natureza e competio original, no qual a anarquia fator definidor e a guerra uma possibilidade real como um jogo de soma zero. O EP e a diplomacia tero como funo evitar estas ameaas constantes de destruio, seja pelo choque de interesses entre os Estados, como pelo estabelecimento de relaes regulares e mediadas entre os mesmos. Com a formao dos Estados Nacionais, estas concepes tericas passaram a ganhar uma dimenso prtica no desenvolvimento das polticas das naes nos sculos XVII/XIX. Dentre estas, emerge o conceito de Razo de Estado (raison dtat) francesa desenvolvida pelo Cardeal Richelieu (1585/ 1642) que estabelece que os interesses nacionais do Estado constitudo devem ser buscados de forma racional, seguindo um clculo de custos e benefcios, visando o incremento do poder nacional e sendo julgados a partir de critrios exclusivamente polticos. Na Alemanha unificada de Bismarck (1815/1898), as prticas do equilbrio de poder e a ao baseada em consideraes racionais visando o interesse do Estado passam a ser definidas como realpolitik. A distino entre a baixa e a alta poltica (low and high politics) tambm emerge no cenrio europeu, identificando as esferas da economia e da cultura (low) e da diplomacia, do poder e da guerra (high). No perodo contemporneo, estas classificaes so intercambiveis com as perspectivas do poder brando e duro, podendo ser percebida a variao em seu peso ao longo dos sculos. Para a consolidao do Estado, o poder duro estava no ncleo das preocupaes, mas com a evoluo de suas dinmicas e a maior complexidade do cenrio, o brando ganhou espao, superando a condio secundria da baixa poltica (reconhecendo a multidimensionalidade do poder). A transio do sculo XIX ao XX representada pela ecloso da Primeira Guerra Mundial (1914/1918), seguida pela Segunda Guerra Mundial (1939/ 1945) e a Guerra Fria (1947/1989) representam a consolidao dupla do realismo e da disciplina das Relaes Internacionais. As reflexes de E.H Carr em Vinte Anos de Crise (2001) dialogam com os defensores do idealismo wilsoniano (ver B2). Em sua obra, o autor oferece sua crtica e diagnstico dos arranjos de paz ps-1918. Confrontando as utopias realidade, o texto fundamental na consolidao do pensamento realista, destacando a necessidade de repensar a poltica a partir de seu elemento real, qual seja, o poder.29

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Compartilhando as percepes de Carr de que era preciso compreender a poltica internacional pelo prisma de qualquer poltica, o da luta pelo poder, Hans Morgenthau desenvolve em Politics Among Nations uma teoria que tenta entender a poltica internacional como ela realmente (MORGENTHAU, 1985, p.17). No livro, o autor define os seis princpios do realismo poltico partindo dos pressupostos clssicos do realismo sobre o conflito, a natureza humana, a autonomia e centralidade dos Estados. Sistematizando brevemente estes princpios, segundo Morgenthau, o conceito chave do realismo poltico o interesse definido em termos de poder, meio e fim da ao estatal, e que varia conforme suas necessidades e contextos histricos. A prioridade primeira, porm, permanece a mesma: a preservao da segurana e da soberania. Para definir outros componentes deste interesse, o Estado atua como ser racional, avaliando seus riscos e seus benefcios. A cooperao, bi ou multilateral, uma ttica possvel de ao, no assumindo o carter de valor. Demandas morais e idealistas no devem ser levadas em conta neste processo, uma vez que a poltica internacional e a domstica representam esferas separadas e de lgicas distintas. Estes princpios e a ideologia de um determinado Estado no podem, ou devem, ser impostas a outras sociedades, evitando a pretenso de universalizao de modos de vida e valores (o que, como ser analisado, contrasta com algumas das interpretaes liberais e hipteses sobre o psGuerra Fria). A ordem internacional sustentada pelo Equilbrio de poder e Morgenthau define a diplomacia como um fator de relevncia na conduo dos Estados e suas interaes no ambiente mundial. No extremo, a guerra mantm-se presente como instrumento vivel e, por vezes, necessrio, de poltica internacional. Predominante nos anos 1950 e 1970, estas avaliaes sofreram o desafio da emergncia de tendncias contemporneas do liberalismo (B2) e de revises tericas dentro do realismo a partir dos desenvolvimentos da poltica internacional. Tais desenvolvimentos, principalmente os da integrao regional e o multilateralismo nas OIGs, colocam em questo a ao dos Estados somente como maximizadores de poder e que no valorizam a cooperao, abrindo novas perspectivas tericas. Na dcada de 1970, o Neo-Realismo ou Realismo Estrutural de Kenneth Waltz surge como um desafiador destas premissas clssicas, ainda que compartilhe, em larga medida as vises tradicionais do realismo (anarquia,30

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centralidade do Estado e EP, no qual a posio dos Estados define-se por seus recursos de poder). Man, The State and War (2001) e Theory of International Politics (1979) so a base destas reflexes, nas quais se estabelecem os nveis de anlise, ou trs imagens de Waltz: natureza humana, organizao interna dos Estados e sistema (estrutura). Muito resumidamente, de acordo com a viso neo-realista, o sistema internacional a estrutura dentro da qual se processam as Relaes Internacionais, delimitando a atuao dos agentes, isto , os Estados, segundo parmetros da socializao e da competio. O sistema determina as aes dos atores que, por sua vez, influenciam as transformaes da estrutura a partir de suas aes em um argumento de certa forma circular. A socializao se refere ao compromisso do Estado a certas regras de conduta e a competio o EP. Em qualquer uma destas condies, predomina para os Estados a lgica do self-help (auto-ajuda). De acordo com esta lgica, os Estados somente podem contar consigo mesmos para sua proteo e sobrevivncia e, mais do que naes expansionistas, convertem-se em defensores de posio. O Realismo Estrutural abre espao para as interaes interno-externo no processo de elaborao de polticas e tomada de deciso, mas no avana muito na resoluo dos dilemas relativos cooperao dos Estados. A cooperao ainda percebida como instrumental, situao que se repete nas mais contemporneas abordagens neoclssicas e racionalistas. Autores como John Mearsheimer, Christopher Layne, Schweller, Grieco, situam-se nestas dimenses contemporneas do realismo, tambm no sendo facilmente classificados: ou seja, alm de neoclssicos e racionalistas, outros termos a eles associados so realistas ofensivos ou defensivos. Mas, como destacado, medida que no objetivo estender discusses destas particularidades tericas, tenta-se, apenas delinear o debate em suas linhas gerais. Resumindo-as, Dougherty e Pfaltzgraff, assim sintetizam os seis componentes bsicos compartilhados pelas vises realistas,(1) o sistema internacional baseado no Estado-Nao como seus ator chave (2) a poltica internacional essencialmente conflituosa, uma luta por poder em um ambiente anrquico no qual estes Estados inevitavelmente dependem de suas prprias capacidades para garantir sua sobrevivncia (3) os Estados existem em uma condio de igualdade de soberania, porm detm diferentes capacidades e possibilidades (4) os Estados so os atores

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principais e a poltica domstica pode ser separada da poltica externa (5) os Estados so atores racionais, cujo processo de tomada de deciso sustentado em escolhas que levem maximizao de seu interesse nacional (6) o poder o conceito mais importante para explicar e prever o comportamento dos Estados. (DOUGHERTY e PFALTZGRAFF, p. 58).

Adicionalmente, preciso ressaltar que apesar de seu foco no poder e conflito, e no Estado como percebido pelos itens acima, o realismo sustentase como uma ferramenta crtica para revelar a jogo dos interesses nacionais sob a retrica do universalismo. (DUNNE and SCHMIDT, 2001, p. 179). Em uma outra vertente, as vises liberais procuram ampliar o espectro realista a partir da interao entre Estados, sociedades, valores e cooperao. B.2) O Liberalismo, o Idealismo e a Interdependncia Assim como o nascimento do realismo poltico encontra-se condicionado ao surgimento e consolidao do Estado Moderno, a corrente liberal relacionase a um fenmeno poltico: a ascenso da classe burguesa e seu iderio polticosocial e econmico. Os sculos XVII e XVIII so marcados pelas Revolues Liberais, a Revoluo Gloriosa de 1688/89, a Revoluo Americana de 1776 e a Revoluo Francesa de 1789, orientadas segundo os princpios da liberdade, da igualdade, do individualismo e da reforma do Estado absolutista17. De John Locke a Montesquieu, dos Federalistas Americanas a Bentham e Mill, o pensamento liberal ressalta a importncia da lei e da legitimidade que permitem s sociedades humanas realizar seus potenciais. Embora compartilhem com o realismo o princpio da anarquia e mesmo a desconfiana sobre o carter da natureza humana, o caminho liberal substitui o conflito pela cooperao e redireciona o contedo do poder para o lucro e benefcios (gerao de riqueza). Recuando ao pensamento de Grotius, possvel estabelecer tanto dentro quanto fora das sociedades regras, normas de direito que conduzam a um ambiente propcio a interaes pacficas e construtivas (a inspirao da sociedade internacional de Bull). No sculo XIX, Immanuel Kant em A Paz Perptua aborda temas relativos ao cosmopolitismo e a governana global ao discutir a formao de uma federao de Estados livres e republicanos. Suas reflexes encontram17

No campo econmico, Adam Smith representa o pensamento liberal clssico.

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se nas razes das teorias de integrao europeia, demonstrando a capacidade transformadora dos indivduos e seu potencial para alcanar uma conscincia universal. No sculo XX, com o Idealismo Wilsoniano, estas concepes liberais ganham maior destaque, estando relacionadas ao processo de construo de ordem no ps-Primeira Guerra Mundial e citada ascenso hegemnica norteamericana (ver PECEQUILO, 2005). Embora o realismo de Morgenthau reivindique o carter de formulao terica inicial da rea, a disciplina das Relaes Internacionais emerge como ctedra em separado j nos anos 1920 (HALLIDAY, 1999). consistindo-se na viso americana deste campo. Esta viso estabelecida nos Quatorze Pontos discurso proferido por Woodrow Wilson no Senado dos EUA em 1918 (tambm conhecido como Programa para a Paz Mundial) e ser base desta viso terica e do Tratado de Versalhes (1919). O idealismo sustenta-se em trs premissas: a democracia e a disseminao de seus valores, universalizando prticas legtimas e transparentes entre as sociedades e os Estados (as democracias no vo guerra umas com as outras a concluso daqui derivada); a segurana coletiva para garantir a cooperao e defesa mtua entre as naes, prevenindo o avano de agressores, a partir da instituio de um mecanismo coletivo (a Liga das Naes, embrio da ONU e cuja lgica multilateral estende-se s OIGs em geral); a autodeterminao dos povos, que estabelece o direito soberania aos povos que detiverem uma identidade e unidade comum. As dcadas de 1920 e 1930 assistiram ao colapso destes arranjos por conta de uma combinao de fatores como as opes da poltica externa dos EUA, a conjuntura da Grande Depresso e os fascismos. Em 1939, a Segunda Guerra parecia encerrar estas prescries idealistas, mas a constrio da ordem depois de 1945 levou a recuperao de alguns de seus mais importantes princpios como o multilateralismo e a segurana coletiva. Na oportunidade, porm, a hegemonia, os EUA, buscou corrigir seus erros de 1918, desenvolvendo o que alguns autores como Ikenberry (2006) definem de Internacionalismo Liberal. Este internacionalismo agrega elementos de poder ao idealismo, sustentando a hegemonia em trs pilares: o estrutural (poder duro), o institucional e o ideolgico (ambos brandos e de cooptao representados pelas OIGs e a retrica cooperativa)18.Para a Teoria da Estabilidade Hegemnica ver Kindleberger (1973) e para discusses sobre as aes dos EUA, GILPIN, 2002. Gilpin apresenta interessante debate terico sobre a Economia Poltica Internacional.18

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Todavia, esta viso no representa uma nova vertente terica ou corpo conceitual para o liberalismo, o que se consolida nos anos 1960 e 1970 a partir das abordagens de Robert Keohane e Joseph Nye em obras que se tornam clssicas na rea das Relaes Internacionais: Transnational Relations, Power and Interdependence e After Hegemony.Assim como as discusses sobre o Neorealismo dominam os anos 1970 no realismo, as obras de Keohane e Nye, e sua ponte entre realismo e liberalismo, a partir da introduo de conceitos como interdependncia e transnacionalizao tornam-se recorrentes no campo liberal. Estas vises so conhecidas como Liberal Institucionalismo, NeoLiberalismo ou Paradigma da Interdependncia Para Keohane e Nye, a evoluo da poltica internacional desde 1945 e as estruturas multilaterais construdas para organizar as relaes entre os Estados nos mais diversos campos, incrementou as possibilidades de cooperao entre as naes, reduzindo a incerteza e aumentando a transparncia nas relaes interestatais. A partir destes mecanismos facilitadores, o conflito passa a ser secundrio diante da cooperao, uma vez que os Estados comeam a dar preferncia a este mbito institucional e mudar a natureza de seu comportamento voltado apenas para o conflito. Com isso, estabelecido um conjunto claro de regras e princpios, facilitando a ao coletiva. Alm de participarem em OIGs, os Estados tambm apoiam a criao de regimes, regulando suas relaes (a relevncia e a magnitude do multilateralismo podem ser facilmente percebidas nas anlises do Captulo 5). Em definio bastante conhecida, Krasner afirma que osRegimes so conjuntos de princpios, normas, regras e procedimentos de tomada de deciso implcitos e explcitos em torno dos quais as expectativas dos atores convergem em uma determinada rea das Relaes Internacionais e fornecem as estruturas nas quais as relaes entre os Estados podem se organizar de maneira mais completa e equilibrada.19

Como resultado deste espiral e disseminao da cooperao (spillover) e da interligao cada vez maior dos Estados e suas sociedades, existe a crescente relevncia dos atores no estatais. Neste contexto mais complexo e multidimensional, os temas clssicos do conflito entre os Estados e os recursos duros comeam a ser acompanhados por preocupaes cada vez mais diversas na economia, na cultura, na poltica e na sociedade, como democracia, meio ambiente e direitos humanos. A acelerao do19

KRASNER, 1983, p. 2

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desenvolvimento tecnolgico e seus impactos nos fluxos de capital, bens, pessoas e informao reforam os fenmenos da interdependncia e da transnacionalizao, elementos essenciais da globalizao. Em termos conceituais a interdependncia corresponde aos efeitos recprocos que se estabelecem entre pases ou entre atores de diferentes pases como produto do aumento e aprofundamento dos contatos internacionais. Estes contatos ocorrem alm fronteiras e produzem situaes de dependncia mtua, abrangendo fenmenos diversos: scio-culturais, polticos, econmicos (comerciais e financeiros), ambientais e tcnicos. Os canais da interdependncia so mltiplos, interestatais, transgovernamentais e transnacionais. Os Estados so afetados e determinados significativamente por foras externas, tanto de forma simtrica quanto assimtrica (dependendo de seu grau de exposio e vulnerabilidade externa). O segundo conceito, o de transnacionalizao, relaciona-se interdependncia e emerge da ao dos agentes privados no sistema internacional que se intensificou a partir dos desenvolvimentos tecnolgicos e dos fenmenos que surgem alm dos Estados e seus limites, mas que por eles no podem ser controlados. Apesar de nascerem dentro dos Estados, estes fenmenos ultrapassam suas fronteiras, sendo representados por quatro fluxos: comunicaes, transportes, finanas e pessoas (no que se relacionam s foras internacionais e aos atores FTs analisados no 1.1A). No contexto da globalizao (1.2B), alguns autores indicam que a correlao destes fenmenos levaria ao desaparecimento e superao do Estado, enquanto outros, incluindo Keohane e Nye, indicam a existncia de uma transio e convivncia de formas mltiplas e tabuleiros diferenciados nas Relaes Internacionais. Esta multiplicidade refere-se ampliao das questes que interessam e afetam os Estados alm do poder militar, do incremento da ao de outros atores, da ampliao das interaes estatais e no-estatais e das transformaes das sociedades. Trata-se de um debate relevante que, como o marxista, demonstra a complexidade da poltica internacional. B.3) O Marxismo e as Vises Crticas Diferente do realismo e do liberalismo que, depois de suas bases clssicas, desenvolveram concepes tericas especficas para as Relaes Internacionais, o marxismo ainda no gerou um enfoque disciplinar claro para35

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a rea como sustenta Fred Halliday (1999). O domnio do campo de estudos pela escola norte-americana dificultou o desenvolvimento de reflexes, principalmente ao longo da Guerra Fria e depois de 1989 dada a queda dos regimes socialistas como o da URSS e a reavaliao do modelo (ver 1.2C). Porm, desde suas origens que datam do sculo XIX com a anlise da Revoluo Industrial, suas transformaes e a contestao da sociedade burguesa pelo proletariado nos trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels (O Capital, 18 Brumario, O Manifesto Comunista so algumas obras que podem ser mencionada), o marxismo detm preocupaes sobre o internacional. Assim, esta corrente apresenta formas crticas de questionamento sobre a realidade e elementos que compem uma possvel agenda para compreend-la. As vises de Marx sobre a economia capitalista e seu processo de expanso e presso sob outras sociedades detm um perfil claramente internacional, demonstrando o poder global deste modo de produo. Como indica Halliday, o materialismo histrico uma teoria geral abrangente da ao poltica, social e econmica, capaz de considerar todos os campos da ao social (HALLIDAY, 1999, p. 69) que pode nos ajudar a pensar as Relaes Internacionais e transformar a realidade. Mas, quais so os pilares que embasam esta reflexo? Especificamente, para Halliday, estes pilares so a determinao material, a determinao histrica, a centralidade das classes e a revoluo. A determinao material refere-se ao peso da economia na organizao social, poltica e cultural de uma sociedade. A estrutura, os meios de produo, determinante na definio de suas demais formas de reproduo social e ideolgica (superestrutura). No campo da determinao histrica o que se observa o peso do passado sobre a histria presente, no se podendo ignorar o processo formativo das sociedades para, posteriormente, mud-las. O processo de evoluo destas sociedades ocorre por meio do conflito, um movimento dialtico, gerado a partir dos outros dois pilares do pensamento marxista: a diviso das classes entre burgueses e proletrios, seu antagonismo natural, e a inevitabilidade da revoluo (que se consiste em um dos elementos mais criticados desta corrente20). No caso da diviso de classes, Halliday indica que a mesma se estende ao sistema internacional, entre diferentes burguesias e proletariados nacionais.20 Dentre estas crticas apontadas por Halliday encontram-se a subestimao da democracia, da reforma e do nacionalismo e da tecnologia como elementos de atualizao do capitalismo diante de seus desafiadores de esquerda e de direita.

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Para Halliday, o potencial do marxismo como instrumento analtico reside em sua concepo das interaes sociais. Autores como Lenin, Rosa de Luxemburgo, Gramsci oferecem importantes contribuies para o estudo do imperialismo, da evoluo do capitalismo e, principalmente no caso de Gramsci, da construo e exerccio da hegemonia em suas formas concretas e ideolgicas. Abordagens inspiradas por Gramsci no estudo da reproduo hegemnica foram desenvolvidas por autores como Robert Cox no perodo mais contemporneo, alm da viso da teoria crtica com Andrew Linklater a partir dos estudos da Escola de Frankfurt. Dentre os representantes do novo marxismo encontram-se Bill Warren e Justin Rosenberg. 21 Alm destas reflexes, historiadores como Eric Hobsbawm desenvolvem um pensamento de orientao marxista e merece destaque a anlise sistmica de Immanuel Wallerstein sobre a evoluo do capitalismo e das Relaes Internacionais, a Teoria dos Sistemas Mundiais. Na viso de Wallerstein22, o sistema capitalista a fora motriz do desenvolvimento e sua evoluo poltica e econmica leva a formao do sistema mundo e fenmenos contemporneos. A partir deste processo, estabelece-se uma diviso social de trabalho entre os Estados composta por Estados no Ncleo, na Semi-Periferia e Periferia do cenrio global. Finalmente, preciso mencionar dentre as vises tericas de esquerda a Teoria da Dependncia elaborada pela CEPAL (Comisso Econmica das Naes Unidas para a Amrica Latina e o Caribe)23. Esta teoria sustenta a diviso estrutural do cenrio entre Norte e Sul (pases desenvolvidos e em desenvolvimento). A base do pensamento a defesa da nova ordem econmica internacional (NOEI) e do desenvolvimento autctone dos pases do Sul por meio da superao da deteriorao dos termos de intercmbio por meio da ao estatal e da substituio de importaes. A partir deste breve panorama, percebe-se a riqueza das Relaes Internacionais e os diversos prismas e conceitos que ajudam a compreender sua dinmica. Acelerada pelo fim da Guerra Fria, esta dinmica trouxe desafios renovados s linhas tericas e o questionamento das vises tradicionais. Dentre as correntes examinadas, realismo e marxismo foram consideradas superadas em 1989, consolidando a supremacia do liberalismo. Acontecimentos comoPara uma anlise mais extensa ver HOBDEN and JONES, 2001. The modern world system, vols. I, II e III so os textos nos quais Wallerstein desenvolve esta abordagem (WALLERSTEIN, 1980, 1980, 1988). 23 Raul Prbisch e Fernando Henrique Cardoso so alguns dos representantes desta corrente.21 22

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o 11/09, a desigualdade social, as guerras, a pobreza, reverteram esta tendncia. Estas oscilaes revelam a complexidade do perodo e inspiram muitas discusses contemporneas, envolvendo a arena mais concreta de como pensar a ordem internacional. No prximo item, so examinadas as interpretaes e hipteses sobre a poltica internacional no ps-Guerra Fria. 1.2 O Ps-Guerra Fria: Interpretaes e Hipteses (1989/2009) Ao longo do ps-Guerra Fria, as interpretaes sobre o funcionamento e reestruturao da poltica mundial envolvem diferentes percepes sobre o papel e o peso dos atores internacionais, estatais e no-estatais, fenmenos sociais, culturais, polticos e econmico, o novo equilbrio de poder e a dinmica entre padres de cooperao e conflito em nvel global. A) O Fim da Histria, a Nova Ordem Mundial e o Momento Unipolar No imediato ps-Guerra Fria, em 1989, a publicao do artigo de Francis Fukuyama, The End of History?, no peridico The National Interest, ao qual seguiu o livro O Fim da Histria e o ltimo Homem, sintetizou o sentimento corrente de paz e cooperao que dominava o mundo. Segundo a hiptese de Fukuyama, a histria, entendida como a competio ideolgica e concreta entre modelos alternativos de sociedade teria chegado ao fim em 1989 devido ao desaparecimento do desafio representado pelo comunismo ao ocidente. Este desaparecimento era simbolizado pelo predomnio do modelo norte-americano sobre o sovitico e pela adeso deste bloco adversrio, incluindo de seu Estado lder, a URSS, a este modelo de forma pacfica, voluntria e consensual. O resultado desta adeso era a disseminao e a universalizao dos princpios liberais, na economia e na poltica. A partir deste compartilhamento de valores, o conflito seria substitudo pela cooperao, permitindo o estabelecimento de uma era de paz no sistema internacional. Este predomnio revelava o sucesso da estratgia de expanso do modelo ocidental desenvolvida pelos EUA ao longo da Guerra Fria como parte da poltica de conteno. Desde 1947, a grande estratgia norte-americana sustentava-se em trs prioridades: a conteno da URSS, a conteno do comunismo e a disseminao da ordem liberal democrtica.38

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O fim da histria simbolizava a concretizao destes objetivos de forma coordenada e a disposio positiva dos EUA e seus aliados em integrar seus antigos adversrios em seu sistema de relaes estatais e multilaterais. No mbito multilateral, as organizaes internacionais governamentais criadas no ps-Segunda Guerra Mundial preservavam sua funcionalidade e eram os canais por meio das quais os EUA exerceram, e continuavam exercendo sua liderana. A globalizao e a regionalizao reforavam esta unidade das democracias e a transformao dos tradicionais parmetros da poltica internacional, favorecendo a cooperao em detrimento da guerra. Diferente de outras eras de ps-guerra, a vitria era apresentada como um encaminhamento natural da adeso do bloco oriental ao ocidental, que no diferenciaria ganhadores e perdedores, que no gerava a emergncia de vcuos de poder ou a necessidade de construir uma nova ordem mundial. Prevalecia um cenrio de estabilidade da hegemonia e das estruturas por meio das quais seu poder era exercido. Segundo Fukuyama,O triunfo do ocidente, da idia ocidental evidente, em primeiro lugar, pela exausto total de alternativas sistmicas viveis ao liberalismo ocidental (...) O que talvez estejamos testemunhando no seja somente o fim da Guerra Fria, ou a passagem de um perodo particular da histria ps-guerra, mas o fim da histria como tal: isto , o ponto de chegada da evoluo ideolgica da humanidade e a universalizao da democracia liberal ocidental como a forma ltima de governo humano.(FUKUYAMA, 1989, s/p)

Em termos polticos e econmicos, esta ordem liberal que passava a ser dominante, seno universal, era caracterizada pelos seguintes padres: na poltica, sociedades abertas, transparentes, livres e sem censura para a organizao de partidos, grupos e expresso de ideias, que permitiam a participao de seus cidados em eleies peridicas (as regras do jogo); na economia, tambm uma sociedade livre, que recuperava as foras e a lgica do mercado como referenciais do sistema produtivo, com um Estado mnimo, de baixa interveno e presena em temas sociais, de defesa da abertura econmica e do comrcio sem barreiras. Esta agenda econmica era sintetizada nos preceitos do neoliberalismo, implementado desde os anos 1980 a partir das aes de Margaret Thatcher, Primeira-Ministra Britnica, e de Ronald Reagan, Presidente dos EUA. Em ambas as naes, ncleo do capitalismo mundial, estas medidas de diminuio39

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do Estado, abertura comercial, privatizaes, flexibilizao das leis trabalhistas, corte de assistncia social, desregulamentao haviam surgido para reformar os Estados de Bem-Estar Social e reduzir custos. O argumento para estas reformas e o retorno do Estado mnimo do liberalismo clssico e da mo invisvel sustentava-se em duas vertentes: primeiro, nos dficits oramentrios gerados pelos programas sociais e, segundo, na alegao de que as polticas assistencialistas coibiam o desenvolvimento humano. Para as sociedades em transio, tanto as do Leste quanto as do Oeste pertencentes ao mundo em desenvolvimento, a agenda neoliberal consubstanciou-se no Consenso de Washington. O Consenso de Washington, termo cunhado por John Williamson, correspondia a um conjunto de dez prescries elaboradas a partir de discusses das principais instituies econmicas internacionais sediadas em Washington (FMI e Banco Mundial) para direcionar as reformas dos pases em desenvolvimento, em particular os da Amrica Latina, a luz de suas reformas estruturais internas e da transio do ps-Guerra Fria. As dez prescries do Consenso de Washington eram: disciplina fiscal, direito de propriedade, privatizao, desregulamentao, abertura comercial, atrao ao investimento estrangeiro direto, taxas de juros favorveis aos investidores estrangeiros e poupana e taxas de cmbio variveis adequadas ao mercado. Estas medidas que combinaram estudos do Banco Mundial, FMI e do governo dos EUA foram aplicadas na Amrica Latina, na frica e nas sociedades em transio do Leste Europeu. Tanto no ncleo quanto na periferia do capitalismo mundial, as recomendaes neoliberais tiveram impactos decisivos para gerar crises sociais, econmicas e polticas com diferentes perfis e graus de intensidade que sero abordados ao longo do texto, polarizando defensores e crticos desta agenda. Bastante populares e difundidas no imediato ps-1989, estas avaliaes e agendas associadas ao Fim da Histria foram completadas no binio 1990/ 1991 pela hiptese de construo de uma nova ordem mundial. Contrariando as previses iniciais de que o ps-Guerra Fria seria uma era de paz, este conceito emerge a partir da invaso do Iraque de Saddam Hussein ao Kuwait em 1990. Sem entrar em detalhes da dinmica desta invaso e da posterior Operao Tempestade do Deserto, analisada no 2.1, importante ressaltar que esta invaso, e a resposta da comunidade internacional, foram apresentadas, neste momento, como uma prova no do fracasso, mas sim do sucesso das hipteses sobre a universalizao do liberalismo.40

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A invaso foi avaliada como uma exceo regra da paz, perpetrada por um dirigente autoritrio com pretenses de expanso regional que ignorara as tendncias positivas do sistema internacional em nome de seus interesses. Uma vez que as demais naes do cenrio compartilhavam de similares regras e valores, a clara agresso de Hussein a uma nao soberana foi rechaada, com as Naes Unidas funcionando como principal frum de debate e formulao de polticas. Coletiva e consensual, a resposta ao Iraque deu-se dentro dos ditames da ONU, gerando aes legais e legtimas de defesa do Kuwait por meio de uma coalizo militar liderada pelos EUA(segurana coletiva).Aeficincia da ONU e seus pases membros ao lidar com o Iraque preconizavam o nascimento de uma nova ordem mundial, nucleada por esta organizao, e pelos valores e princpios que a regem. Nas palavras de Bush pai,Este um mundo novo e diferente. Nunca desde 1945 havamos tido a possibilidade de usar as Naes Unidas da maneira que foram concebidas: como um centro para a segurana coletiva internacional (...) A tarefa central do mundo- antes, agora e sempre- deve ser demonstrar que a agresso no ser tolerada ou recompensada (...) As Naes Unidas podem ajudar a trazer um novo dia (...) Est em nossas mos (...) deixar as trevas onde elas pertencem e impulsionar um movimento histrico em direo a uma nova ordem mundial e a uma longa nova era de paz. (BUSH, 1990, s/p)

Em termos tericos, as vises do Fim da Histria e da Nova Ordem Mundial, inserem-se no mbito de uma tradio liberal. No auge destas vises, chegou-se a considerar que no somente a histria vista como confrontao ideolgica havia chegado ao fim, mas que paradigmas tradicionais como o realismo e o pensamento de esquerda no teriam mais espao no debate poltico. Contudo, mesmo neste primeiro momento reaes de diversas linhas contestaram estas previses. A despeito das dificuldades apresentadas pela esquerda em se reorganizar luz do declnio sovitico, pensadores como Eric Hobsbawm, Fred Halliday e Immanuel Wallerstein alertavam sobre as limitaes destas interpretaes, em particular a do Fim da Histria, diante de um cenrio internacional que possua um elevado potencial de instabilidade devido s assimetrias de poder poltico e social vigentes. Embora a Guerra Fria tenha se encerrado como conflito entre os sistemas estatais sovitico e norte-americano, eliminando o41

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vis Leste-Oeste, as contradies Norte-Sul (a oposio Primeiro e Terceiro Mundo) continuavam presentes. Tambm se indagava sobre o Movimento no-Alinhado, e era questionado se o discurso de integrao via adeso ao liberalismo traria a prosperidade e crescimento prometidos. Muitos dos conflitos sociais, tnicos, polticos, estratgicos e religiosos que haviam sido congelados durante a bipolaridade, recuperaram sua lgica, contrapondo-se a este suposto cenrio de estabilidade entre as potncias dominantes, sustentando fortes instabilidades na periferia e na reorganizao de poderes regionais em suas zonas de influncia (e levando em conta o declnio do imprio sovitico). Wallerstein ainda completa afirmando que a supremacia do capitalismo como projeto vencedor diante de seus dois principais adversrios do sculo XX, o socialista sovitico (cujas origens so a Revoluo Russa de 1917) e o fascista alemo-japons dos anos 1930, representava a contradio final do modelo. De acordo com este autor, a ausncia do contraponto ideolgico ao capitalismo traria a exacerbao das tendncias de desregulamentao, perda de parmetros sociais e lucratividade a ele associadas, uma vez que no existiria um contraponto e crtica a esta expanso. Caracterizado por crises cclicas, o capitalismo teria, talvez, no ps-Guerra Fria a sua crise final, uma vez que seus rumos no seriam corrigidos (o que pareceu se comprovar com a crise de 2008, definida como similar e, por vezes, pior que a Grande Depresso de 1929). Esta ausncia de alternativas ideolgicas e debates tambm apresentada por autores norte-americanos como Ikenberry (2006), que ressaltam a presso pela unanimidade de formas de viver e pensar como momentos no de progresso, mas de inrcia. Alternativas em construo como o socialismo de mercado chins que mesclava tendncias capitalistas e socialistas ainda eram vistas como incipientes, havendo um considervel refluxo do pensamento de esquerda apesar das tentativas de reflexo mencionadas. Mesmo com o desaparecimento do socialismo de tipo sovitico, prevaleciam em pases como Cuba e Coria do Norte modelos que sustentavam uma linha mais prxima a estas vises, no se devendo esquecer dos paradigmas associados social democracia europeia e o capitalismo de Estado asitico que, mesmo pressionados pelas demandas neoliberais, tentavam sustentar-se em alguma medida. Tambm importante ressaltar que mesmo dentro do bloco ocidental, naes como a Frana, que tradicionalmente detinham uma poltica externa autnoma, j expressavam,42

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suas preocupaes diante da supremacia dos EUA e seu modelo que, mais adiante, traduzir-se-iam em crticas hiperpotncia imperial norte-americana, conforme as palavras de Hubert Vedrine Ministro das Relaes Exteriores francs em 1999. Ikenberry, contudo, ressalta que no havia, de fato, uma ideologia alternativa forte o suficiente capaz de contrapor-se norte-americana, seja para oferecer-lhe crticas como para permitir o seu aperfeioamento. Esta ausncia de alternativas somente comea a ser superada a partir da segunda metade dos anos 1990. O marco para o renascimento destas tentativas de repensar o mundo justamente a crise uma vez que os resultados incipientes das transies ao modelo ocidental comeam a se tornar mais evidentes, associados estagnao, desemprego e perda de valores. A frustrao relativa diante das promessas da prosperidade e igualdade da globalizao e regionalizao sero componentes deste processo. A reao vir tanto da direita quanto da esquerda nas formas da reviso das polticas neoliberais, a Terceira Via e o incio da realizao dos Fruns Sociais Mundiais. Contudo, este vcuo ideolgico, era acompanhado pela manuteno das estruturas hegemnicas de poder comandadas pelos EUA que permitiam que a construo do mundo ps-1989 partisse de um patamar diferenciado de outros ps-guerras. Neste patamar, prevaleceria e legitimidade e legalidade da ordem vigente, sendo tarefa da hegemonia no mais construir um novo mundo, mas sim reformar e atualizar o anterior a fim de responder a seus novos desafios e realidades de poder. Tal avaliao de certa forma acrtica uma vez que considera como natural a preservao do status quo, sem dar conta das alteraes de poder relativo em curso, referente hegemonia dos EUA e as demais potncias regionais, que colocaram em xeque esta mesma estabilidade hegemnica. Outra reao s vises de cooperao, paz e multilateralismo, prevalecentes nas hipteses do fim da histria e da nova ordem mundial, nas quais os EUA desempenhavam um papel de parceria com as demais naes do sistema, nasciam do debate domstico norte-americano. Enquanto as premissas at aqui analisadas supunham a preservao do perfil da hegemonia dos EUA conforme estabelecida no ps-1945, caracterizada pelo internacionalismo multilateral e pela construo de canais alternativos de domnio, que implicava a manuteno de uma certa auto-restrio estratgica e a percepo da ascenso de potncias regionais a leste e oeste, analistas defendiam a retomada de um padro de expanso de poder e unilateralismo.43

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A base para a substituio da conteno pela expanso residia na percepo de que o sistema internacional atravessava o que escritores como Charles Krauthammer definiam como momento unipolar. O momento unipolar era sustentado na supremacia estratgica, poltica, econmica, mas principalmente militar norte-americana, o que permitia a emergncia do pas como nica superpotncia restante do sistema internacional e sua projeo global e regional. Neste quadro, seria possvel e prioritrio aos EUA agir de forma unilateral, recuperando seus recursos e margem de manobra perdida durante a Guerra Fria que levara a uma acomodao dos interesses nacionais agenda de aliados e das instituies multilaterais. Segundo Krauthammer, a adeso s percepes do fim da histria e da nova ordem somente agravariam esta acomodao permitindo que os adversrios dos EUA recuperassem o tempo perdido e posteriormente contestassem a hegemonia. As razes desta concepo remetem viso das relaes norte-americanas defendida por George Washington no sculo XVIII que ditava a regra das alianas no permanentes e do unilateralismo (por vezes confundida com o isolacionismo), e chocam-se diretamente com a tradio internacionalista multilateral de uma hegemonia integrada ao mundo24. Mais do que o poder ideolgico ou institucional da liderana dita benigna dos EUA, do imprio por convite, os defensores desta reviso estratgica apostavam no poder militar, estrutural e bruto norte-americano. Associado ao pensamento realista e ao neoconservadorismo na poltica norte-americana25, cujas origens remetem aos anos 1960, atingindo sua maior expresso na Presidncia Reagan, este vis estratgico ser o responsvel pelas grandes polarizaes e oscilaes da poltica internacional e domstica dos EUA. Durante o ps-Guerra Fria, dois ciclos podem ser associados ao momento unipolar: 1990/1992, que engloba as discusses iniciais sobre o equilbrio de poder mundial a reviso da estratgia da conteno, culminando no Defense Planning Guidance (DPG) e 2001/2005, referente ao primeiro24 A citao de Ikenberry ilustra o carter desta relao ordem/hegemonia na lgica da liderana dos EUA: (...) a ordem Americana do ps-guerra uma hegemonia penetrada, um sistema abrangente no qual a poltica domstica e a internacional se misturam, criando um elaborado sistema poltico transnacional e transgovernamental com os EUA no ncleo (IKENBERRY 2006, p. 131). 25 As identidades e divises entre neoconservadores, realistas e liberais, nem sempre so claras ou consensuais. Fukuyama, por exemplo, identificado como um neoconservador liberal enquanto Krauthammer, Kagan e Kristol como neoconservadores realistas.

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mandato de George W. Bush, com impactos da Estratgia de Segurana Nacional de 2002, ps-11/09 (ver item 2.1). De acordo com Krauthammer,O mundo imediato do ps-Guerra Fria no multipolar. unipolar. O centro do poder mundial a superpotncia sem desafiadores, os EUA, acompanhado por seus aliados ocidentais. (KRAUTHAMMER, 1990, s/ p)

As previses de um mundo mais complexo sobrepuseram-se ao momento unipolar. Indo alm do fim da histria e da nova ordem, avaliaes que sustentavam que o desenho do novo equilbrio de poder, superando a bipolaridade, era o de uma ordem liderada pelos EUA que tendia multipolaridade e sustentada nas OIGs. De acordo com Paul Kennedy (1990), as relaes internacionais caminhavam para a restaurao de um equilbrio multipolar similar ao do sculo XIX, dividido entre a hegemonia declinante, os EUA, e as potncias ascendentes, Japo, Europa e URSS, quando da edio do livro Ascenso e Queda das Grandes Potncias. Natural e comum a outras hegemonias antes da norte-americana, este processo de declnio, era avaliado como produto das contradies entre os compromissos assumidos pela nao lder e os seus recursos de poder: a equao da superextenso imperial e do gap entre recursos e compromissos, resumia o dilema norte-americano. No campo econmico, autores comoArrighi igualmente citavam o declnio da hegemonia ocidental, tanto dos EUA quanto da Europa, e a ascenso da sia como espao do novo capitalismo. A expanso japonesa serve como fundamento destas anlises, assim como o crescimento do LesteAsitico.Atualmente, a China e a ndia surgem como os motores do desenvolvimento desta regio.Arrighi indica que,Desde, aproximadamente a dcada de 1970, tm sido fartamente observadas as mudanas no modo como funciona o capitalismo em termos locais e globais (....) a substituio de uma regio antiga (a Amrica do Norte) por uma nova (o leste asitico) como o centro mais dinmico dos processos de acumulao de capital em escala mundial j uma realidade (...) o capitalismo do leste asitico j passou a ocupar uma posio de liderana (...). (ARRIGHI, 1996, p.1, p. 344, p. 351)

Estas interpretaes de declnio do eixo hegemnico ocidental no eram, entretanto, consensuais, e no s pelo lado dos defensores do45

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momento unipolar, mas pelo campo dos que previam a continuidade sem contestao da hegemonia dos EUA, ainda que o sistema tivesse sinais de multipolaridade. Autores como Joseph Nye Jr e Samuel Huntington ofereceram hipteses intermedirias entre a unipolaridade e a multipolaridade, assim como se posicionaram contra a inevitabilidade do declnio dos EUA e a ascenso de plos de poder regionais. Esta ascenso e a transio dos eixos de poder Ocidente-Oriente somente ser reconhecida a partir da segunda metade da primeira dcada do sculo XXI, devido a um momento de crise econmica e poltica dos EUA, mantendo-se latente durante todo este perodo. De acordo com Nye Jr, os EUA atravessavam um momento de crise em seu poder, mas de carter passageiro, que poderia ser superada por meio de uma readequao de polticas. Alm de deter recursos mltiplos que permitem esta reviso de polticas, em particular a vanguarda do poder brando e de cooptao, os EUA no possuam adversrios imediatos em nenhum nvel de poder. A liderana era favorecida pelo desenvolvimento de um equilbrio de poder mundial multidimensional, com a poltica internacional sendo jogada em mltiplos tabuleiros. Se no tabuleiro econmico, os EUA poderiam eventualmente perder, no ideolgico e militar, estariam frente de seus aliados e potenciais inimigos: ou seja, em alguns tabuleiros haveria a unipolaridade, em outros, a multi. Compartilhando similar postura quanto renovao do poder dos EUA no que se refere aos recursos disponveis, Huntington levanta a hiptese de um mundo unimultipolar (a hiptese mais controversa de autor sobre o ps-Guerra Fria foi, contudo, o Choque das Civilizaes, o contraponto ao Fim da Histria de Fukuyama, examinado no item 1.2C). Neste sistema, os EUA manteriam sua posio como lderes do equilbrio devido supremacia militar, mas nos demais nveis, econmico e poltico, estariam sendo acompanhados pela ascenso de potncias asiticas e ocidentais. Mais realista do que seus colegas, e mais prximo de Kennedy, contudo, o ex-Assessor de Segurana Nacional Zibgniew Brzezinski (1997) sustenta que a despeito deste otimismo, os EUA eram, no ps-Guerra Fria, a primeira, a nica e ltima superpotncia restante e que a sua era de supremacia psbipolaridade seria muito mais complexa, contestada e conturbada, chamando a ateno para a acelerao da poltica um mundo ps-americano e as46

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transformaes do poder relativo da superpotncia de seu lugar no equilbrio de poder mundial. Antes de examinar as hipteses da desordem e do choque que se colocaram diante do esgotamento das previses otimistas sobre o psGuerra Fria, em particular a partir de 1993, interpretaes adicionais associadas universalizao de valores e princpios e o aprofundamento da cooperao, precisam ser discutidas. Tais interpretaes, alm disso, pareciam questionar, pelo menos a mdio e longo prazo, as formas tradicionais de poder e soberania vigentes desde o sculo XVII, consubstanciando-se nas hipteses da globalizao e da regionalizao. B) A Globalizao e a Regionalizao Anteriores ao fim da Guerra Fria, os processos de globalizao e regionalizao ganharam maior visibilidade e impulso com a quebra dos constrangimentos bipolares. Desta forma, aumentaram as interpretaes sobre o cenrio que apontavam duas tendncias tanto opostas quanto complementares: a da universalizao de princpios e quebra de fronteiras que levariam ao desaparecimento da soberania dos Estados e a construo e fortalecimento de blocos regionais26. At o momento, estas interpretaes no se realizaram em sua plenitude, cabendo analisar individualmente estes fenmenos, iniciando pela globalizao. De acordo com a definio de McGrew (MCGREW, 2001, p. 19), a globalizao um processo histrico que envolve a ampliao, aprofundamento, acelerao e impacto crescente da interconexo em nvel mundial. Este um processo que se desenrola de forma assimtrica com tendncias positivas e negativas, apresentando diferentes intensidades e velocidades. No campo positivo, existe o incremento da cooperao e da interdependncia entre os Estados e suas sociedades, assim como o desenvolvimento de percepes compartilhadas sobre problemas comuns que afetam o sistema internacional. Temas ambientais, sociais, questes de segurana so alguns destes objetos compartilhados. A26

Aqui so delineadas apenas as linhas gerais destes fenmenos, no se aprofundando discusses sobre teorias da integrao ou da globalizao. Para discusses tericas sobre a integrao recomenda-se DEUTSCH, 1982 e, da globalizao, HIRST and THOMPSON, 1999, CASTELLS, 2000.

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interao entre os nveis internos e externos das sociedades torna-se cada vez menos diferenciado, eliminando barreiras tradicionais pela fluidez das fronteiras e a interpenetrao das sociedades (o termo aplicado intermstico). Em termos negativos, a relativizao da soberania e a desigual distribuio de recursos e benefcios fazem parte da agenda, assim como o surgimento de movimentos de fragmentao e reao universalizao dos princpios e abertura das fronteiras27. Do ponto de vista da anlise crtica, a globalizao definida por autores como Wallerstein como o movimento de ocidentalizao do mundo iniciado com a expanso das potncias